Alberto Moravia A Romana

PRIMEIRA PARTE

1

Aos dezasseis anos eu era uma autêntica beleza. Tinha o rosto de um oval perfeito, estreitando-se levemente nas fontes, dois grandes olhos amendoados e meigos, um nariz direito, que prolongava harmoniosamente a nobre linha da fronte, uma bela boca de lábios vermelhos e carnudos e uma dentadura perfeita, muito regular e de extraordinária brancura. Minha mãe dizia que eu me parecia com uma santa. Pela minha parte, descobria que me parecia com uma artista de cinema muito em voga nesse tempo, e comecei a pentear-me como ela. Minha mãe passava a vida a dizer-me que, se tinha um rosto bonito, o meu corpo era cem vezes mais belo ainda, e que em toda Roma não se encontraria um corpo mais perfeito do que o meu. Nesse tempo o meu corpo não era coisa que me interessasse muito. Eu pensava que só a beleza do rosto é que tem importância, mas agora sei que minha mãe tinha toda a razão no que dizia. As minhas pernas eram direitas e fortes, as ancas suavemente arredondadas, as costas longas, largas nos ombros e estreitas na cintura. Tinha o ventre ligeiramente proeminente — sempre tive um bocadinho de barriga — e o meu umbigo enterrava-se tão profundamente na carne que quase se não via. Eu pensava que isso era um defeito, mas minha mãe teimava que, pelo contrário, era um novo encanto, porque o ventre de uma mulher deve ser arredondado sem exagero, e não completamente chato como se usa agora. O meu seio era grande, mas firme e alto, e nunca necessitei de qualquer auxílio ou artifício para o manter numa posição perfeita. Também a este respeito, quando às vezes me lamentava do seu tamanho, que me parecia excessivo, minha mãe respondia que só um seio grande poderia ser belo e que o seio pequeno não tinha qualquer espécie de encanto feminino. Nua, como haviam tantas vezes de dizer-mo mais tarde, eu era grande e opulenta como uma bela estátua. Vestida dava a impressão de uma rapariguita um tanto magra, nunca compreendi bem porquê, até que um pintor de quem fui modelo me disse que isso se devia à extrema harmonia das minhas proporções.

Foi, é claro, minha mãe quem me conseguiu esse emprego. Ela própria tinha posado antes de se casar e de se tornar costureira de camisas. E foi precisamente o facto de um pintor a encarregar de alguns trabalhos de costura que lhe inspirou a ideia de o convencer a contratar-me para seu modelo. A primeira vez que fomos ao seu atelier eu ia profundamente envergonhada. Não por ir despir-me completamente pela primeira vez diante de um homem, mas por pensar nos elogios que minha mãe não deixaria de fazer para convencer o pintor a aceder às suas propostas. E, na verdade, como eu calculara, mal acabou de me ajudar a despir e me apanhou completamente nua no meio da sala, minha mãe começou, entusiasmadíssima, a fazer o meu elogio:

— Veja este seio e estas ancas! Repare nas pernas que ela tem! Onde encontraria o senhor umas pernas, uns seios e umas ancas como estes?

Ao mesmo tempo que falava apalpava-me, como se faz nas feiras de gado para encorajar o comprador a fechar o negócio. O pintor ria-se, divertido. Eu sentia-me morrer de vergonha.

Como estávamos no Inverno, sentia bastante frio. E, embora as palavras que saíam da boca de minha mãe não me vexassem profundamente, eu compreendia que ela falava sem malícia e que o orgulho que a minha beleza lhe causava vinha do facto de ter sido ela quem me gerara e ser, portanto, a ela que eu devia essa beleza. O pintor também parecia compreender esses sentimentos da minha mãe, porque se ria sem maldade, cordialmente. Foi isso que me devolveu a coragem perdida e me deu forças para ir aquecer-me junto da salamandra acesa. O pintor tinha quarenta anos. Era um homem gordo, de aspecto sossegado e bem disposto. Eu sentia que ele olhava para mim como quem olha para um simples objecto, sem nenhuma espécie de sensualidade, e isso dava-me confiança. Mesmo mais tarde, quando a intimidade se estabeleceu entre nós, continuou sempre a tratar-me gentilmente, com respeito, não como se eu fosse uma simples coisa, mas já como uma pessoa. Senti mediatamente uma grande simpatia por ele, e talvez fosse possível que me tivesse apaixonado simplesmente devido à sua amabilidade e à amizade com que me tratava. Mas ele nunca teve para comigo a mais pequena familiaridade: para mim foi sempre não um homem mas apenas um pintor, e durante todo o tempo em que posei para ele as nossas relações mantiveram-se tão distantes e tão correctas como no primeiro dia.

Quando minha mãe se cansou de me tecer louvores, o pintor, sem uma palavra, dirigiu-se para um monte de cartões empilhados numa cadeira, folheou-os e voltou com uma gravura colorida, que mostrou a minha mãe dizendo-lhe naturalmente :

— Aqui tens a tua filha.

Afastei-me do calor da salamandra para vir ver a gravura.

Representava uma mulher nua, estendida numa cama coberta de ricos tecidos. Para além da cama via-se um reposteiro de veludo, e nas pregas desse reposteiro, suspensos no ar, dois meninos alados que me pareceram ser dois pequenos anjos.

Efectivamente, aquela mulher parecia-se comigo. No entanto, e apesar de estar nua, por causa dos tecidos e dos anéis que tinha nos dedos, depreendia-se que devia ter sido uma rainha ou uma grande dama, enquanto que eu não passava de uma pobre rapariga do povo. A princípio minha mãe não compreendeu e ficou a olhar para a gravura com ar aparvalhado. Depois, de repente, pareceu ter descoberto a semelhança e gritou, quase sufocada:

— Não há dúvida alguma! É ela! Vê como eu tinha razão? De quem se trata?

— De Dánae — respondeu o pintor a sorrir.

— E quem é Dánae?

— Dánae é uma divindade pagã…

Minha mãe, que esperava o nome de uma pessoa que tivesse realmente existido, ficou desorientada. Para esconder a sua confusão começou a explicar-me com grandes gestos que eu tinha de me pôr na posição que o pintor indicasse, deitada como a mulher da gravura, por exemplo, ou então de pé, ou sentada, e conservar-me imóvel, sempre na mesma posição, durante todo o tempo do trabalho dele. Rindo, o pintor declarou que minha mãe conhecia o ofício muito melhor do que ele próprio. E logo minha mãe, cheia de vaidade, desatou a falar dos tempos em que era modelo e todos os artistas de Roma a disputavam e lhe elogiavam as formas, lamentando amargamente o facto de ter abandonado esse trabalho. Entretanto, o pintor tinha-me feito estender num sofá ao fundo do atelier, indicara-me a posição, dobrando-me ele próprio as pernas e os braços para lhes dar a atitude requerida. Tudo isto foi feito com uma delicadeza meditativa e distraída. Como se na realidade já me estivesse a ver tal qual pretendia pintar-me. Depois, enquanto minha mãe continuava infatigavelmente a sua conversa. Começou a desenhar numa tela branca que pusera num cavalete. Minha mãe, percebendo que ele já nem sequer a ouvia. Absorvido pelo seu trabalho, perguntou-lhe:

— Quanto tenciona pagar à minha filha por cada hora de pose?

O pintor disse um preço qualquer sem levantar os olhos da tela. Minha mãe nem se dignou responder-lhe ou discutir com ele. Pegou na minha roupa, que estava nas costas de uma cadeira, e atirou-me violentamente com ela, ordenando:

— Veste-te! O melhor que temos a fazer é irmo-nos embora…

— Que mosca te mordeu? — interrogou o pintor, estupefacto, parando de desenhar.

— Nada. Nada! — disse minha mãe, que parecia estar cheia de pressa. — Vamos, Adriana. Temos imenso que fazer e não podemos perder tempo!

— Que diabo! — exclamou o pintor. — Se tens uma proposta para me fazer, diz do que se trata e deixa-te de histórias…

Então minha mãe lançou-se numa discussão interminável, gritando que ele era completamente idiota se pensava que podia pagar-me uma ridicularia daquelas, que se não tratava de um destes modelos velhos que a ninguém interessam, mas sim de uma bela rapariga de dezasseis anos, que posava pela primeira vez.

Quando minha mãe quer impor a outras pessoas o seu ponto de vista usa sempre a táctica da gritaria, como se realmente estivesse possuída de uma violenta cólera; eu, que a conheço como às minhas mãos, sei perfeitamente que aquilo não passa de um processo; grita como as regateiras do mercado quando o comprador lhes faz uma oferta que elas consideram baixa. E este processo dá sempre resultado, especialmente com as pessoas que, pela sua formação, não podem responder aos seus gritos com gritos semelhantes. É com essas, aliás, que ela emprega mais vezes o sistema.

Com o pintor também não falhou. Enquanto minha mãe se esganiçava cada vez mais, ele sorria, e apenas fazia de vez em quando um vago gesto para a interromper. Por fim, aproveitando uma oportunidade em que minha mãe se calara durante alguns momentos para respirar, perguntou-lhe calmamente quanto pretendia que ele me pagasse. Mas minha mãe não lhe respondeu imediatamente. Atirou este argumento que ninguém podia esperar:

— O que eu gostava de saber era quanto esse que pintou o quadro que acaba de nos mostrar pagou ao seu modelo!

O pintor desatou a rir:

— Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? Os tempos mudaram muito de então para cá. Ele deve ter-lhe dado em troca uma boa garrafa de vinho, talvez um par de luvas, não sei…

De novo minha mãe ficou tão desorientada como quando ele lhe tinha dito que a gravura representava Dánae. Eu compreendia que o pintor estava a divertir-se à sua custa. Mas era sem maldade, e minha mãe não se apercebeu disso. Desatou novamente a gritar, chamando-lhe miserável avarento e exaltando a minha beleza sem par. Depois, de repente, pareceu acalmar-se e disse-lhe a quantia que entendia que devia pagar-me, ou melhor, que ela queria que me pagasse. O pintor não concordou, discutiram ainda um bom bocado, mas por fim acabaram por assentar numa importância um pouco inferior à que minha mãe tinha indicado. O pintor dirigiu-se para uma mesita, abriu uma gaveta e pagou-lhe. Ela guardou alegremente o dinheiro, fez-me algumas recomendações e retirou-se. O pintor foi fechar a porta, voltou a sentar-se diante do seu cavalete e perguntou-me:

— A tua mãe fala sempre assim aos gritos?

— Minha mãe gosta muito de mim — respondi.

— Pois olha — disse ele tranquilamente, continuando a desenhar. — Cá, para mim, do que ela gosta muito é de dinheiro…

— Oh! Não, isso não é assim! — respondi vivamente.

— De quem ela gosta acima de tudo é de mim. Mas tem pena que eu tenha nascido pobre e gostava de me ver ganhar a vida largamente.

Quis relatar pormenorizadamente esta história do pintor porque esse foi o meu primeiro dia de trabalho, se bem que eu tivesse acabado por escolher um ofício inteiramente diferente, e também para mostrar como o seu procedimento indicava o seu carácter e os seus sentimentos para comigo.

Terminada a minha hora de pose fui ter com minha mãe a uma leitaria onde tínhamos marcado encontro. Perguntou-me como se tinha passado a sessão e obrigou-me a relatar-lhe minuciosamente todas as palavras do pintor, que era, aliás, pouco falador. Finalmente disse-me que eu precisava de ter os olhos bem abertos. Que talvez esse pintor não tivesse más intenções a meu respeito, mas que a maioria dos artistas tentava sempre tornar-se amante dos seus modelos, quando valia a pena, é claro. Ora era preciso que eu repudiasse energicamente qualquer proposta desse género.

— Nenhum deles tem onde cair morto — explicou-me e nada há de bom a esperar deles. E tu, com a beleza que Deus te deu, podes aspirar a coisa muito melhor…

Era a primeira vez que minha mãe se me dirigia nestes termos. Mas ela falava com a segurança de uma pessoa que se refere a coisas longamente meditadas.

— Que queres dizer com isso? — perguntei, surpreendida.

Vagamente, respondeu-me:

— Falam todos muito bem, mas não têm um chavo. Uma linda rapariga como tu não deve frequentar senão homens decentes…

— Como homens decentes? Eu ninguém conheço…

Ela olhou-me durante uns momentos e concluiu, com os seus modos distraídos:

— Por agora podes perfeitamente ser modelo. Mais tarde veremos… Cada coisa a seu tempo.

Havia nos seus olhos uma expressão ávida e concentrada que quase me fez medo. E nesse dia a conversa ficou por aí.

As recomendações e os conselhos de minha mãe eram desnecessários, porque eu era nesse tempo extremamente séria, talvez como consequência da minha juventude. Depois deste pintor trabalhei para outros e tornei-me muito conhecida entre eles. Devo dizer que, de um modo geral, os pintores se mostravam correctamente reservados e respeitosos para comigo, se bem que alguns deles nada fizessem para me esconder os seus sentimentos a meu respeito. Mas eu afastava-os imediatamente com tal violência que rapidamente adquiri a fama de que comigo nada havia a fazer. Mas creio que a verdadeira razão do modo reservado como os pintores se portavam comigo era que na realidade o que lhes interessava não era fazer-me a corte, mas pintar. Ora, enquanto desenhavam ou pintavam, os olhos com que me viam eram olhos de artista, e não de homem. Quero dizer que, na minha opinião, olhavam para mim com a mesma insensibilidade com que teriam olhado para uma cadeira ou para outro objecto qualquer. Estavam habituados a trabalhar com modelos, e o meu corpo nu, apesar de jovem e provocante, não lhes causava qualquer impressão, como sucede com os médicos. O que me complicava às vezes a existência eram os amigos dos pintores. Chegavam e punham-se a conversar. Mas não tiravam os olhos de mim, apesar da indiferença que afectavam. Outros nem sequer tentavam disfarçar o que sentiam e andavam constantemente de um lado para o outro de modo a poderem mirar-me de todos os ângulos. Foram estes olhares e as obscuras alusões de minha mãe que acordaram o meu amor-próprio feminino, tornando-me consciente, ao mesmo tempo, da minha beleza e das vantagens que podia tirar dela. E acabei, não só por me habituar a essas assiduidades, mas até por sentir um certo prazer quando os visitantes se perturbavam por minha causa e uma estranha desilusão quando isso não acontecia.

Terminei por convencer-me, como o desejava minha mãe, de que eu possuía na minha beleza um bom capital, que um dia poderia render lucros pingues e seguros.

Nessa época da minha vida eu pensava, no entanto, em me casar. Os meus sentidos ainda não tinham acordado e, pondo de lado a vaidade, os homens que olhavam para mim enquanto posava não me provocavam qualquer sentimento. Entregava pontualmente a minha mãe todo o dinheiro que me pagavam, e quando não tinha trabalho ficava com ela em casa, ajudando-a a cortar e a coser as camisas. Este era o nosso meio de existência desde a morte de meu pai, que tinha sido ferroviário. Vivíamos num pequeno apartamento situado no segundo andar de uma pobre casa, construída havia cinquenta anos para o pessoal dos caminhos de ferro, numa rua da periferia da cidade. De um lado havia uma fileira de construções do mesmo tipo, com dois andares, uma fachada de tijolos sem reboco, doze janelas — seis em cada andar — e em baixo uma porta central. Do outro lado estendiam-se as antigas muralhas da cidade, que neste local se mantinham de pé, cobertas de heras e trepadeiras. Uma porta rasgava-se nessas muralhas, próximo da nossa casa. Perto dessa porta havia uma espécie de Luna-Parque, sempre iluminado e com música durante o tempo seco. Da minha janela eu podia ver grinaldas de lâmpadas multicores, tectos dos quais se erguiam pequenas bandeiras e pendões e a multidão que se comprimia à entrada, debaixo dos enormes plátanos que davam sombra a esse lado da rua. A música ouvia-se distintamente em nossa casa.

Muitas vezes, durante a noite, eu deixava-me ficar acordada para a escutar, sonhando com os olhos abertos. Parecia-me que ela chegava até mim vinda de um mundo inacessível, circunstância que a pequenez do meu quarto reforçava. Tinha a impressão de que toda a população da cidade vinha divertir-se para o Luna-Parque e que eu era a única que não tinha posses para o fazer. E a música, que soava em toda a noite, evocava no meu espírito a ideia de um castigo que eu sofria por causa de crimes que devia ter cometido, mas que ignorava quais tivessem sido. Por vezes, ao ouvi-la, chegava a chorar, de tal modo a minha exclusão me humilhava e tornava infeliz, porque nesse tempo eu era terrivelmente sentimental: um gesto ou uma palavra mais brusca de uma amiga, uma censura de minha mãe, uma cena emocionante vista no cinema, qualquer coisa era suficiente para que as lágrimas me viessem aos olhos. Possível que eu não tivesse com tanta nitidez a percepção de um mundo de felicidades que me estavam vedadas se durante a minha infância minha mãe não impedisse tão exclusivamente a minha entrada no Luna-Parque. Mas a sua viuvez precoce, a sua falta de recursos e principalmente a sua hostilidade para com todos os divertimentos de que ela própria estava privada fizeram com que ela nunca me permitisse a entrada no Luna-Parque ou em qualquer outro lugar de distracção senão muito mais tarde, quando eu já era uma mulherzinha e o meu carácter já se encontrava formado. Provavelmente a isso que devo ter guardado em toda a minha vida esta convicção da existência de um mundo de alegria e de felicidade vedado para mim por um destino ao qual já pertencia ainda antes de ter nascido. E esta sensação radicou-se tão profundamente dentro de mim que não consigo libertar-me dela nem quando tenho a certeza de que sou feliz.

Já disse que nesse tempo a minha grande aspiração era o casamento. Agora posso ver qual era o verdadeiro aspecto que essa ideia tomava dentro de mim. A rua em que morávamos atravessava, quase no seu termo, um bairro menos pobre do que o nosso. Em lugar das nossas casas baixas e iguais, semelhantes a carruagens de caminho de ferro, empoeiradas e velhas, podiam ver-se aí pequenos pavilhões rodeados de jardins. Não eram luxuosos. Os que lá viviam não passavam de modestos empregados ou remediados comerciantes, mas, em comparação com a miséria da nossa casa, esses pavilhões eram infinitamente confortáveis e alegres. Além disso eram todos diferentes uns dos outros e não mostravam o aspecto de decadência que dão as paredes sem cal e cheias de gretas, característica dominante da nossa casa e das dos nossos vizinhos. Também os jardins que os rodeavam, apesar de pequenos, estavam cheios de plantas e davam-me uma doce sensação de intimidade, em contraste com a desagradável promiscuidade da rua. Na minha casa era isso o que se encontrava a todos os momentos e em toda a parte, a rua: no vasto vestíbulo, que tinha o ar de um armazém abandonado, na larga escada nua e suja, e até nas salas, cujos móveis desirmanados e a cair aos pedaços me faziam pensar nos ferros-velhos que os compravam e vendiam ao longo dos passeios.

Uma noite de Verão em que passeava na rua com minha mãe, pela janela de um desses pavilhões vi uma cena familiar que se gravou para sempre no meu espírito e me pareceu corresponder ponto por ponto à ideia que tinha do que deve ser uma vida normal e decente. Uma sala pequena, mas arrumada e limpa, com as paredes forradas de um papel pintado às florinhas, uma credência e um candeeiro de tecto suspenso ao centro da sala por cima da mesa posta. A roda desta mesa sentavam-se cinco ou seis pessoas, entre as quais três crianças dos oito aos doze anos. No meio da mesa havia uma terrina, e a mãe, de pé, servia a sopa. Por muito estranho que isto possa parecer, de todas estas coisas a que mais profundamente se gravou na minha memória foi a luz da suspensão, ou, melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e normal que todas as coisas tomavam vistas sob esta luz. Mais tarde, sempre que voltei a pensar nesta cena, tive a convicção absoluta de que o meu fito na vida devia ter sido viver numa casa idêntica, ter uma família como esta e passar os meus dias ao clarão de uma luz assim, que parecia revelar a presença de tantas afeições seguras e tranquilas. Muita gente há-de sorrir da modéstia das minhas aspirações. Mas é preciso não esquecer o que eu era nesse tempo. Para mim, nascida num autêntico tugúrio, aquele pavilhão modestíssimo surgia aos meus olhos como surgiria aos olhos dos seus habitantes, que eu tanto invejava, um dos maiores e mais sumptuosos palácios dos bairros aristocráticos, tão certo é ser o paraíso de uns o que para outros não passa do inferno.

Minha mãe, ao contrário, acalentava grandes projectos para o meu futuro, e eu depressa compreendi que esses projectos excluíam por completo qualquer tipo de vida parecido com o que eu própria desejava. O que ela pensava, em resumo, era que a minha beleza me permitia aspirar a todos os géneros de êxitos, mas de nenhum modo a tornar-me, como as outras raparigas, uma mulher casada, vivendo para o marido e para os filhos. Sendo nós extremamente pobres, a minha beleza parecia-lhe o único património de que dispúnhamos, e pertencia, portanto, tanto a mim como a ela, visto ter sido dela que eu a recebera ao deitar-me ao mundo. E esta riqueza devia servir-me para melhoria da nossa situação, sem ligar importância ao que podiam ser as convenções sociais. No fundo isto não passava de uma completa falta de imaginação. Numa situação como a nossa, a ideia de pôr a minha beleza a render era perfeitamente intuitiva. Minha mãe adoptou-a, agarrou-se a ela e nunca mais a abandonou.

A verdade é que eu só muito vagamente compreendia os projectos da minha mãe. Mas mesmo mais tarde, quando adquiri experiência da vida, nunca tive coragem para lhe perguntar como, incompreensivelmente, tendo ela essas ideias, tinha acedido a casar com um pobre-diabo e cair na miséria. Muitas das suas alusões tinham-me feito compreender que a verdadeira culpada deste estado de coisas era eu, visto que o meu nascimento não tinha sido previsto nem desejado. Por outras palavras, o meu nascimento fora ocasional, e minha mãe, sem coragem de me impedir de nascer (como deveria ter feito, segundo dizia muitas vezes), não tinha tido outro remédio senão casar-se com meu pai e aceitar todas as consequéncias desastrosas de um casamento semelhante. Por isso, com frequéncia, referindo-se ao meu nascimento, afirmava: “Tu foste a minha ruína!”

Estas palavras, apesar da tristeza que me causavam, foram durante muito tempo perfeitamente obscuras para mim. Só muito mais tarde lhes consegui apreender o sentido exacto. O que elas realmente significavam era: “Sem ti nunca me teria casado e a esta hora tinha automóvel!” Era perfeitamente compreensível que, nutrindo ideias destas acerca da sua própria vida, minha mãe não concebesse para mim, muito mais bonita do que ela fora, o caminho dos mesmos erros, e portanto um destino semelhante.

Hoje, que me é possível ver as coisas em perspectiva, não tenho coragem de a condenar. Para minha mãe a palavra família significava miséria, escravidão e algumas pequenas alegrias rapidamente terminadas com a morte do meu pai. Era natural, senão justo, que considerasse a vida honesta e familiar como um caminho seguro para a desgraça e estivesse alerta a não me deixar tentar pelas miragens que a tinham atraído.

A sua maneira, minha mãe gostava muito de mim. Por exemplo: logo que eu comecei a frequentar os ateliers, fez-me dois vestidos: um fato inteiro e outro de saia e casaco. Para falar verdade, eu teria preferido roupa interior, porque tinha vergonha, sempre que era forçada a despir-me, da minha roupa grosseira, usada, e até muitas vezes pouco limpa. Mas minha mãe declarava que o importante era o que estava à vista. Para os fatos escolheu dois tecidos baratos, de cor e padrão vistosos, e cortou-os e coseu-os ela própria. Mas, porque era camiseira e não modista, apesar da sua boa vontade, os resultados foram desastrosos. Lembro-me de que o fato inteiro fazia pregas no peito, deixando-me de tal maneira os seios a descoberto que fui obrigada a usar constantemente um alfinete para fechar um pouco mais o decote, e que o fato de saia e casaco estava demasiadamente apertado e fazia rugas e pregas por todos os lados. Apesar disso, estas roupas pareceram-me verdadeiras maravilhas, em comparação com as coisas que até ali usara. Minha mãe comprou-me também dois pares de meias de seda. Tudo isso me encheu de alegria e de orgulho. Pensava constantemente, com encanto, nas minhas novas coisas e nem por um momento abandonava a preocupação de as não sujar ou estragar, como se aqueles míseros trapos tivessem saído das mãos de um grande costureiro.

Minha mãe pensava muito no meu futuro e não tardou a mostrar-se descontente com a minha actividade de modelo. Segundo ela, o que eu ganhava era uma verdadeira miséria. Além disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretões, e não seria com certeza nos seus ateliers que eu conseguiria algumas relações úteis. De repente meteu-se-lhe na cabeça fazer-me bailarina. A sua cabeça estava sempre cheia de ideias ambiciosas, ao passo que eu, como já tive ocasião de dizer, sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A ideia da dança veio à minha mãe num dia em que recebera uma encomenda de camisas para o director de uma companhia de variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto não quer dizer que minha mãe pensasse que a profissão de bailarina fosse por si própria muito lucrativa; mas, conforme afirmava constantemente, umas coisas levam às outras e quem se exibe num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um homem decente.

Um dia declarou-me que falara com o director e que este me queria conhecer. Fomos, assim, uma manhã ao hotel em que ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel — recordo-me perfeitamente — ficava num prédio muito grande e muito velho perto da estação. Era quase meio-dia quando lá chegámos, mas os corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro humano que saía de todos aqueles quartos era tão forte e tão denso que chegava a dificultar a respiração. Percorremos vários desses corredores e acabámos por entrar numa espécie de antecâmara sombria, onde três bailarinas se exercitavam ao som de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num ângulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no canto em frente havia um enorme montão de lençóis sujos. O pianista, um velho pálido, tocava de cor; deu-me a impressão de pensar noutra coisa e talvez até de estar a dormir. As três bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando as saias de baixo, e dançavam com o peito e os braços nus. Seguravam-se umas às outras pela cintura, e quando o pianista atacava uma ária caminhavam na direcção do montão de roupa suja, levantando as pernas e passeando-as num movimento de conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar sombrio e lúgubre, imprimiam às nádegas uma oscilação vigorosa. Quando olhei para elas e as vi bater com os pés no chão com um barulho rítmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem. Não ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas, eu não possuía a menor queda para a dança. Tinha recebido lições, juntamente com duas amigas, numa escola do bairro. As minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem treinadas; eu, pelo contrário, parecia feita de chumbo. Isto dava-me a impressão de não ser feita como as outras raparigas e julgava existir em mim qualquer coisa de maciço e de pesado que a música não conseguia atingir. Além disso, nas raras vezes em que tinha dançado, o facto de sentir um braço apertar-me a cintura dava-me uma tal sensação de moleza e de abandono que eu arrastava as pernas em lugar de as mover. O pintor bem mo dissera: “Tu, Adriana, devias ter nascido três ou quatro séculos mais cedo… Estava na moda as mulheres como tu. Hoje, que a moda é a magreza, tu és como um peixe fora de água. Dentro de quatro ou cinco anos estarás bela e forte como Juno.” Nesta última parte não acertou porque os cinco anos passaram e eu não estou nem mais gorda nem mais forte que nesse tempo. Mas quando me dizia que estava deslocada nesta época de mulheres magras tinha razão, e eu sofria com a minha incapacidade. Bem gostaria de emagrecer e de dançar como as outras raparigas. Mas por menos que comesse e por mais esforços que fizesse continuava maciça e imponente como uma estátua, e quando dançava era-me impossível obedecer ao ritmo rápido e saltitante da música moderna.

Disse tudo isto a minha mãe, porque tinha a certeza de que a nossa ida ao hotel seria um fiasco e queria evitar essa humilhação. Mas minha mãe desatou a gritar que eu era infinitamente mais bela do que todas as desgraçadas que se mostravam nos palcos, que o director daria graças a Deus pela sorte de poder incluir-me no seu grupo de artistas e outras coisas semelhantes. Minha mãe nada compreendia da beleza moderna; acreditava com inteira boa fé que quanto mais opulentos forem os seios e as ancas de uma mulher mais bela essa mulher será.

O director esperava-nos numa sala que dava para a antecâmara de que já falei; suponho que do sítio onde estava podia vigiar, pela porta aberta, o trabalho das bailarinas. Estava sentado numa poltrona ao lado da cama por fazer, e em cima desta tinha ainda a bandeja do pequeno-almoço, que acabara de tomar. Era velho e gordo, mas vestia-se com exagerado requinte e com uma elegância vistosa, que naquele quarto pobre e desleixado, mal iluminado e com a cama desfeita, assumia um aspecto singular e anacrónico. O seu rosto era corado, mas desconfiei que o pintava, porque debaixo do tom rosado das faces podiam ver-se como que placas irregulares de um moreno doentio. Usava monóculo, movia constantemente os lábios assoprando e descobrindo os dentes de uma brancura tão excessiva que se via imediatamente serem postiços. Estava sentado com o enorme ventre caindo-lhe para o meio das pernas; quando acabou de comer disse-me numa voz contrariada e quase gemebunda:

— Vamos, mostra-me as pernas!

— Mostra as pernas ao senhor director — repetiu a minha mãe com ansiedade.

Desde que trabalhava nos ateliers já não tinha vergonha… Mostrei as pernas conservando-me imóvel, arregaçando a saia com as duas mãos. As minhas pernas são verdadeiramente belas: longas, cheias e lisas, mas, um pouco acima dos joelhos, as coxas tomam um desenvolvimento insólito: são redondas e fortes e não cessam de alargar até ao ponto mais saliente das ancas.

O director abanou a cabeça e perguntou:

— Que idade tens tu?

— Completou dezoito anos em Agosto — respondeu prontamente minha mãe.

O director não respondeu. Levantou-se e dirigiu-se para um fonógrafo que se encontrava em cima da mesa, no meio de papéis e peças de roupa. Deu volta à manivela, escolheu um disco com cuidado e colocou-o no prato. Depois disse-me :

— Agora tenta dançar ao som desta música, mas mantendo a saia levantada.

— Ela só teve duas ou três lições de dança — explicou minha mãe.

Sabia perfeitamente que essa prova era decisiva, e conhecendo a minha falta de habilidade temia o resultado do exame.

Mas o director, depois de ter feito um gesto pedindo silêncio, fez rodar o disco e, também por gestos, convidou-me a dançar.

Comecei mantendo a saia levantada, como me tinha dito para fazer. Na realidade, a única coisa que fiz foi atirar as pernas para a direita e para a esquerda de um modo pesado e sem graça, dando-me perfeitamente conta de que nem sequer o fazia acompanhando o ritmo da música. O director tinha-se deixado ficar de pé junto do fonógrafo com os cotovelos apoiados na mesa, olhando para mim. De repente parou o aparelho e fechou-o. Voltou a sentar-se na sua poltrona e com um gesto expressivo indicou-nos a porta.

— Que foi? Não serve? — interrogou minha mãe, entre ansiosa e agressiva.

Ele respondeu sem sequer olhar para ela, ao mesmo tempo que remexia nos bolsos em busca da cigarreira.

— Não. Não serve.

Eu bem sabia que quando minha mãe falava com aquele tom de voz tentava provocar uma discussão. Para evitar isso puxei-a por um braço. Mas ela afastou-me com um safanão e, fixando no director um olhar chamejante, repetiu, já em voz mais forte:

— Não serve? Não? E poderá saber-se porquê? Entretanto o director tinha encontrado os cigarros e procurava os fósforos.

Devido à sua gordura cada um dos seus gestos parecia custar-lhe um enorme esforço. Apesar de ofegante, foi com grande tranquilidade que respondeu:

— A tua filha nem tem físico de bailarina nem tem a menor queda para a dança. Por isso que não serve.

Como eu calculava, minha mãe desatou nas suas habituais considerações. Que eu era uma autêntica beleza, que tinha um rosto de Madona, que não havia pernas, nem ancas, nem seios mais belos do que os meus. Calmamente, continuando a fumar o seu cigarro, o director observava-a e esperava que ela se calasse. Depois disse na sua voz contrariada e um pouco chorona:

— Dentro de dois anos a tua filha poderá talvez dar uma boa ama de leite. Uma bailarina nunca!

O pobre homem não sabia de que extremos de violência minha mãe era capaz. O seu pasmo foi tão grande que deixou cair o cigarro e ficou de boca aberta. Minha mãe era magra e de aspecto frágil, de modo que ninguém compreendia onde ela ia buscar tanta cólera e uma voz tão forte. Atirou-lhe à cara, dirigidas a ele e às bailarinas que tínhamos visto no corredor, quantas injúrias sabia. Depois, agarrando nos cortes de seda que ele lhe confiara para ela fazer camisas, arremessou-os ao chão gritando:

— As suas bailarinas que lhe façam as camisas! Eu não lhes tocarei nem que mas pagasse a peso de ouro.

Isto era tão inesperado para o director que ele nada respondeu e ficou a olhar para minha mãe, estupefacto e congestionado.

Eu, entretanto, tentava arrastá-la dali para fora e quase chorava de vergonha e de humilhação. Consegui-o finalmente, e saímos do quarto sem que o director pronunciasse uma única palavra.

No dia seguinte contei esta aventura ao pintor, que se tinha tornado um pouco meu confidente. Ele riu com vontade do que o director dissera quanto às minhas aptidões para ama de leite e disse-me:

— Minha pobre Adriana. Já to disse várias vezes: o teu grande erro foi teres nascido no tempo presente; devias ter vindo ao mundo há quatro séculos. O que hoje é considerado defeito era então considerado qualidade e vice-versa. Do seu ponto de vista, o director tem razão. O público actualmente exige mulheres magras, louras, de seio pequeno, ancas estreitas e um rosto malicioso e provocante; tu, pelo contrário, és forte, morena, com um seio e umas ancas opulentas e um rosto doce e tranquilo. Não está na tua mão modificares a situação. Para mim tens precisamente o que necessito. Continua a ser modelo. Depois, um belo dia, casarás e terás muitos filhos parecidos contigo, morenos e gorduchos, com caras meigas e tranquilas.

— São essas precisamente as minhas ambições — respondi com energia.

— Muito bem — disse ele. — Agora inclina-te um bocadinho para o lado. Isso! Óptimo.

Este pintor queria-me bem à sua maneira, e se tivesse continuado a viver em Roma e a servir-me de confidente tenho a certeza de que me daria bons conselhos e muitas coisas que me aconteceram poderiam ter sido evitadas. Mas ele queixava-se constantemente de que não vendia os seus quadros e acabou por aproveitar a oportunidade de ter feito uma exposição em Milão para fixar residência naquela cidade.

Continuei a ser modelo como ele me aconselhara. Mas os outros pintores não tinham por mim a mesma amizade e eu não me sentia disposta a falar-lhes dos meus problemas nem da minha vida.

Nessa altura, aliás, muito mais imaginária do que real, feita de sonhos, de aspirações e de esperanças, visto que nada de extraordinário me acontecia.

2

Foi assim que continuei a ser modelo, apesar de minha mãe resmungar constantemente que por esse processo eu nunca chegaria a ganhar coisa que se visse. No decurso deste período da minha vida minha mãe esteve constantemente de mau humor, e, apesar de ela o não dizer claramente, eu bem compreendia que a causa da sua má disposição era eu. Não é esta a primeira vez que o digo: minha mãe contava com a minha beleza como se conta com um capital seguro. Para ela o ofício de modelo não passava de um ponto de partida; depois disto, segundo a sua expressão habitual, “uma coisa traria outra”. A continuação deste trabalho humilde e mal remunerado, ao mesmo tempo que a enchia de amargura, tornava-a rancorosa contra mim, como se o facto de eu não ser ambiciosa a privasse de lucros seguros.

Evidentemente que não me dizia isto. Mas dava-mo constantemente a perceber pelos seus modos desagradáveis, as suas alusões, os seus suspiros, os seus olhares melancólicos e outros meios de expressão igualmente significativos. Era uma espécie de chantagem constante, a razão pela qual muitas raparigas, fundamentalmente honestas, martirizadas sem piedade nem tréguas por mães ambiciosas e desiludidas, acabam por fugir de casa e entregar-se ao primeiro homem que encontaram, unicamente para se libertarem desse tormento. Eu bem sei que minha mãe fazia isto por amor de mim. Mas esse amor era como os dos aldeões para com as galinhas: no dia em que elas deixam de pôr ovos começam imediatamente a perguntar a si próprios se não terá chegado o momento de lhes torcer o pescoço e as meter na panela.

Como se é paciente e crédulo quando se é jovem! A minha vida nesse tempo era horrível e eu nem sequer tinha consciência disso. O dinheiro que me rendiam as minhas longas, enfadonhas e fatigantes sessões de pose nos ateliers era por mim integralmente entregue em casa, e o tempo que não passava nua, entorpecida e dolorida pela imobilidade, para que me pintassem e desenhassem, passava-o em casa a coser à máquina, de costas dobradas e com os olhos fitos na agulha ajudando minha mãe no seu trabalho. À noite continuava a costurar até tarde, para me levantar mal começava a amanhecer, pois os ateliers ficavam longe e as sessões começavam cedo. Mas antes de partir para o trabalho fazia a minha cama e ajudava minha mãe a arrumar a casa. Eu era realmente infatigável, submissa, paciente e ao mesmo tempo sempre calma, alegre e tranquila, a alma isenta de inveja, de rancor ou de ciúme, cheia dessa doçura e dessa gratidão sem motivo que são a florescência espontánea da juventude. Não me apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mãe numa cama de casal; mesmo por cima da minha cabeça, quando estava deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando estava mau tempo chovia-nos em cima. Tínhamos uma pequena cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mãe por desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Não me apercebia da vida de sacrifício que levava, sem divertimentos, sem amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na minha inocência e na minha bondade, sinto uma grande compaixão por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma que se sente quando, ao ler-se um romance, desejamos evitar a uma personagem simpática as desgraças que lhe vão acontecer, sabendo ao mesmo tempo que as não poderemos impedir. A vida é assim: a bondade, a inocência, nada valem para os homens. E não será talvez um dos seus menos dolorosos mistérios que as melhores qualidades que a natureza nos deu — e todos entusiasticamente louvam — não sirvam senão para nos tornar mais desgraçados ainda.

Nesta altura acreditava que a minha aspiração de casar e ter uma família podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as manhãs tomava o eléctrico numa grande praça muito perto da minha casa, para a qual dava, entre outros prédios, uma construção baixa encostada às muralhas e que servia de garagem. A essa hora estava todos os dias à porta da oficina um rapaz que lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistência. Era moreno, com um ar finíssimo: nariz pequeno e direito, olhos negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes muito brancos. Parecia-se muito com um actor americano de cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a atenção. Primeiro tomei-o por uma pessoa de condição, porque estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos tais “cavalheiros respeitáveis” de que minha mãe tanto me falava. Por um lado ele atraiu-me, mas pensava nele apenas quando o via; depois ia para o atelier e a sua lembrança saía-me do espírito. Mas não é menos verdade que sem dar por isso e apenas por causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma manhã em que eu, no passeio, esperava o eléctrico, ouvi que me chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para chamar os gatos; voltei-me e vi que ele me fazia sinais de dentro do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava, não hesitei um instante em aproximar-me. Ele abriu a porta. Ao entrar reparei que a mão que pousava sobre o vidro aberto era grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como têm os homens que exercem profissões manuais. Nada disse e mesmo assim subi.

— Onde quer que a deixe? — perguntou-me fechando a porta.

Notei que tinha a voz doce e tive a impressão de que ela me agradava, sem no entanto deixar de notar nela qualquer coisa de falso e de afectado. Acrescentou:

— Bem… para fazer horas vamos dar uma volta… Ainda é cedo! Depois levá-la-ei aonde você quiser.

E o carro partiu.

Saímos do meu bairro e contornámos as muralhas ao longo da avenida exterior; em seguida entrámos numa estrada larga e comprida, ladeada de casebres e de armazéns; por fim chegámos ao campo. Então desatou a correr como doido por uma estrada recta, entre áleas de plátanos. De vez em quando dizia-me sem me olhar, mostrando o conta-quilómetros:

— Agora vamos a oitenta… noventa… cem… cento e vinte… cento e trinta.

Queria impressionar-me com estas velocidades, mas eu estava sobretudo inquieta porque tinha de ir posar e receava que um incidente qualquer nos obrigasse a parar o carro em algum descampado. De repente travou. Bruscamente desligou o motor, voltou-se para mim e perguntou:

— Quantos anos tem?

— Dezoito anos — respondi.

— Dezoito anos… julguei que tivesse mais!

Tinha realmente uma maneira de falar afectada, e por vezes, para sublinhar uma palavra, baixava o tom como se falasse consigo próprio ou dissesse um segredo.

— Como se chama?

— Adriana. E você?

— Gino.

— O que faz? — perguntei-lhe.

— Sou comerciante! — respondeu sem hesitar.

— E o carro ê seu?

Olhou o carro com uma espécie de desdém e declarou:

— É meu, sim.

— Não acredito! — disse-lhe eu com toda a franqueza.

— Não acredita? Estão não é meu! — repetiu sem perder a linha. — Não está má! E porquê?

— Você é o chauffeur?

Ele fingiu um espanto irónico cada vez maior.

— Mas, na verdade, você diz-me coisas fantásticas! Vejam bem: chauffeur! Mas que a fez pensar isso?

— As suas mãos.

Olhou as mãos sem corar nem se desconcertar e confessou:

— Bom! Nada se pode esconder a esta menina. Mas que argúcia! É verdade, sou chauffeur. E agora, está contente?

— Nada mesmo! — respondi duramente. — Quero apenas pedir-lhe que me leve para a cidade o mais depressa possível.

— Mas porquê? Está zangada comigo por eu ter dito que era comerciante?

Estava realmente irritada com ele. Nem eu sabia bem porquê:

— Não falemos mais nisso. Leve-me!

— Mas era uma brincadeira! Então já não se pode brincar?

— Não gosto destas brincadeiras!

— Que mau génio! Eu pensei: é possível que esta rapariga seja alguma princesa… se ela descobre que sou apenas um pobre chauffeur, nem se digna olhar-me… vou dizer-lhe que sou comerciante.

As suas palavras foram astuciosas, porque, lisonjeando-me, faziam-me compreender os seus sentimentos a meu respeito. Por outro lado ele pronunciava-as com uma mistura de graça e de enfatuamento que acabaram de me conquistar.

— Não sou qualquer princesa — respondi. — Ganho a minha vida como modelo, como você ganha a sua como chauffeur.

— Que quer dizer isso de modelo?

— Vou aos ateliês dos pintores. Ponho-me nua e eles pintam-me ou desenham-me.

— Mas você não tem mãe? — perguntou-me com ênfase.

— Com certeza, porquê?

— E a sua mãe consente que se ponha toda nua diante dos homens?

Eu nem sequer tinha sonhado alguma vez que pudesse haver algum mal neste trabalho. Efectivamente, não havia mal algum nisso, mas agradou-me ver tais sentimentos, que denotavam que ele era sério e tinha senso moral. Como já disse, eu tinha sede de normalidade; e ele na sua falsidade tinha compreendido logo (mesmo agora eu não sei como conseguiu adivinhar) as coisas que me devia dizer e as que não devia. Outro qualquer — não pude deixar de pensar — ou teria troçado de mim ou teria demonstrado qualquer indiscreta excitação à ideia da minha nudez. E foi por isso que a primeira impressão que me ficara da sua mentira se modificou sem que eu desse por isso. Pensei que apesar de tudo devia ser um bom rapaz, honesto e sério, muito parecido com o homem que eu sonhava para marido.

Respondi-lhe portanto com simplicidade:

— Foi minha mãe quem me arranjou este trabalho.

— Então é sinal de que ela não gosta de si.

— Não — protestei —, a minha mãe gosta até muito de mim; mas ela também no seu tempo de rapariga foi modelo. E depois asseguro-lhe que nada tem de mal. Há muitas raparigas como eu que fazem este trabalho e são raparigas sérias.

Ele abanou a cabeça em ar de desaprovação e depois pousou a sua mão na minha.

— Sabe que estou bem contente por tê-la conhecido… muito contente!

— Também eu — respondi ingenuamente. Neste momento sentia uma atracção tão grande por ele que quase esperava que me beijasse. Com certeza que se me tivesse beijado eu não teria protestado, mas em vez disso disse-me com voz grave e ar protector:

— Se isso dependesse de mim, você não seria modelo com certeza!

Senti-me imediatamente vítima e experimentei um sentimento de gratidão pela sua consideração.

— Uma rapariga como você — continuou ele — deve ficar na sua casa… precisando… pode trabalhar… Mas é preciso que seja um trabalho digno… um trabalho em que não seja necessário sacrificar-se a pôr em perigo a sua honra. Você é uma rapariga para casa, fundar um lar, ter filhos, fazer companhia ao seu marido.

Era exactamente o que eu pensava e não sabia dizer até que ponto me tornava feliz saber que ele pensava como eu, ou fingia pensar.

— Tem razão — disse-lhe. — Mas não quero que faça uma ideia errada de minha mãe. Foi justamente por ela gostar muito de mim que quis que eu fosse modelo.

— Ninguém o diria! — retorquiu com um ar seriamente comovido e indignado.

— Sim! Ela gosta de mim! Somente, há certas coisas que ela não compreende.

Continuámos a falar de tudo ou pouco, sentados, atrás do pára-brisas, dentro do carro parado. Lembro-me de que estávamos em Maio, que o ar era doce e que as sombras dos plátanos pareciam brincar sobre a estrada até perder de vista.

Ninguém passava, salvo raros automóveis a toda a velocidade. O campo em redor, cheio de sol e muito verde, estava tão deserto como a estrada. Por fim olhou o relógio e disse-me que íamos voltar para a cidade. Durante todo este tempo ele só me tinha pegado na mão, e mesmo isso apenas uma vez. E eu, que esperava que ele tentasse pelo menos beijar-me, estava ao mesmo tempo decepcionada e contente de tanta reserva. Decepcionada porque ele me agradava e não podia deixar de sentir uma grande atracção pela sua boca fina e vermelha quando a olhava. Contente porque a sua atitude confirmava a ideia que tinha a seu respeito, de que era um rapaz sério como eu desejava que ele fosse.

Conduziu-me até ao atelier e disse-me que, a partir desse dia, se eu estivesse na paragem do eléctrico a uma certa hora, ele me traria no seu carro; a essa hora nada tinha que fazer.

Aceitei de boa vontade, e as minhas longas horas de pose pareceram-me mais curtas naquele dia. Parecia que a minha vida tinha tomado um rumo e sentia-me contente de poder pensar nele sem remorsos e sem ressentimentos, como se pensa num homem que não só nos agrada fisicamente, mas também pelas qualidades de carácter que eu considerava essencial que ele fosse possuidor.

Nada disse a minha mãe, porque pensava, muito acertadamente, que ela nunca aceitaria que eu me ligasse a um homem pobre e de futuro modesto. Na manhã seguinte veio buscar-me como me prometera, e nesse dia limitou-se a levar-me directamente ao atelier. Nos dias seguintes, logo que o tempo começou a ficar bom, levou-me por vezes para qualquer estrada dos arrabaldes, ou para qualquer rua pouco frequentada da periferia, a fim de conversarmos à vontade, mas sempre de maneira respeitosa e conversas honestas e sérias que muito me agradavam. Eu era nesse tempo muito sentimental: tudo o que traduzisse bondade, virtude, moral e afeição de família tocava-me singularmente e comovia-me até às lágrimas, lágrimas que me corriam livremente dando-me uma sensação embriagadora e ardente de alívio, de simpatia e de confiança. Foi assim que pouco a pouco me convenci de que Gino era absolutamente perfeito.

“Realmente — pensava eu às vezes — … que defeitos tem ele? É novo, é belo, é inteligente, é honesto, é sério, não se lhe pode apontar o mais pequeno defeito.” Isso admirava-me porque não é fácil encontrar a perfeição, e o conhecê-la quase me afligia. “Que homem é este que, depois de perscrutado, não revela a menor mácula, nem a menor falta?”

Na verdade, eu apaixonara-me sem dar por isso. E agora sei que o amor tem uns óculos através dos quais um monstro nos parece maravilhoso.

Estava de tal maneira apaixonada que a primeira vez que ele me beijou, na estrada onde tivera lugar a nossa primeira conversa, experimentei uma tal sensação que se poderia traduzir como a satisfação natural de um velho anseio, há muito desejado. Contudo, a irresistível espontaneidade com que as nossas bocas se uniram assustou-me um pouco, porque eu pensava que de futuro os meus actos já não dependiam de mim, mas da força irresistível que me atraía com tão doce violência para os seus braços. No entanto, fiquei plenamente descansada, porque logo que nos separámos ele disse-me que nos podíamos considerar daí em diante como noivos.

Ainda desta vez não pude impedir-me de pensar que ele encontrara sem dificuldades as palavras que correspondiam aos meus anseios mais íntimos. Assim, o receio que este beijo me despertara desvaneceu-se e todo o tempo em que estivemos parados na estrada fui eu quem o beijou, sem reserva, com um sentimento de inteiro, violento e legítimo abandono. Dei e recebi na minha vida muitos beijos. Sabe Deus quantos dei e recebi sem a menor reacção, não só afectiva mas também física, como se dá ou se recebe uma moeda usada por mil mãos. Mas nunca mais esquecerei aquele primeiro beijo, pela intensidade quase dolorosa com a qual satisfiz plenamente, não apenas o meu amor por Gino, mas uma espera de toda a minha vida. Lembro-me de ter tido a sensação de que à nossa volta o mundo girava, que eu tinha o céu em baixo e a Terra em cima de mim.

Na realidade tinha-me apenas debruçado um pouco sobre a sua boca para prolongar o beijo. Qualquer coisa de fresco e de vivo tocava e forçava os meus dentes, e quando os descerrei senti que a sua língua, que tanta vez me acariciara os ouvidos com as suas palavras, se me revelava agora mudamente, fazendo penetrar na minha boca uma outra doçura desconhecida. Não sabia que se podia beijar assim e por tanto tempo; bem depressa perdi a respiração e senti-me tão vazia que quando nos separámos encostei-me às costas do banco com os olhos fechados e o espírito abstracto, como se fosse desmaiar. Nesse dia descobri que havia outras alegrias no mundo além de uma vida tranquila no seio da família. Mas não pensava que essas alegrias pudessem impedir aquelas a que eu até então aspirara.

Depois da promessa de noivado de Gino senti-me segura de poder sem pecado nem remorsos daqui para o futuro saborear ao mesmo tempo umas e outras. Estava tão convencida da honestidade e da dignidade da minha conduta que nessa mesma noite, com um pouco de excitação e satisfação ao mesmo tempo, contei o caso a minha mãe. Encontrei-a a coser à máquina junto da janela à luz crua de uma lâmpada sem abat-jour, e disse-lhe com a cara a arder:

— Mamã, estou noiva!

Vi a sua face enrugar-se com uma contracção como se tivesse sentido um fio de água gelada correr-lhe pelas costas abaixo.

— E de quem? — perguntou.

— De um rapaz que conheci há uns dias.

— Que faz ele?

— É chauffeur.

Gostaria de ter acrescentado mais alguma coisa, mas ela não me deu tempo. Afastou-se da máquina e. saltando da cadeira, agarrou-me pelos cabelos:

— Ficaste noiva sem nada me dizeres! E com um chauffeur? Coitada de mim! Tu vais ser a minha morte.

Gritando, ela tentava esbofetear-me. Eu protegia a cara com as mãos e acabei por me escapar, mas ela seguiu atrás de mim. Corri à volta da mesa que ocupava o centro da sala, enquanto ela me perseguia com lamentações de desespero. Eu estava completamente apavorada ao ver o seu rosto magro virado para mim com uma espécie de fúria dolorosa.

— Eu mato-te! — gritava. — Desta vez mato-te! — Cada vez que ela dizia “mato-te” dir-se-ia que a sua raiva aumentava e que ela ia pôr em prática as suas ameaças. Eu estava no topo da mesa e vigiava os seus gestos porque naquele momento ela era capaz senão de me matar, pelo menos de me ferir com a primeira coisa que apanhasse à mão. Com efeito a certa altura brandiu a grande tesoura de costura; só tive tempo de me virar e logo a tesoura voou pelo ar e foi bater na parede. O seu próprio gesto assustou-a. Bruscamente sentou-se junto da mesa, com o rosto entre as mãos, e teve uma crise de lágrimas nervosas entrecortada por ataques de tosse, onde havia mais raiva que dor. Ouvia-a dizer por entre lágrimas:

— E eu que tinha tantos planos para ti!… Eu que te via rica… com a tua beleza… E logo te foste comprometer com um esfomeado!

— Mas ele não é um esfomeado — interrompi timidamente.

— Um chauffeur! Um chauffeur! — repetia ela levantando os ombros. — Tu não passas de uma desgraçada e acabas por me desgraçar a mim também!

Pronunciou lentamente estas palavras como para saborear a sua amargura.

— Vai casar contigo e tu serás a sua criada primeiro e depois a criada dos teus filhos… assim que tudo acabará!

— Casaremos logo que ele tenha dinheiro suficiente para comprar um carro! — declarei, anunciando um dos vários planos de Gino.

— Veremos!… Mas não o quero cá metido! — gritou bruscamente, voltando para mim a cara coberta de lágrimas. — Não o quero ver! Faz o que quiseres… encontra-te com ele lá fora, as não o metas aqui!

Nessa noite fui-me deitar sem jantar, muito triste e muito desencorajada. Mas percebi que se minha mãe se portava comigo desta maneira era por gostar de mim e por ter feito para o meu futuro não sei que planos que o meu noivado com Gino deitava por terra. Mais tarde, quando compreendi quais eram esses planos, não senti coragem para a condenar. Ela não tinha recebido da sua vida honesta e laboriosa outras recompensas que não fossem amarguras, tormentos e miséria. Que admira que sonhasse para a sua filha uma sorte completamente diferente?

Devo acrescentar que se tratava talvez não tanto de planos, mas mais propriamente de sonhos vagos e cintilantes que podia acalentar sem muitos remorsos precisamente por serem vagos e cintilantes. Mas isto é uma suposição. Pode muito bem ser que, pelo contrário, a minha mãe, por um desvio inveterado de consciência, tenha realmente decidido encaminhar-me um dia para o caminho que fatalmente eu iria tomar sozinha. Se digo estas coisas não é por rancor contra minha mãe, mas porque ainda hoje não sei bem o que pensava ela então e porque a experiência me ensinou que se pode pensar e sentir ao mesmo tempo as coisas mais diferentes sem lhes notar a contradição.

Minha mãe jurara que em caso nenhum se encontraria com Gino e durante algum tempo respeitei o seu juramento. Mas depois dos primeiros beijos, Gino parecia extremamente desejoso de apôr tudo em ordem, como ele dizia, e todos os dias insistia comigo para ser apresentado a minha mãe. Não tinha coragem para lhe dizer que ela não o queria conhecer porque achava a sua profissão demasiado humilde e vi-me por isso forçada a encontrar constantemente pretextos para retardar essa ocasião. Por fim Gino compreendeu que eu lhe escondia qualquer coisa e insistiu tanto que me vi forçada a revelar-lhe a verdade.

— Minha mãe não te quer conhecer. Acha que eu devia casar-me com um homem rico e não com um chauffeur.

Esta conversa passava-se dentro do carro na ruazinha costumada do arrabalde. Gino olhou-me com tristeza, suspirando. Eu estava a tal ponto apaixonada por ele que nem me dei conta do que havia de fingido na sua maneira de falar.

— Eis o resultado de ser pobre! — exclamou.

Depois disso manteve-se num silêncio longo e teimoso.

— Humilha-me — respondeu ele baixando a cabeça. Outro qualquer no meu lugar nem teria falado em noivado, nem teria pedido para ser apresentado à tua mãe. É para que serve querer a gente portar-se bem!

— Que importância tem isso se tens a certeza do meu amor?

— O que eu devia ter feito — continuou ele — era apresentar-me com a carteira bem recheada e sem falar de casamento. Se fizesse isso, tua mãe abrir-me-ia os braços…

Não ousava contradizê-lo porque bem sabia que tudo quanto ele dizia era verdade.

— Sabes o que vamos fazer? — propus daí a momentos. Um destes dias levo-te lá a casa sem dizer nada. Desse modo minha mãe não terá outro remédio senão conhecer-te. Que demónio! Não pode chegar ao exagero de fechar os olhos!

Na noite combinada para isso conduzi Gino a nossa casa. Minha mãe tinha acabado a tarefa desse dia e estava a preparar uma ponta da mesa para jantarmos. Entrei à frente e disse simplesmente.

— Mamã! Este é o Gino!

Esperava que houvesse uma cena desagradável. Até tinha prevenido Gino. Com grande surpresa minha ela disse secamente :

— Muito prazer…

E depois saiu da sala.

— Vais ver que tudo corre bem — disse Gino.

Aproximei-me dele, estendi-lhe a boca e acrescentei:

— Dá-me um beijo…

— Não, não — murmurou ele em voz baixa afastando-me. — Se eu fizesse isso, tua mãe teria muita razão em pensar mal de mim.

Gino sabia encontrar sempre as palavras exactas e perfeitas para cada momento. Tive de concordar para comigo que tinha razão. Minha mãe entrou pouco depois e, evitando olhar para Gino, disse:

— O jantar não chega porque eu não sabia… Mas vou sair e…

Não teve tempo de acabar porque Gino se aproximou imediatamente dela interrompendo-a:

— Por amor de Deus ! Eu não vim cá para que me dessem de jantar. Pelo contrário! Peço licença para as convidar a ambas…

Falava cerimoniosamente, como a pessoas da alta. Minha mãe, que não estava habituada a que lhe falassem assim, nem a receber convites, hesitou uns momentos olhando para mim.

Depois respondeu:

— Cá por mim, se a Adriana quiser…

— Podíamos comer na casa de pasto aqui ao lado… — propus eu.

— Onde quiserem — respondeu Gino.

Minha mãe declarou que ia tirar o avental e deixou-nos sós! Enchia-me uma enorme e ingénua alegria, tinha a impressão de que acabava de conseguir uma grande vitória quando na realidade isto tudo não passava de uma comédia, na qual eu era a única pessoa que permanecia completamente sincera. Aproximei-me de Gino, e antes que ele conseguisse impedir-me beijei-o com paixão. O meu beijo marcava o termo da ansiedade que me tinha atormentado tantos dias, a segurança de que mais nenhum obstáculo agora se ergueria contra o meu casamento, a minha gratidão por Gino pela sua atitude amável para com a minha mãe, a minha afeição por ele, uma afeição sincera, confiante e desarmada como só é possível sentir-se aos dezoito anos quando ainda nenhuma desilusão nos tocou e feriu a alma. Só mais tarde é que vim a compreender como esta candura tem pouca importância para os outros. A maior parte das pessoas consideram-na ridícula e gostam de a macular.

Dirigimo-nos os três para um modesto restaurante que ficava perto da nossa casa, do outro lado das fortificações. À mesa.

Gino, deixando de me dar qualquer importáncia, consagrou-se por completo a minha mãe, no claro desejo de a conquistar, o que aliás me pareceu louvável e legítimo; foi por isso que não prestei grande atenção às suas exageradas amabilidades para com ela. Gino tratava-a por “madame”, tratamento absolutamente novo para ela, e tinha o cuidado de usar esta palavra o mais possível no começo e no fim das suas frases. Ao mesmo tempo, com o ar mais natural deste mundo. Dizia-lhe: “A senhora, que é uma pessoa inteligente, deve compreender.” Chegou ao extremo de lhe declarar que quando tinha a minha idade ela devia ter sido muito mais bonita do que eu.

— Que provas tens disso? — perguntei, um tanto amuada.

— Ora! Estas coisas adivinham-se, não precisam de provas! — respondeu com ar superior e entendido.

Quanto a minha mãe, coitada, não sabia que fazer. Cheguei a notar que às vezes repetia a si própria, murmurando, os madrigais afectados e manifestamente interesseiros de Gino.

Esta era, com certeza absoluta, a primeira vez na sua vida em que lhe diziam coisas destas, e o seu coração esfomeado não conseguia saciar-se. A mim, como já disse, todas essas falsidades me pareciam uma prova de respeito de Gino pela minha mãe e da sua delicada ternura para comigo. E tudo isto era como o toque final do pincel no belo retrato de Gino, já tão cheio de perfeições e qualidades.

Entretanto, um grupo de gente jovem viera sentar-se na mesa próxima da nossa. Um dos rapazes, que me pareceu estar embriagado. Pôs-se a olhar insistentemente para mim e disse em voz alta qualquer frase obscena a meu respeito. Gino ouviu-a, levantou-se imediatamente e dirigiu-se-lhe:

— Repete o que acabas de dizer! — ordenou.

— O caso interessa-te? — perguntou o outro, numa voz, um pouco pastosa, de bêbado.

— Esta senhora e esta menina estão acompanhadas por mim! — declarou Gino elevando a voz — e enquanto estiverem comigo tudo o que lhes diz respeito me interessa. Entendido?

— Entendido. Não te irrites — respondeu o rapaz, assustado.

Os outros, apesar da sua atitude hostil, nada se atreveram a fazer. E o rapaz, fingindo-se ainda mais embriagado do que na realidade estava, encheu um copo com vinho e ofereceu-o a Gino. Este recusou com um gesto.

— Não queres beber? — gritou o bêbado. — Não gostas de vinho? Fazes mal. O vinho é bom e faz bem. Está bem, pronto, bebo eu!

Esvaziou o copo de uma golada. Gino encarou-o severamente durante momentos e depois voltou para junto de nós.

— Gente mal educada! — disse sentando-se.

— Não valia a pena incomodar-se — disse minha mãe, envaidecida com o que se passava. — Não passam de garotos.

Mas Gino não queria perder a oportunidade de marcar o seu espírito de galanteria cavalheiresca.

— Como não valia a pena? Ainda se fosse com uma dessas mulheres… bem, compreendamo-nos, não é verdade “madame”? Se fosse isso vá lá, mas eu estou com uma senhora e com uma menina honestas e respeitáveis. Aliás, o pateta compreendeu logo que era melhor fazer marcha a trás…

Este incidente completou a conquista de minha mãe, sem contar que Gino a forçava a beber, e que o vinho a embriagava tanto como as suas adulações. Apesar disso, para além da simpatia que ela sentia por Gino, mantinha-se o mau humor que lhe causava o nosso noivado. Por isso não deixou escapar a primeira ocasião que se lhe apresentou para lhe fazer compreender que nada estava esquecido.

Essa oportunidade foi-lhe oferecida por uma conversa acerca da minha profissão de modelo. Não me recordo a que propósito, falei de um novo pintor para quem tinha posado essa manhã.

Gino declarou imediatamente:

— Talvez isto seja idiota e pouco moderno, mas custa-me aceitar que a Adriana se ponha nua diante de todos esses homens…

— E porquê? — perguntou minha mãe com uma voz alterada que me fez temer a aproximação da tempestade.

— Porque me não parece moral.

Não me atrevo a dizer integralmente a resposta que lhe foi dada. Essa resposta estava cheia dos palavrões e das obscenidades que lhe vinham à boca sempre que bebia ou se deixava dominar pela cólera. Mas, mesmo expurgada, a sua diatribe revelava claramente quais eram as suas ideias sobre o assunto.

— Ah, não é moral?! — gritou de tal modo que todos os presentes pararam de comer e se voltaram para nós. — Ah, não é moral? Então o que é moral? Passar todo o santo dia a lavar pratos, cozinhar, passar a ferro, esfregar o chão, e depois, à noite, ver chegar um marido tão estafado como nós, que se deita mal acaba de jantar, se volta para o outro lado e se põe a ressonar como um porco? Isso é que é moral, não lhe parece? Sacrificar-se uma pessoa toda a vida, tornar-se velha e feia e por fim estourar, isso é que é moral? Pois muito bem! Sabe o que lhe digo? Que não se vive mais do que uma vez, e quando se morre, boas-noites! Vá para o diabo com a sua moral! A Adriana faz muito bem em se mostrar nua a quem lhe paga para isso, e ainda faria melhor se… — Aqui uma série de obscenidades, que me fizeram corar, proclamadas aos gritos para toda a gente. — Pela minha parte — continuou — se ela fizesse isto que digo, não só não tentaria impedi-la, como ainda a ajudaria com todas as minhas forças! Desde que lhe pagassem, é claro! — concluiu, depois de um momento de reflexão.

— Tenho a certeza de que não seria capaz disso — respondeu Gino, sem perder a calma.

— Quem?! Eu?! Isso é o que o senhor pensa! Mas de que diabo se convenceu o senhor? De que me causou algum prazer que a Adriana se tivesse comprometido com um pobretanas como o senhor, um simples chauffeur? Que não preferiria mil vezes que ela levasse uma vida de paródia? Julga que eu posso concordar que minha filha, bela como é, capaz de fazer pagar a sua beleza por fortunas, vá condenar-se a ser uma criada sua para toda a vida? Pois, meu amigo, se pensa isso, engana-se! Garanto-lhe que se engana!

Gritava de tal maneira que toda a gente tinha os olhos cravados nela. Eu estava meia morta de vergonha. Porém, Gino, como já disse, mantinha-se perfeitamente calmo e senhor de si.

Aproveitando-se de um momento em que minha mãe se calou para respirar, encheu-lhe o copo e propôs gentilmente, com um sorriso:

— Mais uma gota de vinho?

Ela não soube fazer outra coisa senão dizer: — Obrigado! — e aceitou o copo que Gino lhe oferecia. A nossa volta as pessoas, vendo que apesar de todos aqueles gritos nós continuávamos a beber como se nada se tivesse passado, retomaram as suas conversas. Gino declarou:

— A Adriana, bela como é, merecia levar a vida que leva a minha patroa…

— E que vida leva ela? — apressei-me a perguntar, ansiosa por deixar de ser o assunto da conversa.

— Pela manhã — respondeu ele com vaidade, como se a riqueza dos seus patrões se reflectisse nele próprio — levanta-se aí pelas onze ou meio-dia. Levam-lhe o pequeno-almoço à cama numa bandeja de prata e num serviço de que as peças são também de prata maciça. Depois toma o seu banho, mas antes disso a criada de quarto deita sais na água para a perfumar. A seguir levo-a a dar uma passeio de carro. Toma um vermute em qualquer parte, ou corre as lojas à procura de coisas que lhe agradem. Volta então para casa, almoça, dorme a sesta e passa horas a vestir-se. Também tem armários e armários cheios de coisas! Quando está pronta, sai para fazer visitas ou jantar fora. A noite vai ao teatro ou dançar, e também recebe com freqüência lá em casa. Nessas ocasiões jogam, bebem, ou ouvem música. Uma gente rica, extraordinariamente rica. Só em jóias estou convencido de que a minha patroa possui milhões.

Como as crianças a quem é fácil distrair ou fazer mudar de disposição, minha mãe já se tinha esquecido de mim e do meu injusto destino e esbugalhava os olhos perante a descrição de todo esse esplendor.

— Milhões? — repetiu com avidez. — E é bonita? Gino, que estava a fumar, cuspiu com destreza um fio de tabaco.

— Bonita? Ela?! Credo! É horrorosa. Tão magra que parece uma bruxa!

Continuaram os dois a conversar acerca da fortuna da patroa do Gino, ou, para ser mais exacta, Gino continuou a exaltar a sua riqueza como se a ele próprio pertencesse. Mas, passado o primeiro impulso de curiosidade, minha mãe tinha-se tornado novamente sombria e distraída. E nunca mais abriu boca em toda a noite. Talvez tivesse vergonha de se ter abandonado àquele acesso de cólera; talvez toda aquela riqueza lhe inspirasse inveja e talvez pensasse com despeito na pobreza do homem que eu tinha escolhido para noivo.

No dia seguinte perguntei timidamente a Gino se ela lhe tinha desagradado muito; mas ele respondeu-me que, muito embora não concordando, compreendia o seu ponto de vista cuja origem era uma vida infeliz e cheia de privações. Era digna de pena, concluiu. Além disso via-se bem que se falava daquela maneira é porque gostava muito de mim. Era esta também a minha opinião, e fiquei-lhe agradecida por se mostrar tão compreensivo. Na verdade eu tinha tido muito medo de que a cena que a minha mãe fizera viesse esfriar as nossas relações.

A moderação de Gino, além de me encher de gratidão, reforçou em mim a ideia de que ele era perfeito. Se eu fosse menos cega e menos inexperiente teria compreendido que só a falsidade premeditada pode dar uma impressão de perfeição e que a verdadeira sinceridade apresenta sempre, ao mesmo tempo, qualidades e defeitos.

Em resumo, daí para o futuro a minha posição perante ele seria sempre de inferioridade, porque eu ficaria para sempre convencida de nada lhe ter dado em troca da sua generosidade e da sua compreensão. Talvez se deva atribuir ao estado de alma de uma pessoa que se via cumulada de favores e que deseja instintivamente pagar a sua dívida o facto de, a partir desse momento, eu ter deixado por completo de resistir, como fizera até aí, aos seus gestos amorosos cada vez mais audaciosos. Mas também é verdade — já o disse a propósito do nosso primeiro beijo — que eu me sentia pronta à entrega total, levada ao mesmo tempo por uma força suave e invencível, como acontece com o sono que, para vencer a nossa vontade consciente de não adormecer, nos obriga a dormir fazendo-nos sonhar que estamos acordados tão bem que, abandonando-nos a ele, estamos convencidos de que lhe resistimos.

Recordo-me com impressionante clareza de todas as fases da minha sedução, porque cada uma das conquistas de Gino foi ao mesmo tempo desejada e repelida por mim e porque cada uma delas me deu, ao mesmo tempo, prazer e remorsos. E também porque essas conquistas foram conseguidas com uma lentidão sabiamente premeditada, sem pressas nem impaciências. Gino procedia como um general que ocupa metodicamente um pais e não como um amante ardendo de desejos, e assim foi apossando-se do meu corpo passivo, da boca até ao ventre. Tudo isto, porém, não impediu que mais tarde Gino se apaixonasse violentamente por mim e que a premeditação calculada desaparecesse para dar lugar, senão a um amor profundo, pelo menos a um poderoso desejo que nada saciava.

Durante os nossos passeios de carro até ali ele tinha-se limitado a beijar-me a boca e o pescoço, mas uma certa manhã enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botões da minha blusa. Depois uma sensação de frescura no peito fez com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o espelho do pára-brisas. Reparei então que um dos meus seios estava nu. Enchi-me de vergonha, mas não tive coragem para me tapar. Foi o próprio Gino, num gesto rápido, que parecia secundar a minha atrapalhação, quem abotoou novamente a minha blusa. Esta delicadeza da sua parte comoveu-me profundamente, deixando-me ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de então habituei-me àquela manifestação do seu desejo e parece-me que se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar de mim.

Conversávamos com frequência do que seria a nossa vida depois de nos casarmos. Gino falava-me também muito da sua família, que vivia na província, a qual não podia com justiça considerar-se pobre, pois possuía algumas feiras de terra.

Tenho a impressão de que — o que aliás é vulgar nos autênticos mentirosos — em dado momento ele começou a acreditar nas suas próprias mentiras. Certo que mostrava por mim uma forte atracção, e, visto que a nossa intimidade se tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo tempo tornar-se mais sincero. Pela minha parte as suas palavras adormeciam os meus remorsos e davam-me uma impressão de felicidade ingénua e completa que nunca mais depois disso voltei a conhecer. Eu amava, era amada, pensava que me casaria muito breve e nada mais se poderia desejar neste mundo.

Minha mãe compreendia perfeitamente que os nossos passeios matinais não eram completamente inocentes e deu-mo a perceber muitas vezes por meio de frases como esta:

“Não sei o que vocês fazem quando passeiam de automóvel, mas a verdade é que também o não quero saber…” Ou então: “Tu e o Gino andam a preparar uma grande tolice! Tanto pior para ti!”

Dizia-me com frequência coisas no género. Mas por vezes as suas recriminações pareceram-me estranhamente desinteressadas.

Dir-se-ia que não só encarava com antecipada resignação a ideia de que eu ia tornar-me amante do Gino como até no fundo desejava que isso acontecesse. Agora sei que ela esperava sempre o momento próprio para impedir que o meu casamento se realizasse.

3

Uma manhã, Gino disse-me que os patrões tinham partido para o campo, que as criadas estavam de férias nas suas aldeias e que lhe tinham entregue a casa a ele e ao jardineiro. Não gostaria eu de a visitar? Tinha-me falado dela tantas vezes e em termos tão admirativos que eu estava cheia de curiosidade: aceitei de boa vontade. Mas no preciso momento em que disse que sim, uma perturbação profunda feita de desejo fez-me compreender que a minha curiosidade de ver a casa não tinha passado de um pretexto, e que o verdadeiro motivo desta visita era bem outro. Entretanto, como sempre acontece quando se aspira a uma coisa que não se quer desejar, fingi não acreditar no pretexto, enganando-me a mim própria e a ele.

— Sei que não devia ir — disse-lhe, subindo para o carro.

— Mas não nos vamos demorar muito tempo, pois não? Ouvia-me a mim própria pronunciar estas palavras numa voz ao mesmo tempo amedrontada e provocante. Gino respondeu-me muito sério:

— Só o tempo de ver a casa. Depois vamos ao cinema.

A moradia elevava-se numa ruazinha que descia do novo bairro rico, no meio de outras lindas casas. Estava um dia calmo e todas essas casas estendendo-se pela colina debaixo de um céu muito azul, com as suas fachadas de tijolos vermelhos ou de pedra branca, os seus alpendres ornados de estátuas, as suas pérgulas envidraçadas, os terraços e as varandas repletos de gerânios, os jardins onde cresciam as suas árvores copadas entre uma moradia e outra — tudo isso me dava uma deliciosa sensação de descoberta e de novidade. Era como se entrasse num mundo mais livre e mais belo, onde seria mais agradável viver. Não pude deixar de me lembrar do meu bairro, da grande estrada que corre junto das muralhas, das construções pobres, e declarei a Gino :

— Já estou arrependida de ter vindo.

— Porquê? — perguntou-me com ar desenvolto. — Não nos demoraremos, está descansada!

— Tu não percebes! — respondi. — Estou arrependida porque agora vou corar com vergonha da minha casa e do meu bairro.

— Ah! Isso sim! — disse com um ar aliviado. — Mas que queres fazer? Era preciso ter-se nascido milionário… Neste bairro só moram milionários.

Abriu o portão e levou-me por uma álea coberta de saibro, entre duas filas de arbustos tratados com inexcedível esmero.

Entrámos na moradia por uma porta de vidro espesso e encontrámo-nos no vestíbulo da entrada, vazio, pavimentado de placas de mármore brancas e negras, desenhando enormes quadrados encerados, brilhantes como espelhos. Do vestíbulo passámos ao hall, espaçoso e cheio de luz, para o qual davam as salas do rés-do-chão. Ao fundo do hall via-se uma escadaria toda branca, que conduzia aos andares superiores.

Vendo este hall senti-me tão intimidada que comecei a andar nos bicos dos pés. Gino reparou e disse-me a rir que podia fazer todo o barulho que quisesse porque ninguém estava em casa.

Mostrou-me o salão: uma grande sala cheia de poltronas e divãs; a sala de jantar, mais pequena, com uma mesa oval, cadeiras e credências de uma bela madeira castanha, brilhante; a rouparia cheia de armários pintados de esmalte branco.

Num quarto pequenino havia um bar engastado numa reentrância da parede, um verdadeiro bar com prateleiras para as garrafas, a máquina de café niquelada e o balcão forrado de zinco: dir-se-ia uma capelinha, tanto mais que uma grade baixa fechava a entrada.

Perguntei a Gino onde era a cozinha: disse-me que a cozinha e os quartos do pessoal eram na cave. Era a primeira vez na minha vida que eu entrava numa casa destas; instintivamente tocava cada coisa com a ponta dos dedos, como se não acreditasse no que viam os meus olhos. Tudo me parecia novo e precioso: o vidro, a madeira, o mármore, o metal, os tecidos. Não me saia da cabeça a comparação entre estas paredes, estes pavimentos, estes móveis com os ladrilhos sujos, as paredes enegrecidas e os móveis desconjuntados da nossa casa, e pensei que minha mãe tinha razão quando dizia que nesta vida só o dinheiro conta. Pensava também que as pessoas que viviam sempre no meio destas bonitas coisas deviam por força ser belas e boas, não poderiam gritar, ter questões, praticar enfim a maior parte dos actos que eu tinha visto fazer na minha casa e nas outras iguais à minha.

Entretanto, Gino explicava-me pela centésima vez a vida que se fazia lá dentro, como se qualquer coisa de todo aquele luxo e de toda aquela riqueza se reflectisse nele.

— Têm pratos de porcelana… as travessas são todas de prata… comem cinco pratos diferentes, bebem três qualidades de vinho. À noite a senhora veste um vestido decotado e ele um smoking… Depois do jantar, a criada de quarto leva-lhes uma bandeja de prata com sete qualidades de cigarros, só cigarros estrangeiros, bem entendido!… Depois saem da sala de jantar e levam-lhes o café e os licores nesta mesinha rolante… têm sempre convidados… umas vezes dois… outras vezes quatro… A senhora tem brilhantes deste tamanho!… e um colar de pérolas que é uma maravilha. Só em jóias deve ter uns bons milhões…

— Já me disseste isso! — interrompi, um pouco aborrecida. Mas ele, entusiasmado com o assunto, nem deu pela minha contrariedade.

— A senhora nunca vai à cave… — continuou. — Dá as suas ordens pelo telefone… Aliás na cozinha só se trabalha a electricidade… A nossa cozinha é mais limpa e bonita do que os quartos de dormir de muita gente… Até mesmo os dois cães da senhora andam mais asseados e comem melhor do que muitas pessoas…

Falava dos patrões com admiração e dos pobres com desprezo. Eu, um pouco pela sua conversa, um pouco pela comparação que continuamente estabelecia entre esta casa e a minha, sentia-me horrivelmente miserável.

Do primeiro andar, subindo a escada, chegámos ao segundo. Na escada Gino passou-me o braço em volta da cintura e apertou-me com força. Eu então não sei porquê tive a impressão de ser a dona da casa e de subir a escada pelo braço do meu marido, depois de algum jantar ou de alguma recepção, para me ir deitar, na mesma cama que ele, no segundo andar.

Gino parecia adivinhar os meus pensamento — tinha constantemente intuições deste género — e disse-me:

— Agora vamos deitar-nos… E amanhã trazem-nos o café à cama.

Pus-me a rir, mas com a impressão de que isso era verdade.

Nesse dia, para sair com Gino, eu tinha vestido o meu fato mais bonito (e também a minha blusa e o meu melhor par de sapatos). Lembro-me de que era um vestido de duas peças: casaco preto e uma saia aos quadrados pretos e brancos. O tecido não era feio, mas a costureira do bairro que o cortara tinha pouco mais prática do que minha mãe. Tinha-me feito a saia muito curta, mas mais atrás do que à frente, de maneira que me cobria os joelhos à frente, mas deixava as curvas à vista pelo lado de trás. O casaco tinha ficado muito apertado, com enormes virados, e as mangas tão estreitas que me repuxavam debaixo dos braços. Abafava dentro deste casaco, que fazia sobressair o peito de tal maneira que parecia ter perdido um botão. A blusa era cor-de-rosa, muito simples, de tecido ordinário, sem bordados, e deixava ver à transparência a minha melhor e mais bonita combinação: de algodão branco.

Calçava sapatos pretos muito bem engraxados: a forma era antiga, mas o cabedal era bom. Não trazia chapéu e o cabelo caía-me sobre os ombros; tenho o cabelo castanho e ondulado.

Era a primeira vez que vestia esta toilette e sentia-me orgulhosa. Mas quando entrei no quarto da patroa de Gino e vi a grande cama, baixa e fofa, com a cobertura de seda acolchoada, os lençóis de linho bordados e todos aqueles cortinados muito leves que caíam da alto sobre a cabeceira e depois descobri a minha imagem triplamente reflectida no espelho de três faces do toucador ao fundo do quarto dei-me conta de que estava vestida como uma infeliz, que o orgulho que os meus trapos me inspiravam era ridículo e digno de piedade — e também que me seria impossível considerar feliz enquanto não pudesse andar elegantemente vestida e viver numa casa como aquela.

Estava quase a chorar e sentei-me sem dizer palavra na beira da cama, tomada de uma vertigem.

— Que tens? — perguntou Gino sentando-se ao meu lado e pegando-me na mão.

— Nada — respondi. — Estava a olhar uma pobretana que eu conheço.

— Quem? — perguntou-me, admirado.

— Aquela — respondi mostrando-lhe o espelho onde me via sentada ao lado de Gino.

Realmente nós tínhamos o ar — mais eu do que ele — de um par de selvagens hirsutos que o acaso tivesse feito cair numa casa civilizada. Desta vez ele compreendeu o sentimento de fraqueza, inveja e ciúme que me apertava o coração, e beijou-me dizendo:

— Mas tu não precisas de olhar para o espelho!

Ele temia pelos seus planos. Deveria ter compreendido que nada era mais propício para os executar do que o meu estado de humilhação. Beijámo-nos, e o seu beijo fez-me voltar a coragem porque senti que afinal eu era amada e amava.

Contudo, um pouco depois, quando me mostrou a casa de banho, tão grande como as outras salas, com uma banheira metida na parede e torneiras niqueladas, e sobretudo quando abriu um dos armários, deixando ver no interior, apertados uns contra os outros, os vestidos da patroa dele, a inveja voltou com o sentimento de miséria e tornei a desesperar. Um grande desejo de não pensar naquelas coisas tomou-me de repente e, conscientemente, pela primeira vez, desejei tornar-me amante de Gino: um pouco para esquecer a minha condição, um pouco para me dar a ilusão, como reacção à impressão de miséria que me escravizava, de ser também livre e capaz de agir. Não me podia vestir elegantemente, nem possuir uma casa como aquela, mas podia amar como os ricos ou talvez melhor que eles.

— Porque me mostras todos esses vestidos? — perguntei a Gino.

— Que me interessa isso?

— Julguei que te interessasse — respondeu, desconcertado.

— Absolutamente nada me interessa. São muito bonitos, mas não vim cá para ver vestidos.

Com estas palavras os seus olhos iluminaram-se. Acrescentei com negligência:

— Mostra-me antes o teu quarto.

— É na cave — disse, vivamente. — Queres que vamos lá?

Olheio-o um momento em silêncio, e depois perguntei-lhe com uma segurança, nova em mim, que me desagradou:

— Porque finges de imbecil comigo?

— Mas eu… — começou ele, surpreendido e atrapalhado…

— Tu sabes melhor do que eu que não viemos aqui para visitar a casa, nem para admirar os vestidos da tua patroa, mas para irmos para o teu quarto e sermos um do outro… Mais vale ir já e não falarmos mais nisso.

Foi assim que só por ter dado uma olhadela a esta casa eu passei a ser diferente da rapariga ingénua e tímida que aí tinha entrado. Estava admirada comigo mesmo, não me reconhecia.

Saímos do quarto e descemos a escada. Gino tinha passado o braço em torno da minha cintura e beijávamo-nos em cada degrau. Creio bem que nunca uma escada foi descida tão devagar. No rés-do-chão, Gino abriu uma porta disfarçada na parede, e estreitando-me e beijando-me sempre conduziu-me à cave. Já era noite: estava tudo às escuras. Sem acender a luz, ao longo do corredor, muito abraçados e de bocas unidas, chegámos ao quarto de Gino. Ele abriu, entrámos, e ouvi-o fechar a porta atrás de nós. Durante muito tempo ficámos de pé, beijando-nos no escuro. Eram beijos que nunca mais acabavam: se eu queria interromper ele recomeçava, e quando ele parava era eu quem continuava. Depois Gino empurrou-me para a cama e eu deixei-me cair de costas. Gino não cessava de me murmurar ao ouvido, um pouco ofegante, palavras doces e frases convincentes, com a intenção clara de me aturdir, para não me aperceber de que ao mesmo tempo as suas mãos me iam despindo. Mas não era preciso; primeiro porque eu decidira entregar-me, e depois porque eu odiava estes trapos que tanto me tinham agradado antes, e que desprezava agora profundamente.

“Uma vez nua — pensava eu — serei tão bela, senão mais, do que a patroa de Gino e que todas as mulheres ricas do mundo.” Aliás, havia meses que o meu corpo esperava este momento; sentia-o, mau grado meu, fremir de impaciéncia e de desejo reprimido, como uma fera esfomeada e presa, à qual, depois de um longo jejum, se cortam as prisões e se oferece com que matar a fome. Foi por isso que o acto de amor me pareceu natural, e a sensação de fazer um gesto desusado de modo nenhum se misturava ao prazer físico. Pelo contrário, como acontece por vezes diante de uma certa paisagem que se tem a impressão de já ter visto, quando na realidade é a primeira vez que se oferece ao nosso olhar, eu tinha a sensação de fazer coisas que já tinha feito, não sabia onde nem quando, talvez numa outra vida. Isto não me impedia de amar Gino com paixão, para não dizer com fúria, de o beijar, de o morder, de o apertar nos meus braços até o sufocar. Ele parecia possuído da mesma raiva. Assim, durante um tempo que me pareceu muito longo, neste quartinho escuro, enterrado debaixo de dois andares de uma casa vazia e silenciosa, nós beijámo-nos e possuímo-nos como dois inimigos lutando pela própria vida e procurando ferir-se o mais possível.

Mas quando os nossos desejos se saciaram, enquanto estávamos estendidos lado a lado, enlanguescidos e extenuados, tive medo de que Gino, depois de me ter possuído, já não quisesse casar. Comecei então a falar da casa para onde iríamos morar quando nos casássemos. A casa da patroa de Gino tinha-me impressionado profundamente.

Agora parecia-me que só se poderia ser feliz no meio de coisas bonitas e asseadas. Reconheci que nós nunca estaríamos em estado de possuir não somente uma casa como esta, mas até uma sala como as desta casa. No entanto, para vencer esta dificuldade, expliquei-lhe que uma casa mesmo pobre podia parecer rica se brilhasse como um espelho. Porque além do luxo, e talvez ainda mais do que o luxo, o deslumbrante asseio desta moradia provocava no meu espírito um formigueiro de reflexões. Procurei convencer Gino de que o asseio podia fazer parecer bonitos mesmo os objectos feios. Na realidade, desesperada pela idéia que eu tinha agora da minha pobreza e consciente de que o meu casamento com Gino seria o único meio de poder livrar-me dela, queria sobretudo convencer-me a mim própria.

— Mesmo dois quartos, se estiverem verdadeiramente limpos, com o chão passado todos os dias, os móveis limpos do pó, a louça lavada e tudo arrumado: os pratos, os esfregões e os fatos e os sapatos no seu lugar, também podem ser bem bonitos! O que é preciso é limpar e lavar tudo muito bem todos os dias… Não me deves julgar pela casa onde moramos, eu e minha mãe; minha mãe é desordenada e depois não tem tempo de a arrumar, coitada, mas a nossa cozinha será um espelho, prometo-te!

— Isso! Isso! — disse Gino. — O asseio acima de tudo! Sabes o que faz a senhora quando descobre um grão de poeira num canto? Chama a criada de quarto, obriga-a a ajoelhar-se e a tirar a poeira com as mãos como se faz aos cães quando fazem porcarias… E tem razão!

— Pois eu — declarei — tenho a certeza de que a minha casa há-de estar ainda mais limpa e mais arrumada que esta… verás!

— Mas tu continuarás a ser modelo — disse-me num tom travesso. — Não poderás tomar conta da casa!

— Modelo? — respondi vivamente. — Já não serei mais modelo… Ficarei todo o dia em casa… Terei sempre a casa arrumada e muito limpa e cozinharei para ti… a minha mãe diz que isso é ser tua criada, mas, quando se ama alguém, mesmo ser criada dá prazer!

Durante muito tempo fizemos projectos de futuro. E eu pouco a pouco sentia o medo desvanecer-se para dar lugar à minha habitual confiança amorosa e ingénua. Como poderia duvidar?

Gino não só aprovava os meus projectos, mas discutia-os pormenorizadamente, amparando-os e aperfeiçoando-os. Como já devo ter dito, ele agora era relativamente sincero: o mentiroso acabava por acreditar nas suas próprias mentiras.

Depois de tagarelarmos pelo menos duas horas, dormitei docemente, e creio bem que Gino também adormeceu. Fomos acordados por um raio de luar que entrava pelo respiradouro térreo iluminando os nossos corpos estendidos sobre a cama.

Gino disse que devia ser muito tarde; com efeito o despertador pousado sobre a mesa de cabeceira marcava meia-noite e alguns minutos.

— Meu Deus! Como me irá receber minha mãe! — disse eu saltando da cama e começando a vestir-me à luz da Lua.

— Porquê?

— É a primeira vez que entro em casa tão tarde. A noite nunca saio sozinha.

— Diz-lhe que fomos dar uma volta de automóvel, que tivemos uma avaria e que fomos forçados a parar no campo.

— Ela não acredita.

Saímos apressadamente da moradia, e Gino levou-me a casa. Eu sabia que minha mãe não acreditaria na história da panne, mas nunca supus que a sua intuição fosse ao ponto de adivinhar com exactidão o que se passara entre mim e Gino. Tinha as chaves da porta da rua e de casa. Entrei; subi os dois andares no escuro, galgando a dois e dois os degraus, e abri a porta.

Esperava que minha mãe estivesse deitada, e ver a casa toda às escuras confirmou a minha esperança. Sem acender a luz, nos bicos dos pés, dirigia-me para o quarto quando me senti agarrada pelos cabelos com uma violência terrível. Sempre às escuras, minha mãe, porque era ela, atirou-me para cima do divã, e começou, sempre em silêncio, a esbofetear-me.

Procurava defender-me com os braços, mas parecia que ela me via, porque arranjava maneira de me passar por baixo dos braços e de apanhar-me em cheio a cara. Acabou por se cansar e sentou-se ao meu lado, no divã, arfando com força. Depois levantou-se, acendeu a luz do centro e veio pôr-se na minha frente com as mãos nas ancas, olhando-me fixamente. O seu olhar enchia-me de vergonha e embaraçava-me; procurei ajeitar a saia e recompor a desordem em que esta espécie de luta me tinha deixado. Ela disse-me num tom normal:

— Está a parecer-me que tu e o Gino passaram a noite juntos!

Desejei dizer-lhe que sim, que era verdade; mas temi que me tornasse a bater, e o que mais me assustava era que agora, com a luz acesa, acertar-me-ia em cheio. Não queria aparecer com um olho negro, principalmente a Gino.

— Não — respondi. — Não dormimos juntos; tivemos uma avaria na estrada que nos atrasou.

— Mas eu digo-te que estiveste na cama com ele!

— Não… não é verdade!

— Sim… é verdade! Olha para o espelho ; estás verde.

— É possível que esteja fatigada… mas nada houve entre nós!

— Houve, sim!

— Não, não, não houve!

O que me espantava e ao mesmo tempo me inquietava vagamente era a calma que ela mostrava neste momento: nada mais que uma forte curiosidade, o que me fazia pensar que ela não estava totalmente desinteressada do caso. Por outras palavras, o que ela queria saber era se eu me tinha entregue a Gino, não para me castigar ou me repreender, mas porque o desejava conhecer com precisão por uma razão que só ela sabia.

Somente era tarde de mais, e embora eu soubesse que já não me bateria mais, continuei sempre a negar. Então, bruscamente, fez menção de me agarrar o braço, e eu levantei a mão para me proteger, mas ela disse :

— Não te toco, não tenhas medo! Vem comigo! Não percebia bem aonde ela me queria levar; mas obedeci amedrontada. Sem me largar, obrigou-me a sair do apartamento, a descer a escada e a ir com ela para a rua. Estavam desertas as ruas a esta hora.

Logo em seguida percebi que minha mãe corria para a luz vermelha da farmácia de serviço ou do posto de socorros. A entrada da porta experimentei pela última vez resistir, fincando os pés, mas ela empurrou-me e eu entrei, ou, por outra, fui projectada para o interior; por um pouco não. Caí de joelhos!

Na farmácia estava só o farmacéutico e um médico ainda novo.

Minha mãe disse ao médico:

— É minha filha! Quero que a examine!

O médico mandou-me entrar para uma divisão das traseiras onde estava a marquesa dos serviços de urgência e perguntou a minha mãe:

— Diga-me o que ela tem… Devo examiná-la porquê?

— Acaba de ser desonrada pelo noivo e diz que não, esta porca! Quero que a examine — gritava a minha mãe — e que me diga a verdade!

O médico estava divertido e mordiscava o bigode, sorrindo:

— Mas não é um diagnóstico que me pede, é uma informação.

— Chame-lhe como quiser — respondeu minha mãe, berrando sempre —, mas quero que a examine! É ou não médico? Tem ou não a obrigação de examinar as pessoas quando elas lhe pedem?

— Calma! Calma! Como te chamas? — perguntou o médico.

— Adriana — respondi.

Estava envergonhada, mas não muito. As cenas da minha mãe e a minha docilidade eram bem conhecidas em todo o bairro.

— Mas mesmo que isso tenha acontecido — insistia o médico, que parecia perceber o meu embaraço e tentava evitar o exame—, que mal pode haver? Eles casam-se e pronto… tudo acabará bem.

— Meta-se na sua vida!

— Calma! Calma! — repetia, divertido, o médico. Depois, dirigindo-se a mim, disse-me:

— Vamos! Visto que tua mãe acha que isto é indispensável… despe-te, não demora muito tempo, depois deixo-te em paz.

Enchi-me de coragem e disse:

— Muito bem! É verdade! Fui desonrada! Mas vamos para casa, mãe!

— Não, minha filha, não! — disse ela com ar autoritário. — Tens de te deixar examinar!

Resignada, despi a saia e deitei-me na marquesa. O médico examinou-me e disse a minha mãe:

— Tinha razão… Já não está virgem… E agora, está contente?

— Quanto lhe devo? — perguntou minha mãe, puxando do porta-moedas.

Entretanto, eu tinha descido da marquesa e vestira-me. O médico recusou o dinheiro e perguntou-me:

— Gostas do teu noivo?

— Com certeza — respondi.

— Quando se casam?

— Ele nunca se casará com ela! — gritou minha mãe. Mas eu cortei tranquilamente:

— Logo que tenhamos os papéis arranjados.

Devia ser possível ler-se nos meus olhos uma grande confiança, tão ingénua e tão pura, que o médico, com um riso amigável e dando-me uma palmadinha na cara, empurrou-nos para fora.

Eu esperava que, quando tornássemos a entrar em casa, minha mãe me cobrisse de insultos e mesmo me tornasse a bater. Bem longe disso, vi, pelo contrário, àquela hora avançada, acender o gás e começar a cozinhar para mim, sem dizer palavra. Pôs a frigideira ao lume, voltou à sala, desembaraçou um canto da mesa dos trapos que lá estavam e pôs a toalha. Eu tinha-me sentado no divã, para onde ela me arrastara pelos cabelos, e olhava-a em silêncio. Estava aparvalhada. Não só não me repreendia como a sua cara deixava transparecer uma estranha satisfação, que ela tentava esconder. Quando acabou de pôr a toalha, foi à cozinha, depois tornou a voltar trazendo um prato na mão e disse-me:

— Agora vais comer!

Para dizer a verdade, eu tinha bastante fome. Levantei-me e fui sentar-me, um pouco atrapalhada, na cadeira que minha mãe me indicou a seguir. No prato estavam dois ovos e um bocado de carne assada.

— Mas isto é muito! — disse-lhe.

— Come… vai fazer-te bem — respondeu-me. — Precisas de comer!

Era uma coisa extraordinária este seu bom humor, um pouco malicioso talvez, mas nada hostil. Quase com bom modo, acrescentou, passado um momento:

— O Gino nem sequer pensou em dar-te de comer?

— Nós adormecemos — respondi. — E depois já era muito tarde.

Ela nada disse, e ficou de pé a ver-me comer. Era sempre assim que ela fazia: servia-me e ficava a ver-me comer, depois, por sua vez, ia comer para a cozinha.

Durante muito tempo não comeu comigo à mesa. Comia sempre menos do que eu: ou eram as minhas sobras, ou qualquer coisa diferente e pior. Eu era para ela uma espécie de objecto precioso e delicado que era preciso tratar com todo o cuidado, o único objecto precioso que possuía.

Já há muito tempo que esta servidão admirativa e lisonjeadora não me perturbava. Mas desta vez a sua serenidade, o seu ar contente, inspiravam-me uma penosa inquietação. Ao fim de uns instantes comecei a falar:

— Tu zangaste-te — disse-lhe — por eu ter feito isto, mas ele prometeu casar comigo… não tardará a fazê-lo.

— Não me zanguei… naquele momento enfureci-me porque esperei toda a noite e estava em cuidado… Mas agora come, e não penses mais nisso.

O seu tom de evasiva e falsa calma, que fazia lembrar a maneira como se fala às crianças quando não se quer responder às suas perguntas, inquietou-me ainda mais:

— Porquê? Não acreditas que ele case comigo?

— Com certeza que acredito! Mas agora come!

— Não, tu não acreditas!

— Acredito, não tenhas medo! Vá, come!

— Não como mais se não me dizes o que se passa contigo! — declarei, exasperada. — Porque estás com um ar tão contente?

— Não, não estou com um ar contente.

Agarrou no prato vazio e levou-o para a cozinha. Esperei que ela voltasse, e disse outra vez:

— Então, porque estás contente?

Olhou-me longamente em silêncio e depois respondeu com uma gravidade ameaçadora:

— É verdade, sim. Estou contente.

— E porquê?

— Porque agora tenho a certeza de que Gino já não casará contigo e te vai deixar!

— Porque não há-de casar? Era preciso que tivesse uma razão!

— Não casará e abandonar-te-á! Vai divertir-se à tua custa e não te dará nem uma cabeça de alfinete, um esfomeado como ele é. E depois larga-te!

— E é por isso que estás tão contente?

— Com certeza. Agora estou certa de que não casará contigo!

— Mas em que pode isso satisfazer-te? — gritei indignada e ao mesmo tempo aborrecida.

— Se quisesse casar contigo não te teria desonrado — disse ela bruscamente. — Eu estive noiva dois anos do teu pai, e até ao dia do casamento ele apenas me deu um ou outro beijo. Ele vai divertir-se e depois abandonar-te… Podes ter a certeza… E estou contente por ele te abandonar, porque se casasse contigo estavas perdida!

Não podia deixar de reconhecer que certas coisas que ela me dizia eram verdadeiras. Os olhos encheram-se-me de lágrimas.

— Eu bem sei que não queres que eu constitua família. Tu queres que eu venha a ter a mesma sorte que a Angela.

Angela era uma rapariga do bairro que, depois de ter estado noiva duas ou três vezes, acabou por se entregar abertamente à prostituição.

— Que tenhas uma boa situação é o que eu quero — respondeu com um ar obstinado. E, levantando os pratos, levou-os para a cozinha para os lavar.

Ficando só, reflecti muito tempo sobre a conversa de minha mãe. Estabeleci uma comparação entre as suas palavras e as promessas e a conduta de Gino e pareceu-me impossível que fosse ela a ter razão. Mas a sua segurança, a sua calma, o seu tom de previsão desconcertaram-me. Entretanto, minha mãe lavava a louça na cozinha. Ouvi-a guardar os pratos no aparador e ir para o quarto. Depois de uns instantes, vencida e humilhada, fui deitar-me também.

No dia seguinte perguntava a mim mesma se devia ou não contar a Gino as suspeitas da minha mãe. Depois de muita hesitação resolvi nada dizer.

Na realidade, eu tinha tanto medo que Gino me abandonasse, como minha mãe insinuara, que temia que, comunicando-lhe a opinião dela, lhe pudesse sugerir a ideia. Percebi pela primeira vez que a mulher que se entrega a um homem fica de tal maneira na sua dependéncia que já não tem meio de seguir a vontade própria. Mas não estava menos convencida de que Gino cumpriria a sua promessa. Logo que o tornei a ver, a sua atitude confirmou a minha convicção.

Eu esperava, decerto, que ele me iria cumular de atenções e carícias, mas temia que guardasse siléncio sobre o casamento, ou pelo menos não falasse nisso senão de uma maneira esporádica. Pelo contrário, assim que parou o carro na avenida do costume, Gino disse-me que já fixara a data do casamento: seria dali a cinco meses, o mais tardar!

A minha alegria foi tal que me atribui as ideias de minha mãe e não pude deixar de dizer:

— Sabes o que eu pensava, pelo contrário? Que depois do que se passou ontem irias abandonar-me.

— Como? — disse, tomando um ar vexado. — Tu tomas-me por um vigarista?

— Não, mas sei que há muitos homens que procedem assim.

— Não sabes que podia ficar magoado com a tua suposição? Que ideia fazes de mim? É assim que dizes amar-me?

— Eu amo-te — respondi ingenuamente. — Mas receava que tu não gostasses de mim.

— Até agora já te dei alguma razão que te fizesse supor que não gosto de ti?

— Não, mas nunca se sabe…

— Olha! — disse-me bruscamente. — Tu indispuseste-me de tal maneira que vou já levar-te ao atelier.

E fez menção de pôr o carro em andamento. Assustada, deitei-lhe as mãos ao pescoço e supliquei:

— Não, não! Que tens? Falei por falar… faz de conta que nada disse.

— Há coisas que não se dizem quando não se pensam… e quando se pensam é porque não se ama!

— Mas eu amo-te!

— Eu não! — disse-me em tom sarcástico. — Como tu disseste, tive sempre a ideia de me divertir à tua custa e depois deixar-te. É estranho que só agora tenhas dado por isso!

— Mas, Gino, porque me falas dessa maneira? — gritava eu, desfazendo-me em lágrimas.

— Nada — respondeu, pondo o carro em andamento — Vou levar-te ao atelier.

O carro pôs-se em marcha e Gino ao volante tinha um ar carrancudo e duro. Eu quando vi, pelo vidro, as árvores e os marcos quilométricos deslizarem, e as primeiras casas da cidade, sucedendo-se ao campo, aparecerem no horizonte, desatei a chorar.

Pensava que minha mãe iria rejubilar quando soubesse da nossa zanga e que Gino, como ela tinha previsto, me deixaria. Num gesto desesperado abri a portinhola do carro, inclinei-me para a frente e gritei:

— Ou páras ou atiro-me para a estrada.

Olhou-me, o carro abrandou, voltou por um caminho lateral e parou atrás de uma elevação coroada por uma ruína. Gino desligou o motor, travou e, voltando-se para mim, disse com impaciência:

— Então, coragem! Vá! Fala!

Eu julgava realmente que ele me queria abandonar e pus-me a falar com um fogo e uma paixão que me pareceram ao mesmo tempo ridículos e comoventes quando os recordo hoje. Explicava-lhe até que ponto o amava: cheguei a dizer-lhe que se ele não casasse comigo seria o mesmo, porque me contentaria com ser sua amante. Escutava-me com um rosto sombrio, abanando a cabeça e repetindo de vez em quando:

— Não, não, por hoje acabou. Amanhã talvez me passe! Quando lhe disse que para mim era suficiente ser sua amante, respondeu com fervor:

— Não, não! Casados ou nada!

Discutimos durante muito tempo, e várias vezes a exibição da sua lógica, tão perversa como indiscutível, levou-me ao desespero e às lágrimas. Depois, gradualmente, a sua atitude inflexível pareceu modificar-se; por fim, depois de o ter beijado longamente e ameigado sem qualquer resultado, tive a impressão de ter conseguido uma grande vitória quando o convenci a descer comigo e vir possuir-me no assento traseiro do carro num abraço inconfortável, que o meu angustioso desejo de lhe agradar achou demasiado curto e cheio de uma amarga ansiedade. Eu devia ter compreendido ser esse, no meu próprio interesse, o último dos procedimentos a adoptar. Era entregar-me completamente nas suas mãos, mostrar-lhe a minha disposição de me entregar a ele, não apenas por puro ímpeto amoroso, mas também para o prender e convencer a concordar comigo quando as palavras não chegassem para isso: precisamente a conduta das mulheres que amam sem a certeza de serem amadas: Mas eu estava completamente cega pela atitude perfeita que a sua falsidade lhe permitia tomar. Ele dizia e fazia sempre as coisas que devia dizer e fazer. E eu, na minha inexperiéncia, não me apercebia de que esta perfeição pertencia mais à imagem convencional do amante que eu própria tinha criado do que ao homem que estava na minha frente. Mas a data do casamento tinha sido fixada e comecei logo a ocupar-me dos preparativos. Combinei com Gino que, pelo menos nos primeiros tempos, faríamos vida em comum com minha mãe.

Além da grande sala, da cozinha e do quarto, havia uma outra divisão que minha mãe, por falta de dinheiro, nunca tinha chegado a mobilar. Guardávamos aí os objectos partidos e inutilizados; e pode imaginar-se o que seriam os objectos partidos e inutilizados de uma casa como a nossa, onde tudo parecia inutilizado!

Depois de muitas discussões assentámos num programa mínimo: mobilaríamos esse quarto e eu faria um pequeno enxoval. Nós éramos muito pobres, mas eu sabia que minha mãe tinha algumas economias, e que esse dinheiro tinha sido posto de parte para mim a fim de poder fazer face — dizia ela — a qualquer eventualidade.

Quais poderiam ser essas eventualidades? Não era muito claro; seguramente que não a possibilidade de eu casar com um homem pobre e de futuro incerto. Fui ter com minha mãe e disse-lhe.

— Esse dinheiro que puseste de parte foi para mim, não foi?

— Foi.

— Pois bem! Se me queres fazer feliz, dá-mo agora para arranjar o quarto, para onde iremos, eu e o Gino. Se é verdade que o guardaste para mim, chegou o momento de mo dares!

Esperava reprimendas, discussões, e por fim uma recusa. Pelo contrário, minha mãe acolheu o meu pedido com a maior calma e mostrou de novo aquela serenidade sardônica que tanto me tinha aborrecido na noite em que visitara a moradia.

— E ele não vai contribuir com qualquer coisa? — perguntou-me, voltando-se.

— Há-de dar, com certeza — respondi, mentindo. — Ele já disse. Mas também eu tenho de contribuir com a minha parte.

Ela estava a coser ao pé da janela. Para falar interrompera o seu trabalho.

— Vai ao quarto, abre a primeira gaveta do armário… encontrarás uma caixa de cartão… está lá a caderneta da Caixa Económica e o ouro. Leva-a e o ouro também… Ofereço-te.

O ouro era pouca coisa: um anel, um par de brincos e um pequeno fio. Mas desde a minha infância, magro tesouro escondido debaixo dos trapos e só entrevisto em circunstáncias extraordinárias, tinha incendiado a minha imaginação. Impetuosamente beijei minha mãe: afastou-me sem brutalidade, mas com frieza, declarando:

— Cuidado com a agulha… podes picar-te!

Mas eu não estava satisfeita. Não me bastava ter obtido aquilo que queria; pretendia mais: que minha mãe estivesse como eu.

— Mãe! — gritei. — Se fizeste isto só para me dar prazer, então prefiro não aceitar!

— Decerto que não foi para lhe dar prazer a ele! — respondeu, recomeçando a coser.

— Realmente não acreditas no meu casamento com Gino? — perguntei com uma voz acariciadora.

— Nunca acreditei. E hoje menos que nunca.

— Mas então porque me deste o dinheiro para arranjar o quarto?

— Não é dinheiro mal gasto. Os móveis e as roupas sempre ficam… Mobília ou dinheiro é a mesma coisa.

— Então não me acompanharás aos armazéns para me ajudares a escolher?

— Por amor de Deus! — gritou. — Nem quero mesmo ouvir falar nisso! Arranjem-se, vão vocês, escolham… eu não quero saber de coisa alguma!

Acerca do meu casamento ela era intratável; eu acreditava que a sua atitude não era ditada só pela conduta, pelo carácter e pela situação de Gino, mas principalmente pela maneira como ela encarava a vida. Não havia espírito de contradição nesta sua atitude, mas somente completa inversão das ideias correntes. As outras mulheres desejam com obstinação que as filhas se casem; minha mãe há muito tempo que com a mesma tenacidade esperava que eu não me casasse.

Existia uma espécie de aposta entre mim e minha mãe. Ela queria que eu não me casasse e me desse conta do bom fundamento das suas ideias. Eu desejava que este casamento se efectuasse e que minha mãe se convencesse de que a minha maneira de pensar é que estava certa. Agarrava-me à esperança de me casar com a sensação de jogar desesperadamente toda a minha vida numa só cartada. Mas sentia ao mesmo tempo, não sem amargura, que minha mãe vigiava os meus esforços e tentava fazer-me soçobrar. Devo mencionar aqui mais uma vez que a maldita perfeição de Gino não se desmentia nem mesmo por ocasião dos preparativos para o casamento. Tinha dito à minha mãe que Gino ajudaria às despesas. Menti, porque até então Gino nem sequer tinha aludido a essa possibilidade. Fiquei, pois, ao mesmo tempo surpreendida e contente no dia em que Gino, sem que eu nada lhe tivesse pedido, me ofereceu uma pequena soma de dinheiro, para me ajudar. Desculpou-se da mesquinhez da quantia, explicando-me que não me podia dar mais, porque tinha urgência em mandar dinheiro aos seus. Quando hoje penso nesta dádiva não posso explicá-la senão pela extraordinária fidelidade ao papel que decidira representar: fidelidade proveniente talvez do remorso de me enganar e do pesar de não poder casar comigo, como agora realmente desejava.

Triunfante, tratei de pôr minha mãe ao corrente da oferta de Gino. Limitou-se a observar que era uma soma bem miserável; apenas o necessário para me deitar poeira nos olhos sem se arruinar!

Este foi na minha vida um período muito feliz. Encontrava-me todas as noites com Gino, e amávamo-nos onde era possível: sobre o assento de trás do carro, de pé, no canto escuro de uma rua solitária, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa, amámo-nos no patamar, em frente da porta do apartamento, estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuímo-nos no cinema, encolhidos nas últimas cadeiras, mesmo debaixo da cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele no meio da multidão, dos eléctricos e dos lugares públicos, porque as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a necessidade de lhe apertar a mão, de lhe passar os dedos pelos cabelos e de lhe fazer qualquer outra carícia, no sitio em que estivéssemos, mesmo na presença de terceiros, com a ilusão de que ninguém se apercebia. como sempre que se cede a uma paixão irresistível. Gostava infinitamente de amar: talvez eu gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentia-me levada a praticá-lo não somente pelo sentimento que experimentava por ele, mas também pelo prazer que sentia. Não pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro homem. Mas apercebia-me de uma maneira obscura de que o nosso amor não podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e a paixão que punha nas minhas carícias. Isso tinha um carácter autónomo; era uma espécie de vocação que, de toda a maneira, mesmo sem as ocasiões que Gino me proporcionava, acabaria por manifestar-se.

Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para mim que qualquer outra. Ajudava minha mãe o mais que podia, a fim de ganhar dinheiro, e deitava-me sempre muito tarde. Nos dias em que não posava no atelier corria os armazéns com Gino, para escolher os móveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que sabia bem que não podia comprar, examinava-os longamente, discutindo o preço com o vendedor; depois, mostrando pouco entusiasmo e prometendo voltar, saía sem nada comprar. Não notava que estas incursões cobiçosas pelas lojas. Este exame angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a reconhecer, mau grado meu, como minha mãe tinha razão no que dizia: sem dinheiro não se tem direito à mais pequena felicidade. Depois da minha visita à moradia, foi a segunda vez que eu deitei os olhos sobre o paraíso da riqueza: vendo-me excluída sem que tivesse culpa não me podia impedir de experimentar alguma amargura e me sentir perturbada. Mas como já o tinha feito na moradia, esforcei-me no amor por esquecer a injustiça, este amor que era o meu único luxo e permitia que me sentisse igual a todas as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois de muitas discussões e muitas procuras, decidi-me por fim a fazer as minhas compras: aquisições verdadeiramente modestas.

Como o dinheiro não chegasse, comprei pagando em prestações mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer dizer, uma cama de casal, uma cómoda com espelho fazendo de toucador, duas mesas-de-cabeceira, duas cadeiras e um armário.

Eram coisas extremamente vulgares, feitas em série e de fabricação grosseira, mas a paixão que me inspiraram imediatamente estes pobres móveis era incrível. Tinha mandado caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e raspar o chão tão bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os móveis foi sem dúvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava uma sensação de incredulidade à ideia de que possuía um quarto como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e esta incredulidade manifestava-se num contentamento que me parecia inesgotável. Por vezes, quando tinha a certeza de que minha mãe não me observava, ia para o quarto, sentava-me nos colchões da cama e ficava horas inteiras a olhar à minha volta. Não me mexia mais que uma estátua, e contemplava os móveis como se não acreditasse na sua existência, como se receasse que se evaporassem de um momento para o outro e só ficassem as paredes; levantava-me às vezes para tirar o pó da madeira e puxava o lustro ternamente.

Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus sentimentos beijaria a mobília. A janela, sem cortinas, dava sobre um vasto pátio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e baixas, como a minha. Tinha-se a impressão de se olhar para um pátio de lazareto ou de prisão; mas naquela altura eu vivia em êxtase e já não via o pátio: sentia-me tão feliz como se o quarto desse para um lindo jardim cheio de árvores.

Imaginava a nossa vida lá dentro, Gino e eu: como dormiríamos e nos amaríamos. E saboreava de antemão a aquisição de outros objectos que compraria assim que pudesse; aqui um vaso para flores, ali um candeeiro, além um cinzeiro ou qualquer outro bibelot. O meu único desgosto era não poder ter uma banheira, se não parecida com a que tinha visto, pelo menos nova e limpa. Más tinha decidido que traria sempre o meu quarto limpo e arrumado. A minha visita à moradia convencera-me de que o luxo começava por duas coisas: a ordem e o asseio.

4

Nesse tempo, como continuasse a posar nos ateliers, criei amizade com um modelo chamado Gisela. Era uma rapariga bem feita, com a pele muito branca, cabelos pretos encrespados, os olhos pequeninos e azuis-escuros e uma boca vermelha. O seu feitio era muito diferente do meu: violento, apaixonado e vibrante, mas ao mesmo tempo prático e interesseiro; foi exactamente esta diversidade que nos uniu. Não lhe conhecia outro emprego que o de modelo; mas ela andava muito mais bem vestida do que eu e não escondia os presentes de um homem que apresentava como noivo. Lembro-me de que naquele Inverno ela usou algumas vezes um casaco preto com gola e punhos de astracã que eu muito lhe invejava. O noivo chamava-se Ricardo, era um rapaz alto e gordo, pacífico e bem nutrido, com uma cara lisa como um ovo, que me pareceu então bela. Estava sempre reluzindo, cheio de cosméticos e com fatos novos: o pai era dono de uma loja de gravatas e roupa interior para homem.

Possuía a simplicidade Que se aproxima da imbecilidade: era alegre, bonacheirão e mesmo bom, creio eu; Gisela e ele eram amantes sem que entre eles, suponho, houvesse qualquer promessa de casamento, como existia entre mim e Gino. Gisela, aliás sem grandes esperanças, pensava em se casar. Quanto a Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma união com Gisela nunca lhe tinha aflorado o espírito; a esta, bem mais experiente que eu, tinha-se-lhe metido em cabeça proteger-me e educar-me. Ela tinha — para resumir as coisas — sobre a vida e sobre a felicidade as mesmas ideias de minha mãe, salvo que na minha mãe estas ideias encontravam uma expressão amarga e violenta porque eram o fruto de decepções e privações, ao passo que em Gisela esta maneira de ver vinha da sua prática e fazia-se acompanhar de uma grande suficiência e de uma grande profundidade. Minha mãe, num certo sentido, contentava-se em enunciar essas ideias como se para ela a afirmação dos princípios contasse de antemão para a sua aplicação. Gisela, pelo contrário, tendo pensado sempre dessa maneira e não compreendendo que alguém pensasse diferentemente, admirava-se de que eu não me comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar dos meus esforços em contrário, deixei transparecer a minha desaprovação, que o seu espanto se transformou em cólera e ciúme. Gisela compreendeu de súbito que eu não me limitava a recusar as suas lições e a sua protecção, mas ia mais longe, e a condenava do alto das minhas aspirações afectuosas e desinteressadas. Foi então que nasceu no seu espírito, talvez inconscientemente, o desejo de anular essa condenação, tornando-me igual a ela. Enquanto isso não acontecia, não cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar esta vida de sacrifícios só para me manter honesta; que era uma dor de alma ver-me tão mal vestida; que, se eu quisesse, com a minha beleza poderia mudar por completo de existência. Acabei por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relações com Gino, informando-a ao mesmo tempo de que estávamos noivos e nos casaríamos brevemente. Ela perguntou-me imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me pedir que lho apresentasse.

Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje estou à altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino, já disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez notasse os seus defeitos, mas em compensação julgava que ela tinha um grande coração e uma grande afeição por mim, porque atribuía a sua solicitude pela minha sorte não ao despeito por me achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e fora de propósito. Tanto assim que os apresentei, não sem apreensão; na minha ingenuidade, eu tinha querido que eles se fizessem amigos. A apresentação foi numa leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude claramente hostil.

Pelo lado de Gino, acreditei de princípio que ele quisesse seduzir Gisela, porque, seguindo o seu hábito, encaminhou a conversa para o assunto da moradia e alongou-se a exaltar a riqueza dos patrões, como se esperasse dissimular assim a classe medíocre da sua condição. Mas Gisela não desarmou: persistia na sua atitude hostil. Não me lembro já a que propósito, ela encontrou maneira de o fazer notar:

— Teve muita sorte em ter encontrado Adriana!

— Porquê? — perguntou Gino, muito admirado.

— Porque habitualmente os chauffeurs arranjam-se com as criadas!

Vi Gino corar; mas ele não era homem para se deixar apanhar desprevenido.

— É verdade! É verdade! — repetia lentamente, baixando o tom como se considerasse pela primeira vez um facto evidente que até então lhe tivesse escapado. — Com efeito o chauffeur que lá esteve antes de mim casou justamente com uma cozinheira; compreende-se, é muito natural! Eu devia ter feito o mesmo: os chauffeurs casam com criadas e as criadas com chauffeurs… Pergunto a mim mesmo como não pensei nisso mais cedo!… Aliás — acrescentou negligentemente —, tinha preferido que Adriana deixasse deliberadamente de ser honesta do que ser modelo… não tanto — continuou levantando a mão, como a prevenir uma objecção de Gisela — por causa propriamente do ofício, se bem que, para dizer a verdade, não consigo engolir essa história de se pôr toda nua diante dos homens… mas sobretudo porque este trabalho proporciona certas ligações de amizade que…

Levantou a cabeça e fez uma careta. Depois, oferecendo a Gisela o seu maço de cigarros:

— Fuma? — perguntou.

De momento Gisela não soube que responder; limitou-se a recusar o cigarro. Depois olhou o relógio de pulso e disse:

— Adriana, temos de nos ir embora, é tarde.

Era efectivamente tarde.

Despedimo-nos de Gino e saímos da pastelaria. Uma vez na rua, Gisela disse-me:

— Mas tu cometeste um erro enorme!… Eu nunca casaria com um homem assim!

— Não gostaste dele? — perguntei-lhe ansiosamente.

— Absolutamente nada. Primeiro tinhas dito que ele era alto, e ele é quase pouco mais pequeno do que tu! Tem uns olhos falsos e que não nos olham de frente… é sempre artificial… Fala de uma maneira tão afectada que se conhece a um quilómetro de distância que não diz o que pensa… E é de uma vaidade para um chauffeur!

— Mas eu amo-o — objectei.

Ela respondeu-me com calma:

— Sim, só tu, porque ele não te ama; vais ver que um dia abandona-te.

Fiquei magoada com esta profecia tão segura e tão parecida com a da minha mãe. Hoje posso dizer que numa hora, à parte a maldade, Gisela compreendera melhor o carácter de Gino que eu durante tantos meses. Por seu lado, o julgamento que Gino fazia de Gisela era igualmente maldoso, mas tinha que reconhecer em seguida que, parcialmente pelo menos, era e acto. Na realidade, estava cega não só pela minha inexperiência mas também pela afeição que dedicava aos dois…

Quando se pensa mal das pessoas, está-se quase sempre perto da verdade!

— A tua Gisela — disse-me ele — é o que na minha terra se chama uma boa tipa!

Olhei-o com um ar espantado. Ele explicou:

— Uma rapariga das ruas. Está toda orgulhosa de andar bem vestida, mas… como ganha o dinheiro?

— É o seu noivo quem lho dá.

— Um noivo diferente todas as noites… entretanto ouve: é preciso escolher entre ela e eu!

— Que queres dizer?

— Quero dizer que és livre de fazer o que quiseres… mas se continuas a dares-te com ela deves renunciar a ver-me… Ou ela ou eu!

Procurei fazê-lo mudar de ideias, mas sem resultado. A atitude desdenhosa de Gisela tinha-o com certeza ferido; mas ele devia, na sua antipatia indignada, a mesma fidelidade ao seu papel de noivo que lhe tinha sugerido contribuir para os gastos dos nossos preparativos de casamento.

— A minha noiva não deve andar com mulheres de má vida! — repetia com ar inflexível.

Tomada do mesmo receio inicial de ver ir por água abaixo o meu casamento, acabei por lhe prometer não tornar a ver Gisela, mas sabia no meu coração que não poderia cumprir a promessa, até mesmo pela impossibilidade de o fazer: Gisela e eu posávamos à mesma hora no mesmo atelier!

Desde esse dia continuei a falar-lhe às escondidas de Gino.

Quando estávamos juntas, ela nunca perdia oportunidade de fazer alusões irónicas e desdenhosas ao meu noivado. Eu tinha a ingenuidade de lhe fazer confidências a respeito das minhas relações com Gino; era justamente destas confidências que ela se servia para me ferir e me representar a minha vida presente e futura sob as cores mais negras. Como o seu amigo Ricardo parecia não notar a mínima diferença entre ela e eu, considerando-nos as duas como raparigas fáceis, que não mereciam qualquer respeito, ele prestava-se de boa vontade às brincadeiras de Gisela e reforçava as piadas, mas de maneira estúpida e sem malícia, porque, como já disse, não era inteligente nem mau. Para ele o meu noivado não era outra coisa que um assunto para boas graçolas, para matar o tempo.

Mas Gisela, a quem a minha virtude fazia o efeito de uma censura viva, e que queria tornar-me igual a ela, para me tirar o direito de a desaprovar, punha nas suas graçolas encarniçamento e azedume, procurando por todas as formas mortificar-me e humilhar-me. Atacava sobretudo o meu ponto fraco: a maneira de vestir.

— Hoje — dizia — tenho francamente vergonha de andar contigo!

Ou então:

— O Ricardo não permitiria que eu saísse com esses trapos em cima de mim. Não é verdade, Ricardo?

— Isso é que é um índice de amor, minha querida! Ingenuamente eu caía nesta grosseira armadilha. Exaltava-me, defendia Gino, defendia mesmo os meus vestidos, por vezes com pouca convicção, mas acabava sempre por perder, corar e ficar com lágrimas nos olhos. Um dia Ricardo teve pena de mim e declarou:

— Hoje vou dar um presente a Adriana. Vou oferecer-lhe uma mala!

Mas Gisela opôs-se violentamente a este oferecimento, declarando:

— Não, não! Nada de ofertas. Ela tem o seu Gino. Que faça com que ele lhe dê presentes!

Ricardo, que se propusera oferecer-me a mala por pura bondade de alma, sem imaginar nem por sombras o prazer que me teria dado a sua oferta, renunciou logo à sua ideia; e eu, por ponto de honra, fui nessa mesma tarde comprar uma mala com o meu dinheiro. No dia seguinte apareci aos amantes com a minha mala no braço e disse-lhes que tinha sido um presente de Gino. Foi a única vitória que consegui no decurso destas deploráveis escaramuças. Custou-me muito, porque era uma boa mala, e a paguei muito cara.

Quando Gisela julgou ter-me mortificado e humilhado suficientemente, à força de ironias, de vexames e de sermões, chamou-me e disse que tinha uma coisa importante a comunicar-me :

— Mas vais deixar-me falar até ao fim! — explicou. Não vais mostrar-te intransigente, como é teu hábito, antes de teres compreendido?

— Conta — disse-lhe.

— Sabes que sou muito tua amiga — começou. — Considero-te como uma irmã. A tua beleza permitir-te-ia teres tudo o que quisesses… Faz realmente pena ver-te sempre vestida como uma pedinte.

Aqui parou e olhou-me com ar solene.

— Há um senhor extremamente distinto, muito sério… que te viu e se interessa imenso por ti. Ele é casado, mas a família está na província. É um grande da polícia — acrescentou baixando a voz. — Se tu quiseres, eu posso apresentar-to. Como te digo, é um senhor muito sério e muito fino; com ele podes estar certa de que mais ninguém saberá… De resto, ele está muito ocupado e só te encontrarias com ele duas ou três vezes por mês. Não há inconveniente em que continues essa história com o Gino, se isso te agrada… nem mesmo que te cases… mas ele procurará proporcionar-te uma vida melhor do que a que tens agora. Que dizes?

— Agradeço-te muito mas não posso aceitar! — respondi peremptoriamente.

— Mas porquê? — gritou ela, sinceramente estupefacta.

— Porque não. Amo o Gino, e se aceitasse nunca mais poderia olhá-lo de frente.

— É ideia tua, porque Gino nada saberá!

— É justamente por isso!

— Pensar — pronunciou então como se falasse consigo própria — que se aqui há uns tempos me tivessem feito uma oferta semelhante! Então, que devo dizer-lhe? Não queres reflectir?

— Não, não! Não aceito!

— És uma idiota! — disse-me Gisela, desapontada. — A isto chama-se recusar a fortuna!

Acrescentou muitas coisas do mesmo género, às quais respondi sempre da mesma maneira, e foi-se embora muito descontente.

Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo, sem lhe discutir o valor. Só uma vez experimentei como que um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que Gisela tivesse razão, podia ser esta a única maneira de obter tudo de que tão desesperadamente precisava. Mas afastei este pensamento e agarrei-me de preferência à ideia do casamento e da existência pobre, mas honesta, que tinha traçado para mim.

O sacrifício que me tinha imposto punha-me entretanto na obrigação de me casar a todo o custo; era ainda mais forçoso que anteriormente.

Não consegui resistir a um sentimento de vaidade e informei minha mãe da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe agradaria duplamente: sabia até que ponto ela estava orgulhosa da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas convicções. Mas fiquei estupefacta com a agitação que lhe provocou a minha notícia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de contentamento:

— Mas quem é? — perguntou por fim.

— Um senhor rico — disse-lhe. Tinha vergonha de confessar que era um polícia.

— Ela disse que ele era muito rico?

— Sim… parece que ganha muitíssimo bem!

Não ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha feito mal em recusar a oferta.

— Ele viu-te — repetiu — e disse-lhe que se interessava por ti… Porque não to apresentou?

— A que propósito, se eu não posso?

— Que pena ele já ser casado!

— Mesmo que fosse solteiro não o queria conhecer.

— Há tanta maneira de fazer as coisas! — disse minha mãe. — alguém que é rico… gosta de ti… uma coisa leva à outra… podia ajudar-te… sem te pedir nada!

— Não, não! — respondi. — Essa gente nada dá sem receber em troca.

— Nunca se sabe.

— Não, não — repetia eu.

— Nada quer dizer — disse minha mãe abanando a cabeça… — Isso não impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha verdadeira afeição por ti. Outra qualquer teria tido inveja, não te teria falado. Ela, ao contrário, mostrou ser uma verdadeira amiga!

Depois da minha recusa, Gisela não me tornou a falar do tal senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a propósito do meu noivado. Continuava a vê-la às escondidas, assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com o desejo de uma reconciliação, porque estes subterfúgios me desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as suas expressões de raiva e jurava que se soubesse que eu a tornara a ver tudo acabaria entre nós. Falava seriamente e eu tinha quase a impressão de que teria de boa vontade aproveitado este pretexto para desfazer o casamento! Falei à minha mãe desta antipatia de Gino por Gisela e minha mãe declarou, sem parecer pôr maldade nesta observação:

— Ele não quer que andes com Gisela porque tem medo que tu faças a comparação dos trapos com que sais e as toálettes que o noivo dela lhe dá.

— Não! Somente diz que Gisela não lhe agrada.

— Ele é que não agrada… Se Gino pudesse saber que tu falas com Gisela e rompesse contigo!

— Mãe! — gritei, apavorada. — Que nem sequer te passe pela cabeça dizer-lho!

— Não, não! — respondeu muito depressa, como que arrependida. — Isso são assuntos vossos, não são da minha conta!

— Se lhe fores dizer — gritei, pondo toda a minha paixão neste grito. — Nunca mais me verás!

Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e límpidos. Gisela disse-me um dia que anuíra a fazer uma pequena viagem de automóvel: ela, Ricardo e um seu amigo.

Precisava-se de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse torná-la menos insípida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir.

Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzento-escuro, calças de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos.

Era extremamente cortês, mesmo cerimonioso. Gisela apresentou-mo dando-lhe o nome de Estevão Astárito e tive logo a convicção de que se tratava do senhor distinto cujas galantes propostas ela me tinha transmitido. Mas não fiquei contrariada por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavam-me mesmo, num certo sentido. Estendi-lhe a mão; levou-a aos lábios com uma devoção estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois subi, ele sentou-se ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o automóvel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma estrada nua e inundada de sol, não falámos quase nada. Eu estava feliz por andar de automóvel, feliz por dar um passeio, feliz pelo ar que passava atrás da janela e me batia em cheio no rosto.

Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu dava um passeio longo de automóvel e tinha receio de não o desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o maior número possível de coisas: molhos de palha, quintas, árvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses, talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha que gravar todos os pormenores na memória de maneira a possuir uma recordação precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas Astárito, afastado, muito direito, não parecia ter olhares senão para mim. Os seus olhos melancólicos e cheios de desejo não largavam por um instante a minha cara e o meu corpo; realmente o seu olhar dava-me a sensação de um dedo que ele passasse lentamente sobre toda a minha pessoa. Não direi que esta atenção me desgostasse, mas embaraçava-me.

Pouco a pouco senti-me no dever de me ocupar dele e de lhe falar. Estava sentado com as mãos sobre os joelhos; num dos dedos brilhava, com uma aliança, um anel ornado com um brilhante.

— Que anel tão bonito! — disse-lhe estouvadamente. Ele baixou os olhos para o anel sem mexer a mão e respondeu:

— Era o anel do meu pai. Tirei-lhe do dedo quando morreu.

— Oh! — disse para me desculpar. Depois acrescentei, indicando a aliança: — É casado?

— Com certeza que sim! — respondeu com uma espécie de ar complacente. — Tenho mulher e filhos.

— É bonita a sua mulher? — perguntei timidamente.

— Menos que você — disse-me sem sorrir, em voz baixa e enfática, como se anunciasse uma verdade importante. E a mão em que brilhava o anel tentou agarrar a minha. Desembaracei-me rapidamente dela e perguntei, para dizer qualquer coisa:

— Vive com ela?

— Não — respondeu-me. — Ela mora em… — e disse o nome de uma longínqua cidade de província — e eu aqui. Vivo só… Espero que venha visitar-me.

Fingi não me aperceber desta entrada, insinuada de uma maneira trágica e convulsa, e perguntei:

— Porque… não gostaria de viver com a sua mulher?

— Estamos legalmente separados — explicou-me, amuando. — Quando me casei era um garoto… foi minha mãe quem arranjou o casamento… Sabe bem como estas coisas se passam… uma rapariga de boa família, com um belo dote… são os pais que combinam o casamento, mas são os garotos que se devem casar! Viver com uma mulher… você seria capaz de viver com uma mulher como esta?

Tirou a carteira do bolso do peito, abriu-a e estendeu-me uma fotografia. Vi duas garotinhas com ar de gémeas, morenas, pálidas, todas vestidas de branco. Atrás delas, com as mãos pousadas nos seus ombros, uma mulherzinha morena e pálida, com os olhos unidos como os de um mocho e expressão maldosa.

Devolvi-lhe a fotografia. Ele tornou a guardá-la na carteira e depois disse-me num sopro:

— Não… queria viver consigo.

— O senhor não me conhece de lado algum! — respondi, desconcertada com a sua obsessão.

— Conheço-a muito bem. Há um mês que a sigo. Sei tudo a seu respeito.

Falava e continuava a ficar respeitosamente distante. Mas incessantemente a sua paixão dilatava-lhe os olhos.

— Estou noiva! — declarei-lhe.

— Gisela disse-me — pronunciou com voz estrangulada.

— Mas não falemos do seu noivo, que importa? — e fez um pequeno gesto com a mão, de afectada indiferença.

— Mas a mim importa-me, e muito — continuei. Olhou-me e repetiu:

— Gosto imensamente de si.

— Já dei por isso.

— Agrada-me enormemente — prosseguiu. — Talvez nem se aperceba de que maneira me agrada.

Falava realmente como um louco. Mas o que me tranqüilizava era ele estar sentado longe de mim e não tentar mais pegar-me na mão.

— Nada há de mau em que eu lhe agrade — disse-lhe.

— E eu, agrado-lhe?

— Não.

— Tenho dinheiro — disse ele com a cara crispada. Tenho muito dinheiro para a fazer feliz. Se vier ter comigo, verá que não terá de se arrepender!

— Não preciso do seu dinheiro — respondi com calma, quase com indiferença.

Pareceu não ouvir e disse, olhando-me:

— Você é muito bela!

— Obrigada.

— Tem uns lindíssimos olhos.

— Acha?

— Acho… e a sua boca é também muito bonita… quereria beijá-la.

— Porque me diz essas coisas?

— O seu corpo também o gostaria de cobrir de beijos… todo o seu corpo.

— Porque me fala dessa maneira? Estou noiva e casaremos dentro de dois meses.

— Desculpe, mas dá-me prazer falar destas coisas. Faça de conta que não é consigo. — Ainda estamos muito longe de Viterbo?

— Estamos quase a chegar… Almoçaremos lá. Prometa-me que se sentará ao meu lado à mesa.

Desatei a rir, porque no fim de contas uma paixão tão violenta lisonjeava-me:

— Está bem — disse eu.

— Vai sentar-se ao meu lado como agora — prosseguiu ele. — Contento-me em respirar o seu perfume.

— Mas eu não uso perfume! — exclamei.

— Hei-de oferecer-lhe um frasco, deixe estar! — respondeu.

Tínhamos chegado a Viterbo e o carro abrandou a velocidade para entrar na cidade. Durante todo o trajecto, Gisela e Ricardo, sentados à nossa frente, tinham-se conservado em silêncio. Mas quando começámos a percorrer lentamente as ruas repletas de gente, Gisela voltou-se para trás e disse-me:

— Como vai isso aí, com os dois? Tu julgas, se calhar, que nós nada vimos?

Astárito ficou calado, mas eu protestei:

— Tu não podias ter visto coisa alguma… temos vindo somente a conversar!

— Está bem! Está bem! — respondeu.

Fiquei profundamente admirada e um pouco irritada tanto com a atitude de Gisela como com o silêncio de Astárito.

— Mas se eu te digo… — confirmei.

— Está bem! Está bem! — repetiu ela. — Não estejas com medo! Nós nada diremos ao Gino!

Entretanto tínhamos chegado à praça e descido do automóvel.

Começámos a passear ao longo das ruas pelo meio do povo endomingado sob o sol de Outubro, doce e brilhante. Astárito não me largava um instante, sempre grave, até mesmo sombrio, com a cabeça hirta, emergindo do seu alto colarinho, uma mão no bolso e a outra a balouçar. Tinha o ar não tanto de me seguir, mas de me vigiar. Gisela, pelo contrário, ria alto com Ricardo; muitas pessoas voltavam-se para nos observar.

Entrámos numa pastelaria e tomámos vermute ao balcão. Reparei, de repente, que Astárito murmurava por entre dentes não sei que ameaças e perguntei-lhe o que se passava.

— É aquele imbecil que está ali à porta a olhar para si com uma insistência descarada! — respondeu-me, furioso.

Voltei-me e vi com efeito um rapazola louro, que olhava para mim encostado à porta do café.

— Que mal tem isso? — disse eu alegremente. — Olha-me!… E depois?

— Mas eu sou muito capaz de lhe partir a cara!

— Se o fizer nunca mais lhe falarei e nunca mais o conhecerei! — disse-lhe, aborrecida. — Não tem esse direito! O senhor não representa coisa alguma na minha vida!

Ele não respondeu e foi à caixa pagar o vermute. Saímos da pastelaria e recomeçámos o nosso passeio. O sol, o burburinho, o movimento das ruas, todas essas caras coradas e sadias de provincianos punham-me de bom humor. Quando chegámos a uma praçazinha fora do centro, ao fundo de uma rua perpendicular, eu exclamei de repente:

— Olhem! Se eu tivesse uma casinha como aquela — e mostrava uma bonita casinha de dois andares junto de uma igreja —, seria bem feliz de viver aqui!

— Meu Deus! Meus Deus! — gritou Gisela. — Viver na província! Então em Viterbo. Eu não anuía a isso nem que me pagassem em ouro!

— Depressa te aborrecerias, Adriana — disse Ricardo.

— Quem se habitua a viver na cidade já não pode viver na província.

— Vocês estão enganados! — disse eu. — Gostaria bem de viver aqui… com alguém que gostasse de mim… Quatro quartos, uma trepadeira, quatro anelas… De nada mais precisava.

Eu falava sinceramente, porque me via já com Gino nesta simples casita de Viterbo.

— Que diz? — perguntei dirigindo-me a Astárito.

— Consigo também lá viveria! — disse-me a meia voz para que os outros não o ouvissem.

— O teu defeito, Adriana, é seres demasiadamente modesta… Na vida, quando não se deseja muito, nada se consegue!

— Mas eu nada quero… — respondi.

— Nada, então? Nem casar com o Gino? — perguntou Ricardo.

— Isso sim!

Começava a fazer-se tarde; as ruas iam ficando desertas; entrámos num restaurante. A sala do rés-do-chão estava cheia, principalmente com aldeões de fatos domingueiros, que a circunstância de ser dia de feira tinha trazido a Viterbo.

Gisela ficou de mau humor e disse que o cheiro que havia ali lhe fazia faltar o ar e perguntou ao patrão se não podíamos comer no andar superior. O patrão disse que sim, que era possível e, precedendo-nos, fez-nos subir uma escadinha de madeira e entrar numa sala estreita e comprida com uma só janela, que dava para um beco. Abriu as persianas e fechou a janela. Depois estendeu a toalha numa mesa rústica que ocupava a maior parte da sala. Lembro-me de que as paredes eram cobertas por um velho papel fora de moda, rasgado em vários sítios, com flores e pássaros, e que do outro lado da mesa havia um pequeno armário envidraçado cheio de pratos.

Enquanto isto se passava, Gisela girava pela sala examinando tudo, espreitando até o beco pela janela. Acabou por abrir uma porta que parecia dar acesso a outra sala. Depois de lhe deitar uma olhadela, dirigindo-se ao dono da casa, perguntou com um ar natural o que vinha a ser aquela outra sala.

— É um quarto — respondeu o proprietário. — Se alguém quiser descansar depois do almoço…

— Nós havemos de ir, hem, Gisela?! — disse Ricardo com o seu risinho parvo.

Gisela fingiu não percebeu. Olhou mais uma vez o quarto e puxou a porta com cuidado sem no entanto a tornar a fechar. Ver uma sala de jantar tão pequenina e tão íntima agradou-me e também fingi não reparar pára a porta aberta nem tão-pouco para o olhar de cumplicidade que julguei surpreender entre Gisela e Astárito. Tomámos os nossos lugares à mesa; sentei-me ao lado de Astárito, como lhe tinha prometido, mas ele nem sequer deu por isso: parecia tão preocupado que nem podia falar. Passado um momento, o hoteleiro trouxe os acepipes e o vinho. Eu tinha muita fome, atirei-me ao almoço com tal sofreguidão que todos começaram a rir. Gisela aproveitou a ocasião para me arreliar; como de costume, a propósito do meu casamento.

— Come! Come! — recomendava-me ela. — Não é com o Gino que tu comerás tanto nem tão bem!

— Porquê? — disse eu. — Gino ganha muito bem a sua vida!

— Sim… mas vocês comerão todos os dias feijão.

— Os feijões são tão bons como qualquer outra coisa! — disse Ricardo rindo. — Vou mandar vir um prato deles para nós!

— És uma idiota, Adriana! — continuou Gisela. — Tu precisas de um homem de meios, sério, arrumado, que pense em ti e nada te negue que te permita realçar a tua beleza. E afinal enrolaste-te com o Gino!

Não respondi. De cabeça baixa, continuava a comer. Ricardo observava, rindo:

— Eu, no lugar de Adriana, a nada renunciaria… nem ao Gino, visto que é dele que gosta tanto, nem ao homem sério. Ficaria com os dois… E talvez até que o Gino não achasse mal!

— Ah! Isso não! Se ele soubesse que eu tinha dado hoje este passeio com vocês era o bastante para romper o noivado!

— E porquê? — perguntou Gisela, irritada.

— Porque ele não gosta que eu ande contigo!

— Porco, nojento, ordinário! Reles pobretão! — gritou Gisela com raiva. — Gostaria realmente de experimentar procurá-lo e dizer-lhe: a Adriana continua a dar-se comigo. Hoje passámos todo o dia juntas. Anda, vai romper o noivado!

— Não! Não! — replicava eu, apavorada. — Não farás isso!

— Era uma sorte para ti!

— Seria… mas não o faças! — pedi de novo. — Se és um pouco minha amiga, não o laças!

Durante toda esta conversa, Astárito não disse palavra, nem sequer comeu. Tinha os olhos constantemente fixos em mim e o seu olhar, carregado de intenções, grave e desesperado, incomodava-me mais do que eu queria. Desejaria pedir-lhe que não me olhasse daquela maneira, mas temia a troça de Gisela e de Ricardo. Foi pelo mesmo motivo que não tive coragem de protestar quando Astárito, aproveitando o momento em que pousei a minha mão esquerda sobre o banco, a apertou na sua com força, obrigando-me a comer só com a direita. Fiz mal, porque de repente Gisela gritou, rindo:

— Em palavras és muito fiel ao Gino, mas em acções. Julgas que não vos vejo, a ti e ao Astárito, de mãos dadas debaixo da mesa?

Corei, atrapalhada, e tentei libertar a minha mão. Mas Astárito reteve-a fortemente e Ricardo interveio:

— Deixa-os sossegados! Que mal é que isso tem? Eles estão de mãos dadas, pronto! O que temos a fazer é imitá-los!

— Disse isto por brincadeira! Pelo contrário — declarou Gisela —, estou até bem contente!

Quando acabámos de comer o primeiro prato, fizeram-nos esperar muito tempo pelo segundo. Gisela e Ricardo não paravam de rir e de brincar, bebendo e fazendo-me beber. O vinho era tinto; era bom mas muito forte e subia depressa à cabeça. Eu gostava deste gosto do vinho, quente e picante; estava embriagada, mas tinha a impressão de não o estar e de poder beber indefinidamente. Astárito apertava-me a mão, grave e sombrio, e eu já não me revoltava. Dizia a mim mesma que afinal de contas não havia mal em lhe dar um aperto de mão! Por cima da porta havia uma estampa com uma varanda florida de rosas e um homem e uma mulher vestidos com fatos de há cinquenta anos que se beijavam de uma maneira complicada. Gisela reparou na estampa e confessou que não compreendia como aqueles dois conseguiam beijar-se naquela posição.

— Vamos a ver se os conseguimos imitar? — propôs a Ricardo. — Tentemos!

Ricardo levantou-se rindo e pôs-se a imitar o homem do cromo, enquanto Gisela, também a rir, se debruçava sobre a mesa como a mulher da litografia sobre a florida varanda. Conseguiram unir as bocas ao fim de grandes esforços, mas pouco faltou para perderem o equilíbrio e tombarem os dois em cima da mesa. Gisela, excitada com a brincadeira, gritava:

— Agora é a vossa vez!

— Porquê? — perguntei, alarmada. — A que propósito?

— Sim, sim. Experimentem!

Senti que Astárito me passava o braço em torno da cintura e tentei desembaraçar-me declarando:

— Mas eu não quero!

— Oh! Como tu és aborrecida! — gritava-me Gisela. É uma brincadeira! Uma simples brincadeira!

— Mas eu não quero — repeti.

Ricardo ria e ajudava-a excitando Astárito.

— Astárito, se não a beijas, não és homem!

Mas Astárito estava sério. Quase me fazia medo. Era bem claro que para ele isto não era apenas uma brincadeira.

— Vocês vão deixar-me em paz — disse eu, voltando-me para ele.

Astárito olhava para mim e depois para Gisela com ar interrogativo, como se esperasse um encorajamento.

— Coragem, Astárito — gritou-lhe Gisela.

Ela parecia mais encarniçada do que ele de uma maneira que eu sentia obscuramente cruel e impiedosa.

Astárito apertou-me com mais força pela cintura e puxou-me para ele; agora já não era a brincadeira que o excitava: queria beijar-me a todo o custo. Sem dizer nada, eu procurava livrar-me, mas ele era mais forte; por mais força que eu fizesse com os cotovelos de encontro ao seu peito, sentia pouco a pouco o seu rosto aproximar-se do meu. No entanto, não teria conseguido beijar-me se Gisela não o tivesse ajudado.

Bruscamente, com um grito de alegria, ela levantou-se, veio por detrás de mim, segurou-me os braços e puxou-os para trás. Eu não a via, mas sentia a sua fúria nas unhas que me enterrava na carne e na sua voz, que repetia, entrecortada de riso e com um tom de excitada crueldade:

— Depressa! Depressa! Astárito, agora!

Astárito estava sobre mim. Eu procurava o mais possível virar a cara, porque era a única coisa que podia fazer, mas ele segurou-me o queixo com a mão e voltou-me para ele, beijando-me depois demoradamente na boca.

— Até que enfim! — disse Gisela, triunfante. E voltou alegremente para o seu lugar.

Astárito deixou-me, e eu, irritada e dorida, declarei:

— Nunca mais venho com vocês!

— Ora, ora, Adriana — gritava Ricardo com ar de troça. — Só por causa de um beijo!

— Astárito está todo cheio de bâton! — gritava Gisela, exultante. — Se o Gino entrasse agora, sempre queria saber o que diria!

Era verdade. O meu bâton tinha pintado completamente a boca de Astárito, o traço vermelho sobre a sua cara amarelenta e triste também me dava vontade de rir.

— Vá lá! — disse Gisela. — Façam as pazes… Limpa-lhe o bâton com o teu lenço, senão quando o criado entrar vai pensar sabe Deus o quê!

Eu, contra vontade, tinha de concordar e, com uma ponta do meu lenço molhada de saliva, limpei pouco a pouco o meu bâton da cara imóvel de Astárito. Fiquei arrependida mais uma vez de me mostrar amável, porque logo que guardei o lenço na mala ele tornou a passar-me o braço em torno da cintura:

— Deixe-me — disse-lhe.

— Ora, ora, Adriana!

— Que mal é que isto pode fazer? — disse Gisela. — A ele dá-lhe prazer e a ti não te prejudica… E depois já o deixaste beijar-te… deixa-o lá continuar.

Foi assim que eu cedi pela primeira vez, e que ficámos um ao lado do outro, ele com o braço em torno da minha cintura e eu hirta e digna! O criado entrou trazendo o segundo prato.

Apesar de Astárito continuar a apertar-me com força, comer fez-me passar o mau humor. O segundo prato era excelente, e eu bebia sem dar por isso todo o vinho que Gisela me servia sem parar. Em seguida serviram-nos fruta e um bolo. Eu não estava habituada a comer bolos, mas este era óptimo, e quando Astárito me ofereceu a sua parte não tive coragem de a recusar. Gisela, que também bebera muito, pôs-se a fazer macaquices com Ricardo, enfiando-lhe na boca gomos de tangerina e acompanhando cada gomo com um beijo. Eu sentia-me embriagada, mas não de uma maneira repugnante: deliciosamente embriagada! O braço de Astárito tinha finalmente deixado de me incomodar.

Gisela, cada vez mais excitada e vibrante, levantou-se para se sentar nos joelhos de Ricardo, e eu não pude deixar de rir ao ouvir o grito de dor que ele soltou como se Gisela o esborrachasse com o seu peso! De repente, Astárito, que até então estivera imóvel e se tinha limitado a conservar o braço em torno da minha cintura, começou a cobrir-me de beijos o pescoço, o peito e as faces. Desta vez já não protestei; primeiro porque estava demasiadamente embriagada para lutar e depois porque me parecia que era outra pessoa que ele beijava; tão-pouco eu tomava parte nessas expansões, conservando-me hirta e imóvel como uma estátua. Na minha embriaguez tinha a sensação de ser espectadora de mim própria, observando com fria curiosidade a furiosa paixão de Astárito por mim. Mas os outros tomaram a minha indiferença por amor, e Gisela gritou:

— Bravo, Adriana! Assim mesmo é que é!

Ia responder, mas não sei porquê mudei de ideias, agarrei no meu copo cheio e levantei-o, declarando: “Estou embriagada!”, e bebi-o de um trago. Julguei que o meu gesto seria aplaudido.

Mas Astárito parou de me beijar, olhou-me fixamente e disse em voz baixa:

— Vamos para ali!

Segui a direcção dos seus olhos e vi que indicavam a porta entreaberta do quarto de cama contíguo. Pensei que também ele estivesse embriagado, e disse que não com a cabeça, mas sem violéncia, até com um pouco de coquetterie. Ele repetiu como um sonâmbulo:

— Vamos para ali!

Reparei que Gisela e Ricardo já não riam e nos olhavam em silêncio. Gisela disse:

— Coragem! Para a frente! Porque esperas?

De súbito, tive a impressão de que a minha embriaguez passara. Na verdade eu estava embriagada, mas não ao ponto de não me aperceber do perigo que me ameaçava.

— Mas eu não quero! — disse.

E levantei-me.

Astárito levantou-se também e puxou-me o braço, tentando levar-me para junto da porta. De novo os outros o encorajaram:

— Coragem, Astárito!

Astárito arrastou-me quase até à porta, apesar de me debater. Mas com uma sacudidela desembaracei-me dele e corri para a outra porta, que dava para a escada. Mas Gisela tinha sido mais rápida do que eu:

— Não! Minha filha, não! — gritava-me.

Deixando os joelhos de Ricardo, tinha alcançado a porta antes de mim e fechara-a à chave com duas voltas.

— Mas eu não quero! — repeti num tom assustado, parando em frente da mesa.

— Que importância tem isso para ti? — gritou Ricardo.

— Idiota! — disse-me Gisela num tom duro empurrando-me para Astárito. — Vai… Vai… deixa-te de fitas!

Compreendi então que Gisela, levada pelo seu encarniçamento e pela sua crueldade, não se dava bem conta do que fazia; esta espécie de emboscada que me tinha preparado devia parecer-lhe uma coisa alegre, espirituosa e divertida. Outro pormenor que também me chamou a atenção foi a indiferença de Ricardo, que eu sabia ser bom e incapaz da menor crueldade.

— Mas eu não quero! — disse novamente.

— Que mal é que isso tem? — perguntou Ricardo. Gisela, excitadíssima, continuava a empurrar-me, dizendo:

— Não te julgava tão parva! Anda, porque esperas? Até ali, Astárito não tinha pronunciado uma única palavra; ficara imóvel junto da porta, com os olhos fixos em mim. Agora, tranquilamente, confusamente, como se as palavras tivessem uma consistência pastosa e lhe custasse deslocá-las dos lábios, disse:

— Vem. Se não vieres, digo ao Gino que passaste a tarde deitada comigo.

Compreendi imediatamente que cumpriria a ameaça. Podemos enganar-nos quanto ao sentido de uma frase, mas não quanto ao tom de uma voz. Astárito falaria com Gino e tudo acabaria para mim ainda antes de ter começado. Hoje penso que podia ter-me revoltado. Talvez que se tivesse gritado, se me debatesse violentamente, o tivesse persuadido da inutilidade da sua vingança. Mas isto podia também para nada servir, porque o seu desejo era mais forte do que a minha repugnância. O certo é que de repente me senti definitiva e absolutamente subjugada; e, muito mais do que o desejo de me defender, o que actuava em mim era a necessidade de evitar o escândalo que me ameaçava.

Na realidade, fora atraída à falsa fé, com o espírito completamente ocupado por doces projectos de futuro, aos quais de maneira nenhuma queria renunciar. O que me aconteceu depois foi tão brutal que hoje creio que, de uma maneira ou de outra, acontecem coisas a todos os que tem ambições, por mais modestas, mais inocentes ou mais legítimas que sejam, como era o meu caso. É pelas nossas ambições que a vida nos domina e castiga. Só os abandonados e os que renunciaram a tudo podem considerar-se livres e serenos.

Mas no próprio momento em que me submetia ao destino senti uma dor lúcida e aguda. Uma brusca iluminação — dir-se-ia que o caminho da vida, geralmente tão obscuro e tão tortuoso, aparecia de repente diante dos meus olhos perfeitamente plano e direito — revelou-me tudo o que eu ia perder em troca do siléncio de Astárito. Os meus olhos encheram-se de lágrimas; cobri a cara com as mãos e pus-me a chorar. Compreendi que chorava por excesso de resignação e não por um sentimento de revolta, porque, ao mesmo tempo que chorava, aproximava-me de Astárito. Gisela empurrava-me, repetindo:

— Mas por que demónio estás tu a chorar? Como se fosse a primeira vez!

Ouvi Ricardo rir e senti, embora não os visse, os olhos de Astárito fixos em mim, que me aproximava lentamente, lavada em lágrimas. Depois o seu braço rodeou a minha cintura e a porta do quarto fechou-se nas minhas costas.

Nada queria ver. Parecia-me que ter de sentir o que ia passar-se já era um martírio suficiente. Por isso, apesar dos esforços de Astárito, conservei obstinadamente o meu braço pousado sobre os olhos. Suponho que ele teria querido proceder como qualquer amante, isto é, levar-me lentamente, insensivelmente, gradualmente, a satisfazer os seus desejos.

Mas a minha teimosia obrigou-o a ser mais brutal e mais rápido do que ele desejaria. Por isso, depois de me ter feito sentar na beira da cama e tentado inutilmente convencer-me com carícias, empurrou-me para trás e deitou-se por cima de mim. O meu corpo, da cintura aos pés, estava inerte e pesado como chumbo: nunca mulher alguma foi possuída com mais abstinência e menos colaboração. Mas, entretanto, as minhas lágrimas secavam. E quando ele se deixou cair, ofegante, sobre o meu peito, tirei o braço da cara e abri os olhos.

Tenho a certeza de que nesse momento eu era tão amada por Astárito quanto uma mulher pode ser amada por um homem, seguramente muito mais do que por Gino. Lembro-me de que ele não se cansava de me acariciar a testa e o rosto, com gestos convulsivos e apaixonados, tremendo da cabeça aos pés e murmurando-me palavras de amor. Mas enquanto me acariciava eu seguia o fio dos meus pensamentos secretos. Revia o meu quarto com os seus móveis novos, ainda não completamente pagos, e sentia uma espécie de amargo alívio. Agora já nada me impedia de casar-me e de viver a vida a que aspirava. Mas ao mesmo tempo sentia que a minha alma tinha mudado irremediavelmente: onde antigamente só havia esperança, ingenuidade e frescura existia agora segurança e resolução. Em resumo, sentia-me mais rica de uma força triste e privada de amor.

Acabei por pronunciar as primeiras palavras desde que tínhamos entrado no quarto.

— São horas de sairmos.

E ele respondeu imediatamente em voz baixa:

— Estás zangada comigo?

— Não.

— Odeias-me?

— Não.

— Gosto tanto de ti! — murmurou ele.

Voltou a cobrir-me o rosto de beijos furiosos. Passados momentos, disse-lhe:

— Está bem, mas temos de voltar para a sala.

— Tens razão — concordou ele.

E levantou-se de cima do meu corpo, começou, pareceu-me, a vestir-se no escuro. Tornei a vestir a minha roupa, levantei-me e acendi o candeeiro da mesinha-de-cabeceira. A sua luz amarelada, o quarto apareceu-me tal como o seu cheiro a fechado e a alfazema mo tinham feito imaginar: um tecto baixo caiado, papel pintado nas paredes e móveis maciços. Num canto havia um lavatório com tampo de mármore, duas bacias e dois jarros de água com flores cor-de-rosa e verdes, debaixo de um espelho com moldura dourada. Fui ao lavatório, deitei um pouco de água na bacia, molhei uma ponta da toalha e lavei os lábios de onde Astárito tinha tirado todo o bâton com os seus beijos, depois os olhos, ainda vermelhos de chorar. De um fundo manchado cor de ferrugem o espelho devolvia-me uma imagem dolorosa de mim própria que me aturdiu por momentos a alma entorpecida e cheia de compaixão. Depois voltei a mim, ajeitei o melhor que me foi possível o cabelo e voltei-me para Astárito. Ele esperava-me ao pé da porta; assim que me viu pronta, abriu o batente, evitando olhar-me e voltando-me as costas. Apaguei a luz e segui-o.

Fomos alegremente recebidos por Gisela e por Ricardo, sempre com o mesmo humor amalucado e indiferente. Como antes, eles não tinham compreendido a minha dor, nem entendiam a minha serenidade de agora. Gisela gritou:

— Tu és uma boa sonsa! Não querias, não querias, mas parece que aceitaste bem depressa e de muito bom grado!… Fizeste bem se isso te deu prazer, mas não valia a pena teres-te feito tão rogada.

Olhei-a. Parecia-me estranhamente injusto que ela, que me obrigara a ceder a ponto de me segurar os braços para que Astárito me beijasse mais a seu jeito, censurasse agora a minha complacência. Ricardo, com o seu bom senso, fez-lhe notar:

— Estás a ser pouco lógica, Gisela… Tu, que de começo insististe tanto, agora quase a censuras por ela o ter feito.

— Pois decerto! — insistiu duramente Gisela. — Se ela não queria, fez mal… Eu, por exemplo, se não quisesse, não me deixaria convencer nem pela força. Mas ela… ela queria — acrescentou, considerando-me com um ar descontente. — Ela queria e muito! Eu bem a vi no carro antes de chegarmos a Viterbo. É por isso que ela não precisava de se fazer tão rogada.

Calei-me, quase admirando a perfeição de uma crueza ao mesmo tempo impiedosa e inconsciente. Astárito aproximou-se de mim e tentou agarrar-me a mão. Repeli-o e fui sentar-me ao fundo da mesa.

— Mas olhem para Astárito! — gritou Ricardo desatando a rir. — Parece que vem de um enterro!

Verdadeiramente, à sua maneira, com uma gravidade lúgubre e o seu ar mortificado, Astárito parecia compreender-me melhor do que os outros.

— Vocês estão sempre a brincar! — disse ele.

— Talvez quisesses que começássemos a chorar, não? — gritou Gisela. — Agora vocês vão ter paciência e esperar por nós como nós esperámos por vocês… Cada um por sua vez! Anda, querido, vamos!

— Tenham cuidado, hem! — recomendou Ricardo levantando-se depois dela.

Estava visivelmente embriagado e nem ele sabia bem porque dissera para termos cuidado.

— Vamos! Vamos!

Saíram por sua vez da sala de jantar, deixando-nos sós, a mim e a Astárito. Eu estava sentada a uma ponta da mesa e Astárito na outra. Um raio de sol entrava pela janela, iluminando violentamente os pratos em desordem, os copos ainda meio cheios e os guardanapos sujos — e batia em cheio na cara de Astárito, que conservava a sua expressão triste e sombria.

Satisfizera o seu desejo, mas o olhar que me deitava conservava a mesma intensidade dolorosa dos primeiros momentos do nosso encontro. Apesar do mal que me fizera, senti-me cheia de piedade por ele. Compreendia como ele tinha sido infeliz antes de me possuir, e como, apesar de ter conseguido o seu fim, não tinha deixado de o ser. Primeiro sofrera porque me desejava; agora sofria porque eu não retribuía o seu amor. Mas é precisamente na piedade que o amor tem a sua inimiga; se o odiasse, talvez um dia viesse a amá-lo. Mas não o odiava.

Nutrindo por ele, como já disse, apenas compaixão, a única coisa que eu poderia sentir por ele era antipatia, frieza e repulsa.

Ficámos longamente silenciosos na sala cheia de sol, esperando o regresso de Gisela e de Ricardo. Astárito fumava sem descanso, acendendo uns cigarros nos outros. E, através das nuvens de fumo de que se rodeava raivosamente, lançava-me os olhares eloquentes de um homem que tem muito que dizer, mas a quem falta a coragem de falar. Eu estava sentada junto da mesa, com as pernas cruzadas, e todos os meus sentidos se condensavam num único desejo: ir-me embora. Não sentia fadiga, nem vergonha; mas gostaria de estar só para poder reflectir à minha vontade no que me tinha acontecido. Absorvido por este grande desejo de partir, o meu espírito vazio divagava continuamente e observava futilidades: a pérola que Astárito usava na gravata, o desenho do tapete, uma pequena nódoa de molho de tomate na minha blusa, uma mosca que passeava tranquilamente na borda de um copo; irritava-me comigo própria por não ser capaz de pensar em coisas mais sérias. Mas esta futilidade veio em meu auxílio quando Astárito, vencendo a sua timidez, me perguntou, a custo:

— Que estás a pensar?

Reflecti durante um momento, e depois respondi, com tranquilidade:

— Parti uma unha e não sei como foi.

Isto era verdade. Mas o seu rosto tomou uma expressão de incrédula amargura e renunciou definitivamente a conversar comigo.

Pouco depois, felizmente, Gisela e Ricardo saíram do quarto, um pouco ofegantes, mas tão alegres e despreocupados como antes. Ficaram admirados do nosso silêncio e da nossa gravidade, mas fazia-se tarde e o amor tinha tido neles um efeito oposto ao que tivera sobre Astárito: tinha-os tranquilizado e acalmado. Gisela voltava até a mostrar-se afectuosa para comigo, pondo por completo de parte a excitação e a crueldade de que dera provas antes e durante a chantagem de Astárito. Pensei que essa chantagem tinha sido para ela uma espécie de novo tempero sensual para a insipidez da sua ligação com Ricardo. Na escada passou o braço em volta da minha cintura e murmurou:

— Porque estás com essa cara? Se estás preocupada por causa do Gino, podes ficar descansada. Nem eu nem o Ricardo falaremos nisto a alguém.

— Estou fatigada — menti.

O meu temperamento impede-me de guardar rancor seja a quem for; bastava aquele gesto de amizade de Gisela para dissipar por completo o meu ressentimento.

— Eu também me sinto cansada — disse ela. — Deve ser do vento que apanhei na cara.

Daí a momentos, parada à porta do restaurante, enquanto os dois homens caminhavam na direcção do carro, acrescentou:

— Não ficaste zangada comigo pelo que se passou?

— Que ideia! — respondi. — Que culpa tiveste disso? Assim, depois de ter tirado todas as satisfações que a sua intriga podia proporcionar-lhe, queria ainda ter a certeza de que não lhe guardava rancor. Tive a impressão de ter lido com clareza no seu espírito, e foi precisamente porque não queria que ela compreendesse isso, o que decerto a humilharia, que tentei por todos os meios ao meu alcance dissipar os seus temores e mostrar-me afectuosa. Dei-lhe um beijo e disse-lhe:

— Porque havia de me zangar agora contigo? Tu sempre pensaste que devia deixar o Gino e juntar-me com o Astárito.

— Isso é verdade! — afirmou ela com ênfase. — E continuo a pensá-lo!? Mas tu, pelo contrário… Tenho medo de que nunca me perdoes.

Mostrava-se ansiosa, e eu, por um curioso contágio, estava ainda mais ansiosa do que ela, porque temia que adivinhasse os meus verdadeiros sentimentos.

— Isso só prova que não me conheces bem — respondi com simplicidade. — Bem sei que é só por amizade para comigo que queres que eu deixe o Gino, porque estar com ele é contra os meus interesses. E é muito possível que tenhas razão! — terminei, mentindo novamente.

Tranquilizada, agarrou-me por um braço e disse-me, num tom de serena confidência:

— Queria que me compreendesses… Astárito ou outro qualquer, tanto faz, contanto que não seja o Gino. Se soubesses a pena que me faz ver uma rapariga bonita como tu prejudicar-se dessa maneira… Pergunta ao Ricardo: passo o dia a falar-lhe de ti…

Exprimia-se, como era seu hábito, sem meias palavras: e eu tinha o cuidado de aprovar tudo o que ela dizia, quer concordasse quer não. Chegados ao carro, ocupámos os mesmos lugares da vinda e partimos.

Durante a viagem de regresso conservámo-nos os quatro em siléncio. A expressão de Astárito ao olhar para mim exprimia mais um sentimento de mortificação do que de desejo; mas agora os seus olhares não me incomodavam, nem eu sentia, como à vinda, a necessidade de lhe falar e de ser amável com ele.

Absorvia com prazer o vento que me batia na cara e entretinha-me a verificar, por meio dos marcos quilométricos, a progressiva diminuição da distáncia que nos separava de Roma. A certa altura senti a mão de Astárito tocar na minha e percebi que tentava obrigar-me a pegar em qualquer coisa como um bocado de papel. Admirada, pensei que, não ousando falar-me, recorrera ao expediente de escrever para comunicar comigo. Mas, baixando os olhos, vi que se tratava de uma nota de banco dobrada em quatro.

Ele olhava fixamente para mim, ao mesmo tempo que tentava fazer com que os meus dedos se fechassem sobre a nota. Por momentos apeteceu-me atirar-lhe com ela à cara, mas ao mesmo tempo compreendi que isso não passaria de um gesto puramente exterior, ditado mais por um preconceito do que por um profundo impulso da alma. O sentimento que nesse momento tomou conta de mim causou-me extraordinário espanto: depois disso, nas numerosas vezes que recebi dinheiro de homens, nunca mais o tive tão claro e tão intenso; era um sentimento de cumplicidade e de acordo sensual, que nenhuma das suas carícias, no quarto do restaurante, tinha podido inspirar-me. Este sentimento de inevitável sujeição revelou-me de repente um aspecto do meu carácter até aí completamente desconhecido para mim. Eu sabia, com absoluta certeza, que devia recusar esse dinheiro, mas ao mesmo tempo sentia que o desejava aceitar. E isto não tanto por avidez como pelo raro e novo prazer que o facto dava à minha alma.

Apesar de firmemente resolvida a aceitar a nota, fingi recusá-la, num gesto de puro instinto. Astárito insistiu, sem deixar de me fitar nos olhos. Então passei a nota da mão esquerda para a direita. Sentia-me tomada por uma estranha excitação que me fazia corar e me dificultava a respiração.

Se nesse momento Astárito tivesse podido adivinhar o que se passava em mim, talvez tivesse pensado que o amava. Ora nada era menos verdadeiro; era somente o dinheiro, o modo como me tinha sido dado e o motivo dessa dádiva que actuavam sobre o meu espírito. Senti Astárito pegar-me na mão e levá-la aos lábios. Deixei-o beijá-la e depois retirei-a. Não voltámos a olhar um para o outro até à nossa chegada a Roma.

Logo que chegámos à cidade separámo-nos rapidamente uns dos outros, como se cada um de nós tivesse a consciência de ter cometido um crime e quisesse esconder-se. A verdade é que nesse dia todos nós tínhamos cometido qualquer coisa que podia considerar-se um crime: Ricardo, por estupidez, Gisela, por inveja, Astárito, por luxúria, e eu, por inexperiência.

Ricardo desejou-me boas-noites. Astárito, grave e comovido, não teve coragem senão para me apertar silenciosamente a mão.

Tinham-me levado a casa, e, apesar da minha fadiga e dos meus remorsos, lembro-me de que não me foi possível evitar um sentimento de vaidosa satisfação ao descer deste belo carro diante da porta, perante os olhares da família do ferroviário que ocupava a casa do lado e que nos espreitava por uma janela.

Corri para o meu quarto e a primeira coisa que fiz foi olhar para o dinheiro. Descobri que não era apenas uma, mas sim três notas de mil, e durante momentos, sentada na borda da minha cama, senti-me feliz. Este dinheiro, além de chegar para pagar o que eu ainda devia dos móveis, permitia-me comprar outras coisas de que precisava. Como nunca tinha tido em meu poder uma tal importância, não me fartava de olhar para o dinheiro.

A minha pobreza fazia com que a sua existência fosse não só agradável mas inacreditável. Tive de olhar longamente para as notas, como já sucedera com os móveis, para conseguir acreditar que me pertenciam.

O meu longo e profundo sono dessa noite pareceu-me ter desvanecido a recordação da minha aventura de Viterbo. No dia seguinte, acordei tranquila, decidida a prosseguir com a mesma perseverança nas minhas aspirações de possuir uma vida e uma família normais. Gisela, que vi nessa mesma manhã, quer fosse por remorsos quer, como era mais provável, por discrição, bem compreensível, não me fez a menor alusão ao nosso passeio e eu fiquei-lhe reconhecida por isso. A ideia de tornar a encontrar-me com Gino angustiava-me e enchia-me de ansiedade.

5

Embora estivesse convencida da minha total inocência, pensava que seria necessário mentir-lhe, o que receava, e não estava certa de o poder fazer, porque seria a primeira vez, visto que eu até agora tinha sido inteiramente sincera para ele. verdade que lhe escondera os meus encontros com Gisela, mas esta dissimulação tinha um motivo tão inocente que nunca a tinha considerado como uma mentira; era apenas um expediente, com o qual condenava a sua injusta antipatia por Gisela.

A minha angústia era tal quando o encontrei nesse dia que por pouco não rompi a chorar e não lhe contei tudo, pedindo-lhe que me perdoasse. Este passeio a Viterbo pesava-me na consciência e sentia um violento desejo de aliviar a minha alma confessando-lho. Se Gino fosse diferente e se eu não soubesse que era tão ciumento, tenho a certeza de que lho teria dito; depois de o fazer, parecia-me, nós amar-nos-íamos mais ainda que anteriormente, e eu sentir-me-ia protegida e ligada a ele por um laço mais forte que o nosso próprio amor. Era de manhã, estávamos no carro. como de costume, parados na nossa avenida dos arrabaldes. Ele notou o meu embaraço e perguntou-me:

— Que tens?

“Vou contar-lhe tudo mesmo com o risco de ele me pôr fora do carro e de eu ter de voltar para Roma a pé.” Mas não tive coragem e perguntei-lhe, por minha vez:

— Amas-me?

— É um interrogatório? — respondeu-me.

— Vais amar-me sempre? — repeti. com os olhos cheios de lágrimas.

— Sempre.

— E vamos casar-nos depressa?

Ele mostrou-se contrariado com a minha insistência.

— Palavra de honra! — protestou. — Tu acabarás por me convencer de que não tens confiança em mim! Não decidimos casar na Páscoa?

— Sim, é verdade!

— Não te dei dinheiro para começarmos a montar casa?

— Deste.

— Então? Sou ou não homem de palavra? Quando digo que faço alguma coisa, faço mesmo. Está a parecer-me que é a tua mãe que te excita contra mim.

— Não, não. A minha mãe nada tem a ver com isto — respondi, alarmada. — Diz-me… Então viveremos juntos?

— Bem entendido!

— E seremos felizes?

— Isso dependerá de nós.

— Viveremos juntos? — perguntei pela segunda vez, incapaz de sair do círculo da minha ansiedade.

— Uf! Já me perguntaste e eu já te respondi.

— Desculpa — disse-lhe —, mas às vezes isso parece-me impossível. — E, não podendo conter-me por mais tempo, desatei a chorar.

Nessa mesma tarde, depois de o deixar, entrei numa igreja para me confessar. Havia quase um ano que não o fazia; durante todo esse tempo pensava que podia fazê-lo e isso bastava-me.

Deixara de me confessar logo que dei o primeiro beijo a Gino.

Dei-me conta de que as minhas relações com Gino eram um pecado segundo a religião, mas, como eu sabia que nos casaríamos, não sentia remorsos e contava ser absolvida de tudo. antes do casamento.

Entrei numa pequena igreja do centro cuja porta fica entre a entrada de um cinema e a montra de uma loja de meias. Estava quase mergulhada na escuridão, à parte o altar-mor e uma capela lateral consagrada à Virgem. Era uma igreja muito suja e muito velha: as cadeiras de palha, todas desarrumadas, tinham ficado na mesma confusão em que os fiéis as tinham deixado ao sair. Fazia lembrar que tivessem abandonado com alívio, bem mais do que uma missa, uma macadora reunião.

Uma fraca luz bruxuleante que tombava da lanterna da cúpula revelava a poeira das pedras e as esfoladelas brancas do reboco amarelo das colunas a fingir de mármore. Numerosas promessas de prata em forma de coração chamejavam suspensas nas paredes umas contra as outras, provocando uma impressão melancólica. No entanto, o ar estava impregnado de um velho cheiro a incenso que me encorajou. Rapariguinha, tinha a sorvido muitas vezes este cheiro, e as recordações que ele me suscitava eram agradáveis e inocentes. Tive, por isso, a impressão de me encontrar num sítio familiar, e, se bem que entrasse pela primeira vez naquela igreja, pareceu-me que sempre a frequentara.

Mas antes de me confessar quis ir à capelinha lateral onde tinha entrevisto uma imagem da Virgem. Eu tinha sido desde o meu nascimento votada à Virgem Santa; minha mãe dizia que eu era parecida com Ela, com os meus olhos negros e doces. Sempre amei a Nossa Senhora porque Ela tinha o Seu filho nos braços e porque este filho feito homem Ih'O tinham morto; e Ela, que O pôs no mundo e O amou como se ama um filho, muito deve ter sofrido vendo pregarem-lh'O na cruz. Muitas vezes pensava que a Virgem, que tinha sofrido tanto, era a única capaz de compreender os meus pesares; e, quando era pequena, só a Ela queria rezar, porque só Ela estava à altura de me ouvir.

Depois, a Virgem agradava-me porque me parecia extremamente diferente de minha mãe, serena, tranquila como era, ricamente vestida, com olhos que se fixavam em mim afectuosamente.

Parecia-me que era Ela a minha verdadeira mãe, e não a minha, sempre ríspida e mal vestida.

Ajoelhei-me, pois, tomei a cara entre as mãos, e de cabeça baixa fiz uma longa oração à Virgem, pessoalmente para lhe pedir perdão pelo que tinha feito e para invocar a sua protecção para mim, para minha mãe e para Gino. Em seguida lembrei-me de que a ninguém devia guardar rancor e pedi a Sua protecção também para Gisela, que me traíra, para Ricardo, que por estupidez tinha ajudado Gisela, e mesmo até para Astárito.

Rezei por Astárito mais tempo que pelos outros, porque experimentava um ressentimento à sua recordação e queria anular esse mau sentimento, gostando dele como gostava dos outros, perdoando-lhe e esquecendo todo o mal que me havia feito. Acabei por me sentir tão comovida que as lágrimas me vieram aos olhos. Levantei os olhos para a imagem da Virgem sobre o altar; as lágrimas faziam como um pequeno véu e a imagem parecia-me vacilante e bruxuleante como se a visse debaixo de água; os círios que brilhavam à sua volta faziam uma poeira dourada, doce à vista mas amarga também, como por vezes as estrelas que se deseja tocar e se sabe que estão muito longe. Fiquei muito tempo olhando a Virgem quase sem A ver; em seguida, as lágrimas rolaram pela minha cara com um formigueiro amarbo; então vi a Virgem com o Seu Menino nos braços, que me olhava, o rosto iluminado pela chamazinha dos círios. Tive a impressão de que era com simpatia e compaixão que Ela me olhava; agradeci-Lhe com todo o meu coração, e depois. levantando-me e já serena, fui-me confessar.

O confessionário estava vazio; mas enquanto tomava alento procurando com os olhos um padre, vi alguém sair por uma pequena porta à esquerda do altar-mor, passar em frente do altar fazendo uma genuflexão e, persignando-se, dirigir-se para o outro lado. Era um frade, não percebi bem de que ordem. Enchi-me de coragem e chamei-o em voz baixa. Ele voltou-se e veio logo ao meu encontro. Quando se aproximou vi que era um homem ainda novo, alto e forte, com um rosto fresco, rosado e viril, enquadrado por uma ligeira barba loura, olhos azuis e uma testa alta e branca. Pensei quase involuntariamente que era um homem magnífico, como é raro encontrar-se, não só numa igreja mas até cá fora, e senti-me feliz por me ir confessar a ele. Disse-lhe o que desejava em voz baixa; ele, com um ligeiro sinal de assentimento, acompanhou-me até ao confessionário.

Entrou e eu ajoelhei-me em frente da grade. Uma placazinha pregada sobre o confessionário indicava o nome do padre: Élie; este nome ainda me inspirou mais confiança; entrou, ajoelhou-se, fez uma breve oração e perguntou:

— Há muito tempo que não se confessa?

— Há quase um ano — respondi.

— É muito tempo… muito tempo… Porquê?

Notei que falava mal o italiano, carregando muito os erres como fazem os franceses. Dois ou três erros que cometeu pronunciando à italiana palavras estrangeiras fizeram-me compreender que era efectivamente francés. O facto de ser estrangeiro agradou-me também, sem eu saber verdadeiramente porquê. Talvez porque quando se faz qualquer coisa a que se dá importância tudo o que nos parece insólito apresenta-se-nos como um bom agoiro.

Disse-lhe que a longa história que lhe iria contar lhe explicaria o motivo das interrupções das minhas confissões.

Após um curto silêncio, perguntou-me o que tinha para lhe dizer. Então, com muito entusiasmo e confiança, contei-lhe as minhas relações com Gino, a minha amizade com Gisela, o passeio a Viterbo e a chantagem de Astárito. Enquanto falava não me podia impedir de pensar no efeito que lhe fariam as minhas confidências. Este não era um padre como os outros; o seu aspecto altivo, com ar de homem do mundo, levava-me a perguntar quais as razões que o teriam levado a tornar-se frade. Pode parecer estranho que depois da extraordinária emoção que a minha prece à Virgem me provocara, eu me pudesse distrair ao ponto de me interessar pelo meu confessor; mas não vejo contradição entre esta curiosidade e esta emoção. Elas vinham do fundo da minha alma, onde a devoção e a coquetterie, a aflição e a sensualidade, faziam uma indissolúvel mistura.

Embora pensasse nele como acabo de dizer, experimentava uma doce consolação e uma avidez reconfortante por contar tudo. Tinha a impressão de me afastar cada vez mais da pesada angústia que me tomara, como uma flor ressequida que recebe enfim as primeiras gotas de chuva. Comecei por me exprimir penosamente, com hesitações, depois falei correntemente, e por fim a minha sinceridade era veemente e cheia de esperança.

Nada omiti, nem mesmo o dinheiro que recebera de Astárito, os sentimentos que essa oferta me tinham inspirado e o uso que tencionava fazer ele. Ouviu-me sem fazer nenhum comentário. Quando acabei declarou :

— Para evitar uma coisa que lhe parecia um prejuízo, quer dizer, o rompimento do seu noivado, acedeu a praticar uma acção mil vezes mais grave para si própria…

— É verdade — disse-lhe, palpitante e contente por os seus dedos delicados me abrirem a alma.

— Na realidade — continuou ele, como se falasse consigo próprio —, o vosso noivado nada tem a ver com isto… Entregando-se a esse homem cedeu apenas a um impulso de avidez.

— É verdade! É verdade!

— Pois bem! Era preferível que o vosso noivado se desmanchasse a ter feito o que fez.

— Também eu penso assim!

— Não basta pensá-lo. Agora vai casar, é verdade, mas por que preço? Nunca poderá ser uma esposa honesta.

Estas palavras duras e inflexíveis atingiram-me. Explodi num grito de angústia:

— Ah! Por isto não! — disse-lhe. — Para mim é como se absolutamente nada se tivesse passado. Estou certa de que serei uma esposa honesta!

A sinceridade da minha resposta deve ter-lhe agradado. Fez uma grande pausa e depois repetiu com uma voz mais doce:

— Sente um arrependimento sincero?

— Ah! Sim! — respondi impetuosamente.

De repente, tive a ideia de que ele me iria impor a devolução do dinheiro a Astárito. Se bem que já sentisse a pena que me fazia devolver-lho, nem sequer me passou pela cabeça desobedecer-lhe, sobretudo porque a ideia viria dele, o que me agradava e me subjugava de uma maneira singular. Mas, sem fazer a menor alusão ao dinheiro, ele continuou, na sua voz fria e distante, à qual a sua pronúncia estrangeira dava apesar de tudo um acento afectuoso:

— Agora vai casar o mais depressa possível… Regularizar a sua situação. Deve dizer ao seu noivo que não podem continuar a encontrar-se assim.

— Já lhe disse.

— E que respondeu ele?

Não pude deixar de sorrir ao pensar no belo rapaz louro que me fazia esta pergunta do fundo do confessionário escuro.

Respondi, não sem esforço:

— Disse-me que nos casaríamos na Páscoa.

— Era melhor que casassem já… — disse-me, depois de um momento de reflexão.

E desta vez tive verdadeiramente a impressão de que não era um padre quem me falava, mas um homem do mundo, cortés, um pouco aborrecido por ter de se ocupar dos meus assuntos.

— Vem longe a Páscoa !

— Não podemos antes… Tenho de fazer o enxoval e ele tem de ir à terra para falar aos pais.

— Seja como for — continuou ele —, tem de casar o mais depressa possível, e até ao dia do casamento deve interromper completamente todas as relações carnais com o seu noivo… É um grande pecado! Percebeu?

— Está bem — prometi.

— Promete? — perguntou como se duvidasse. — De qualquer maneira, fortifique-se contra as tentações pela oração. Procure rezar.

— Sim… Rezarei.

— Quanto a esse outro homem — prosseguiu —, nunca mais o deve tornar a ver, seja a que pretexto for… Isso não lhe deve ser difícil, visto não gostar dele… Se ele insistir e se a procurar, não o receba.

Respondi-lhe que o faria. Então, depois de algumas recomendações pronunciadas com voz fria e reticente e ao mesmo tempo tão agradável de escutar devido ao seu acento estrangeiro e à cortesia que dele emanava, ordenou-me como penitência que recitasse todos os dias um certo número de orações e deu-me a absolvição. Mas antes de ma conceder quis que eu rezasse um padre-nosso com ele. Aceitei com alegria porque era de má vontade que me ia embora e porque ainda não me tinha saciado da sua voz.

— Pai Nosso que estais nos Céus — disse ele.

E eu repeti.

— Pai Nosso que estais nos Céus…

— Venha a nós o Vosso Reino…

— Venha a nós o Vosso Reino…

— Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu…

— Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu…

— O pão nosso de cada dia nos dai hoje…

— O pão nosso de cada dia nos dai hoje…

— Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores…

— Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores…

— Não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo o mal…

— Não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo o mal…

— Amen.

— Amen.

Transcrevo inteiramente oração para reviver o sentimento que experimentei ao recitá-la com ele: a impressão de ser muito pequenina e de que ele me conduzia pela mão de uma frase à outra. Mas, entretanto, eu pensava no dinheiro que me tinha dado Astárito e sentia-me quase decepcionada porque ele não me tinha imposto que o devolvesse. Com efeito, eu teria desejado que ele mo tivesse ordenado para lhe dar uma prova concreta da minha boa vontade, da minha obediéncia e do meu arrependimento, e poder fazer por ele uma coisa que era para mim um real sacrifício. Acabada a oração, levantei-me. Ele também saiu do confessionário e fez menção de se ir embora sem me olhar. Era justo, visto que me tinha feito um ligeiro cumprimento com a cabeça. Então, quase sem querer e sem reflectir, puxei-lhe a manga do hábito. Parou e fixou-me com os seus olhos azuis-claros, frios e serenos. Pareceu-me ainda mais belo, mil ideias loucas me atravessaram o espírito.

Sonhei que poderia amá-lo; pensei na maneira de lhe mostrar que ele me agradava. Mas ao mesmo tempo a voz da minha consciéncia advertiu-me de que estava na igreja, que este homem era um padre e o meu confessor. Todas estas ideias e estas lutas me atacaram ao mesmo tempo, produzindo no meu espírito uma grande confusão: senti-me por momentos incapaz de falar. Então, depois de uma espera razoável, ele perguntou-me:

— Queria dizer-me mais alguma coisa?

— Queria saber — disse eu — se devo restituir o dinheiro àquele homem.

Lançou-me um rápido olhar, mas directo e que me atingiu até ao fundo da alma; depois, disse com brevidade:

— Faz-lhe muita falta?

— Faz, sim.

— Então pode guardá-lo. Mas proceda segundo a sua consciéncia.

Disse estas palavras num tom seco, como para me indicar que nada mais havia a dizer, e eu balbuciei um “obrigada” sem sorrir, olhando-o fixamente nos olhos. Realmente, naquele momento tinha perdido a cabeça; esperava talvez que, de uma maneira ou de outra, por um sinal ou por ama palavra, ele me fizesse compreender que eu não lhe era indiferente. Ele sentiu com certeza a intenção do meu olhar: ligeiro clarão de espanto passou no seu rosto. Esboçou um cumprimento, voltou-me as costas e partiu, deixando-me junto do confessionário confusa e cheia de perturbação.

Nada disse a minha mãe da minha confissão, como nada lhe tinha dito sobre o passeio a Viterbo. Eu sabia que ela tinha a respeito dos padres e da religião ideias bem determinadas.

“Eram — dizia ela — coisas muito belas; mas, entretanto, os ricos continuavam ricos e os pobres pobres ficavam.” — “Por aí se vê — concluía — que os ricos sabem rezar melhor do que nós”.

As ideias da minha mãe sobre religião eram as mesmas que sobre a família e o casamento; fora piedosa e praticante e tudo lhe tinha corrido mal; por isso já não acreditava. Quando uma vez lhe disse que a nossa recompensa estava no outro mundo, ela enfureceu-se e declarou-me que a recompensa a queria já e neste mundo e que se não a tinha era porque “tudo isso não passava de mentiras”! Contudo, tendo começado por ser piedosa, ela tinha-me dado, como já disse, uma educação religiosa. Só no decorrer dos últimos anos é que mudara de ideias.

No dia seguinte de manhã, quando entrei para o carro de Gino ele disse-me que os patrões tinham ido para fora por alguns dias e nós podíamos encontrar-nos na moradia. O meu primeiro movimento foi de alegria, porque — julgo já o ter dito — amar agradava-me e gostava de fazer amor com Gino. Mas logo a seguir lembrei-me da promessa feita ao meu confessor e declarei:

— Não, não posso.

— Porquê?

— Porque não é possível!

— Está bem! — disse com um suspiro de condescendência. — Então será amanhã…

— Não… amanhã também não… nunca mais!

— Ah! Nunca mais! — repetia ele afectando assombro. — Nunca! Então penso que ao menos me irás dar uma explicação…

Tinha uma expressão desconfiada e ciumenta.

— Gino — disse-lhe muito depressa… — Amo-te… muito… Nunca te amei tanto como neste momento… Mas é justamente por te amar… que acho melhor que até ao dia do nosso casamento nada haja entre nós, e nada… quero dizer… que não tenhamos relações.

— Ah! Agora está tudo explicado! — declarou maldosamente. — Tens medo que eu já não queira casar contigo, hem?

— Não, estou certa de que casarás. Se eu tivesse essa desconfiança não fazia todos estes preparativos… Não teria gasto o dinheiro que a minha mãe levou toda a sua vida a pôr de lado.

— Oh! Como tu pões nos píncaros esse dinheiro da tua mãe! — disse-me.

Depois, tornando-se tão desagradável que nem o reconhecia:

— Então, porquê?

— Fui-me confessar e o meu confessor proibiu-me de ter relações contigo até que estejamos casados.

Ele fez um gesto de desapontamento e soltou uma exclamação de teve em mim o efeito de uma praga.

— Mas com que direito é que esse padre vem meter o nariz nas nossas coisas?

Preferi não lhe responder. Ele insistiu:

— Então, porque não respondes?

— Nada mais tenho para dizer.

Sem dúvida que eu lhe devia ter parecido inflexível, porque de repente, mudando de ideias, declarou:

— Está bem, está! Então queres que te leve outra vez para a cidade?

— Como quiseres.

Devo dizer que foi esta a única vez que ele foi pouco gentil e desagradável para mim. No dia seguinte parecia resignado e mostrou-se como sempre tinha sido: afectuoso, cortês e amável.

Continuámos a ver-nos todos os dias, como de costume; somente não nos possuíamos e limitávamo-nos a conversar. De tempo a tempo, dava-lhe um beijo, coisa que ele tinha resolvido nunca mais me pedir. Parecia-me que beijá-lo não era pecado, porque, no fim de contas, éramos noivos e casaríamos em breve.

Quando me recordo desses dias imagino que se Gino se resignou tão depressa a esse papel de noivo respeitador foi com a esperança de que as nossas relações arrefecessem gradualmente e lhe fosse possível levar as coisas a um rompimento definitivo. Depois de longos e extenuantes dias de noivado, acontece a muitas raparigas encontrarem-se livres sem outra perda que a da sua juventude evaporada. Com esta ordem do meu confessor, ofereci-lhe sem o saber o pretexto que ele procurava para relaxar as nossas relações. Como ele tinha um carácter egoísta e fraco, e como o prazer que lhe davam as nossas intimidades era mais forte do que a vontade de me abandonar, por ele nunca teria tido coragem para o fazer. Mas a intervenção do confessor permitiu-lhe adoptar uma solução hipócrita e aparentemente desinteressada.

Ao fim de algum tempo, começou a encontrar-se comigo menos frequentemente; não todos os dias, mas dia sim dia não. Percebi que o trajecto dos nossos passeios de automóvel encurtava gradualmente e que ele cada vez dava menos atenção às minhas conversas sobre o casamento. Mas, mesmo dando-me conta, embora obscuramente, de todas estas mudanças de atitude, de nada suspeitava, não só porque estas mudanças se iam processando quase insensivelmente, mas também porque ele continuava a portar-se comigo da forma habitual: afectuoso e gentil. Um dia, por fim, tomou um ar contrito e anunciou-me que, por razões de família, a data do nosso casamento tinha de ser adiada.

— Isso contraria-te muito? — acrescentou, ao verificar que eu não comentara a novidade e me limitava a olhar em frente, com um ar amargo e sonhador.

— Não, não! — disse contendo-me. — Não tem importáncia… paciência… assim terei tempo de acabar o meu enxoval.

— É absolutamente falso! Contraria-te e muito! Ele tinha curiosidade em saber até que ponto o atraso do casamento me desgostava.

— Já te disse que não.

— Então se isso não te contraria, quer dizer que não me amas sinceramente e que no fundo talvez até não te contrariasse se não nos casássemos?

— Não digas isso! — proferi com pavor. — Para mim seria uma coisa terrível! Nem quero pensar!

Nesse mesmo momento não compreendi a expressão que o seu rosto tomou. Com efeito, ele quis ver até que ponto eu ainda estava interessada nele e percebeu com grande desapontamento que o meu sentimento por ele era ainda muito forte.

Se o adiamento do meu casamento não levantou suspeitas no meu espírito confirmou a impressão de minha mãe e de Gisela. Minha mãe não fez comentários imediatos; isso acontecia-lhe às vezes, e esta atitude era estranha, atendendo ao seu carácter impulsivo e violento. Mas uma noite, depois de me servir o jantar, como habitualmente, de pé, em silêncio, eu fiz já não sei bem que alusão ao meu casamento. Então ela declarou:

— Tu sabes como chamavam no meu tempo às raparigas, como tu, que estão sempre à espera de se casar e nunca o conseguem?

Empalideci e o meu coração deixou de bater.

— Como? — perguntei-lhe.

— A rapariga da despensa! — disse calmamente minha mãe. — Ele guarda-te na despensa como um resto de carne assada… Em determinada altura, à força de estar guardada na despensa, a carne estraga-se. Então, deita-se fora!

Tive um acesso de raiva e gritei:

— Não é verdade! Apesar de tudo, é a primeira vez que nós adiamos… e apenas por alguns meses… A verdade é que tu detestas o Gino por ele não ter dinheiro e ser chauffeur.

— Eu não detesto ninguém.

— Sim, tu detesta-o… e também te arrependeste de teres dado o teu dinheiro para o nosso quarto. Mas não tenhas medo…

— Minha filha, o amor torna-te idiota!

— Não tenhas medo — disse eu. — Todas as coisas que faltam ele as pagará… e serás reembolsada das que comprámos com o teu dinheiro. Olha!

E, levada pela minha exaltação, abri a mala e mostrei as notas que Astárito me tinha dado.

— É dinheiro dele! — continuei.

Estava tão doida por ele que ao dizer estas mentiras quase tinha a impressão de que era verdade.

— Foi ele quem me deu estas notas, e ainda tem mais! O seu olhar caiu sobre o dinheiro; o seu rosto tomou uma expressão tão arrependida e vexada que me encheu de remorsos. Havia já muito tempo que não a tratava tão mal e ao mesmo tempo apercebia-me de que acabara de dizer uma mentira e que no fim de contas este dinheiro não tinha sido o Gino quem mo havia dado. Sem dizer uma palavra, levantou a mesa, levou os pratos e saiu. Vi-a de costas, de pé, em frente do lava-louça, passando os pratos por água e pondo-os um a um sobre o mármore, para que secassem. Com a cabeça baixa e os ombros ligeiramente curvados, inspirou-me uma violenta piedade.

Impetuosamente, deitei-lhe os braços à roda do pescoço e desculpei-me :

— Perdoa ter-me excedido nas coisas que te disse. Não as pensei… Mas quando começas a falar de Gino fazes-me perder a cabeça.

— Então! Então! Deixa-me! — dizia fingindo esforçar-se por se desembaraçar de mim.

— É preciso que compreendas — acrescentei com paixão. — Se Gino não casa comigo… mato-me ou “vou fazer a vida”!

Gisela acolheu a noticia do adiamento do meu casamento pouco mais ou menos como minha mãe. Estávamos no seu quarto mobilado: eu, toda vestida, sentada na borda da cama, ela, em camisa, sentada diante do toucador, a pentear-se. Deixou-me falar até ao fim, sem fazer comentários, depois disse-me, triunfante e calma:

— Verás que eu tinha razão!

— Porquê?

— Ele não quer casar contigo, nem casará… Por agora não é na Páscoa, é no Dia de Todos-os-Santos. Do Dia de Todos-os-Santos passará para o Natal… Um belo dia, acabarás tu própria por compreender, e serás tu a deixá-lo.

Estas palavras faziam-me pena e tornavam-me furiosa. Mas, num certo sentido, eu já me tinha vingado na minha mãe. E depois, se eu tivesse dito o que pensava, teria que cortar relações com Gisela, e eu não o queria fazer, porque apesar de tudo era a minha única amiga. Ter-lhe-ia respondido que ela não queria que eu me casasse porque sabia que Ricardo nunca casaria com ela. Esta era a verdade, mas uma verdade muito dura de ouvir, e não me parecia justo ferir Gisela unicamente porque, logo que ela me falava de Gino, se deixava levar — talvez com sentido de defesa — por um vil sentimento de inveja e ciúme. Limitei-me pois a retorquir-lhe :

— Queres que nunca mais falemos disto? A ti, no fundo, que te importa que eu me case ou não? E a mim não me dá prazer voltar ao assunto.

Gisela levantou-se bruscamente do toucador e veio sentar-se na cama, ao meu lado:

— Que me importa a mim, dizes tu? — protestou com vivacidade.

Depois, passando-me o braço em volta da cintura:

— A mim, pelo contrário, faz-me raiva que te pretendam prejudicar!

— Mas isso não é verdade! — disse eu em voz baixa.

— Queria ver-te feliz — prosseguiu.

Calou-se um momento, depois perguntou, como que por acaso:

— A propósito… Astárito atormenta-me constantemente para te tornar a ver… Diz que não pode viver sem ti… Está realmente preso… Queres marcar-lhe um encontro?

— Não me fales de Astárito! — respondi-lhe.

— Reconheceu que se portou mal contigo, naquele dia, em Viterbo — continuou — mas no fundo ama-te e está pronto e reparar a sua falta de correcção.

— A única maneira que ele tem de a reparar é nunca mais me aparecer!

— Vamos! Vamos! Além disso, é um homem sério e que te ama muito… Ele quer absolutamente ver-te, falar-te… Porque não se encontram vocês num café, por exemplo, na minha presença?

— Não! — disse eu com decisão. — Não o quero tornar a ver.

— Vais arrepender-te.

— Vai tu com ele… com o Astárito!

— Eu? Ia já, minha filha! É um homem generoso, que não olha ao dinheiro… Mas é a ti que ele quer… realmente uma ideia fixa.

— Está bem! Mas eu nada quero dele.

Insistiu ainda muito a favor de Astárito, mas não me deixei convencer. No cúmulo do meu desejo desesperado de me casar e de ter família, estava firmemente decidida a não me deixar seduzir, nem pela razão, nem pelo dinheiro. Tinha esquecido até o frémito de prazer que Astárito me tinha provocado quando me introduzira à força aquele dinheiro na mão quando regressávamos de Viterbo. Como aconteceu frequentemente, era justamente porque receava que Gisela e minha mãe tivessem razão e que, por um motivo ou por outro, o meu casamento não se realizasse, que eu me agarrava à ideia desse casamento com uma esperança ainda mais forte e encarniçada.

6

Enquanto esperava, tinha pago todas as prestações dos meus móveis e pusera-me a trabalhar mais que nunca para ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manhã posava no atelier e à tarde fechava-me no grande quarto com minha mãe para trabalhar até à noite. Ela cosia à máquina junto da janela, e eu, sentada à mesa, ao pé dela, cosia à mão. Minha mãe tinha-me ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu desde o princípio me mostrara muito jeitosa e rápida. Havia sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e tão em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para homem era a nossa especialidade, mas às vezes acontecia ter de confeccionar qualquer camisa ou combinação ou cuecas de mulher, sempre coisas vulgares, não só porque minha mãe não seria capaz de fazer coisas delicadas, mas também porque não conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o meu espírito perdia-se em divagações sobre Gino, o casamento, o meu passeio a Viterbo, minha mãe — a minha vida, em suma —, e o tempo passava depressa. O que pensava minha mãe nunca o soube, mas era bem certo que o seu cérebro estava ocupado, porque, enquanto trabalhava à máquina, tinha de tempo a tempo uma expressão furiosa, e se eu lhe falava nessa altura respondia-me mal. Para a noite, quando começava a escurecer, eu limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim própria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque desejava ardentemente qualquer coisa que considerava próxima e possível. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem quando, já não há esperança; torna-se então inútil passar bem ou mal e de nada se precisa.

Mais de uma vez, no decurso deste período, apercebi-me de que Astárito me seguia na rua. Ia para o atelier de manhã muito cedo. Habitualmente Astárito, imóvel, num vão de escada, no outro lado da rua, esperava que eu saísse. Nunca atravessava e enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praça. junto das casas, ele limitava-se a seguir-me do outro lado, mais devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso bastava-lhe: era bem a imagem de um homem perdidamente apaixonado. Quando eu chegava à praça, ele ia postar-se na paragem do eléctrico fronteira àquela em que eu estava.

Continuava a observar-me, mas se eu deitava uma olhadela para o seu lado isso bastava para que disfarçasse e olhasse para a frente, fingindo interessar-se pela chegada do meu eléctrico.

Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor como aquele; embora firmemente decidida a não lhe tornar a falar, experimentava por vezes uma espécie de compaixão lisonjeada. Depois Gino chegava no carro, ou às vezes no eléctrico. E quando eu subia, fosse para o automóvel, fosse para o eléctrico, Astárito ficava no seu refúgio a ver afastar-me.

Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala grande e encontrei Astárito, de pé, o chapéu na mão, apoiado à mesa e conversando com minha mãe. Quando o vi em minha casa, à ideia de tudo o que ele poderia ter dito à minha mãe para a persuadir a intervir a seu favor, esqueci toda a compaixão e fui tomada de raiva.

— Que faz o senhor aqui? — perguntei.

Olhou-me e vi na sua cara a mesma expressão convulsa e trémula que tivera no carro quando íamos a caminho de Viterbo e me dissera que eu lhe agradava. Mas desta vez ele nem conseguia falar.

— Este senhor diz que te conheceu e que queria cumprimentar-te — começou minha mãe em ar confidencial.

Pelo seu tom compreendi que Astárito lhe falara exactamente no sentido que eu pensava e que talvez até mesmo lhe tivesse dado dinheiro.

— Tu — declarei a minha mãe — vais fazer o favor de te retirares!

A minha voz, quase selvagem, assustou-a: saiu, sem dizer palavra, para o lado da cozinha.

— Que faz o senhor aqui? — disse de novo a Astárito. Vá-se embora!

Olhou-me, pareceu mover os lábios, mas nada disse. Tinha os olhos revirados sobre as pálpebras, vendo-se quase o branco; cheguei a pensar que fosse desmaiar.

— Vá-se embora! — repeti, batendo com o pé no chão. Ou então chamo gente… Chamo um dos meus amigos que mora cá em baixo.

Muitas vezes depois perguntei a mim mesmo porque não fizera Astárito chantagem pela segunda vez: porque não me teria ele ameaçado, se eu não cedesse, de contar a Gino o que se tinha passado em Viterbo. Esta chantagem seria doravante muito mais bem sucedida, pois que me tinha de facto possuído, e havia testemunhas que não me permitiriam negar. Concluí que da primeira vez me tinha apenas desejado, mas que da segunda era realmente impelido pelo amor. O amor quer ser retribuído, e se Astárito me amava devia sentir quanto era insuficiente para ele possuir-me como naquele dia em Viterbo, muda, inerte, como morta. Por outro lado, daquela vez eu estava bem decidida a declarar a verdade; depois de tudo, se Gino me amava, devia compreender e perdoar-me. A minha atitude resoluta convenceu certamente Astárito da inutilidade de segunda chantagem.

A minha ameaça de chamar gente nada respondeu, mas pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta. Quando chegou perto, baixou a cabeça e pareceu recolher-se um momento, para falar. Levantou os olhos para mim remexendo os lábios, mas toda a coragem pareceu abandoná-lo; olhou-me fixamente e ficou mudo.

Este segundo olhar pareceu-me muito longo. Acabou por esboçar com a cabeça um cumprimento e saiu fechando a porta.

Fui depois, furiosa, à cozinha e perguntei a minha mãe:

— Que disseste a esse homem?

— Eu? Nada! — respondeu ela, assustada. — perguntou-me a que género de trabalho nos entregávamos e disse-me que queria mandar fazer umas camisas.

— Se vais a casa dele, mato-te — gritei-lhe.

Olhou-me com olhar apavorado e respondeu:

— Não é preciso lá ir! Pode muito bem mandar fazer as suas camisas a outra pessoa!

— Não te falou de mim?

— Perguntou-me quando te casavas.

— E tu, que lhe respondeste?

— Que te casavas em Outubro.

— Não te deu dinheiro?

— Não. Porquê? — perguntou fingindo admiração. — Devia dar-mo?

Pelo tom da sua voz adquiri a convicção de que Astárito lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segurei-lhe violentamente o braço.

— Diz a verdade! Ele deu-te dinheiro! — gritei-lhe.

— Não. Não me deu.

Ela conservava a mão no bolso do avental. Apertei-lhe o pulso com uma violência terrível e vi saltar do bolso ao mesmo tempo que a mão uma nota de banco dobrada em duas. Assim que a deixei, ela curvou-se para a apanhar com uma tal avidez, uma tal cobiça, que a minha fúria cessou. Lembrei-me da emoção e da felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de Astárito em Viterbo. Senti que não tinha o direito de condenar minha mãe por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e ceder às mesmas tentações. Naquela altura teria preferido nada ter perguntado, nem ter visto aquela nota.

Limitei-me a observar com voz normal:

— Afinal, sempre to tinha dado!

E sem esperar mais explicações saí da cozinha. Ao jantar, algumas suas alusões fizeram-me compreender que desejava tornar a falar de Astárito e do dinheiro. Mas eu desviei a conversa e ela não insistiu.

No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo à pastelaria onde habitualmente nos encontrávamos. Ainda não se tinha sentado e já me dizia sem mais preâmbulos:

— Hoje tenho de falar-te de uma coisa muito importante.

Uma espécie de pressentimento obrigou-me a olhá-la exangue.

— Se é uma má notícia — supliquei-lhe com voz branda — peço-te que não ma dês.

— Não é boa, nem é má — respondeu vivamente. — É uma notícia… eis tudo. Já te disse que Astárito…

— Não quero ouvir falar mais de Astárito.

— Mas ouve… não sejas criança. Pois, como te disse, o Astárito é um homem importante… um graúdo da polícia e da política.

Senti-me um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de política.

Declarei sem esforço:

— Mesmo que esse Astárito fosse ministro, para mim era a mesma coisa!

— Uff! Como tu és… Ouve em vez de me interromperes! — declarou Gisela. — Astárito disse-me que era absolutamente necessário que fosses ter com ele ao ministério… precisa de falar-te… mas não de amor — acrescentou rapidamente. — Precisa de falar-te de uma coisa muito importante… De uma coisa que te diz respeito.

— Que me diz respeito?

— Sim… é para teu bem… pelo menos foi o que ele me disse.

Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite de Astárito, apesar de todas as minha resoluções contrárias? Nem eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:

— Está bem. Irei.

Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha passividade.

Foi então que se apercebeu da minha palidez e do meu ar assustado:

— Que tens? — disse-me. — Porque é da polícia? Mas nada tem contra ti! Nenhuma intenção tem de te prender.

Levantei-me, embora me sentisse vacilante.

— Está bem — repeti. — Irei; qual é o ministério?

— O Ministério do Interior. Mesmo em frente do Supercinema. Mas ouve…

— A que horas?

— Por toda a manhã… Mas ouve…

— Até logo.

Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixão, não atingia o que Astárito me podia querer, mas um pressentimento que me parecia infalível dizia-me que nada podia ser de bom. O lugar onde me tinha chamado fez-me supor que o assunto devia ter alguma ligação com a polícia. Por outro lado, eu sabia, como sabem todos os pobres, que logo que a polícia se mete nalguma coisa nunca é por bem. Depois de examinar minuciosamente a minha conduta, acabei por concluir que Astárito queria exercer sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informação que obtivera sobre a vida de Gino. Eu não conhecia a vida de Gino; era possível que ele se tivesse comprometido politicamente.

Nunca me ocupara de política, mas não era parva a ponto de ignorar que havia muita gente que não suportava o regime fascista e que homens da profissão de Astárito eram precisamente encarregados de dar caça a esses inimigos do governo. A minha imaginação pintava de cores negras o dilema diante do qual Astárito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A minha angústia baseava-se no facto de eu não querer de modo algum ceder a Astárito, mas tão-pouco permitir que metessem Gino na prisão. Quando fazia estas reflexões não experimentava qualquer compaixão por Astárito; odiava-o, simplesmente. Parecia-me um homem desprezível e baixo, indigno de viver, que era preciso punir impiedosamente! Entre outras soluções, a ideia de matar Astárito vinha-me com facilidade ao espírito. Mas, mais do que uma solução, era uma divagação mórbida da insónia; e de facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em decisões objectivas e firmes, acompanhou-me até ao romper do dia. Via-me a pôr na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda com que minha mãe descascava as batatas; procurar Astárito; ouvia-o dizer-me o que eu imaginara e com toda a força do meu braço forte cravava-lhe a minha faca no pescoço, entre a orelha e o seu alto colarinho de goma. Imaginava-me a sair da sala, fingindo a maior calma e correr a refugiar-me em casa de Gisela, ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo ardendo nestas visões sanguinárias, sabia que nunca seria capaz de fazer uma coisa semelhante; tenho horror ao sangue; tive sempre horror em fazer mal aos outros, e o meu carácter leva-me mais a submeter-me à violência que a cometê-la.

De madrugada dormitei um pouco. O dia nasceu; levantei-me e dirigi-me ao meu encontro habitual com Gino. Logo que nos encontrámos na nossa avenida dos arredores, depois de algumas palavras de conversa, esforcei-me por dar à minha voz uma entoação banal e perguntei:

— É verdade… nunca te interessaste por política?

— Por política? Que queres dizer?

— No sentido de ter feito qualquer coisa contra o governo?

Olhou-me com um ar de entendimento e perguntou por sua vez:

— Mas diz-me lá, achas que eu tenho ar de cobarde?

— Não, mas…

— Responde primeiro. Tenho ar de cobarde?

— Não — respondi-lhe —, nada disso me pareces. Somente…

— Então por que diabo queres tu que me ocupe de política?

— Não sei. É que muitas vezes…

— Não comigo. A esses que te insinuaram isso podes dizer-lhes que Gino Molinari não é um cobarde.

Próximo das onze horas, depois de ter rondado mais de uma hora em volta do Ministério sem me decidir a entrar. apresentei-me ao contínuo e perguntei por Astárito. Primeiro subi uma comprida escada de mármore, depois outra escada mais pequena, mas também comprida, depois, por largos corredores, acompanhou-me a uma antecâmara para onde davam três portas.

Estava habituada a ligar à palavra polícia a visão de locais minúsculos e repugnantes de comissariados de bairros; fiquei estupefacta com o luxo das repartições onde trabalhava Astárito. A antecâmara era um verdadeiro salão, com o chão de mosaico e velhos quadros nas paredes, como eu estava habituada a ver nas igrejas; grandes sofás estavam dispostos ao longo da parede e o centro era ocupado por uma mesa maciça.

Intimidada por tanto luxo, não pude deixar de pensar que Gisela tinha razão: Astárito devia ser realmente uma pessoa importante. E esta importância de Astárito foi-me bruscamente confirmada por um facto inesperado. Tinha acabado de me sentar quando uma das três portas se abriu e vi sair uma senhora muito alta e de uma grande beleza, mas muito nova, elegantemente vestida de preto, com um véu sobre a cara.

Astárito seguia-a. Julgando que chegara a minha vez, levantei-me. Astárito, fazendo-me um gesto com a mão, para me indicar que já me vira mas que ainda não era a minha altura, continuou a conversar com a senhora no limiar da porta. Em seguida, depois de a ter acompanhado até ao meio da sala e de se ter despedido dela inclinando-se e beijando-lhe a mão, fez um sinal para chamar outra pessoa que estava sentada ao meu lado na antecámara; um velhote de lunetas e barbicha branca, todo vestido de preto, que tinha aspecto de professor. Ao sinal de Astárito levantou-se logo, servil e submisso, e precipitou-se para ele. Os dois homens desapareceram no gabinete e fiquei de novo só.

O que mais me impressionou no decurso desta breve aparição de Astárito foi a diferença entre os seus modos de agora e os que tivera durante o nosso passeio a Viterbo. Tinha-o visto nessa altura embaraçado, convulso, mudo, trémulo; agora aparecera-me extremamente senhor de si mesmo, cheio de presença, com um ar de superioridade ao mesmo tempo autoritária e discreta. Até mesmo a voz mudara. Durante o passeio falara-me em voz baixa, quente e estrangulada, e a sua voz enquanto falava à senhora do véu tinha um timbre claro, frio, amável e tranquilo. Estava vestido de cinzento-escuro, como de costume, com um alto colarinho de goma que dava à sua cabeça qualquer coisa de fixo; mas agora o fato e os colarinhos que eu notara no decurso do passeio sem me impressionar pareciam-me inteiramente de harmonia com o lugar: os móveis, maciços e severos, as vastas proporções da sala, o silêncio e a ordem que reinavam ali era como se tudo fosse um uniforme. “Gisela tinha razão — pensava eu de novo —, este deve ser realmente uma personagem de marca; só o amor pode explicar os seus modos embaraçados e o sentimento constante de inferioridade nas suas conversas comigo.” Estas observações fizeram-me esquecer a minha primeira atrapalhação, e quando, ao fim de alguns minutos, a porta se abriu para deixar sair o velho, sentia-me suficientemente segura de mim. Desta vez, porém, Astárito não apareceu à porta para me convidar a entrar. Uma campainha retiniu, um contínuo entrou no gabinete de Astárito, fechando a porta atrás dele, reapareceu, aproximou-se de mim e, informando-se do meu nome em voz baixa, disse-me que podia entrar. Levantei-me e avancei sem pressa.

O gabinete de Astárito era uma sala quase tão grande como a antecâmara. Esta sala estava vazia, à parte um divã e dois fauteuils de couro num canto, e noutro canto uma mesa atrás da qual Astárito estava sentado. Por duas janelas veladas por cortinas brancas entrava na sala um dia frio, sem sol, silencioso e triste, que me fez pensar na voz de Astárito a falar com a senhora do véu. Havia um grande tapete no chão e dois ou três quadros nas paredes. Lembro-me de que um deles representava um prado verde que se estendia até à linha do horizonte limitado por montanhas rochosas. Astárito, como já disse, estava sentado à mesa; quando entrei, levantou os olhos de uns autos que estava a ler ou fingindo que lia. Eu disse “fingindo” porque tive logo a seguir a certeza de que era uma comédia com o fim de me intimidar e de me fazer sentir a sua autoridade e a sua importância. Com efeito, quando me aproximei da mesa vi que a folha que examinava com tanta atenção não continha mais que três ou quatro linhas rabiscadas à pressa. De mais a mais, a mão em que apoiava a testa e que segurava o cigarro aceso com dois dedos revelava a sua perturbação por uma tremura bem visível. Esta tremura tinha feito mesmo cair um pouco de cinza sobre a folha que ele lia com uma atenção muito marcada e cheia de artifício.

Pousei a mão na borda da mesa e disse-lhe:

— Cá estou!

Como se estas palavras fossem um sinal, deixou de ler, levantou-se muito devagar e veio dar-me os bons-dias, pegando-me nas mãos. Mas tudo isto num silêncio que muito contrastava com a atitude autoritária que se esforçava por conservar. Na realidade, como depressa compreendi, só a minha voz foi suficiente para lhe fazer esquecer o papel que se preparara para representar, e a sua perturbação habitual tomou-o de novo irresistivelmente. Beijou-me as mãos, primeiro uma, depois outra, olhando-me com os olhos ávidos e melancólicos e fez mençâo de falar; mas os seus lábios tremeram e durante um momento guardou siléncio.

— Tu vieste! — disse por fim com a voz que eu conhecia, baixa e estrangulada.

Agora — talvez por contraste à sua atitude — sentia-me completamente descansada.

— Sim — disse-lhe —, vim. Na realidade não devia… Que tem para me dizer?

— Vem. Senta-te ali — murmurou.

Não me tinha largado a mão, que apertava com força. Levando-me pela mão, conduziu-me até junto do divã. Sentei-me, mas ele de repente ajoelhou-se diante de mim, abraçou-me as pernas e apoiou a cabeça nos meus joelhos. Tudo isto em silêncio e tremendo de desejo. Apoiava a fronte com tal força contra mim que me fazia doer; depois de um momento de imobilidade, levantou a sua cabeça calva como se a quisesse entalar entre os meus joelhos. Então fiz menção de me levantar e disse-lhe:

— Tinha uma coisa importante para me dizer. Diga-me, senão vou-me embora.

A estas palavras levantou-se com grande esforço, sentou-se a meu lado, tomou-me a mão e murmurou:

— Não era nada… Queria tornar a ver-te.

Fiz novamente menção de me levantar; reteve-me e continuou:

— Sim… E depois queria dizer-te que é preciso que nos entendamos de vez.

— De que maneira?

— Amo-te! — disse vivamente. — Amo-te tanto! Vem viver para minha casa; serás a dona da casa… como se fosses a minha mulher. Comprar-te-ei vestidos, jóias, tudo o que quiseres…

Parecia ter perdido a cabeça; os lábios ficavam imóveis e como estendidos, as palavras saíam-lhe desordenadamente.

— Ah! Foi para isto que me fez vir aqui? — perguntei-lhe friamente.

— Não queres?

— Isso agora não está em causa!

Coisa estranha, depois desta resposta nada mais disse, mas largou a mão e, fascinando-me quase com o seu olhar desvairado e fixo, acariciou-me a cara como se quisesse reconhecer um desenho. Os seus dedos eram leves e eu sentia a sua tremura enquanto eles me contornavam a cara, da testa à face e da face à testa. Era um gesto de homem verdadeiramente apaixonado e tal é a força persuasiva do amor, mesmo quando não se lhe quer corresponder, que durante um momento senti-me quase impulsionada a dizer-lhe, por piedade, algumas palavras menos duras e menos definitivas. Mas ele não me deu tempo. A carícia acabou e ele levantou-se protestando, num curioso tom empolado e pedante, onde se notava ao mesmo tempo a perturbação do desejo e não sei que zelo inesperado:

— Espera… é verdade… tenho uma coisa importante para dizer-te.

Dito isto, foi à mesa e pegou num caderno encarnado. Foi a minha vez de me perturbar quando o vi avançar para mim com o fascículo na mão.

— Que é isso? — perguntei com um fio de voz.

— … é… — que coisa curiosa o tom da sua voz autoritária e oficial misturado com a excitação! — … é uma informação que diz respeito ao teu noivo.

— Ah ! — fiz eu.

E durante um instante, mortalmente assustada, fechei os olhos.

Astárito não deu por isso; folheou o caderno, cujas folhas rangiam com a sua agitação.

— Gino Molinari, não é?

— Sim.

— E vais casar com ele em Outubro, não é?

— Sim.

— Mas eu verifico que Gino Molinari é casado — continuou ele —, e, para ser mais preciso, com Antonieta Partini, filha de Emílio Partini e de Diomira Lavagne, há quatro anos, e que têm uma pequenita chamada Maria. Presentemente a mulher vive em Orvieto, em casa da mãe.

Eu não pronunciei palavra; levantei-me do divã e dirigi-me para a porta, Astárito ficou de pé, no meio da sala, com o caderno nas mãos. Abri a porta e saí.

Lembro-me de que logo que me encontrei na rua, naquele dia doce e enevoado de um Inverno ameno, tive a amarga mas certa impressão de que a minha existência — após uma interrupção às minhas aspirações de vida conjugal e aos meus preparativos — recomeçava a seguir o seu curso, como um rio, que, desviado por qualquer acidente, volta ao seu velho leito e recomeça a correr como dantes, sem novidade nem mudanças. Podia ser que esta impressão proviesse do facto de, no meu desvairamento, olhar à minha volta com olhos, de ora em diante, incertos e que a multidão, as lojas, os veículos, me aparecessem pela primeira vez depois de tantos meses com o seu aspecto impiedosamente normal; nem bonitos, nem feios, nem interessantes, nem insignificantes, exactamente como eles eram, tal qual deviam aparecer aos bêbados depois de lhes ter passado a embriaguez. Mas podia ser também, e era o mais provável, que a sensação proviesse da verificação de que a vida normal não eram os meus projectos de felicidade, mas sim o contrário, quer dizer, todas as coisas contrárias aos planos e aos programas, todas as coisas que se revelavam defeituosas e imprevisíveis, que provocam decepção e dor. Se assim era — e parecia-me bem que seria —, qualquer dúvida que, após uma bebedeira de alguns meses, eu ainda tivesse nessa manhã tinha revivido.

Tal foi a única ideia que me inspirou a falsidade de Gino. Não sonhei sequer condená-lo e tive a impressão de nenhum verdadeiro rancor alimentar por ele. Eu não fora lançada numa armadilha sem cumplicidade da minha parte; a recordação do prazer que sentira nos braços de Gino era demasiado recente para que não encontrasse, senão justificação, pelo menos desculpas para a sua mentira. Pensava que, cego pelo desejo, ele fora mais fraco que mau; que a falta, se a havia, estava na minha beleza, que fazia andar à roda a cabeça dos homens e os fazia esquecer todos os escrúpulos e o dever. Gino no fim de contas não era mais culpado que Astárito, salvo que ele recorrera à mentira, ao passo que Astárito preferira a chantagem. Os dois amavam-me tanto quanto era possível; certamente que, se tivessem podido, eles teriam usado, para me possuir, de meios lícitos e ter-me-iam assegurado a modesta felicidade que eu punha acima de tudo. Mas a fatalidade quisera que com a minha beleza eu tentasse os homens que não me podiam dar essa felicidade. Infelizmente, se era verdade que ele tinha sido realmente culpado, era bem certo que havia uma vítima, e que essa vítima era eu.

Pode ser que esta maneira de sentir pareça fraca depois de uma traição como a de Gino. Mas cada vez que eu era ofendida — e lembro-me de o ser muitas vezes pela minha pobreza, a minha inocência e o meu isolamento — experimentava sempre o desejo de desculpar o ofensor e esquecer o agravo o mais depressa possível. Se a ofensa determina em mim qualquer mudança, essa mudança não se manifesta nem na minha atitude nem no meu aspecto exterior: actua mais profundamente na minha alma, que se fecha mais, tal como uma carne sã com uma boa circulação sanguínea consegue por si, depois do ferimento, cicatrizar mais depressa. Mas as cicatrizes ficam: e as mudanças, embora inconscientes, da alma são sempre definitivas.

Foi o que me aconteceu com Gino. Não senti nem sequer um momento de rancor contra ele, mas compreendi que em mim própria muitas coisas se tinham subvertido e quebrado para sempre: a minha estima por ele, a minha esperança de arranjar uma família, a minha vontade de não ceder nem a Gisela nem a minha mãe, a minha fé religiosa, ou pelo menos o género de fé que tivera até ali: comparei-me a uma das minhas bonecas do tempo em que eu era rapariguinha: depois de as ter amachucado e martirizado durante todo o dia, a sua cara risonha e rosada ficava intacta e eis que um ruído de molas partidas vinha de dentro do seu corpo, com um chocalhar de mau agouro. Virava-as de cabeça para baixo, e então, pelo pescoço, via cair fragmentos de porcelana, as molas e as peçazinhas do mecanismo que as faziam falar, mexer os olhos, e também misteriosos bocadinhos de madeira e de fazenda dos quais nunca consegui descobrir a utilidade.

Aturdida mas tranquila, entrei em casa e fiz de tarde as mesmas coisas que habitualmente executava, sem dizer a minha mãe o que se tinha passado, não lhe confiando as conseqüências que esse facto me traria. Apercebi-me de que era impossível levar a dissimulação ao ponto de trabalhar no meu enxoval como nos outros dias; pegando nas peças prontas e nas que ainda tinha por acabar fui fechá-las à chave no armário do meu quarto. Minha mãe notou a minha tristeza, coisa rara em mim, que sou por hábito estouvada e alegre; mas disse-lhe que estava fatigada e era verdade. Ao entardecer, enquanto minha mãe cosia à máquina, larguei a minha costura, fui para o meu quarto e estendi-me em cima da cama. Reparei que olhava os meus móveis já pagos, e por mim, graças ao dinheiro de Astárito, com olhos bem diferentes dos de outrora, sem alegria e sem esperança. Não sentia dor, mas simplesmente a lassidão e a indiferença que se experimentam depois de um grande esforço completamente inútil. De resto estava fisicamente cansada; tinha os membros partidos. Invadiu-me um grande desejo de repousar.

Pensando vagamente nos meus móveis e na impossibilidade de agora em diante os usar como esperava, adormeci quase a seguir, deitada vestida sobre a minha cama. Dormi talvez umas quatro horas, com avidez, com um sono que me pareceu triste e sombrio; acordei muito tarde; chamei minha mãe com voz forte, do fundo da obscuridade que me rodeava. Ela acorreu logo e disse-me que não me tinha acordado porque eu estava a dormir um sono tranquilo e reparador.

— Há mais de uma hora que o jantar está pronto — continuou, permanecendo de pé, olhando-me. — Que queres fazer? Vens comer ou não?

— Não me apetece levantar! — respondi cobrindo os olhos com o braço porque a luz me feria a vista. — Porque não me trazes o jantar aqui?

Ela saiu e voltou logo a seguir trazendo o habitual jantar num tabuleiro. Pousou-o na borda da cama; levantei-me e comecei a comer molemente, apoiada no cotovelo. Minha mãe ficou de pé a olhar-me. Mas às primeiras garfadas deixei de comer e caí outra vez sobre a almofada.

— Então não comes mais? — perguntou-me minha mãe.

— Não tenho fome.

— Não te sentes bem?

— Estou bem.

— Então vou levar tudo outra vez — resmungou. Levantou o tabuleiro da cama e pousou-o sobre a mesa, ao pé da janela.

— Não me acordes amanhã de manhã — disse-lhe. passado um momento.

— Porquê?

— Porque resolvi não ser mais modelo; a gente cansa-se muito e ganha pouco.

— Mas então que vais fazer? — perguntou-me, inquieta.Eu não te posso sustentar!… Já não és criança e custas caro! Além disso, há muitas despesas… O enxoval…

Começava já a choramingar e a lamentar-se; então, sem tirar o braço da cara, articulei lenta e penosamente:

— Não me aborreças agora. Está sossegada, que dinheiro não vai faltar!

Seguiu-se um grande silêncio.

— De nada precisas? — acabou por perguntar, mortificada e zelosa, como uma criada de quarto a quem tivessem repreendido por excesso de familiaridade e quisesse fazer-se perdoar.

— Sim, faz-me um favor… Ajuda-me a despir… estou ainda tão cansada e com tanto sono!

Ela obedeceu. Sentando-se na cama começou por me tirar os sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama. Depois despiu-me o vestido e a combinação e ajudou-me a vestir a camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados.

Depois de estar debaixo da roupa, enrolei-me, puxei o lençol e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe dar-me as boas-noites do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora avançada do dia.

Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino; mas ao acordar apercebi-me de que não desejava vê-lo enquanto a minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento, como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento, e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava de Gino; mas não queria odiá-lo, porque pensava que juntaria ao prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim.

Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha preguiça, quase voluptuosa, e sentia-me menos triste que na noite anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria antes do meio-dia. Deixei-me ficar debaixo da roupa: foi o primeiro prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo privara-me dele; mas agora estava bem decidida a fazê-lo sempre que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter. Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário, pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom. Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradava-me muito, e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos. Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu desejasse.

Nessa manhã, pela primeira vez, considerava o meu corpo um meio cómodo de conseguir os objectivos que o trabalho sério nunca me permitiria alcançar.

Estes pensamentos ou, melhor, estes sonhos fizeram passar a manhã num relâmpago e admirei-me de ouvir os sinos da igreja vizinha anunciarem o meio-dia e vi um grande raio de sol que se infiltrava pela janela e pousava na minha cama. Tudo, como a minha preguiçosa manhã, os sinos e o raio de sol, me parecia um luxo inesperado e precioso. Nesse momento as belas senhoras ricas que habitavam nas casas iguais à dos patrões de Gino deviam mandriar assim e sonhar nas suas camas escutando os mesmos sinos e olhando com o mesmo espanto o mesmo raio de sol. Foi com a sensação de já não ser a Adriana necessitada e esfomeada do bairro, mas uma Adriana diferente, que por fim me levantei da cama para tirar a camisa de dormir diante do espelho do guarda-fato. Olhei-me toda nua e compreendi o orgulho da minha mãe quando dizia ao pintor: “Olhe este peito! Estas pernas! Estas ancas!” Pensei em Astárito, que o desejo destes seios, destas pernas e destas ancas fazia mudar de carácter, de maneiras e até de voz, e disse a mim própria que com certeza encontraria outros homens que para gozar o meu corpo me dariam muito dinheiro, até talvez mais do que ele.

Indolentemente, como me impunha a minha nova disposição, vesti-me, tomei um café e saí. Entrei um bar próximo de casa e telefonei para casa dos patrões de Gino. Ele tinha-me dado o número com a recomendação, tipicamente servil, de não o usar senão quando fosse estritamente necessário, porque os patrões não gostavam de ter o telefone impedido pelo pessoal. Primeiro falei a uma mulher que devia ser criada de quarto. A seguir veio Gino. Ele perguntou se eu não estava doente, e não pude deixar de sorrir ao reconhecer nesta solicitude a perfeição, inteiramente falsa, que contribuíra para me induzir em erro.

— Estou bem — disse-lhe. — Nunca me senti tão bem.

— Quando nos veremos?

— Quando quiseres, mas desejava que o nosso encontro fosse como dantes… quero dizer aí na moradia, se os teus patrões vão para fora.

Ele compreendeu logo as minhas intenções e respondeu vivamente:

— Eles só devem partir daqui a dez dias, pelas festas do Natal; não antes.

— Então — disse-lhe num tom indiferente — ver-nos-emos daqui a dez dias.

— Mas como? — perguntou-me, admirado. — Porque não antes?

— Antes tenho que fazer.

— Mas que tens tu? — perguntou-me num tom desconfiado. — Tens alguma coisa contra mim?

— Não — respondi. — Não tenho nada contra ti; se tivesse alguma coisa contra ti, não te diria que nos veríamos na moradia.

Lembrei-me de repente de que ele podia ter ciúmes e aborrecer-me ; por isso acrescentei:

— Não tenhas medo… amo-te como sempre… somente, tenho que ajudar minha mãe a acabar uma encomenda extraordinária, por causa das festas… como não poderei sair de casa senão muito tarde, e tu tarde nunca estás livre, preferi esperar que os teus patrões se vão embora.

— Mas de manhã?

— De manhã dormirei! — respondi. — A propósito, sabes que já não sou modelo?

— Porquê?

— Cansava-me… Estás contente, não estás? Então encontramo-nos daqui a dez dias… Eu telefono-te.

— Está bem!

Ele disse “Está bem!” com um ar pouco convencido, mas eu conhecia-o suficientemente para ter a certeza de que, apesar das suas suspeitas, ele não daria sinal de vida antes dos dez dias que eu combinara. Ou melhor, era precisamente por ter ciúmes que não daria sinal de vida. Não era corajoso, e a ideia de que eu pudesse ter descoberto a sua falsidade enchia-o de susto e punha-o nervoso. Depois de ter reposto o auscultador reparei que falara a Gino com uma voz tranquila, amável e afectuosa; e podia tornar a vê-lo sem o receio de me mergulhar e de mergulhar os nossos encontros numa atmosfera de ódio falso e desagradável.

7

Nessa mesma tarde fui ter com Gisela ao seu quarto mobilado.

Como fazia habitualmente àquela hora, ela acabava justamente de se levantar e começava a vestir-se, para ir ao seu encontro com Ricardo. Sentei-me na sua cama desfeita, e enquanto ela ia e vinha no quarto em penumbra, cheio de objectos e de roupas em desordem, contei-lhe tranquilamente como tinha ido ter com Astárito e como ele me revelara que Gino era casado e tinha uma filha. Ao ouvir a notícia, Gisela soltou uma exclamação que ignoro se era de alegria ou de surpresa, veio sentar-se na cama na minha frente e pousou-me as suas mãos nos ombros, abrindo os olhos:

— Não… não posso acreditar… uma mulher e uma filha… Mas é realmente verdade?

— A filha chama-se Maria.

Era claro que ela desejava aprofundar e comentar a notícia o mais possível e que a minha atitude serena a desconcertava.

— Uma mulher e uma filha… e a filha chama-se Maria… e tu dizes isso dessa maneira?

— Como querias que dissesse?

— Mas não te faz pena?

— Sim, faz-me pena.

— Mas como te disse ele? “Gino Molinari tem mulher e uma filha”? Assim?

— Sim.

— Mas tu, o que lhe respondeste?

— Nada… Que querias que lhe respondesse?

— Mas o que sentiste? Não ficaste quase a chorar? Apesar de tudo, para ti foi um desastre!

— Não. Não tive vontade de chorar.

— Agora é impossível casares com Gino — gritou com ar medidativo e contente. — Mas que história!… Que história! Que falta de consciéncia! Uma pobre rapariga como tu, que só vivia para ele, pode dizer-se… Os homens são todos uns safados!

— Gino — disse eu — ainda não sabe que estou ao facto de tudo.

— No teu lugar, minha filha — declarou, toda excitada —, dava-lhe o que merecia! Um bom par de bofetadas ninguém lhas tirava.

— Marquei encontro com ele para daqui a dez dias — continuei.

— Creio que vamos continuar a ter relações um com o outro.

Recuou e olhou-me com os olhos esbugalhados:

— Mas porquê? Ainda gostas dele? Depois de tudo o que te fez?

— Não — respondi, e, emocionada como estava, instintivamente baixei a voz… — Já não gosto dele… mas… hesitei e fiz um esforço para mentir — os gritos e as bofetadas não são a melhor maneira de nos vingarmos!

Olhou-me um instante semicerrando os olhos e afastando-se como fazem os pintores quando olham os seus quadros. Depois disse-me :

— Tens razão… não tinha pensado nisso… Mas sabes o que faria no teu lugar? Deixava correr, tranquilamente, sem que ele desse por isso e um belo dia, zás! Deixava-o.

Não respondi. Ao fim de um momento, repetiu, com a voz menos exaltada, mas animada e cantante:

— Ainda me parece mentira! Uma mulher e uma filha! E contigo fazia tantas fitas! E fez-te comprar móveis, um enxoval… Que história! Que história!

Eu continuava calada.

— Mas eu já tinha percebido! — gritou com ar vitorioso. — Tens de reconhecer! Que te tinha eu dito? “Este homem não é sincero…” Pobre Adriana!

Deitou-me o braço à roda do pescoço e beijou-me. Deixei-me beijar e acrescentei:

— Sim, o pior é que me fez gastar o dinheiro de minha mãe!

— E tua mãe, sabe?

— Ainda não.

— Pelo dinheiro não te aflijas ! — acudiu. — Astárito está de tal maneira apaixonado por ti!… Basta que queiras e ele te dará todo o dinheiro de que precisares.

— Não quero tornar a ver Astárito — respondi. — Outro não me importo, mas não Astárito!

Devo esclarecer que Gisela não era parva. Percebeu imediatamente que de momento mais valia não falar de Astárito.

Compreendeu também o que eu queria dizer com a frase: “Não me importa outro qualquer.” Fingiu reflectir um momento, depois declarou:

— No fundo tens razão, compreendo-te. Eu também, depois do que aconteceu, sentiria uma certa impressão se tivesse que andar com o Astárito… Ele quer as coisas pela força… foi para se vingar que te contou a história de Gino.

Calou-se de novo, depois disse-me com voz solene:

— Deixa-me agir… queres que te apresente alguém disposto a ajudar-te?

— Quero.

— Deixa-me agir.

— Somente, a ninguém me quero prender; quero ficar livre.

— Deixa-me agir — repetiu pela terceira vez.

— Por agora — continuei — quero devolver o dinheiro à minha mãe… e comprar diversas coisas que me fazem falta. Depois quero que minha mãe deixe de trabalhar — disse como conclusão.

Entretanto, Gisela levantara-se para se ir sentar em frente do toucador:

— Tu, Adriana — disse-me pintando-se a toda a pressa —, tens sido sempre muito boa. Vês agora o que acontece quando se é boa demais?

— Sabes que esta manhã não fui posar? — disse-lhe. Decidi não voltar a ser modelo.

— Fizeste bem — respondeu. — Eu também, de resto, já não posso mais, a não ser para X…, unicamente para lhe fazer um favor, mas quando ele terminar não posarei mais.

Experimentei nesse momento uma grande amizade por Gisela e senti-me reconfortada. Os seus “deixa-me agir” tinham soado aos meus ouvidos com o acento de segurança das promessas maternais e amigas de acudir o mais de pressa possível às minhas necessidades. Apercebi-me com toda a clareza de que o que levava Gisela a ajudar-me, mais do que uma verdadeira amizade, era, como na história de Astárito, o desejo, talvez inconsciente, de me ver nas mesmas condições que ela. Mas ninguém faz nada por nada, e como, por coincidência, a inveja de Gisela vinha ao encontro dos meus interesses, nenhum motivo tinha para recusar a sua ajuda, unicamente porque a sabia interessada.

Estava apressada porque já era tarde para o encontro com o seu “noivo”. Saímos do quarto e descemos às escuras a escada estreita e íngreme da sua velha casa. Na escada, possuída pela sua excitação e talvez também pelo desejo de diminuir a amargura da minha desilusão, mostrando-me que não estava só na minha infelicidade, confiou-me:

— E depois, sabes… começo a crer que Ricardo me quer fazer o mesmo que Gino te fez a ti.

— Ele também é casado? — perguntei ingenuamente.

— Não, isso não; somente, faz-me cenas… tenho a impressão de que se quer pôr a fugir… Mas eu já me expliquei: “Meu caro, não preciso de ti para coisa alguma; se queres ficar fica, mas se não queres podes ir-te embora!”

Nada disse, mas pensei que havia uma grande diferença entre nós, mesmo até nos encontros dela e Ricardo e nos meus com Gino. Ela, no fundo, nunca tivera uma desilusão sobre a seriedade de Ricardo nem tinha escrúpulo em enganá-lo de tempos a tempos; enquanto que eu esperava com toda a força da minha alma inexperiente vir a ser mulher de Gino e ser-lhe sempre fiel; não podia chamar-se traição ao que se havia passado em Viterbo com Astárito, ameaçada com a sua chantagem.

Mas pensava que ela se ofenderia se eu lhe dissesse isto; não abri a boca. Na soleira da porta marcou-me encontro para o dia seguinte numa pastelaria, recomendando-me que fosse pontual, porque ela provavelmente não estaria sozinha. E foi-se embora.

Sentia que devia contar o que se passava a minha mãe, mas não tinha coragem. Minha mãe gostava realmente de mim. Ao contrário de Gisela, que não via na traição de Gino senão o triunfo das suas ideias e nem sequer tentava disfarçar a sua cruel satisfação, ela experimentaria mais dor que alegria ao verificar que no fim de contas tivera razão. No fundo não desejava senão a minha felicidade; pouco lhe importava o meio pela qual a alcançasse: somente estava convencida de que Gino não ma daria. Depois de muitas hesitações, acabei por decidir nada lhe dizer. Sabia que no dia seguinte, à tarde, os meus actos lhe abririam melhor os olhos que quaisquer palavras. Reconheci que era uma maneira brutal de lhe revelar a grande mudança que se operara na minha vida; mas o que me agradava era que desta maneira evitaria uma quantidade de explicações, de reflexões e de comentários: pelo menos todo o género de explicações, de reflexões e de comentários em que Gisela se mostrara pródiga quando lhe contara a traição de Gino. Na realidade eu experimentava uma espécie de repugnância em falar no casamento; desejava falar nele o menos possível e preparar as coisas de maneira que os outros não me tocassem no assunto.

No dia seguinte, para que minha mãe não me aborrecesse se suspeitasse de alguma coisa, fingi ter um encontro com Gino e passei toda a tarde fora. Para o meu casamento mandara fazer um fato de saia e casaco cinzento, que contava vestir depois da cerimónia. Era o meu vestido mais bonito: hesitei em pô-lo, mas pensei que acabaria por estreá-lo um dia, que não seria nem mais puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas aparências e que era preciso apresentar-me o melhor possível para obter mais proventos: afastei todos os escrúpulos. Vesti-o pois, mas não sem remorsos — o meu lindo vestido, que, recordando-o agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos de então —, penteei-me com cuidado e pintei-me, mas não mais do que o costume. A propósito deste último pormenor, observo que nunca percebi a razão por que as mulheres da minha profissão pintam a cara como se fossem máscaras de Carnaval. Porque a vida que levam as torna muito pálidas? Talvez porque julguem que se não se pintarem desta maneira violenta não chamam a atenção dos homens e não mostram que são fáceis de abordar? Eu, por mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena e sã, e posso dizer, sem falsa modéstia, que a minha beleza bastou sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo na rua. Não é pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a atenção dos homens, mas — muitos mo têm dito — pela serenidade e pela doçura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam não reparam que os homens dão-se conta no primeiro momento de como elas são e experimentam uma espécie de antecipada desilusão. Eu, tão natural e simples, deixei-lhes sempre uma dúvida sobre a minha verdadeira personalidade, dando-lhes desta maneira a ilusão de uma aventura que eles procurassem mais do que a pura satisfação dos sentidos.

Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas vezes a mesma fita. Quando saí do cinema era já noite; fui directamente à pastelaria onde tinha marcado encontro com Gisela.

A casa não era uma daquelas leitarias modestas onde habitualmente nos encontrávamos com Ricardo, mas uma pastelaria elegante, onde eu punha os pés pela primeira vez. Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intenção de elevar o preço dos meus favores. Estes ardis e ainda outros de que falarei a seguir podem, com efeito, levar as mulheres da minha espécie, quando jovens e bonitas, e que os usem inteligentemente, ao bem-estar estável que é o alvo de todas. Mas poucas se servem deles e eu nunca pertenci a esse número. A minha origem popular fez-me sempre desconfiar dos locais luxuosos; nos cafés burgueses senti-me sempre pouco à vontade; envergonhava-me de sorrir aos homens ou de os olhar disfarçadamente; tinha a impressão de que a luz demasiada me expunha num pelourinho. Pelo contrário, senti sempre uma profunda e afectuosa atracção pelas ruas da minha cidade, com as suas nobres construções, as suas igrejas, os seus monumentos, as suas lojas e os seus portais, que as tornam mais belas e acolhedoras que qualquer sala de restaurante ou pastelaria. Sempre gostei de descer à rua à hora do passeio, ao pôr do Sol, caminhar lentamente olhando as montras iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o céu e os telhados. Sempre apreciei seguir por entre a multidão, ouvir, sem me voltar, as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa súbita exaltação dos sentidos, se atreviam a murmurar-me às vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua até à saciedade, ficar sem forças mas continuar com espírito ainda ávido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se esgotam. O meu salão, o meu restaurante, o meu café, foram sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter tido influência nestas minhas predilecções; sabe-se que os pobres se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das belas casas, onde nunca morarão. Deve ser pelo mesmo motivo que amei sempre as igrejas, tão numerosas em Roma, abertas para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre mármores, ouros e decorações preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza é, por vezes, mais forte do que o do incenso.

Naturalmente os ricos não passeiam pelas ruas, não vão à igreja: quando muito atravessam a cidade de automóvel, recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos sítios que Gisela me marcaria — em troca dos meus gostos mais predilectos. Este sacrifício nunca o quis fazer; todo o tempo que durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de discussões encarniçadas. Gisela não gostava da rua; as igrejas nada lhe diziam; a multidão só lhe inspirava repugnância e desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo, onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos seus clientes, os dancings modernos, com músicos de uniforme e dançarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os seus gestos, as suas atitudes, até a sua voz mudavam. Fingia ser uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais tarde até certo ponto, como se poderá ver. O aspecto curioso do seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas ambições não a encontrou nos locais de luxo, mas graças a mim e precisamente na rua, que ela odiava tanto.

Na pastelaria encontrei Gisela acompanhada por um homem de meia-idade, um caixeiro-viajante, que me apresentou com o nome de Jacinto. Sentado, parecia ter uma altura normal, porque tinha os ombros largos, mas de pé parecia quase anão, e a largura de ombros ainda o tornava mais baixo. Tinha o cabelo espesso e branco como prata, que usava em escova sobre a testa, talvez para parecer mais grave, um rosto encarnado, cheio de saúde, com traços nobres e regulares de estátua, uma bela testa serena, grandes olhos pretos, nariz direito e a boca bem desenhada. Mas uma expressão antipática de vaidade, de suficiência e de falsa benevolência tornava esta cara, agradável e majestosa à primeira vista, bastante repulsiva.

Sentia-me um pouco nervosa, e depois de acabadas as apresentações sentei-me sem dizer palavra. Jacinto, como se a minha chegada fosse sem importância, apesar de ser na realidade o motivo da reunião, continuou a conversa que sustentava com Gisela:

— Não podes queixar-te de mim, Gisela — declarou-lhe, pousando-lhe a mão no joelho e conservando-a ali todo o tempo em que falou. — Quanto tempo durou a nossa… a nossa aliança, por assim dizer? Seis meses? Bem! Não podes dizer com verdade que no decurso desses seis meses te deixei uma única vez descontente.

Tinha a voz clara, lenta, acentuada, articulada; mas percebia-se que falava desta maneira, não para se fazer entender, mas para se ouvir ele próprio e julgar cada uma das palavras que pronunciava.

— Não, não! — disse Gisela baixando a cabeça com ar aborrecido.

— A Gisela que te diga, Adriana! — continuou Jacinto com a mesma voz clara e martelada. — Não só nunca a lesei em dinheiro pelo… digamos pelos seus préstimos profissionais, mas todas as vezes que voltava de Milão trazia-lhe sempre um presente. Lembras-te, por exemplo, daquele perfume francês que te trouxe uma vez? E doutra ofereci-te uma combinação de seda natural e rendas. As mulheres julgam que os homens não percebem de roupas interiores de senhora. Mas eu sou uma excepção. Hé! Hé!

Ria discretamente mostrando uma dentadura perfeita, mas de uma brancura estranha que lhe dava um ar de dentadura postiça.

— Dá-me um cigarro! — pediu Gisela com secura.

— É para já! — respondeu com uma solicitude irónica. Ofereceu-me também um, tirou outro para si e, depois de o acender, continuou: — Lembras-te também daquela mala que te trouxe uma vez? Uma grande mala de cabedal leve… uma verdadeira obra-prima! Já não a usas?

— Mas é uma mala para usar de manhã! — disse Gisela.

— Gosto muito de fazer presentes! — proclamou, dirigindo-se a mim. — Não por razões sentimentais, entendamo-nos — acrescentou deitando o fumo pelo nariz —, mas por três motivos bem claros: o primeiro, porque me agrada que me agradeçam; o segundo, porque não há como um presente para se ser bem servido; com efeito quem recebe um presente espera sempre outro: a terceira, porque as mulheres gostam de ilusões e um presente dá a impressão de sentimento, mesmo quando ele não existe.

— És um bom maroto! — disse com ar indiferente Gisela, sem mesmo o olhar.

Ele abanou a cabeça com o seu belo sorriso cheio de dentes.

— Não — disse — não sou maroto. Sou um homem que viveu e que soube tirar boas lições das suas experiências. Com as mulheres sei que é preciso fazer certas coisas, com os clientes outras, com os subordinados outras ainda, e assim por diante. O meu espírito é como um ficheiro bem arrumado. Por exemplo, tenho uma mulher debaixo de olho… tiro a ficha, observo-a, e vejo que certas medidas obtém o efeito desejado e outras não; torno a pôr a ficha no seu lugar e vou agir segundo as circunstáncias, e é tudo!

Calou-se e sorriu de novo.

Gisela fumava com ar aborrecido; eu estava calada.

— E as mulheres — continuou — ficam-me reconhecidas porque compreendem logo que comigo não terão desilusões, que eu conheço as suas exigências, as suas fraquezas e os seus caprichos… como eu fico agradecido ao cliente que escolhe depressa… que não perde tempo a tagarelar… que sabe o que quer e o que eu quero… Em Milão, na minha secretária, tenho um cinzeiro com a seguinte inscrição: “O Senhor abençoa quem não me faz perder tempo.” Deitou fora o cigarro, estendeu o pulso e olhou o relógio dizendo :

— Parece-me que vão sendo horas de irmos jantar.

— Que horas são?

— Oito horas… com licença… venho já.

Levantou-se e afastou-se para o fundo da sala. Era realmente muito pequeno, com os seus largos ombros e a sua escovinha branca em cima da cabeça. Gisela esmagou o cigarro no cinzeiro e declarou:

— É aflitivo! Só fala dele!

— Já dei por isso.

— O melhor é deixá-lo falar e dizer sempre sim. Verás as confidências que ele vai fazer-te… Sabe Deus por quem se toma! Mas é generoso. E dá presentes realmente.

— Sim, mas a seguir atira-os em cara.

Ela não disse palavra. Abanou a cabeça como a dizer “Que havemos de fazer?” Ficámos um momento silenciosas; depois Jacinto voltou. Pagou e saímos da pastelaria.

— Gisela — disse Jacinto logo que chegámos à rua —, a noite está consagrada a Adriana. Mas se nos quiseres dar o prazer de jantar connosco.

— Não, não, obrigada! — disse muito depressa. — Tenho um encontro!

Despediu-se de nós e foi-se embora. Logo que ela se afastou eu disse a Jacinto:

— A Gisela é muito simpática!

Ele fez um trejeito e respondeu:

— Sim, muito… tem um lindo corpo.

— Não a acha simpática?

— Eu — disse-me caminhando ao meu lado e apertando-me com força o braço, muito em cima, quase no sovaco — nunca peço a alguém que seja simpático, mas que faça o que lhe cumpre. A uma dactilógrafa, por exemplo, não peço que seja simpática, mas que escreva rapidamente e sem erros. A uma mulher como Gisela não peço simpatia, mas que saiba do seu ofício, quer dizer que me torne agradáveis as duas ou três horas que lhe consagro. Ora, a Gisela não percebe do seu ofício.

— Porquê?

— Porque só pensa no dinheiro… Tem sempre medo que não lhe paguem ou que não lhe dêem bastante. Não exijo com certeza que ela me ame, mas faz parte da sua profissão portar-se como tal; se realmente não me ama tem de me dar essa ilusão, para isso que lhe pago. Gisela deixa sentir demasiadamente que o fez por interesse… Nem nos dá tempo a respirar de tal modo se chora… Que diabo!

Tínhamos chegado ao restaurante, um sítio barulhento, cheio de gente; os homens pareciam-me do género de Jacinto: caixeiros-viajantes, negociantes, industriais de passagem. Jacinto entrou primeiro, entregou o chapéu e o sobretudo ao homem do bengaleiro e perguntou:

— A minha mesa está livre?

— Sim, senhor Jacinto.

Era uma mesa colocada no vão de uma janela. Jacinto esfregou as mãos e perguntou:

— Você é bom garfo?

— Julgo que sim — respondi-lhe, embaraçada.

— Bem! Isso agrada-me. Gosto que se coma à mesa… A Gisela, por exemplo, nunca quer comer… diz que tem medo de engordar. Asneiras! Cada coisa a seu tempo! Quando se está à mesa é para comer!

Tinha um verdadeiro rancor contra Gisela.

— Mas é verdade — disse eu timidamente. — Quando se come demasiadamente engorda-se… e há mulheres que não gostam de engordar.

— Você é dessas?

— Eu não. Mas justamente as pessoas dizem que eu sou muito forte.

— Não faças caso, é inveja. Digo-te eu, que percebo disso.

Acariciou-me paternalmente a mão para me convencer. O criado aproximou-se e Jacinto disse-lhe:

— Para começar vais levar daqui estas flores… incomodam-me… Depois trazes o habitual. Percebido? E isso depressa!

Depois, dirigindo-se a mim, explicou:

— Já me conhece e sabe do que eu gosto… deixa-o fazer: vais ver que não terás razão de queixa!

Com efeito não tive razão para me lamentar. Os pratos que se sucederam na mesa eram, senão requintados, pelo menos suculentos e agradáveis. Jacinto mostrava-se com grande apetite. Comia com uma espécie de ênfase, a cabeça baixa, brandindo solidamente o garfo e a faca, sem me olhar nem me falar uma única vez. A sua avidez privava-o até mesmo da sua bela calma, obrigando-o a fazer várias coisas ao mesmo tempo, como se temesse ficar em jejum. Metia um bocado de carne na boca ao mesmo tempo que partia o pão com a mão esquerda. Mordia este pão, deitava vinho no copo com a outra mão e bebia-o sem ter acabado de mastigar. Tudo isto estalando os lábios, rolando os olhos, sacudindo a cabeça de vez em quando como um gato às voltas com um pedaço demasiado grande. Mas para contrabalançar, ao contrário do que era habitual, eu não tinha fome. Era a primeira vez que me preparava para me deitar com um homem que não amava, que até mesmo não conhecia; e olhava-o com atenção, estudando os meus sentimentos e procurando imaginar como me sairia. Mais tarde deixei de dar atenção aos homens com quem ia, porque, levada pele necessidade, aprendi depressa a encontrar ao primeiro olhar o lado bom ou atraente do homem, suficiente para tornar a sua intimidade suportável. Mas nessa noite, este expediente da minha profissão, que consiste em descobrir num só olhar o que torna menos desagradável um amor venal, não o tinha ainda aprendido; procurava-o instintivamente, sem dar por isso. Já disse que Jacinto não era feio; até mesmo quando se calava e não mostrava os seus pontos antipáticos, até poderia parecer belo. Já era muito, porque, apesar de tudo, todo o amor é em grande parte comunhão física. Mas isso não me bastava. Nunca pude, já não digo amar, mas simplesmente suportar um homem só pelas suas qualidades físicas. Ora, quando a refeição acabou e Jacinto, acalmada a sua extraordinária voracidade, arrotou uma ou duas vezes e recomeçou a falar, apercebi-me de que nada havia nele, ou pelo menos não era capaz de descobrir, absolutamente nada, por pouco que fosse, que mo tornasse simpático. Não só, como Gisela me avisara, só dele falava, mas fazia-o de uma maneira desagradável, vaidosa e aborrecida, contando a maior parte do tempo coisas que nada o honravam e confirmavam plenamente a minha primeira impressão de repugnância. Nada havia nele, absolutamente nada, que me agradasse; e todos os traços que apresentava como qualidades, de que se envaidecia e punha a nu, pareciam-me horríveis defeitos. Só muito raramente encontrei, daí em diante, homens no mesmo género, que não têm valor algum e nada oferecem de bom a quem se aproximar para neles encontrar qualquer simpatia; sempre me admirou que eles existissem e muitas vezes perguntei a mim própria se não seria minha a culpa, incapaz de descobrir as qualidades que eles sem dúvida haviam de ter. Seja como for, com o tempo habituei-me a estes desagradáveis companheiros e fingi rir e chalacear com eles, em suma, ser aquilo que queriam que eu fosse e julgavam que era. Mas nessa noite esta primeira descoberta inspirou-me reflexões bem melancólicas. Enquanto Jacinto tagarelava esgaravatando os dentes com um palito, eu pensava que era um duro ofício aquele que eu escolhera, de fingir transportes amorosos com certos homens que na realidade — era o caso de Jacinto — me inspiravam sentimentos bem diferentes; que não havia dinheiro que pagasse esses favores; que era impossível — pelo menos em casos semelhantes — portar-me como Gisela, que não pensava senão no dinheiro e não o ocultava. Acudiu-me ainda ao espírito a ideia de que iria levar este antipático Jacinto para o meu pobre quarto, destinado a um uso tão diferente; que não tinha sorte; que o azar me fizera sair logo um Jacinto, que podia ter encontrado algum rapaz agradável e delicado em busca de uma aventura, ou qualquer bom homem, sem pretensões, como havia tantos; que, em suma, a presença de Jacinto entre os meus móveis acelerava a minha renúncia aos velhos sonhos de fazer uma vida decente e normal.

Ele falava sempre, mas não era tão boçal que não se apercebesse de que apenas o escutava e que não estava alegre.

— Então, menina, estamos tristes? — perguntou-me.

— Não, não! — respondi depressa, quase até tentada, por esta ilusória entoação afectuosa, a confiar-lhe o que sentia e a falar-lhe de mim, depois de o ter deixado falar tanto tempo dele.

— Gosto mais assim — recomeçou. — Não gosto de gente triste. E depois não te convidei para que estivesses triste. Podes ter razão para isso, não discuto, mas logo que estejas comigo tens de deixar a tristeza em casa. Não me interessam os teus problemas, nem quem és, nem o que te aconteceu, nem o resto… Certas coisas não me interessam. Fizemos um contrato um com o outro, mesmo que não tenha sido escrito… Eu comprometo-me a pagar-te uma certa soma e tu, em compensação, comprometes-te a fazer-me passar uma noite agradável… O resto não conta.

Proferiu estas palavras em tom sério. Talvez estivesse um pouco contrariado por eu não o ter escutado com suficiente atenção.

— Mas eu não estou triste… — respondi sem lhe desvendar o mundo de sentimentos que me agitava a alma. — Somente aqui há tanto fumo! E um barulho! Sinto-me um pouco atordoada.

— Então, saímos? — perguntou com vivacidade. Disse-lhe que sim. Chamou em seguida o criado e pagou. Saímos. Quando chegámos à rua, perguntou-me:

— Vamos para o hotel?

— Não, não — disse eu apressadamente.

A perspectiva de ter de mostrar os meus documentos assustava-me, e de resto já decidira outra coisa.

— Vamos para minha casa! — disse.

Subimos para um táxi e dei a minha direcção. Assim que o táxi arrancou, atirou-se para cima de mim e apalpou-me o corpo todo beijando-me no pescoço. Senti pelo seu hálito que bebera muito e devia estar embriagado. Repetia constantemente a palavra “filhinha”, que se diz às crianças e que na sua boca me irritava como um termo ridículo e ligeiramente profano. Deixei-o agir durante uns momentos, depois observei, apontando as costas do chauffeur: — Era melhor esperar que chegássemos… não? — Não respondeu e caiu pesadamente sobre as almofadas, encarnado e congestionado como se sentisse fulminado por um súbito mal. Depois tratamudeou com ar furioso:

— Pago-lhe para que me conduza ao meu destino e não para que dê conta do que se passa dentro do seu táxi.

O dinheiro era a sua ideia fixa, e sobretudo o seu dinheiro, que podia fechar todas as bocas. Nada respondi e durante o resto do percurso ficámos calados um ao lado do outro, sem nos tocarmos. As luzes da cidade entravam pelas portinholas, iluminando por instantes os nossos rostos e as nossas mãos, e desapareciam; parecia-me estranho encontrar-me ao lado deste homem, do qual algumas horas antes nem conhecia a existência, e rolar num carro na sua companhia para minha casa, para me entregar a ele como a um amante querido. Senti uma espécie de atordoamento ao ver o táxi parar diante da minha porta na avenida tão conhecida.

Na escada escura pedi a Jacinto:

— Não faça barulho ao entrar, peço-lhe, porque minha mãe mora comigo.

— Está descansada, filhinha — respondeu-me.

Chegados ao patamar, abri a porta com a minha chave. Jacinto seguia-me; peguei-lhe na mão; sem acender a luz, fi-lo atravessar a antecâmara e conduzi-o até à porta do meu quarto, que era a primeira à esquerda, entrando. Precedida por ele, acendi o candeeiro da mesa-de-cabeçeira e da soleira da porta deitei um olhar aos meus móveis como se fosse uma despedida. Muito contente por encontrar um quarto novo e limpo, quando julgava que o conduzisse a um quarto sujo e com móveis velhos, Jacinto soltou um suspiro de satisfação e tirou o seu sobretudo, que atirou para cima de uma cadeira. Disse-lhe que me esperasse e saí do quarto.

Dirigi-me directamente à sala grande e encontrei minha mãe sentada à mesa central preparada para coser. Quando me viu afastou logo o trabalho e levantou-se sem dúvida com a ideia de me servir o jantar como nas outras noites. Mas eu disse-lhe:

— Não… não te incomodes… Já jantei… Pelo contrário… Tenho alguém no meu quarto e não vás lá, seja a que pretexto for!

— Alguém? — perguntou-me com cara de pasmo.

— Sim, alguém! — disse-lhe apressadamente. — Mas não é Gino. É um “senhor de posição”!

E saí da sala sem esperar qualquer pergunta. Tornei a entrar no quarto e fechei a porta à chave. Impaciente e corado, Jacinto veio ao meu encontro ao meio do quarto e tomou-me nos braços. Era muito mais pequeno do que eu e para pousar os lábios na minha cara, tive que inclinar-me sobre a cama. Procurava evitar que ele me beijasse a boca, dobrando-me para trás como por voluptuosidade. Consegui. Jacinto possuía da mesma maneira que comia; com avidez, sem discernimento nem delicadeza, começando e largando sem propósito, como se tivesse medo de deixar escapar alguma coisa, cego pelo meu corpo, como o estivera pela comida no restaurante.

Depois de me ter beijado, fez menção de me despir, como estávamos, de pé. Pós a mão num dos meus braços e depois, como se esta carne lhe queimasse as ideias, começou a cobrir-me de beijos. Julguei que com os seus gestos bruscos me rasgasse o fato e acabei por lhe dizer sem o repelir:

— Vamos, despe-te.

Largou-me logo e, sentando-se na cama, começou a despir-se. Eu do outro lado fazia o mesmo.

— Mas a tua mãe sabe? — perguntou-me.

— Sim.

— E que diz ela?

— Nada.

— Desaprova?

É claro que estas informações não tinham outro valor que o de dar um pouco de picante à aventura. É um traço comum a todos os homens; são bem poucos os que resistem à tentação de misturar ao prazer interesse de género diferente, indo por vezes até à compaixão.

— Não aprova nem desaprova — disse secamente levantando-me e fazendo passar a saia pela cabeça. — Sou livre de fazer o que me apetece!

Quando fiquei nua arrumei a minha roupa toda sobre uma cadeira e estendi-me de costas em cima da cama, um braço dobrado sobre a nuca e o outro sobre o ventre cobrindo-o com a mão. Não sei porquê, recordei-me que estava na mesma posição daquela deusa pagã parecida comigo que o gordo pintor mostrara a minha mãe numa gravura colorida, e bruscamente senti desgosto e raiva ao pensar na grande mudança que depois disso se operara na minha vida. Jacinto devia estar admirado com a beleza opulenta e sólida do meu corpo, que não se nota, assim como já disse, quando estou vestida, porque parou de se despir e olhou-me com ar deslumbrado, a boca aberta e os olhos espantados.

— Avia-te — disse-lhe. — Tenho frio.

Acabou de se despir e atirou-se para cima de mim. Já falei da sua maneira de amar, que não sei o que me parecia; quanto a ele, suponho já tê-lo descrito suficientemente. Devo acrescentar que era um destes homens para os quais o dinheiro que pagaram ou que irão pagar inspira uma exigência meticulosa, como se temessem ficar roubados se renunciassem a qualquer das coisas que julgam ser-lhes devidas. Era ávido, já o disse, mas não ao ponto de não ter sempre presente o seu dinheiro e de não querer tirar todo o benefício possível. O seu desejo — depressa compreendera prolongar o mais possível os nossos encontros e tirar de mim todo o prazer a que se considerava com direito. Com este principio, esfalfava-se sobre o meu corpo, como sobre um instrumento, exigindo uma longa preparação antes de tocá-lo, e incitava-me a todo o tempo a fazer o mesmo com o dele. Mas, embora lhe obedecesse, comecei logo a aborrecer-me e a observá-lo friamente, como se os seus cálculos tão transparentes o afastassem de mim e como se estivesse a ver de muito longe, através de uma lente de antipatia e de desagrado — não somente a ele, mas também a mim. Era exactamente o contrário do sentimento de simpatia que me esforçara por experimentar por ele no princípio da noite. De repente senti não sei que vergonhosa impressão de remorso e fechei os olhos. Ele acabou por se cansar e ficámos estendidos lado a lado. Sublinhou num tom de satisfação:

— Tens de reconhecer que, apesar de não ser já muito novo, sou um amante excepcional!

— É verdade — respondi com indiferença.

— Todas as mulheres mo dizem — continuou. — Sabes o que penso? Que é nos pequenos barris que se encontra o melhor vinho: há homens grandes, com o dobro do meu tamanho, que nada valem!

Comecei a sentir frio. Sentei-me na cama e puxei a colcha sobre nós. Ele interpretou o meu gesto como uma atenção afectuosa.

— Muito bem! — disse-me. — Agora vou dormir um bocadinho.

Enrolou-se de encontro a mim e adormeceu.

Continuei imóvel, deitada de costas, com a sua cabeça branca sobre o meu peito. A colcha não nos tapava senão até à cintura; olhando-o, vendo o seu dorso peludo, marcado por pregas moles indicando a idade madura, tive uma vez mais a impressão de me encontrar com alguém que me era perfeitamente estranho. Mas ele dormia, e como dormia, já não falava, não olhava, não gesticulava. Neste sono, dado o seu carácter pouco atraente, não ficava, por assim dizer, mais do que a sua melhor parte, que era a de ser um homem como tantos sem profissão, nem nome, nem qualidades, nem defeitos, nada mais que um corpo humano a quem um sopro fazia levantar o peito. Talvez pareça estranho, mas, olhando-o e observando o seu sono confiante, experimentava por ele como que um impulso de afeição e notei as precauções que tomava para evitar qualquer movimento que o pudesse acordar. Era o sentimento de simpatia que eu tinha baldadamente tentado experimentar até agora; a vista da sua cabeça encanecida molemente apoiada sobre o meu peito jovem suscitara-o por fim na minha alma. Esta impressão consolou-me e pareceu-me até sentir menos frio. Experimentei mesmo, por um instante, uma espécie de terna exaltação que humedeceu os meus olhos. Na realidade, eu tinha então — como ainda tenho — um excesso de ternura no coração. Uma ternura, que, por falta dos objectivos legítimos aos quais se devia consagrar, não temia desviar-se sobre pessoas e coisas, quase sempre indignas dela, para não ficar inactiva e vazia. Ao fim de vinte minutos, acordou e perguntou-me:

— Dormi muito tempo?

— Não.

— Sinto-me bem! — disse saindo da cama e esfregando as mãos. — Ah! Como me sinto bem!… Rejuvenesci pelo menos vinte anos!

Depois começou a vestir-se, continuando as suas exclamações de bem-estar e de alegria. Vesti-me também em silêncio. Quando estava pronto, declarou-me:

— Queria tornar a ver-te, filhinha… Como hei-de fazer?

— Telefona a Gisela — respondi. — Vejo-a todos os dias.

— Mas tu estás sempre livre?

— Sempre.

— Viva a liberdade! — e acrescentou, metendo a mão no bolso: — Quanto queres que te dê?

— Paga o que te apetecer — disse-lhe. E acrescentei com sinceridade: — Se me deres bastante, farás uma boa acção porque não sou rica.

Mas ele respondeu taco a taco:

— Se te dou muito não será para fazer uma boa acção… Nunca faço boas acções… será por seres uma bonita rapariga e por me teres feito passar uma noite agradável.

— Como quiseres! — disse-lhe encolhendo os ombros.

— Tudo tem o seu valor, e tudo deve ser pago segundo o seu valor — continuou tirando o dinheiro da carteira. As boas acções não existem. Tu deste-me certas coisas, de uma qualidade superior às que me tinham dado antes… por exemplo, Gisela… As boas acções nestes casos não contam… Outro conselho! Nunca digas: dá-me o que te apetecer! Deixa fazer isso aos vendedores ambulantes. A mim quando me dizem “faça você o preço” sinto-me sempre tentado a dar menos do que devo pagar.

Fez uma careta significativa e estendeu-me o dinheiro. Como Gisela me dissera, era generoso; a soma ultrapassava as minhas previsões. Senti de novo, pegando-lhe, o sentimento de cumplicidade e sensualidade que me inspirara o dinheiro de Astárito no decurso do passeio a Viterbo. E pensei que isso denotava em mim urna vocação, que eu devia ter de facto jeito para esta espécie de ofício, mesmo se o meu coração aspirava a coisas diferentes.

— Obrigada — disse-lhe.

E, sem quase dar por isso, por gratidão, beijei-o de boa vontade.

— Obrigado eu! — respondeu dispondo-se a retirar. Dei-lhe a mão e conduzi-o, no escuro, através do vestíbulo, na direcção da porta. Durante um momento, logo que fechei a porta do meu quarto e antes de abrir a da casa, caminhámos numa obscuridade completa. E então, não sei que intuição quase física me revelou que minha mãe se encontrava em qualquer canto do vestíbulo enquanto eu vagueava com Jacinto. Ela tinha-se escondido sem dúvida atrás da porta, ou num canto, entre o armário e a parede e esperava que Jacinto saísse. Lembrei-me daquela vez que ela fizera a mesma coisa, na noite em que chegara atrasada depois de ter estado com Gino em casa dos patrões dele e assaltou-me um grande nervosismo à ideia de que, como daquela vez, depois de Jacinto sair ela me saltasse em cima, me agarrasse os cabelos, me atirasse para cima do canapé da sala grande e me enchesse de bofetadas. Sentia-a no escuro; parecia-me quase vê-la; sentia uma impressão nas costas como se tivesse as suas garras atrás da minha cabeça prontas a arrepelar-me os cabelos. Segurava Jacinto pela mão e na outra mão guardava o dinheiro. Lembrei-me de o meter entre os dedos da minha mãe logo que ela me quisesse saltar em cima. Seria uma maneira silenciosa de lhe lembrar que nunca cessara de me instigar a ganhar dinheiro e também uma tentativa de a captar pela avidez — a sua paixão dominante — e assim fechar-lhe a boca. Entretanto tinha aberto a porta.

— Então até qualquer dia… Telefonarei a Gisela — disse-me Jacinto.

Vi-o descer a escada, com os seus largos ombros e os seus cabelos brancos cortados à escovinha, agitando a mão sem olhar para trás, em sinal de cumprimento — e fechei a porta. Imediatamente, como previra, minha mãe surgiu do escuro junto de mim. Mas não me agarrou pelos cabelos, como julguei: pelo contrário de uma maneira desajeitada, que de princípio não compreendi, fez uma tentativa para me beijar. Fiel ao meu plano, procurei a sua mão e introduzi-lhe o dinheiro. Mas ela recusou-o; o dinheiro caiu no chão; ai, o encontrei no dia seguinte de manhã quando saí do meu quarto. Tudo isto com um pouco de angústia de parte a parte, mas sem que qualquer de nós abrisse a boca.

Entrámos na sala grande e sentei-me ao cantinho da mesa. Minha mãe sentou-se na minha frente e olhou-me. Parecia ansiosa e eu estava embaraçada. Disse-me de repente:

— Sabes que enquanto estiveste no quarto houve um certo momento em que tive medo?

— Medo de quê? — perguntei-lhe.

— Não sei — respondeu-me. — Primeiro senti-me só… tive frio… E depois já não me sentia eu, tudo girava à minha volta como quando se bebe, sabes! Tudo me parecia estranho! Pensava: isto é uma mesa, isto é uma máquina de costura… Mas não me chegava a convencer de que era realmente uma mesa, a cadeira, a máquina de costura… Também tive a sensação de que já não era eu… dizia: sou uma velha costureira… Tenho uma filha que se chama Adriana… mas não me convencia… Para me assegurar de que assim era pus-me a pensar no que tinha sido quando era pequenina, depois quando tinha a tua idade, quando me casei, quando tu nasceste… Então tive medo, porque tudo passou como se tivesse sido ontem; de nova, que era, cheguei bruscamente a velha sem dar por isso… E quando eu morrer — concluiu com esforço olhando-me — será como se nunca tivesse existido.

— Porque pensas nessas coisas? — pronunciei lentamente. — Ainda és nova… Que necessidade tens de pensar na morte?

Pareceu não me ter ouvido e continuou com a mesma énfase, que me fazia pena e me parecia falsa:

— Digo-te que tive medo! Pus-me a pensar: se uma pessoa não tem mais vontade de viver, deve continuar a estar neste mundo à força? Não digo que se mate; para se matar é preciso coragem; não, mas apenas deixar de querer viver como se deixa de querer comer, ou de querer andar… Pois bem! Juro-te por alma do teu pai… Já não queria viver mais!

Tinha os olhos cheios de lágrimas e os lábios trémulos. Eu estava quase a chorar também, sem saber porque, e levantei-me, beijei-a e fui sentar-me com ela no canapé, ao fundo do quarto. Ficámos uns momentos a chorar nos braços uma da outra. Sentia-me desnorteada, estava muito cansada, e as palavras incoerentes da minha mãe, com á sua ilógica, aumentavam o meu desnorteamento. Mas fui a primeira a recompor-me, porque no fim de contas eu não chorava senão por simpatia. Há muito tempo que deixara de chorar por mim!

— Então! Então! — comecei a dizer-lhe, dando-lhe palmadas nas costas.

— Digo-te, Adriana, já não tenho vontade de viver! — repetia-me chorando.

Afaguei-lhe o ombro sem dizer nada, deixando-a chorar à vontade. Mas pensava, por minha vez, que as suas palavras eram a clara expressão do seu remorso. É certo que sempre me tinha mostrado o exemplo de Gisela e recomendara que me vendesse o mais caro possível. Mas entre dizer e fazer há uma boa diferença. Ter trazido um homem a casa, sentir que lhe punha o dinheiro na mão, era certamente para ela um duro golpe. Agora, que tinha diante dos olhos o resultado da sua educação, não podia deixar de sentir-se horrorizada. Mas ao mesmo tempo havia nela uma espécie de incapacidade para reconhecer que se tinha enganado; talvez também uma amarga satisfação ao verificar que se enganara. Tanto assim que, em vez de me dizer francamente “Procedeste mal… não recomeces”, preferiu falar de coisas que nada tinham a ver comigo, da sua vida, do seu desejo de deixar de existir. Tive muita vez ocasião de observar pessoas que no mesmo momento em que se abandonam a uma acção que sabem ser repreensável, procuram defender-se e resgatar-se discorrendo acerca de coisas mais elevadas, susceptíveis de as rodear, a seus próprios olhos e aos dos outros, de uma aura de desinteresse e de nobreza bem longe da acção que praticam — ou ainda, para voltar ao caso da minha mãe —, daquilo que deixam os outros praticar. Somente, a maior parte actua com inteira consciência; minha mãe, pelo contrário, coitada, fá-lo sem dar por isso, como o seu coração e as circunstâncias a inspiram.

Portanto, a sua frase sobre a vontade de não viver parecia-me justa. Pensava que também eu, logo que descobri a traição de Gino, desejei deixar de viver. Mas o meu corpo continuava a viver por sua conta, indiferente à minha vontade. Este peito, estas pernas, estas ancas, que tanto agradavam aos homens, continuavam vivas; a minha natureza continuava a desejar o amor, mesmo sem que eu o quisesse. Estendida na minha cama, tinha decidido deixar de viver, não acordar no dia seguinte de manhã; enquanto dormia. o meu corpo continuava vivo, o sangue corria-me nas veias. o estômago e os intestinos digeriam, os pêlos despontavam-me nas axilas, onde os tinha rapado, as unhas cresciam, a pele molhava-se de suor e as forças restauravam-se. E de manhã cedo, sem que o quisesse, as pálpebras abriam-se e os meus olhos viam, por mal deles, esta realidade que detestavam. Em suma, percebia que, a despeito do meu desejo de morrer, estava ainda viva e devia continuar a viver. E portanto — concluía eu —, é preciso sujeitarmo-nos a viver e não pensar mais nisso. Nada disto disse a minha mãe, porque sabia que estas ideias não eram menos tristes que as suas e não a consolariam. Mas quando me pareceu que deixara de chorar aproximei-me dela e disse-lhe:

— Tenho fome!

Era verdade; no restaurante, com o nervosismo, quase não tinha comido.

— O teu jantar está pronto — respondeu-me, contente por eu lhe oferecer um meio de se tornar útil e de fazer uma coisa que fazia todas as noites. — Vou preparar-to.

Saiu e fiquei só.

Sentei-me em frente da mesa, no meu lugar habitual, e esperei que ela voltasse. Sentia a cabeça oca; de tudo o que se passara ficara-me apenas o cheiro acre e doce do amor entre os dedos e o traço seco e salgado das lágrimas no rosto. Olhei, imóvel, as sombras que o candeeiro suspenso projectava nas grandes paredes nuas da sala. Minha mãe voltou. Trazia um prato com carne e legumes.

— A sopa não ta aqueci — disse-me —, porque não ficava boa. E depois, já não há muita.

— Não faz mal. Isto chega!

Deitou-me vinho tinto no copo e ficou de pé na minha frente, como sempre que eu comia… imóvel, atenta às minhas ordens.

— O bife está bom? — perguntou-me ansiosamente.

— Está bom, está.

— Pedi tanto ao homem do talho para me dar um bocado tenro!

Parecia ter acalmado; tudo parecia igual às outras noites. Acabei lentamente de comer, bocejei, abri os braços e espreguicei-me. De repente senti-me bem; este gesto bastava para dar ao meu corpo uma sensação de juventude, força e contentamento.

— Tenho sono! — declarei.

— Espera… vou fazer-te a cama! — disse minha mãe, atenciosa, fazendo menção de sair.

— Não, não; eu faço!

Levantei-me; minha mãe levou o prato vazio.

— Amanhã de manhã deixa-me dormir! — recomendei-lhe. — Não me acordes.

Respondeu-me que me deixaria dormir, e, depois de lhe dar as boas-noites é de a beijar, retirei-me para o meu quarto. A cama estava na desordem em que eu e Jacinto a tínhamos deixado. Limitei-me a ajeitar a almofada e a colcha, despi-me e enfiei-me nos lençóis. Fiquei durante uns instantes com os olhos abertos no escuro, sem pensar em nada.

— Sou uma prostituta! — disse por fim em voz alta, para ver o efeito que isso me produzia.

Tive a impressão de que não me fazia qualquer efeito: fechei os olhos e adormeci logo a seguir.

8

No decurso dessa semana tornei a ver Jacinto todas as noites. Ele tinha telefonado a Gisela no dia seguinte de manhã e Gisela tinha-me dado o recado. Jacinto devia voltar a Milão na véspera da noite do dia que eu tinha marcado para me encontrar com Gino; fora esta a razão pela qual consentira em encontrar-me com ele todas as noites. Doutra maneira, teria recusado, porque jurara a mim mesma que não teria encontros seguidos com qualquer homem. Pensava que era preferível, já que tinha que ter esta vida, fazé-lo francamente, mudando de amante de cada vez, em lugar de me enganar a mim própria e de me dar a ilusão de não o fazer deixando-me sustentar por um homem só, com o risco de me afeiçoar a ele ou de o deixar afeiçoar-se a mim, e perder assim não só a liberdade física mas também a dos sentimentos. De resto, guardara intactas as minhas ideias sobre a vida conjugal e regular; pensava então que se tivesse de me casar não seria com um amante que me sustentasse e que por fim decidisse tornar legais, mas não morais, relações de interesse; isso aconteceria com um rapaz que eu amasse e por quem fosse amada, que fosse da minha condição, com os mesmos gostos e as mesmas ideias que eu. Queria, em resumo, que a vida que escolhera ficasse bem distinta das minhas velhas aspirações, sem contágios nem compromissos. Porque me sentia, num certo sentido, levada a ser uma boa esposa e uma boa cortesã, mas incapaz de escolher, como entendia que devia fazer Gisela, o meio termo hipócrita e prudente entre as duas soluções. Sem contar que, feitas as contas, se podia obter mais do escrúpulo de muitos que da generosidade de um só.

Durante todas aquelas noites, Jacinto levou-me a jantar ao seu restaurante habitual e acompanhou-me a minha casa onde se demorava. Minha mãe renunciou a falar destas noites; limitava-se a perguntar-me se dormira bem quando de manhã entrava no meu quarto, a uma hora avançada, para me levar o café num tabuleiro. Este café, já o disse, costumava engoli-lo na cozinha, muito cedo, de pé, junto da chaminé, ainda com o frio da água nas mãos e na cara. Mas agora minha mãe trazia-mo ao quarto e eu bebia-o na cama, enquanto ela abria as persianas e tratava de dar alguma arrumação ao quarto. Não lhe dizia nunca mais do que já lhe dissera, mas ela percebera por si própria que tudo tinha mudado na nossa vida e mostrava pelo seu comportamento que compreendia que espécie de mudança se operara. Agia como se entre nós houvesse um acordo tácito e parecia, pelas suas atenções, pedir-me humildemente que lhe permitisse, na nossa vida nova, servir-me e tornar-se útil como outrora. Devo dizer que este hábito de me trazer o café à cama devia tranquilizá-la num certo sentido, por que muita gente — e minha mãe era dessas — atribui aos hábitos um valor positivo, mesmo que não tenham, como este, essa característica. Manifestou o mesmo zelo introduzindo todos os dias pequenas mudanças da mesma ordem na nossa vida quotidiana: tanto assim que me preparou uma grande panela de água quente para me lavar ao levantar, pôs flores numa jarra no quarto e assim por diante.

Jacinto dava-me sempre a mesmo soma de dinheiro e eu, sem dizer nada a minha mãe, ia-a depositando no fundo de uma gaveta, numa caixa onde até agora ela guardara as suas economias. Ficava com pouco dinheiro para mim. Imaginava que ela já se tinha apercebido destas adições diárias ao nosso património, mas nunca trocámos uma única palavra a tal respeito. Durante a minha vida pude observar que mesmo aqueles cujo dinheiro tem uma origem lícita não gostam de falar nisso, não só com estranhos, mas até mesmo com os íntimos. Sem dúvida liga-se ao dinheiro um sentimento de vergonha ou talvez de pudor que o risca das conversas normais e se relega para o plano das coisas secretas inconfessáveis, nas quais não se deve falar. Como se, qualquer que seja a sua origem, ele fosse sempre mal adquirido. Talvez também ninguém goste de mostrar o sentimento que o dinheiro suscita na sua alma: um sentimento muito forte, quase sempre inseparável de uma sombra de culpa.

Numa dessas noites, Jacinto exprimiu o desejo de dormir comigo no meu quarto, mas eu, com o pretexto de que os vizinhos notariam a sua presença de manhã, quando ele saísse, não consenti. Na realidade, depois da primeira noite, a nossa intimidade não avançara; mas não por minha culpa. Até ao dia da nossa separação continuou a portar-se exactamente como na primeira noite. Era na verdade um homem de valor nulo ou quase nulo na intimidade, e tudo o que eu podia sentir por ele já o sentira na primeira noite, enquanto dormia. A ideia de dormir com um homem assim repugnava-me; depois receava que me aborrecesse, porque tinha a certeza de que me obrigaria a estar acordada uma parte da noite para me fazer confidências e falar-me dele. No entanto, ele não se apercebeu nem do meu aborrecimento nem da minha antipatia e partiu convencido de ter sido, durante aqueles dias, extraordinariamente simpático.

Chegou o momento do meu encontro com Gino. Aconteceram tantas coisas no decurso destes dez dias que eu tinha a impressão de que se tinham passado cem anos depois do tempo em que o via antes de ir para o atelier a fim de ganhar dinheiro e montar a minha casa e me considerava como uma noiva prestes a casar-se. Ele foi pontual e chegou à hora que lhe tinha marcado; quando subi para o carro, tive a impressão de que ele estava extremamente pálido e parecia atrapalhado. Ninguém gosta de sentir que se lhe atira à cara uma traição, mesmo o traidor mais corajoso; ao longo destes dez dias de interrupção das relações habituais ele deve ter reflectido muito e feito muitas suposições. Todavia, eu não mostrava qualquer ressentimento, e verdadeiramente não necessitava de fingir, porque o meu espírito estava tranquilo; passada a primeira dor da desilusão, a minha alma inclinava-se para uma espécie de indulgente e céptica afeição. Em resumo, ainda gostava de Gino e foi o que percebi logo que lhe deitei o primeiro olhar. Já era muito.

Enquanto o carro se dirigia para a moradia, perguntou-me, passados uns instantes:

— Então, o teu confessor mudou de ideias?

Tinha um tom brincalhão, mas ao mesmo tempo pouco seguro. Respondi-lhe simplesmente:

— Não… eu é que mudei de ideias…

— E esse trabalho para a tua mãe acabou?

— Por agora.

— É estranho.

Não sabia o que dizia; mas era claro que procurava picar-me para ver se as suas suposições eram verdadeiras.

— É estranho porquê?

— Falei por falar.

— Não acreditas que o tenha feito?

— Não acredito nem deixo de acreditar.

Decidi atrapalhá-lo, mas à minha maneira, fazendo o jogo do gato e do rato, sem as violências aconselhadas por Gisela e que não eram para o meu feitio. Perguntei-lhe com coquetterie:

— Estarás com ciúmes?

— Eu, com ciúmes? Pelo amor de Deus!

— Estás com ciúmes, estás! Se fores sincero, tens de o confessar!

Mordeu o anzol que lhe preparara e declarou:

— No meu lugar qualquer pessoa estaria com ciúmes!

— Porquê?

— Ora! Como queres que te acredite! Um trabalho tão importante que não te permite dispensar cinco minutos para me falar… Vamos!

— E no entanto é a verdade: trabalhei muitíssimo — disse-lhe tranquilamente.

Era verdade. Que outra coisa era senão trabalho o que eu tinha com Jacinto todas as noites?

— E ganhei com que pagar as nossas prestações e o meu enxoval — acrescentei, troçando de mim própria. — Assim, pelo menos, podemo-nos casar sem dívidas!

Ele nada disse. Estava quase convencido a acreditar na verdade das minhas afirmações e a abandonar as suas primeiras desconfianças. Tive então um gesto que me era habitual dantes: passei-lhe um braço em torno do pescoço enquanto conduzia e beijei-o por baixo da orelha, murmurando-lhe:

— Porque tens ciúmes? Sabes bem que só tu existes na minha vida!

Chegámos à moradia. Gino entrou com o carro no jardim e, fechando o portão, dirigiu-se comigo para a porta de serviço. Era ao entardecer; brilhavam já as primeiras luzes nas janelas das casas vizinhas; pareciam vermelhas na bruma azulada desta tarde de Inverno. O corredor da cave estava muito escuro e sentia-se um cheiro a bafio. Parei e disse-lhe:

— Esta tarde não quero ir para o teu quarto!

— Porquê?

— Quero que vamos para o quarto da tua patroa.

— Tu estás doida! — gritou, escandalizado.

Tínhamos ido muita vez aos quartos lá de cima, mas as nossas relações tínhamo-las tido sempre na cave.

— É um capricho… Que mal há nisso? — disse-lhe.

— Há muito… pode partir-se alguma coisa… que sei eu? Se eles descobrem, que vou eu fazer?

— Olha a grande coisa! — gritei com ar trocista. — Despedem-te e pronto!

— Vês como dizes isso?

— Como querias que dissesse? Se me quisesses de verdade, não pensarias um minuto.

— Amo-te, mas não me peças isso; nem é bom pensar nisso; não quero sarilhos!

— Mas nós tínhamos cuidado… eles não dariam por isso!

— Não! Não!

Eu estava perfeitamente calma. Continuei a fingir uma atitude que não sentia e gritei:

— Então eu, que sou a tua noiva, peço-te para me fazeres um gosto, e tu, com medo que eu ponha o meu corpo onde a tua patroa põe o seu e que apóie a minha cabeça onde ela apóia a sua, recusas-mo? Mas que imaginas tu? Que ela vale mais do que eu?

— Não, mas…

— Valho dez mulheres como ela — continuei. — Pior para ti! Não tens mais que ir para a cama com os lençóis e a almofada da tua patroa… Eu vou-me embora!

Já o fiz notar: o respeito e a timidez que lhe inspiravam os patrões eram grandes; orgulhava-se ingenuamente deles, como se de qualquer maneira a sua riqueza fosse a dele; no entanto, quando me ouviu falar desta maneira e me viu disposta a ir-me embora com uma decisão nova a que ele não estava habituado, perdeu a cabeça e correu atrás de mim, gritando:

— Mas espera… aonde vais? Falei por falar… vamos para cima se isso te dá prazer!

Fiz-me ainda um pouco rogada, tomando ares ofendidos, depois aceitei. Foi assim que, enlaçados e parando de tempos a tempos sobre os degraus para nos beijarmos, exactamente como da primeira vez, mas com um estado de espírito bem diferente, pelo menos no que me dizia respeito, subimos ao andar superior. Uma vez no quarto da sua patroa, ele objectou:

— Queres mesmo meter-te na cama?

— E porque não? — respondi tranquilamente. — Não estou disposta a apanhar frio!

Calou-se, desnorteado. Eu, depois de ter preparado a cama, passei para a casa de banho, acendi o esquentador e abri a torneira da água quente muito pouco, de maneira que a tina não se enchesse muito depressa. Gino seguiu-me inquieto e descontente. Protestou de novo:

— Vais tomar banho também?

— Eles também não tomam banho antes de irem para a cama fazer o que nós vamos fazer?

— Eu é que sei o que eles fazem? — respondeu-me encolhendo os ombros.

Eu via que lá no fundo estas audácias não o desgostavam; somente, custava-lhe a aceitá-las. Era um homem pouco corajoso que não gostava de desobedecer. Mas as infracções às regras atraíam-no, até porque raramente se permitia praticá-las.

— Afinal tens razão — disse, passados uns momentos, com um sorriso ao mesmo tempo mortificado e desejoso, apalpando os colchões. — Está-se melhor aqui que no meu quarto!

Sentámo-nos na beira da cama.

— Gino — disse, deitando-lhe os braços à roda do pescoço. — Como vai ser bom, quando tivermos uma casa para nós os dois… Não será como esta, mas será a nossa.

Não sei bem porque falava assim. Provavelmente porque sabia de antemão que todas estas coisas eram impossíveis e gostava de me ferir onde mais me doesse.

— Sim, sim — disse abraçando-me.

— Eu sei o que quero da vida — continuei com o sentimento cruel de falar numa coisa para sempre perdida. — Não preciso de uma bela casa como esta. Bastam-me dois quartos e uma cozinha, mas com tudo o que é necessário e asseada como um espelho. Viver tranquila lá dentro, sairmos juntos ao domingo, comer juntos, dormir juntos… Pensa bem como vai ser bom, Gino!

Ele nada disse. Para dizer a verdade, falando assim, eu já não sentia a menor emoção. Tinha a impressão de representar um papel; estava no palco. Mas já não me parecia agora tão amargo. Esta personagem, tão fria e exterior, que não suscitava da minha parte a menor participação, tinha sido eu própria dez dias antes. Entretanto, enquanto eu falava, Gino despia-me impaciente e apercebi-me uma vez mais, como no momento em que subi para o carro, de que continuava a gostar dele, o que me fez pensar com tristeza e despeito que era talvez mais o meu corpo, sempre pronto a aceitar o prazer, do que o meu espírito, agora distante, que me tornava tão indulgente e disposta a perdoar. Ele acariciava-me e beijava-me e as suas carícias e os seus beijos faziam-me arder o cérebro: o prazer dos sentidos era mais forte do que a revolta do coração.

— Matas-me — murmurei cheia de desejo, caindo sobre a cama.

Mais tarde enfiei as pernas debaixo dos lençóis; ele fez o mesmo e ficámos deitados com a colcha bordada deste leito luxuoso puxada até ao queixo. Uma espécie de dossel, suspenso sobre as nossas cabeças, deixava cair em torno do travesseiro várias camadas de tule branco e vaporoso. Todo o quarto era branco, com cortinados leves nas janelas, lindos móveis baixos encostados às paredes e objectos brilhantes de vidro, de mármore e de metal. Os lençóis finos e sedosos pareciam acariciar-me o corpo, o colchão cedia docemente a cada movimento, acordando nos membros um profundo desejo de dormir e de repousar. Da casa de banho, pela porta aberta, o ruído da água caindo na tina chegava-me aos ouvidos como um gorjeio tranquilo. Sentia o maior bem-estar e nenhum rancor contra Gino. O momento pareceu-me propício para lhe dizer que sabia tudo, porque estava certa de lho dizer gentilmente, sem sombra de ressentimento.

— Então, Gino — disse-lhe com voz acariciadora, depois de um longo silêncio —, a tua mulher chama-se Antonieta Partini?

Com certeza que dormitava, porque teve um violento sobressalto, como se o sacudissem bruscamente pelos ombros.

— Mas, que estás a dizer? — perguntou.

— E a tua filha chama-se Maria, não é?

Quis protestar de novo, mas olhou-me nos olhos e compreendeu que seria inútil. Tínhamos a cabeça na mesma almofada, os rostos lado a lado e eu falava-lhe quase sobre a sua boca.

— Pobre Gino! — continuei. — Porque me disseste tantas mentiras?

— Porque te amava! — respondeu-me com violência.

— Se me amasses realmente, devias ter pensado que logo que descobrisse a verdade iria sofrer muito… Mas não pensaste nisso, não foi, Gino?

— Amava-te, perdi a cabeça…

— Isso basta — interrompi —, de momento magoou-me muito… Não pensava que fosses capaz… Mas agora acabou-se… não falemos mais nisso… Para já, vou tomar banho.

Desembaracei-me das roupas, levantei-me e fui para a casa de banho. Gino deixou-se ficar onde estava.

A tina estava cheia de água quente e azulada, que contrastava de forma agradável com as cerâmicas brancas e as torneiras cintilantes. Entrei na tina e pouco a pouco mergulhei no líquido escaldante.

Uma vez estendida no fundo da tina, fechei os olhos. Não vinha qualquer ruído do quarto ao lado. Gino ruminava com certeza a minha declaração e procurava elaborar um plano para não me perder. Sorri ao pensar nele, perdido na grande cama de casal com a notícia dada em pleno rosto, como uma bofetada. Mas sorria sem maldade, como se ri de uma coisa cómica e que em nada nos afecta, porque não sentia o menor rancor contra ele. Conhecendo-o agora como ele era na realidade, tinha quase a impressão de nutrir por ele uma espécie de afeição. Em seguida, ouvi-o andar no quarto; devia estar a vestir-se. Passado um momento, apareceu à porta da casa de banho e olhou-me com olhos de cão batido, como se não ousasse entrar.

— Então não nos tornamos a ver?… — disse-me em voz baixa depois de um longo silêncio.

Compreendi que realmente gostava de mim, embora à sua maneira, sem que lhe repugnasse mentir-me e atrair-me a uma armadilha.

Lembrei-me de Astárito e pensei que Astárito também me amava — mas também à sua maneira. Respondi-lhe, enquanto ensaboava um braço.

— Porque não nos havemos de ver mais? Se não te quisesse tornar a ver, não teria vindo hoje. Continuaremos a ver-nos… mas menos vezes.

Estas palavras pareceram dar-lhe coragem.

— Queres que te ensaboe? — perguntou-me entrando na casa de banho.

Não pude deixar de pensar em minha mãe, também ela cheia de atenções e cuidados comigo.

E respondi secamente:

— Se quiseres… As costas, que eu não chego lá.

Gino agarrou o sabonete e a esponja; pus-me de pé e ele ensaboou-me as costas todas. Olhava-me no espelho que estava em frente da tina, a toda a altura, e parecia-me ser a dona de todas aquelas belas coisas. Ela também se poria de pé como eu estava agora e uma criada de quarto, uma pobre rapariga como eu, a ensaboaria e a lavaria respeitosamente e com mil cuidados para não a arranhar. Pensava em como devia ser agradável, em lugar de se usar as próprias mãos, ser-se servida por outra pessoa, ficar tranquila e inerte enquanto outra, cheia de respeito e solicitude, se incomodaria para nos servir.

A ideia que me assaltou quando entrara pela primeira vez nesta casa de que toda nua, desembaraçada dos meus trapos, eu valia tanto como a patroa de Gino, voltou a assaltar-me. No entanto, o meu destino era diferente do dela; era uma injustiça. Irritada, disse a Gino :

— Já chega!

Ele foi buscar um roupão de banho e enquanto eu saía da tina pousou-mo nos ombros para que me pudesse enrolar nele. Tentou beijar-me, talvez para ver se eu lho permitiria. Eu, de pé, envolta no tecido branco, deixei-o beijar-me o pescoço. Em seguida começou a friccionar-me em silêncio, o corpo todo, começando pelos tornozelos e subindo até ao seio com um zelo e uma habilidade como se não tivesse feito outra coisa durante toda a vida; fechei os olhos imaginando de novo que eu era a patroa e ele a criada de quarto. Gino tomou a minha atitude passiva por uma entrega e bruscamente senti que deixara de me friccionar e me acariciava. Então repeli-o, deixei cair a toalha, e com o corpo já bem seco tornei a entrar no quarto, nas pontas dos pés. Gino ficou na casa de banho a despejar a tina. Vesti-me à pressa e olhei em torno examinando o mobiliário. Parei em frente do toucador, semeado de objectos de madrepérola e ouro. Reparei, num canto, no meio de escovas e de frascos de perfume, numa pequena caixa de pó de arroz toda de ouro. Peguei nela e olhei-a. Era muito pesada e parecia maciça. Era quadrada, inteiramente cinzelada e um grande rubi servia de fecho. Tive uma impressão, não tanto de tentação como de descoberta; de futuro podia fazer tudo, até mesmo roubar. Abri a mala e meti nela a caixa, que caiu com todo o seu peso entre as moedas miúdas e as chaves de casa. Experimentei ao tirá-la uma alegria sensual muito parecida com a que me inspirava o dinheiro recebido dos amantes. Para dizer a verdade, não sabia o que iria fazer com uma coisa tão preciosa, que não dizia nem com as minhas toilettes nem com a vida que levava. Tinha a certeza de que nunca me serviria dela. Mas roubando obedeci à lógica que determinava daí em diante as vicissitudes da minha vida. Pensava que uma vez a casa construída era preciso pôr-lhe um tecto.

Gino entrou no quarto. Com um cuidado servil, arranjou a cama e todos os objectos que lhe pareceram ter sido desarrumados.

— Ora! Ora! — disse-lhe com desdém, quando o vi, depois deste trabalho, olhar em volta com ansiedade, para se certificar se tudo estava no seu lugar habitual. — Ora! A tua patroa não dá por coisa alguma. Ainda não é desta vez que vais para a rua!

Notei que ao ouvir as minhas palavras o seu rosto se crispou dolorosamente e senti remorsos por té-las dito, porque eram maldosas e nem sequer eram sinceras.

Não abrimos a boca, nem enquanto descíamos a escada interior nem depois no jardim, quando subimos para o carro. Tinha anoitecido havia muito. Assim que o carro começou a percorrer as ruas do bairro elegante, como se eu esperasse apenas por esse momento, comecei a chorar docemente. Não sabia porque chorava, mas a minha amargura era enorme.

Não sou feita para representar papéis de mulher desiludida ou desesperada, e durante toda a tarde em que me tinha esforçado por parecer serena, muitos dos meus gestos e muitas das minhas palavras traziam a marca da desilusão e da raiva. Pela primeira vez, através das lágrimas, experimentava um verdadeiro rancor contra Gino, cuja traição me levava a sentimentos que não gostava de sentir e que não estavam de acordo com o meu carácter. Pensava que sempre fora doce e boa e que talvez doravante já não o fosse, e esta ideia enchia-me de desespero. Teria querido perguntar a Gino: “Porque fizeste tudo isto? Como poderei esquecer?” Mas calei-me, deixando correr as lágrimas e sacudindo de vez em quando a cabeça para as fazer tombar dos olhos, como se sacode um ramo para fazer cair os frutos mais maduros. Atravessámos a cidade toda quase sem que eu desse por isso. O carro parou, desci e estendi a mão a Gino dizendo :

— Telefonar-te-ei.

Olhou-me esperançado, mas a sua expressão mostrou-se espantada quando me viu a cara banhada de lágrimas. Mas não teve tempo de falar; fiz-lhe um gesto de despedida acompanhado de um sorriso contrafeito e afastei-me.

9

Foi assim que a minha vida começou a girar sempre para o mesmo lado e com as mesmas personagens, como o carrocel do Luna Parque que eu via, rapariguinha, da janela da minha casa e do qual o brilhante girar me enchia de alegria o coração.

Também no carrocel há poucas personagens e sempre as mesmas. Ao som de uma música estridente e desafinada, vêem-se desfilar o cisne, o gato, o automóvel, o cavalo, o trono, o dragão e o ovo e assim por diante, durante toda a noite. Eu também via girar as silhuetas dos meus amantes, quer fossem homens que eu já conhecesse quer fossem desconhecidos, em tudo parecidos com os primeiros. Jacinto vinha de Milão, donde me trazia meias de seda, e durante algum tempo via-o todas as noites. Depois Jacinto tornava a partir e recomeçava a ver Gino, uma ou duas vezes por semana. Noutras noites ia com outros homens que encontrava na rua ou que Gisela me apresentava. Havia os jovens, os menos jovens e os velhos; alguns simpáticos, que me tratavam com gentileza, outros desagradáveis, que me consideravam como um objecto comprado e vendido; mas no fundo, como decidira não me prender a alguém, era sempre a mesma música. Encontrávamo-nos na rua, ou no café, íamos por vezes jantar juntos, depois corríamos para minha casa. Aí fechávamo-nos no quarto, eu entregava-me, falávamos um pouco, depois o homem pagava e ia-se embora e eu passava para a sala grande, onde minha mãe me esperava. Se tinha fome comia e em seguida deitava-me. Algumas vezes, mas muito raramente, se ainda era cedo, tornava a sair e voltava à cidade a procurar outro homem. Mas havia também os longos dias em que ficava em casa sem fazer nada e sem querer ver ninguém. Tornara-me muito preguiçosa, de uma indoléncia triste e voluptuosa, e assaltava-me uma sede de repouso e de tranquilidade que não era somente a minha, mas a da minha mãe e de toda a raça de seres sempre fatigados e sempre pobres, a que eu pertencia. Frequentemente, ao ver a gaveta das economias vazia, isso bastava para me fazer sair de casa e me levar a calcorrear as ruas em busca de um companheiro; mas também com frequência a minha preguiça me vencia, e preferia pedir dinheiro emprestado a Gisela ou mandar minha mãe comprar a crédito nas lojas.

E, no entanto, não poderia dizer que realmente esta vida me desagradava. Depressa percebi que a minha inclinação por Gino nada tinha de especial ou de única e que no fundo quase todos os homens, por uma razão ou por outra, me agradavam. Não sei se isto acontece a todas as mulheres que levam a mesma vida que eu, ou se indica a presença de uma particular vocação; o que sei é que sentia todas as vezes um frémito de curiosidade e de expectativa que raramente resultava em decepção.

Dos jovens, gostava dos corpos compridos, magros, ainda adolescentes, os gestos desajeitados, a timidez, os olhos acariciadores, os lábios e os cabelos cheios de frescura. Dos homens maduros, gostava dos braços musculosos, largos peitos, um não sei quê de maciço e de possante que a virilidade empresta aos ombros, ao ventre e às pernas; por fim até mesmo os velhos me agradavam, pois o homem não é, como a mulher, escravo da idade; até na velhice eles conservam um encanto particular. O facto de mudar todos os dias de amante permitia-me distinguir à primeira vista qualidades e defeitos com a precisão e a penetração de observação que só a experiência permite adquirir. Além disso, o corpo humano era para mim uma fonte inesgotável de um prazer misterioso e nunca saciado; mais de uma vez me surpreendi a acariciar com os olhos ou a tocar com as pontas dos dedos os membros dos meus companheiros de uma noite, com se quisesse, para além das superficiais relações que nos uniam, penetrar o sentido do seu interesse por mim e explicar a mim própria por que motivo me atraíam tanto. Mas procurava esconder esta atracção o mais que podia, porque estes homens, na sua vaidade sempre desperta, podiam tomá-la por amor e imaginar que me apaixonara por eles, quando na realidade o amor — pelo menos como eles o entendiam — nada tinha a ver com o meu sentimento, o qual se parecia mais com o respeito e a vibração que experimentava antigamente quando frequentava a igreja assistindo a certos actos religiosos.

O dinheiro que ganhava desta maneira não era tanto como poderia imaginar-se. Primeiro, nunca chegava a ser tão ávida e venal como Gisela. Decerto que esperava que me pagassem porque se eu “ia” com os homens não era para me divertir; mas a minha natureza levava-me a entregar-me mais por uma espécie de exuberância física do que por espírito de lucro, e não pensava no dinheiro senão no momento em que me pagavam, o que era tarde. Sempre tive a convicção de que a mercadoria que eu fornecia aos homens nada me custava e não se pagava; recebia esse dinheiro mais como um presente do que como um salário: parecia-me que o amor não devia pagar-se e nunca estava bem pago; presa a esta modéstia e a esta presunção, sentia-me incapaz de fixar um preço que não me parecesse arbitrário; também quando me davam muito, agradecia com uma excessiva gratidão, e quando me davam pouco nunca me sentia roubada nem protestava. Só mais tarde, levada por algumas decepções amargas, é que me decidi a imitar Gisela, que discutia as suas condições antes de chegar a acordo. Mas ao princípio corava, murmurava os preços entre dentes; muitos não me percebiam; tinha sempre que repetir.

Havia ainda outro motivo que tornava insuficiente o dinheiro que ganhava. Olhando às despesas muito menos que dantes, permitindo-me a compra de muitos mais vestidos, perfumes, artigos de toilette e outros objectos semelhantes necessários à minha profissão, o dinheiro que recebia dos meus amantes não era mais do que aquele que outrora ganhava sendo modelo e ajudando minha mãe a trabalhar. Como dantes, e ainda com mais frequência agora, havia dias em que não tínhamos um centavo em casa. E como antigamente, e até mesmo pior, a despeito do sacrifício da minha honra, sentia-me pobre e pensava com angústia na insegurança do dia de amanhã. Sou de natureza alegre e calma; esta inquietação nunca tomou em mim um carácter de obsessão, como noutras pessoas menos equilibradas e menos indiferentes. Mas estava na minha consciência obscura como um verme de um velho móvel; advertia-me constantemente de que eu estava desprovida de tudo, que não podia esquecer esta precária condição e descansar, nem melhorar definitivamente com a profissão que escolhera.

Aquela que nada sentia, ou pelo menos parecia não sentir qualquer inquietação, era minha mãe. Dissera-lhe logo que não era necessário que desperdiçasse a sua vida cosendo o dia inteiro. Como se toda a vida ela não esperasse outra coisa que esta advertência, abandonou imediatamente a maior parte do trabalho e limitou-se à execução desinteressada de uma ou outra encomenda, mais para passar o tempo que pelo desejo de ganhar alguma coisa. Era como se o esforço de todos estes anos, a começar no tempo em que eu era rapariga e servia uma família como criadinha, se afundasse bruscamente sem deixar resíduos e sem remédio, à maneira das velhas casas que logo que se desmoronam desaparecem, entram em si próprias, se bem que não tenham uma única parede de pé; nada fica senão um montão de poeira. Para uma pessoa como minha mãe, o dinheiro queria dizer comer e descansar até à saciedade. Comia mais que nunca e permitia-se pequenos luxos que na sua ideia distinguiam os ricos dos pobres: levantar-se tarde, dormir depois do almoço, passear de vez em quando. Devo dizer que o efeito que produziu nela esta mudança de hábitos foi talvez o lado mais desagradável da minha nova vida. Sem dúvida, os que estão habituados a trabalhar nunca deviam parar: o descanso, o bem-estar, mesmo de uma origem boa e lícita — não era porém o caso —, corrompem-nos. Ao mesmo tempo que a nossa situação melhorava, minha mãe engordava, ou, para ser mais exacta, dada a rapidez com que desapareceu a sua magreza ofegante e angulosa, ela inchava de uma forma doentia e de uma maneira que me pareceu significativa, embora isso não me surgisse com clareza. As suas ancas agudas arredondaram-se, os ombros secos cobriram-se, as faces, que sempre foram cavadas, encheram-se e refloriram como se tivessem sido assopradas. Mas o pormenor mais triste da sua transformação física foram os olhos. Outrora grandes e dilatados, com uma expressão excitada e inquieta, reflectiam agora uma luz equívoca e ambígua. Tinha engordado, mas sem beleza nem rejuvenescimento. Parecia-me que era ela quem trazia no corpo e na cara a marca visível da nossa mudança de vida; nunca a podia olhar sem experimentar um sentimento penoso misturado de remorso, compaixão e repugnância. Ela aumentava o meu mal-estar assumindo atitudes de gulosa e feliz satisfação. Na realidade, rejubilava por não ser forçada a trabalhar e estas atitudes eram as de uma mulher que durante toda a sua vida nunca comera nem descansara o suficiente.

Naturalmente eu não deixava transparecer os meus sentimentos para não a magoar, sem contar que havia certas coisas que deveria dizer primeiro a mim antes de as dizer a ela. Mas de tempos a tempos escapavam-me gestos de contrariedade. Tinha a impressão de gostar menos dela, agora que estava grande e gorda e caminhava rolando as ancas, do que quando berrava, corria e se chorava todo o dia, desgrenhada e ávida. Chegava por vezes a perguntar a mim própria: “Se tivesse conseguido o bem-estar por meio de um bom casamento, a minha mãe teria engordado desta maneira?” Hoje penso que sim; não sei que sintoma ignóbil eu julgava notar na sua gordura; atribuo-o agora ao olhar que lhe lançava, carregado, mesmo sem querer, de clarividência e remorso.

Não escondi durante muito tempo a Gino a minha nova condição. Tive mesmo a ocasião de lha revelar bem depressa, a primeira vez em que o vi, quinze dias depois de nos termos encontrado em casa dos seus patrões. Uma manhã minha mãe veio acordar-me e, com voz embargada e cúmplice, disse-me:

— Sabes quem está ali à porta e te quer falar? O Gino!

— Diz-lhe que entre — respondi simplesmente.

Um pouco decepcionada com a resposta, abriu a janela e saiu. Passado um momento, Gino entrou e percebi logo que estava perturbado e furioso. Nem me deu os bons-dias. Girou em torno da cama e olhou-me, estendida e ensonada como estava. Depois perguntou:

— Ouve lá… No outro dia não trouxeste por engano um objecto que estava em cima do toucador da senhora?

“Ele aqui está”, pensei eu. Não experimentava qualquer sentimento de culpa, enquanto que, mais uma vez, a assustada servidão de Gino me fazia pena.

— Porquê? — disse-lhe.

— Desapareceu uma caixa de grande valor… de ouro… com um rubi… A senhora fez uma fita dos diabos, e como de qualquer maneira foi a mim que a casa ficou confiada, não me dizem, mas compreendo muito bem que me supõem… Felizmente que só deu por isso ontem, uma semana depois de ter voltado: assim é possível que tenha sido uma das criadas de quarto que a tenha roubado… Se não fosse isso, já me teriam acusado, despedido, preso… sei lá?

Tive medo de culpar algum inocente e perguntei:

— Mas já fizeram alguma coisa às criadas de quarto?

— Não — respondeu, muito nervoso. — Mas pediram ao comissário para nos interrogar; há dois dias que não se respira naquela casa.

Hesitei um momento, depois declarei:

— Fui eu quem a tirou.

Semicerrou os olhos, com uma careta maldosa de todo o rosto.

— Foste tu quem a tirou… e é assim que o dizes?

— Como deveria dizer?

— Mas isso chama-se roubar!

— Pois chama.

Olhou-me e de repente encolerizou-se; talvez tivesse medo das consequências do meu acto, ou pressentia, de uma maneira confusa, que a primeira responsabilidade deste roubo era dele.

— Diz-me lá — gritou. — Que te passou pela cabeça? Ah! Foi para isso que quiseste ir para o quarto da senhora… agora percebo! Mas eu, minha querida, não quero estar misturado nisto. Se tu queres roubar, rouba onde muito bem te parecer, mas não na casa onde trabalho. Uma ladra! Estava fresco se tivesse casado contigo… teria casado com uma ladra!

Deixei-o dar livre curso à sua raiva, observando-o atentamente. Admirava-me de o ter achado durante tanto tempo perfeito. Não havia dúvida, bem perfeito! Quando me pareceu que acabara as reprimendas, disse-lhe por fim:

— Mas porque te zangaste tanto, Gino? Não te acusam de teres roubado… Vão falar ainda nisso durante algum tempo e depois passará à história. Meu Deus, com tantas caixas que tem a tua patroa, vale bem a pena!

— Mas porque a roubaste? — perguntou-me.

Era claro que queria ouvir dizer aquilo que vagamente adivinhava.

— Porque sim! — disse-lhe.

— Porque sim não é resposta.

— Então, se tu queres realmente saber — disse-lhe tranquilamente —, roubei-a, não por inveja nem porque precisasse, mas porque de futuro até já posso roubar.

— Que queres dizer? — disse-me. Mas eu não o deixei continuar.

— A noite — expliquei-lhe — vou pelas ruas, procuro um homem, trago-o para aqui e ele paga-me. Se faço isto, posso também roubar, não é verdade?

Compreendeu e teve uma reacção característica.

— Também fazes isso?… Mas é perfeito!… Estava fresco se tivesse casado contigo!

— Não o faria — respondi-lhe. — Comecei a fazê-lo no momento em que soube que tinhas mulher e filha.

Ele esperava já esta frase.

— Não, minha rica — respondeu-me. — Não deites agora as responsabilidades para cima das minhas costas. Só se torna prostituta ou ladra quem o quer ser.

— Então é porque eu já o era sem o saber — disse-lhe. — E tu não fizeste outra coisa senão oferecer-me a ocasião de o chegar a ser de facto.

A minha calma mostrou-lhe que era inútil discutir. Mudou então de táctica.

— Bem… O que és ou o que fazes não é da minha conta… Mas essa caixa, é preciso que ma devolvas… Senão, mais tarde ou mais cedo, perderei o meu lugar… Preciso que ma dês e fingirei que a encontrei… no jardim, por exemplo.

— Porque me dizes tudo isso? — respondi-lhe. — Se é para não perderes o lugar… podes levá-la… está aí na primeira gaveta do armário.

Com ar aliviado, precipitou-se para o armário, abriu a gaveta, agarrou na caixa e meteu-a no bolso. Depois olhou-me de uma maneira onde havia desejo de reconciliação. Mas não tive coragem de enfrentar a cena embaraçosa que este olhar me fazia prever.

— Tens lá em baixo o carro? — perguntei-lhe.

— Tenho.

— Está bem! É tarde, é melhor que não demores; tornaremos a falar nisto na próxima vez que nos virmos.

— Estás zangada comigo?

— Não.

— Sim, estás!

— Já te disse que não.

Suspirou, curvou-se sobre a cama e deixei que me beijasse.

— Mas telefonas-me? — insistiu, da porta.

— Está descansado.

Foi desta maneira que Gino aceitou o meu novo género de vida. Mas no dia em que nos tornámos a ver não falámos nem da caixa, nem do meu trabalho, como se de futuro essas coisas não tivessem importância e cujo único interesse tivesse sido apenas a novidade. Portou-se um pouco como minha mãe, salvo que não pareceu experimentar, nem por um instante, o pavor manifestado por ela a primeira vez em que eu trouxe Jacinto para casa, e que me parecia por vezes sentir ainda perpassar por entre a sua satisfação, ver por debaixo da sua gordura balofa. O importante do carácter de Gino era, pelo contrário, uma espécie de finura tola e desentendida. Imagino que logo que conheceu a mudança que a sua traição operara na minha vida encolheu os ombros dizendo: “Matei dois coelhos de uma cajadada. Assim não me pode acusar de coisa alguma e continuarei a ser seu amante.” Há homens que consideram uma sorte conservar o que possuem, seja o dinheiro, a mulher e até a própria vida, nem que seja pelo preço da dignidade. Gino era desses.

Continuei a encontrar-me com ele, porque, como já disse, me agradava ainda, apesar de tudo, e porque não tinha alguém que me agradasse mais do que ele, e também porque, se bem que pensasse que de futuro tudo estava terminado entre nós, não queria que este fim fosse brusco e desagradável. Nunca gostei dos cortes decisivos nem de interrupções bruscas. Acho que as coisas da vida devem morrer por si, assim como nascem, por indiferença ou por hábito, uma vez que o hábito é uma variedade de fiel aborrecimento; gosto de as sentir morrer assim, naturalmente, sem que seja por minha culpa nem por culpa de outrem, e vê-las pouco a pouco ceder o lugar a outras. Além de tudo, estas mudanças claras e precisas não existem; quando se quer mudar precipitadamente, corre-se o risco de ver desabrochar com viva tenacidade, quando menos se espera, os velhos hábitos que se tinha a ilusão de ter arrancado de um só golpe e de uma maneira definitiva. Queria que as carícias de Gino acabassem por me ser tão indiferentes como as suas palavras; temia, se não deixasse o tempo agir, vê-lo ressuscitar a cada instante na minha vida, obrigando-me contra vontade a retomar as nossas antigas relações.

Uma outra pessoa que tornou a entrar na minha vida naquele momento foi Astárito. Com ele foi tudo ainda mais simples do que com Gino. Gisela via-o às escondidas e eu supus que ele tinha relações com ela só para ter ocasião de saber notícias minhas. Fosse como fosse, Gisela espiava o momento favorável para me falar dele; quando lhe pareceu que já tinha passado bastante tempo e que eu já estaria mais calma, chamou-me de parte para me dizer que ele lhe pedira notícias minhas.

— Nada me disse de preciso — acrescentou —, mas senti que ainda estava apaixonado por ti… Até me fez pena… parecia muito infeliz… Nada me disse, repito-te, mas percebi que tinha grande desejo de te tornar a ver… Agora, depois de tudo…

Interrompi-a para lhe dizer:

— Ouve, é inútil continuar a falar dessa maneira.

— De que maneira?

— Com tantas precauções! Diz antes francamente que te mandou, que me quer ver e que te comprometeste a levar-lhe a minha resposta.

— Admitindo que seja assim — concordou, desconcertada. — Então?

— Então? — respondi, tranquila. — Diz-lhe que nada me impede de o ver… mas como também tenho outros, bem entendido que é de tempos a tempos, sem compromisso.

Ela ficou estupefacta com a minha calma; estava convencida de que eu odiava Astárito e nunca consentiria em tornar a vê-lo. Não compreendia que o ódio e o amor tinham morrido para mim. Como sempre, pensou que escondia qualquer intenção.

— Tens razão — disse, passados uns instantes, com ar reflectido —, eu no teu lugar faria o mesmo… Há casos nos quais tem que se passar por cima das antipatias. Astárito ama-te de verdade. Era capaz de anular o seu casamento para casar contigo… Não és parva, tu! E eu que te julgava uma ingênua!

Gisela nunca me tinha compreendido; sabia por experiência que seria tempo perdido tentar abrir-lhe os olhos; por isso fitei-a com ar desenvolto e respondi-lhe:

— É assim mesmo — deixando-a num estado de alma onde a inveja se misturava com a mais injuriosa admiração.

Comunicou a minha resposta a Astárito e tornei a vê-lo na mesma pastelaria onde encontrei pela primeira vez Jacinto. Gisela tinha razão; ele continuava a amar-me freneticamente; logo que me viu ficou pálido como um morto, perdeu toda a segurança e não abriu a boca. Esta paixão era mais forte do que ele. Penso que certas mulheres do povo, simples, como minha mãe, por exemplo, tem razão quando, contando histórias de amor, declaram que certos homens foram enfeitiçados pela amante. Sem querer e sem dar por isso, eu exercia sobre Astárito uma espécie de sortilégio; ele tinha consciência disso, e se bem que tentasse livrar-se com todas as forças não o conseguia. Tinha, de uma vez para sempre, feito dele um subordinado; de uma vez para sempre tinha-o desarmado, paralisado e reduzido a nada. Explicou-me mais tarde que por vezes, quando estava sozinho, tentava estudar o papel da personagem fria e desdenhosa que queria representar comigo, indo até ao ponto de decorar frases, mas que quando me via o sangue fugia-lhe do rosto e uma espécie de angústia oprimia-lhe o peito, o espírito turvava-se-lhe, a língua recusava-se a falar. Tinha a impressão de não poder suportar o meu olhar, perdia a cabeça, experimentava o desejo irresistível de se lançar de joelhos diante de mim e de me beijar os pés.

Realmente, ele não era como os outros homens; quero dizer que dava a impressão de estar obcecado. Na noite em que nos tornámos a encontrar, depois de termos ido jantar juntos ao restaurante, sempre num silêncio terno e crispado, apenas chegados a minha casa, obrigou-me a contar em pormenor, sem nada omitir, toda a minha vida depois do dia do passeio a Viterbo até ao meu rompimento com Gino.

— Mas porque te interessa isso tanto? — perguntei, muito admirada.

— Por nada — respondeu. — Mas para ti que mal tem isso? Não te preocupes comigo, conta!

— Pela minha parte não me importo! — respondi, encolhendo os ombros. — Se isso te dá prazer!

E minuciosamente, como me recomendara que o fizesse, contei-lhe tudo o que se passara depois do passeio: como fora a explicação com Gino, como seguira os conselhos de Gisela, como encontrara Jacinto. Só não contei a história da caixa de pó-de-arroz, nem sei bem porquê, talvez para não o colocar numa situação falsa, sendo ele, como era, polícia. Fez-me imensas perguntas, particularmente sobre o meu encontro com Jacinto. Parecia que nunca tinha os pormenores suficientes: dir-se-ia que não queria só saber as coisas, mas vê-las, tocá-las e participar nelas, em suma. Não sei quantas vezes me interrompeu para me dizer:

— E tu, que fizeste?

Ou ainda:

— Mas ele, que te fez?

Quando eu acabava beijava-me, gaguejando:

— Tudo isto foi por minha culpa!

— Não — respondi, um pouco contrariada. — Não foi culpa de ninguém.

— Sim! Foi por minha culpa! Fui eu quem te destruiu! Se não me tivesse portado daquela maneira em Viterbo, tudo se teria passado de uma maneira diferente!

— Enganas-te! — disse-lhe vivamente. — Se alguém está em falta é Gino: tu nada tens que ver com isto! Em Viterbo, meu caro, quiseste possuir-me à força. As coisas que se obtêm dessa maneira não contam! Se Gino não me tivesse enganado, eu teria casado com ele; depois contar-lhe-ia o que se havia passado e seria como se nunca te tivesse conhecido!

— Não, foi por minha causa! Aparentemente a culpa pode ser de Gino… mas no fundo só eu fui o culpado, só eu!

Parecia ter grande empenho em considerar-se culpado: mas julguei compreender que, longe de sentir remorsos, tinha prazer em pensar que me tinha corrompido e desnudado. Sentia prazer… é dizer muito! Excitava-o. Talvez fosse esse o motivo principal da sua paixão por mim. Compreendi isso logo que me apercebi de que muitas vezes, durante os nossos encontros, insistia para que lhe contasse com pormenores o que se passava entre os meus amantes ocasionais e eu. No decorrer destas descrições ficava com uma cara alterada, tensa, atenta, que me desagradava e me fazia corar. Logo a seguir atirava-se para cima de mim, e enquanto me possuía repetia-me com uma intensa paixão palavras injuriosas, brutais, obscenas, que eu não posso repetir e que me pareciam ofensivas até para a mulher mais depravada. Como esta estranha atitude podia estar ligada à sua adoração por mim nunca o compreendi; do meu ponto de vista, é impossível amar uma mulher sem a respeitar; mas no seu caso, o amor e a crueldade pareciam misturar-se, emprestando um ao outro a sua cor e a sua força. Algumas vezes pensava que esta singular volúpia que sentia em me julgar degradada por sua culpa era-lhe sugerida pelo seu trabalho de polícia, o qual consistia precisamente, como o percebi, em procurar o ponto fraco dos acusados, corrompê-los e aviltá-los de maneira que se tornassem inofensivos. Chegou mesmo a dizer-me, já não sei a que propósito, que todas as vezes que conseguia fazer confessar ou domar um acusado, de uma maneira ou de outra, sentia uma satisfação particular, quase física, parecida com a da posse amorosa. “O acusado é como uma mulher — explicava-me. Enquanto resiste tem a cabeça alta. Mas quando cedeu, uma vez só que seja, não é mais que um farrapo que se pode retalhar como e onde se quiser.” Portanto, parecia-me mais provável que o seu carácter cruel e voluptuoso fosse nele uma coisa inata, e se escolhera esta profissão era porque tinha feitio para ela e não o caso contrário.

Astárito não era feliz; ainda mais: a sua infelicidade sempre me pareceu a mais completa e a mais irremediável que vi, porque não provinha de qualquer motivo exterior, mas de uma incapacidade, de uma insegurança que nunca consegui apreender. Quando me fazia contar as minhas experiências profissionais tinha o costume de se ajoelhar na minha frente, de pousar a cabeça nos meus joelhos e ficar imóvel nesta posição às vezes durante uma hora. Não tinha mais que passar-lhe a mão de vez em quando sobre a cabeça, levemente, como as mães fazem aos filhos. De vez em quando gemia, talvez mesmo chorasse. Nunca amei Astárito, mas nesses momentos inspirava-me uma grande compaixão, porque compreendia que sofria e que não havia qualquer meio de lhe aliviar o sofrimento.

Era com a maior amargura que falava da família; da mulher, que odiava, dos filhos, que não amava, dos parentes, que lhe tinham dado uma infância difícil, e depois, quando ele era ainda inexperiente, o tinham obrigado a fazer um casamento desastroso. Ao seu trabalho nem aludia. Chegou até a dizer-me uma vez com uma estranha expressão:

— Nas casas há muitos objectos que não são limpos, mas que são úteis… Eu sou um desses objectos: o caixote do lixo…

Mas, de uma maneira geral, tenho a impressão de que considerava a sua profissão perfeitamente honrosa. Tinha um grande sentimento do dever, e compreendi, na visita que lhe fiz no Ministério, que era um funcionário modelo: zeloso, perspicaz, incorruptível, rígido. Se bem que pertencesse à polícia política, fazia questão de dar a entender que nada percebia de política.

— Sou uma roda de uma engrenagem que gira com as outras rodas do rodado — disse-me um dia. — Não sou eu quem manda: eu executo!

Astárito queria ver-me todas as noites, mas, além do facto de não querer, como já disse, ligar-me a qualquer homem, aborrecia-me e deixava-me mal disposta com a sua gravidade convulsa e as suas bizarrias, tanto que, apesar da piedade que me inspirava, não podia reprimir um suspiro de alívio quando ele se retirava. Tentei portanto vê-lo só raramente, não mais que uma vez por semana. Esta redução dos nossos encontros ao mínimo contribuiu certamente para manter o ardor e a avidez da sua paixão por mim; talvez que, se eu tivesse aceitado as propostas, que constantemente me fazia para ir viver com ele o fosse habituando à minha presença e acabasse por me ver como eu realmente era: uma pobre rapariga como havia tantas. Deu-me o número do telefone que tinha na mesa de trabalho, no Ministério. Era um número secreto. As únicas pessoas que o conheciam eram o prefeito da polícia, o chefe do Governo, o ministro e mais um grupo de pessoas importantes. Quando lhe telefonava respondia logo, mas, assim que compreendia que era eu, a sua voz, que antes era tranquila e límpida, tremia e começava a balbuciar. Estava verdadeiramente submisso, subjugado como um escravo. Lembro-me de que uma vez, distraída, acariciei-lhe a cara sem que mo tivesse pedido. Agarrou-me logo a mão para a beijar com fervor. Chegou a pedir depois que lhe tornasse a fazer espontaneamente esta carícia, mas as carícias não se fazem de encomenda.

10

Muitas vezes, já o disse, não tinha vontade de ir procurar os homens na rua e não saía de casa. Já não me apetecia ficar junto de minha mãe, porque, embora houvesse entre nós um entendimento tácito para se não falar do meu “ofício”, a conversa acabava sempre por girar à volta disso, aborrecida e cheia de alusões; quase preferia que as coisas se dissessem claramente. Fechava-me pois no meu quarto, recomendando a minha mãe que não me incomodasse, e estendia-me em cima da cama. O meu quarto dava para o pátio através de uma janela sempre fechada; nenhum barulho chegava do exterior. Dormitava durante algum tempo, depois levantava-me e girava no quarto, absorvida em qualquer trabalho, como arrumar alguns objectos ou limpar o pó aos móveis. Estas ocupações serviam-me de estimulante para pôr em marcha o maquinismo do meu cérebro e para criar à minha volta uma atmosfera de intimidade concentrada e bem entrincheirada. Começava por pensar com profunda crueza e depois acabava por em nada pensar.

Durante estas horas de solidão havia sempre um momento em que era tomada por um imenso espanto: parecia-me de repente ver, com uma clarividência gelada, toda a minha vida e eu própria, por todos os lados e de todas as maneiras. As coisas que eu fazia tomavam a clareza de uma síntese. Dizia-me a mim própria: “Trago aqui muitas vezes homens que encontro na rua sem me conhecerem… Lutamos enlaçados na cama, como dois inimigos… Depois dão-me uma folha colorida de papel impresso. No dia seguinte troco este papel por alimentos, vestidos e outras coisas necessárias.” Mas este enunciado não era mais que um primeiro passo no caminho de um espanto mais profundo. Servia para me desembaraçar o espírito da apreciação que não cessava de me chocar em relação ao meu ofício; mostravam-me este ofício como um conjunto de gestos privados de senso, equivalentes a outros gestos de ofícios diferentes. Pouco depois, um ruído longínquo vindo da cidade, ou o estalar da mobília no quarto, davam-me um sentimento obscuro e quase delirante da minha presença ali. Dizia a mim própria: “Estou aqui e poderia estar noutro lado. Poderia estar há mil anos ou daqui a mil anos… Poderia ser uma negra ou uma velha ou mesmo loura, pequenina…” Pensava que tinha saído de uma obscuridade sem limites, que tornaria a entrar numa outra obscuridade igualmente ilimitada e que a minha breve passagem não seria notada senão por gestos absurdos e fortuitos. Então compreendi que a minha angústia não era devida às coisas que eu fazia, mas, profundamente, ao único facto de viver; não era nem bom, nem mau, mas simplesmente doloroso e sem razão de ser.

Durante aqueles instantes este estado de alucinação provocou-me um arrepio que me percorreu o corpo todo e me pôs os cabelos em pé, com formigueiro na raiz. Tive de repente a impressão de que as paredes da casa, a cidade, e até o mundo, se desvaneciam, que me encontrava suspensa num espaço vazio, negro e sem limites, e, para cúmulo, suspensa com os meus trapos, os meus sonhos, o meu nome, a minha profissão. Uma rapariga chamada Adriana suspensa no nada. Parecia-me que esse nada era uma coisa solene, terrível e incompreensível e que o aspecto mais triste de toda a questão era apresentar-me precisamente nesse nada com os modos e a aparência que tinha à noite para me apresentar na pastelaria onde Gisela me esperava. Não me consolava a ideia de que os outros se moviam e agitavam de uma maneira também frívola e inadequada dentro deste vazio. Admirava-me só de que não tivessem disso a consciência, e, como acontece quando muita gente descobre ao mesmo tempo o mesmo facto, não comunicassem as suas observações e não falassem nelas mais frequentemente.

Acontecia-me nesses momentos ajoelhar-me e rezar, mais talvez por hábito de infância do que por vontade clara e consciente. Mas não rezava empregando as expressões habituais das orações; pareciam-me muito longas para o meu súbito estado de alma. Ajoelhava-me com tal violência que às vezes as pernas me doíam durante muitos dias, e rezava assim, com força, com uma voz desesperada: “Cristo, tem piedade de mim”! Não era uma verdadeira oração, mas uma espécie de fórmula mágica, pela qual esperava dissipar os meus terrores e reencontrar a realidade habitual. Depois de gritar desta maneira, impetuosamente, com todas as forças do meu corpo, ficava muito tempo absorta, com a cara entre as mãos. Por fim, já em nada pensava, aborrecia-me e ficava a Adriana de sempre que se encontrava no meu quarto. Apalpava o corpo, admirando-me de o encontrar intacto e presente, levantava-me e ia deitar-me. Sentia-me cansada, dolorida, como se tivesse rolado muito tempo por um talude pedregoso. Adormecia logo em seguida.

Estes estados de alma, todavia, não exerciam qualquer influência na minha vida habitual. Continuava a ser a Adriana habitual, com o seu carácter de sempre, que encontrava os homens na rua e os trazia para casa por dinheiro, que se dava com a Gisela, que falava de coisas sem importância com sua mãe e com os outros. Por vezes parecia-me estranho ser assim tão diferente, na solidão e em sociedade, nas minhas relações comigo própria e nas que tinha com os outros. Mas não imaginava que era só eu a experimentar sentimentos tão violentos, tão desesperados. Pensava que isso aconteceria a todas as pessoas. pelo menos uma vez por dia; sentir a vida reduzir-se a um único estado de angústia inefável e absurdo. E com os outros também, esta consciência não produzia efeitos visíveis. Logo que saiam de si próprios, partiam para a sua vida habitual, representando com sinceridade um papel hipócrita. Esta ideia confirmava a minha convicção de que todos os homens, sem excepção, são dignos de compaixão, quanto mais não seja só pelo facto de estarem vivos.

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