SEGUNDA PARTE

1

Agora, eu e Gisela já não éramos apenas amigas, mas sim uma espécie de sócias. Nunca estávamos de acordo quanto aos lugares que devíamos frequentar, porque Gisela preferia os restaurantes de luxo, ao passo que eu gostava mais dos cafés de terceira ordem ou simplesmente da rua. Mas, devido precisamente a esta diferença de gostos, tinha-se concluído entre nós uma espécie de pacto: cada uma de nós acompanharia a outra, dia sim, dia não, aos seus lugares predilectos. Uma noite, depois de um jantar infrutífero num restaurante, regressávamos juntas a casa quando observei que éramos seguidas por um carro. Preveni Gisela e arrisquei-me a dizer-lhe que talvez não fosse tolice deixar que eles chegassem à fala connosco. Gisela, que estava de mau humor, porque tinha tido de pagar o jantar e estava quase sem dinheiro, disse com mau modo:

— Vai tu, se quiseres! Cá por mim vou para a cama.

Entretanto, o carro tinha-se abeirado do passeio e seguia-nos passo a passo. Gisela caminhava do lado da parede e eu do lado de fora. Olhei disfarçadamente para o automóvel e vi que dentro dele vinham dois homens. Interroguei Gisela a meia voz:

— Que vamos fazer? Se tu não vens, eu também não vou.

Gisela deitou também um olhar de lado para o carro, que continuava a seguir-nos devagarinho, e, parecendo resignar-se de repente, respondeu-me:

— Está bem! Mas este sistema não me agrada… Andamos ainda umas dezenas de metros, sempre seguidas pelo carro, depois Gisela virou a esquina e metemos por uma travessa acanhada e sombria, com um passeio muito estreito que se estendia ao longo de uma parede coberta de cartazes. Ouvimos o carro voltar também e logo a seguir a luz branca e crua dos faróis iluminou-nos. Tive a sensação de que esta luz me despia e me pregava nua na parede molhada, sobre os cartazes rotos e desbotados. Paramos. Gisela, irritada, disse-me a meia voz:

— Se isto são maneiras! Vamos para casa!

— Não, não… — supliquei eu.

Não sei porquê, apoderara-se de mim um desejo fortíssimo de conhecer os homens do carro.

— Que importância tem isso? — continuei. — Todos eles procedem assim.

Gisela encolheu os ombros e no mesmo momento os faróis apagaram-se; depois o carro veio parar junto de nós. O condutor deitou de fora a cabeça loura e disse, numa voz sonora:

— Boas noites!

— Boas noites — respondeu Gisela com ar digno.

— Onde vão as duas, assim tão sós? — continuou o homem. — Podemos acompanhá-las?

Apesar da sua entoação irônica, como de alguém que se julga terrivelmente espirituoso, estas frases eram rituais. Ouvi-as depois centenas de vezes. Sempre muito séria, Gisela respondeu:

— Depende…

Esta era, também, a sua resposta de sempre.

— Ora, ora! — insistiu o homem. — Depende de quê?

— Quanto é que tencionam pagar-nos? — perguntou Gisela encostando-se à porta do carro.

— Quanto pedem vocês?

Gisela disse uma importância.

— Vocês são caras — respondeu o rapaz. — Muito caras! Mas parecia decidido a aceitar. O seu companheiro debruçou-se para ele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O louro encolheu os ombros e. dirigindo-se a nós, continuou:

— Está bem. Subam…

O seu companheiro desceu e foi sentar-se no assento de trás convidando-me a entrar com um gesto. Gisela sentou-se ao lado do condutor, que lhe perguntou:

— Para onde vamos?

— Para casa de Adriana — respondeu Gisela. E deu-lhe a minha morada.

— Bem. Vamos lá então para casa da Adriana…

Geralmente, quando me encontrava com homens que não conhecia, num carro ou em qualquer outra parte, ficava imóvel e silenciosa, esperando as suas palavras ou os seus gestos. Sabia perfeitamente que em geral não era preciso encorajá-los a tomar a iniciativa. Por isso limitei-me a aguardar os acontecimentos enquanto o carro percorria rapidamente as ruas. Do homem que o acaso me destinava para companheiro dessa noite não via senão duas mãos longas e brancas, pousadas nos joelhos. Ele também não falava e conservava-se imóvel, encostado para trás, com a cabeça no escuro. Pensei que era tímido e simpatizei imediatamente com ele. Eu também já assim fora, e o espectáculo da timidez emocionava-me sempre, porque me recordava a minha paixão por Gino. Gisela não havia meio de se calar. Um dos seus grandes prazeres era conversar com os clientes com um ar superior e bem educado, como se fosse uma senhora em companhia de homens que a respeitassem. A certa altura, perguntou :

— Este carro é seu?

— É. Agrada-te?

— É cômodo — respondeu Gisela com ar superior. — Mas gosto mais dos Lancia. Andam mais e tém uma suspensão melhor. O meu noivo tem um.

Realmente Ricardo tinha um Lancia. Simplesmente, o que ele nunca fora era noivo de Gisela. O rapaz desatou a rir e respondeu:

— O que ele deve ter é um Lancia de duas rodas…

Gisela era fácil de irritar. Respondeu com ar ofendido:

— Por quem me toma você?

— Não sei. Diga-me por quem a devo tomar, não vá eu enganar-me…

Outra das ideias fixas de Gisela era fazer-se passar aos olhos dos seus amantes de acaso por aquilo que não era, nem nunca tinha sido: bailarina, dactilógrafa, senhora respeitável, sem reparar que essas pretensões não condiziam com a facilidade com que ela se deixava abordar e discutir logo de entrada o aspecto material da questão.

— Somos dançarinas da troupe Caccini — declarou ela com um ar muito sério. — Não temos o hábito de aceitar convites de desconhecidos. Aliás, eu não queria aceitar. A minha colega é que insistiu tanto… Se o meu noivo suspeitasse disto, havia de ser bonito!

O rapaz que ia ao volante riu de novo:

— Bem. Eu e o meu amigo somos realmente duas pessoas decentes. Quanto a vocês, são duas prostitutas de rua. Mas que importância tem isso?

Foi então que o meu companheiro falou pela primeira vez.

— Pára, João Carlos — disse com uma voz tranquila.

Eu não disse palavra. Não me agradava aquela classificação, principalmente com a manifesta intenção de ofender que se notava no tom de voz com que João Carlos falava. Mas, ao fim e ao cabo, o que ele dissera era verdade.

— Isso é mentira e você não passa de um ordinarão!

O rapaz não respondeu, mas parou o carro junto do passeio. Estávamos numa rua pouco frequentada e mal iluminada. O condutor voltou-se para Gisela.

— E se eu te pusesse fora do carro?

— Experimenta! — respondeu Gisela, agressiva.

Gisela era extremamente desordeira e de ninguém tinha medo.

Então o meu companheiro inclinou-se para a frente e eu vi pela primeira vez o seu rosto. Era moreno, com os cabelos em desordem, a testa alta, grandes olhos sombrios e brilhantes, um nariz bem desenhado, a boca sinuosa e um horrendo queixo fugidio. Era extremamente magro. Interrogou o amigo:

— Vais acabar com essa discussão idiota?

A pergunta foi feita com energia, mas sem irritação, como se ele interviesse num assunto em que, na verdade, não estivesse directamente interessado nem lhe desse importância. A sua voz não era muito forte, nem muito masculina e até, com frequência, soava a falsete.

— Que tens tu com isso? — respondeu o outro, bruscamente.

Mas isto foi dito num tom de voz de quem já está arrependido da sua brutalidade e que no fundo ficasse bastante satisfeito com a intervenção do amigo.

— Que maneiras são essas? — tornou o outro. — Que diabo! Convidámo-las, elas confiam em nós, e em paga dizemos-lhes insolências e insultamo-las. Achas bem? Dirigindo-se agora a Gisela, disse-lhe, ao mesmo tempo com gentileza e com autoridade:

— Não faça caso, menina. Ele bebeu talvez um pouco mais do que devia. Garanto-lhe que não tinha a intenção de a ofender.

O louro fez um gesto de protesto, mas o meu companheiro forçou-o a calar-se pondo-lhe a mão num braço e dizendo-lhe em tom peremptório:

— Já te disse que bebeste demais e que não tinhas intenção de a ofender. E agora, vamos embora!

— Eu não aceitei a vossa companhia para ser insultada — começou Gisela, numa voz pouco firme.

O moreno deu-lhe imediatamente razão.

— Com certeza! Ninguém gosta de ser insultado. É tudo quanto há de mais natural…

O louro olhava-nos com ar aparvalhado. Tinha o rosto encarnado, coberto de marcas irregulares, como pisaduras, uns olhos azuis perfeitamente redondos e uma grande boca sensual e glutona. Olhou primeiro para o amigo, depois para Gisela, e finalmente desatou a rir:

— Palavra de honra que não percebo nada! — exclamou. — Porque estamos nós a discutir? Não há maneira de me lembrar como isto começou. Em lugar de nos divertirmos, zangamo-nos! Somos completamente idiotas, não há dúvida!

Ria com evidente satisfação. E, sem deixar de rir, voltou-se para Gisela e disse-lhe:

— Vá! Façamos as pazes! Sinto que fomos feitos um para o outro!

Gisela tentou sorrir e declarou:

— Realmente, eu também tinha essa impressão…

O louro continuou, sempre a rir a bandeiras despregadas:

— Eu tenho um rico feitio, não é verdade, Jaime? É questão de saber lidar comigo, e mais nada… Vamos! Venha de lá uma beijoca…

Debruçou-se para Gisela e passou-lhe um braço pela cintura. Ela desviou levemente a cabeça e disse-lhe:

— Espera!

Tirou um lenço de dentro da bolsa, limpou a boca com ele e depois beijou-o secamente, com um ar muito digno. Enquanto esse beijo durou, o louro agitava as mãos como se estivesse a afogar-se e tentasse nadar. Separaram-se e então ele pôs o motor a trabalhar com gestos pretensiosos e solenes.

— Ora pois! Juro que daqui para o futuro não lhes darei uma única razão de queixa. Vou ser muito sério, muito bem educado, muito distinto… Autorizo a esbofetearem-me, se não me portar bem…

O carro pôs-se de novo em movimento.

Durante o resto do trajecto ele não cessou de falar e de rir animadamente; por vezes mesmo chegou a tirar as duas mãos do volante para gesticular. O meu companheiro, pelo contrário, depois da sua breve intervenção, tinha voltado à sombra e ao silêncio. Eu começava a simpatizar fortemente com ele, sentindo-me, ao mesmo tempo, curiosa e atraída; agora, que volto a pensar nisso, passado tanto tempo, compreendo ter sido nesse momento que me apaixonei por ele, ou, pelo menos, que comecei a consubstanciar na sua pessoa todas as coisas que amava e de que até então estivera privada. Afinal de contas, o amor tem de ser um sentimento completo e não apenas uma pura satisfação dos sentidos; e eu continuava, teimosamente, em busca dessa perfeição que pensara existir em Gino. Talvez esta fosse a primeira vez em toda a minha vida, e não apenas desde que exercia este ofício, que se me deparava uma pessoa como este homem, com tais maneiras e uma tal voz. O primeiro pintor de quem eu tinha sido modelo assemelhava-se a ele até certo ponto, mas era mais frio e mais seguro de si; aliás, mesmo que ele o não tivesse querido, eu ter-me-ia apaixonado por ele do mesmo modo, se bem que, por motivos diferentes, a voz e as atitudes deste rapaz suscitassem na minha alma os sentimentos que se tinham apossado de mim a primeira vez que tinha estado na casa dos patrões de Gino. Assim como, ao ver a ordem, o luxo e a limpeza dessa casa, eu tinha pensado que, sem um ambiente como esse, a vida não valia a pena ser vivida, assim agora a voz e os gestos deste rapaz, tão gentis e tão calmos, inspiravam-me não sei que atracção profunda e comovida. Ao mesmo tempo ele acordou em mim um violento desejo físico; sentia-me ansiosa por ser acariciada pelas suas mãos, beijada pela sua boca; compreendi que acabava de se produzir em mim essa mistura imponderável, mas veemente das aspirações antigas e do prazer actual que é a própria essência do amor e marca infalivelmente o seu nascimento. Ao mesmo tempo temia que ele se apercebesse dos meus sentimentos e me desprezasse. Dominada por este medo, estendi a mão e apertei a dele. Mas ele não teve qualquer reacção. Então uma grande perplexidade tomou conta de mim; sentia que a sua imobilidade me impunha uma atitude de desinteresse, mas essa atitude era superior às minhas forças. O carro, dobrando bruscamente uma esquina, atirou-nos um contra o outro; fingi ter perdido o equilíbrio e deixei cair a cabeça nos seus joelhos. Ele estremeceu, mas não disse uma palavra nem fez um gesto. Sentindo com alegria que o carro corria velozmente, fiz como fazem os cães: meti a minha cara no meio das suas mãos, beijei-as e passei-as no meu rosto numa carícia que eu quisera ardentemente fosse afectuosa e espontânea. Compreendendo que estava de cabeça perdida, admirei-me de como meia dúzia de palavras amáveis haviam bastado para isso. Mas ele não me concedeu a carícia desejada e tão humildemente pedida, e retirou as mãos da minha cara. Precisamente neste momento o carro parou.

O louro apeou-se, e com uma galantaria trocista ajudou Gisela a descer. Descemos também, abri a porta da escada e entrámos. Gisela e o louro tomaram a dianteira. O rapaz ficou para trás e a meio da escada deitou as mãos à saia de Gisela, levantou-a e descobriu-lhe as coxas brancas e uma parte das nádegas, que ela tinha pequenas e magras.

— Subiu o pano! — exclamou com uma gargalhada. Gisela limitou-se a compor o fato com um gesto seco. Pela minha parte, pensando que essa atitude ordinária tinha desagradado ao meu companheiro, tentei fazê-lo compreender que partilhava da sua opinião.

— É divertido, o seu amigo! — disse.

— É — respondeu este secamente.

— Vê-se que a vida lhe corre bem…

Entrámos em casa em bicos de pés e eu conduzi-os directamente para o meu quarto. Quando a porta se fechou, o louro sentou-se na beira da cama e começou tranquilamente a despir-se, sem nos ligar a mínima importância. Não se calava nem deixava de rir, falando de quartos de hotel e de quartos particulares e tentando interessar-nos por uma aventura que tivera recentemente.

— Ela disse-me: “Sou uma mulher honesta; não quero ir consigo para um hotel.” Então eu respondi: “Os hotéis estão cheios de mulheres honestas!” “Mas eu — disse ela — não quero dizer o meu verdadeiro nome!” E eu disse-lhe: “Passarás por minha mulher! Para a importância que isso tem…” Finalmente seguimos para o hotel, mas quando chegou o momento decisivo complicou toda a nossa vida. Começou a dizer que tinha remorsos, que não queria, que era, na verdade, uma mulher honesta, o demônio! Acabei por perder a cabeça e tentar empregar a força. Pois sim! Abriu a janela e berrou que se atirava para a rua se eu insistisse… “Bem — disse eu. — Compreendo. A culpa foi minha. Nunca te devia ter trazido para aqui!” Então a criaturinha sentou-se na beira da cama e desatou a choramingar, enquanto me contava uma história capaz de fazer chorar um morto… Não sou capaz de a repetir, porque me esqueci. Mas lembro-me de que, no fim, estava comovidíssimo e pouco faltou para me pôr de joelhos na sua frente e pedir-lhe perdão de ter pensado mal dela… “Está bem — concordei —, nada se passará entre nós. Vamos só deitar-nos e dormir com muito juízo até amanhã.” E foi o que fizemos; adormeci imediatamente; mas, a meio da noite, acordo, e ela tinha desaparecido. Ela e a minha carteira. Honesta, hem?

Desatou à gargalhada, com uma alegria tão irresistível e tão contagiosa que eu tive de me rir também e a própria Gisela não conseguiu impedir-se de sorrir. Ele tinha tirado o fato, a camisa, os sapatos e as peúgas. Ficara em ceroulas de malha de lã, justas e compridas, de um tom rosado de peito de rola, que o cobriam desde os tornozelos até ao pescoço, dando-lhe o aspecto de um equilibrista ou de um bailarino. Esta peça de roupa, geralmente só usada por homens muito idosos, aumentava ainda a comicidade do seu aspecto. Nesse momento esqueci-me da sua brutalidade e quase cheguei a sentir simpatia por ele. Gostei sempre das pessoas alegres, e eu própria tenho mais tendência para a alegria do que para a tristeza. O rapaz pôs-se a passear pelo quarto, brincando como um miúdo, pequenino, gorducho, orgulhoso das suas belas ceroulas como de um uniforme. Depois, do canto da cómoda, num salto inesperado, veio cair na cama, em cima de Gisela, que soltou um grito de susto e se deixou cair de costas para fugir ao choque. Mas, de repente, numa atitude irresistivelmente cômica, ele pareceu tomado por uma ideia súbita, deixou-se ficar de gatas por cima de Gisela, voltou para nós o seu rosto vermelho e libidinoso e perguntou:

— E vocês, porque esperam?

Olhei para o meu companheiro e perguntei-lhe:

— Queres que me dispa?

Ele nem sequer baixara ainda a gola do sobretudo. Estremeceu e respondeu-me:

— Não. Depois deles.

— Queres ir para outra sala?

— Quero.

— Dêem uma volta de carro! — gritou o louro, sempre de gatas em cima de Gisela. — As chaves estão no tablier!

Mas o meu companheiro saiu do quarto sem dar mostras de ter ouvido estas palavras.

Passamos para o vestíbulo: fiz-lhe sinal para me esperar e entrei na sala. Minha mãe estava sentada à mesa do meio, entretida a fazer uma paciência. Quando me viu, sem esperar qualquer palavra minha, levantou-se e foi para a cozinha. Eu vim então à porta do vestíbulo e disse ao rapaz que podia entrar.

Voltei a fechar a porta e fui sentar-me no canapé, junto da janela. Desejava ardentemente que ele viesse sentar-se ao meu lado e que me acariciasse, como sempre acontecia com os outros homens. Mas ele nem sequer reparou na existência do canapé e pôs-se a passear para trás e para diante pela sala, andando à roda da mesa, com as mãos nos bolsos. Pensei que estava contrariado por ter de esperar e disse-lhe:

— Desculpa, mas não disponho senão de um quarto…

Ele parou, olhou para mim com uma expressão levemente ofendida mas gentil:

— Eu já te disse, porventura, que precisava de um quarto?

— Não. Mas pensei…

Voltou ao seu passeio, até que eu, não podendo conter por mais tempo a minha impaciência, indiquei-lhe um lugar ao meu lado, no canapé:

— Porque não vens sentar-te ao pé de mim? — perguntei.

Ele obedeceu e interrogou-me:

— Como te chamas?

— Adriana.

— Eu chamo-me Jaime — disse ele, pegando-me na mão. Este modo de proceder, invulgar para uma mulher como eu, admirou-me profundamente, convencendo-me, de novo, de que a timidez o dominava. Deixei ficar a minha mão na sua e sorri-lhe para o encorajar. Jaime voltou a interrogar-me:

— Então, daqui a pouco temos de ser um do outro?

— Claro.

— E se não me apetecer?

— Isso é contigo — respondi, na ideia de que ele estava a brincar.

— Pois, não me apetece — disse ele com ar solene. — Não me apetece absolutamente nada.

— De acordo! — respondi eu.

Na realidade, a sua recusa parecia-me demasiadamente estranha para que me fosse possível tomá-lo a sério.

— E isso não te ofende? Em geral, as mulheres detestam que a gente as recuse.

Acabei por compreender. Sem coragem para falar, limitei-me a dizer que não com a cabeça. Ele não me desejava! Bruscamente senti-me desesperada e os olhos encheram-se-me de lágrimas.

— Não. Isso não me ofende — balbuciei. — Mas visto que não me desejas, vamos esperar que o teu amigo acabe e depois vais-te embora.

— Será justo? — hesitou ele. — Perdeste a noite por minha causa. Podias ter ganho dinheiro com outro qualquer…

Pensando que o seu problema não era falta de interesse, mas impossibilidade de me pagar, propus-lhe, cheia de esperança:

— Se não tens dinheiro não faz mal. Pagas-me quando voltares a encontrar-me…

— Tu és boa rapariga — respondeu. — Mas o problema não é esse. O dinheiro não me falta. Vamos fazer um contrato. Eu pago-te como se me tivesse servido de ti. Dessa maneira, pelo menos, não perderás a noite.

Tirou do bolso do casaco um rolo de notas, que me deu a impressão de ter sido preparado previamente, e foi pousá-lo em cima da mesa, longe de mim, num gesto ao mesmo tempo desajeitado e curiosamente elegante e desdenhoso.

— Não, não — protestei. — Nem penses nisso!

Disse isto sem grande convicção, porque, no fundo, agradava-me receber aquele dinheiro; era um laço como outro qualquer entre nós; e, visto que contraia uma dívida para com ele, podia tentar pagá-la. Interpretando a minha vaga recusa como um gesto de aceitação, Jaime deixou ficar o dinheiro em cima da mesa, e veio outra vez sentar-se ao meu lado no canapé. Eu, embora compreendesse perfeitamente a ingenuidade e o ridículo do meu gesto, estendi a mão e peguei na dele. Olhámo-nos longamente, bem de frente. Depois, sem mais nem menos, ele pegou num dos meus dedos e torceu-o com força.

— Ai! — gritei eu. E continuei com mau modo. — Que ideia tão estúpida foi essa?

— Desculpa! — respondeu ele. E o seu ar de confusão era tão forte e tão sincero que me fez arrepender logo da secura com que lhe falara.

— Fizeste-me doer, compreendes? — expliquei.

— Desculpa — repetiu ele.

Tomado de uma súbita agitação, levantou-se e pôs-se a passear na sala.

— E se saíssemos? — propôs. — É aborrecidíssimo esperar desta maneira.

— Aonde queres ir?

— Não sei. Apetece-te dar uma volta de carro? Lembrando-me de todos os passeios que dava com o Gino, respondi vivamente:

— Não, de automóvel não.

— Podíamos ir tomar qualquer coisa. Há algum café aqui perto?

— Parece-me que sim…

— Então vamos.

Levantámo-nos e saímos da sala. Na escada disse-lhe, em ar de brincadeira:

— Não te esqueças de que o dinheiro que me deste te dá o direito de vires ter comigo quando quiseres. Combinado?

— Combinado.

Era uma noite de Inverno doce, húmida e escura. Tinha chovido durante todo o dia e a rua estava semeada de grandes poças de água em que se reflectia a luz serena dos raros bicos de gás. Por cima das muralhas o céu aparecia sereno, mas sem Lua, e uma bruma densa velava as raras estrelas que se viam. De vez em quando os eléctricos invisíveis passavam por detrás das fortificações fazendo saltar dos fios clarões rápidos e violentos, que iluminavam o céu por momentos. Quando chegamos à rua lembrei-me de que há meses não ia para os lados do Luna Parque. Habitualmente tomava pela esquerda, na direcção da praça em que Gino esperava por mim. Nunca mais voltara para o lado do Luna Parque desde os tempos em que, ainda pequena, passeava com minha mãe, e ora subíamos a grande avenida sobranceira às muralhas, ora fomos gozar a música e as iluminações sem ousar entrar no recinto para não gastar dinheiro. Era deste lado da grande avenida que se encontrava o pequeno pavilhão em que eu vira uma vez, pela janela aberta, uma família sentada à mesa e que me provocara o sonho de me casar, ter um lar, viver uma vida normal. Fui, então, tomada de um desejo violento de falar ao meu companheiro desse tempo, dessa idade, dessas aspirações; e isto, devo confessá-lo, não somente por impulsão sentimental, mas também por cálculo. Queria que ele não me avaliasse apenas pelas aparências, mas sim de um modo diferente, melhor, e que eu considerava mais verdadeiro. Há quem, para receber personalidades importantes, vista um fato de cerimônia e abra as melhores salas da sua casa; quanto a mim, parecia-me que a simples sinceridade dos meus pensamentos e dos meus sentimentos chegaria para me defender, para o levar a mudar de ideias e para o fazer I aproximar-se de mim.

— Nunca ninguém passa nesta parte da avenida — disse, enquanto caminhávamos ao lado um do outro. — Mas no Verão é o passeio preferido das pessoas do bairro… Eu também aqui vinha. Mas há tanto tempo! Só tu serias capaz de fazer com que eu aqui voltasse…

Ele tinha enfiado o seu braço no meu, para me ajudar a caminhar na rua encharcada.

— Com quem passeavas? — perguntou.

— Com minha mãe.

Começou a rir, com um riso depreciativo que me espantou.

— Com minha mãe! — repetiu marcando as sílabas. — Há sempre uma mãe! Que irá dizer minha mãe? Que irá fazer minha mãe? A mamã!

Imaginei que, por qualquer motivo pessoal, ele sentisse rancor pela sua própria mãe e perguntei-lhe:

— A tua mãe fez-te alguma coisa?

— Nada me fez! — respondeu-me. — As mães nunca fazem nada. Quem não tem uma mamã? E tu gostas da tua mãe?

— Com certeza. Porquê?

— Por nada — disse depressa. — Não te preocupes comigo… Continua… Então tu passeavas com tua mãe…

O seu tom não era muito tranquilizador. E, no entanto, um pouco por cálculo, um pouco por simpatia, sentia-me levada a continuar as minhas confidências:

— Sim — disse-lhe. — Nós passeávamos juntas, sobretudo no Verão, porque em nossa casa de Verão sufoca-se… Justamente… olha… vez aquela vivendazinha?

Parou e olhou. Mas as janelas da casa não estavam abertas; parecia mesmo desabitada. Metida entre duas longas construções baixas do caminho de ferro, pareceu-me ainda mais pequena do que a recordava e até feia e tosca.

— E depois? — perguntou-me. — O que acontecia nessa casa?

Eu agora corava do que ia dizer. Continuei com esforço:

— Todas as tardes passava por esta casinha; como era Verão, as janelas estavam abertas… a esta hora via sempre uma família sentar-se à mesa… — Calei-me, envergonhada.

— E então?

— Estas coisas não te podem interessar — disse. E tive a impressão de que o meu pudor era, ao mesmo tempo falso e sincero.

— Porquê? Tudo me interessa.

— Bem… — acabei à pressa. — Tinha-se-me metido na cabeça que um dia também eu teria uma casinha como esta e que faria todas as coisas que via esta família fazer.

— Ah! Compreendo — disse. — Uma casinha como esta… Contentavas-te com pouco!

— Comparada com a casa onde moramos — disse eu — que é tão feia. E depois, sabes, naquela idade pensa-se tanta coisa!

Puxou-me pelo braço para junto da vivendazinha. dizendo-me:

— Vamos ver se essa família ainda lá está!

— Mas que fazes? — protestei, resistindo. — Está lá com certeza.

— Bem, vamos ver!

Estávamos diante da porta. O jardim estava às escuras, assim como as janelas e o miradouro. Ele aproximou-se do portão e disse:

— Até tem uma caixa de correio! Vamos tocar para ver se está cá alguém. Mas a tua casa parece desabitada.

— Não! — disse-lhe rindo. — Está quieto! Mas que fazes?

— Experimentemos — respondeu. Levantou o braço e tocou a campainha. Tive vontade de fugir, tal era o medo que alguém viesse atender.

— Vamos! Vamos! — suspirava eu. — Se alguém aparece, que figura fazemos nós?

— Que dirá a mamã? Que dirá a mamã? — repetia cantarolando, deixando-se arrastar.

— Tu detestas as mamãs! — observei afastando-me rapidamente.

Chegamos ao Luna Parque. Lembrava-me, da última vez em que lá tinha estado, da multidão que se comprimia, dos festões de lâmpadas eléctricas coloridas, dos balcões com lâmpadas de acetileno, da decoração das barracas, da música, do burburinho das vozes. Fiquei um pouco decepcionada por nada disso encontrar. A paliçada não parecia cercar um parque de diversões, mas um depósito de material, escuro e abandonado. Os oito balouços suspensos do carrossel pareciam insectos ventrudos parados em pleno vôo por uma brusca paralisia. Sem iluminação, os tectos pontiagudos dos pavilhões pareciam dormir. Tudo era negro, o que era normal porque estávamos no Inverno. A esplanada estava deserta e semeada de charcos: iluminava-a fracamente um único bico de gás.

— Aqui, no Verão, é o Luna Parque, tem sempre muita gente… mas de Inverno não funciona… Aonde queres ir?

— Ao tal café.

— Não é bem um café, é uma tasca.

— Vamos, vamos à tasca.

Passamos sob a abóbada da porta; mesmo em frente havia uma fila de casas, e num rés-do-chão via-se a luz por detrás de uma porta envidraçada. Assim que entrei vi logo que era a mesma casa de pasto onde há muito tempo tinha ido jantar com Gino e com minha mãe e onde Gino tinha dado o correctivo ao bêbado insolente. Não tinha mais de três ou quatro pessoas, que comiam coisas que haviam trazido embrulhadas em papel de jornal, bebendo vinho da casa. Estava lá mais frio do que na rua, o ar parecia impregnado de um cheiro a vinho, a chuva e a serradura; pensava-se logo que os fogões estavam apagados. Sentámo-nos a um canto e ele pediu um litro de vinho.

— Quem vai beber esse vinho todo? — perguntei.

— Porquê, tu não bebes?

— Muito pouco.

Encheu o copo e bebeu-o de um trago, mas com esforço e sem prazer. Este gesto confirmou o que eu já notara: ele fazia as coisas sem participação, só para o exterior, como se representasse um papel. Ficamos algum tempo em silêncio. Olhava-me com os seus olhos intensos e brilhantes e eu examinava o que estava à minha volta. A recordação daquela longínqua noite em que eu ali fora com Gino e minha mãe assaltou-me outra vez; não sei se sentia pena ou contrariedade ao recordá-la. Eu era então muito feliz; é verdade, mas tinha ainda tantas ilusões! Sentia no meu íntimo que era exactamente como se se abrisse uma gaveta fechada há muito tempo e que em vez das belas coisas que se esperava lá estivessem apenas se vissem alguns farrapos poeirentos e traçados. Tudo tinha acabado. Não só o meu amor por Gino, mas a minha adolescência e os meus sonhos desfeitos. O facto de me ter podido servir por cálculo e por manha das minhas recordações com o fim de comover o meu companheiro bastava para o demonstrar. Disse por acaso:

— O teu amigo ao princípio pareceu-me antipático… Mas agora quase que simpatizo com ele… é tão alegre!

Ele respondeu-me com modo brusco:

— Primeiro, aquele não é meu amigo. E depois é o menos simpático do mundo!

A violência da resposta deixou-me estupefacta.

— Achas? — disse-lhe.

Ele bebeu e continuou:

— Das pessoas que fazem espírito devia fugir-se como da peste! Vulgarmente, debaixo daquele espírito todo nada existe… Se tu o visses no escritório… Asseguro-te que aí não diz graças!

— Em que escritório está?

— Não sei ao certo, um negócio de patentes.

— Ganha muito dinheiro?

— Muitíssimo.

— Tem sorte!

Serviu-me vinho e eu perguntei:

— Mas se o achas tão antipático, porque sais com ele?

— É um amigo de infância — respondeu-me de mau humor. — Estudamos juntos… Os amigos de infância são todos assim.

Bebeu ainda e acrescentou:

— No entanto, de certa maneira vale mais do que eu.

— Porque?

— Porque quando ele faz uma coisa, fá-la seriamente; ao passo que eu começo por querer fazê-la e depois (aqui falou com uma voz tão falsa que me fez estremecer)… uma vez chegado o momento não a faço… Esta noite, por exemplo, quando me telefonou para me pedir para ir com ele engatar umas raparigas, como costuma dizer-se, eu aceitei. Quando nos encontramos, desejei realmente ir para a cama contigo… Mas depois, logo que cheguei a tua casa, já nada me apetecia…

— Já nada te apetece? — repeti olhando-o.

— Não… para mim não eras uma mulher, mas um objecto, não sei… uma coisa… Reparaste quando te torci o dedo até te magoar?

— Sim.

— Pois bem, fiz isso para me certificar de que existias de facto… mais nada… até com risco de te fazer sofrer.

— Sim, eu existia e tu magoaste-me muito — disse sorridente.

Começava agora a compreender com alívio que não fora por antipatia que ele nada tinha querido de mim. Aliás nunca há coisa alguma de estranho nas pessoas. Desde que se procure compreendê-las, sabe-se que a sua conduta por mais insólita que pareça é sempre devida a um motivo perfeitamente plausível…

— Então eu não te agradei? — perguntei-lhe.

Negou com um gesto de cabeça.

— Tanto faz… tu ou outra… é a mesma coisa!

Perguntei-lhe, passado um minuto de hesitação:

— Diz-me lá… tu não serás impotente, por acaso.

— Nem por sombras.

Agora eu sentia um grande desejo de ter intimidades com ele, de transpor a distância que nos separava, de o amar e de ser amada por ele. Tinha-lhe dito que não estava vexada pela sua recusa; na verdade, sentia-me pelo menos mortificada e ferida no meu amor-próprio. Tinha a certeza de ser bela e sedutora: nenhuma razão verdadeira via para que ele não me desejasse.

— Ouve — propus-lhe com simplicidade. — Acabamos de beber e vamos depois para casa.

— Não, é impossível.

— Então isso quer dizer que não te agradei logo da primeira vez, quando me viste na rua.

— Sim, procura compreender…

Sabia que não há homens que resistam a certos argumentos. “Vê-se que não te agrado!” e, repetia eu com calma e com uma infinita amargura. E ao mesmo tempo estendi a mão e passei-lha pela cara. Tenho a mão comprida, grande e quente; se é verdade que o carácter se pode ler nas mãos, o meu não deve ser vulgar em comparação com o de Gisela, que tem a mão vermelha, rude e disforme. Comecei a acariciar-lhe com doçura as faces, a testa, a raiz dos cabelos, olhando-o com uma ternura insistente e cheia de desejo. Lembrei-me de que Astárito, no Ministério, tivera o mesmo gesto comigo e compreendi mais uma vez que estava realmente apaixonada por este rapaz, porque não havia dúvida de que Astárito me amava e tivera este mesmo gesto de amor. Ao sentir esta carícia, primeiro ficou impassível, depois o queixo começou a tremer-lhe, o que nele era sintoma de perturbação, como pude observar mais tarde, e todo o seu rosto tomou uma expressão atrapalhada, extraordinariamente juvenil e quase infantil. Fez-me pena e senti-me contente por este sentimento, que me aproximava dele.

— Mas que fazes? — perguntou-me como um garoto envergonhado. — Estamos num sítio público!

— Que me importa? — disse eu tranquilamente. Sentia as faces a arder, apesar do frio que estava na casa, e fiquei admirada ao ver, a cada inspiração nossa, formar-se uma nuvenzinha de vapor:

— Dá-me a tua mão! — disse-lhe.

Deu-ma de má vontade e eu levei-a à minha cara dizendo :

— Não sentes como as minhas faces estão a arder?

Não disse palavra. Limitou-se a olhar-me e o seu queixo tremia. Alguém bateu com a porta ao entrar e eu tirei a mão. Deu um suspiro de alívio e bebeu outro copo de um trago. Mas eu, assim que o cliente passou, estendi outra vez a mão e introduzi-a no casaco, desabotoando a camisa e pousando-a sobre o seu peito nu, junto do coração.

— Quero aquecer as mãos — disse-lhe. — E quero sentir como bate o teu coração.

Voltei a mão de costas e depois do lado da palma.

— Tens a mão fria! — disse olhando-me.

— Aqui vai aquecer — disse sorrindo.

Conservei o braço estendido e devagarinho acariciava o seu peito e as suas costelas magras. Sentia uma grande alegria porque o sabia junto de mim e porque estava tão cheia de amor por ele que podia dispensar o seu. Olhei-o e disse-lhe com ar de fingida ameaça:

— Sinto que daqui a pouco chegará o momento em que te irei beijar.

— Não, não — respondeu esforçando-se por brincar também, mas no fundo assustado. — Domina-te.

— Vamos embora daqui!

— Vamos, se queres!

Pagou o vinho, que não acabou de beber, e saiu comigo Agora também ele parecia excitado à sua maneira; não como eu, por amor, mas por qualquer agitação do seu espírito que os acontecimentos da noite lhe tivessem provocado. Mais tarde, quando o conheci melhor, percebi que ficava sempre assim excitado quando qualquer coisa lhe permitia descobrir um aspecto ignorado do seu carácter, ou confirmar esse mesmo aspecto. Ele era muito egoísta, ou, por outra, preocupava-se muito consigo próprio.

— Acontece-me isto constantemente… — começou a dizer como se falasse sozinho, enquanto eu o levava para a minha casa quase a correr — penso fazer uma coisa, com grande entusiasmo, tudo me parece próprio, tenho a certeza de que agirei como tenciono, depois, no momento preciso, tudo se desmorona… deixo de existir, por assim dizer… ou talvez não exista de mim mais do que a pior parte da minha alma: fico frio, vazio, cruel… como quando te torci o dedo.

Monologava com ar concentrado e talvez até com uma amarga satisfação. Eu nem o ouvia, porque estava cheia de alegria: os meus pés voavam por entre os charcos. Respondi-lhe alegremente:

— Já disseste essas coisas… mas eu, por minha vez, ainda não te contei o que sinto. Tenho um grande desejo de te apertar com força, muita força, de te dar o meu calor e de te obrigar a fazer o que não queres… não ficarei contente enquanto não o fizeres!

Nada respondeu. O que lhe dizia parecia que nem sequer lhe chegava aos ouvidos, tão ocupado estava a ruminar o que me dissera. De súbito passei-lhe o braço à roda da cintura e pedi-lhe:

— Passa o teu braço à roda da minha cintura… Sim?

Pareceu não me ouvir. Então passei-lho eu, como se faz quando se enfia um casaco. Recomeçamos a andar mal agarrados, porque estávamos cheios de roupa grossa de Inverno e quase não nos podíamos abraçar.

Quando passamos ao pé da vivenda do torreão, parei e disse-lhe:

— Dá-me um beijo!

— Mais logo.

— Dá-me um beijo!

Voltou-se e eu beijei-o violentamente, passando-lhe os braços à roda do pescoço. Ele ficou com a boca fechada, mas eu introduzi a língua por entre os seus lábios, depois entre os dentes, que acabaram por se descerrar. Não tive a certeza de o meu beijo ter sido retribuído; mas como já disse, pouco me importava. Separámo-nos e vi-lhe à volta da boca uma grande mancha de bâton, enviesada, que tornava cômica e esquisita a sua cara séria. Desatei a rir, toda contente.

— Porque te ris? — murmurou.

Hesitei, depois preferi nada lhe dizer, porque me divertia vê-lo correr atrás de mim com um ar muito grave e a cara toda pintada sem que soubesse.

— Por nada! — disse-lhe. — Porque estou contente… não faças caso.

Depois, para culminar a minha felicidade, dei-lhe outro beijo rápido nos lábios.

Quando chegamos à minha casa, já lá não estava o automóvel.

— O João Carlos foi-se embora! — disse com ar aborrecido. — Sabe Deus o que vou ter que andar para voltar para casa.

Não me magoou este tom pouco gentil, porque de futuro nada me devia magoar. Os seus defeitos, como acontece quando se está apaixonado, apresentavam-se-me com um aspecto singular que os tornava agradáveis. Disse-lhe, encolhendo os ombros:

— Há muitos eléctricos de noite! Aliás, se quiseres podes dormir comigo.

— Não, isso não! — respondeu logo.

Subimos a escada. Quando chegamos ao vestíbulo, levei-o para o meu quarto e fui espreitar à sala grande. Estava às escuras, salvo junto da janela, iluminada por um bico de gás da rua que incidia sobre a máquina de costura e a cadeira. Minha mãe devia ter ido deitar-se. Quem sabe se teria visto o João Carlos e a Gisela e se teria falado com eles? Fechei a porta e entrei no quarto. Jaime rondava nervosamente de um lado para o outro, entre a cómoda e a cama:

— Ouve — começou a dizer —, é melhor ir-me embora!

Fingindo não ter ouvido, tirei o casaco e fui pendurá-lo no bengaleiro. Sentia-me tão contente que não resisti a perguntar-lhe com vaidade de proprietária:

— Que tal achas o meu quarto? Não é confortável?

Olhou à volta e fez uma careta que não compreendi. Segurei-lhe a mão, obriguei-o a sentar-se na cama e disse-lhe:

— Agora deixa-me fazer.

Despi-lhe o sobretudo, depois o casaco e pendurei-os no bengaleiro. Sem pressa, desfiz o nó da gravata e tirei-lha, assim como a camisa, que pus em cima de uma cadeira. Em seguida ajoelhei-me e, pondo o seu pé no meu regaço, como fazem os sapateiros, tirei-lhe os sapatos e as meias e beijei-lhe os pés. Começara a agir com método e sem pressa, mas à medida que lhe tirava a roupa não sei que delírio de humildade e de adoração se apoderou de mim. Talvez o mesmo sentimento que por vezes me assaltava ao prostrar-me na igreja. Era a primeira vez que o sentia por um homem, e isso tornava-me feliz, porque sabia que era esse o verdadeiro amor, livre de toda a sensualidade e de todo o vício. Quando ficou nu, apertei-o de encontro às minhas faces e aos meus cabelos, com força, fechando os olhos. Ele deixava-me fazê-lo com uma expressão admirada, que me agradava. Depois levantei-me e comecei a despir-me à pressa, deixando cair a roupa no chão. Ficou friorentamente sentado na beira da cama e não levantava os olhos. Aproximei-me por trás dele e, animada por uma violência alegre e cruel, puxei-o e deitei-o de costas com a cabeça sobre a almofada. Tinha um corpo longo, magro e branco; os corpos têm a sua expressão como os rostos: o seu tinha uma expressão casta e juvenil. Estendi-me ao seu lado, o meu corpo contra o dele e ao pé da sua magreza, da sua graciosidade, da sua frieza e da sua brancura tive a impressão de ser muito ardente, muito morena, muito carnuda e muito forte. Apertei-me com violência contra ele, comprimi o meu ventre contra os ossos das suas ancas, estendi os braços ao longo do seu peito, o meu rosto contra o seu e esmaguei os meus lábios contra a sua orelha. Parecia-me que desejava não tanto amá-lo como envolvê-lo no meu corpo como se fosse um quente cobertor e comunicar-lhe o meu ardor. Estava deitado de costas, mas conservava a cabeça um pouco levantada e os olhos abertos, como se quisesse observar tudo o que eu fazia. O seu olhar atento rasava as minhas costas e inspirava-me não sei que mal-estar e que tormento. No entanto, no primeiro impulso continuei durante algum tempo sem fazer caso disso. De repente sussurrei-lhe:

— Não te sentes melhor agora?

— Sim — respondeu-me num tom neutro e distante.

— Espera! — disse-lhe eu.

Mas na altura em que o ia estreitar outra vez com um novo ardor, tive novamente a sensação do seu olhar fixo e frio estendendo-se ao longo das minhas costas, como um fio de aço molhado, e de repente senti-me perdida e envergonhada. O meu ardor apagara-se; lentamente afastei-me e deitei-me de costas, longe dele. Tinha feito um grande esforço de amor; tinha posto neste esforço todo o entusiasmo de um inocente, de um velho desespero; o brusco sentido da inutilidade deste esforço encheu-me os olhos de lágrimas e escondi a cara com um braço para que não visse que eu chorava. Parecia-me que me tinha enganado, que nem o podia amar, nem ser amada por ele. E pensava ainda mais, que ele me via e me julgava sem ilusões, tal como eu era na realidade. Agora eu sabia que vivia numa espécie de bruma que eu própria criara para não me poder reflectir na minha consciência. Ele, com os seus olhares, dissipara essa bruma e pusera novamente o espelho diante dos meus olhos. E eu via-me tal como era, na verdade, ou, melhor, tal como devia ser para ele, porque de mim eu nada pensava, nada sabia, como já o expliquei: quase não acreditava na minha existência. Acabei por lhe dizer:

— Vai-te embora.

— Porquê? — disse-me apoiando-se no cotovelo e olhando-me com ar embaraçado. — Que aconteceu?

— É melhor que te vás embora! — disse-lhe com calma sem tirar o braço da cara. — Não julgues que me ofendeste… Mas sei que nada sentes por mim, e então…

Não acabei, mas abanei a cabeça. Não respondeu; senti-o mexer-se e sair da cama; vestia-se. Uma dor aguda trespassou-me a alma como se me tivessem ferido profundamente com uma lâmina fina e cortante. Sofria por ouvi-lo vestir-se; sofria com a ideia de que daí a um momento ele se iria embora para sempre e eu nunca mais o voltaria a ver; sofria por estar a sofrer.

Vestiu-se devagar, esperando talvez que eu o chamasse. Lembro-me de que um instante julguei poder prendê-lo excitando o seu desejo. Quando me estendera ao seu lado, tinha puxado a roupa da cama para cima. Com uma coquetterie da qual sentia o desespero e a tristeza, mexi a perna, de maneira que a roupa escorregasse ao longo do corpo. Nunca me oferecera desta maneira. Durante uns instantes, deitada de costas, as pernas afastadas e o braço sobre os olhos, tive como que a ilusão física das suas mãos sobre os meus ombros e do seu hálito na minha boca. Mas quase imediatamente ouvi a porta fechar-se.

Fiquei como estava, estendida, imóvel. Creio que passei, sem dar por isso, da dor para uma espécie de semi-sonolência, depois ao sono. Acordei ainda de noite e reparei que estava só. Durante este primeiro sono, apesar da amargura da separação, o sentido da sua presença ficara-me. Não sei como, voltei a adormecer.

2

No dia seguinte surpreendi-me por me sentir lânguida, melancólica, como se tivesse saído de uma longa doença. Sou de carácter alegre, e como em mim a alegria vem da saúde e da robustez do corpo, ela foi sempre mais forte do que todas as adversidades, se bem que me tenha acontecido por vezes sentir-me alegre sem que o queira em circunstâncias em que me deveria sentir bem triste. Assim raro era o dia em que logo que me levantava não sentia desejo de cantar ou de contar alguma graça à minha mãe. Mas, nessa manhã, mesmo esta involuntária alegria me faltava; sentia-me apagada e dolente, sem desejo de viver as doze horas de vida que o dia me oferecia. Como minha mãe reparasse logo nesta mudança de humor, disse-lhe que tinha dormido mal.

Era verdade, e esse fora um dos numerosos efeitos da profunda mortificação que me trouxera a recusa de Jaime. Já o disse; há muito tempo que não me importava de ser o que era: não achava em mim própria qualquer razão para não o ser. Mas esperava amar e ser amada; ora, a recusa de Jaime, apesar das razões complicadas que ele me dera, parecia não poder ser atribuída senão ao meu ofício, o qual por este motivo se me tornara bruscamente odioso, intolerável.

O amor-próprio é um curioso animal que pode não acordar aos mais cruéis golpes e despertar ferido de morte por uma simples arranhadura. Havia uma recordação entre todas que me afligia e me enchia de amargura e de vergonha: — Que tal achas este quarto? — perguntara-lhe. — Não é confortável?

Lembrara-me de que não respondera, mas olhara tudo à sua volta com uma careta que eu de momento não compreendi. Agora sabia que tinha sido uma careta de desagrado. Tinha com certeza pensado: “O quarto de uma prostituta!” Quando recordava isto, o que mais me afligia era o ter pronunciado esta frase com uma ingênua satisfação. Deveria ter pensado que a uma pessoa como ele, tão fina, tão sensível, o meu quarto devia parecer-lhe um antro sórdido, duplamente feio, pelos seus móveis tão modestos e pelo uso que eu lhe dava. Bem desejei nunca ter pronunciado esta frase infeliz, mas agora era tarde. Nada havia a fazer! Dava-me a sensação de uma prisão da qual eu não podia fugir de maneira alguma. Esta frase era eu própria, inalterável, de futuro, como no que eu me tornara por vontade. Esquecê-la ou ter a ilusão de não a ter dito era o mesmo que esquecer-me de mim própria ou querer ter a ilusão de que não existia.

Estas reflexões intoxicavam-me como um veneno lento que lentamente seguira o seu caminho nefasto por entre o sangue das minhas veias. Habitualmente, de manhã, costumava saltar da cama, obedecendo a uma espécie de vontade independente. Mas nesse dia foi exactamente o contrário que aconteceu: a manhã passou, chegou a hora do almoço e eu nem sequer ainda me tinha mexido. Sentia-me inerte, impotente, entorpecida e ao mesmo tempo dorida como se esta imobilidade me causasse uma fadiga desesperada. Tinha a impressão de ser um desses barcos apodrecidos que ficam amarrados em qualquer baía pantanosa, com o ventre cheio de água fétida e negra: se alguém sobe para eles, as pranchas apodrecidas cedem logo e a barca, que talvez ali estivesse há anos, afunda-se num instante. Não sei quanto tempo fiquei neste estado enrolada na roupa da cama, os olhos dilatados, o lençol puxado até ao nariz. Ouvi tocar o meio-dia nos sinos, depois a uma, as duas, as três, as quatro horas. Tinha fechado a porta à chave e de vez em quando minha mãe, inquieta, vinha bater-me à porta. Respondia-lhe que já me levantava e que me deixasse em paz. Quando começou a anoitecer, procurei ser corajosa, fiz um esforço, que me pareceu sobre-humano, atirei com a roupa e levantei-me da cama. Sentia os membros inchados de inércia. Lavei-me, vesti-me, arrastando-me de um lado para o outro no quarto. Em nada pensava; sabia somente, não no meu espírito, mas em todo o meu corpo, que pelo menos nesse dia não desejava ir à caça dos meus amantes costumados. Depois de vestida, fui ter com minha mãe e disse-lhe que passaríamos a noite juntas. Passearíamos pelo centro da cidade e à noite iríamos tomar um aperitivo a um café.

A alegria de minha mãe, que não estava habituada a este género de convites, irritou-me não sei porquê: mais uma vez tive ocasião de observar como as suas faces estavam flácidas e gordas e como os olhos empapuçados tinham um luzir equívoco e falso. Mas refreei a tentação de lhe dizer alguma indelicadeza que teria destruído a sua alegria e fui sentar-me à mesa da sala grande, à espera que ela se vestisse. A luz branca dos anúncios entrava pela janela sem cortinas, iluminava a máquina de costura e estendia-se pela parede. Baixei os olhos sobre a mesa e vi as figuras coloridas do jogo de paciência com que minha mãe enganava o aborrecimento das suas longas noites. Então, bruscamente, tive uma sensação extraordinária: parecia-me que era eu minha mãe em carne e osso, esperando que sua filha Adriana, no quarto ao lado, acabasse o encontro com o seu amante de passagem. Esta impressão provinha sem dúvida de eu me ter sentado no seu lugar à mesa, em frente das suas cartas. Os lugares às vezes dão-nos destas sugestões: mais de uma pessoa, ao visitar uma prisão, experimenta o frio, o desespero, o sentimento de isolamento do prisioneiro que há muito tempo ali definha. Mas a sala não era uma prisão e minha mãe não sofria de dores tão concretas e fáceis de imaginar. Ela limitava-se a viver como sempre vivera. Todavia, talvez por há pouco ter sentido contra a sua pessoa um movimento de hostilidade, esta percepção da sua vida operara em mim uma espécie de reencarnação. As pessoas boas, para desculparem alguma má acção, dizem por vezes: “Põe-te no seu lugar”. Pois bem! Acabava de me pôr no lugar de minha mãe a ponto de ter a sensação de ser ela própria.

Era-o… mas com a consciência de o ser, coisa que não lhe acontecia, de contrário já se teria revoltado de uma maneira ou de outra. Sentia-se flácida, envelhecida, enrugada; compreendi o que é a velhice, que não só muda o aspecto do corpo, mas torna-o inepto e inerte. Como era minha mãe? Por vezes tinha-a visto quando se despia, e reparava, sem pensar, nos seus seios negros e murchos, no ventre amarelo e encolhido. Agora esses seios, que me tinham amamentado, esse ventre, de onde eu saíra, sentia-os tanto em mim que quase julgava poder tocar-lhes, causavam-me o desgosto, a pena impotente que ela devia ter sentido ao ver a mudança do seu corpo. A juventude e a beleza tornam a vida suportável e por vezes alegre. Mas quando já não existem? Senti um calafrio acordar-me deste pesadelo e felicitei-me por ser na realidade a bela e jovem Adriana e não a sua mãe, que não era nova nem bela, nem nunca mais o seria.

Mas ao mesmo tempo, como um mecanismo parado que começa lentamente a mover-se, começaram a formigar no meu espírito todas as ideias que lhe deviam passar pela cabeça enquanto esperava que eu aparecesse na sala. Não é difícil imaginar o que pode pensar uma pessoa como minha mãe em semelhantes circunstâncias; somente, na maior parte das pessoas, o facto de imaginar nasce da reprovação e do desprezo e em vez de imaginar elas constroem um fantoche sobre o qual vertem a sua hostilidade. Mas eu, que gostava de minha mãe e que só me punha no seu lugar por amor, sabia que naqueles momentos os seus pensamentos não eram nem interessantes, nem assustadores, nem vergonhosos, nem sequer relacionados de qualquer maneira com o que eu fazia e com quem o fazia. Sabia, pelo contrário, que as suas ideias eram insignificantes e ocasionais como era natural de uma pessoa como ela, pobre, velha, ignorante, e que durante toda a vida não tinha pensado dois dias a seguir da mesma maneira sem receber da necessidade o mais peremptório desmentido. As grandes ideias e os grandes sentimentos — sejam tristes e negativos — precisam de protecção; são plantas delicadas que levam tempo a criar raízes e a fortificar. Minha mãe nunca tinha podido cultivar nem no seu espírito, nem no seu coração, outra coisa que as maldosas e efêmeras ervas das reflexões e das preocupações e dos ressentimentos quotidianos, enquanto eu, no quarto ao lado, me dava aos homens por dinheiro. Assim, diante da sua “paciência”, podiam continuar a rolar na sua cabeça sempre as mesmas imbecilidades (se é justo chamar assim às coisas que nela tinham vivido durante tantos anos): o preço dos alimentos, a costura que havia para fazer e outras coisas parecidas. Talvez agora, ao ouvir o som dos sinos da igreja vizinha, ela por vezes pensasse sem ligar grande importância ao facto: “Desta vez a Adriana leva mais tempo que de costume.” Ou quando ouvia abrir a porta e falar no vestíbulo: “A Adriana acabou.” Que mais? Com estas ideias na cabeça eu era a minha mãe completa: corpo e alma. E justamente porque conseguira ser como ela de uma maneira tão completa tinha a impressão de a amar outra vez, e mais do que dantes.

Acordei deste sonho com o ruído da porta que se abria. Minha mãe acendeu a luz e perguntou-me:

— Que fazes aí às escuras?

Deslumbrada pela luz, levantei-me e olhei-a. Tinha mudado de facto; reparei logo. Não tinha chapéu, porque nunca o usara, mas vestira um vestido preto de feitio complicado. Sobraçava uma grande mala de couro preto com fechos de metal amarelo e trazia ao pescoço uma pele de gato bravo. Molhara os seus cabelos cinzentos e penteara-os com cuidado, prendendo-os num rolo na nuca com numerosos ganchos. Até tinha passado um pouco de pó de arroz rosado sobre as faces, dantes áridas e magras e agora cheias e coradas. Sem querer, sorri por vê-la tão aperaltada e tão solene. E foi no meu tom afectuoso de sempre que lhe disse:

— Vamos!

Sabia que ela gostava de passear à hora de maior movimento pelas ruas principais, que tinham as lojas mais bonitas da cidade. Assim, tomamos um eléctrico e descemos a Rua Nacional. Minha mãe costumava levar-me a passear nessas ruas quando eu era garota. Começava na Praça do Hexaedro pelo passeio da direita. Lentamente, examinando as montras uma por uma com atenção, chegava à Praça de Veneza. Ali, sempre observando tudo com minúcia e puxando-me pela mão, passava para o outro passeio e voltava para a Praça do Hexaedro. Então, sem ter comprado um alfinete nem se ter atrevido a pôr pé num dos numerosos cafés da rua, trazia-me para casa, sonolenta e cansada. Lembrava-me de que esses passeios não me agradavam, porque, ao contrário de minha mãe, eu teria desejado entrar, comprar e trazer para casa todas as belas coisas expostas atrás dos vidros brilhantemente iluminados. Mas depressa aprendera que éramos pobres e não manifestava de forma alguma os meus sentimentos. Uma vez só, não me lembro porquê, tive, como costuma dizer-se, uma birra. E percorremos a rua do princípio ao fim, minha mãe puxando-me por um braço e eu resistindo com todas as forças, chorando e gritando… Por fim, em vez do objecto desejado, minha mãe deu-me um par de tabefes e a dor da bofetada fez esquecer a da renúncia.

Encontrei-me de novo pelo braço da minha mãe, no mesmo passeio da mesma Praça do Hexaedro, como se os anos não tivessem passado. Via as pedras dos passeios, onde formigavam pés calçados com botas, grossos sapatos, sandálias, saltos altos, saltos baixos; via os transeuntes que subiam e desciam a rua, a dois e dois, em grupos de homens, de mulheres e de crianças ou ainda pessoas sós, umas lentas outras apressadas, todas iguais, justamente porque queriam parecer diferentes, com os mesmos fatos, os mesmos chapéus, as mesmas caras, os mesmos olhos, as mesmas bocas. Via as sapatarias, as joalharias, as relojoarias, as livrarias, as floristas, as lojas de fazendas, os luveiros, os cafés e os cinemas, os bancos. Revia as janelas iluminadas das belas casas, com pessoas lá dentro a andar de um lado para o outro ou sentadas à mesa a trabalhar, os anúncios luminosos, sempre os mesmos. Num canto da rua, o vendedor de jornais, os vendedores de castanhas, os mendigos: o cego com a cabeça encostada à parede, a bengala branca estendida e os óculos pretos; mais abaixo a mulher quase velha com uma chaga no seio, ainda mais abaixo o idiota com aquele coto amarelo luzidio como um joelho e que estendia à caridade. Ao encontrar-me nesta rua, no meio de todas as coisas que me eram familiares, experimentava uma fúnebre impressão de imobilidade, que me arrepiou da cabeça aos pés, e durante um momento tive a sensação de estar nua, como se um sopro de terror se tivesse infiltrado por entre a minha roupa e a minha pele. O aparelho de T. S. F. de um café transmitia a voz ruidosa e apaixonada de uma mulher que cantava. Era no ano da guerra da Etiópia e ela cantava Linda Caránha Preta.

Como era natural, minha mãe não se apercebia dos meus sentimentos; de resto eu não os deixava transparecer. Como já disse, tenho um aspecto tão doce e tão fleumático que é raro as pessoas adivinharem o que passa pela minha cabeça. Num certo momento, no entanto, senti-me comovida (a mulher acabava de cantar uma cançoneta sentimental), os lábios começaram-me a tremer e disse a minha mãe:

— Lembras-te de quando me fazias subir e descer esta rua para ver as montras?

— Lembro-me — respondeu ela —, mas nesse tempo estava tudo mais barato… Esta mala, por exemplo, comprei-a por metade do preço de agora!

Passamos da montra de uma loja de malas para a de uma joalharia. Minha mãe parou a contemplar as jóias e disse com ar extasiado:

— Olha aquele anel… Sabe Deus o que custa!… E esta pulseira… toda de ouro maciço! Eu nunca tive a paixão das pulseiras ou dos anéis… mas colares, sim! Tinha um colar do coral… mas tive de o vender.

— Quando?

— Oh! Há muitos anos!

Não sei porquê, lembrei-me de que com o dinheiro ganho com a minha profissão não tinha ainda podido comprar o mais miserável anelzito. E declarei a minha mãe:

— Sabes… Decidi que daqui em diante mais ninguém traria para casa. Acabou.

Era a primeira vez que eu aludia ao meu ofício de uma forma tão explícita. A cara dela teve uma expressão que eu de momento não consegui interpretar, e respondeu:

— Já to disse muitas vezes… Farás aquilo que entenderes. Se estiveres contente, eu também estou.

No entanto, não parecia satisfeita.

— Recomeçaremos a vida que levávamos dantes — continuei—, serás obrigada a voltar a cortar e a coser as tuas camisas.

— Já o diz durante tantos anos! — disse.

— Não teremos tanto dinheiro como agora — insisti um pouco cruelmente. — Temos levado uma rica vida. Por mim ainda não sei o que farei.

— Que vais fazer? — perguntou-me minha mãe com uma expressão de esperança.

— Não sei — respondi. — Recomeçarei a ser modelo… ou talvez te ajude às camisas…

— Oh! Mas como me poderás ajudar?… — disse ela, desencorajada.

— Ou então arranjo um lugar de criada — continuei. — Que queres que faça?

Agora minha mãe tinha uma cara amarga e triste como se sentisse bruscamente toda a gordura dos últimos anos abandoná-la, como as folhas mortas que se desprendem das árvores aos primeiros frios do Outono. Disse com a mesma convicção:

— Farás o que quiseres — repito. — Contanto que estejas contente!

Compreendia que dois sentimentos opostos se debatiam dentro dela: o seu amor por mim e o seu desejo de uma vida confortável. Fez-me pena. Teria preferido que tivesse tido a coragem de sacrificar deliberadamente um dos dois sentimentos e fosse toda amor ou toda interesse. Mas é raro que isso aconteça: passamos toda a vida a anular com a acção dos nossos vícios o efeito das nossas virtudes.

— Eu dantes não estava satisfeita e agora também não irei estar. Somente não tenho coragem para continuar esta vida.

Depois destas palavras nada mais dissemos. Minha mãe estava com uma cara abatida; a sua magreza de outrora, a sua pele esticada, pareciam desenhar-se já de novo debaixo do seu ar de prosperidade. Examinava as montras com o mesmo ar minucioso, as mesmas longas contemplações, mas sem alegria, sem curiosidade, maquinalmente, como se pensasse noutra coisa. Talvez nada visse do que olhava, ou, melhor, não visse os objectos expostos, mas uma máquina de costura, com um pedal infatigável e uma agulha que subia e descia como louca, pedaços de tecido meio confeccionados sobre a mesa da costura, bocados de papel preto nos quais embrulhava o trabalho acabado para entregar na cidade aos clientes. Pela minha parte, estes fantasmas não se interpunham entre os meus olhos e a montra. Via tudo muito bem e pensava de uma maneira clara. Inspeccionava os objectos um por um, vendo a etiqueta com o preço, e dizia a mim própria que podia muito bem não querer continuar o meu ofício (como de facto não queria), mas que na realidade não podia ter outro. Alguns objectos que via nas montras poderia vir a tê-los se economizasse um pouco; no dia em que voltasse aos meus anteriores trabalhos seria preciso renunciar a estas coisas para sempre; recomeçaria para mim e para minha mãe a nossa vida de outrora, restrita, sem conforto, cheia de renúncias e de recalcamentos, de sacrifícios inúteis e de economias sem resultado. Actualmente podia aspirar a uma jóia se encontrasse alguém que ma pudesse oferecer. Mas se voltasse à minha vida miserável, as jóias tornar-se-iam para mim tão inacessíveis como as estrelas do céu. Assaltou-me um violento desagrado por essa vida passada, que me pareceu estupidamente desesperante, e senti como eram absurdos os motivos que me tinham levado a pensar em mudar de vida. Porque um estudante por quem eu tinha ficado embeiçada não me tinha querido! Porque se me tinha metido na cabeça que ele me desprezava? Em suma, só porque eu não tinha querido ser o que era. Compreendi que era unicamente orgulho, e não podia por simples orgulho voltar, e sobretudo obrigar minha mãe a voltar, à nossa miserável situação de antigamente. Vi de súbito a vida de Jaime, que se aproximara da minha e nela se fundira, divergir numa direcção diferente e a minha continuar pela estrada que eu tinha escolhido. Se encontrasse alguém que gostasse de mim e me desposasse, então sim, nem que fosse pobre! Mas por capricho extravagante não valia a pena! A esta ideia, uma grande calma, feita de alívio e doçura, invadiu-me a alma. Era uma sensação que frequentemente experimentava de cada vez que não só aceitava o destino que a vida me impusera, mas também quando ia ao meu encontro. Era o que era: devia ser isto e não outra coisa. Podia ser uma boa esposa, por muito estranho que pareça, ou uma mulher que se dá por dinheiro, mas nunca uma desgraçada que se condenou a uma vida de miséria apenas para satisfação do seu orgulho. Por fim sorri, reconciliada comigo própria.

Estávamos em frente de uma loja de novidades para senhora. Minha mãe disse-me:

— Olha que lindo lenço. De um lenço assim é que eu precisava.

Tranquila e serena, levantei os olhos para ver o lenço que minha mãe indicava. Era realmente bonito, preto e branco, com ramos e pássaros. Da porta da loja podia ver-se sobre o balcão uma caixa com divisões cheia de lenços iguais e desdobrados. Perguntei-lhe:

— Gostas do lenço?

— Sim. Porquê?

— Vais tê-lo, mas, para começar, dá-me a tua mala e toma lá a minha.

Ela nada percebia e olhava-me de boca aberta. Sem falar trocamos as malas, abri o fecho, segurando-o com dois dedos, e, devagar, com o passo de quem quer comprar, entrei na loja. Minha mãe seguiu-me. Continuava a não compreender, mas não ousava perguntar.

— Queríamos ver lenços — disse eu à empregada aproximando-me da caixa das divisões.

— Estes são de seda, estes de caxemira, estes de lã… estes são de algodão… — dizia a empregada estendendo-os à minha frente.

Aproximei-me o mais possível do balcão, com a mala ao nível da barriga, e comecei a examinar, só com uma das mãos, os lenços, abrindo-os e voltando-os para a luz para ver melhor o desenho. Havia pelo menos uma dúzia deles, todos parecidos. Consegui que um ficasse caído de maneira que uma grande ponta pendesse para o lado de fora do balcão. Depois disse à empregada:

— Gostaria de ver alguns de tons mais vivos.

— Temos um artigo melhor, mas mais caro! — disse ela.

— Mostre-me.

A empregada voltou-se para puxar uma caixa de riscas. Era tempo; afastei-me um pouco do balcão e abri a mala; puxar a ponta do lenço e tornar a encostar-me ao balcão foi obra de um instante.

Entretanto, a empregada trouxera a caixa. Pousou-a sobre o balcão e mostrou-me outros lenços maiores e mais bonitos. Eu examinava-os fazendo observações sobre as cores e os desenhos e mostrando-os a minha mãe, que tinha visto tudo e me respondia com acenos de cabeça, mais morta do que viva.

— Quanto custam? — perguntei.

A empregada disse o preço e eu respondi num tom desgostoso:

— Tinha razão; são muito caros… pelo menos para mim. Obrigada.

Saímos da loja e dirigimo-nos rapidamente para uma igreja próxima, porque eu receava que a empregada desse pelo roubo e nos perseguisse por entre a multidão. Minha mãe, que me dava o braço, olhava em volta com ar assustado, como um bêbado que pergunta a si mesmo se não serão os objectos que estão bêbados porque os vê vacilar e baralharem-se. Não pude deixar de sorrir da sua atrapalhação. Não sabia porque tinha roubado o lenço: a coisa, de resto, não tinha importância, porque eu já tinha roubado a caixa de pó de arroz de Gino e porque nas coisas deste gênero o primeiro passo é que custa. Mas experimentava o mesmo prazer sensual e começava a compreender porque havia tanta gente que roubava. Perto da igreja disse a minha mãe:

— Queres entrar por um instante?

— Como quiseres! — respondeu-me em voz baixa.

Entrámos: era uma igrejinha branca, redonda, à qual uma colunata disposta em volta do pavimento dava a impressão de uma sala de baile. Levantei os olhos e vi que a cúpula estava cheia de frescos representando anjos de asas abertas. Tive a convicção de que estes belos anjos me protegeriam e que a empregada só se aperceberia do roubo à noite. O silêncio, o cheiro do incenso, a sombra, o recolhimento da igreja, davam-me segurança, depois do tumulto e da luz violenta da rua. Entrara depressa, arrastando um pouco minha mãe, mas acalmei-me logo e o medo desapareceu. Minha mãe fez menção de abrir a minha mala que ainda conservava e eu troquei-a pela sua, dizendo-lhe:

— Põe o lenço!

Ela abriu a mala e pôs na cabeça o lenço roubado. Molhamos os dedos em água benta e fomo-nos sentar na primeira fila de bancos em frente do altar-mor. Ajoelhei-me, enquanto minha mãe ficava sentada com as mãos sobre os joelhos, a cara escondida pelo lenço demasiadamente grande. Percebi que ela estava perturbada e não pude deixar de comparar a sua perturbação com a minha calma. Estava com uma disposição de espírito doce e conciliadora; não sentia remorsos e estava muito mais próxima da religião do que quando não praticava acções condenáveis e trabalhava cerrando os dentes para ganhar a vida. Lembrei-me do frêmito de desalento que momentos antes sentira ao olhar as ruas cheias de gente e senti-me reconfortada à ideia de que havia um Deus que via claro no meu íntimo: verificava que em mim nenhum mal havia, que pelo único facto de viver estava inocente, como todos os homens de resto. Sabia que este Deus não estava lá para me condenar ou julgar, mas para justificar a minha existência, que só podia ser boa, visto que só dependia dele. Rezando maquinalmente e pronunciando as palavras da oração, olhava o altar sobre o qual, atrás da chamazinha trêmula dos círios, entrevia um quarto com uma imagem que me parecia ser a da Virgem e sentia que entre mim e a Virgem a questão não era saber se eu devia viver desta ou daquela maneira, mas, mais radicalmente, se me devia considerar encorajada a viver ou não. E bruscamente tive a impressão de que este encorajamento partia da silhueta escura que estava atrás dos círios do altar sob a forma de um brusco calor que me envolveu o corpo todo.

Minha mãe ficara toda trêmula e assustada, com o seu lenço novo que lhe fazia um bico por cima do nariz. Quando a olhei, não pude deixar de sorrir com amizade.

— Reza um bocadinho — murmurei-lhe. — Verás que te faz bem.

Ela estremeceu, hesitou, depois ajoelhou-se e pôs as mãos como que de má vontade. Sabia que ela não queria acreditar na religião, que lhe parecia um falsa consolação destinada a acalmá-la e a fazer-lhe esquecer as durezas da vida. Nem ao menos a vi mover maquinalmente os lábios, e a sua cara cheia de desconfiança e de mau humor fez-me sorrir de novo. Teria desejado sossegá-la, dizer-lhe que mudara de ideias, que não devia ter receio, que não seria obrigada a coser à máquina outra vez. Havia qualquer coisa de infantil na sua má disposição: era como uma criança a quem se recusa um bolo que se tinha prometido, e esta aparência parecia-me o aspecto fundamental da sua conduta para comigo. Se assim não fosse, eu teria de pensar que ela desejaria que eu continuasse com o meu ofício para usufruir daí o seu conforto; e eu sabia, no fundo, que não era verdade.

Quando acabou de rezar, persignou-se com ar seco e despeitado para marcar bem que o fazia só para me ser agradável. Saímos. À porta tirou o lenço, dobrou-o cuidadosamente e meteu-o na mala. Voltamos à Rua Nacional e encaminhei-me para uma pastelaria.

— Vamos tomar um vermute! — disse-lhe.

— Não, não, não vale a pena! — respondeu com uma voz em que a apreensão e o prazer se misturavam.

Fazia sempre a mesma coisa; por um velho hábito, receava sempre que eu fizesse gastos excessivos.

— Ora! — disse-lhe. — Por um vermute!

Calou-se e seguiu-me.

Era uma velha pastelaria com um balcão com embutidos de caju luzidio e muitas vitrinas cheias de lindas caixas com bombons. Sentámo-nos num canto e pedi dois vermutes. O criado intimidou minha mãe, que baixou os olhos, imóvel e envergonhada, enquanto eu dava as competentes ordens. Quando trouxeram os vermutes, ela bebeu um pequeno gole, tornou a pôr o copinho em cima da mesa, olhou-me e pronunciou com gravidade:

— É bom.

— É vermute — disse eu.

O criado trouxe uma grande caixa de vidro e metal com bolos. Abri-a e disse-lhe:

— Come um bolinho!

— Não, não, por favor…

— Pelo menos um…

— Tirava-me o apetite.

— Um bolo só!…

Escolhi um folhado com creme e ofereci-lho dizendo:

— Come este, que é leve.

Ela mordicou-o com precaução, olhando para o sítio que tinha mordido.

— É realmente muito bom! — disse por fim.

— Come outro — disse-lhe.

Desta vez não se fez rogada e comeu o segundo bolo. Acabado o vermute, ficámos silenciosas, contentando-nos em olhar o vaivém de clientes na pastelaria. Compreendia que minha mãe se sentia contente por estar sentada neste canto com um vermute e dois bolos no estômago, que as idas e vindas desta gente lhe despertavam a curiosidade e a divertiam e que nada tinha para me dizer. Era provavelmente a primeira vez que ela ia a um lugar destes.

Uma rapariga entrou. Trazia pela mão uma garotinha com uma gola de pele branca, um vestido curto, meias e luvas brancas. A mãe escolheu um bolo e deu-o à garota. Eu disse a minha mãe:

— Quando eu era pequena, nunca me trazias às pastelarias!

— Como podia eu? — respondeu.

— Agora — disse tranquilamente —, quem te leva às pastelarias sou eu.

Calou-se, depois disse-me com ar penalizado:

— Estás a censurar-me por ter vindo… mas eu não queria!

Pousei a minha mão sobre a sua e disse-lhe:

— Não te censuro… Pelo contrário, estou bem contente por te ter trazido… A avó nunca te levava às pastelarias?

Ela abanou a cabeça:

— Até aos dezoito anos nunca saí do meu bairro.

— Então já vês — disse-lhe. — Numa família é preciso que haja alguém que faça certas coisas, um dia ou outro. Tu nunca o fizeste, tua mãe também não, nem provavelmente a mãe da tua mãe… então faço-as eu… Não pode continuar tudo eternamente da mesma maneira.

Nada disse e passamos ainda um quarto de hora a observar as pessoas. Depois abri a mala, tirei a cigarreira e acendi um cigarro. É frequente as mulheres como eu fumarem nos lugares públicos para chamarem a atenção dos homens. Mas eu naquela altura não pensava em procurar amantes; tinha até decidido deixar de o fazer. Apetecia-me fumar, mais nada. Introduzi o cigarro nos lábios e deitei uma baforada pelo nariz, conservando o cigarro entre os dedos e olhando em volta. Mas devia haver nos meus gestos, sem que eu desse por isso, qualquer coisa de provocante, porque vi logo alguém que se encontrava junto do balcão e segurava uma chávena de café que se preparava para beber suspender o movimento e olhar-me fixamente. Era um homem de quarenta anos, baixo, de cabelo encaracolado, olhos salientes e maxilares duros. Tinha o pescoço tão curto que quase não existia. Como um touro que vê o vermelho e pára a olhar de cabeça baixa, assim ele me olhava com a chávena na mão. Estava vestido elegantemente, com um sobretudo que valorizava os seus largos ombros. Sabia que com aquele aspecto bastava que eu o olhasse para que as veias do pescoço lhe inchassem e a cara ficasse vermelha. Mas não tinha a certeza de que ele me agradasse. Depois senti como que uma seiva secreta saindo de uma casca rugosa, sob a forma de mil germezinhos ternos; o desejo de o excitar espicaçava-me o corpo todo e obrigava-me a deixar a minha atitude reservada. Justamente uma hora antes eu tinha decidido deixar esta vida. Pensava que realmente nada havia a fazer… era mais forte do que eu! Mas pensava-o alegremente. Depois de sair da igreja, tinha-me reconciliado com a minha sorte, fosse ela qual fosse, e sentia que esta aceitação valia mais para mim que qualquer nobre recusa. E assim, passados uns momentos de reflexão, levantei os olhos para o homem. Ainda me olhava, apalermado, com a chávena na sua mão peluda e os olhos bovinos fixos em mim. Então, tomei, por assim dizer, o meu impulso, e com toda a malícia de que era capaz disparei-lhe um longo olhar cálido e sorridente. Recebeu-o em cheio e, como já tinha previsto, congestionou-se. Bebeu o café, pôs a chávena no balcão e, muito direito no seu sobretudo apertado, foi-se embora, para pagar na caixa. A porta olhou para trás e fez-me claramente e com ar imperioso um sinal de inteligência. Saiu e eu disse a minha mãe :

— Deixo-te… fica tu! De qualquer maneira não te poderia acompanhar.

Ela estremeceu:

— Porquê? Aonde vais?

— Esperam-me lá fora — disse-lhe, levantando-me. Toma o dinheiro: paga e volta para casa… Aliás chegarei primeiro… mas não vou só.

Olhou-me com ar assustado e julguei ver uma sombra de remorso no seu olhar. Mas ficou calada. Disse-lhe adeus e saí. O homem esperava-me na rua. Apenas saíra já ele se inclinava para mim e me agarrava violentamente o braço dizendo:

— Para onde vamos?

— Para minha casa.

Foi assim que depois de algumas horas de angústia renunciei à luta contra o que parecia ser o meu destino, e o abracei até com mais amor, como se estreita um inimigo que não se pode vencer. E senti-me liberta. Alguns vão pensar que é fácil aceitar uma sorte ignóbil mas rendosa em vez de a recusar. Eu tenho perguntado muita vez a mim própria porque a tristeza e a raiva enchem as almas daqueles que vivem segundo certos preceitos e certos ideais, enquanto que aqueles que aceitam a sua vida, que é acima de tudo nulidade, obscuridade e fraqueza, são tão freqüente mente despreocupados e alegres. Neste caso, de resto, cada qual obedece não a preceitos, mas ao seu temperamento, que toma o aspecto de destino. O meu, como já o disse, era ser a todo o custo alegre, doce e tranquila e eu aceitei-o.

3

Renunciei completamente a Jaime e não pensei mais nele. Sentia que o amava, que se ele tivesse voltado eu teria ficado feliz e amá-lo-ia mais do que nunca, mas sentia também que não me deixaria mais humilhar por ele. Se ele tivesse voltado, teria ficado na sua frente, fechada na minha vida como numa fortaleza que seria verdadeiramente inexpugnável enquanto a não abandonasse. Dir-lhe-ia: “Sou uma rapariga da rua e nada mais. Se me queres, é preciso que me aceites tal como sou.” Tinha compreendido que a minha força não era desejar ser aquilo que não sou, mas aceitar aquilo que era. A minha força era a minha fortaleza, o meu trabalho, a minha mãe, a minha casa, as minhas roupas modestas, a minha origem humilde, as minhas infelicidades e, mais intimamente, o sentimento que me fazia aceitar todas estas coisas profundamente enterradas na minha alma como uma pedra preciosa na terra. Contudo, estava certa de que não o tornaria a ver; e esta certeza fazia com que o amasse de uma maneira nova para mim, impotente e melancólica, mas não privada de doçura, como se amam os que morreram e nunca mais voltarão. No decurso desses dias rompi com Gino. Como já o disse, não gosto dos rompimentos bruscos; quero que as coisas vivam e morram naturalmente. As minhas relações com Gino são um bom exemplo desta vontade. Elas acabaram porque a vida que as animava se apagou e não por qualquer falta da minha parte e nem sequer, num certo sentido, por culpa de Gino. Acabaram de maneira a não me deixarem nem desgosto nem remorso.

Continuara a vê-lo de tempos a tempos, duas ou três vezes por mês. Agradava-me, como já disse, se bem que já tivesse perdido toda a estima que tivera por ele. Num desses dias marcou-me, pelo telefone, encontro numa pastelaria onde eu lhe disse que iria.

Era uma pastelaria do meu bairro. Gino esperava-me na salinha do fundo, numa espécie de gabinete sem janelas, com as paredes completamente revestidas de azulejos. Quando entrei, reparei que não estava só. Alguém estava sentado com ele, de costas viradas para mim. Só via que trazia um impermeável verde e que tinha cabelos louros, cortados muito curtos. Aproximei-me e Gino disse:

— Deixa-me apresentar-te o meu amigo Sonzogne.

Então ele levantou-se; olhei-o e estendi-lhe a mão. Mas quando ele ma apertou, tive a impressão de ter sido agarrada por tenazes e dei um pequeno grito de dor. Ele largou-me logo a mão; sentei-me sorrindo e disse-lhe:

— Sabe que me magoou? Você aperta sempre assim a mão?

Não me respondeu nem sequer sorriu. Tinha a cara branca como o papel, a testa saliente, olhos pequeninos azuis-claros, o nariz adunco e a boca cerrada como um corte. Os seus cabelos louros, lisos e deslavados, estavam cortados curtos sobre as têmporas achatadas, mas a base da cara era larga, com maxilares largos e desgraciosos. Parecia estar sempre a cerrar os dentes, como se triturasse qualquer coisa, e constantemente, debaixo da pele das faces, via-se fremir e deslizar uma espécie de nervo. Gino, que parecia ter por ele uma amizade afectuosa e admirativa, disse-me rindo:

— Mas isto nada é… Se tu soubesses como é forte! Tem o soco proibido!

Tive a impressão de que Sonzogne o olhava com hostilidade. Acabou por dizer com voz surda:

— Não é verdade que tenha o soco proibido… Mas podia ter!

Perguntei:

— Que é isso do soco proibido?

Sonzogne respondeu-me secamente:

— Quando se pode matar um homem com um soco, não se tem o direito de empregar o punho. É como fazer uso do revólver.

— Mas sente como ele é forte! — insistiu Gino, excitado e desejoso, parecia, de se reconciliar com Sonzogne. — Vamos — pedia-lhe —, deixa-a apalpar os teus braços!

Hesitei, mas dir-se-ia que Gino o desejava e que o seu amigo também esperava esse gesto. Estendi a mão molemente para lhe apalpar o braço. Ele dobrou o antebraço para retesar os músculos, mas seriamente, quase que com um ar sombrio. Então, com grande surpresa minha, porque ao vê-lo dava o aspecto de um homem franzino, os meus dedos sentiram, através das mangas, como um rolo de cabo de aço. Retirei a mão com uma exclamação, não sei se de admiração, se de repugnância. Sonzogne olhou-me com ar satisfeito, um leve sorriso nos lábios. Gino declarou:

— É um velho amigo… Não é verdade, primo, que nos conhecemos há muito tempo? Somos como dois irmãos!

E deu uma palmada nas costas de Sonzogne, acrescentando:

— O meu velho primo!

Mas o outro levantou os ombros para afastar a mão de Gino e respondeu:

— Nem amigos, nem irmãos… Trabalhamos na mesma garagem, é o que é!

Gino não se desconcertou:

— Eh! Sei que de ninguém queres ser amigo! Sempre só… sempre por tua conta… nem homens nem mulheres!

Sonzogne olhou-o. Tinha um olhar frio, de uma imobilidade e de uma insistência incríveis, e Gino desviou dele os seus olhos.

— Quem te contou essas histórias? — disse-lhe Sonzogne. — Ando com quem me agrada, homens e mulheres!

— Falei por falar — desculpou-se Gino, que parecia perder toda a segurança. — Pelo que me diz respeito, é certo que nunca te vi com ninguém.

— Tu nada sabes da minha vida.

— Ora! Eu que te via todos os dias de manhã à noite!

— Vias-me todos os dias, e então?

— Bem! — insistiu Gino desconcertado. — Como te via sempre sozinho, pensei que não te desses com ninguém. Quando um homem tem uma mulher ou um amigo, acaba sempre por se saber!

O outro disse-lhe brutalmente:

— Não te faças cretino!

— Agora chamas-me cretino! — disse Gino corado, afectando julgar a frase de humor inofensivo.

Mas sentia-se que tinha medo. Sonzogne repetiu:

— Não te faças cretino, senão parto-te a cara!

Bruscamente, compreendi que não só ele era capaz de o fazer, mas que era mesmo essa a sua intenção. Pousei-lhe a mão no braço e disse-lhe:

— Se vocês se querem bater, façam-no quando eu não estiver presente… detesto violências.

— Apresento-te uma rapariga minha amiga — disse Gino, penalizado — e tu assusta-la desta maneira… Ela vai pensar que somos dois inimigos.

Sonzogne voltou-se para mim e pela primeira vez sorriu. Quando sorria, piscava os olhos, franzia a testa de uma maneira irregular e mostrava não só os dentes, que eram pequenos e frios, mas também as gengivas.

— A menina não está assustada, pois não?

Respondi-lhe secamente :

— Não estou nada assustada, mas, como acabei de dizer, não gosto de violências.

Houve um longo silêncio. Sonzogne ficou imóvel com as mãos nos bolsos do impermeável; fazia tremer os nervos dos maxilares e olhava para o vago. Gino fumava, com a cabeça baixa, e o fumo que saía da sua boca subia-lhe ao longo da cara e das orelhas, ainda escarlates. Por fim, Sonzogne disse:

— Vou-me embora.

Gino quase deu um pulo e estendeu-lhe a mão com ar atencioso, dizendo :

— Então, amigos como dantes, hem, primo?

— Amigos como dantes! — respondeu o outro com os dentes cerrados.

Apertou-me a mão, desta vez sem me magoar, e foi-se embora. Era magro e baixo: não se compreendia donde vinha a sua força.

Logo que saiu, disse, divertida, a Gino:

— Vocês podem ser amigos e até mesmo irmãos… mas ele disse-te cada coisa!

Gino retomara a sua segurança. Abanou a cabeça e explicou-me:

— É feito assim… mas não é mau… E depois, a mim interessa-me estar de boas relações com ele… já me foi útil.

— De que maneira?

Apercebi-me de que Gino estava excitado e ardia de desejo por me revelar não sei o quê. Assumiu de repente um aspecto risonho, a cara como que inchada de impaciência :

— Lembras-te — perguntou-me — da caixa da minha patroa?

— Lembro… e então?

Os olhos de Gino brilhavam de alegria. Baixou a voz e disse-me:

— Pois bem! Depois pensei melhor e não a devolvi.

— Não a devolveste?

— Não. Reflecti que para a minha patroa, que era rica, uma caixa a mais ou a menos não tinha importância. Já agora o golpe estava dado — acrescentou com uma reserva característica — e no fundo não tinha sido eu o gatuno.

— Era eu a ladra — disse-lhe tranquilamente.

Fingiu não ouvir e continuou:

— Mas para a vender, era um problema… Era um objecto de fácil reconhecimento… Não tinha confiança… Guardei-a, pois, durante muito tempo no bolso… depois encontrei Sonzogne e contei-lhe a história.

— Falaste-lhe de mim? — perguntei.

— Não… de ti não… disse que tinha sido uma amiga que ma tinha dado, sem citar ninguém. E ele… imagina que em três dias, não sei como, vendeu-a e trouxe-me o dinheiro, ficando com a parte dele, como se tinha combinado, bem entendido.

Tremia de alegria. Olhou um momento à sua volta, depois tirou do bolso um rolo de notas.

Não sei porquê, naquele momento senti por ele uma violenta antipatia. Não julgo que o desaprovasse; não tinha sequer esse direito. Mas o seu tom exultante aborrecia-me. Além disso tinha a impressão de que ele não me tinha dito tudo; e o que escondera era decerto o pior. Disse-lhe secamente :

— Fizeste bem!

— Toma! — continuou desenrolando as notas. — Isto é para ti. Contei contigo.

— Não, não! — disse-lhe. — Nada quero, absolutamente nada.

— Mas porquê?

— Nada quero.

— Queres por força vexar-me! — disse-me.

Uma sombra de tristeza e de desconfiança passou na sua cara e julguei tê-lo verdadeiramente magoado. Fiz um esforço e disse pousando-lhe a mão sobre a sua:

— Se não mo tivesses oferecido, eu teria ficado, não digo ofendida, mas admirada. Agora assim está bem. Não quero esse dinheiro, porque para mim é um caso arrumado. É só isso… mas estou contente porque tu o tenhas.

Olhava-me sem compreender, com uma expressão desconfiada, como se quisesse descobrir o motivo secreto que se escondia nas minhas palavras. Frequentemente, depois, pensando no caso, percebi que ele não me podia ter compreendido, porque vivia num mundo diferente formado por ideias e por sentimentos diferentes dos meus.

Não sei se este mundo era pior ou melhor do que o meu; só sei que certas palavras não tinham para ele o sentido que eu lhes ligava e que uma grande parte das suas acções, que me pareciam repreensíveis, ele as considerava como lícitas e mesmo legais. Parecia, em particular, ligar a maior importância à inteligência, que para ele se reduzia à astúcia. Dividia os homens em astuciosos e parvos, esforçando-se sempre, e a todo o preço, por pertencer à primeira categoria. Ora, eu não sou astuciosa, talvez mesmo não seja inteligente, e nunca compreendi como um acto indigno, só pelo facto de ser praticado com esperteza, pode chegar a ser, já não digo admissível, mas simplesmente desculpável.

Bruscamente a sua desconfiança pareceu dissipar-se e gritou:

— Compreendo! Não queres o dinheiro porque tens medo… tens medo que descubram o roubo… A esse respeito nada há a recear… Está tudo em ordem!

Não tinha medo, mas não me importei que ele o pensasse, porque a segunda parte da frase pareceu-me obscura.

— Está tudo em ordem? — perguntei-lhe. — Que queres dizer?

— Sim, está tudo em ordem — respondeu-me. — Lembras-te de eu te ter dito que lá em casa desconfiavam de uma criada de quarto?

— Sim.

— Bem! Não gostava dessa criada de quarto porque ela dizia mal de mim nas minhas costas… Alguns dias depois do roubo percebi que as coisas tomavam um mau rumo para mim. O comissário já tinha ido lá a casa duas vezes e eu senti que desconfiavam de mim. Nota bem que ainda não tinham começado as indagações. Então tive uma ideia: desviar as suspeitas para outro roubo e fazer com que as culpas caíssem sobre a criada.

Eu não dizia palavra. Olhou-me um momento com os olhos brilhantes e dilatados para ver se eu admirava a sua astúcia e continuou:

— A minha patroa tinha alguns dólares numa caixinha; tirei os dólares e fui pô-los no quarto da criada, dentro de uma mala velha. Desta vez, como era natural, fizeram pesquisas, descobriram os dólares e prenderam-na. Agora ela jura que está inocente, bem entendido, mas quem a vai acreditar depois de terem encontrado os dólares no seu quarto?

— Onde está essa mulher?

— Está na prisão e não quer confessar! Mas sabes o que disse o comissário à minha patroa? “Esteja sossegada, minha senhora, ela acabará por confessar! A bem ou a mal!” Percebes, hem? A pancada!

Olhei-o gelada de espanto por vê-lo tão orgulhoso e tão excitado.

— Como se chama essa mulher? — perguntei como por acaso.

— Luísa Feligny… É uma mulher que já não é nova. Muito orgulhosa. Não se compreende porque é criada de quarto; não há alguém mais honesta do que ela.

E ria divertido com a coincidência.

Fiz um grande esforço como se me custasse respirar e perguntei-lhe:

— Já reparaste que és um cobarde?

— Como? Porquê? — perguntou-me, surpreendido. Agora, que o tratara por cobarde, sentia-me mais livre e mais desprendida. Sentia as narinas palpitarem de raiva. Continuei logo:

— E querias que ficasse com esse dinheiro? Mas eu sentia que era dinheiro que me queimaria os dedos!

— Qual história! — disse, esforçando-se por não se desconcertar. — Ela não confessa e deixam-na.

— Mas disseste-me que está na prisão e lhe batem.

— Disse isso por dizer.

— Pouco importa… deixaste prender uma inocente e tens ainda o descaramento de mo vir contar. És um vil cobarde!

Bruscamente encolerizou-se, empalideceu e apertou-me a mão:

— Vais deixar de me chamar cobarde!

— Porquê? Penso que és um cobarde e digo-te.

Ele perdeu o sangue-frio e teve um estranho gesto de violência. Torceu-me a mão como se ma quisesse arranjar, depois, de repente, baixou a cabeça e mordeu-ma com força. Com uma sacudidela, tirei a mão e levantei-me:

— Mas tu estás completamente idiota! — disse-lhe. — O que te aconteceu? Agora mordes? É inútil. Cobarde és e cobarde serás sempre!

Não respondeu, mas agarrou a cabeça com as mãos como se quisesse arrancar os cabelos.

Chamei o criado e paguei as contas todas: a minha, a dele e a do Sonzogne. Depois disse a Gino:

— Vou-me embora, mas devo dizer-te que entre nós está tudo acabado… Não me apareças mais, não me procures! Não venhas, eu não te conheço!

Não respondeu nem levantou a cabeça e eu saí. A leitaria era à entrada da rua, a pouca distância da minha casa. Comecei a andar devagar, do lado oposto às fortificações. Era noite, o céu estava nublado, caía uma chuva miudinha como uma poeira de água no ar imóvel e tépido. Como de costume, as fortificações estavam às escuras, à parte alguns candeeiros, muito espaçados. Mas assim que saí da leitaria vi um homem desencostar-se de um desses candeeiros e seguir ao longo das fortificações na mesma direcção que eu, na intenção provável de me tolher o passo. Pelo seu impermeável apertado na cintura e pela sua cabeça loura e quase rapada reconheci Sonzogne. Debaixo das muralhas parecia pequeno: de vez em quando desaparecia na sombra, depois reaparecia à luz de um candeeiro. Pela primeira vez, talvez, todos os homens me repugnaram, todos os homens pendurados às minhas saias como cães correndo atrás de uma cadela. Vibrava ainda de cólera, e, quando pensava naquela mulher que Gino com o seu procedimento metera na cadeia, não podia deixar de sentir remorsos porque, no fim de contas, a caixa fora eu quem a roubara! Mas, mais do que remorso, era um sentimento de irritação e de revolta. Insurgindo-me contra a injustiça, e odiando Gino, detestava repeli-lo e saber que fora cometida uma injustiça. Realmente, não sou feita para estas coisas. Experimentava um mal-estar violento; tinha a impressão de não ser mais eu mesma. Caminhava apressada, desejosa de chegar a casa antes que Sonzogne me abordasse, como parecia ter intenção de fazer. Mas ouvi o meu nome pronunciado por Gino, que me chamava, esbaforido:

— Adriana! Adriana!

Fingi não ouvir e apressei o passo. Ele agarrou-me por um braço:

— Adriana… estivemos sempre de acordo… não nos podemos separar assim!

Com uma sacudidela, libertei o braço e continuei o meu caminho. Do outro lado, sob as muralhas, a pequena silhueta clara de Sonzogne tinha saído da obscuridade para entrar no círculo luminoso do candeeiro.

— Mas eu amo-te, Adriana! — repetia Gino correndo ao meu lado.

Inspirava-me uma mistura de piedade e de ódio, e essa mistura era-me tão desagradável que não a podia traduzir. Esforcei-me por pensar noutra coisa. De repente, não sei como, uma ideia passou pelo meu espírito como um relâmpago. Lembrei-me de Astárito, da maneira como ele sempre me oferecera a sua ajuda, e pensei que talvez ele tivesse um meio de conseguir libertar da prisão aquela pobre mulher. Esta ideia produziu em mim um efeito benfazejo; a minha alma libertou-se do peso que a oprimia e tive mesmo a impressão de já não odiar Gino e de sentir por ele apenas compaixão. Parei e disse-lhe tranquilamente:

— Porque não desapareces, Gino?

— Mas eu amo-te.

— Eu também; já te amei, mas agora acabou; vai, desanda, é melhor para ti e para mim.

Estávamos num sítio escuro da avenida e não havia candeeiros nem lojas. Agarrou-me pela cintura e tentou beijar-me. Teria podido muito bem livrar-me sozinha, porque sou forte e porque ninguém pode beijar uma mulher contra a sua vontade. Em vez disso, não sei porque diabólica inspiração, lembrei-me de chamar Sonzogne, que parara do outro lado da avenida, debaixo das fortificações, e nos olhava, imóvel, com as mãos nos bolsos do impermeável. Penso que se o chamei foi porque julguei ter encontrado o meio de impedir a má acção de Gino, deixando a coquetterie e a curiosidade aflorar de novo ao meu espírito. Gritei duas vezes:

— Sonzogne! Sonzogne!

Imediatamente ele atravessou a avenida e Gino, desconcertado, largou-me.

— Diga-lhe — proferi com calma enquanto Sonzogne se aproximava — que me deixe tranquila, porque já nada quero com ele… Não me quer ouvir, mas talvez a si ouça, visto que são amigos.

— Estás a ouvir o que diz esta menina? — disse Sonzogne.

— Mas eu… — começou Gino.

Pensava que iriam continuar a discutir por uns momentos e que por fim Gino, resignado, acabaria por se retirar. Mas de repente vi Sonzogne fazer-me um gesto que não percebi, Gino olhá-lo por um instante, aparvalhado, depois, sem uma palavra, cair e rolar do passeio para a valeta.

Levantei a cabeça e olhei melhor: Sonzogne estava na minha frente, as pernas afastadas, olhando o punho ainda fechado. Gino, no chão, as costas viradas para nós, voltava a si e com o cotovelo na valeta levantava lentamente a cabeça. Mas não parecia querer pôr-se de pé; dava a impressão de olhar fixamente um papel velho cuja brancura se distinguia na lama da valeta. Depois Sonzogne disse:

— Vamos.

Com a cabeça um pouco atordoada encaminhei-me com ele para a minha casa.

Andava sem dizer palavra e apertando-me o braço. Era mais baixo do que eu, e a sua mão rodeava-me o braço como uma prisão metálica. Passado um momento, disse-lhe:

— Não devia ter dado o soco a Gino… ele ia-se embora na mesma sem violência.

— Assim já não a aborrecerá mais — respondeu-me.

— Mas como foi? — perguntei. — Eu nada vi… só dei por Gino cair no chão.

— É uma questão de hábito — respondeu.

Falava como se mastigasse as palavras antes de as pronunciar, ou, melhor, como se experimentasse a sua consistência por entre os dentes, que conservava cerrados e que eu imaginava encaixados uns nos outros como os das feras. Agora experimentava um grande desejo de lhe apalpar os braços e de sentir de novo sob a minha mão os seus músculos duros e fortes. Inspirava-me mais curiosidade do que atracção. E, sobretudo, fazia-me medo. Mas o medo, tanto quanto eu o posso designar com clareza, pode ser um sentimento agradável e por vezes excitante.

— Que tem nos braços? — perguntei. — Ainda não posso acreditar no que vi.

— Mas já lhe disse para apalpar — disse-me com uma entoação tão vaidosa que parecia sinistra.

— Não muito bem… estava o Gino presente… Deixe-me apalpar agora.

Parou e dobrou o braço, olhando-me de lado, grave e ingenuamente ao mesmo tempo, mas de uma ingenuidade que nada tinha de infantil. Estendi a mão e desci do seu ombro ao longo dos braços para apalpar os músculos. Era para mim uma estranha sensação senti-los tão vivos e duros. Articulei com voz apagada:

— És realmente forte.

— Sou forte, sim — confirmou com uma sombria convicção.

E recomeçamos a andar.

Agora estava arrependida de o ter chamado. Não me agradava; para mais, esta gravidade, esta maneira de falar, faziam-me medo. Foi assim que, em silêncio, chegamos em frente da minha porta. Tirei as chaves da mala.

Aproximou-se de mim e disse-me:

— Eu subo.

Desejei dizer-lhe que não. Mas a maneira como ele me olhava, com fixidez e insistência incríveis, subjugou-me e fez-me perder a coragem.

— Se quiseres — disse-lhe.

Só depois de ter dito isto reparei que o tratara por tu.

— Não tenhas medo — disse-me interpretando erradamente o meu ar assustado. — Tenho dinheiro… Dar-te-ei o dobro do que te costumam dar os outros.

— Isso nada tem que ver… Não é pelo dinheiro. — Mas ele fez uma cara cômica como se qualquer assustadora suposição lhe atravessasse o espírito… — É só porque me sinto um pouco cansada — acrescentei.

Seguiu-me até ao vestíbulo. Quando chegámos ao quarto, despiu-se com gestos metódicos de homem ordenado. Tinha um lenço em volta do pescoço; dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso do impermeável. Colocou o fato nas costas da cadeira e pendurou as calças de maneira a não desmanchar os vincos. Juntou os sapatos um ao lado do outro debaixo da cadeira e as meias dentro dos sapatos. Reparei que estava vestido de novo da cabeça aos pés; os tecidos que usava não eram finos, mas resistentes e de boa qualidade. Fazia estas coisas em silêncio, nem depressa nem devagar, com uma regularidade sistemática e ponderada, sem se ocupar de mim, que, entretanto, me tinha despido e deitado nua sobre a cama. Se ele me desejava, não o mostrava, a menos que aquele constante agitar dos músculos do maxilar denotasse perturbação; mas isso não devia ser, porque já o tinha antes, quando nem sequer parecia pensar em mim. Já disse que a ordem e o asseio me agradavam e me pareciam denotar qualidades de alma correspondentes. Mas nessa noite a ordem e o asseio de Sonzogne suscitavam em mim sentimentos bem diferentes, misturados de medo e de horror. “Desta maneira — pensava eu — é que os cirurgiões se preparam nos hospitais quando se dispõem a fazer qualquer operação sangrenta. Ou, pior ainda, os magarefes, mesmo sob os olhos dos carneiros que vão esfolar.” Estendida sobre a cama, sentia-me sem defesa, impotente, como um corpo inanimado que vai ser submetido a qualquer experiência. E o seu silêncio e a sua indiferença deixavam-me na dúvida sobre o que ele iria fazer quando tivesse acabado de se despir. Quando ficou nu e se aproximou da cabeceira da cama e estranhamente me prendeu os ombros com as duas mãos, como se me quisesse conservar imóvel, não pude evitar um frêmito de medo. Ele reparou e perguntou-me por entre dentes:

— Que tens?

— Nada — respondi. — Tens as mãos geladas.

— Não te agrado, hem? — disse-me segurando-me sempre os ombros, de pé, junto do travesseiro. — Preferes os que são iguais a ti, hem?

Enquanto falava, olhava-me de uma maneira intolerável.

— Porquê? — disse-lhe. — Tu és um homem como os outros. E tu próprio me disseste já que me queres pagar o dobro.

— Sei muito bem o que quero dizer — respondeu. — Tu e as outras como tu gostam dos ricos, das pessoas distintas… Eu sou como tu e vocês, as prostitutas, só gostam dos “grandes”.

Reconheci no seu tom funesto a mesma tendência inflexível para procurar questões que há pouco tinha feito com que insultasse Gino sob o mais fútil pretexto. Julguei nessa altura que tivesse qualquer rancor contra Gino. Agora compreendia que a sua sombria susceptibilidade o levava sempre a encolerizar-se quando esta espécie de demônio o dominava: fosse qual fosse a maneira como nos portássemos com ele, enganávamo-nos sempre.

— Porque procuras agora também motivos para me ofender? — respondi, ligeiramente vexada. — Já te disse que para mim os homens são todos iguais.

— Se isso fosse verdade, não fazias essa cara… Não te agrado, hem?

— Mas se já te disse…

— Não te agrado, hem? — continuou. — Tenho pena, mas é preciso que te agrade!

— Oh! Deixa-me em paz — gritei, bruscamente irritada.

— Quando te fui útil para te livrares do teu melro, quiseste-me ao pé de ti… mas depois terias gostado de não me tornar a ver… somente eu subi. E não te agrado, hem?

Agora eu tinha realmente medo. As suas palavras sibiladas, a voz dura, impiedosa e calma, o seu olhar fixo, os seus olhos que de azuis pareciam tornar-se vermelhos, tudo parecia levar-me a não sei que horrível fim. Então compreendi, mas já tarde, que fazê-lo parar no rumo que as coisas levavam era o mesmo que tentar deter um bloco de pedra que rolasse por uma ribanceira. Limitei-me a encolher violentamente os ombros.

— Não te agrado, hem? — continuou. — Fazes uma cara desgostosa quando te toco… Mas agora, meu amor, vou fazer-te mudar de ideias!

E levantou a mão para me esbofetear. Começava a esperar um gesto do gênero e procurava proteger-me com o braço. Mas mal acabara de o fazer quando me bateu com uma ultrajante dureza, primeiro numa face, depois, logo que eu voltava a cara, na outra. Era a primeira vez na minha vida que isto me acontecia. Apesar da violência das bofetadas, senti-me por momentos mais surpreendida que penalizada. Afastei o meu braço da cara e disse-lhe:

— Sabes o que és? És um desgraçado!

Esta frase pareceu feri-lo. Sentou-se na beira da cama e, agarrando o colchão com as duas mãos, bamboleou-se uns instantes. Depois disse sem me olhar:

— Somos os dois desgraçados!

— É preciso ter coragem para bater assim numa mulher! — disse-lhe ainda.

De repente, não pude dominar-me e os olhos encheram-se-me de lágrimas. Mas não era tanto pelas bofetadas como pelo enervamento dessa noite, cheia de acontecimentos desagradáveis e tristes… Julguei ver Gino projectado na rua, lembrei-me de que não lhe ligara qualquer importância e me tinha ido embora alegremente com Sonzogne unicamente interessada em apalpar os seus músculos extraordinários; senti remorsos, piedade por Gino e desgosto por mim própria; compreendi que fora castigada pela minha insensibilidade e pela minha patetice pela mesma mão que batera em Gino. Tinha sido cúmplice da violência e essa mesma violência voltara-se contra mim. Através das minhas lágrimas olhava Sonzogne. Ficara sentado na beira da cama, nu, sem pêlos, as costas um pouco curvas, deixando cair os seus braços extraordinários que não traíam a sua força. Senti um repentino desejo de suprimir a distância que nos separava e disse-lhe, não sem esforço:

— Mas pode ao menos saber-se porque me bateste?

— Fazias uma destas caras!

Parecia mergulhado em pensamentos; a pele do seu maxilar estremecia.

Compreendi que se o queria aproximar de mim devia primeiro que tudo dizer-lhe o que pensava dele e nada lhe esconder.

— Tu pensavas que eu não gostava de ti? Pois bem! Enganas-te!

— É possível.

— Enganas-te. Na realidade, não sei porquê, mas fazes-me medo. Era por isso que eu fazia aquela cara. A estas palavras voltou-se bruscamente para mim e perscrutou-me com um olhar desconfiado. Mas tranquilizou-se logo e perguntou-me, não sem vaidade:

— Faço-te medo?

— Sim.

— E agora ainda te faço medo?

— Não; agora podes até matar-me… é-me indiferente. Eu dizia a verdade, e até naquele momento quase desejava que ele me matasse, porque de repente perdera o desejo de viver. Mas ele irritou-se e disse-me:

— Quem fala em te matar? E porque te fazia medo?

— Não sei… fazias-me medo… são coisas que não se podem explicar.

— Gino fazia-te medo?

— Porque me havia de fazer medo?

— E então porque te faço eu medo, eu?

Agora já não mostrava vaidade, mas eu sentia que começava a ficar furioso.

— Ora! — disse-lhe para o apaziguar. — Tu fazias-me medo porque te acho capaz de fazer sei lá o quê!

Não respondeu logo e reflectiu durante uns instantes. Depois voltou-se e perguntou-me em tom ameaçador:

— Tudo isso quer dizer que devo vestir-me e ir-me embora?

Olhava-o e compreendi que estava de novo a ponto de encolerizar-se e que uma recusa da minha parte faria cair sobre mim qualquer outra violência, talvez pior ainda. Era preciso aceitar. Mas pensava naqueles olhos claros e sentia repugnância à ideia de os ver olharem-me fixamente durante o amor. Disse-lhe molemente.

— Não… fica se quiseres… mas apaga a luz. Levantou-se, pequeno e branco, extraordinariamente bem proporcionado, à parte o pescoço, que tinha um pouco curto, e foi nas pontas dos pés dar a volta ao interruptor ao pé da porta. Mas compreendi logo que não tivera uma boa ideia em ter pedido para apagar a luz, porque assim que o quarto ficou às escuras o medo, que julgava já afastado, tomou de novo posse de mim. Era como se tivesse dentro do quarto não um homem, mas um leopardo ou qualquer outra fera, capaz de se encolher num canto para me apanhar desprevenida, de saltar sobre mim e despedaçar-me. Talvez se tenha demorado no meio do quarto às escuras tenteando caminho por entre as cadeiras e os outros móveis; talvez fosse também o meu temor que me fizesse parecer a demora longa. Julguei que tinha passado um tempo infinito até ele chegar à cama, e quando pôs as suas mãos sobre mim não pude reprimir um novo sobressalto, mais forte ainda do que o primeiro. Esperava que ele não se apercebesse, mas tinha o instinto aguçado — exactamente como os animais — e ouvi logo, muito perto de mim, a sua voz perguntar-me :

— Ainda tens medo?

Por certo, no escuro, o meu anjo-da-guarda devia estar presente. O tom da sua voz fez-me adivinhar que ele tinha levantado o braço e que esperava a minha resposta para decidir se me devia bater ou não. Percebi que ele sabia que fazia medo e desejava que não o temessem e o amassem como aos outros homens. Mas para chegar a esse resultado não conhecia outro meio que o de inspirar um medo ainda mais forte. Estendi a mão, fingi acariciar-lhe o pescoço e o ombro direito, e tive a certeza do que imaginara; ele tinha o braço levantado, pronto a esbofetear-me. Disse com voz forte, esforçando-me para dar à minha voz a entoação habitual, doce e tranquila:

— Não… desta vez é só frio… Vamos enfiar-nos na cama.

— Está bem! — disse ele.

Este “Está bem!”, onde subsistia ainda um resto de ameaça, confirmou a minha desconfiança. Então, enquanto que, debaixo dos lençóis, ele me apertava e me estreitava, passei um momento de angústia indescritível, um dos piores da minha vida. O medo inteiriçava-me os membros, que, sem eu o querer, se arrepiavam ao contacto do seu corpo, singularmente liso, escorregando e serpenteando. Ao mesmo tempo dizia a mim própria ser absurdo ter medo num momento daqueles e procurava com todas as forças da minha alma dominar o meu temor e abandonar-me a ele sem receio, como a um amante bem amado. Sentia este medo, não tanto nos meus membros, que me obedeciam, às vezes com grande repugnância, mas no fundo das minhas entranhas, que pareciam fechar-se e recusar-se ao abraço com horror. Acabou por me possuir e senti um prazer que o terror tornava negro e atroz. Não pude evitar de emitir um grito longo e lamentoso, na escuridão, como se a posse final não fosse a do amor, mas a da morte, como se esse grito fosse o da minha vida que partia, não deixando atrás dela mais do que um corpo inanimado e martirizado.

Depois ficamos um bom bocado às escuras sem falar. Mas eu estava estafada e adormeci quase em seguida. Senti logo a impressão de um enorme peso sobre o meu peito, como se Sonzogne se tivesse acocorado, dobrado sobre si próprio, nu como estava, os joelhos entre os braços e a cara sobre os joelhos. Estava sentado sobre o meu peito, as nádegas duras e nuas fazendo pressão sobre o meu pescoço, os pés sobre o meu estômago. A medida que adormecia, o seu peso aumentava, e, a dormir, mexia-me de um lado para o outro para experimentar desembaraçar-me, ou pelo menos deslocá-lo. Por fim tive a impressão de sufocar e quis gritar. Fazia-o sem voz, que estacionava no meu peito muito tempo, um tempo que me pareceu infinito; por fim consegui emiti-la e acordei num choro alto.

A lâmpada da mesa-de-cabeceira estava acesa e Sonzogne olhava-me apoiado no cotovelo.

— Dormi muito tempo? — perguntei-lhe.

— Uma meia hora — disse por entre dentes.

Deitei-lhe uma olhadela onde devia persistir o terror do meu pesadelo, porque me perguntou com um curioso acento, como para entabular conversa:

— E agora, ainda tens medo?

— Não sei.

— Se soubesses quem eu sou, ainda terias mais medo do que anteriormente.

Todos os homens depois do amor se inclinam para as conversas sobre eles próprios e para as confidências. Sonzogne parecia não fazer excepção à regra.

O tom da sua voz, ao contrário do que lhe era habitual, era leve, calmo e quase afectuoso, fútil, com uma ponta de vaidade. Mas assustava-me outra vez terrivelmente, e o meu coração começou a bater com toda a força como se fosse rebentar.

— Porquê? — perguntei. — Quem és tu?

Olhou-me não porque hesitasse, mas porque queria saborear o efeito das suas palavras sobre mim. Acabou por dizer lentamente.

— Sou o da Rua Palestro; sou esse.

Ele pensava que nem seria preciso explicar o que se passara na Rua Palestro, e desta vez a sua vaidade não se enganou. Alguns dias antes um crime horrível fora cometido numa casa dessa rua; todos os jornais haviam falado nele, e as pessoas apaixonadas por esses assuntos tinham-no comentado muito. Minha mãe, que passava uma grande parte do dia a coleccionar notícias diversas, tinha sido a primeira a falar-me no caso. Um jovem ourives fora assassinado no apartamento onde vivia. Ao que parecia, a arma de que se servira Sonzogne — porque agora já sabia quem era o assassino — tinha sido um pesado pisa-papéis de bronze. A polícia não tinha encontrado qualquer indício que a conduzisse à descoberta do assassino. Havia suspeitas de o ourives ter sido receptador; supunha-se pois — com razão, como se verá — que tinha sido morto no decorrer de uma transacção ilícita.

Tenho muitas vezes notado que assim que uma notícia nos enche de horror ou de espanto, a nossa cabeça esvazia-se e a nossa atenção fixa-se sobre um objecto qualquer, o primeiro que nos cai sob os olhos, mas de uma maneira singular, como se ela quisesse trespassar a superfície para chegar a não sei que segredo que se escondesse aí. Foi o que me aconteceu nessa noite com Sonzogne, depois de me ter feito aquela revelação. Fiquei com os olhos escancarados e o espírito esvaziou-se de repente, como um recipiente que contenha um líquido ou um pó muito fino, assim que é furado; somente, sentia o meu espírito, embora vazio, pronto a encher-se de outra matéria, e esta sensação era dolorosa porque eu teria querido preencher esse vazio e não o conseguia. Enquanto o ouvia, fixava os olhos sobre o pulso de Sonzogne, estendido a meu lado, com o cotovelo apoiado na cama. Tinha o braço branco, liso, redondo, sem pêlos, onde nada indicava os seus músculos extraordinários. O pulso também era redondo e branco; nesse pulso estava o único objecto que Sonzogne conservava na sua nudez: uma pulseira de couro, parecida com as pulseiras dos relógios, mas sem relógio. A cor desta pulseira, de um preto engordurado, parecia dar um significado não só ao braço, mas a todo o corpo branco e nu, e esse significado distraía-me sem que o pudesse explicar. Era uma nota de cor sombria; sugeria o elo de uma cadeia de forçado. Mas havia também qualquer coisa de gracioso e de cruel nessa simples pulseira negra, uma espécie de ornamento que confirmava o carácter brusco e felino da ferocidade de Sonzogne. A minha distracção durou só um instante. De repente o meu espírito encheu-se de pensamentos tumultuosos, que se agitavam como pássaros numa gaiola estreita. Lembro-me de que tive medo dele desde o primeiro momento. Pensando que tinha estado com ele na cama, compreendi que, cedendo ao seu abraço no escuro, o meu corpo horrorizado descobrira antes do meu espírito ignorante o que ele me escondia e fora por isso que gritara daquela maneira.

Acabei por lhe dizer a primeira coisa que me veio ao espírito:

— Porque fizeste isso?

— Tinha um objecto de valor para vender — respondeu-me (e os seus lábios mal se mexiam enquanto falava). — Sabia que aquele comerciante era um bandido, mas não conhecia outro… ofereceu-me um preço ridículo… Eu detestava-o porque já me tinha roubado uma vez… disse-lhe que ficava com o objecto e que ele não passava de um malandro… Então ele respondeu-me uma coisa que me fez perder a cabeça.

— Que foi? — perguntei-lhe.

Percebia agora com espanto que à medida que Sonzogne me contava essas coisas o meu medo começava a desvanecer-se; sem querer, uma impressão de participação me animava. No momento em que perguntei o que lhe tinha dito o ourives senti que esperava quase uma coisa atroz que pudesse desculpar o crime, ou pelo menos justificá-lo. Respondeu-me com secura:

— Disse-me que, se não me fosse embora, me denunciaria. Em suma, pensei : “Pois é quanto basta!” E quando ele se voltou…

Calou-se e olhou-me.

— E como era ele? — perguntei.

— Calvo, baixinho, com cara de fuinha… parecia um coelho.

Disse isto com uma entoação tranquila e antipática, que me fez ver, e mesmo odiar, esse aldrabão com cara de coelho enquanto avaliava, com ar desconfiado e falso, o objecto que lhe oferecia Sonzogne. Agora já não tinha medo algum; sentia que Sonzogne me transmitira o seu rancor contra o assassinado; e não estava até convencida de que o condenaria. Na verdade tinha a impressão de estar tão bem dentro do que passara que me parecia que eu também teria sido capaz de cometer este crime. Como compreendia esta frase: “Respondeu-me uma coisa que me fez perder a cabeça!” Ele tinha perdido a cabeça uma vez com Gino e uma segunda comigo; só por sorte não nos tinha morto também a mim e a Gino. Compreendia-o tão bem, penetrava-o tão bem, que não só já não tinha medo, mas experimentava uma espécie de simpatia horrorizada, essa simpatia que não me conseguira inspirar antes de saber o seu crime e quando ele era apenas um amante como os outros.

— Mas tu não tens pena? — perguntei-lhe. — Não tens remorsos?

— Agora está feito — disse.

Olhava-o intensamente. A esta resposta. surpreendi-me, sem dar por isso, a aprovar com a cabeça. E então lembrei-me de Gino, que também era, segundo o termo de Sonzogne, um bandido, mas que não deixava de ser um homem que eu amara e que me amava. Pensava que amanhã poderia aprovar da mesma maneira a morte de Gino. Admitia que o ourives não era nem melhor nem pior do que Gino, que não havia diferença entre os dois, a não ser que eu não conhecia o ourives, e se me parecera justo que o tivessem assassinado era unicamente porque tinha ouvido dizer de uma certa maneira que ele tinha cara de coelho — e senti remorsos e horror… Não há horror por Sonzogne, que era feito assim e que era preciso compreender para o julgar, mas de mim, que não era feita como Sonzogne e portanto me deixava tomar pelo contágio do ódio e do sangue. Fui tomada por uma espécie de agitação, e de um salto sentei-me na cama: — Oh! Meus Deus! — repetia eu. — Oh! Meu Deus! Porque fizeste isso? E porque mo contaste?

— Tinhas tanto medo de mim — respondeu com simplicidade — e no entanto nada sabias; pareceu-me estranho e contei-te… Felizmente — acrescentou, divertido com o próprio raciocínio — nem todos são como tu; já estaria descoberto!

— É melhor que te vás embora e me deixes sozinha — disse-lhe. — Vai, anda.

— Que tens tu agora? — respondeu-me.

Reconheci o tom que tinha quando estava furioso. Mas pareceu-me descobrir neste tom não sei que pesar de se encontrar só, condenado também por mim, que pouco antes lhe tinha pertencido. Acrescentei rapidamente:

— Não julgues que tenho medo de ti. Já não é por medo… Mas tenho de me habituar à ideia… Preciso de pensar… quando voltares já será diferente.

— Mas em que queres pensar? — disse. — Não tens a intenção de me denunciar?

Estas palavras produziram-me a mesma impressão que me dera a confissão de Gino da maneira como traíra a criada de quarto: era gente que vivia num mundo diferente do meu. Fiz um grande esforço e respondi:

— Mas se te digo que podes voltar! Sabes o que outra mulher te diria? Não quero mais ouvir falar de ti, não te quero ver mais… era o que diria!

— Mas agora queres que me vá embora!

— Julgava que te querias ir embora… então um momento de mais ou de menos… Mas, se queres ficar, fica! Queres dormir cá? Se queres, podes passar a noite comigo e ires-te embora só amanhã de manhã… Queres?

Para falar verdade, fazia-lhe este oferecimento numa voz baça e triste, mas fazia-lho e estava contente por isso. Deitou-me um olhar onde julguei descobrir um vislumbre de gratidão (talvez me tivesse enganado), depois abanou a cabeça:

— Falei por falar — disse. — Realmente tenho de me ir embora.

Levantou-se e aproximou-se da cadeira onde tinha deixado a roupa.

— Como quiseres — disse-lhe. — Mas, se queres ficar, podes ficar. E se qualquer dia tiveres necessidade de dormir aqui — acrescentei com esforço — podes vir.

Não disse palavra; começou a vestir-se. Levantei-me por minha vez e vesti um penteador. Enquanto o enfiava senti uma impressão de loucura, como se o quarto estivesse cheio de vozes murmurando-me ao ouvido palavras intensas e contraditórias. E talvez fosse esta impressão de loucura que me levou a fazer um gesto sem saber porquê. Enquanto girava pelo quarto, fazendo movimentos lentos com um sentimento de frenesim, vi-o abaixar-se para atacar os sapatos. Então ajoelhei-me na sua frente e disse-lhe:

— Deixa estar que eu faço isso!

Pareceu ficar admirado mas não protestou. Agarrei-lhe no pé direito, coloquei-o no meu colo, fiz um nó duplo no atacador do sapato direito e a mesma coisa no do esquerdo. Nem me agradeceu, nem nada me disse; provavelmente éramos dois no quarto a não compreender porque tinha eu feito aquilo. Enfiou o casaco, tirou a carteira do bolso e fez menção de me dar dinheiro.

— Não, não! — disse com involuntário nervosismo na voz. — Não, não… não me dês coisa alguma… não é preciso…

— Porque? O meu dinheiro não é igual ao dos outros? — perguntou-me com uma voz onde se notava já ira.

Pareceu-me bizarro que não compreendesse a minha repugnância por esse dinheiro, tirado talvez do bolso ainda quente do morto. Mas talvez o compreendesse e quisesse comprometer-me por uma espécie de cumplicidade, ao mesmo tempo que punha à prova os meus verdadeiros sentimentos por ele.

— Não é isso… — objectei —, eu… eu… mas eu não pensava em dinheiro quando te chamei… Deixa estar…

Pareceu acalmar-se.

— Está bem! — disse. — Mais vais aceitar uma recordação. Tirou do bolso um objecto que colocou sobre o mármore da mesa-de-cabeceira.

Olhei o objecto sem lhe pegar e reconheci a caixa de pó de arroz de ouro, roubada por mim alguns meses antes na casa da patroa de Gino.

— Que é isto? — balbuciei.

— Foi o Gino quem ma deu… era o objecto que eu devia vender… aquele indivíduo queria-o de graça… mas eu creio que tem um certo valor: é de ouro.

Dominei-me e disse:

— Obrigada.

— De nada — respondeu.

Tinha vestido o impermeável e apertava o cinto.

— Então até qualquer dia! — disse-me da porta.

Passado um momento, ouvi ao fundo da antecâmara a porta fechar-se.

Só, aproximei-me da mesa-de-cabeceira e peguei na caixinha. Sentia-me embaraçada e tomou-me um sombrio espanto. A caixa brilhava na minha mão, e o rubi redondo e vermelho encaixado no fecho pareceu alargar-se na minha mão e cobrir o ouro. Tinha na mão uma mancha de sangue redonda e brilhante que pesava tanto como o objecto. Sacudi a cabeça; a mancha desapareceu; tornei a ver a caixa de ouro com um fecho de rubi. Então pousei-a sobre a mesa-de-cabeceira, estendi-me na cama, com o corpo enrolado no penteador, apaguei a luz e reflecti.

Pensava que se me tivessem contado a história da caixa eu teria rido como se ri de um caso extraordinário e quase inacreditável. Era uma daquelas histórias que obrigam a exclamar: “Ora vejam lá a coincidência!” e em seguida as boas mulheres do tipo da minha mãe tiram daí indicações para o número da lotaria: a morte é um número, o ouro outro; o gatuno, outro. Mas desta vez fora comigo que a história acontecera; e reparava com grande admiração na diferença que havia em estar fora ou dentro das coisas. Com efeito, acontecera-me aquilo que acontece a alguém que, tendo enterrado um grão, o encontra muito tempo depois transformado em planta vigorosa, cheia de folhas e coberta de botões prestes a abrir. Mas que semente, que planta e que botões! Ia de uma coisa para a outra sem chegar ao começo. Tinha-me entregue a Gino porque esperava que casasse comigo, mas tinha-me enganado e eu por raiva furtara a caixa. Depois revelara-lhe o roubo, ele assustara-se e, para evitar que fosse acusado, tinha-lhe devolvido o objecto para que ele o entregasse à patroa. Mas em vez de o restituir, guardara-o e, julgando que o acusavam de roubo, tinha feito com que prendessem a criada de quarto, a qual estava inocente, e na prisão batiam-lhe! Entretanto Gino dera a caixa a Sonzogne para que a vendesse e Sonzogne fora a casa do ourives para o efeito, e este tinha irritado Sonzogne e Sonzogne, enfurecido, tinha-o morto, e logo que o ourives morreu Sonzogne tornou-se um assassino! Compreendia que não podia inculpar-me, mas ao mesmo tempo pensava que a causa principal de todas estas desgraças tinha sido o meu desejo de me casar e de constituir família, mas ao mesmo tempo não conseguia eximir-me a um sentimento de remorso e de consternação. Enfim, à força de reflectir cheguei à conclusão de que no fim de contas a culpa de tudo recaía inteira sobre as minhas pernas, o meu seio, as minhas ancas, em resumo, na minha beleza, de que minha mãe tanto se orgulhava, e que no fundo nada tinha de me acusar porque todas as coisas vinham da natureza. Mas se nisso pensava, era por irritação e desespero, como se pensa numa coisa absurda para desculpar outras cem vezes mais absurdas. Sabia em consciência que ninguém era culpado, que tudo era como tinha de ser, embora tudo fosse insuportável, e que se realmente se pretendia que houvesse alguma culpa ou alguma inocência, então todo o mundo era ao mesmo tempo inocente e culpado.

Entretanto, lentamente a escuridão entrava em mim como a água de uma inundação subindo do rés-do-chão aos andares superiores de uma casa. A primeira coisa a ser submersa foi seguramente a minha faculdade de julgamento. Até ao fim a minha imaginação fascinada saciou-se do crime de Sonzogne, mas isenta de toda a reprovação e de todo o horror, como de um acto incompreensível, e por conseguinte, no seu gênero, estranhamente atraente. Julguei ver Sonzogne caminhar pela Rua Palestro, as mãos nos bolsos do impermeável, depois entrar na casa e esperar de pé na pequena sala do ourives. Julguei ver o ourives entrar e apertar a mão a Sonzogne. Estava atrás da secretária. Sonzogne estendeu-lhe a caixa, que ele examinou com abanadelas de cabeça destinadas a indicar o seu desprezo. Depois levantava a sua cara de coelho e oferecia uma cifra irrisória. Sonzogne olhava-o fixamente, com olhos já cheios de ira, e arrancava-lhe violentamente o objecto das mãos. Depois acusava-o de ladrão e usurário. O outro ameaçava-o de o denunciar e intimava-o a ir-se embora. Depois voltava-se ou baixava-se como quem não quer discutir mais. Sonzogne agarrava o pisa-papéis de bronze e batia-lhe com ele na cabeça uma primeira vez. O outro tentava fugir e então Sonzogne saltava de novo sobre ele é atingia-o com novas pancadas até sentir que o tinha morto. Depois Sonzogne atirava-o ao chão, abria as gavetas, apoderava-se do dinheiro e fugia. Mas antes de sair, tinha eu lido no jornal, num novo acesso de fúria, dera um pontapé na cara do morto estendido no chão.

Demorava-me apaixonadamente sobre todos os pormenores do crime. Seguia Sonzogne como se acariciasse os seus gestos; era a sua mão que estendia a caixa, que empunhava o pisa-papéis, que feria o ourives; era o seu pé furioso que acabava por bater na cara do morto. Nenhum horror entrava nesta representação, o menor, como já disse, mas também qualquer aprovação. Experimentava o mesmo deleite singular que me provocavam, quando era pequena, os contos de minha mãe: está-se no quente, encolhida contra sua mãe e a imaginação segue com embriaguez maravilhada as aventuras das personagens do conto. Somente, o meu conto era sombrio e sangrento, o herói era Sonzogne e o meu encantamento misturava-se a uma impotente e melancólica tristeza. Como se quisesse tirar o sentido do conto, recomeçava, revia ainda as fases do crime, sentindo de novo um obscuro prazer e encontrava-me de novo em face do mistério. Como um homem que salta de um lado para o outro de um precipício mede mal o salto e cai no vácuo, no decurso de uma destas lucubrações adormeci.

Dormi talvez duas horas e acordei; ou, melhor, o meu corpo começou a acordar enquanto o meu espírito, mergulhado numa espécie de torpor, continuava adormecido. Foi com as mãos que comecei a acordar; estendia-as nas trevas como as de um cego, sem conseguir reconhecer o sítio onde estava. Adormecera estendida sobre a cama e agora estava de pé, num lugar estreito, entre muralhas verticais, herméticas e lisas. Veio-me imediatamente à ideia uma cela de prisão; e ao mesmo tempo a recordação da criada de quarto que Gino havia feito prender injustamente. Eu era a criada de quarto e a minha alma padecia toda a dor física da injustiça sofrida. Esta dor dava-me a sensação física de não ser já eu, mas a criada de quarto; sentia que esta dor me transformava, me fechava no corpo desta mulher, me impunha a sua cara, me obrigava aos seus gestos. Levei as mãos à cara, chorava, pensava que me tinham fechado injustamente numa cela e que me era impossível sair de lá. Mas ao mesmo tempo sentia que era ainda a Adriana a quem não tinham feito qualquer injustiça e que não tinha sido aprisionada. E compreendi que me bastaria um gesto para me libertar e deixar de ser a criada de quarto. No entanto, não conseguia adivinhar qual seria esse gesto, sofrendo e desejando desesperadamente sair da minha prisão de angústia e de piedade. Depois, de repente, rodeada desta mesma luz, feita de espasmos e de trevas, que nos deslumbra quando recebemos uma pancada violenta, o nome de Astárito resplandeceu no meu espírito. “Irei ter com Astárito e pedirei que a liberte!”, pensava eu. Estendi de novo as mãos e descobri ao mesmo tempo que as paredes da minha cela se tinham separado, deixando uma estreita abertura vertical por onde eu podia escapar-me. Dei alguns passos às escuras, os meus dedos encontraram o interruptor. Acendi a luz com uma febre histérica. O quarto iluminou-se. Estava ao pé da porta, nua, anelante, o corpo e a cara molhados de suor frio e abundante. A cela na qual me parecera estar encerrada não era senão o espaço compreendido entre o armário, o canto do quarto e a cómoda: espaço restrito que efectivamente as paredes e os dois móveis quase fechavam. Durante o sono levantara-me, e tinha-me encurralado ali.

Apaguei de novo a luz e voltei para a cama, medindo os passos. Antes de tornar a adormecer pensei que não podia ressuscitar o ourives, mas que podia salvar, ou pelo menos tentar salvar, a criada de quarto: era a única coisa que contava. Devia-o fazer, ainda mais porque acabava de descobrir que não era tão boa como pensava. Pelo menos a minha bondade não excluía o gosto pelo sangue, a admiração pela violência e a simpatia pelo crime.

4

Na manhã seguinte vesti-me com cuidado, meti a caixa na mala e saí para telefonar a Astárito. Sentia-me estranhamente alegre. A angústia que a revelação de Sonzogne me inspirara na noite anterior desaparecera completamente. Além disso observei mais vezes no decorrer da minha vida que a vaidade é a pior inimiga da caridade e da reprovação moral. Mais do que horror ou medo, eu sentia agora um sentimento de vaidade ao pensar que em toda a cidade eu era a única a saber como fora praticado o crime e quem era o autor. “Eu sei quem matou o ourives”, dizia a mim própria, e tinha a sensação de olhar os homens e as coisas com olhos diferentes. Parecia-me que qualquer coisa mudara, mesmo na minha fisionomia, e receava quase que se decifrasse claramente o segredo de Sonzogne na expressão da minha cara. Ao mesmo tempo experimentava um desejo doce, agradável, irresistível, de contar a alguém o que sabia. Como se fosse demasiada a água num vaso muito pequeno para a conter, o segredo transbordava da minha alma e eu sentia a tentação de o lançar para outra. Suponho que é o principal motivo pelo qual tantos criminosos confiam às suas amantes ou às suas mulheres os crimes que cometeram e estas os contam a algum amigo mais íntimo e aquele a outro, até que a informação chega aos ouvidos da polícia, provocando assim a perdição de todos. Mas penso também que, quando confiam os seus actos infames, os criminosos procuram descarregar uma parte de um peso que lhes pareceu intolerável e fazem com que os outros também o carreguem. Como se o crime fosse um fardo que eles pudessem partilhar e repartir por vários ombros até o tornar sem importância. Como se, pelo contrário, ele não fosse uma carga inalienável, cujo peso não diminuiu por estar distribuído por outras pessoas, mas que se multiplica por todos aqueles que aceitam a sua carga!

Percorrendo as ruas para encontrar um telefone público, comprei dois jornais e procurei, nas notícias da cidade. informações sobre o crime da Rua Palestro. Mas muitos dias se tinham passado: não vi senão algumas linhas que exprimiam a decepção no seguinte título: “Nenhuma luz sobre o assassínio do ourives.” Compreendi que, a menos que praticasse qualquer erro grosseiro, Sonzogne podia estar certo de que nunca mais o descobririam. O carácter ilícito das actividades da vítima tornava, por si mesmo, muito difíceis as investigações policiais. O ourives, como diziam os jornais, estava com frequência em contacto, secretamente e por motivos inconfessáveis, com pessoas de todas as classes sociais e de todas as condições; o assassino podia muito bem ser alguém que nunca o tivesse visto antes e que o matasse sem premeditação. Esta hipótese estava muito próxima da verdade. Mas, precisamente porque era justa, deixava ver que a polícia renunciara a descobrir o culpado.

Encontrei um telefone público num restaurante e marquei o número de Astárito. Havia bem umas seis semanas que não lhe telefonava; devo tê-lo apanhado desprevenido, porque não reconheceu logo a minha voz e respondeu-me primeiro com o tom expedito que empregava quando estava no seu gabinete. Durante um instante tive a nítida impressão de que ele não queria mais ouvir falar de mim e senti um baque no coração ao pensar na criada de quarto na sua prisão, e na fatalidade que fizera com que Astárito deixasse de amar-me no próprio momento em que a sua intervenção era necessária para salvar esta desgraçada. No entanto, o meu próprio susto agradou-me porque me deu de novo o sentimento perdido da minha bondade e me fez compreender que a libertação desta mulher era verdadeiramente importante para mim, e que, não obstante as minhas relações com Sonzogne, o assassino, continuava a doce e compassiva Adriana que sempre fora.

Assustada, disse o meu nome a Astárito e ouvi com alívio a sua voz mudar imediatamente de tom e tartamudear enquanto o ritmo das suas palavras se acelerava.

Devo confessar que me senti invadir por uma onda de afeição por ele, porque um amor assim (aliás sempre lisonjeiro para uma mulher) dava-me segurança e enchia-me de gratidão. Marquei-lhe encontro com uma voz acariciadora; prometeu vir sem falta e saí do restaurante.

Durante toda aquela noite que passara com pesadelos tinha chovido muito; várias vezes ouvira durante o sono o ruído da chuva misturado com os assobios do vento, formando como uma parede de mau tempo à roda da casa, aumentando a solidão e as trevas nas quais eu me debatia. Mas de madrugada a chuva cessara e os últimos sopros de vento tinham varrido as nuvens, deixando o céu límpido e o ar imóvel e lavado. Depois de ter telefonado a Astárito, comecei a andar ao longo de uma avenida de plátanos, sob os primeiros raios de sol dessa manhã. Do meu penoso e frequentemente interrompido sono não ficara mais que um leve atordoamento que o ar frio me fez em breve passar. A beleza do dia dava-me uma grande alegria, e todos os objectos sobre os quais os meus olhos pousavam pareciam-me dotados de uma sedução que encantava os meus olhos e me alegrava. Gostava das gotas de orvalho em torno das pedras, agora secas. Gostava dos troncos dos plátanos com as escamas sobrepostas da sua casca; brancas, verdes, amarelas, castanhas, e aqui e ali douradas; gostava das fachadas das casas onde as grandes manchas molhadas conservavam ainda o traço da lavagem nocturna; gostava dos transeuntes da manhã; homens que vão apressados para o trabalho, criadas com o cesto no braço, raparigas e rapazes acompanhados dos pais ou dos irmãos, levando pastas e livros. Parei para dar esmola a um velho mendigo, e quando procurava o dinheiro no meu porta-moedas, os meus olhos pousaram ternamente sobre o seu velho capote militar e começaram a sentir simpatia pelos bocados com que ele estava remendado nos cotovelos e junto da gola. Eram bocados cinzentos, castanhos, amarelos ou de um verde menos destacado do conjunto; reparei no prazer que sentia ao observar a sua cor e a maneira como eles estavam solidamente cosidos com linha preta, com grandes pontos visíveis, e surpreendi-me a pensar no trabalho que ele teria tido uma manhã para cortar com a tesoura a parte usada, procurar um bocado em qualquer velho farrapo, ajustá-lo sobre o buraco e cosê-lo com amor. Gostava desses remeados como o esfomeado gosta de ver o pão saindo do forno; afastando-me, não pude impedir-me de olhar para trás várias vezes para os olhar. Então, de repente, pensei que devia ser bom ter uma vida semelhante àquela tão límpida, tão agradável, tão limpa. Uma vida que tivesse sido lavada de todos os seus aspectos embaciados e permitir olhar tudo com amor, mesmo as coisas mais humildes. Nesse momento senti de novo o desejo, há muito adormecido e mudo, de uma vida normal, com um homem só, numa casa nova, arrumada, clara e limpa. Apercebi-me de que o meu trabalho não me agradava, se bem que, por uma singular contradição, a minha natureza me levasse para ele. Pensava que este não era um trabalho limpo, que nele havia sempre à minha volta, sobre o meu corpo, sobre os meus dedos, na minha cama, como que uma impressão de suor, de espuma, de calor impuro, de humidade pegajosa que parecia persistir mesmo depois de me ter lavado e de ter arrumado o quarto. Pensava também que esta história de me despir e de me vestir durante quase todo o dia debaixo dos olhares de homens sempre diferentes impedia-me de considerar o meu corpo com o sentimento de prazer e de intimidade que teria gostado e que me lembro de ter experimentado, ainda rapariguinha, quando me via ao espelho ou quando tomava banho. É uma bela coisa poder observar o nosso próprio corpo como uma coisa nova e desconhecida que floresce, toma vigor e se embeleza sozinha; ora eu para dar de cada vez esta impressão de novidade aos meus amantes roubara-a a mim própria para sempre.

A luz destas reflexões, o crime de Sonzogne, a perversidade de Gino, a infelicidade da criada de quarto e todas as outras intrigas nas quais me debatia apareciam-me como consequências da irregularidade da minha vida. Consequências aliás privadas de sentido e que não me davam qualquer impressão de falta nem podiam ser suprimidas, a não ser que eu conseguisse satisfazer as minhas velhas aspirações a uma vida normal. Tomou-me um grande desejo de estar em regra em todos os sentidos. Em regra com a moral, que não permitia um ofício como o meu, em regra com a natureza, que impunha que na minha idade uma mulher tivesse filhos, em regra com o gosto, que mandava que se vivesse no meio de belos objectos, que se usasse lindos vestidos frequentemente renovados, que se morasse em casas iluminadas, limpas e cômodas. Somente estas coisas excluíam-se umas às outras; se eu estivesse em regra com a moral, não podia estar em regra com a natureza; e o gosto contradizia ao mesmo tempo a moral e a natureza. A esta ideia experimentava o despeito que me era habitual, tão velho como a minha vida, de me saber sempre em dívida com a necessidade e na incapacidade de me satisfazer somente pelo sacrifício das minhas melhores aspirações. Mas apercebia-me também mais uma vez de que não tinha aceite inteiramente a minha sorte; e isso dava-me confiança porque pensava que logo que se proporcionasse ocasião de mudar de vida, eu não seria apanhada desprevenida, mas aproveitaria a ocasião com clarividência e decisão.

Marcara encontro com Astárito ao meio-dia, à saída da repartição; tinha ainda algumas horas à minha frente: sem saber o que fazer, decidi ir a casa de Gisela. Havia já algum tempo que não a via; supus que qualquer outro ocupava na sua vida o antigo lugar de Ricardo: meio noivo, meio amante. Gisela, também como eu, esperava regularizar a sua situação; suponho que é uma esperança que têm todas as mulheres da minha espécie. Mas eu era levada a isso por uma inclinação nata, enquanto Gisela, que dava uma grande importância à consideração, era sobretudo por questão de decoro. Ela corava quando se pensava no que ela era, eis tudo, se bem que ela tivesse sido levada a sê-lo por uma vocação muito mais profunda que a minha. Eu, ao contrário, não sentia o menor sentimento de vergonha, mas, em certos momentos, uma impressão de servidão e de vida contra a natureza.

Chegada a casa de Gisela, dispunha-me a subir a escada quando a voz da porteira me obrigou a parar:

— Vai a casa da menina Gisela? Ela já cá não mora.

— Para onde foi ela?

— Rua Casablanca, 7.

A Rua Casablanca era uma rua nova situada num bairro recente.

— Um senhor louro veio buscá-la de automóvel; levaram as coisas e partiram.

Reparei imediatamente que se viera era justamente para ouvir aquilo, que ela tinha partido com alguém. Não sei porquê experimentei uma brusca impressão de cansaço; as pernas vergaram-se-me e tive de me apoiar à ombreira da porta para não cair. Mas reagi, e depois de reflectir decidi ir à nova casa de Gisela. Tomei um táxi e disse ao motorista que me levasse à Rua Casablanca.

Quanto mais o táxi avançava, tanto mais nos afastávamos da cidade e das suas velhas casas, alinhadas nas ruas estreitas e encostadas umas às outras. As ruas alargavam, bifurcavam, confluíam para formar praças e tornavam-se mais e mais largas; as casas eram novas, e entre duas construções entrevia-se de vez em quando uma faixa verde que era o campo. Percebi que a minha viagem tinha um sentido oculto, extremamente penoso, e tornava-me cada vez mais triste. Lembrava-me de todos os esforços feitos por Gisela para me roubar a inocência e me tornar igual a ela; e sem o querer, da mesma maneira natural como uma ferida sangra, assim também comecei a chorar.

Quando desci do táxi, tinha os olhos brilhantes e as faces cheias de lágrimas.

— Não vale a pena chorar, menina — disse-me o chauffeur.

Limitei-me a abanar a cabeça e encaminhei-me para a porta da casa de Gisela.

Esta casa era inteiramente branca, de estilo moderno, de construção absolutamente recente como o demonstravam os materiais ainda acumulados no pequeno jardim e as manchas de cal que maculavam as grades. Entrei num hall branco completamente nu; a escada era também branca, com janelas de vidro fosco, deixando passar uma luz suave. O porteiro, um forte rapaz ruivo, de fato-macaco, muito diferente dos velhos porteiros sujos que estava habituada a ver, indicou-me o ascensor; premi o botão e o elevador começou a subir. Exalava um agradável cheiro a madeira nova e verniz. No ruído que fazia também se tinha a impressão de se notar qualquer coisa de novo como o trabalhar de um motor em rodagem. O elevador subiu até ao último andar: à medida que subia, a luz aumentava como se não existisse tecto e como se subisse direito para o céu.

Por fim parou, eu saí e encontrei-me rodeada de uma claridade luminosa, num patamar de um branco ardente. em frente de uma porta de madeira clara com puxadores de cobre lavrados. Toquei: uma criadinha morena e magra veio abrir: tinha uma figura gentil, uma touca de renda e um avental bordado.

— A menina Santis? — perguntei. — Diga-lhe que está aqui a Adriana.

Deixou-me para ir ao fundo do corredor junto de uma porta envidraçada com vidros baços como os da escada. O corredor era também branco e nu como o resto da casa; julguei que o apartamento devia ser pequeno, quatro casas, não mais. Estava aquecido; o calor do irradiador reavivava o cheiro penetrante da cal fresca e da pintura nova. A porta envidraçada abriu-se ao fundo do corredor; a criadinha reapareceu e disse-me que podia entrar.

Entrando, primeiro nada vi, porque através de um grande vitral o sol de Inverno entrava em jorros deslumbrantes. Era o último andar: através desse vitral só se via o céu azul, resplandecente de sol. Por momentos esqueci a minha visita. Fechando os olhos perante esse sol quente e dourado como um velho vinho, senti uma impressão de bem-estar. Mas a voz de Gisela fez-me estremecer. Estava sentada em frente do vitral e por cima de uma mesinha semeada de frascos estendia os dedos a uma mulher baixinha e grisalha: a manicura.

— Oh! Adriana! Senta-te um momento — disse-me Gisela com falsa atenção, como lhe era habitual.

Sentei-me ao lado da porta e olhei à minha volta. A sala, vista do lado da janela, era comprida e estreita. A bem dizer quase não tinha móveis: uma mesa, um bufete, algumas cadeiras de madeira clara; mas era tudo novo e sobretudo havia o sol. Este sol tinha qualquer coisa de luxuoso. Há casas ricas — pensei eu — que não possuem um sol como este. Fechei os olhos gulosamente com doçura e por um momento em nada pensei. Depois senti qualquer coisa pesada e fofa cair sobre os meus joelhos; abri os olhos e vi que era um gato enorme, de uma raça que eu nunca tinha visto, com um pêlo extremamente comprido, fino como seda, de um cinzento-azulado, com um focinho grande, mau e majestoso, que não me agradou. O gato começou a ronronar, roçou-se por mim, levantou a sua cauda emplumada e emitiu uns roncos miados. Depois enroscou-se sobre os meus joelhos.

— Que lindo gato! — disse eu. — De que raça é?

— É um gato persa — respondeu com orgulho Gisela. É uma raça muito apreciada. Estes gatos chegam a ser pagos por muito dinheiro.

— Nunca tinha visto — disse eu acariciando o gato.

— Sabe quem tem um gato igual a este? — disse a manicura. — A senhora Radaelli. Se visse como o amima! Mais que a um cristão! No outro dia perfumou-o com o pulverizador… Então. ponho mais uma camada de verniz nas unhas dos pés?

— Não, Marta, não vale a pena, por hoje chega — disse Gisela.

A manicura arrumou os seus instrumentos e os frasquinhos numa maleta, cumprimentou-me e saiu da sala.

Uma vez sós, olhámo-nos. Gisela também me pareceu toda de novo como a casa. Vestia um bonito tricot de angorá vermelho com uma saia castanha que eu nunca lhe tinha visto. Tinha engordado: debaixo da malha o seio sobressaía mais e as ancas estavam mais amplas. Notei também que tinha as pálpebras um pouco inchadas como as pessoas que comem bem, dormem muito e não têm aborrecimentos.

As pálpebras assim davam-lhe um ar ligeiramente sonso. Olhou um instante para as suas unhas e perguntou-me, para dizer qualquer coisa:

— Que dizes? Gostas da minha casa?

Eu não sou invejosa. Mas nesse momento, talvez pela primeira vez na minha existência, senti a mordedura da inveja e admirava-me que houvesse pessoas capazes de manter em toda a sua vida um tal sentimento, por me parecer desagradável e doloroso no mais alto grau. Sentia na cara uma espécie de esticão como se tivesse emagrecido subitamente e esse esgar impossibilitava-me de sorrir e de dizer algumas palavras gentis a Gisela, como teria desejado. Experimentava por ela uma aversão encarniçada. Teria querido dizer-lhe alguma frase desagradável: feri-la, ofendê-la, humilhá-la, qualquer coisa que envenenasse a sua alegria. “Que tenho eu? — pensava, confusa, sem deixar de acariciar o gato. — Já não sou eu?” Felizmente que estes sentimentos não duraram muito. Logo a bondade existente no fundo da minha alma se revoltou e lutou contra esta súbita inveja. Pensava que Gisela era minha amiga, que a sua sorte me devia ser grata e que devia estar contente por ela.

Imaginei Gisela entrando pela primeira vez na sua casa nova batendo as mãos de alegria: no mesmo instante o frio da inveja desapareceu da minha cara e senti-me de novo aquecida pelo belo sol da sala, mas de uma maneira mais íntima, como se o sol tivesse entrado também na minha alma.

— Ainda o perguntas? — disse-lhe. — Uma casa tão bonita, tão alegre? Como a arranjaste?

Tive a impressão de ter pronunciado estas palavras com sinceridade e sorri; mais para mim própria, como por uma recompensa, do que para Gisela. Respondeu-me em ar de confidência e familiaridade:

— Lembras-te de João Carlos, daquele louro com o qual me zanguei logo naquela noite? Pois bem! Algum tempo depois voltou a procurar-me… era bem melhor do que me pareceu à primeira vista… Depois tornámo-nos a encontrar várias vezes… E há alguns dias disse-me: “Vem comigo, que quero fazer-te uma surpresa…” Eu pensei que me quisesse dar um presente: uma mala, um perfume… Em vez disso meteu-me no carro, trouxe-me aqui, mandou-me entrar… A casa estava completamente vazia… Pensei que fosse para ele. Perguntou-me se eu gostava, disse-lhe que sim mas sem imaginar, claro… Então ele disse-me: “Aluguei esta casa para ti!” Podes calcular a minha surpresa!

Sorria com ar digno e satisfeito, deitando um olhar à sua volta. Impulsivamente levantei-me e fui beijá-la, dizendo:

— Fico bem contente! Bem contente! Podes crer que sinto verdadeiro prazer com isso!

Este gesto acabou por dissipar no meu espírito todo o sentimento hostil que ainda conservava. Encostei a cara à janela e olhei para fora. A casa elevava-se sobre uma espécie de promontório debaixo do qual se estendia uma paisagem imensa. Era uma terra cultivada, percorrida por um riachozinho sinuoso, semeada aqui e ali de matas, de quintas, de acidentes de terreno pedregoso. Da cidade só se via, num canto do panorama, um pequeno número de casas brancas, último prolongamento dos arrabaldes. Uma fila de montanhas desenhava-se no horizonte sobre o céu azul e luminoso. Voltei-me para Gisela e disse-lhe:

— Sabes que tens uma vista magnífica?

— Não é? — respondeu-me.

Foi ao bufete e tirou dois copinhos e uma garrafa de ventre bojudo :

— Tomas um cálice de licor? — perguntou-me com ar negligente.

Notava-se com clareza que todos os gestos de dona de casa a enchiam de satisfação.

Sentámo-nos à mesa e bebemos o licor em silêncio. Sentia que Gisela estava embaraçada. Fui ao encontro das suas ideias e disse-lhe com doçura:

— Tu não te portaste bem comigo! Podias ao menos ter-me dito!

— Não tive tempo — respondeu-me vivamente. — Com a mudança, sabes… E depois tive que comprar tanta coisa: móveis, roupa branca, louças… Nem tinha tempo para respirar… É que é preciso tanta coisa para montar uma casa!

Falava beliscando os lábios como certas senhoras distintas costumam fazer quando falam nestas coisas.

— Compreendo — disse eu sem sombra de maldade nem de amargura, absolutamente como se se tratasse de uma coisa que não me dissesse respeito. — Agora, que estás instalada e que as tuas coisas caminham melhor, não te agrada ver-me… tens vergonha de mim.

— Não tenho vergonha de ti — retorquiu com uma leve irritação, mais motivada, pareceu-me, pelo meu tom razoável que pelas minhas palavras. — Se pensas isso, és estúpida. Somente, doravante não nos podemos ver como dantes… quero dizer, não podemos sair juntas e fazer tudo o resto… Se ele viesse a saber, estava arranjada!

— Está sossegada — disse-lhe com doçura. — Não me tornarás a ver. Hoje vim unicamente para saber o que te tinha acontecido.

Fingiu não ouvir, confirmando assim as minhas suposições. Houve um momento de silêncio. Depois perguntou-me com ar de falsa solicitude:

— E tu?

Em seguida, com uma espontaneidade que me assustou, pensei em Jaime. Respondi-lhe com voz embargada:

— Eu? Está tudo como de costume.

— E Astárito?

— Vejo-o às vezes.

— E Gino?

— Acabei com tudo.

A recordação de Gino apertou-me o coração. Mas Gisela interpretou à sua maneira a expressão mortificada que o meu rosto deixava transparecer; pensava talvez que eu estava amargurada pela sua sorte e pela sua atitude desdenhosa. Disse com uma delicadeza afectada:

— Ninguém me tira da cabeça que bastava tu quereres para Astárito te pôr casa também.

— Mas eu não quero Astárito nem outro qualquer — respondi-lhe tranquilamente.

Vi a sua cara desconcertada.

— Porquê? — perguntou-me. — Não gostavas de ter uma casa como esta?

— A casa é bonita — respondi —, mas eu gosto mais da minha liberdade.

— Eu sou livre — disse-me, irritada. — Mais livre do que tu… tenho o dia todo para mim.

— Não é dessa liberdade que eu falo.

— Então de qual?

Compreendi que a magoara, mas porque não tinha mostrado admiração suficiente pela casa, de que ela estava tão orgulhosa. Expliquei-lhe, no entanto, que de maneira nenhuma desprezava a situação dela, mas que não me queria ligar sem amor a qualquer homem. e feri-a de novo, mais ainda desta vez. Preferi mudar de conversa e disse-lhe :

— Mostra-me a casa… Quantos quartos tens?

— Que te importa a casa — disse-me com desapontamento ingênuo —, se acabas de dizer que não gostarias de ter uma casa como esta?

— Não foi isso que eu disse — respondi com calma. — A tua casa é muito bonita. Gostaria até muito de ter uma assim!

Ela não respondeu. Baixou os olhos com ar mortificado:

— Então — disse eu molemente ao fim de uns instantes —, não ma queres mostrar?

Levantou os olhos e vi com espanto que estavam cheios de lágrimas.

— Não és a amiga que eu julgava ! — gritou-me. — Tu… tu… estás cheia de inveja… Desprezas de propósito a minha casa para me magoares.

Falava sem me olhar, com a cara cheia de lágrimas. Eram lágrimas de despeito; a invejosa desta vez era ela; sofria de uma inveja sem objectivo e corava sem o saber pelo meu amor desesperado por Jaime e pelo desprendimento amargo que este amor me dava. Mas, compreendendo-a tão bem, e porque a compreendia, senti pena dela. Levantei-me, aproximei-me e pousei-lhe a mão no ombro.

— Porque dizes isso? Não sou invejosa… Não são estas coisas que eu invejo. Mas estou contente por te saber feliz. Então, vá, mostra-me os outros quartos — disse-lhe beijando-a.

Assoou-se e pareceu-me desejar fazê-lo:

— São só quatro — disse-me —, e estão quase vazios.

— Mostra-mos.

Levantou-se, precedeu-me no corredor, abriu várias portas e mostrou-me o quarto, onde havia só uma cama, um sofá aos pés da cama, um quarto vazio onde ela tinha a intenção de pôr mais uma outra cama para os convidados e o quarto da criada, que não era mais que um cubículo. Mostrou-me estas três casas com uma espécie de despeito, explicando-me com brevidade o seu respectivo uso e sem tirar qualquer prazer disso. Mas a sua vaidade era mais forte do que o seu mau humor quando me mostrou a casa de banho e a cozinha, ambas revestidas de azulejos, com engenhos eléctricos novos e torneiras cintilantes… Explicou-me a maneira como funcionavam esses aparelhos, a sua superioridade sobre a aparelhagem de gás, o seu asseio e o seu rendimento; e se bem que o meu espírito andasse longe, fingi desta vez interessar-me pelas suas explicações com exclamações de admiração e de surpresa. Ficou tão contente com a minha atitude que me disse, uma vez acabada a visita:

— Vamos lá dentro tomar outro cálice de licor.

— Não, não — respondi-lhe. — Tenho de me retirar.

— Porquê esta pressa? Espera um momento.

— Não posso.

Estávamos no corredor. Hesitou um momento, depois declarou-me :

— Gostava que voltasses. Sabes o que podemos fazer? Ele vai com frequência a Roma… Um destes dias mando dizer-te, arranjamos dois dos teus amigos e passamos um bom bocado.

— Mas se ele sabe?

— E porque há-de saber?

— Está bem — disse eu. — Fica combinado.

Hesitei por minha vez, depois perguntei-lhe corajosamente :

— A propósito, diz-me uma coisa… e ele nunca te falou do amigo que o acompanhava naquela noite?

— O estudante? Porque? Interessa-te?

— Não, é só para saber…

— Ainda ontem à noite o vimos.

Não consegui dissimular mais a minha perturbação.

— Ouve — disse-lhe com a voz mal segura —, se o vires diz-lhe que venha ter comigo… mas diz-lhe sem parecer ligar grande importância ao assunto.

— Está bem — respondeu-me. — Eu digo-lhe.

Mas ela perscrutava-me com ar desconfiado e eu, sob o seu olhar, perdi a segurança, porque me parecia que o meu amor por Jaime estava escrito na minha cara em letras bem visíveis. Pelo tom da sua resposta compreendi que não faria o que lhe pedira. Desesperada, abri a porta, pedi licença e desci a escada com rapidez sem olhar para trás. No segundo andar parei e apoiei-me à parede olhando para cima. “Porque lhe disse isto? — pensava. — Que se passou em mim?” Continuei a descer, de cabeça baixa.

Tinha marcado encontro com Astárito em minha casa. Quando cheguei estava esgotada; já não estava habituada a sair de manhã; todo este sol e todas estas idas e vindas me tinham fatigado. Sentia-me triste; a minha visita a Gisela já a tinha expiado quando chorara no táxi que me transportara à sua casa nova. Foi minha mãe quem me abriu a porta, dizendo-me que alguém me esperava há mais de uma hora no meu quarto. Fui directamente para lá e sentei-me na beira da cama, sem me importar com Astárito, que, de pé, em frente da janela, parecia olhar para o pátio. Fiquei um momento imóvel, com a mão sobre o coração, ofegante, tanto correra pelas escadas acima. Estava de costas voltadas para Astárito e olhava com ar abstracto para a porta do quarto: ele tinha-me dado os bons-dias, mas nem sequer lhe respondera. Veio sentar-se ao pé de mim e, passando-me a mão pela cintura, olhou-me fixamente.

No meio de todas as minhas preocupações esquecera a sua louca sensualidade, sempre viva e aguçada. Achei-a intolerável.

— Então tu tens sempre desejo? — disse-lhe lentamente, num tom desagradável e recuando.

Não respondeu, tomou-me a mão e levou-a aos lábios com um olhar submisso.

— Tens sempre desejo? — repeti. — Mesmo a esta hora? Depois de teres trabalhado toda a manhã? Em jejum? Antes do almoço? Sabes que és extraordinário?

— Mas eu amo-te — disse-me. Vi os lábios tremerem-lhe e os olhos franzirem-se-lhe.

— Mesmo assim… — disse-lhe. — Há uma hora para o amor e uma hora para o resto. Marquei-te encontro justamente a esta hora para que compreendesses que não era de amor que se tratava… e tu, ao contrário… Não tens vergonha?

Olhava-me fixamente sem responder. Bruscamente tive a impressão de o compreender demasiado bem. Ele amava-me e este encontro esperava-o há não sei quantos meses. Enquanto eu me debatia no meio de mil dificuldades, ele não tinha feito outra coisa senão pensar nas minhas pernas, no meu seio, nas minhas ancas, na minha boca!

— Então — disse-lhe mais branda —, se eu me despir…

Ele disse que sim com a cabeça. Deu-me vontade de rir, sem maldade, mas não sem despeito.

— E a ideia de que me possa sentir triste ou simplesmente longe de todas estas coisas nunca te passa pela cabeça? Que posso ter fome, estar cansada… ou ainda ter outras preocupações… Isso nunca te ocorre, não?

Olhava-me. De repente atirou-se sobre mim, abraçou-me com força e aconchegou a cabeça na cavidade do meu ombro. Não me beijava, contentava-se em apoiar a cara contra a minha carne para sentir o seu calor. Respirava com força e de vez em quando suspirava. Agora já não estava irritada com ele; os seus gestos suscitavam-me pelo menos a compaixão e a consternação que me eram habituais: já não estava triste. Quando achei que ele já tinha suspirado bastante, repeli-o e disse-lhe:

— Preciso de falar contigo de uma coisa muito séria.

Olhou-me, segurou a minha mão e começou a acariciá-la. Era persistente. Realmente para ele nada mais existia que o seu desejo.

— Tu és da polícia, não és? — perguntei-lhe.

— Sou.

— Pois bem! Então manda-me prender e mete-me na prisão!

Disse-lhe isto em tom resoluto. Naquele momento desejava realmente que ele o fizesse.

— Mas porquê? Que te aconteceu?

— Aconteceu que sou uma ladra! — disse-lhe com força. — Acontece que roubei e que prenderam uma inocente por minha causa… portanto é preciso que me prendam; irei para a prisão de boa vontade. É isso que eu quero.

Não me pareceu admirado, mas apenas contrariado. Fez uma careta e disse:

— Explica-te!

— Já acabei de te dizer… sou uma ladra!

Em poucas palavras contei-lhe o roubo e expliquei-lhe como tinha sido presa a criada de quarto. Falei do estratagema de Gino, mas sem o nomear; disse somente: “um criado”. Mas desejava imenso falar-lhe de Sonzogne e do seu crime; fiz um esforço enorme para me conter. Concluí:

— Agora escolhe: ou libertas esta mulher da prisão… ou vou hoje mesmo entregar-me ao comissariado.

— Devagarinho!… — repetia levantando a mão. — Não há urgência alguma. Essa mulher está na prisão, mas não foi condenada. Esperemos.

— Não… não posso esperar. Ela está presa e parece que lhe batem… não posso esperar… Agora és tu quem tem de decidir…

O meu tom fez-lhe compreender que estava a falar sério. Levantou-se com uma expressão descontente e deu alguns passos pelo quarto. Depois disse como se falasse consigo próprio :

— Ainda há a história dos dólares.

— Mas ela negou sempre… depois de lhos terem encontrado… podemos dizer que era uma vingança de alguém que a detesta.

— E a caixa, tem-na?

— Está aqui! — disse-lhe tirando o objecto da mala e dando-lho.

Ele recusou-se a aceitá-lo.

— Não, não — disse-me —, não é a mim que o tens de dar.

Hesitou um momento, depois acrescentou:

— Posso conseguir libertar essa pobre mulher, mas é preciso que ao mesmo tempo a policia tenha a prova da sua inocência… esta caixa precisamente.

— Pronto! Vai restituí-la à sua proprietária.

Teve um riso desagradável.

— Como se vê que nada percebes destas coisas! — disse-me. — Se és tu quem me dá a caixa, sou moralmente obrigado a mandar-te prender… Senão dirão: como é que Astárito tem o objecto roubado, quem lho deu e como? Não, tens de arranjar maneira de fazer chegar a caixa às mãos do comissário, mas sem te descobrir.

— Posso mandá-la pelo correio?

— Não, pelo correio, não.

Deu ainda alguns passos pelo quarto e depois veio sentar-se ao meu lado e disse-me:

— Vais fazer o seguinte… Conheces algum padre? Lembrei-me do monge francês ao qual me confessara depois do passeio a Viterbo.

— Sim — respondi-lhe —, o meu confessor.

— Confessas-te ainda?

— Confessava-me.

— Bem… vai procurar o teu confessor e conta-lhe o que fizeste como acabas de mo fazer a mim… roga-lhe que devolva a caixa ao comissariado… nenhum confessor pode recusar uma coisa destas… ele não é obrigado a fornecer qualquer indicação porque está ligado ao segredo da confissão. Um ou dois dias depois, telefonarei e agirei… por fim a tua criada de quarto será posta em liberdade.

Senti uma alegria tão grande que não me contive e deitei-lhe os braços à roda do pescoço e beijei-o. Continuou já com a voz trêmula de volúpia:

— Mas não deves tornar a fazer destas coisas. Quando precisares de dinheiro, não tens mais que me pedir…

— Posso ir hoje mesmo procurar o confessor?

— Com certeza!

Tinha ficado com a caixa na mão. Fiquei muito tempo imóvel com o olhar perdido. Sentia um grande alivio, como se fosse eu a criada de quarto. Tinha realmente a impressão de ser ela ao pensar no alivio que ela experimentaria, bem maior que o meu quando a libertassem! Já não me sentia triste, nem cansada, nem desgostosa. Entretanto, Astárito, introduzindo os dedos em volta do meu pulso, procurava subir ao longo do braço por debaixo da manga. Voltei-me e disse-lhe com doçura e com voz acariciadora :

— Ainda continuas a desejar-me?

Incapaz de falar, disse que sim com a cabeça.

— Não te sentes cansado? — continuei com voz terna e cruel. — Não achas que é tarde, que seria melhor deixar para outro dia?

Vi-o fazer um gesto negativo com a cabeça.

— Amas-me assim tanto? — perguntei-lhe.

— Sabes bem que te amo — respondeu em voz baixa. Fez menção de me beijar. Libertei-me e disse:

— Espera!

Acalmou-se logo porque compreendeu que eu tinha acedido. Levantei-me, dirigi-me lentamente para a porta e dei volta à chave na fechadura. Depois fui à janela, abri-a, corri as persianas e fechei as portas. Ele seguia-me com os olhos enquanto eu girava pelo quarto, com uma atitude cheia de complacência, de preguiça, de majestade. Sentia o seu olhar sobre mim e compreendia até que ponto a minha aceitação inesperada lhe era agradável. Logo que puxei as persianas comecei a cantarolar em surdina com voz íntima e alegre. Sempre cantarolando, abri o armário, tirei o casaco e pendurei-o. Depois, sem cessar de cantar em voz baixa. olhei-me no espelho. Tive a impressão de nunca ter estado tão bonita, com os olhos brilhantes, doces e profundos, as narinas frementes, a boca entreaberta sobre os meus dentes regulares e brancos. Compreendi que era bela porque estava contente comigo própria e porque me sentia boa. Cantei um pouco mais alto e comecei a desabotoar o vestido de baixo para cima. Cantava uma canção completamente idiota que estava muito em voga nessa altura e dizia:

— Canto esta canção de que gosto tanto, que faz dlin dlon, dlin dlon, dlin dlon!

Esta cançoneta pateta parecia-me a própria vida, absurda sem dúvida, mas por vezes também doce e sedutora. Bruscamente, quando já estava com o peito nu, alguém bateu à porta.

— Mais logo — disse eu. — Agora não posso.

— É uma coisa urgente — respondeu a voz de minha mãe.

Desconfiei de qualquer coisa, abri a porta e espreitei.

Minha mãe fez-me sinal para sair e fechar a porta. Depois sussurrou-me :

— Está uma pessoa na sala que quer falar-te por força.

— Quem é?

— Não sei. É um rapaz moreno.

Abri devagarinho a porta da sala e olhei. Vi um homem virado de costas para mim, encostado à mesa. Depois recomendei a minha mãe:

— Diz-lhe que venho já… Não o deixes sair da sala.

Ela disse-me que ficasse descansada que o faria e tornei a entrar no quarto.

Astárito estava ainda sentado na cama como eu o tinha deixado :

— Depressa, depressa! Tenho pena, mas preciso de que te vás embora!

Perturbou-se e começou a balbuciar quaisquer protestos. Não o deixei acabar e continuei:

— A minha tia adoeceu de repente no meio da rua e eu e minha mãe temos de ir já ao hospital… Depressa, depressa!

Era uma mentira bastante grosseira, mas naquele momento foi a única que me ocorreu. Olhava-me aparvalhado, como se não acreditasse na sua pouca sorte. Reparei que tinha tirado os sapatos e que tinha umas meias listadas.

— Então! Porque me olhas assim? Tens de te retirar! — insistia eu, desesperada.

— Está bem, vou-me embora.

Baixou-se para calçar os sapatos. De pé, na sua frente, estendia-lhe já o casaco. Compreendi que teria de lhe fazer alguma promessa se quisesse que interviesse a favor da criada de quarto.

— Ouve — acrescentei, ajudando-o a vestir o sobretudo —, estou realmente vexada… mas volta amanhã à noite… depois do jantar… podemos estar juntos com tranquilidade… agora teria que te deixar logo em seguida… assim é melhor.

Ele não respondeu e eu acompanhei-o até à porta, conduzindo-o pela mão, como se fosse a primeira vez que ele tivesse vindo a minha casa, tal era o medo de que ele entrasse na sala onde Jaime me esperava.

— Ouve — disse-lhe. — Olha que vou hoje mesmo falar ao confessor.

Respondeu que sim com a cabeça para dizer que era conveniente. Tinha uma expressão ofendida e gelada. Na minha Impaciência, nem esperei que ele se despedisse e fechei-lhe a porta.

5

Enquanto me aproximava da porta da sala grande e punha a mão no puxador, compreendi de repente que, a menos que sucedesse um milagre, eu arriscava-me a criar entre mim e Jaime as lamentáveis relações que existiam entre mim e Astárito. E apercebi-me de que o sentimento de timidez, de receio e de cego desejo que eu inspirava a Astárito era o mesmo que eu sentia por Jaime.

Compreendendo perfeitamente que se quisesse ser amada me devia portar de uma maneira diferente, sentia-me invencivelmente impulsionada pelo desejo de me colocar perante a sua pessoa numa posição de dependência, de ansiedade, de sujeição. Quais poderiam ser os motivos da minha posição de inferioridade não saberia dizer: se os tivesse conhecido, esta posição deixaria de existir. O meu instinto advertia-me apenas de que éramos feitos de maneira diferente e que eu era mais resistente do que Astárito, mas mais frágil que Jaime: que da mesma maneira que qualquer coisa me impedia de amar Astárito, alguma coisa também havia que impedia Jaime de me amar; que da mesma forma como o amor de Astárito por mim, o meu amor por Jaime nascera sob mau signo e acabaria ainda pior. O coração saltava-me do peito e tinha a respiração entrecortada antes de o ver e de lhe falar. Estava cheia de medo de dar um passo em falso, de lhe fazer notar a minha ansiedade e o desejo que tinha de lhe agradar e ao mesmo tempo o receio de o perder para sempre. esta seguramente a pior maldição do amor; nunca é suficientemente retribuído: quando se ama não se é amado e quando nos amam não correspondemos. Nunca acontece dois amantes terem a mesma força de desejo e de sentimento, se bem que este seja o ideal para o qual todos os homens tendem, cada um por sua conta. Sabia com certeza que desde o momento em que me apaixonasse por Jaime ele não estaria apaixonado por mim. E sabia também, sem querer confessá-lo a mim própria, que, por mais que fizesse, nunca conseguiria que ele me tivesse amor. Tudo isto me passou pelo espírito enquanto esperava. mortalmente perturbada, atrás da porta da sala grande. Sentia-me completamente aturdida, pronta a cometer as maiores tolices, e isso irritava-me o mais possível. Acabei por me encher de coragem e entrei.

Estava ainda na posição em que o vira quando espreitara pela porta entreaberta, apoiado à mesa, de costas para a porta. Ouvindo-me entrar, voltou-se, olhou-me com ar hesitante, atento e crítico e disse-me:

— Passei por tua casa e lembrei-me de te fazer uma visita… achas que fiz mal?

Reparei que falava devagar, como se quisesse observar-me antes de pronunciar as palavras, e eu tremia à ideia de que talvez lhe parecesse menos sedutora que a recordação que o levara a procurar-me depois de tanto tempo. Encorajou-me a lembrança de que pouco antes, quando me olhara ao espelho, me achara bela. Respondi-lhe ansiosa:

— De maneira nenhuma. Fizeste muito bem… ia sair para almoçar… Vamos almoçar juntos!

— Mas tu reconheces-me? — perguntou-me, talvez com ironia. — Sabes quem eu sou?

— Se te reconheço! — disse eu, brincalhona.

E antes que a minha vontade dominasse os meus gestos, já lhe tinha pegado na mão e levado aos lábios, olhando-o com amor. Ele perdeu um pouco a serenidade e isso deu-me prazer.

— Porque nunca mais deste sinal de vida, grande maroto! — disse-lhe com voz terna.

Abanou a cabeça e respondeu:

— Tenho tido muito que fazer.

Eu perdera completamente a cabeça. Dos lábios levei a mão ao coração, abaixo do seio, e disse-lhe:

— Sente como o meu coração bate!

Mas ao mesmo tempo chamava-me idiota, porque pensei que não deveria fazer nem dizer aquilo.

Fez uma careta um pouco aborrecida; então, assustada. acrescentei depressa:

— Vou vestir o casaco. Volto já. Espera.

Sentia-me tão transtornada e tinha tanto medo de o perder que, uma vez no vestíbulo, fechei rapidamente à chave a porta da escada e tirei-a da fechadura. Se ele quisesse aproveitar o momento em que eu me vestia para se safar não lhe seria possível. Em seguida entrei no quarto e, diante do espelho, tirei o resto da pintura da boca e dos olhos com um canto do lenço. Depois tornei a pôr bâton, mas muito levemente. Fui ao bengaleiro buscar o casaco, não o encontrei e senti-me completamente perdida; depois lembrei-me de que o tinha pendurado no armário, tirei-o e vesti-o. Olhei-me no espelho e pareceu-me que o penteado que tinha chamava demasiado a atenção. Rapidamente, com algumas penteadelas, arranjei o cabelo como o usava na época em que era a noiva de Gino. Mas enquanto me penteava jurei solenemente que de futuro dominaria a minha paixão e não teria nem gestos nem palavras irreflectidos. Por fim estava pronta. Passei pelo vestíbulo e cheguei à porta da sala grande para chamar Jaime.

Mas quando saímos, a porta da escada que eu tinha esquecido que fechara à chave revelou o meu subterfúgio.

— Tinhas medo que eu saísse! — murmurou enquanto eu, confusa, procurava a chave na mala.

Ele agarrou a chave e foi ele próprio quem abriu a porta, olhando-me com um abanar de cabeça que parecia reprimir uma afectuosa severidade. O meu coração encheu-se de alegria e corri atrás dele na escada, segurei-lhe o braço e perguntei-lhe esbaforida:

— Não ficaste contrariado, pois não?

Não respondeu.

Na rua começamos a caminhar ao sol, de braço dado, ao longo das portas e das lojas. Estava tão feliz de andar ao seu lado que esqueci completamente os meus juramentos, e quando passamos em frente do pequeno pavilhão do torreão foi como se alguém pegasse na minha mão e a forçasse a apertar a sua. Apercebi-me de que me inclinava para a frente para o olhar melhor e lhe dizia:

— Sabes que estou bem contente de te ver?

Fez a sua careta habitual de embaraço e respondeu-me:

— Também estou contente — mas num tom que não condizia com as suas palavras.

Mordi os lábios até fazer sangue e desentrelacei os meus dedos dos seus. Não pareceu dar por isso; olhava à sua volta com ar distraído. A porta das muralhas parou e pronunciou numa voz reticente:

— Ouve, devo dizer-te uma coisa.

— Diz!

— Foi realmente por acaso que vim ver-te… e também por acaso não tenho nem um soldo no bolso. Por isso é melhor que nos separemos.

E dizendo isto estendia-me a mão. Comecei por experimentar um grande pavor: “Ele deixa-me”, pensava e, no meu desespero, não via outra solução senão agarrar-me ao seu pescoço chorando e suplicando. Mas o meu segundo movimento fez-me encontrar, no próprio pretexto que ele encontrara antes para me abandonar, uma solução fácil e mudei de sentimento. Pensei que podia pagar a refeição, e a ideia de lhe pagar da mesma maneira que toda a gente me pagava a mim seduziu-me. Já tenho falado no prazer sensual que sentia de cada vez que recebia dinheiro dos homens. Descobrira agora que havia em pagar-lhe um prazer também forte, e que a mistura do amor e do dinheiro — seja o dinheiro dado ou recebido — não era somente uma questão de proveito. Impetuosamente gritei-lhe:

— Mas não penses nisso! Serei eu quem pagará! Olha: tenho dinheiro.

Abri a mala e mostrei-lhe algumas notas que metera lá na véspera à noite.

Ele disse com uma espécie de decepção:

— Mas isso não se faz!

— Que importância tem isso? Tu voltaste: é justo que festeje o teu regresso!

— Não, não, não quero!

De novo fez menção de estender a mão e de se ir embora. Mas desta vez agarrei-o pelo braço declarando-lhe:

— Vá! Depressa! Não falemos mais nisso!

E dirigi-me para o restaurante. Sentámo-nos à mesma mesa que da primeira vez. Tudo estava como então, à parte um raio de sol invernal que penetrava pelos vidros da porta, iluminando as mesas e a parede. O dono da casa trouxe-nos a lista e eu dei as ordens num tom seguro e protector, parecido com aquele que empregavam comigo os meus amantes. Enquanto encomendava o almoço, ele conservou-se em silêncio, de olhos baixos. Esquecera-me de pedir vinho porque não bebia; mas lembrei-me de que na primeira vez ele bebera; tornei a chamar o homem e encomendei-lhe um litro.

Logo que ele se afastou, abri a mala, tirei uma nota, dobrei-a em quatro, olhei à minha volta e estendi-a por debaixo da mesa ao meu companheiro.

Olhou-me com ar interrogativo.

— É o dinheiro — disse-lhe em voz baixa. — Assim, quando quiseres, podes pagar.

— Ah! O dinheiro — disse lentamente.

Apanhou a nota, desdobrou-a em cima da mesa, olhou-a, depois tornou a dobrá-la, abriu a minha mala e tornou a metê-la lá com uma seriedade ligeiramente irônica.

— Queres que seja eu a pagar? — perguntei, desconcertada.

— Não — respondeu tranquilamente. — Eu pagarei.

— Mas então porque me disseste que não tinhas dinheiro?

Hesitou, depois respondeu com uma sinceridade cheia de amargura:

— Não foi por acaso que te procurei. Para te dizer a verdade. há um mês que penso em vir. Mas quando me encontrei diante de ti desejei tornar a ir-me embora. Então lembrei-me de te dizer que não tinha dinheiro: esperava que tu me mandasses para o diabo. Sorriu e passou a mão pelo queixo:

— Enganei-me, ao que parece — acrescentou.

Fora então uma espécie de experiência que ele fizera comigo. Mas não me desejava. Ou, para ser mais exacta, a atracção que sentia por mim era combatida por uma aversão igualmente forte. De futuro reconheceria nesta faculdade de mentir e de representar um papel para fazer uma experiência uma das suas características principais. Naquele momento sentia-me deveras perturbada e perguntava a mim própria se me devia lamentar ou felicitar pela sua astúcia e pela sua desfeita.

— Porque te querias ir embora? — perguntei-lhe maquinalmente.

— Porque compreendi que não experimentava qualquer sentimento por ti… ou, mais exactamente, um desejo como aquele que o meu amigo sente pela tua camarada.

— Sabes que eles vivem juntos? — disse-lhe.

— Sim — respondeu-me com ar de desprezo. — São feitos um para o outro.

— Nada sentes por mim — repeti —, e vieste? No meu amor decepcionado (decepção que eu, de resto, previra) tinha prazer em lhe fazer notar a sua inconsequência.

— Parece-me — respondeu — que eu sou o que vulgarmente se chama um carácter fraco.

— Vieste e isso basta-me — disse-lhe cruelmente.

Alonguei a mão por debaixo da mesa e pousei-lha sobre os joelhos, olhando-o. A este contacto vi-o perturbar-se e notei que o queixo lhe tremia. Senti prazer em vê-lo tremer; compreendi que, apesar de me desejar tanto como acabara de me dizer quando me confessara ter pensado durante um mês em me vir ver, havia uma parte dele próprio que me era hostil e que era contra essa parte que eu deveria dirigir os meus esforços a fim de a humilhar e destruir. Lembrei-me do seu olhar passando como um fio sobre as minhas costas nuas na primeira vez em que estivemos juntos; fizera mal em me deixar gelar por aquele olhar, que se eu tivesse persistido nos meus esforços para o seduzir, esse olhar se teria extinto da mesma maneira que neste momento a dignidade convulsa da sua cara caíra e se evaporara. Inclinada sobre a mesa como se lhe quisesse falar em voz baixa, acariciava-o e espiava com o olhar — um olhar que eu sentia alegre e satisfeito — o efeito da minha carícia sobre o seu rosto. Olhava-me com o ar interrogativo e magoado dos seus grandes olhos brilhantes com longos cílios de mulher. Acabou por me dizer:

— Se te chega agradares-me desta maneira, podes continuar.

Endireitei-me imediatamente. Quase no mesmo instante o patrão trouxe a comida. Começamos os dois a comer, sem apetite.

— No teu lugar procuraria obrigar-me a beber — disse-me.

— Porque?

— Porque quando estou embriagado faço com mais facilidade aquilo que os outros querem.

A frase que tinha já pronunciado: “Se te chega agradares-me desta maneira, podes continuar!” tinha-me magoado. O que ele dizia a respeito do vinho convenceu-me da inutilidade dos meus esforços. Desesperada, respondi-lhe:

— Quero que faças só aquilo que te apetecer. Se te queres ir embora, não tens mais que ir… a porta está ali.

— Para me ir embora — disse ele num tom brincalhão — era preciso que tivesse a certeza de o desejar!

— Queres que seja eu a ir-me embora?

Olhamo-nos. A minha dor dava-me a segurança da minha resolução. Esta atitude pareceu perturbá-lo tanto como as carícias que lhe fizera primeiro:

— Não — disse-me com esforço. — Fica.

Recomeçamos a comer em silêncio. Depois vi-o encher um grande copo de vinho e esvaziá-lo de um trago.

— Vês? Estou a beber — disse-me.

— Vejo.

— Daqui a pouco estou bêbado. Então já serei bem capaz de te fazer uma declaração!

Estas palavras trespassaram-me o coração. Tive a impressão de que já não podia continuar a sofrer desta maneira.

— Ouve — disse-lhe humildemente. — Não me atormentes mais!

— Atormento-te?

— Sim, metes-me a ridículo. Mas eu não te peço outra coisa senão que não te preocupes mais comigo. Apaixonei-me por ti… acabará por passar… Mas por enquanto deixa-me tranquila.

Não respondeu e bebeu o segundo copo de vinho. Temi tê-lo ferido e perguntei-lhe:

— Que queres? Estás zangado comigo?

— Eu? Pelo contrário.

— Se te agradar troçar de mim, podes fazê-lo; dizia aquilo só por dizer.

— Mas eu não faço troça de ti.

— E se te dá prazer dizeres-me maldades — insistia eu, tomada de não sei que desejo de me mostrar submissa com ele, sem manobras nem cálculos —, podes dizê-las… não te amarei menos por isso; amar-te-ei ainda mais! Se me batesses, beijaria a mão com a qual me tivesses batido.

Olhava-me com atenção e parecia extraordinariamente embaraçado. Era evidente que a minha paixão o desconcertava. Acabou por dizer:

— Vamos embora?

— Para onde?

— Para tua casa.

Estava tão desesperada que tinha quase esquecido o motivo do meu desespero. A um convite tão inesperado, quando ainda nem sequer tínhamos comido o primeiro prato e metade do vinho ainda estava no jarro, senti mais estupefacção que prazer. Pensava que não era o amor mas o embaraço que o levava a interromper o almoço e disse-lhe:

— Estás sobre brasas para me deixar, não é?

— Como percebeste? — perguntou-me.

Esta resposta, demasiado cruel para ser verdade, encorajou-me, respondi-lhe baixando os olhos:

— Sabes… há coisas que se compreendem logo! Não, vamos acabar de comer; depois vamo-nos embora!

— Como quiseres… mas vou embebedar-me.

— Embebeda-te… Nada tenho com isso!

— Mas vou embebedar-me até me fazer mal… e então em vez de um amante para amar, tens um doente para tratar.

Tive a ingenuidade de lhe mostrar o meu receio. Estendi a mão para o jarro e disse-lhe:

— Não bebas mais.

Desatou a rir e disse:

— Caíste no laço!

— Qual laço?

— Não te aflijas, que eu não adoeço assim com essa facilidade!

— Só o fazia por ti — disse-lhe, humilhada.

— Por mim? Oh! Oh!

Continuou a arreliar-me. Mas conservava nas suas alfinetadas a gentileza que lhe era natural, se bem que isso não me contrariasse muito.

— Mas tu, também, porque não bebes? — perguntou.

— Não gosto. Além disso, a mim basta-me um copo para me embriagar.

— Que mal pode fazer-te? Ficaremos os dois alegres.

— É feio uma mulher embriagada; não quero que me vejas assim!

— Porquê? Que tem isso de feio?

— Não sei. É feio ver uma mulher cambalear, dizer disparates, fazer gestos inconvenientes… É triste. Eu sei que sou uma desgraçada e sei que tu também pensas o mesmo de mim, que sou uma desgraçada. Mas se bebesse e tu me visses embriagada, nunca mais me poderias ver.

— E se te ordenasse que bebesses?

— Queres por força aviltar-me! — disse, reflectindo. — A única coisa boa que tenho é não ser ignóbil… Queres realmente que eu perca até mesmo esta qualidade?

— Quero! — disse-me com ênfase.

— Não percebo em que te pode isso dar prazer! Mas se o desejas muito, está bem, serve-me vinho! — disse-lhe.

E estendi o copo.

Olhou o copo e, depois de me olhar também, desatou a rir outra vez:

— Estava a brincar — disse.

— Nunca deixas de brincar!

— Então tu não és ignóbil — repetiu passado um momento em que me olhara em silêncio.

— É o que dizem, pelo menos.

— Julgas que eu também o penso?

— Como hei-de eu saber o que pensas?!

— Vejamos… que julgas tu que penso de ti e sinto por ti?

— Não sei — disse eu lentamente cheia de pavor. — Certamente que não me amas como eu te amo. Talvez eu te agrade como uma mulher pode agradar a um homem quando não é de todo feia.

— Ah! Então achas que não és de todo feia?

— Disso tenho a certeza — disse com orgulho. — Sei mesmo que sou muito bonita. Mas de que me serve a beleza?

— A beleza para nada serve.

Entretanto, tínhamos acabado de comer e esvaziáramos quase dois jarros de vinho.

— Como vês — disse-me —, bebi e não estou bêbado. Mas os seus olhos brilhantes e a agitação das mãos contradiziam as suas palavras. Olhava-o talvez com um ar esperançado.

— Queres voltar para casa? — disse-me. — É Vênus toda inteira agarrada à sua presa.

— Que estás a dizer?

— Nada. São uns versos franceses. Hep! Chefe! Era sempre um pouco enfático, mas de uma maneira cômica. E foi de uma maneira cômica que interpelou o patrão e lhe meteu o dinheiro debaixo do nariz, juntando-lhe uma gorjeta excessiva e declarando:

— Este dinheiro é para si!

Em seguida bebeu o resto do vinho e veio ter comigo. Já na rua, sentia uma grande pressa de chegar a casa.

Sabia que era de má vontade que ele voltava comigo; sabia que me desprezava e detestava o sentimento que o impelia para mim sem que o pudesse impedir. Mas eu tinha a maior confiança na minha beleza e no meu amor por ele e estava impaciente por afrontar a sua hostilidade com essas armas; sentia de novo uma vontade agressiva e alegre, e que o meu amor seria mais forte do que a sua aversão, que ao calor da minha chama o seu metal duro acabaria por se fundir e ele amar-me-ia por sua vez.

Caminhando a seu lado na grande avenida deserta às primeiras horas da tarde, disse-lhe:

— Vais prometer-me que, uma vez em minha casa, não procurarás ir-te embora.

— Prometo.

— Vais prometer-me ainda outra coisa.

— Qual?

Hesitei, depois disse:

— Da outra vez tudo se teria passado bem se não te tivesses posto, a certa altura, a olhar para mim de uma maneira que me envergonhou. Tens de me prometer que não tornas a olhar-me daquela maneira.

— De que maneira?

— Não sei… de uma maneira maldosa.

— Não se comanda o olhar — disse-me. — Se quiseres, nem te olharei, fecharei os olhos. Está bem?

— Não, não está! — insisti com obstinação.

— Mas de que maneira queres que olhe para ti?

— Como eu te olho — respondi-lhe.

Sem parar, segurei-lhe o queixo e mostrei-lhe a maneira como me devia olhar.

— Assim, com doçura.

— Ah! Ah! Com doçura!

Quando chegamos à minha escada suja e lúgubre, não pude impedir-me de me lembrar da casa de Gisela, branca, asseada e límpida. E disse como se falasse comigo:

— Se eu não morasse numa casa suja, se não fosse a desgraçada que sou, com certeza te agradaria mais!

Parou de repente, segurou-me pela cintura com as duas mãos e disse-me num tom sincero:

— Se pensas isso, podes estar certa de que te enganas. Pareceu-me ver nos seus olhos qualquer coisa muito parecida com afecto. Ao mesmo,tempo curvou-se sobre mim e procurou-me a boca. O seu hálito cheirava muito a vinho. Nunca pude suportar o cheiro do vinho, mas neste momento, na sua boca, parecia-me agradável e puro, quase comovente, como o seria na boca de uma criança inexperiente. Compreendi que as minhas palavras tinham, sem que o tivesse procurado, tocado o seu ponto sensível. Pareceu-me, como já disse, ter feito nascer nesse momento na sua alma a centelha da afeição. Em seguida percebi que ele agia mais por ponto de honra e que, ao beijar-me, não obedecia tanto a um gesto de amor, que não sentia, como, à sua maneira, a uma espécie de chantagem moral. Mais tarde estimulei-o da mesma maneira mais vezes, acusando-o de me desprezar pela minha pobreza e pela minha profissão. Obtive sempre o mesmo resultado favorável aos meus desejos, ao mesmo tempo que completava o meu conhecimento da sua pessoa — um conhecimento singularmente humilhante e falaz. Mas nesse dia não o conhecia ainda como depois. E esse beijo deu-me uma grande alegria, como se fosse uma vitória definitiva. Satisfeita com o gesto, contentei-me em aflorar os seus lábios, pegar-lhe na mão e dizer-lhe:

— Vamos. Vamos para cima! Corre! — e puxava-o, fazendo-o galgar alegremente até ao último andar. Ele deixava-se levar sem pronunciar palavra.

Cheguei ao meu quarto quase a correr, arremessando-o como a um boneco contra a parede do vestíbulo. Entrei violentamente, e assim que cheguei junto da cama atirei-o para lá. Só então percebi que ele não estava apenas bêbado, mas, como me prevenira, parecia sentir-se mal. Estava extremamente pálido, passava a mão pela testa como se estivesse tonto e tinha nos olhos um brilho vacilante e perturbado. Vi tudo isso apenas com um olhar e fiquei logo com medo de que desmaiasse, e que do nosso segundo encontro nada resultasse outra vez. Por um instante, ao andar de um lado para o outro para me despir, senti um vivo remorso, como que um desespero, por não o ter impedido de beber. Mas note-se que nem sequer me passou pela ideia renunciar a este amor tão desejado. Só tinha uma esperança: que não se sentisse mal a ponto de não me poder amar, ou que, se a indisposição fosse verdadeiramente forte, os seus efeitos se fizessem sentir depois, e não antes, de ter satisfeito o meu desejo. Estava realmente apaixonada por ele; mas tinha tanto medo de o perder que o meu amor não ultrapassava os limites do meu egoísmo.

Portanto, fingi não notar a sua embriaguez, e depois de despida sentei-me na cama a seu lado. Tinha ainda o sobretudo vestido como quando tinha entrado. Ajudei a despi-lo. Enquanto o fazia, ia-lhe falando para o distrair e impedir de pensar em se ir embora.

— Ainda não me disseste quantos anos tens — disse-lhe tirando-lhe o sobretudo pelas mangas, enquanto ele levantava docilmente o braço para me auxiliar nos meus esforços.

Respondeu passado um momento:

— Tenho dezanove anos.

— Tens menos dois do que eu.

— Tu tens vinte e um?

— Quase vinte e dois.

Os meus dedos procuravam desmanchar-lhe o nó da gravata. Lentamente ele afastou-me e desfez o nó. Depois deixou cair os braços e tirei-lhe a gravata.

— Está velha a tua gravata — disse-lhe. — Hei-de comprar-te uma. De que cor queres?

Ele riu. Gostava de o ver rir, porque tinha um riso amável e gentil.

— Tu queres por força sustentar-me! — disse. — Primeiro querias pagar-me o almoço e agora queres comprar-me uma gravata?

— Que disparate! — disse-lhe com ternura. — Que mal te pode isso fazer? Eu tenho gosto em oferecer-te uma gravata: isso não pode contrariar-te!

Enquanto me ouvia, tirara o casaco e o colete e estava sentado na beira da cama em mangas de camisa.

— Nota-se que tenho dezanove anos? — perguntou-me.

Agradava-lhe sempre falar dele; depressa o descobri.

— Sim e não — disse hesitando, vendo que isso o lisonjeava. — Vê-se sobretudo pelos cabelos — acrescentei acariciando-lhe a cabeça. — Um homem tem o cabelo menos forte. Na cara não.

— Que idade me darias?

— Vinte e cinco.

Calou-se e fechou os olhos como se fosse vencido pela embriaguez. De novo tive medo que se sentisse mal e apressei-me a ajudá-lo a tirar a camisa, acrescentando:

— Fala-me mais de ti. És estudante?

— Sou.

— Em que curso estás?

— Direito.

— Vives com a tua família?

— Não, a minha família mora na província, em S…

— Estás numa pensão?

— Não, tenho um quarto mobilado — respondeu-me mecanicamente de olhos fechados. — Na Rua Cola di Rienzo, 20, apartamento 8, em casa da viúva Medolaghi, Amélia Medolaghi.

Tinha o tronco nu. Não resisti à tentação de lhe passar gulosamente as mãos sobre o peito e o pescoço dizendo:

— Porque ficas assim? Não tens frio?

Levantou a cabeça e olhou-me. Depois riu-se e disse-me com uma voz um pouco áspera:

— Julgas que eu não percebo?

— O quê?

— Que me despes disfarçadamente? Estou embriagado, mas não a esse ponto.

— E então! — respondi, desconcertada. — Mesmo que assim fosse, que mal há nisso? Devias ser tu a fazê-lo, mas como não fazes, auxilio-te.

Parecia não me ouvir — Estou bêbado — continuou, abanando a cabeça —, mas sei muito bem o que faço e porque estou aqui. Não preciso de ajuda… Olha!

Bruscamente, com gestos violentos que a magreza fazia parecer serem de louco, tirou o cinto, fez voar para longe as calças e tudo o que tinha ainda vestido:

— E sei também o que esperas de mim! — acrescentou apoiando as mãos nas minhas ancas.

As suas mãos, fortes e nervosas, apertavam-me e nos seus olhos a bebedeira parecia ter cedido o lugar a uma espécie de enérgica malícia. Esta malícia tornei a encontrá-la mesmo nos momentos em que parecia abandonar-se completamente. Era um claro indício da sua lucidez de consciência, que conservava sempre, fosse o que fosse que fizesse, e que — acabei por descobrir mais tarde com mágoa — o impedia de se entregar e amar realmente.

— É isto que queres, não é? — acrescentou sem me largar, enterrando-me as unhas na carne. — E depois isto, isto?

De cada vez que dizia isto tinha um gesto de amor, beijando-me, mordendo-me e beliscando-me traiçoeiramente com as duas mãos nos sítios onde eu menos esperava. Eu ria, defendia-me, debatia-me, estava demasiadamente feliz por ver acordar o seu desejo para notar o que havia de forçado e de insincero na sua atitude. Magoava-me como se o meu corpo fosse para ele um objecto de ódio e não de amor. Julguei ver brilhar nos seus olhos, em vez de desejo, uma espécie de cólera. Depois o seu frenesi terminou de repente, como tinha começado. De uma maneira curiosa, inexplicável, talvez por estar dominado pela embriaguez, deixou-se cair de costas na cama a todo o comprimento e encontrei-o ao meu lado com a bizarra impressão de que ele não se mexera, nem me falara, que nunca me tinha tocado, nem beijado, como se tudo estivesse ainda por começar.

Fiquei muito tempo imóvel, ajoelhada na sua frente sobre a cama, os cabelos nos olhos, olhando-o e aflorando de vez em quando timidamente com a ponta dos dedos o seu belo corpo alongado, magro e puro. Tinha a pele branca debaixo da qual sobressaíam os ossos, os ombros largos e magros, as ancas estreitas e as pernas longas; não tinha pêlos, salvo alguns no peito; a posição em que estava, deitado de costas, esticava-lhe o ventre de maneira que o púbis parecia estendido como uma oferta. Em amor eu não gosto de violência; por isso me parecia que nada se tinha passado entre nós, que tudo estava ainda no princípio. Deixei, pois restabelecer-se a calma e o silêncio depois deste tumulto irônico e fictício, e quando me senti de novo no estado de alma apaixonado e sereno que me é habitual, lentamente, do mesmo modo que durante o tempo quente se entra lentamente na água deliciosa de um mar calmo, estendi-me ao seu lado, entrelacei as minhas pernas nas suas, rodeei-lhe o pescoço com os braços e apertei-me contra ele. Desta vez não se mexeu nem falou até ao fim. Eu chamava-lhe os nomes mais doces, respirava sobre o rosto, envolvia-o na rede apertada e quente das minhas carícias, e ele, como se estivesse morto, jazia deitado de costas, imóvel. Mais tarde soube que esta passividade sem participação era a maior prova de amor que ele podia dar.

Muito mais tarde, durante a noite, levantava-me apoiada no cotovelo e contemplava-o com uma intensidade da qual guardo, passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer conservar a todo o custo abandonara-o. Nos seus traços, que o sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembrava-me de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro profundo que para mim ficava longínquo e secreto. Não desejava que ele me explicasse estas atitudes, desmontando-as e analisando-as por palavras, como se desmontam as peças de uma máquina. Desejaria conhecê-las nas suas raízes mais fundas por um simples acto de amor, e ainda o não tinha conseguido. O pouco que me escapava da sua pessoa era todo ele e o muito que não me escapava não tinha qualquer importância; não sabia que fazer. Gino, Astárito e mesmo Sonzogne estavam mais próximos de mim, conhecia-os melhor. Olhava-o e sentia a parte mais profunda de mim própria sofrer por não ter podido unir-se ao que ele tinha de mais profundo, como acabavam de unir-se os nossos corpos. Ela estava viúva e chorava amargamente esta ocasião perdida. Talvez, enquanto nos amávamos, tivesse havido um momento no qual ele se libertou e em que bastaria um gesto ou uma palavra para que eu pudesse entrar na sua alma e lá ficar para sempre. Mas não tinha sabido encontrar esse momento e agora era tarde: dormia e de novo se afastara de mim.

Quando assim o contemplava, abriu os olhos sem se mexer, com a cara enterrada de perfil na almofada e perguntou-me:

— Também dormiste?

A sua voz pareceu-me mudada, mais confiante e mais próxima. Eu esperava de repente que misteriosamente, durante o sono, a nossa intimidade tivesse aumentado.

— Não… estive a olhar para ti.

Guardou silêncio por um instante, depois disse:

— Tenho um favor a pedir-te… mas posso contar contigo?

— Que pergunta!

— Será preciso que me faças o favor de guardar por alguns dias na tua casa um pacote que te entregarei. Virei buscá-lo e talvez te traga outro.

Noutra ocasião, esta história dos pacotes teria excitado a minha curiosidade. Mas neste momento o que me interessava era ele e as nossas relações. Pensava que era mais uma ocasião para nos tornarmos a ver, que lhe devia agradar o mais que pudesse e que, se lhe fizesse perguntas, poderia arrepender-se e faltar ao prometido.

Respondi-lhe com ar despreocupado:

— Se é só isso o que queres…

Calou-se ainda durante muito tempo. Parecia reflectir. Depois insistiu:

— Então aceitas?

— Já te disse que sim.

— E não te interessa conhecer o conteúdo dos pacotes?

— Se não queres dizer — respondi esforçando-me por parecer desinteressada —, é porque tens razões para isso! Não to pergunto.

— Mas poderia ser alguma coisa perigosa; não sabes?

— Está bem! Tanto pior!

— Podia ser uma coisa roubada — continuou estendendo-se de costas, enquanto os olhos lhe brilhavam com uma expressão divertida e ingênua ao mesmo tempo. — Eu podia ser um ladrão.

Recordei-me de Sonzogne, que não só era ladrão como também assassino, e lembrei-me dos meus próprios roubos: a caixa de pó de arroz e o lenço de seda. Pareceu-me uma curiosa coincidência que ele quisesse passar por ladrão aos olhos de uma pessoa como eu, autêntica ladra, vivendo no meio de ladrões. Fiz-lhe uma carícia e disse-lhe com doçura:

— Não, tu não és um ladrão com certeza.

Irritou-se. O seu amor-próprio, sempre desperto, tomava a mal as coisas mais estranhas e imprevistas.

— Porquê? — disse-me. — Podia muita bem sê-lo.

— Não tens cara disso. Tudo é possível… mas realmente tu não pareces.

— Porquê? Que cara tenho eu?

— Tens cara daquilo que és… um rapaz de boa família, um estudante…

— Fui eu quem te disse que era estudante… Podia muito bem ser outra coisa qualquer… e é a verdade…

Já não o ouvia. Pensava que também eu não tinha cara de ladra e no entanto era uma ladra e desejava imenso dizer-lho. A sua curiosa atitude aumentava a minha tentação. Sempre pensara que roubar era um acto censurável. E eis que alguém não só não parecia censurar um tal acto, mas parecia encontrar nisso um aspecto positivo que para mim continuava misterioso. Hesitei um momento, depois disse-lhe:

— Tens razão. Penso que não és um ladrão porque estou convencida de que não o és; mas, quanto à cara, bem podias sê-lo. Nunca se tem a cara daquilo que se é. Eu, por exemplo… Tenho cara de ladra?

— Não — respondeu sem me olhar.

— E no entanto sou-o — acrescentei tranquilamente.

— Tu és?

— Sou.

— E que roubaste?

Tinha deixado a mala sobre a mesa-de-cabeceira. Peguei nela, tirei a caixa e mostrei-lha.

— Isto, numa casa aonde ia aqui há uns tempos, e, no outro dia, numa loja, um lenço que dei a minha mãe.

Não acreditou que fizesse estas revelações por vaidade. Na realidade, o que me levara a fazê-las fora um desejo de intimidade, de cumplicidade sentimental: à falta de melhor, a confissão de um delito pode aproximar e fazer amar. Vi-o tornar-se grave e olhar-me com ar concentrado, e de repente receei que ele me julgasse mal e tomasse a resolução de não me tornar a ver. Acrescentei depressa:

— Mas não julgues que estou contente por ter roubado. Pelo contrário, já decidi devolver a caixa… hoje mesmo. O lenço não o posso restituir… mas tenho tido remorsos e resolvi nunca mais o fazer.

Ao ouvir estas palavras, vi brilhar nos seus olhos a malícia que lhe era habitual. Olhou-me e desatou bruscamente a rir. Depois agarrou-me pelos ombros, atirou-me para cima da cama e começou outra vez a beliscar-me e a fazer-me cócegas traiçoeiramente, repetindo:

— Ladra, tu não passas de uma ladra, uma ladrazinha, uma grande ladra, uma enorme ladra, uma suja ladra… — com uma espécie de ternura sarcástica da qual eu não sabia se me deveria sentir vexada ou lisonjeada. Num certo sentido, a sua impetuosidade excitava-me e agradava-me. Era melhor do que a habitual, a mortal passividade.

Ria pois e o meu corpo mais se contorcia quanto mais cócegas ele me fazia, maldosamente, debaixo dos braços. Mas, torcendo-me e rindo até às lágrimas, via a sua cara, inclinada para mim, com uma espécie de crueldade, conservando uma expressão fechada e concentrada. Sem rir, parou bruscamente, como tinha começado. Deixou-se cair de costas sobre a cama e disse:

— Eu, pelo contrário, não sou um ladrão… não, na verdade. Estes pacotes que te pedi para guardares não são o produto de um roubo.

Percebi que ele desejava muito dizer-me o que eles continham. E compreendia que, ao contrário do que se passara comigo, nele era sobretudo por vaidade. Uma vaidade muito parecida, no fundo, com a que levara Sonzogne a revelar-me o seu crime. Apesar de todas as suas diferenças, os homens têm muitas coisas comuns; em presença de uma mulher que eles amam, ou pelo menos com quem têm ligações amorosas, eles tendem sempre para ostentar a sua virilidade sob a forma de actos enérgicos e perigosos que fizeram ou que farão. Fiz notar a Jaime, com doçura:

— No fundo, morres por me contar o que há nesses pacotes.

— És uma idiota — disse-me, irritado. — Não me interessa fazê-lo. Somente devo pôr-te ao corrente do seu conteúdo para que possas decidir se me prestas este serviço ou não… Pois bem! Contêm material de propaganda.

— Que quer isso dizer?

— Faço parte de um grupo de pessoas que não gostam muito, digamos assim, do governo actual, ou, melhor, que lhe têm ódio e desejariam que ele caísse o mais depressa possível. Esses pacotes contêm justamente prospectos impressos, nos quais explicamos às pessoas porque este governo não presta e indicamos a maneira de agir para se desembaraçarem dele.

Nunca me ocupei de política. Para mim, como para muita gente, parecia-me, a questão do governo nem sequer se punha. De repente lembrei-me de Astárito e das alusões que ele de tempos a tempos fazia à política. Gritei então, aflita:

— Mas é proibido! É perigoso!

Olhou-me com satisfação. Dissera-lhe enfim uma coisa que lhe agradava e lisonjeava o seu amor-próprio. Confirmou com excessiva gravidade e ligeiramente enfático:

— De facto, é perigoso… Agora é a ti que compete decidir se queres ou não prestar-me esse serviço.

— Não é por mim que digo isto — repliquei vivamente — É por ti. Por mim, aceito.

— Toma cuidado, porque é de facto perigoso — preveniu-me ainda. — Se te descobrem, vais parar à prisão.

Olhava-o, e bruscamente senti por ele um excesso de afeição impossível de conter. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e balbuciei:

— Não compreendes então que isso para mim não tem importância alguma? Serei presa… e depois?

Abanei a cabeça e as lágrimas rolaram-me pelas faces. Admirado, perguntou-me:

— Porque choras tu agora?

— Perdoa-me — disse-lhe. — Sou uma imbecil… Eu própria não sei porquê… talvez porque quisesse que te desses conta de que te amo e que por ti estou pronta a fazer seja o que for.

Ainda não tinha compreendido que não lhe devia falar do meu amor. Ao ouvir as minhas palavras, o seu rosto mostrou-se embaraçado e tomou uma expressão vaga e distante, alteração que de futuro, em casos idênticos, eu havia de notar! Desviou os olhos e disse-me apressadamente:

— Então, está bem! Dentro de dois dias trago-te os pacotes, fica combinado. Agora é tarde; preciso de me ir embora.

Dizendo isto, saltou da cama e começou a vestir-se a toda a pressa. Fiquei onde estava, sobre a cama, com a minha emoção e as minhas lágrimas, nua e um pouco envergonhada, sem saber se seria de estar nua se de estar a chorar. Apanhou as roupas que atirara para o chão e vestiu-as. Foi ao bengaleiro, tirou o sobretudo, enfiou-o e aproximou-se de mim.

— Toca aqui! — disse-me com um sorriso gracioso e ingênuo que tanto gostava de lhe ver.

Olhei e vi que me indicava um dos bolsos do sobretudo. Aproximara-se da cama para que eu pudesse estender a mão sem esforço. Senti um objecto duro.

— Que é? — perguntei-lhe sem compreender.

Sorriu satisfeito, introduziu a mão na algibeira, olhou-me nos olhos e tirou devagarinho, mas só metade, um revólver preto.

— Um revólver? — gritei. — Para que o queres?

— Nunca se sabe — respondeu-me. — Pode vir a ser preciso…

Fiquei inquieta, tentando pensar, porém ele não me deu tempo para isso. Tornou a meter a arma no bolso, curvou-se, aflorou os meus lábios com os seus e disse-me:

— Então está combinado, não está? Volto daqui a dois dias.

Antes que me refizesse da surpresa ele tinha saído. Muitas vezes, daí em diante, pensando neste primeiro encontro de amor, repreendi-me cruelmente por não ter sabido prever os perigos aos quais o expunha a sua paixão política. A verdade é que não tinha, nem nunca vim a ter, qualquer influência sobre ele. Mas, pelo menos, se eu soubesse então o que soube depois, teria podido aconselhá-lo: e mesmo que os conselhos para nada servissem, estaria ao seu lado em plena consciência da causa e firmemente decidida.

Esta foi certamente a minha culpa, ou, melhor, a culpa da minha ignorância, da qual não era culpada, mas sim a minha condição. Como já disse, nunca me ocupei de assuntos de política, nada deles percebia, e sentia-os estranhos ao meu destino; era como se eles se desenrolassem não à minha volta, mas num outro planeta. Quando lia o jornal, saltava a primeira página porque as notícias sobre política não me interessavam e tomava conhecimento dos assuntos comezinhos, em que certos acontecimentos ou alguns crimes forneciam ao meu espírito matéria de reflexão. Na realidade a minha condição era muito parecida com a de certos animaizinhos transparentes que vivem, segundo dizem, no fundo do mar, quase às escuras, e nada sabem do que se passa à superfície, à luz do sol. A política, como de resto numerosas coisas às quais os homens pareciam ligar tanta importância, chegava até mim como de um mundo desconhecido, superior — mais obscuras, mais incompreensíveis que a luz do dia é para esses simples animálculos no fundo dos seus esconderijos submarinos.

Mas não foi só culpa minha e da minha ignorância; foi também culpa dele, da sua imprudência e da sua vaidade. Se eu me tivesse apercebido dos perigos que a sua vaidade poderia fazer surgir — e esses perigos existiam —, eu poderia talvez ter agido de maneira diferente; não sei qual seria o resultado, mas ter-me-ia esforçado por compreender e conhecer tudo o que ignorava. Aqui quero notar outro elemento que de certo modo contribuiu para o meu procedimento despreocupado: o facto de Jaime dar a impressão de, em vez de agir com seriedade, representar um papel e de uma maneira quase cômica. Dir-se-ia que ele compunha peça por peça uma personagem ideal na qual não acreditava senão até certo ponto, e que se esforçava sempre, quase maquinalmente, por harmonizar os seus actos com os desta personagem. Essa contínua comédia dava a impressão de um jogo no qual ele era, num certo sentido, um perfeito mestre; mas, como acontece aos jogadores, uma impressão semelhante roubava uma grande parte da seriedade a tudo o que ele fazia e sugeria também a falsa certeza de que para ele nada era irreparável e que no último momento o seu adversário lhe devolveria o dinheiro perdido e lhe estenderia a mão. Talvez até, como acontece com as crianças, para quem tudo é jogo, se divertisse realmente; mas o seu adversário era de respeito, isso viu-se pela continuação. Foi assim que, acabada a partida, se encontrou desprevenido e desarmado, excluída toda a possibilidade de continuar o jogo e preso numa armadilha mortal.

Estas coisas e muitas outras ainda mais tristes — ai de mim! — e não menos razoáveis só as pensei mais tarde, reflectindo sobre os factos. Mas então, assim como ele parecia ter-me feito compreender, a suspeita de que este assunto dos pacotes poderia influenciar as nossas relações nem sequer me aflorou o espírito. Estava satisfeita por ele ter voltado, estava contente por lhe poder prestar um serviço e não ia mais além dessa dupla satisfação. Lembro-me de que, ao surpreender-me a pensar vagamente e como em sonhos neste singular serviço que ele me pedira, abanava a cabeça como se dissesse “Que infantilidade!” e pensava noutra coisa. De resto encontrava-me num estado de alma feliz a tal ponto que mesmo que o quisesse não teria podido aplicar a minha atenção a qualquer facto que me preocupasse.

6

Tudo me parecia correr pelo melhor. Jaime tinha voltado e encontrara um meio de fazer sair da prisão a criada de quarto acusada injustamente sem ser obrigada a tomar o seu lugar. Naquele dia, depois de Jaime ter saído, passei duas horas a saborear a minha felicidade, como se saboreia por vezes a posse recente de uma jóia, de um objecto precioso, com um misto de admiração, incompreensão e ingenuidade que não exclui de forma alguma uma profunda alegria. O tocar das vésperas acordou-me desta voluptuosa contemplação. Lembrei-me do conselho de Astárito e da urgência que havia em socorrer esta pobre mulher aprisionada. Vesti-me e saí à pressa.

É uma doce coisa, no Inverno, quando ficamos toda a manhã e uma parte da tarde em casa, só com os nossos pensamentos, sair e percorrer as ruas do centro da cidade, onde o movimento é maior, mais numerosa a multidão e as lojas mais bem iluminadas. No ar puro e frio, no meio do barulho, do movimento e da cintilação da vida citadina o pensamento aclara-se, o espírito liberta-se e experimenta-se uma excitação estranha, uma embriagadora alegria, como se todas as dificuldades se aplanassem e como se não houvesse realmente outra coisa a fazer que vaguear por entre a multidão, leve e sem cuidados, feliz por seguir agora uma, agora outra, as impressões fugazes que o espectáculo das ruas oferece à ociosidade. Realmente dir-se-ia então por alguns instantes que as nossas dívidas, como diz a oração cristã, nos são perdoadas sem que para isso tenhamos algum mérito, sem que as pagássemos, mas unicamente por uma benevolência geral e misteriosa. Bem entendido que é preciso sentir-se feliz ou pelo menos contente, porque, no caso contrário, a vida da cidade pode dar a angustiosa impressão de uma agitação absurda e vã. Mas nesse dia, como já disse, sentia-me feliz e apercebi-me particularmente de que o estava uma vez chegada ao centro e logo que comecei a caminhar nos passeios, pelo meio das pessoas.

Sabia que devia ir à igreja confessar-me, como decidira fazer. Mas talvez justamente por me ter proposto esta ideia, nenhuma pressa tinha de o fazer e nem mesmo pensava nisso. Caminhei pois, lentamente, de uma rua para a outra, parando de vez em quando para examinar os objectos expostos nas montras. Se os que me conheciam me tivessem visto, teriam com certeza pensado que eu procurava interessar os passeantes. Mas na verdade nada estava mais longe do meu espírito. Poderia talvez ter-me deixado deter por algum homem que me tivesse agradado, mas não por dinheiro, mas por simples transporte de alegria, por exuberância de vida. Os poucos homens que me viram parada em frente das montras e me abordaram com as suas frases habituais e as suas propostas para me acompanharem não me agradavam. Nem lhes respondi, nem sequer os olhei e continuei a passear como se eles não existissem, com o meu passo habitual, indolente e majestoso.

A vista da igreja na qual me confessara a última vez, depois do passeio a Viterbo, apanhou-me desprevenida, neste estado de alma feliz e distraído. Entre os cartazes do cinema e a montra da loja das meias, rutilante de luz, a sua fachada barroca mergulhava no escuro, disposta à maneira de guarda-vento num recanto da rua, com a sua alta frontaria encimada por dois anjos tocando trombetas, e as manchas violetas que projectava sobre elas o anúncio luminoso de uma casa contígua dava-me a impressão da cara escura e enrugada de uma velha, abrigada com um xaile fora de moda, que me tivesse feito um sinal de chamada familiar no meio das caras iluminadas das pessoas. Lembrei-me do belo confessor francês, o padre Élie, e tive a impressão de que ninguém se sairia melhor do que ele, homem do mundo e homem novo, desta maçada de restituir a caixa. Além disso, ao padre Élie, conhecendo-me num certo sentido, eu teria menos dificuldade em confessar-lhe as coisas terríveis e vergonhosas que pesavam sobre a minha alma.

Galguei os degraus, afastei a cortina que obstruía a porta e entrei depois de ter colocado na cabeça um lenço de bolso. Enquanto molhava os dedos na água benta, reparei numa figura esculpida em volta da pia: uma mulher nua, com os cabelos ao vento, os braços levantados, que fugia perseguida por um repugnante dragão, com bico de papagaio, levantado sobre as patas de trás, como um homem. Julguei reconhecer esta mulher; pensava que fugia também de um dragão parecido, mas a minha fuga, como a desta mulher, era uma fuga circular. Acontecia-me por vezes andar à roda, não para fugir, mas para seguir com ardor e alegremente este vil dragão. Afastei-me da pia de água benta e, persignando-me, voltei-me para o interior da igreja. Pareceu-me que conservava a mesma desordem, a mesma obscuridade, a mesma desolação que da última vez que a tinha visto. Como então, estava mergulhada na escuridão, salvo o altar-mor, onde os círios iluminavam o crucifixo, fazendo brilhar confusamente os candelabros de cobre e as alfaias de prata. A capela dedicada à Virgem, na qual eu rezara com uma tão profunda e vã convicção, estava também iluminada; empoleirados em escadotes, dois sacristães pregavam à arquitrave cortinados vermelhos franjados de ouro. Vi que o confessionário do padre Élie estava ocupado e fui ajoelhar-me, em frente do altar-mor, sobre uma das cadeiras de palha em desordem. Não sentia qualquer emoção, mas só impaciência por despachar o assunto da caixa. Uma impaciência impetuosa, feliz e não isenta de vaidade, precisamente a que se sente quando nos preparamos para fazer uma boa acção com a qual sonhávamos há muito tempo. Reparei logo que esta impaciência, que vem do coração e parece querer ignorar todas as sugestões da inteligência, acaba por comprometer a boa acção e fazer por vezes mais mal que uma conduta mais reflectida.

Assim que vi a pessoa que se confessava levantar-se e afastar-se, fui direita ao confessionário, ajoelhei-me e, sem esperar que o confessor me falasse, disse-lhe depressa:

— Padre Élie, não me venho confessar como habitualmente o fazemos… venho dizer-vos uma coisa extremamente grave e pedir-vos um favor que não me recusareis, estou certa.

Do outro lado da grade a voz do confessor, muito baixa, disse-me que falasse. Estava tão convencida de que era o padre Élie quem se encontrava do outro lado que quase me parecia ver o seu belo rosto, não escondido, mas à frente da placa escura e perfurada. Então, pela primeira vez depois de ter entrado, experimentei uma grande emoção confiante e religiosa. Foi como um impulso do meu espírito que o impelia a libertar-me do corpo e a ajoelhar-se todo nu, com as suas máculas bem em evidência, sobre os degraus, diante desta grade. Verdadeiramente tive durante um momento a impressão de ser uma alma sem carne, livre, feita de ar e de luz, como dizem que acontece depois da morte. E julguei sentir o padre Élie também, com a sua alma muito mais luminosa do que a minha, libertar-se da sua prisão corporal, fazer desaparecer a grade, as paredes, o escuro do confessionário e aparecer diante de mim em pessoa, absolvendo e consolando. Talvez seja esse o sentimento que se deve experimentar quando nos ajoelhamos para nos confessarmos. Mas nunca o sentira de uma maneira tão profunda.

Pus-me então a falar, com os olhos fechados, apoiando a testa na grade, e disse tudo. O meu ofício, falei de Gino, de Astárito e de Sonzogne, do roubo e do crime. Disse o meu nome, o de Gino, o de Astárito e o de Sonzogne. Contei onde praticara o roubo, onde fora o crime, onde eu morava. Descrevi mesmo o aspecto físico das pessoas. Não sei a que impulso obedeci. Talvez ao da dona de casa que acaba por decidir-se a limpar a sua casa depois de uma longa negligência e que não tem sossego enquanto não tiver varrido o último grão de poeira, a última partícula de cotão alojada debaixo dos móveis ou nos cantos. Realmente, à medida que contava e citava todos os detalhes da minha confissão sentia-me mais livre e mais pura.

Falava sempre com a mesma voz razoável e tranquila. O meu confessor ouviu-me até ao fim, sem dizer uma palavra, sem nunca me interromper. Depois ouvi uma horrível voz lenta, arrastada, pronunciar estas palavras:

— As coisas que acaba de me dizer, minha filha, são terríveis, assustadoras; o espírito recusa-se a crer numa coisa destas, mas fez bem em ter vindo confessar-se e farei por si tudo o que puder.

Muito tempo se passara depois da minha última confissão nesta igreja, e no agradável tumulto da minha vaidosa bondade tinha quase esquecido um detalhe bem característico e bem agradável: a pronúncia francesa do padre Élie. Ora aquele que me falara não tinha qualquer acento particular na voz, mas a sua pronúncia era sem dúvida italiana, com os seus toques de futilidade que se notam na voz de alguns padres. Compreendi bruscamente o meu erro e senti, no mesmo instante, uma impressão de gelo, parecida com a que deve experimentar alguém que, ao estender a mão para colher uma bela flor, sente na ponta dos dedos a pele fria e vibrátil de uma serpente. Quanto à desagradável surpresa de me encontrar em frente de um confessor diferente do que tinha imaginado, era igual ao horror que me causou esta voz insinuante e sombria. Encontrei, no entanto, forças para balbuciar:

— Mas vós sois realmente o padre Élie?

— Em pessoa — respondeu o padre desconhecido. — Já cá tinha vindo alguma vez?

— Só uma vez.

Ficou calado durante um momento, depois disse:

— Tudo o que me contou merecia ser examinado de novo ponto por ponto… Não se trata só de uma coisa, mas de várias, das quais algumas lhe dizem respeito, outras a certas pessoas… Naquilo que vos diz respeito já compreendeu que cometeu pecados muito graves?

— Sim — murmurei. — Já sei.

— E sente-se arrependida?

— Julgo que sim.

— Se o vosso arrependimento é sincero — continuou no seu tom confidencial e paternal —, pode com certeza esperar a absolvição… Infelizmente não sois só vós… há também os outros e os crimes dos outros… tendes conhecimento de um crime pavoroso… a vossa consciência não a leva a revelar o nome do culpado, a fim de que seja punido como merece?

Sugeria-me que denunciasse Sonzogne. Não digo que, sendo padre, ele fizesse isso por mal. Mas insinuada desta maneira e com esta voz neste momento, a sua proposta aumentou a minha desconfiança e o meu medo:

— Se digo o nome do autor do crime — balbuciei —, prendem-me também.

— Os homens e Deus — disse ele logo a seguir — apreciariam o vosso sacrifício e o vosso arrependimento. A lei não conhece só o castigo; conhece também o perdão. Em troca de alguns sofrimentos leves em relação à agonia da vítima teria contribuído para restabelecer a justiça, horrivelmente ofendida… Oh! Não ouve a voz do homem assassinado invocar em vão a piedade do seu assassino?

Continuou as suas exortações, escolhendo cuidadosamente as palavras e não sem se comprazer com esta escolha, para compor as frases convencionais e próprias do seu ofício. Mas eu agora não tinha outro desejo que não fosse o de me ir embora, um desejo histérico.

Disse-lhe rapidamente:

— Quanto à denúncia, prefiro pensar… Voltarei amanhã e dir-lhe-ei o que decidi. Encontrá-lo-ei aqui amanhã?

— Com certeza, a qualquer hora!

— Então — disse eu, atônita —, por agora só lhe peço que devolva este objecto.

Calei-me, e ele, depois de uma breve oração, tornou-me a perguntar se me sentia arrependida sinceramente, e ao ouvir a minha resposta afirmativa deu-me a absolvição. Persignei-me e saí do confessionário; nesse momento ele abriu a porta e vi-o na minha frente. Todos os receios que a sua voz me tinham inspirado foram confirmados em seguida pela sua pessoa. Era baixo, mas com uma cabeça grande, que uma espécie de torcicolo crônico mantinha de lado. Não tive tempo de o observar bem, tão grande era a pressa de me ir embora e tão grande era o horror que ele me inspirava. Mas entrevi uma cara entre o moreno e o amarelo, uma grande testa pálida, uns olhos vazios perdidos nas órbitas, um nariz adunco com largas narinas e uma boca grossa e informe com lábios criminosos e violáceos. Não devia ser velho… Não tinha idade. Disse-me com ar aflito, pondo as mãos sobre o peito e acenando com a cabeça:

— Mas porque não veio mais cedo, minha querida filha? Porquê? Que coisas horríveis se teriam evitado!

Desejaria responder-lhe o que pensava, que Deus não quisera que eu viesse! Mas contive-me, tirei da mala a caixa e meti-lha na mão, dizendo com sinceridade:

— Peço-lhe para agir depressa… Não lhe posso dizer como estou atormentada pela ideia de que esta pobre mulher está na prisão por minha causa.

— Hoje mesmo — respondeu-me apertando a caixa contra o peito e abanando a cabeça com ar dolorido e suplicante.

Agradeci em voz baixa e, cumprimentando-o com um movimento de cabeça, sai rapidamente da igreja. Ficou onde o deixei, junto do confessionário, com as mãos no peito e abanando a cabeça.

Quando cheguei à rua, procurei reflectir calmamente sobre o que me acabara de acontecer. Por agora, deixando de parte as minhas primeiras confusas apreensões, compreendi que do que tinha medo, em suma, era de que o padre não respeitasse o segredo da confissão; esforçava-me por aclarar por mim própria os fundamentos do meu receio. Sabia, como toda a gente, que a confissão é um sacramento e como tal inviolável. Sabia também que era quase impossível que um padre, por mais corrupto que fosse, se não sentisse culpado de uma tal violação. Mas, por outro lado, o seu conselho para denunciar Sonzogne fazia-me recear que ele tomasse a iniciativa, se eu não me adiantasse, de denunciar à polícia o autor do crime da Rua Palestro. Era sobretudo a sua voz que me fazia recear o pior. Sou mais emotiva do que reflectida e possuo, como certos animais, uma presciência instintiva do perigo. Todas as razões que me apresentava a minha inteligência para me dar segurança ficavam reduzidas a nada em presença deste pressentimento sem razão. “É bem verdade — pensava eu — que o segredo da confissão é inviolável.” Mas só um milagre pode impedir este padre de denunciar Sonzogne e os outros!

Um outro facto contribuiu para me dar a impressão de uma ameaça de desgraça iminente e misteriosa: a substituição do segundo confessor. Evidentemente que o monge francês não era o padre Élie, se bem que ele me tivesse ouvido no confessionário que tinha esse nome. Então quem era? Arrependi-me de não ter pedido noticias ao verdadeiro padre Élie. Mas ao mesmo tempo dizia que este embirrante padre me teria dito que nada sabia, reforçando assim o carácter de aparição que a silhueta do jovem religioso deixara no meu espírito. Realmente ele tinha muito de fantasma, tanto pela sua figura, tão diferente da dos outros padres, como pela maneira como apareceu na minha vida e como desapareceu. Cheguei a duvidar de que o tivesse visto alguma vez, ou, melhor, de que o tivesse visto em carne e osso, e pensei por momentos numa alucinação, quanto mais não fosse porque eu começava a encontrar-lhe uma indefinida semelhança com Cristo tal como o representam habitualmente nas imagens santas. Mas se assim era, se Cristo me tinha realmente aparecido num momento doloroso e tinha aceite a minha confissão, o facto de um padre repugnante e sórdido o ter substituído era claramente de mau agouro. Isso indicava pelo menos que num momento da maior angústia a religião me tinha abandonado. Era como se num momento de necessidade urgente eu tivesse aberto um cofre que supunha recheado de peças de ouro e aí encontrasse, em lugar delas, poeira, teias de aranha e cotão.

Entrei em casa com o pressentimento de uma desgraça que a minha confissão iria provocar e fui logo deitar-me sem jantar, convencida de que iria ser presa e esta seria a última noite que passaria em casa. Devo dizer, no entanto, que não experimentava o menor medo nem o menor desejo de fugir ao meu destino. Uma vez passado o primeiro pavor, devido a uma fraqueza nervosa comum a quase todas as mulheres, foi substituído na minha alma, não propriamente por um sentimento de resignação, mas por uma verdadeira vontade de aceitar a sorte que me ameaçava. Experimentava mesmo uma espécie de volúpia em deixar-me arrastar até bem ao fundo do que eu imaginava ser o último desespero. Tinha a impressão de me sentir de qualquer maneira protegida pelo excesso da desgraça e pensava com um certo prazer que, à parte a morte, que já não me assustava agora, coisa alguma me podia acontecer de pior.

Mas no dia seguinte foi em vão que esperei a visita, que eu previra, da polícia. Todo esse dia e o dia seguinte decorreram sem que nada acontecesse que justificasse as minhas apreensões. Durante todo este tempo não saí de casa, nem mesmo do quarto, e depressa me cansei de pensar nas consequências da minha imprudência. Voltei a pensar em Jaime e desejei tornar a vê-lo, nem que fosse só mais uma vez antes que a denúncia do padre — continuava a considerá-la inevitável — fizesse o seu efeito. No terceiro dia, à tardinha, quase sem reflectir, saltei da cama, vesti-me com cuidado e saí de casa.

Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei lá. Mas no momento de entrar pensei que não o tinha avisado e fui tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal, que até mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra pensando se não seria melhor voltar pelo mesmo caminho e esperar que fosse ele a decidir-se ver-me. Compreendia que era preciso mostrar muita cautela e muita perspicácia, particularmente neste primeiro período das nossas relações, e nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossível viver sem ele. Por outro lado parecia-me duro voltar para trás, agora que a minha confissão me deixara inquieta e que tinha necessidade de o ver, até mesmo só para me distrair das minhas preocupações. Os meus olhos caíram sobre a montra da loja em frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas; lembrei-me de repente de que lhe tinha prometido uma gravata nova para substituir a outra esfiada. Quando se está apaixonado não se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dádiva confirmava precisamente o carácter inferior e ansioso do meu sentimento por ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo, preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas — a mais bonita e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado perguntou-me se a pessoa a quem se destinava a gravata era loura ou morena. “É moreno”, respondi lentamente; reparei que disse a palavra “moreno” com um acento terno e senti-me corar à ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento.

A viúva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre. Subi os oito lanços de escada e toquei sem tomar fôlego à porta, mergulhada na sombra. A porta abriu-se quase em seguida e Jaime apareceu no limiar.

— Ah! És tu? — disse, surpreendido. Era evidente que esperava alguém.

— Posso entrar?

— Sim, sim! Por aqui!

Atravessamos um vestíbulo quase às escuras e ele fez-me entrar numa sala, que estava igualmente na penumbra porque as janelas tinham os vidros esguios como as das igrejas. Entrevi uma quantidade de móveis escuros com nácar incrustado. Ao meio havia uma mesa redonda com um licoreiro azul, de feitio fora de moda. Havia muitos tapetes e uma pele de urso branca um pouco gasta. Tudo era velho ali dentro, mas asseado, arrumado, como se estivesse conservado pelo profundo silêncio que parecia reinar na casa desde tempos imemoráveis. Sentei-me num canapé ao fundo da sala e perguntei a Jaime:

— Esperas alguém?

— Não, mas porque vieste cá?

Eram na realidade palavras pouco acolhedoras. Não parecia no entanto zangado, apenas surpreendido.

— Vim dizer-te adeus — respondi-lhe, sorrindo —, porque creio bem que é a última vez que nos vemos.

— Porquê?

— Estou convencida de que amanhã, o mais tardar, me vêm buscar para me meterem na prisão.

— Na prisão? Que diabo fizeste tu?

Percebi na sua voz e na sua cara uma alteração e compreendi que estava com medo por ele próprio. Talvez pensasse que o tinha denunciado ou comprometido de uma maneira ou de outra, revelando a alguém a sua actividade política. Sorri ainda e continuei:

— Não tenhas medo… nada disto te diz respeito… nem mesmo de longe.

— Não, não — apressou-se a dizer. — Mas não compreendo é tudo. Na prisão? Porquê?

— Fecha a porta e senta-te aqui — disse-lhe indicando um lugar ao meu lado, no canapê.

Ele foi fechar a porta e sentou-se ao pé de mim. Então, com muita calma, contei-lhe a verdadeira história da caixa de pó de arroz e a minha confissão. Ouvia-me de cabeça baixa, sem me olhar, roendo as unhas, o que nele era sintoma de estar interessado. Acabei por concluir:

— Estou certa de que este padre me fará passar um mau bocado… Que dizes?

Abanou a cabeça e respondeu-me, não olhando na minha direcção mas na dos vidros da janela:

— Ele não o deve fazer… estou mesmo certo de que o não fará… Não basta que um padre seja feio…

— Mas se tu o tivesses visto! — interrompi.

— … que seja monstruoso, se quiseres, para que faça uma coisa semelhante. Não é menos verdade que tudo pode acontecer — acrescentou vivamente com um sorriso.

— Então achas que não devo ter medo?

— Acho… até mesmo porque nada podes fazer… isso não depende de ti!

— É bom de dizer! Tem-se medo porque se tem medo… é mais forte do que nós!

Teve de repente um gesto afectuoso, um dos seus gestos. Pôs-me uma mão no pescoço, sacudiu-me rindo e dizendo:

— Tu não tens medo, pois não?

— Mas se te disse que tenho!

— Tu não tens medo!És uma mulher corajosa.

— Asseguro-te que tenho um medo horrível; é tão verdade que me deitei e só me levantei dois dias depois.

— Sim… mas em seguida vieste ter comigo e contaste-me a coisa com a maior tranquilidade… Tu não sabes o que é ter medo!

— E que posso eu fazer? — perguntei, sorrindo sem querer. — Não posso começar a gritar de medo!

— Tu não tens medo!

Houve um momento de silêncio. Depois perguntou-me com uma entoação particular que me surpreendeu:

— E o teu amigo… chamemos-lhe assim, esse Sonzogne, que tipo tem?

— É um tipo como há tantos — disse vagamente. Nesse momento nada encontrava para dizer de Sonzogne.

— Mas como é? Descreve-mo!

— Porquê? Queres mandá-lo prender? — disse-lhe rindo. Lembra-te de que me engavetavam também a mim. — Depois acrescentei: — É alourado… baixo… largo de ombros… com uma cara pálida, olhos azuis… nada de especial, em suma. A única coisa que ele tem de diferente é ser muito forte.

— Muito forte?

— Quando se vê não se acredita. Mas se se lhe toca num braço, parece de ferro.

Como via que me escutava com interesse, contei-lhe o incidente passado com Gino e Sonzogne. Não fez comentários, mas quando acabei perguntou-me:

— E julgas que Sonzogne tenha premeditado o crime, quero dizer, que o tenha preparado e executado a frio?

— De maneira nenhuma! — disse-lhe. — Ele nunca premedita coisa alguma. Um momento antes de atirar Gino ao chão provavelmente nem pensava em fazê-lo. Deve ter acontecido o mesmo com o ourives.

— Então porque o fez?

— Sei lá… porque é mais forte do que ele. Como um tigre… está muito tranquilo e de repente atira-nos um pontapé.

Contei-lhe toda a história das minhas relações com Sonzogne, a maneira como me batera e como tinha tido com certeza a ideia de me matar quando estávamos às escuras. E concluí:

— Nunca pensa nisso… mas num certo momento é dominado por qualquer coisa mais forte do que a sua vontade e então é melhor não estar ao pé dele. Tenho a certeza de que foi procurar o ourives para lhe vender a caixa… O outro insultou-o e ele matou-o.

— Em suma, é uma espécie de animal.

— Chama-lhe como quiseres. Isso deve ser — disse eu, procurando pôr a claro para mim própria o sentimento que me inspirava o furor homicida de Sonzogne — um impulso semelhante ao que me leva a amar-te. Porque gosto eu de ti? Só Deus o sabe… Porque sente Sonzogne em certos momentos o impulso de matar? pela mesma razão. Só Deus o sabe. Parece-me que neste caso não há qualquer explicação.

Depois de reflectir, levantou a cabeça e perguntou-me:

— E eu, que impulso julgas que me leva para ti? Julgas que sinto um impulso amoroso?

Tive um medo horrível de o ouvir dizer que não me amava. Tapei-lhe a boca com a minha mão e supliquei-lhe:

— Por piedade… não me digas o que sentes por mim!

— Mas porquê?

— Porque não me interessa saber. Não sei o que sentes por mim e não o quero saber. Chega-me saber o que eu sinto por ti.

Abanou a cabeça e disse:

— Fazes mal em gostar de mim… devias amar um homem como Sonzogne.

Olhei-o sinceramente admirada.

— Mas que dizes tu? Um criminoso?!

— Pode ser que seja um criminoso… mas sente os impulsos que tu dizes… assim como tem impulsos para matar, tenho a certeza de que terá um impulso para amar, assim, com simplicidade, sem complicações… eu, pelo contrário…

Não o deixei acabar e protestei:

— Mas tu não te podes comparar com Sonzogne. Tu és aquilo que és… o outro é um criminoso, um monstro. E depois não deve ser verdade que ele possa sentir impulsos amorosos. Para ele é simplesmente uma satisfação dos sentidos: eu ou outra, é a mesma coisa.

Não parecia convencido, mas nada disse. Aproveitei este silêncio, e, estendendo a mão, enfiei os dedos na manga do seu casaco e procurei fazê-los subir ao longo do seu braço.

— Jaiminho — disse-lhe.

— Porque me chamas Jaiminho?

— É o diminutivo de Jaime. Não tenho o direito?

— Sim… sim… tens o direito… Somente é o diminutivo que usam em família… mais nada.

— É a tua mãe quem te chama assim? — perguntei largando-lhe o pulso e introduzindo os dedos entre a gravata e a camisa e passando-os sobre o peito nu.

— Sim, minha mãe chama-me Jaiminho — confirmou com certa impaciência.

E passado um momento, com um acento meio sarcástico meio furioso :

— De resto, não é o único caso em que tu e minha mãe usam as mesmas expressões. No fundo vocês têm a mesma opinião sobre quase todas as coisas.

— Por exemplo? — perguntei.

Estava perturbada; tinha desabotoado a camisa e esforçava-me por alcançar o seu ombro magro e grácil de rapazinho.

— Por exemplo, quando te contei que me ocupava de política tu gritaste logo com voz apavorada: Mas é proibido! É perigoso! Pois bem! Minha mãe teria dito exactamente a mesma coisa, com a mesma voz.

A ideia de que me parecia com a mãe dele envaidecia-me, primeiro por ser sua mãe e depois porque era uma senhora.

— Que pateta! — disse-lhe com ternura. — É porque ela gosta tanto de ti como eu. É bem verdade que é perigoso ocupar-se de política; um rapaz que eu conheço foi preso e há dois anos que está detido. E para que? Eles são mais fortes, e mal vocês se mexem metem-nos na prisão. Parece-me que se podia muito bem viver sem política.

— A minha mãe! A minha mãe! — gritou, rejubilante e sarcástico. — Exactamente o que diz minha mãe !

— Não sei o que diz a tua mãe — respondi —, mas é bem certo que tudo o que ela te diz é para teu bem. Devias deixar a política. Tu não és um político profissional… és um estudante… os estudantes só tem que estudar.

— Estudar, doutorar-se e arranjar uma posição — murmurou como se falasse consigo.

Não lhe respondi, mas aproximei a minha cara da sua e ofereci-lhe os lábios. Beijamo-nos, depois separamo-nos; parecia zangado por me ter beijado e olhava-me com ar hostil e mortificado. Julguei tê-lo magoado por interromper com o meu beijo a sua conversa sobre política e acrescentei depressa:

— De resto, faz o que quiseres, nada tenho com a tua vida… Se quiseres, visto que estou aqui, podes dar-me o pacote… escondê-lo-ei como combinamos.

— Não, não — respondeu. — Este não é o momento para favores destes! Dada a tua amizade com Astárito… se ele os encontra…

— Porquê? Astárito é assim tão perigoso?

— É dos piores — respondeu-me com gravidade.

Senti não sei que tentação maliciosa de o arreliar e de lhe espicaçar o amor-próprio, mas afectuosamente, sem maldade.

— No fundo — observei com doçura —, nunca tiveste a intenção de me confiar esses pacotes!

— Então porque te falei neles?

— Ouve, não te zangues, mas penso que me falaste neles por falar, para te tornares interessante, para me mostrares que fazias realmente coisas perigosas e proibidas.

Zangou-se e vi que tinha tocado na sua corda sensível.

— Que disparate! — gritou. — És uma parva!

Depois, subitamente calmo, perguntou-me com ar desconfiado :

— Porquê? Que te leva a pensar isso?

— Não sei — respondi sorrindo. — Toda a tua maneira de agir… Tu talvez não dês por isso, mas não dás a impressão de fazer essas coisas a sério.

Teve um gesto cômico que parecia dirigido contra ele:

— São, pelo contrário, coisas muito sérias! — disse-me. Levantou-se, estendeu os braços magros, recitou com voz de falsete, num tom enfático: “Armas! Sim, armas! E só eu cairei!” E continuou a agitar os braços e as pernas como um fantoche. Estava cômico.

— Que queres dizer? — perguntei.

— Nada — respondeu. — É um verso.

De uma maneira bizarra pareceu passar da excitação a um brusco abatimento; tornou-se sombrio e meditativo, tornou a sentar-se e disse-me num tom sincero:

— Pelo contrário, olha, faço as coisas tão a sério que espero com toda a certeza ser preso… Então toda a gente verá bem se fiz as coisas a sério!

Não respondi; acariciei-lhe o rosto, tomei-lho entre as mãos e disse-lhe:

— Que lindos olhos tens!

Era verdade; os seus olhos eram realmente belos, grandes e doces, com uma expressão intensa e ingênua. De novo se perturbou e o queixo tremeu-lhe.

— Porque não vamos para o teu quarto? — murmurei.

— Nem pensar nisso. É contíguo ao quarto da viúva, que fica lá todo o dia de porta aberta para vigiar o corredor.

— Então vamos a minha casa.

— É muito tarde… moras longe… Espero uns amigos de um momento para o outro.

— Então aqui.

— Tu és doida!

— Confessa antes que tens medo — insisti. — Não tens medo de fazer propaganda política, mas tens medo de ser surpreendido nesta sala com a mulher que te ama. Que pode acontecer-te no fim de contas? Que a viúva te despeça? Que sejas obrigado a procurar outro quarto?

Sabia que excitando o seu amor-próprio podia obter-se tudo dele. Com efeito, pareceu convencido. Devia sentir um desejo pelo menos tão forte como o meu.

— Não passas de uma louca! — repetiu. — Talvez seja mais aborrecido ser despedido daqui do que ser preso… Aliás onde nos vamos encaixar?

— No chão — disse-lhe docemente com uma intensa ternura. — Vem… eu mostro-te como se faz.

Parecia tão perturbado que não tinha já forças para falar. Levantei-me do canapé e, sem pressa, estendi-me no chão. O mosaico estava coberto por muitos tapetes; ao meio do quarto havia a mesa com o licoreiro. Estendi-me sobre o tapete, a cabeça e o busto debaixo da mesa, depois puxei Jaime pelo braço e obriguei-o, contra a sua vontade, a estender-se sobre mim.

Deitei a cabeça para trás e fechei os olhos: o cheiro do pó e do velho pêlo do tapete pareceu-me embriagador e bom como se estivesse deitada num prado na Primavera e como se este cheiro fosse das flores, das ervas, e não o da lã suja. Jaime estava em cima da mim, e o seu peso fazia-me sentir a deliciosa dureza do chão; estava contente por não ser ele a senti-la e que o meu corpo lhe servisse de leito.

Depois beijou-me no pescoço, nas faces, e senti uma grande alegria com isso porque ele nunca o fazia. Abri os olhos, tinha a cara virada de lado, a face contra a lã áspera do tapete; vi para lá do tapete uma vasta extensão de mosaico encerado, depois, lá ao fundo, a parte inferior dos batentes da porta. Suspirei profundamente e tornei a fechar os olhos. O primeiro a levantar-se foi Jaime; eu fiquei um grande bocado como ele me deixara, deitada de costas, um braço em cima da cara, as saias levantadas, uma perna para a direita, outra para a esquerda. Sentia-me feliz e como que aniquilada pela minha felicidade; sentia que poderia ficar muito tempo assim, com esta agradável dureza do chão debaixo das costas, este cheiro a tapete e a pó nas narinas. Talvez mesmo tivesse dormido um bocadinho, um sono extasiado e leve; julguei sonhar que estava realmente num prado florido, estendida na erva, e que não era a mesa, mas um céu inundado de sol, que tinha sobre a minha cabeça. Jaime julgou com certeza que me sentia mal, porque de repente percebi que me sacudia e me dizia em voz baixa:

— Mas que tens? Que fazes? Depressa! Levanta-te! Tirei o braço da cara, saí lentamente de debaixo da mesa e pus-me de pé! Estava feliz e sorri. Jaime, encostado à parede, curvado, ainda ofegante, olhava-me em silêncio com uma expressão longínqua e hostil.

— Nunca mais te quero ver! — acabou por dizer. Ao mesmo tempo o seu corpo curvado deu um esticão, como um fantoche a quem tivessem partido as molas.

Respondi sorrindo :

— Porquê? Amamo-nos… ver-nos-emos!

Aproximei-me e fiz-lhe uma festa na cara. Mas virou o rosto, pálido e perturbado, repetindo:

— Nunca mais te quero ver!

Sabia que esta hostilidade era sobretudo devida ao desgosto de ter cedido. Nunca se resignava a amar-me sem muita resistência e muito remorso, como um homem que se resolve a fazer uma coisa que não quer e sabe que não deve fazer. Mas estava certa de que o seu mau humor não duraria muito tempo e que o desejo que sentia por mim, por muito que o combatesse e o detestasse, seria mais forte, por fim, do que a sua estranha aspiração à castidade. Não liguei importância às suas palavras. Lembrando-me da gravata que acabara de lhe comprar, aproximei-me do móvel onde deixara a mala e as luvas e disse-lhe:

— Vá, não estejas zangado comigo… não voltarei aqui… Estás contente?

Continuou calado. Ao mesmo tempo a porta abriu-se e, uma velha criada de quarto mandou entrar dois homens. O primeiro disse em voz baixa mas grossa:

— Viva, Jaime.

Compreendi que estes deviam ser os camaradas do partido e olhei-os com curiosidade. O que falara era um autêntico colosso; mais alto que Jaime, de ombros largos e com aspecto de boxeur profissional. Era louro, de olhos azul-esverdeados, nariz adunco, boca vermelha e informe. Mas a sua cara tinha uma expressão franca que me agradou, com uma simpática mistura de timidez e de simplicidade. Se bem que estivéssemos no Inverno, não trazia sobretudo e apenas usava debaixo do casaco uma grossa camisola branca de gola alta, de acordo com o seu aspecto desportivo. Admiraram-me as suas mãos vermelhas e os fortes pulsos que saíam das mangas. Devia ser extremamente novo, talvez tivesse a mesma idade de Jaime. O segundo parecia, pelo contrário, um quarentão, e em vez de ter ar de trabalhador ou de camponês parecia um homem da burguesia. Não era alto e parecia minúsculo ao lado do seu camarada. Era um homenzinho escuro, com a cara sumida debaixo de uns grossos óculos. Tinha um nariz largo, e debaixo desse nariz uma boca que ia de orelha a orelha. As faces magras, escurecidas pela barba, o colarinho esfiado, o fato deformado e com nódoas, dentro do qual o seu pequeno corpo nadava, tudo nele tinha um ar de negligência agressiva e de miséria. Para dizer a verdade o aspecto destes dois homens espantava-me, porque Jaime andava sempre vestido com uma certa elegância, sem requinte, aliás, e traía, por muitos indícios, uma classe diferente da deles. Se não tivesse ouvido esta gente dar os bons-dias a Jaime e ele corresponder ao cumprimento, nunca teria imaginado que pudessem ser amigos. Instintivamente senti logo simpatia pelo grande e antipatia pelo pequeno. O grande perguntou com um sorriso aborrecido:

— Viemos talvez muito cedo?

— Não, não! — respondeu Jaime.

Parecia aturdido e não se recompunha facilmente.

— Vocês foram pontuais.

— A pontualidade é a virtude dos reis — disse-lhe o baixo, esfregando as mãos.

E bruscamente, de uma maneira imprevista, como se esta frase fosse extremamente cômica, desatou a rir. Depois, com a mesma rapidez desagradável, tornou-se sério outra vez e eu perguntava a mim própria se ele de facto rira ou não.

— Adriana — disse Jaime com esforço —, apresento-te dois amigos meus: Túlio e Tomás.

Reparei que não pronunciou os apelidos e supus não serem os seus verdadeiros nomes. Estendi-lhes a mão, sorrindo. O grande deu-me um aperto de mão que me adormeceu os dedos, o pequeno humedeceu-mos de suor com a sua gorda manápula. O mais baixo disse-me: “Encantado!”, com uma ênfase que me pareceu cômica. O alto disse: “Muito prazer!” com simplicidade e, pareceu-me também, com simpatia. Notei que a sua voz tinha um ligeiro sotaque.

Olhamo-nos um momento em silêncio.

— Se queres, Jaime, se tens que fazer — disse o grande —, podemo-nos ir embora, voltaremos amanhã.

Vi Jaime estremecer e olhá-lo; compreendi que lhes ia dizer que ficassem e convidar-me a sair. Agora conhecia-o o suficiente para saber que a sua conduta não podia ser outra. Lembrei-me de que me tinha entregue a ele havia poucos minutos; tinha ainda no pescoço a sensação dos seus lábios ao beijarem-me; na carne, a das suas mãos, que me tinham abraçado. O que se revoltou em mim não foi a alma, sempre pronta a ceder e a resignar-se; foi o meu corpo, indignado por ver tratar assim a sua beleza e a sua dádiva. Dei um passo em frente e disse com violência:

— Sim, é melhor que se vão embora e que voltem amanhã… Tenho ainda muitas coisas a dizer a Jaime.

O meu amante observou-me com ar desagradavelmente surpreendido:

— Mas eu preciso de lhes falar.

— Falar-lhes-ás amanhã.

— Bem! — disse Tomás com ar bonacheirão. — Decidam-se. Se querem que fiquemos, digam-no; se querem que nos vamos embora…

— Por nós é o que nos apetece fazer! — acrescentou Túlio com o mesmo riso desagradável.

Jaime ainda hesitou. De novo o meu corpo, mesmo contra vontade, teve um impulso desagradável.

— Ouçam — disse levantando a voz. — Apenas há alguns minutos Jaime e eu possuímo-nos aqui, no chão, sobre este tapete… Vocês em seu lugar, que fariam? Mandavam-me embora?

Tive a impressão de que Jaime corava. De qualquer maneira perdera a segurança, voltou-nos as costas e aproximou-se da janela. Tomás olhou-me de soslaio, depois disse a sorrir :

— Compreendo. Nós retiramo-nos. Até à vista, Jaime; amanhã à mesma hora.

A Túlio, pelo contrário, as minhas palavras pareceram tê-lo perturbado. Fixou-me de boca aberta e os olhos franzidos. Com certeza nunca ouvira uma mulher falar com esta franqueza, e mil pensamentos sujos devem ter-lhe agitado o espírito. Mas o alto chamou-o da porta:

— Túlio… Vamos !

Então, sem tirar da minha pessoa os olhos espantados, recuou até à porta e saiu.

Esperei que desaparecessem para me aproximar de Jaime, que ficara junto da janela, de costas voltadas, e passar-lhe um braço à roda do pescoço:

— Aposto que neste momento não me podes ver! Voltou-se lentamente e olhou-me. Havia cólera no seu rosto; mas ao olhar o meu, que devia ter uma expressão doce, cheia de amor — até mesmo inocente, à sua maneira —, o seu olhar mudou; perguntou-me num tom resignado, quase triste :

— Agora estás contente? Tens o que querias.

— Sim, estou contente! — disse-lhe, beijando-o com força.

Deixou-se beijar, depois respondeu:

— Quais são as coisas que tens para me dizer?

— Nada — respondi. — Tenho desejos de ficar contigo esta tarde.

— Mas eu — disse —, daqui a pouco vou jantar. Janto cá com a viúva Medolaghi.

— Bem! Convida-me para jantar.

Olhou-me e o meu à-vontade fê-lo sorrir, mas involuntariamente.

— Está bem — disse com condescendência. — Vou avisá-la… mas como queres que te apresente?

— Como quiseres… como uma parente.

— Não… vou apresentar-te como minha noiva… está bem?

Não ousei mostrar-lhe até que ponto a sua proposta me dava prazer. Afectei um ar indiferente e respondi:

— Pelo que me diz respeito… noiva ou outra coisa, tanto faz… contanto que fiquemos juntos.

— Espera, volto já.

Saiu. Fui a um canto da sala, arranjei-me, ajustei rapidamente a combinação, toda torcida pelo amor e pela chegada inopinada dos amigos de Jaime. Num espelho colocado na minha frente vi a minha perna longa e perfeita calçada de seda e fez-me um curioso efeito no meio de todos estes velhos móveis, com ar silencioso e fechado. Lembrei-me do dia em que estivera com Gino na casa da patroa dele e de onde trouxera a caixa de pó de arroz, e não pude deixar de comparar esse momento da minha vida, agora tão longínquo, com o instante presente. Naquela altura experimentara uma impressão de vazio e de amargura e o desejo de me vingar, senão de Gino, pelo menos do mundo que por intermédio de Gino tão cruelmente me ofendera. Agora, pelo contrário, sentia-me contente, livre, leve. Compreendi mais uma vez que amava verdadeiramente Jaime e que pouco me importava não ser amada por ele.

Sacudi o vestido, aproximei-me do espelho e arranjei o cabelo. A porta abriu-se nas minhas costas e Jaime entrou.

Esperava que me abraçasse enquanto me olhava ao espelho. Mas foi sentar-se no canapé, no fundo da sala, acendeu um cigarro e disse:

— Pronto, já está. Vão pôr mais um talher. Daqui a pouco vamos para a mesa.

Afastei-me do espelho e vim sentar-me ao seu lado, enfiei o meu braço no dele e apertei-o contra mim.

— Estes dois homens — disse — são amigos políticos, não são?

— São.

— Não devem ser muito ricos.

— Porquê?

— A julgar pela maneira como estão enfarpelados.

— Tomás é filho de um dos nossos caseiros — disse-me. O outro é um professor.

— Não simpatizo com ele.

— Com quem?

— Com o professor. É porco. Olhou-me de uma tal maneira quando eu disse que acabara de ter estado contigo…

— Quer dizer que lhe agradaste.

Calamo-nos durante algum tempo. Depois eu disse:

— Tens vergonha de me apresentar como tua noiva. Se queres vou-me embora.

Sabia que era a única maneira de lhe arrancar um gesto afectuoso: picar o seu amor-próprio, acusando-o de se envergonhar de mim. Com efeito, passou-me logo o braço em torno da cintura e disse-me:

— Fui eu quem teve a ideia: porque havia de me envergonhar de ti?

— Não sei… Vejo que estás mal disposto.

— Não estou mal disposto; estou aturdido — respondeu-me num tom sério. — Foi por nos termos amado. Deixa recompor-me.

Reparei que ainda estava muito pálido e parecia fumar com aborrecimento.

— Tens razão — disse-lhe. — Desculpa. Mas tu és sempre tão frio, tão distante, que me fazes perder a cabeça… Se não fosses assim, há pouco não tinha insistido para ficar.

Apagou o cigarro e disse-me:

— Não é verdade que eu seja frio e distante.

— E no entanto…

— Agradas-me muito — continuou, olhando-me com atenção. — E, com efeito, há um instante não te resisti como teria desejado.

Esta frase agradou-me e baixei os olhos sem pronunciar palavra. Ele acrescentou:

— Contudo, suponho que no fundo tens razão… não se pode chamar amor a isto.

Apertou-se-me o coração e não pude deixar de murmurar:

— Que é para ti o amor?

— Se eu te amasse — respondeu-me —, há pouco não teria desejado que te fosses embora… e depois não me teria zangado quando tu decidiste ficar.

— Zangaste-te?

— Sim… e agora conversaria contigo, estaria alegre, desenvolto e brincalhão. Estaria a acariciar-te, a dizer-te madrigais, a fazer projectos para o futuro… beijar-te-ia. Não é isto o amor?

— Sim — disse eu em voz baixa. — Em todo o caso, são esses os efeitos do amor.

Não falou durante algum tempo, depois disse sem nenhuma vaidade, com uma seca humildade:

— Eu faço tudo da mesma maneira, sem nada sentir no coração… sem amar coisa nenhuma, sabendo somente pelo espírito como se fazem as coisas. Por vezes mesmo faço-as a frio, exteriormente. Sou assim e creio que não posso mudar.

Fiz um grande esforço sobre mim e respondi-lhe:

— Amo-te como és; não te atormentes!

Depois beijei-o com grande amor. Quase no mesmo instante, a porta abriu-se. Uma velha criada veio dizer que o jantar estava servido.

Saímos da sala e passamos por um corredor para ir para a casa de jantar. Lembro-me bem de todos os pormenores desta casa e das pessoas, porque naquele momento estava sensível como uma chapa fotográfica. Não tinha tanto a impressão de agir como a de me ver agir com os olhos tristes e bem abertos. Tal é talvez o efeito da revolta que nos inspira uma realidade na qual sofremos e que desejaríamos diferente.

A viúva Medolaghi pareceu-me parecida, não sei porquê, com o seu salão de ébano com incrustações de nácar. Era uma mulher gorda, de estatura imponente, com peito volumoso e ancas maciças. Toda vestida de seda preta, com um largo rosto desfeito, de uma palidez nacarada, precisamente enquadrada por cabelos pretos que pareciam pintados, com fundas olheiras em torno dos olhos. Ficou de pé em frente de uma terrina decorada com flores e servia a sopa com uma espécie de aborrecimento. O candeeiro de suspensão descia sobre a mesa, iluminava-lhe o peito como um grosso embrulho preto e luzidio e deixava-lhe a cara na sombra. Nesta sombra os seus olhos rodeados de rugas pretas pareciam esburacar a cara branca como uma mascarilha de Carnaval. A mesa não era grande e tinha quatro pratos; um par de cada lado. A filha da senhora estava já sentada no seu lugar e não se levantou quando nos viu entrar.

— A menina senta-se ali — disse a viúva Medolaghi. — Como se chama a menina?

— Adriana.

— Tem graça, como a minha filha! — disse negligentemente. — Temos duas Adrianas!

Falava com ar distante sem nos olhar; era claro que a minha presença nenhum prazer lhe dava. Como já disse, pintava-me pouco e não oxigenava os cabelos, em suma, não traía o meu “trabalho” por qualquer sinal exterior. Mas que eu era rapariga do povo, simples e sem educação, isso via-se com certeza e eu nenhum interesse tinha em o dissimular.

“Que estranha gente traz para a minha casa!”, devia pensar a Sr.a Medolaghi. “Uma rapariga do povo!” Sentei-me e observei a rapariga que tinha o meu nome. Era por metade do meu tamanho, como da minha cabeça, como do meu peito… por metade em tudo. Magra, pouco cabelo, uma cara oval e fina com grandes olhos mortiços, uma expressão estupefacta. Olhei-a e vi-a baixar os olhos. Pensei que fosse tímida e disse para quebrar o gelo:

— Sabe que acho curioso que outra pessoa tão diferente de mim tenha o meu nome?

Tinha dito qualquer coisa, só para meter conversa e a minha frase era parva. Mas, com grande surpresa, não recebi resposta. A rapariga fixou em mim os seus olhos esbugalhados e depois, sem dizer nada, curvou a cabeça sobre o prato e começou a comer. Então bruscamente fez-se luz no meu espírito: ela não era tímida, mas estava aterrada. E a causa do seu terror era eu. Estava aterrada com a minha beleza, que brilhava no ar parado e poeirento da sua casa como uma rosa numa teia de aranha, pela minha exuberância impossível de passar despercebida mesmo quando eu estava calada e quieta, e sobretudo pela minha origem popular. Os ricos não gostam dos pobres, mas não os temem; sabem mantê-los a distância com orgulho e suficiência. Mas o pobre ao qual a sua origem ou a sua educação dão uma alma de rico fica literalmente aterrado por ver o pobre em carne e osso, como um homem predisposto a uma doença em frente de alguém que está atacado desse mesmo mal. Ricas, as duas Medolaghi não eram com certeza, porque senão não alugariam quartos. Como se sentiam pobres sem o admitirem, a minha presença de pobre desprovida de qualquer artifício parecia-lhes um insulto e um perigo. Deus sabe as ideias que passaram pela cabeça da rapariga quando lhe falei: “Olha aquela a dirigir-me a palavra; quer tornar-se minha amiga e nunca mais me verei livre dela!” Com um simples olhar compreendi o que se passou e decidi não abrir mais a boca até ao fim do jantar.

Mas a mãe, que tinha mais à-vontade e talvez mais curiosidade, não quis renunciar à conversa:

— Não sabia que estava noivo — disse ela a Jaime. — Há quanto tempo?

Tinha uma voz afectada e parecia falar por detrás do seu enorme peito como se estivesse ao abrigo de uma trincheira.

— Há um mês — disse Jaime.

Era verdade; não remontava a mais de um mês o nosso conhecimento.

— A menina é romana?

— Ultra-romana. Sete gerações.

— E quando se casam?

— Depressa. Logo que a casa para onde vamos morar esteja livre.

— Ah! Já têm casa?

— Sim… uma casinha com jardim… um pátio… muito bonita.

O que ele descrevia com aquele tom sardônico era a moradia que eu lhe havia mostrado, ao pé da minha casa, na avenida.

— Se esperarmos por aquela casa — disse eu com esforço —, receio nunca mais casarmos!

— Ora, histórias! — disse Jaime, que parecia recomposto, até mesmo com o rosto mais corado. — Sabes bem que estará livre no dia marcado.

Não gosto de intrujices. Por isso nada mais disse. A criada mudou os pratos.

— As moradias têm muitas comodidades, Sr. Diodatti — disse a Sr.a Medolaghi —, mas não são práticas; exigem muito criados.

— Porquê? — perguntou Jaime. — Não será necessário; a Adriana será a cozinheira, a criada de quarto, a governanta… Não é, Adriana?

A Sr.a Medolaghi mediu-me com o olhar e declarou:

— Para dizer a verdade uma senhora tem outras coisas para fazer que não seja ocupar-se da cozinha, limpar os quartos e fazer as camas… mas se a menina Adriana está habituada a fazê-lo… então nesse caso…

Não acabou a frase e voltou os olhos para o prato que a criada lhe apresentava.

— Não sabíamos que vinha; senão teríamos acrescentado dois outros ovos.

Estava ofendida com Jaime e com a Sr.a Medolaghi. Quase desejava responder-lhe: “Não, o que eu estou habituada é a ser prostituta.” Jaime, radiante, servia-se e servia-me generosamente de vinho. (Os olhos da Sr.a Medolaghi seguiam a garrafa com inquietação.) Depois continuou:

— Mas a Adriana não é uma senhora. Ela nunca será uma senhora. A Adriana fez sempre as camas e arrumou os quartos. A Adriana é uma rapariga do povo.

A Sr.a Medolaghi olhou-me como se me visse pela primeira vez, depois confirmou com uma delicadeza injuriosa:

— Foi justamente o que eu disse… se ela está habituada…

A filha inclinou a cabeça sobre o prato.

— Sim — continuou Jaime. — Ela está habituada e não serei eu com certeza que lhe farei perder hábitos tão aproveitáveis. Adriana é filha de uma camiseira; e ela também é camiseira… não é, Adriana?

Estendeu o braço sobre a mesa, agarrou-me a mão e virou-ma de costas para cima:

— Ela pinta as unhas, é verdade, mas a sua mão é a de uma operária; grande, forte e simples. Como os cabelos… ela ondula-os, mas de facto são rebeldes e duros.

Largou-me a mão e puxou-me os cabelos, como se faz à crina dos animais.

— Em suma, Adriana é em tudo e por tudo uma digna representante do nosso bom povo vigoroso e são.

Sentia-se na sua voz um desafio sarcástico de que ninguém desconfiou. A filha olhava através da minha pessoa como se eu fosse transparente e ela quisesse ver um objecto que estivesse atrás de mim. A mãe ordenou à criada que mudasse os pratos e voltou-se para Jaime perguntando-lhe de uma maneira completamente inesperada:

— Então, Sr. Diodatti, chegou a ver a tal comédia? Esta maneira tão desastrada de mudar de conversa quase me deu vontade de rir. Jaime não pareceu desconcertado e declarou:

— Nem me fale nisso, uma verdadeira idiotice!

— Nós vamos amanhã. Diz-se que os actores são excelentes.

Jaime respondeu que, depois de tudo bem considerado, os actores não eram tão bons como os jornais diziam. A senhora admirou-se de que os jornais mentissem. O meu amante respondeu, com calma, que os jornais eram uma pura e simples mentira da primeira à última linha. A partir desse momento a conversa decorreu sempre sobre esses assuntos. Logo que um destes temas convencionais era abordado, a Sr.a Medolaghi encetava outro com uma precipitação mal dissimulada. Jaime, que parecia divertir-se, entrava no jogo e dava a réplica sem se fazer rogado. Falavam de actores, depois da vida nocturna de Roma, de cafés, de cinemas, de teatros, de hotéis e de outras coisas parecidas. Pareciam dois jogadores de pingue-pongue atirando constantemente a mesma bola e fazendo por não a deixar cair. Mas enquanto Jaime o fazia pelo amor à comédia, tão desenvolvida nele, o que levava a Sr.a Medolaghi a fazê-lo era o medo e o aborrecimento que eu lhe inspirava, eu e tudo o que se me pudesse ligar. Esta conversa de pura formalidade, só convencional, parecia significar: “É a minha maneira de lhe dizer que é indecente casar com uma rapariga do povo e também indecente trazê-la a casa da Sr.a Medolaghi, viúva de um alto funcionário.” A filha não piava. Percebia-se que estava aterrada e desejava claramente que a refeição terminasse e que eu me fosse embora o mais depressa possível. Durante algum tempo diverti-me a seguir a conversa. Depois fatiguei-me desse jogo e deixei a tristeza que me enchia o coração tomar inteiramente conta de mim. Compreendia com amarga clareza que Jaime não me tinha amor, e apesar de tudo sofria com isso. Depois reparei que ele se servira das minhas confidências para inventar a comédia do nosso noivado; não chegava a compreender se o fizera na intenção de troçar de mim ou delas. Talvez de mim e delas ao mesmo tempo, mas seguramente dele próprio, como se no fundo do seu coração acalentasse, como eu, o vivo desejo de uma vida normal e decente que, por motivos muito diferentes dos meus, pensava nunca poder vir a ter. Eu compreendia perfeitamente que os elogios que me fizera como filha do povo nada tinham de envaidecedor, quer para mim, quer para o povo; que a sua intenção fora tornar-se desagradável às duas mulheres e nada mais. Estas observações faziam-me reconhecer a verdade do que ele dissera pouco antes: que o seu coração não era susceptível de amar. Nunca como então me foi dado compreender que qualquer coisa com amor é tudo e nada sem amor é qualquer coisa. O amor ou existe ou não. Se existe, ama-se não somente alguém, mas toda a gente; era o que me acontecia. Se não existe, nada se ama, nem ninguém; era o seu caso. E a ausência de amor conduz fatalmente à incapacidade e à impotência.

A mesa fora entretanto levantada. Em cima da toalha cheia de migalhas, no clarão arredondado da luz que caía do candeeiro, havia quatro pequenas chávenas de café, um cinzeiro de barro em forma de tulipa e uma grande mão branca, cheia de manchas escuras, com os dedos carregados de grossos anéis fora de moda, segurando um cigarro aceso: a mão da Sr.a Medolaghi. De repente senti uma grande intolerância tomar conta de mim e levantei-me:

— Tenho muita pena, Jaime — disse, exagerando propositadamente a minha pronúncia popular —, mas tenho que fazer… Preciso de me retirar…

Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se também. Eu larguei umas “boas-noites” sonoras, fiz uma leve reverência, à qual a Sr.a Medolaghi respondeu com altivez distante e que a filha ignorou por completo, e saí. Na antecâmara disse a Jaime:

— Palpita-me que logo à noite a Sr.a Medolaghi vai pedir-te que procures quarto noutro sitio…

Ele encolheu os ombros:

— Não me parece — respondeu. — Eu sou dos que pagam bem e com pontualidade.

— Vou-me embora — disse eu. — Este jantar pôs-me triste.

— Porquê?

— Porque me convenci, por fim, de que tu és realmente incapaz de amar.

Disse isto com tristeza, sem olhar para ele. Depois ergui os olhos e tive a impressão de que ele próprio estava mortificado. Talvez fosse apenas efeito da pouca luz do vestíbulo sombrio, mas senti-me possuída por um grande remorso.

— Ficaste aborrecido? — perguntei.

— Não — respondeu ele. — No fundo o que tu disseste é verdade.

A minha alma inundou-se de afeição. Beijei-o impetuosamente e disse-lhe:

— Não é verdade… disse-to para te arreliar… e depois isso não impede que te ame… Olha… Trouxe-te esta gravata.

Abri a mala, tirei a gravata e estendi-lha. Olhou-a e perguntou-me:

— Roubaste-a?

Esta brincadeira nele valia talvez mais do que um caloroso agradecimento: mas só o compreendi mais tarde. Naquele momento senti o coração apertado. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e balbuciei:

— Não, comprei-a… na loja lá em baixo.

Reparou na minha humilhação e beijou-me dizendo:

— Pateta! Estava a brincar. De resto dar-me-ia o mesmo prazer se a tivesses roubado. Talvez até ainda mais…

— Espera, que eu ponho-ta! — disse-lhe, um pouco mais consolada.

Levantou o queixo, tirei-lhe a gravata velha, pus-lhe a nova e dei-lhe o nó.

— Esta gravata velha e toda esfiada vou levá-la! — disse-lhe. — Não a deves pôr mais.

Na realidade o que eu queria era uma recordação sua, qualquer coisa que ele tivesse usado.

— Então voltaremos a ver-nos em breve? — disse.

— Quando?

— Amanhã depois de jantar.

— Está bem!

Agarrei-lhe na mão e fiz menção de lha beijar. Ele baixou o braço, mas não pôde impedir os meus lábios de aflorarem os seus dedos. Rapidamente, sem me voltar, desci a escada.

7

Depois desse dia continuei a minha vida habitual. Amava realmente Jaime e mais de uma vez senti desejo de abandonar uma vida tão oposta ao verdadeiro amor.

Mas o amor não mudara a minha situação. Estava sempre na mesma, quer dizer, sem dinheiro e na impossibilidade de o ganhar de outra maneira. Nada queria pedir a Jaime, que de resto estava limitado à pequena pensão que a família lhe enviava. Devo mesmo dizer que eu sentia continuamente o desejo de pagar sempre em todos os lugares a que íamos juntos, cafés ou restaurantes. Ele recusava sistematicamente as minhas ofertas, o que me dava sempre desilusão e amargura.

Quando já não tinha dinheiro levava-me para os jardins públicos, onde conversávamos e olhávamos os transeuntes, sentados num banco, como fazem os pobres. Um dia disse-lhe:

— Mesmo que não tenhas dinheiro podemos ir na mesma ao café; pagarei eu; que mal é que tem isso?

— Não é possível.

— Mas porquê? Queria ir beber alguma coisa a um café.

— Então vai sozinha.

Na verdade não era tanto ir ao café o que me interessava, como pagar-lhe a ele. Desejava fazê-lo de uma maneira tenaz e lamentável. Mais ainda do que pagar-lhe desejaria dar-lhe directamente dinheiro, todo o dinheiro que ganhasse à medida que o fosse recebendo dos meus amantes de passagem.

Parecia-me que para uma pessoa como eu seria a única maneira de lhe provar o meu amor. Pensava que sustentando-no ligava a mim por um laço mais forte que o da afeição. De uma outra vez disse-lhe:

— Dava-me imenso prazer dar-te dinheiro… E tenho a certeza de que também a ti te daria prazer recebê-lo.

Desatou a rir e respondeu-me:

— As nossas relações, pelo menos no que me diz respeito, não são fundamentadas no prazer.

— Então em quê?

Hesitou, depois retorquiu:

— Na tua vontade de me amar e na minha fraqueza perante essa vontade… mas não julgues que a minha fraqueza não tem limites.

— Que queres dizer?

— É muito simples — respondeu-me tranquilamente. — Já lhe expliquei muitas vezes. Estamos juntos porque tu o quiseste. Eu, pelo contrário, não o quis, e agora ainda, em teoria pelo menos, não o quero.

— Está bem, está bem — interrompi-o. — Não falemos mais do nosso amor. Não tenho razão para te sustentar!

Muitas vezes, pensando no seu carácter, acabei por chegar à conclusão dolorosa de que ele não me tinha amor algum, e que eu era para ele objecto de não sei qual experiência. Realmente só se preocupava consigo próprio, mas nestes limites o seu carácter revelava-se extraordinariamente complicado.

Era, como me parecia ter compreendido, filho de uma família provinciana abastada; um rapaz delicado, inteligente, culto, bem educado, sério. A sua família, depois do pouco que pude depreender, porque ele não gostava de falar nela, era exactamente a família na qual os meus vãos sonhos de regularidade me tinham feito sonhar para mim.

A família tradicional; um pai médico, uma mãe ainda nova, que vivia muito para a casa, para o seu marido e para os seus filhos, três irmãs mais novas e um irmão mais velho. É verdade que o pai, uma autoridade local, era um faz-tudo, a mãe uma provinciana, as irmãs raparigas talvez frívolas e o irmão mais velho um licencioso do gênero de João Carlos. Mas estes defeitos, todos somados, eram suportáveis, e para mim, que nascera num meio e numa situação tão diferentes, nem mesmo eram defeitos. De resto esta família era muito unida, e todos, irmãs, irmão e pais, gostavam muito de Jaime.

Eu achava que ele era muito afortunado por ter nascido numa família assim. Ele, pelo contrário, nutria por ela uma aversão, uma antipatia e um aborrecimento que eram realmente incompreensíveis para mim. Parecia sentir a mesma antipatia, a mesma aversão e o mesmo aborrecimento por si próprio, pelo que fazia, pelo que era. Mas este ódio por ele não era mais do que um reflexo do ódio que sentia pela família.

Por outras palavras, parecia odiar na sua pessoa tudo o que conservava da sua família ou, de uma maneira ou de outra, recebera a influência da família. Acabei de dizer que era bem educado, culto, inteligente, delicado e sério. Desprezava a sua boa educação, a sua inteligência, a sua cultura, a sua delicadeza, a sua seriedade unicamente porque supunha que as devia ao seu meio ou à família na qual nascera e fora criado.

— Mas, em suma — disse-lhe uma vez —, que querias tu ser? Tudo isso são boas qualidade… devias agradecer ao Céu possuí-las.

— Ora! — respondeu, depreciativo. — Para o que me serve! Por mim teria preferido ser como Sonzogne.

A história de Sonzogne tinha-o tocado muito, não sei porque.

— Que horror! — gritei. — É um monstro! Tu querias ser um monstro?

— Naturalmente que não queria ser em tudo como Sonzogne — explicou com calma. — Se falo em Sonzogne é só para tornar mais clara a minha maneira de pensar. Seja ele como for, Sonzogne é feito para viver neste mundo e eu não.

— Queres saber — disse-lhe eu então — o que gostaria eu de ser?

— Vejamos.

— Quereria ser — disse-lhe lentamente saboreando cada uma das minhas palavras como se elas fossem um sonho há muito acariciado — exactamente o que tu és e o que tanto te desgosta ser… Gostaria de ter nascido de uma família rica como a tua, que me tivesse dado uma boa educação… gostaria de viver numa casa asseada e bonita como a tua… Gostaria de ter tido, como tu, bons professores, preceptores estrangeiros… Gostaria de, como tu, passar o Verão na praia ou na montanha… ter bonitas roupas, ser convidada, receber… E depois gostaria de me casar com alguém que me amasse, um bom rapaz que trabalhasse e tivesse tido também ele uma vida abastada… Gostaria de viver com ele e dar-lhe filhos.

Falávamos estendidos na cama. De repente saltou para cima de mim e começou a apertar-me e a beliscar-me, dizendo muitas vezes :

— Hip! Hip! Hurra! Em suma, tu querias ser como a Sr.a Lobianco?

— Quem é a Sr.a Lobianco? — perguntei-lhe, um pouco magoada e desconcertada.

— Uma pavorosa ave de rapina que me convida com frequência para as suas recepções com a esperança de que eu me apaixone por uma das suas horríveis filhas e case com ela, porque eu sou aquilo a que vulgarmente se chama um bom partido.

— Mas eu não quereria ser de modo algum como a Sr.a Lobianco.

— Tu serias forçosamente como ela se tivesses tido todas as coisas que disseste! Ela também, a Sr.a Lobianco, nasceu de uma família rica, que lhe deu uma excelente educação, com bons professores e preceptores estrangeiros, que a mandaram para o liceu e até mesmo, creio eu, para a Universidade. Ela também cresceu numa casa bonita e asseada… Ia para a praia ou para a montanha quando chegava o Verão… Teve bonitos vestidos, foi convidada e fez convites… muitos convites e muitas recepções… Também ela se casou com um bom homem, o engenheiro Lobianco, que é um trabalhador e que “cavou” bastante dinheiro para a casa… Enfim, ela teve desse marido, ao qual vou até ao ponto de acreditar que foi fiel, um bom número de filhos, três raparigas e um rapaz precisamente… E é nem mais nem menos como acabo de te dizer, uma pavorosa ave de rapina!

— Mas talvez seja uma ave de rapina… independentemente do seu meio.

— Não, ela é assim como o são as suas amigas e as amigas das suas amigas.

— É possível — disse-lhe eu experimentando desembaraçar-me do seu sarcástico abraço —, cada um tem o seu carácter. É possível que a Sr.a Lobianco seja como dizes… mas eu tenho a certeza de que na sua situação teria sido muito, muito superior ao que sou.

— Não serias menos horrível do que a Sr.a Lobianco.

— Porquê?

— Porque sim!

— Vejamos!… A tua família também te parece horrível?

— Sem dúvida nenhuma! Absolutamente horrível!

— Então tu também és horrível?

— Sou-o dentro de todos os elementos que me ficaram dá minha família.

— Mas porquê? Diz-me porquê.

— Porque sim!

— Isso não é uma resposta.

— É a resposta que te daria a Sr.a Lobianco se lhe fizesses certas perguntas.

— Que perguntas?

— É inútil que tas diga — respondeu em tom leve. Para as perguntas que nos podem embaraçar um bom “porque sim” pronunciado com convicção fecha a boca ao mais curioso. “Porque sim…” Sem razão nenhuma… “Porque sim!”

— Não compreendo.

— Que importa que nós nos não compreendamos se nos amamos mesmo assim, não é? — concluiu beijando-me com a sua habitual ironia, isenta de amor.

E foi assim que acabou a discussão. Da mesma maneira que ele nunca se abandonava por completo a um sentimento, parecendo guardar sempre uma parte para ele, talvez a mais importante, de modo a tirar todo o valor aos seus raros gestos de afecto, igualmente ele nunca abria inteiramente o seu espírito e de cada vez que eu julgava chegar ao centro da sua inteligência, de uma brincadeira, de um gesto cômico, repudiava-me e furtava-se à minha atenção. Era fugidio em todo o sentido da palavra. Tratava-me como a um ser inferior, uma espécie de objecto de estudo e de experiência. Mas talvez mesmo por isso eu o amava de uma maneira tão submissa e indefesa. Aliás, parecia-me por vezes que não odiava somente a família e o seu meio, mas realmente todos os homens. Disse-me um dia, não sei já a que propósito:

— Os ricos são horríveis… mas, se bem que por motivos diferentes, os pobres não valem por certo muito mais!

— Seria mais fácil — disse-lhe eu — dizeres francamente que detestas todos os homens.

Pôs-se a rir e respondeu:

— Quando não estou no meio deles não os detesto… detesto-os tão pouco que acredito na possibilidade de eles melhorarem. Se não acreditasse não me ocuparia de política. Mas quando me encontro com eles, fazem-me horror… Realmente os homens nada valem — acrescentou de repente com tristeza.

— Nós também somos homens — disse-lhe —, por conseguinte nada valemos. Não temos, portanto, o direito de julgar.

Riu-se de novo e acrescentou:

— Não os julgo, sinto-os, ou, melhor, farejo-os como um cão o rasto de uma perdiz ou de uma lebre… O cão julga? Não… Eu farejo-os como maus, estúpidos, egoístas, mesquinhos, vulgares, falsos, ignóbeis, cheios de ideias sujas… um sentimento… Não se pode abolir um sentimento, pois não?

Não sabia que responder. Limitei-me a observar:

— Eu não tenho esse sentimento.

De uma outra vez declarou-me:

— De resto, não sei se os homens são bons ou maus, mas são com certeza inúteis, supérfluos!

— Que queres dizer?

— Quero dizer que podia muito bem passar-se sem a humanidade inteira… Ela não é mais que uma ruim excrescência sobre a face do mundo… uma verruga. O mundo seria muito mais belo sem os homens, as suas cidades, as suas ruas, os seus portos, os seus arranjinhos. Pensa em como o mundo seria belo se só existisse o céu, o mar, as árvores, a terra, os animais.

Não pude deixar de rir e gritei:

— Que ideias esquisitas tu tens!

— A humanidade — continuou ele — é uma coisa sem pés nem cabeça e portanto negativa… A história da humanidade não é mais que um longo bocejo de aborrecimento… Que falta faz? Por mim passaria bem sem ela.

— Mas também tu fazes parte desta humanidade. Então gostarias de não existir?

— Eu sobretudo!

Uma outra das suas ideias fixas, ainda mais singular porque não tentava pô-la em prática e não servia senão para estragar-lhe o prazer, era o da castidade. Elogiava-a sempre, mas principalmente como se fosse para me arreliar, logo a seguir a termo-nos amado. Dizia que o amor era a forma mais fácil e idiota de nos livrarmos de todos os problemas, resolvendo-os às escondidas, sem que ninguém desse por isso, como se manda sair um hóspede embaraçoso pela porta de serviço.

— Em seguida — declarava —, feita a operação, vai-se passear com a cúmplice, mulher ou amante, maravilhosamente dispostos a aceitar o mundo tal qual é… nem que fosse o pior mundo possível.

— Não te compreendo — disse-lhe.

— No entanto — respondeu-me — isto pelo menos devias compreender; não é a tua especialidade?

Senti-me ferida e repliquei-lhe:

— A minha especialidade, como tu dizes, é amar-te. Mas se tu queres, nunca mais teremos relações e eu amar-te-ei da mesma maneira.

Riu-se e perguntou-me:

— Tens a certeza?

Nesse dia a discussão ficou por aqui, mas repetiu-se noutras ocasiões. Acabei por não ligar importância: aceitei a coisa como de resto os outros traços do seu carácter tão cheio de contradições.

Pelo que dizia respeito à política, pelo contrário, era assunto em que não tocava. Ainda agora ignorava qual o seu fim, quais as suas ideias, a que partido pertencia. Esta ignorância tinha origem no segredo em que ele envolvia este aspecto da sua vida, no facto de eu nada perceber de política e de, quer por timidez quer por ignorância, não lhe pedir explicações que me poderiam esclarecer. Fazia mal; Deus sabe como me arrependi mais tarde! Mas parecia-me naquela altura extremamente cômodo não me misturar em coisas que supunha não me dizerem respeito e não pensar senão no amor. Em suma, portava-me como muitas outras mulheres, esposas ou amantes, que ignoram como o homem que lhes pertence arranja o dinheiro que lhes dá. Acontecia-me muitas vezes encontrar os seus dois camaradas, que ele via quase todos os dias. Mas eles não falavam de política na minha presença; gracejavam ou conversavam sobre coisas sem importância.

No entanto não conseguia banir da minha alma uma apreensão constante, porque compreendia que tramar conspirações contra o governo era perigoso. Receava, sobretudo, que Jaime se entregasse a qualquer acto de violência; na minha ignorância, não conseguia separar o tema da conspiração da ideia de armas e de sangue. A propósito disto, lembro-me bem de um facto que demonstra que, mesmo obscuramente, eu sentia o dever de intervir para desviar os perigos que o ameaçavam. Sabia que é proibido usar armas e que a transgressão era o suficiente para o meter na cadeia. Por outro lado depressa se perde a cabeça em certos momentos; o emprego de armas tem muitas vezes comprometido pessoas que se teriam salvo sem elas. Por todos estes motivos pensava que o revólver de que Jaime se sentia tão orgulhoso, longe de lhe ser necessário, como ele pretendia, seria extremamente perigoso no caso de ele ser obrigado a fazer uso dele, ou até se, mais simplesmente, lho encontrassem. Mas não ousei falar-lhe nisso; de resto sabia que seria inútil. Resolvi por isso agir às escondidas. Ele uma vez tinha-me explicado como a arma funcionava. Um dia, enquanto dormia, tirei-lhe o revólver do bolso das calças, abri-o e tirei-lhe as balas; depois tornei a pô-lo no bolso. Escondi as balas numa gaveta, debaixo da roupa. Fiz tudo isto num abrir e fechar de olhos e voltei a deitar-me a seu lado. Dois dias mais tarde meti as balas na mala e fui atirá-las ao Tibre.

No decurso de um destes dias Astárito procurou-me. Quase o esquecera; quanto ao caso da criada de quarto achava que tinha cumprido o meu dever e não queria mais pensar nisso. Astárito informou-me de que o padre tinha devolvido a caixa, que, a conselho do próprio comissário, a patroa de Gino tinha retirado a queixa e que a criada de quarto, reconhecida inocente, fora libertada. Devo reconhecer que esta boa noticia me agradou sobretudo porque me dissipou a impressão de mau agouro que me tinha deixado a minha última confissão. Agora já não pensava na criada, já em liberdade, mas em Jaime, e dizia a mim própria que, visto a denúncia que eu receava não ter sido feita, nada mais tinha a temer, nem por ele nem por mim. Na minha alegria não pude deixar de beijar Astárito.

— Tinhas assim tanto interesse em que esta mulher saísse da prisão? — observou ele com uma careta de desconfiança.

— Para ti — disse-lhe hipocritamente —, que mandas todos os dias inocentes para a cadeia, pode parecer-te estranho! Mas para mim era um verdadeiro tormento.

— Ninguém mando para a cadeia — tartamudeou ele. Cumpro apenas o meu dever.

— Mas tu viste o padre? — perguntei-lhe.

— Não, não o vi… telefonei… disseram-me que efectivamente a caixa de pó de arroz tinha sido devolvida por um padre, que a recebera sob o segredo da confissão… Então ordenei que libertassem a mulher.

Fiquei pensativa sem bem saber porquê. Depois disse-lhe:

— Amas-me realmente?

A minha pergunta perturbou-o logo. Beijou-me com força e respondeu-me balbuciante:

— Porque mo perguntas? Já o deves ter percebido.

Queria beijar-me. Defendi-me e respondi-lhe:

— Pergunto-te porque queria saber se me amarás sempre… e se me ajudarás mais vezes, se te pedir.

— Sempre — disse-me tremendo dos pés à cabeça. Depois aproximou a cara da minha: — Tu serás gentil comigo?

Agora que Jaime voltara, eu estava firmemente decidida a nunca mais ter relações com Astárito. Era diferente dos meus amantes passageiros; se bem que não o amasse, e por vezes mesmo sentisse por ele uma real aversão, justamente por isso talvez parecia-me que entregar-me a ele seria enganar Jaime. Estive tentada a revelar-lhe a verdade e a declarar-lhe: “Não, nunca mais serei gentil para contigo!”, mas bruscamente retive-me e mudei de ideias. Pensava que ele era um trunfo importante, que a todo o momento Jaime podia ser preso e que se quisesse a intervenção de Astárito para o conseguir libertar não o devia melindrar. Resignei-me e disse num sopro:

— Sim, serei amável contigo.

— Diz-me — perguntou já mais alegre. — Gostas de mim um bocadinho?

— Não, amar-te não te amo! — disse-lhe com decisão. Isso já tu sabes; já to disse muitas vezes.

— Nunca me amarás?

— Creio bem que não.

— Mas porquê?

— Não há porquê.

— Tu gostas de outro.

— Isso a ti não te pode interessar.

— Mas eu preciso do teu amor! — disse-me desesperado, olhando-me com os seus olhos biliosos. — Porquê… porque não queres gostar de mim um bocadinho?

Nesse dia permiti que ficasse comigo até mais tarde. Não podia conformar-se com a minha impossibilidade de o amar e não parecia convencido de que lhe dizia a verdade.

— Mas eu não sou pior do que os outros — repetia. Porque não me podes amar tanto como a outro?

Fazia-me pena; como me interrogava com insistência e se esforçava por encontrar nas minhas palavras um pretexto para qualquer esperança, sentia quase a tentação de lhe mentir para lhe deixar esta ilusão que ele tanto ambicionava. Reparei que nessa noite estava mais melancólico e mais desencorajado do que habitualmente. Parecia querer suscitar em mim, por gestos e por atitudes, o amor que o meu coração lhe recusava. Lembro-me de que a certa altura mandou-me sentar, toda nua, num sofá. Ajoelhou-se na minha frente, meteu a cabeça entre os meus joelhos e apertou a cara contra a minha barriga, ficando muito tempo imóvel, enquanto eu lhe devia repassar a mão pela cabeça numa carícia incessante e leve. Não era a primeira vez que me obrigava a esta espécie de pantomima de amor; mas nesse dia pareceu-me mais desesperado que de costume; apoiava com força a cara no meu colo como se quisesse lá entrar e gemia. Nestes momentos não me fazia o efeito de um amante, mas de uma criança procurando a escuridão e o calor das entranhas maternais. Pensava que muitos homens desejariam não ter nascido, e que esse gesto, talvez inconsciente, exprimia o obscuro desejo de voltar ao ventre do qual tão dolorosamente tinham brotado para a luz.

Nessa noite essa sua atitude levou tanto tempo que adormeci, com a cabeça descaída para trás e a mão pousada na sua cabeça. Dormitei não sei quanto tempo. A certa altura julguei acordar e vi Astárito sentado na minha frente todo vestido e olhando-me com os seus olhos biliosos e melancólicos. Mas talvez tivesse sido um sonho, porque depois acordei completamente e vi que Astárito já lá não estava. Tinha deixado no sítio onde pousara a cabeça a sua soma habitual de dinheiro.

Em seguida passaram os quinze dias que eu considero os mais felizes da minha vida.

Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas relações não tivessem mudado, contentava-me com esta espécie de hábito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo. Tacitamente estava bem claro entre nós que ele não me tinha amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a castidade ao amor. Também estava tacitamente estabelecido que eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferença e que de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante como aquele que ausência de amor. Mas eu não era feita como Astárito; não me resignando a não ser amada, não encontrava menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coração não perdera a esperança de ser amada por Jaime à força de submissão, de paciência e de afeição. Mas não acalentava esta aspiração; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas.

Entretanto, como quem não quer a coisa, procurei penetrar na sua vida. Já que não podia entrar pela porta principal procurei esgueirar-me pela de serviço. A despeito deste ódio pelos homens que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por uma curiosa contradição, um impulso indomável para pregar e esforçar-se por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de aborrecimento não era menos sincero quando o fazia.

Foi nesta altura que ele pareceu apaixonar-se pelo que ele chamava, não sem ironia, a minha educação. Como já disse, eu procurava prendê-lo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo. Esta experiência, no entanto, acabou quase de repente de uma maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a seguir, trazia-me livros seus e depois de me explicar abreviadamente o assunto de que tratavam lia-me um trecho ou outro. Lia bem, com grande variedade de inflexões, segundo o assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas que, a despeito dos meus esforços, não chegava a compreender. Bem depressa deixei de o ouvir, contentando-me em observar, com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressões que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras libertava-se, sem ironia, nem receio, como alguém que está no seu elemento e já não teme mostrar-se sincero. Aquilo magoava-me porque até então julgava que era o amor, e não a leitura, a situação mais favorável à expansão da alma humana. Para Jaime, parecia bem ser o contrário. Nunca lhe vi no rosto uma expressão de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava a voz com curiosas entoações cavernosas ou a baixava num tom reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via então desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e cômico que nunca o abandonava até mesmo nos momentos mais sérios e que dava a impressão de que ele estava sempre a representar um papel. Muitas vezes chegava a comover-se até às lágrimas.

Fechava o livro e perguntava-me num tom brusco:

— Gostas disto?

Geralmente dizia que gostava sem especificar porquê; não o poderia fazer, porque desde o princípio abandonei toda a tentativa de compreender. Mas um dia insistiu e perguntou-me:

— Diz-me porque gostas… explica-me!

— Para dizer a verdade — respondi depois de uma hesitação — nada te posso explicar, porque nada percebi.

— Porque não me disseste?

— Nada compreendo… ou quase nada do que me lês.

— E deixas-me ler sem mo dizer?

Saltava, batia com os pés no chão, furioso:

— Diabo! Mas tu és uma idiota, uma estúpida!… E eu a esforçar-me. És uma cretina!

Fez menção de me atirar com o livro à cabeça, mas conteve-se a tempo e continuou a injuriar-me durante um bom bocado. Deixei passar a fúria e observei-lhe:

— Dizes que me queres educar… mas a primeira coisa a fazer era agir de maneira a que eu não precisasse de ganhar a vida da maneira que sabes. Para engatar homens não é verdadeiramente necessário ler poesias ou reflexões sobre a moral. Podia muito bem não saber ler nem escrever; davam-mo o mesmo dinheiro.

Respondeu num tom sarcástico:

— Querias uma bonita casa, um marido, filhos, vestidos, um automóvel, não é? A desgraça é que as Sr.as Lobianco não lêem. Os motivos são diferentes dos teus, mas não menos justificáveis, ao que parece.

— Não sei o que quereria — respondi irritada —, mas esses livros convêm a uma condição diferente da minha. É como se oferecesses um chapéu de grande categoria a uma pedinte e quisesses que ela o usasse com os seus andrajos habituais!

— É possível — disse-me. — Mas para mim é a última vez que te leio uma linha!

Narro esta escaramuça porque me pareceu característica da sua maneira de pensar e de agir. Duvido de que tivesse continuado a sua obra educativa mesmo se eu não lhe tivesse mostrado a minha incompreensão. Não que fosse inconstante, mas tinha uma singular incapacidade — que se poderia chamar física — para manter qualquer esforço que exigisse um entusiasmo contínuo e sincero. Nunca mo disse claramente, mas compreendi depressa que esta atmosfera de comédia que criavam as suas palavras correspondia a um contíguo estado de espírito. Em suma, acontecia entusiasmar-se por um motivo qualquer, e enquanto durava o fogo do seu entusiasmo, ver a coisa como possível e concreta. Depois, de repente, o fogo extinguia-se e não lhe deixava mais que aborrecimento, desagrado, e sobretudo um sentimento total de absurdo. Neste caso ou se deixava cair numa gélida indiferença ou se agitava de uma maneira exterior e convencional como se este fogo não se tivesse apagado e então fingia. Para mim é difícil explicar o que lhe acontecia nessas ocasiões: provavelmente uma paragem brusca da vitalidade, como se de repente o calor do seu sangue tivesse abandonado o seu espírito, não deixando mais do que aridez e vazio. Era uma interrupção súbita, imprevisível, total, comparada à brusca interrupção de uma corrente eléctrica que mergulhasse no escuro uma casa faustosamente iluminada um minuto antes. Estas intermitências da mais profunda vitalidade, descobri-as depois das várias alternativas de entusiasmo e ardor para estados de apatia e inércia; mas acabei por ter a verdadeira revelação por ocasião de um incidente curioso, mas que mais tarde me pareceu significativo. Perguntou-me um dia, de uma maneira inesperada:

— Gostavas de fazer alguma coisa por nós?

— “Nós”, quem?

— Pelo nosso grupo. Por exemplo, ajudar-nos a fazer propaganda.

Estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse aproximar dele e reforçar a nossa ligação. Respondi-lhe sinceramente:

— Com certeza! Diz-me o que devo fazer que eu o farei.

— Não tens medo?

— Medo de quê? Desde que tu o fazes também…

— Sim — disse —, mas primeiro é preciso que te explique de que se trata. Precisas de conhecer as ideias pelas quais te expões e te arriscas.

— Está bem! Explica-me!

— Mas não te interessam.

— Porquê? Primeiro interessam-me com certeza; além disso, tudo o que fazes me interessa, quanto mais não seja por tu o fazeres.

Olhou-me. Bruscamente, de uma maneira inesperada, os olhos iluminaram-se-lhe e a cara animou-se-lhe.

— Está bem — disse. — Hoje é muito tarde… mas amanhã explico-te tudo… de viva voz porque os livros aborrecem-te. Mas já sabes que precisarás de me escutar, mesmo que te pareça não estares a compreender-me.

— Farei o possível por compreender — disse-lhe.

— Tens de compreender — disse como se falasse consigo próprio.

Foi-se embora.

No dia seguinte esperei-o mas não veio. Voltou dois dias depois. Uma vez no quarto, sentou-se, sem dizer palavra, aos pés da cama:

— Então — disse eu alegremente —, estou pronta. Sou toda ouvidos!

Notara a sua cara abatida, os olhos mortiços; toda a sua atitude era de abatimento: mas fingi não perceber. Acabou por me responder:

— É inútil ouvires, porque nada tenho para te dizer.

— Porquê?

— Porque não!

— Diz-me a verdade — protestei. — Julgas-me muito estúpida ou muito ignorante para compreender certas coisas? Agradeço-te.

— Não — respondeu gravemente. — Enganas-te.

— Então porquê?

Continuamos durante algum tempo, eu a insistir para saber e ele a defender-se. Acabou por me dizer:

— Queres saber porquê? Porque eu próprio, hoje, já não te poderia expor estas ideias.

— Mas como, se pensas nisso continuamente?

— É verdade; mas depois daquela noite, e sabe Deus por quanto tempo ainda, estas ideias já não estão claras no meu espírito; já nada percebo disso.

— Então!

— Procura compreender-me — disse. — Há dois dias, quando te propus trabalhar para nós, se te tivesse exposto logo estas ideias estou certo de que não só o teria feito com vigor, clareza e convicção, mas tu as terias compreendido. Hoje, pelo contrário, poderia mexer os lábios e a língua para pronunciar palavras, mas fá-lo-ia mecanicamente, sem qualquer participação. Hoje — concluiu — já nada compreendo.

— Nada compreendes?

— Não, nada mais compreendo; ideias, conceitos, factos, recordações, convicções, tudo se transformou para mim numa espécie de burburinho… este burburinho enche-me a cabeça, a cabeça toda (batia com os nós dos dedos na testa…) e desagrada-me como se fossem excrementos!

Eu olhava-o sem compreender. Um frêmito de desespero parecia percorrer-lhe o corpo.

— Tenta compreender-me — repetia. — Hoje não são as ideias, mas todas as coisas escritas, ditas ou pensadas são incompreensíveis para mim… absurdo. Por exemplo, sabes o Pai Nosso?

— Sei.

— Pois bem, di-lo.

— Pai Nosso que estais no céu. — comecei.

— Chega! — interrompeu-me. — Agora reflecte sobre a quantidade de maneiras como se escreveu esta oração no decurso dos séculos e na variedade de sentimentos que levou a dizê-la. Pois bem! Eu de nenhuma maneira a compreendo… Poderias recitá-la de trás para diante que para mim seria a mesma coisa.

Calou-se, depois continuou:

— Não são só as palavras que me fazem este efeito, mas também as coisas e as pessoas. Tu estás ao meu lado, sentada no braço do sofá; julgas talvez que eu te vejo? Não te vejo porque não te compreendo. Posso tocar-te, não te compreenderia melhor. Vês, eu toco-te — sacudiu o meu penteador e descobriu-me o peito —, apalpo-te o seio, sinto-lhe a forma, a tepidez, o contorno; vejo-lhe a cor, o relevo… mas não compreendo o que é. Digo a mim próprio: é um objecto redondo, quente e mole… que serve para amamentar… que se sente prazer quando se acaricia… mas não compreendo o que é… Digo a mim mesmo que é belo, que me deveria inspirar desejo, mas isso não me impede de nada compreender. Entendes agora? — repetiu, furioso, apertando-me o seio de tal maneira que não pude impedir um grito de dor.

Largou-me logo e fez notar passado um instante, tendo o ar de reflectir:

— É provável que seja este género de incompreensão que arrasta tanta gente à crueldade. Eles procuram encontrar o contacto com a realidade através da dor alheia.

Houve um momento de silêncio, depois eu disse:

— Se isso é verdade, então como te arranjas quando tens de fazer certas coisas?

— Por exemplo?

— Não sei. Tu dizes que distribuis os panfletos, que tu mesmo os rediges. Se não acreditas, como os rediges e distribuis?

Deu uma gargalhada sarcástica:

— Faço-o como se acreditasse — disse.

— Mas é impossível!

— Como é impossível? Quase toda a gente faz assim. Salvo comer, beber, dormir ou amar, quase todos fazem as coisas como se acreditassem nelas… Ainda não tinhas dado por isso?

Ria nervosamente.

— Eu não — respondi.

— Tu não — respondeu-me de uma maneira quase ofensiva —, precisamente porque te limitas a comer, beber, dormir e amar de cada vez que te apetece. Para todas essas coisas não parece que seja necessário simular. É muito, mas também é pouco!

Ria. Deu-me bruscamente uma grande palmada na nádega, depois tomou-me nos braços, como fazia muitas vezes, pelo prazer de me apertar e de me sacudir, repetindo sem parar :

— Tu não sabes que o nosso mundo é o mundo do “Porque sim”? Tu não sabes que neste mundo, desde o rei ao mendigo, toda a gente se comporta “Porque sim”? O mundo do “Porque sim”, do “Porque sim”, do “Porque sim”!

Deixei-o fazer porque sabia que nesses momentos mais valia não protestar, mas esperar que isto lhe passasse. Acabei por lhe dizer com certa firmeza:

— Amo-te. É a única coisa que sei e isso basta-me.

Acalmou-se de repente e respondeu-me simplesmente:

— Tens razão.

A noite chegou sem que tornássemos a falar nem em política nem na sua capacidade.

Uma vez só, depois de muito reflectir, concluí ser possível que as coisas fossem como ele dizia; mas que era mais que certo que não me tornaria a falar em política por pensar que não a compreenderia e por recear que o comprometesse com qualquer indiscrição. Não que eu imaginasse que ele mentia; sabia, por experiência própria, que pode acontecer a toda a gente ter dias em que o mundo inteiro parece voar em estilhas, em que, como ele dizia, nada se compreende, nem mesmo o Pai Nosso. Eu também, quando tinha algum dissabor, chegava a sentir a mesma impressão de aborrecimento, de desagrado e de prostração. Mas, evidentemente, devia haver outro motivo para que me recusasse a participar na sua vida mais secreta: a falta de confiança, como já disse, tanto na minha inteligência como na minha discrição. Com o tempo compreendi, demasiadamente tarde, que me enganava e que ou fosse por inexperiência da idade ou por fraqueza de carácter, estes estados mórbidos tomavam uma importância particular para ele.

Nesse momento pensava que não o devia importunar com a minha curiosidade. E foi o que fiz.

8

Não sei porquê, lembro-me muito bem do tempo que estava naqueles dias. Fevereiro, que tinha sido frio e chuvoso, acabara; com Março haviam chegado os primeiros dias calmos. Uma rede cerrada de finas nuvens brancas velava inteiramente o céu, ferindo os olhos quando se saía de casa para a rua. O ar era doce mas ainda dorido dos friores do Inverno. Eu caminhava com prazer e alheamento neste ar seco, magoado e sonolento. De vez em quando chegava a retardar o passo e fechar os olhos ou parar a contemplar as coisas mais insignificantes: um gato branco e preto que alisava o pêlo no vão de uma porta, um ramo de loureiro caído, cortado pelo vento, um tufo de erva entre as pedras do passeio. O musgo que a chuva dos meses anteriores deixara nos rebordos das casas inspirava-me uma grande tranquilidade e confiança. Pensava que se este belo veludo cor de esmeralda podia viver numa tão fina camada de terra, a minha vida — que não tinha raízes mais profundas e se contentava em vegetar e se sustentar com tão pouco alimento, verdadeiro bolor, ela também ao pé de uma ruína — tinha alguma probabilidade de continuar a florir.

Estava convencida de que todas as desagradáveis aventuras dos últimos tempos tinham acabado definitivamente, que não tornaria a ver Sonzogne nem ouviria mais falar dos seus crimes, e que de futuro poderia gozar em paz a minha ligação com Jaime. Esta ideia dava-me a impressão de sentir pela primeira vez o verdadeiro sabor da vida, feito de um doce tédio, de esperança e de disponibilidade.

Começava mesmo a entrever a possibilidade de mudar de existência. No fundo, o meu amor por Jaime desinteressava-me dos outros homens, de maneira que os meus encontros ocasionais tinham perdido até o aguilhão da curiosidade e da sensualidade. Mas eu pensava ser inútil tentar modificar-nos e que eu não mudaria senão quando, sem choques nem violências, pela própria ordem natural das coisas, criasse hábitos, sentimentos e interesses novos.

Não via outra maneira de mudar de existência, não sentia de momento qualquer desejo de aumentar nem de melhorar materialmente a minha condição e não tinha a impressão de que, transformando a minha vida, eu própria melhorasse qualquer coisa.

Um dia contei a Jaime estas minhas reflexões. Ouviu-me atentamente, depois observou-me:

— Pareces contradizer-te. Não dizes sempre que querias ser rica, ter uma bela casa, um marido e filhos? São coisas legítimas: ainda é possível que as obtenhas, mas nunca as conseguirás se raciocinares dessa maneira.

— Não digo que queria, digo que teria querido. — respondi-lhe. — Quer dizer que se tivesse podido optar antes de ter nascido, não teria escolhido isto que sou. Mas nasci naquela casa, de uma mãe como aquela, nesta situação, e apesar de tudo, sou a que sou.

— O quê?

— Parece-me absurdo querer ser outra. Desejaria ser outra unicamente se, tornando-me outra, pudesse continuar a ser eu própria… quer dizer, se pudesse realmente desfrutar da mudança. Mas ser outra só para não ser eu, não vale a pena.

— Vale sempre a pena — murmurou. — Senão por ti, pelos outros.

— E depois — continuei sem responder à sua interrupção — o que conta são os factos. Imaginas que eu não poderia ter encontrado um amante rico como a Gisela? Ou até mesmo casar? Se não o fiz, quer dizer que no fundo, apesar de todas as minhas tagarelices, não o desejei verdadeiramente.

— Casarei eu contigo — disse a brincar beijando-me. Sou rico. A morte da minha avó, que não pode demorar muito, tornar-me-á herdeiro de muitos hectares de terra, de uma casa no campo e de outra na cidade. Montaremos casa com todo o rigor, convidarás senhoras da vizinhança em dias certos, teremos uma cozinheira, uma criada de quarto, um automóvel, até mesmo havemos de descobrir que somos nobres e far-nos-emos chamar marqueses ou condes.

— Contigo nunca se pode falar a sério; estás sempre a brincar! — disse-lhe repelindo-o.

Numa destas tardes fui ao cinema com Jaime. A volta subimos para um eléctrico muito cheio. Jaime vinha para casa comigo e íamos jantar ao restaurantezinho das fortificações. Tirou os bilhetes e furou por entre as pessoas que enchiam a coxia do eléctrico. Quis segui-lo, mas perdi-o de vista. Enquanto agarrada a um assento, o procurava com os olhos, senti tocarem-me na mão. Olhei e vi Sonzogne sentado ao pé de mim.

Fiquei sufocada. Senti-me empalidecer e mudar de expressão. Olhava-me com a sua intolerável fixidez. Levantou-se e disse-me por entre os dentes:

— Queres sentar-te?

— Obrigada, desço já — balbuciei.

— Senta-te, mesmo assim!

— Obrigada — repeti, sentando-me.

Se não me tivesse sentado, julgo que teria desmaiado. Ficou de pé à minha frente como que a espiar-me, segurando-se com uma mão ao meu banco e com a outra ao que estava à minha frente. Nada tinha mudado; trazia a mesma gabardina de sempre, atada na cintura, e os seus maxilares tinham o mesmo estremecimento maquinal. Fechei os olhos — e durante um momento procurei ordenar os meus pensamentos. Lembrei-me da minha confissão e pensei se, como desconfiara, o padre tinha falado, a minha vida não estava muito segura.

Esta ideia não me assustou. Mas ele, de pé ao meu lado, assustava-me, ou, mais exactamente, fascinava-me, subjugava-me. Sentia que nada lhe podia recusar; que entre mim e ele havia um laço, não de amor seguramente, mas talvez mais forte do que aquele que me unia a Jaime. Ele também o sabia por instinto: portava-se como um dono.

— Vamos para tua casa! — disse-me passado um instante.

— Como quiseres! — respondi docilmente, sem hesitar.

Jaime aproximou-se depois de se ter desembaraçado com esforço das pessoas que o comprimiam. Sem dizer uma palavra veio colocar-se exactamente ao lado de Sonzogne, agarrando-se ao mesmo banco que ele; os seus dedos magros e longos quase afloravam os dedos curtos e grossos de Sonzogne. Uma sacudidela do eléctrico atirou-os um contra o outro e Jaime desculpou-se delicadamente. Comecei a sofrer por os ver assim lado a lado, tão perto e tão ignorantes um do outro; de repente disse a Jaime, voltando-me ostensivamente para ele, de maneira a que Sonzogne não pudesse duvidar de que era com ele que eu falava:

— Olha! Lembro-me agora de que marquei encontro esta noite com uma pessoa; é melhor que nos separemos.

— Se quiseres acompanho-te a casa.

— Não, esperam-me na paragem do eléctrico.

Não era uma invenção. Continuava, como já disse, a trazer homens para casa e Jaime sabia-o.

— Como quiseres — disse tranquilamente. — Então ver-nos-emos amanhã.

Disse-lhe que sim com os olhos e perdi-o de vista por entre os passageiros do eléctrico.

Por um momento, ao vê-lo afastar-se, fui tomada de um grande desespero. Pensava — sem saber porquê — que era a última vez que o via.

“Adeus”, murmurei para mim mesma. “Adeus, meu amor.” Desejaria gritar-lhe que parasse, que voltasse, mas nenhum som saiu da minha boca. O carro parou e pareceu-me vê-lo descer. Nem Sonzogne nem eu abrimos a boca durante todo o trajecto. Acalmei-me e pensei que não era possível que o padre tivesse falado. Por outro lado, reflectindo nisso, não lamentava muito ter encontrado Sonzogne. Este encontro permitia livrar-me de uma vez para sempre das suspeitas a respeito da minha confissão.

Quando descemos andei uns passos sem olhar para trás. Sonzogne vinha ao meu lado:

— Que me queres? Porque voltaste? — acabei por dizer.

— Foste tu quem me disse para voltar — disse-me com admiração.

Era verdade; com o medo esquecera-o. Aproximou-se, pegou-me no braço e apertou-mo com força. Contra vontade minha, comecei a tremer dos pés à cabeça.

— Quem é este homem? — perguntou-me.

— Um dos meus amigos.

— E o Gino? Tornaste a vê-lo?

— Nunca mais.

Olhou à sua volta, desconfiado.

— Não sei porquê — disse-me —, há uns dias que tenho a impressão de ser seguido. Só há duas pessoas que me podem ter vendido: Gino e tu.

— Porquê o Gino? — murmurei.

O meu coração batia desordenado.

— Ele sabia que eu devia levar o objecto àquele ourives… disse-lhe até mesmo o nome… Ele não sabe ao certo que fui eu quem o matou, mas pode muito bem ter deduzido.

— Gino não tem interesse em te denunciar; ficava também ele envolvido no caso.

— É o que eu penso — disse-me por entre dentes.

— Quanto a mim — continuei com a voz mais tranquila — podes ter a certeza de que nada disse… não sou parva… prendiam-me a mim também.

— Espero por ti que não o faças! — disse-me num tom ameaçador. Depois acrescentou: — Tornei a ver Gino… ele disse-me, brincando, que sabia muitas coisas. Não me sinto tranquilo… É um crápula.

— Naquela noite trataste-o muito mal; com certeza que te odeia agora — disse-lhe.

E sentia, enquanto falava, uma vaga esperança de que Gino realmente o tivesse denunciado.

— Aquele foi um bom soco! — declarou com vaidade. — Doeu-me a mão durante dois dias!

— Gino não te denunciará — disse eu como conclusão. — Não lhe interessa, e além disso tem muito medo de ti.

Falávamos em surdina, caminhando ao lado um do outro sem nos olharmos. Era ao entardecer; uma bruma azulada envolvia as muralhas enegrecidas, as ramadas brancas dos plátanos, as casas amareladas, a longa perspectiva das avenidas. Quando chegamos à minha porta senti pela primeira vez a impressão de atraiçoar Jaime. Desejaria dar-me a ilusão de que Sonzogne era um homem qualquer entre muitos; mas sabia não ser verdade. Entrei no vestíbulo, empurrei a porta e no escuro parei, voltei-me para Sonzogne e declarei-lhe :

— Olha… é melhor que te vás embora.

— Porquê?

Apesar do medo que me inspirava, desejava dizer-lhe a verdade toda:

— Porque amo outro e não o quero enganar.

— Quem? O que estava contigo no “eléctrico”?

— Não… outro… tu não o conheces. Mas agora faz-me o favor de me deixares e de te ires embora.

— E se eu não quiser?

— Tu não compreendes que há coisas que não se podem obter pela força? — comecei a dizer. Mas não pude acabar. Não sei como, sem que a escuridão me deixasse vê-lo e ao seu gesto, recebi na cara uma tremenda bofetada.

— Anda! — disse-me.

De cabeça baixa dirigi-me rapidamente para a escada. Segurava-me outra vez pelo braço; parecia que me sustinha e me fazia voar. A cara ardia-me, mas sobretudo eu tinha um horrível pressentimento. Esta bofetada cortava o ritmo feliz deste último período da minha vida; as dificuldades e os terrores recomeçavam.

Tomou-me um tal desespero que decidi escapar-me de qualquer maneira. Sairia de casa nesse mesmo dia; iria refugiar-me em qualquer parte. Em casa de Gisela ou num quarto alugado.

Pensava nisto com tanta intensidade que nem reparei que entrava no meu quarto. Encontrei-me — quase diria acordei — sentada na beira da cama, enquanto Sonzogne, com os seus gestos meticulosos, tirava as peças de roupa uma por uma e as punha em cima da cadeira com método. A cólera passara-lhe.

— Quis vir mais cedo — disse-me tranquilamente —, mas não pude. No entanto pensei sempre em ti.

— E que pensaste? — perguntei-lhe maquinalmente.

— Que somos feitos um para o outro — disse-me num tom estranho, parando de se despir e ficando com o colete na mão. — Vim mesmo para te fazer uma proposta.

— Qual?

— Tenho dinheiro. Vamos os dois para Milão, onde tenho muitos amigos. Vou lá montar uma garagem. E em Milão podemo-nos casar.

Fui tomada de uma tal fraqueza que fechei os olhos. Era a primeira vez, depois de Gino, que me propunham casamento; e quem me fazia esta proposta era Sonzogne! Desejara tanto uma vida normal, com um marido e filhos, e eis que ma ofereciam. Mas era uma normalidade reduzida a uma espécie de concha no interior da qual tudo era anormal e aterrador. Disse-lhe molemente:

— Porquê? Mal nos conhecemos; só me viste uma vez…

Respondeu-me sentando-se ao meu lado e segurando-me pela cintura:

— Ninguém me conhece melhor do que tu… sabes tudo a meu respeito.

Atravessou-me o espírito a ideia de que ele estivesse comovido e quisesse mostrar que me amava e que eu devia amá-lo. Mas em nada me baseava, porque nada na sua atitude me revelava semelhante sentimento.

— Pouco sei de ti — disse-lhe em voz baixa. — Só sei que mataste aquele homem!

— E depois — continuou como se falasse consigo — estou cansado de estar só… Quando se vive só acaba-se sempre por fazer alguma asneira.

Disse-lhe passado um momento:

— Assim de repente não te posso responder nem sim nem não… Dá-me algum tempo para reflectir.

Com grande admiração minha, respondeu-me, de dentes cerrados:

— Reflecte, reflecte, não há pressa.

Depois continuou a despir-se.

O que me ferira fora sobretudo a frase: “Somos feitos um para o outro.” Agora perguntava a mim mesma se ele não teria razão apesar de tudo. A quem poderia eu aspirar de futuro senão a um homem como ele? Por outro lado, não era verdade que um laço obscuro que eu reconhecia e temia me ligava a ele? Surpreendi-me repetindo em voz baixa: “Acabou! Acabou!” e sacudindo desesperadamente a cabeça disse-lhe em voz clara:

— Para Milão? Mas tu não tens medo que te procurem?

— Disse isso por dizer… Na realidade eles nem sabem que eu existo!

De repente a lassidão que me tomara os membros desapareceu: senti-me muito forte e muito decidida. Levantei-me, tirei o casaco e fui pendurá-lo no bengaleiro. Como habitualmente, fechei a porta à chave, depois fui à janela e puxei as cortinas. De pé em frente do espelho, comecei a desabotoar o vestido. Mas interrompi-me e voltei-me para Sonzogne. Estava sentado na beira da cama a tirar os sapatos.

— Espera um momento… — disse-lhe afectando um tom despreocupado — estou à espera de uma pessoa, é melhor eu prevenir minha mãe para que a mande embora.

Não respondeu nem eu lhe dei tempo. Saí do quarto fechando a porta atrás de mim. Fui à sala grande.

Minha mãe estava a coser à máquina ao pé da janela; havia já algum tempo que, para se distrair, tinha recomeçado a trabalhar um pouco. Disse-lhe depressa em voz baixa: — Telefona-me amanhã de manhã para casa da Gisela ou da Zelinda.

Zelinda era dona de uma hospedaria para onde eu levara algumas vezes os meus amantes: minha mãe conhecia-a.

— Mas porquê?

— Vou-me embora para lá — disse-lhe. — Quando aquele homem perguntar onde estou, diz-lhe que nada sabes.

Minha mãe olhava-me de boca aberta, enquanto eu tirava do bengaleiro o casaco curto de peles, meio pelado, que lhe pertencia depois de ter sido meu.

— Sobretudo — acrescentei — não lhe digas onde estou, era capaz de me matar!

— Mas…

— O dinheiro está no sítio do costume… suplico-te que nada digas e telefona-me amanhã de manhã.

Saí à pressa, na ponta dos pés, e desci a escada. Uma vez na rua comecei a correr. Sabia que Jaime a esta hora estava em casa e queria chegar antes que ele saísse com os amigos, como fazia sempre depois do jantar. Tomei um táxi e dei a direcção de Jaime. Compreendi bruscamente que não fugia tanto de Sonzogne como de mim própria, obscuramente atraída por esta violência e por este furor. Lembrei-me do grito dilacerante, misto de horror e de volúpia, que soltara na primeira vez em que Sonzogne me tinha possuído; disse a mim mesma que nesse dia ele me havia subjugado como nunca nenhum homem o fizera até então, nem mesmo Jaime. “Sim, não pude deixar de concluir, nós somos verdadeiramente feitos um para o outro, mas como o corpo é feito para o precipício que faz virar a cabeça, turvar a vista e finalmente o atrai para um fundo vertiginoso.” Subi a escada a quatro e quatro, cheguei ofegante e perguntei por Jaime à velha criada que me veio abrir a porta.

Olhou-me com ar assustado, não disse palavra e foi-se embora, deixando-me só.

Pensando que teria ido prevenir Jaime, entrei no vestíbulo e fechei a porta. Ouvi então um cochichar atrás do reposteiro que separava o vestíbulo do corredor. Depois o reposteiro levantou-se e vi aparecer a viúva Medolaghi. Esquecera-a depois da primeira e única vez em que a vira. A sua maciça silhueta negra, a face branca, os seus olhos circundados de negro surgindo bruscamente diante de mim inspiraram-me nesse momento, não sei porquê, um arrepio, como se tivesse visto uma aparição aterradora. Disse-me rapidamente, falando-me de longe:

— Procura o Sr. Diodatti?

— Sim.

— Prenderam-no.

Não percebi bem. Não sei porquê liguei esta prisão ao crime de Sonzogne. Balbuciei:

— Preso? Mas ele nada tem com isso…

— Não sei nada — disse-me. — Só sei que fizeram uma busca e prenderam-no.

Pela sua cara zangada compreendi que não me diria nem mais uma palavra e no entanto ainda perguntei:

— Mas porquê?

— Já lhe disse, menina, que nada sei.

— Mas para onde o levaram?

— Não sei.

— Mas diga-me ao menos se deixou algum recado?

Desta vez nem me respondeu; voltou-se e chamou com um ar ofensivo e majestoso:

— Diomira!

A criada de idade reapareceu com a sua cara assustada. A patroa indicou-lhe a porta e disse:

— Acompanhe essa menina. O reposteiro tornou a cair.

Só depois de me encontrar outra vez na rua é que compreendi que a prisão de Jaime e o crime de Sonzogne eram dois factos distintos e independentes um do outro. O único traço a ligá-los era o meu pavor. Discernia sobre o conjunto destes acontecimentos imprevistos e desgraçados as amplitudes de um destino que me cumulava de um só golpe de todos os dons funestos, como a Primavera faz amadurecer ao mesmo tempo os frutos mais diversos. É bem verdade que, segundo o provérbio, uma desgraça nunca vem só. Sentia-o mais do que o pensava enquanto caminhava, de rua em rua, de cabeça baixa e curvando as costas sob um peso imaginário.

Naturalmente a primeira pessoa à qual me lembrei de recorrer foi a Astárito. Sabia de cór o número do telefone da repartição; entrei no primeiro café. O telefone estava livre mas ninguém me respondeu. Liguei várias vezes e acabei por me convencer de que Astárito não estava lá. Devia ter ido jantar: voltaria mais tarde. Estas coisas são assim; mas, como acontece sempre, esperava que justamente desta vez, por excepção, o encontraria na repartição.

Olhei para o relógio. Eram oito horas da noite; Astárito não voltaria antes das dez. Fiquei de pé, à um canto da rua; à minha frente estava uma ponte, percorrida por transeuntes que surgiam em silêncio, escuros e rápidos, como folhas mortas agitadas por uma incessante tempestade. Mas para lá da ponte as casas alinhadas davam uma impressão de tranqüilidade, com as janelas todas iluminadas e as pessoas que iam e vinham por entre as mesas e os outros móveis. Lembrei-me de que não estava muito longe do Comissariado Central, para onde supunha terem levado Jaime. E, se bem que compreendesse ser essa uma tentativa desesperada, decidi ir lá directamente para pedir informações. Sabia de antemão que não mas dariam; mas pouco importava, queria sobretudo fazer alguma coisa por Jaime. Segui por uma rua transversal, caminhei rapidamente rente às paredes, cheguei ao Comissariado, subi alguns degraus e entrei. Diante da porta do porteiro, um polícia que lia o jornal, refastelado numa cadeira, com os pés noutra e o boné em cima da mesa, perguntou-se aonde é que eu ia. “A Secção dos Estrangeiros”, disse-lhe. Era uma das numerosas secções do Comissariado; ouvira falar nela uma vez a Astárito, já não sei a que propósito.

Não sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente empregados e polícias com as mãos cheias de papéis e colava-me à parede o mais possível, baixando a cabeça. Em todos os andares encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha, depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam não pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela primeira vez, era fétido, escuro e bem amargo. No terceiro andar, desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguém olhava para mim, ninguém me ligava importância. A direita e à esquerda do corredor alinhavam-se portas quase todas abertas; à entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo espectáculo: rimas e rimas de papéis, um agente sentado a uma mesa, com a caneta na mão. O corredor não era direito: era oblíquo e daí a pouco já não sabia onde estava. De vez em quando enfiava-me por uma passagem mais baixa e então era preciso subir ou descer três ou quatro degraus; cruzava outros corredores parecidos, com outros agentes, portas abertas e mal iluminadas. A certa altura pareceu-me andar num corredor que já tinha percorrido. Como passasse um guarda perguntei-lhe ao acaso: “Onde é o vice-comissário?” Indicou-me com um gesto uma passagem entre duas portas. Desci quatro degraus e enfiei por um corredorzinho direito. Nesse momento, ao fundo, onde esta espécie de lombriga fazia um ângulo recto, abriu-se uma porta e apareceram dois homens; estavam de costas e caminhavam na direcção do canto. Um deles segurava o outro pelo pulso e por um instante tive a impressão de que era Jaime.

— Jaime! — gritei, correndo para os alcançar. Mas alguém me segurou pelo braço. Era um policia muito novo, de cara afilada, moreno, com o quépi enfiado numa massa de cabelos pretos encaracolados.

— Que quer? Quem procura? — perguntou-me. Ao meu grito, os outros dois tinham-se voltado para mim e verifiquei ter cometido erro.

Expliquei com voz ofegante:

— Prenderam um dos meus amigos e queria saber se o tinham trazido para aqui.

— Como se chama ele? — perguntou o agente, sem me largar, com um ar peremptório.

— Jaime Diodatti.

— Que faz ele?

— É estudante.

— Quando o prenderam?

Compreendi que me fazia estas perguntas todas para se dar importância e que nada sabia. Disse-lhe com irritação:

— Em vez de me fazer tantas perguntas era melhor que me dissesse onde é que ele está.

Estávamos sós no corredor. Olhou à volta, depois apertou-me e disse-me num tom claramente cúmplice:

— Pensaremos no estudante mais tarde. Por agora vais dar-me um beijo.

— Não! Não me faça perder tempo! Deixe-me ir embora! — gritei cheia de raiva.

Dei-lhe um encontrão, desatei a correr, penetrei noutro corredor, vi uma porta aberta e para lá dessa porta uma sala maior do que as outras com uma secretária ao fundo, atrás da qual estava sentado um homem de meia idade.

Entrei e perguntei-lhe de um fôlego:

— Queria saber para onde levaram o estudante Diodatti… o que prenderam esta tarde.

O homem levantou os olhos da secretária, onde estava um jornal desdobrado, e perguntou-me, estupefacto:

— Queria saber…

— Sim… para onde levaram o estudante Diodatti, preso esta tarde.

— Mas quem é a menina? Como se atreveu a entrar aqui?

— Isso agora não interessa… diga-me só onde é que ele está.

— Mas quem é a menina? — repetiu berrando e dando socos na mesa. — Como se atreveu? Sabe onde está?

Compreendi que não conseguiria saber coisa alguma e que em compensação corria o risco de ficar presa também. E então não poderia já falar a Astárito e Jaime ficaria na prisão.

— Não tem importância. Enganei-me. Desculpe — disse retirando-me.

As minhas desculpas ainda o enfureceram mais que as minhas perguntas anteriores. Mas agora eu já estava ao pé da porta.

— Entra-se e sai-se fazendo a saudação fascista! — gritou mostrando-me um cartaz suspenso sobre a sua cabeça.

Disse que sim com a cabeça, para confirmar que ele tinha razão, que era verdade, que se devia entrar e sair fazendo a saudação fascista e saí da sala recuando. Percorri o corredor todo, acabei por encontrar a escada depois de vaguear um pouco ao acaso e desci à pressa. Tornei a passar em frente do porteiro e saí para o ar livre.

O único resultado desta ida à polícia fora o ter-me feito passar um pouco de tempo. Calculei que se fosse devagarinho até ao Ministério de Astárito demoraria talvez três quartos de hora, até mesmo uma hora. Uma vez lá próximo sentar-me-ia num café e telefonaria a Astárito daí a vinte minutos.

Enquanto andava veio-me à ideia a possibilidade de esta prisão de Jaime ser uma vingança de Astárito. Astárito tinha uma posição importante, justamente na polícia política; com certeza que havia muito tempo que eles vigiavam Jaime e que sabiam da nossa ligação; nada havia de improvável que o seu cadastro tivesse passado pelas mãos de Astárito e que fosse ele, levado pelos ciúmes, que tivesse dado a ordem para prenderem o estudante. A esta ideia senti uma espécie de furor contra Astárito. Sabia que ele continuava sempre apaixonado por mim; sentia-me capaz, se as minhas suspeitas tivessem fundamento, de o fazer expiar amargamente a sua má acção, não sem pensar também com pavor que as coisas talvez não se tivessem passado dessa maneira e que com as minhas frágeis armas me preparava para combater um adversário obscuro e sem rosto, mais parecido com uma máquina bem afinada do que com um homem sensível e acessível a paixões.

Quando cheguei em frente do Ministério renunciei à ideia de me sentar num café e fui directamente telefonar.

Ao primeiro toque, desta vez, alguém levantou o auscultador e a voz de Astárito respondeu-me.

— Sou eu… a Adriana — disse eu impetuosamente. — Quero ver-te. Já. Imediatamente… é uma coisa urgente… Estou aqui ao lado do Ministério.

Pareceu-me que reflectia um momento e depois disse-me que podia ir. Era a segunda vez que subia a escada do Ministério de Astárito, mas com uma disposição de espírito bem diferente. Da primeira vez tinha medo da uma chantagem de Astárito, temia que ele desmanchasse o meu casamento com Gino, receava a vaga ameaça que todos os pobres sentem suspensa sobre as suas cabeças nos meios policiais. Chegara com o coração alanceado e a alma trêmula. Agora vinha de espírito agressivo decidida a servir-me de qualquer meio para socorrer Jaime e a fazer por minha vez chantagem com Astárito. Mas o meu amor por Jaime não chegava para explicar a minha agressividade. Neste estado de espírito entrava também o desprezo por Astárito, pelo seu Ministério e, na medida em que Jaime se ocupava da política, mesmo por ele. Nada percebia de política, mas talvez por causa da minha ignorância, ao lado do meu amor a Jaime, a política parecia-me coisa ridícula e sem importância. Lembrei-me de como Astárito gaguejava quando me via ou simplesmente me ouvia e pensava com satisfação que ele não gaguejava com certeza daquela maneira quando falava com os seus chefes — fosse ele Mussolini. Enquanto pensava nestas coisas caminhava com pressa pelos vastos corredores do Ministério e apercebia-me de que olhava com desprezo os empregados que encontrava. Apetecia-me arrancar-lhes os processos verdes ou encarnados que levavam debaixo dos braços e atirá-los pelos ares, espalhando todas aquelas maldosas folhas de interdições e de iniquidades. Disse em tom imperativo ao contínuo que veio ao meu encontro na antecâmara:

— Preciso de falar com o Sr. Astárito… depressa… tenho audiência marcada e não posso esperar…

Olhou-me com admiração, mas não ousou protestar e foi-me anunciar.

Logo que Astárito me viu veio ao meu encontro, beijou-me a mão e conduziu-me para um divã no fundo da sala. Já da primeira vez ele me tinha acolhido da mesma maneira e eu pensava que se portava assim com todas as mulheres que iam ao seu gabinete. Reprimi o mais possível a fúria que me dilatava o peito e disse-lhe:

— Toma cuidado, que se tu fizeste com que prendessem Jaime precisas de libertá-lo o mais depressa possível… senão podes ter a certeza de que nunca mais me verás!

Vi a sua cara tomar uma expressão de profunda admiração e pena. Compreendi que ele de nada sabia.

— Um momento! Que diabo! Qual Jaime? — perguntou-me, balbuciante.

— Julgava que sabias — disse-lhe.

E o mais rapidamente possível contei-lhe a história do meu amor por Jaime e a maneira como tinha sido preso, de tarde. Vi-o mudar de cor quando lhe disse que amava Jaime, mas preferi dizer a verdade porque não só receava prejudicar o meu amante mentindo, mas porque experimentava um desejo violento de gritar o meu amor a toda a gente. Agora, que descobrira que Astárito nada tinha a ver com a prisão, a cólera que me impulsionara até ali caíra; sentia-me de novo fraca e desarmada. Por isso, depois de ter começado a conversa com voz firme e animada, acabara-a num tom lamentoso. Os meus olhos encheram-se de lágrimas quando lhe disse com voz angustiada:

— E depois eu não sei o que lhe farão… Diz-se que lhes batem!

Astárito interrompeu-me:

— Está tranquila. Ainda se fosse um operário!… Mas um estudante…

— Mas eu não quero… não quero que esteja preso! — gritei com lágrimas na voz.

Em seguida calámo-nos. Tentava dominar a comoção e Astárito olhava. Pela primeira vez não me parecia disposto a aceder ao meu pedido. O desapontamento de me saber apaixonada por outro homem devia tornar-lhe repugnante a ideia de me ajudar. Acrescentei, pousando a minha mão na sua:

— Se conseguires que ele saia prometo-te que farei tudo o que tu quiseres.

Fixou-me com ar irresoluto. Se bem que não tivesse vontade alguma de o fazer, inclinei-me para ele e ofereci-lhe os lábios ao mesmo tempo que dizia:

— Então, fazes-me este favor?

Olhou-me hesitando entre o desejo de me beijar e a consciência do significado humilhante de um beijo semelhante, oferecido por pura tentativa de corrupção, com o rosto cheio de lágrimas. Depois afastou-me, levantou-se, disse que esperasse e desapareceu.

Agora já tinha a certeza de que Astárito tinha ido tratar de libertar Jaime. Na minha inexperiência dessas coisas imaginava-o a telefonar, num tom mal humorado, a algum comissário servil, ordenando-lhe que libertasse, imediatamente o estudante Jaime Diodatti. Contava os minutos com impaciência, e quando Astárito reapareceu levantei-me pensando em agradecer-lhe e ir-me logo embora ao encontro de Jaime.

Mas Astárito vinha com uma expressão estranha, desagradável, feita de desilusão, de raiva e de malícia.

— Porque dizes tu que o prenderam? — articulou secamente. — Disparou sobre os polícias e safou-se… um dos agentes está, moribundo, no hospital. Agora se o apanham, e apanham-no com certeza, já nada posso fazer.

O espanto cortou-me a respiração. Não tinha eu tirado as balas do revólver? É verdade que podia ter posto outras sem que eu soubesse. Em seguida senti uma grande alegria, mas era também a alegria de saber que ele matara um polícia, uma acção de que eu o julgava incapaz e que modificava totalmente a ideia que até então eu fazia dele. Admirei-me que a minha alma, habitualmente inimiga de toda a violência, aplaudia o acto desesperado de Jaime: no fundo era a mesma irresistível satisfação que experimentara outrora ao reconstruir na imaginação o crime de Sonzogne; mas desta vez acompanhada de uma espécie de satisfação moral. Em seguida pensava que o encontraria depressa e que fugiríamos juntos para nos escondermos; se fosse preciso iríamos para o estrangeiro, onde eu sabia que os refugiados políticos eram bem acolhidos: e o meu coração dilatava-se de esperança. Pensava ainda que uma nova vida iria realmente começar para mim; dizia para comigo que esta renovação da minha vida a devia a Jaime, à sua coragem, e sentia por ele gratidão e amor. Entretanto Astárito passeava de um lado para o outro no gabinete, com ar furioso e parando de vez em quando para mexer em qualquer coisa em cima da secretária. Eu disse tranquilamente:

— Isto significa que, depois de preso, ele teve coragem: disparou e pôs-se a salvo.

Astárito parou e olhou-me com uma expressão má que lhe crispou o rosto.

— Estás contente, não estás? — perguntou-me.

— É bem feito que tenha morto o polícia — disse eu com sinceridade. — O agente queria metê-lo na prisão… Tu terias feito a mesma coisa!

Respondeu-me com voz desagradável:

— Mas eu não me ocupo de política e esse guarda cumpria o seu dever… Esse homem tinha mulher e filhos.

— Se ele se ocupa de política deve ter as suas razões — disse-lhe. — E o agente já devia supor que, antes de se deixar engaiolar, um homem tenta seja o que for… Pior para ele!

Sentia-me tranquila porque me parecia ver Jaime a caminhar livremente pelas ruas da cidade e alegrava-me já ao pensar no momento em que ele me chamasse às escondidas e eu o tornasse a ver. A minha calma parecia desesperar Astárito:

— Mas havemos de o apanhar! — gritou bruscamente. — Então imaginas que não o apanhamos?

— Eu nada imagino… Estou contente por ele se ter escapado… Só isso.

— Havemos de o apanhar e podes ter a certeza de que isto não ficará assim.

Passado um momento disse-lhe:

— Sabes porque estás tão furioso?

— Não estou furioso!

— Porque esperavas que o tivessem apanhado e querias fazer valer a tua generosidade comigo e com ele… e em vez disso ele escapou-te. É isto que te enfurece.

Vi-o levantar os ombros com fúria. Depois o telefone tocou e Astárito atendeu com ar aliviado. Era um bom pretexto para interromper uma conversa embaraçosa. Logo às primeiras palavras vi o seu rosto desanuviar-se e tomar uma expressão mais serena. E isso, mesmo sem saber porquê, pareceu-me de mau agouro. O telefonema demorou bastante tempo, mas Astárito não respondeu senão “Sim” e “Não”, se bem que eu não percebesse a que perguntas.

— Lamento-o por ti — disse pousando o auscultador —, mas a primeira comunicação referente à prisão desse estudante era errada. Para maior segurança a polícia tinha mandado agentes não só à casa dele mas também à tua… assim estavam mais certos de o apanharem. Com efeito prenderam-no em casa da viúva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrário, os guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronúncia do Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papéis, como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram que era ele. Tratava-se evidentemente de alguém que tinha contas a ajustar com a polícia.

Senti-me desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da minha saída, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na prisão e Sonzogne procurava-me para se vingar! Fiquei tão aturdida com este golpe que só pude murmurar: “Pobre de mim”, dando uns passos para a porta.

Devia ter ficado muito pálida porque Astárito perdeu o ar triunfante e satisfeito e aproximou-se de mim dizendo-me com ansiedade:

— Senta-te um instante. Conversemos! Nada há irreparável!

Abanei a cabeça e agarrei o puxador da porta. Astárito deteve-me e balbuciou:

— Ouve, prometo-te que farei o impossível; eu mesmo o interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o libertarem o mais depressa possível; está bem assim?

— Sim, está bem — respondi com voz apagada. — E acrescentei com esforço: — Por tudo o que fizeres já sabes que te ficarei reconhecida.

Agora sabia que Astárito faria, como tinha dito, tudo o que lhe fosse possível para libertar Jaime e eu não desejava outra coisa que ir-me embora, sair o mais depressa possível daquele horrível Ministério. Mas Astárito perguntou-me com um escrúpulo policial:

— A propósito… se tens alguma razão para recear o homem que encontraram na tua casa diz-me o seu nome e isso facilitará a prisão.

— Não sei como se chama — respondi. E comecei a andar.

— Seja como for — insistiu — seria melhor que te apresentasses espontaneamente no comissariado para dizeres o que sabes. Eles vão pedir-te para ficares à sua disposição e depois deixam-te ir embora. Mas se não fores lá… Pior para ti!

Respondi-lhe que o faria e disse-lhe adeus. Ele não fechou logo a porta e ficou a ver-me afastar ao longo do corredor.

9

Uma vez na rua comecei a andar depressa, como se fugisse, até uma praça que havia próxima. Quando cheguei ao meio da praça fiquei sem saber para onde ir e pensei onde me iria refugiar. De momento tinha pensado em Gisela; mas a casa dela era longe e sentia-me tão fraca que as pernas se me vergavam. Por outro lado não estava certa de que Gisela me recebesse de boa vontade. Restava Zelinda, a dona da hospedaria de quem falara a minha mãe quando saí de casa. Zelinda era uma amiga; pára mais a sua casa era ali perto: decidi-me por ela.

Zelinda morava num prédio amarelo igual a outros que dominavam a Praça da Gare. Esta casa de Zelinda distinguia-se das outras pela escada mergulhada numa quase total escuridão, mesmo às primeiras horas da manhã. Não havia elevadores nem janelas: subia-se às escuras, acotovelando de vez em quando as pessoas que desciam e se agarravam ao mesmo corrimão. Um cheiro a cozinha empestava eternamente o ar; mas era o de uma cozinha apagada há muitos anos e onde os aromas tinham tido tempo para se decomporem neste ar gelado e tenebroso. Subia, com as pernas moles e o coração partido, esta escada que tantas vezes trepara, abraçada a algum amante impaciente. Zelinda abriu-me a porta e eu disse-lhe:

— Preciso de um quarto para esta noite.

Era uma mulher corpulenta, que a gordura envelhecera precocemente, dando-lhe aparência de mais idade. Trôpega, com manchas vermelhas nas faces doentias, olhos azuis lacrimejantes e um cabelo ralo e alourado, sempre despenteado e esfarripado, subsistia nela, no entanto, não sei que graciosidade afectuosa, que lhe iluminava o rosto como um reflexo de luz em água estagnada ao pôr do Sol.

— Tenho um quarto — disse-me. — Estás só?

— Estou.

Entrei. Ela fechou a porta e acompanhou-me tropeçando, baixa e larga, com um velho penteador, o carrapito meio despenteado caído pelas costas e cheio de ganchos mal espetados. O apartamento era tão gelado como a escada. Mas o cheiro a cozinha era autêntico: era o de guisado saboroso. Zelinda, que alugava quartos à hora, gostava muito de mim, não sei porquê. Frequentemente depois das minhas habituais visitas ela retinha-me para conversar e dava-me bolos e licor. Era uma rapariga envelhecida e ninguém a deve ter amado nunca porque desde muito nova a gordura a deformara. Adivinhava-se a sua virgindade pela timidez, a curiosidade e a maneira desajeitada como me perguntava pelos meus amores. Creio que ela, embora sem malícia nem inveja, lamentava secretamente nunca ter feito o que se fazia nos seus quartos e que adoptava o ofício de alugar quartos para pouca permanência menos pela sofreguidão do lucro do que para assim satisfazer um desejo, talvez inconsciente, de não ser inteiramente excluída do paraíso, perdido para ela, das relações amorosas.

Ao fundo do corredor havia duas portas que eu conhecia bem. Zelinda abriu a da esquerda. Acendeu o lustre de três braços terminado por tulipas de vidro branco e foi fechar a janela. O quarto era grande e asseado. Mas a limpeza acusava impiedosamente o uso e a pobreza dos móveis, os rasgões do tapete, os remendos da colcha de algodão, os “gatos” do espelho, as falhas do lavatório. Ela olhou-me e perguntou-me:

— Não te sentes bem?

— Sinto-me bastante bem.

— Mas porque não dormes na tua casa?

— Não me apetece.

— Vamos a ver se adivinho — disse-me ela com ar amigo e malicioso: — Tens um desgosto. Esperavas alguém que não veio.

— É possível.

— Vamos a ver ainda se tenho razão ou não. Este alguém é o oficial moreno com quem cá vieste a última vez.

Não era a primeira pergunta deste gênero que Zelinda me fazia. Com a garganta apertada pela angústia, respondi-lhe ao acaso:

— Tens razão… E então?

— Então nada, mas, como vês, compreendi depressa… Assim que te vi, adivinhei logo o que te tinha acontecido. Não te rales. Se não veio deve ter as suas razões. Os militares, já sabes, nem sempre estão livres.

Eu não respondi. Ela olhou-me durante um momento, depois, com ar hesitante e afectuoso, disse-me:

— Queres fazer-me companhia e jantar comigo? Tenho um bom jantar.

— Não, obrigada — respondi. — Já jantei.

Olhou-me e fez-me uma festa na cara. Depois, com a expressão prometedora e misteriosa de certas tias velhas falando com um sobrinho miúdo, disse-me:

— Vou dar-te uma coisa que com certeza não recusarás. Tirou da algibeira um molho de chaves, foi à cômoda e abriu a gaveta, voltando-me as costas.

Eu entreabrira o casaco, e com a mão na anca, apoiando-me à mesa, olhava Zelinda, encafuada na sua gaveta. Lembrei-me de que Gisela vinha frequentemente a este quarto com os seus amantes e também de que Zelinda não gostava dela. Gostava de mim por ser eu; mas não gostava de toda a gente. Senti-me reconfortada. “Apesar de tudo”, pensava, “não há só neste mundo polícias e ministérios, prisões e outras coisas parecidas inanimadas e cruéis.” Entretanto Zelinda fechara a gaveta com cuidado e vinha para junto de mim dizendo:

— Toma. Isto não recusas com certeza.

Pousou qualquer coisa em cima da mesa. Olhei e vi cinco cigarros — cigarros bons com filtro —, um punhado de bombons embrulhados em papel de cor e quatro bolinhos de amêndoa em forma de frutas.

— Está bem? — perguntou-me com uma palmadinha na cara.

Embaraçada, balbuciei:

— Está bem, obrigada!

— De nada, de nada. E se precisares de alguma coisa não tens mais do que chamar, sem cerimônia.

Uma vez só, senti-me gelada. Não tinha sono e não me queria ir deitar. Por outro lado, neste quarto glacial, onde o frio do Inverno parecia conservar-se durante anos, como nas igrejas e nas caves, não havia outra coisa a fazer. Das outras vezes estes problemas nem se punham: o homem que me acompanhava e eu não desejávamos outra coisa que enfiarmo-nos nos lençóis e aquecermo-nos mutuamente; se bem que não experimentasse qualquer sentimento por estes amantes de acaso. O acto do amor em si absorvia-me e mergulhava-me na sua magia. Agora parecia-me incrível ter podido amar e ser amada no meio de um mobiliário tão lúgubre, de aspecto tão sórdido. Por certo que o ardor dos sentimentos nos enganara, aos meus companheiros e a mim, tornando estes objectos, tão paradoxalmente estranhos, agradáveis, familiares. Veio-me à ideia que se não pudesse tornar a ver Jaime a minha vida seria como este quarto. Ao olhá-la de uma forma objectiva, sem ilusões, a minha vida nada tinha de belo nem de íntimo; mais até: como o quarto de Zelinda, ela compunha-se de coisas estragadas, desagradáveis e frias. Arrepiei-me e comecei lentamente a despir-me.

Os lençóis estavam gelados e pareciam húmidos. A tal ponto que quando me deitei tive a impressão de deixar o meu corpo marcado em argila molhada. Fiquei muito tempo absorta a reflectir, enquanto que, lentamente, a cama aquecia. O caso de Sonzogne veio desviar os meus pensamentos e tentei analisar os motivos e as consequências desta tenebrosa história. Agora Sonzogne estava persuadido de que eu o denunciara; não havia dúvida de que as aparências estavam todas contra mim. Mas seriam só as aparências? Lembrei-me da sua frase: “Tenho a impressão de que me seguem” e perguntei a mim própria se no fim de contas o padre não teria falado. Não me parecia; mas até agora não podia provar o contrário.

Continuando a pensar em Sonzogne pus-me a imaginar o que se teria passado na minha casa depois da minha saída: Sonzogne, que esperava, impacientava-se, vestia-se aquando da entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de Sonzogne, esta reconstituição dava-me um prazer insaciável e obscuro. A minha imaginação apresentou-me os vários aspectos da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem dúvida, na luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o polícia ferido cair, suspirei de alívio vendo Sonzogne fugir; seguia-o com ansiedade ao descer as escadas e não me sentia tranquila enquanto o não via desaparecer na distância escura da avenida. Acabei por me cansar desta espécie de filme que imaginei e apaguei a luz. Já das outras vezes reparara que a cama estava encostada a uma porta de comunicação que dava para um quarto contíguo. Logo que apaguei a luz vi filtrar-se um raio luminoso por entre os batentes mal fechados. Apoiei-me nos cotovelos sobre a almofada, passei a cabeça por entre as grades de ferro da cama e espreitei pela fresta. Não o fazia por curiosidade, pois já sabia de antemão o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para fugir aos meus pensamentos e à solidão, que procurava, mesmo só espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante um bom bocado ninguém vi, em frente da fresta da porta havia uma mesa redonda: a luz do lustre caía sobre esta mesa atrás da qual entrevi o reflexo de um espelho de guarda-fato. No entanto ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tão bem conhecia, as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da mulher era tranquila e reticente; a do homem rápida e trêmula. As vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem já deitados. À força de olhar sem ver nada, pôs-se-me uma dor na nuca e estava a ponto de abandonar aquela posição quando a mulher apareceu e se foi pôr do outro lado da mesa em frente do espelho, que estava na sombra. Estava de pé, nua, de costas para mim, mas a mesa só me permitia vê-la da cintura para cima. Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graça, de uma brancura anêmica, encimadas por uma cabeleira crespa. Pensei que ela não devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio caído e talvez até já tivesse sido mãe. Devia ser urna das esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das praças municipais, ao longo da estação, sem chapéu e frequentemente sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia mostrar as gengivas. Vieram-me estas ideias todas sem que eu reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia reconfortada e tive a impressão de que gostava desta rapariga e compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olhar-se ao espelho do guarda-fato. Mas o homem disse com uma voz brutal:

— Pode saber-se o que estás aí a fazer?

Ela afastou-se. Vi-a um momento de perfil, as costas curvas, o peito chato, exactamente como eu a imaginara. Depois desapareceu e passado um momento a luz apagou-se.

Senti extinguir-se na minha alma o vago sentimento que a rapariga me suscitara e tornei a encontrar-me só na grande cama ainda gelada, no quarto escuro e cheio de objectos vulgares e feios. Pensei naqueles dois, do outro lado da parede, que adormeceriam juntos daí a momentos e ela debaixo do seu companheiro, o queixo sobre o seu ombro, as pernas entrelaçadas nas suas, o braço à volta da cintura, a mão na virilha, os dedos anichados nas pregas do ventre, como raízes procurando a vida nas profundezas da terra. Senti-me de repente como uma planta desenraizada e atirada para um pavimento de pedra lisa onde irá estiolar e morrer. Jaime fazia-me falta. Estendia a mão e parecia sentir um grande espaço gelado, inabitado, que me rodeava por todos os lados e no meio do qual me encolhia, só e abandonada. Sentia um violento e doloroso desejo de me agarrar a ele, mas ele não estava presente e tinha a impressão de estar viúva. Comecei a chorar estendendo os braços debaixo dos lençóis e imaginando abraçá-lo. Acabei por adormecer não sei como.

Tive sempre o sono pesado; por isso na manhã seguinte, quase me admirei ao acordar na cama de Zelinda com um raio de sol sobre a almofada. Ainda estava meia atordoada quando ouvi tocar o telefone no corredor. Zelinda atendeu. Chamou-me e depois bateu à porta. Saltei da cama, e, em camisa e com os pés nus, corri para o corredor. Zelinda voltara para a cozinha. Peguei no auscultador e ouvi a voz da minha mãe a perguntar:

— És tu, Adriana?

— Sim.

— Mas porque te foste embora? Aqui aconteceram coisas!… Podias ao menos ter-me avisado! Tive tanto medo!

— Já sei tudo — disse rapidamente. — É inútil falar agora nisso.

— Estava em cuidados contigo! — prosseguiu. — Está cá o Sr. Diodatti?

— O Sr. Diodatti?

— Sim. Veio esta manhã muito cedo e quer ver-te por força. Diz que te espera.

— Diz-lhe que vou já. Dentro de um minuto estou lá. Repus o auscultador, corri para o quarto e vesti-me à pressa. Não esperava que Jaime fosse posto em liberdade tão depressa e senti-me menos feliz do que se estivesse esperando alguns dias ou uma semana pela sua libertação. Uma libertação tão rápida inspirava-me desconfiança; não podia deixar de sentir uma vaga apreensão. Mas acalmei a minha inquietação pensando que, além de tudo, podia ser que Astárito tivesse conseguido soltá-lo imediatamente, como mo tinha prometido. De resto estava impaciente por vê-lo e esta impaciência era feita de um sentimento de felicidade ligeiramente angustiante.

Acabei de me vestir, meti na mala os cigarros, os bombons e os bolinhos, para não magoar Zelinda, depois entrei na cozinha para me despedir da dona de casa.

— Estás mais bem disposta agora? — disse-me. — Passou-te o mau humor?

— Estava cansada… Até qualquer dia.

— Julgas que não ouvi o que dizias ao telefone? O Sr. Diodatti… mas espera… toma uma chávena de café.

Já estava fora de casa e ela ainda falava atrás de mim. No táxi, toda curvada no banco com as mãos em cima da mala, estava preparada para descer logo que o carro parasse, porque temia encontrar um ajuntamento em frente da minha porta, depois dos tiros de Sonzogne. Perguntava a mim própria se seria prudente entrar em casa; Sonzogne podia vir de um momento para o outro para se vingar… Senti que isso não me importaria. Se Sonzogne se queria vingar, que o fizesse; eu queria ver Jaime e estava disposta a não me esconder mais por actos que não tinha praticado.

Ninguém encontrei em frente da casa, nem ninguém na escada. Impetuosamente irrompi pela sala e vi minha mãe, que cosia à máquina, sentada ao pé da janela. O sol entrava a jorros pelos vidros da janela; o gato da casa, sentado em cima da mesa, alisava as patas. Minha mãe parou logo de coser e disse-me:

— Até que enfim… Não podias ao menos ter-me dito que ias à polícia?

— Que polícia? Mas que estás a dizer?

— Eu teria ido contigo. Não teria passado por este susto!

— Mas eu não saí para ir chamar a polícia! — disse-lhe, irritada. — Saí por sair. Os agentes procuravam outro. Quer dizer que este também tinha alguma coisa na consciência.

— Não queres dizer-me, nem mesmo a mim? — respondeu-me com um olhar de reprovação maternal.

— Mas o que?

— Não serei eu quem irá contar. Mas tu não quererás que eu acredite que saíste só por sair. Aliás, os polícias vieram justamente alguns minutos depois de teres saído.

— Mas não é verdade. Eu…

— De resto, fizeste bem. Há por aí muitos espiões. Sabes o que um dos guardas me disse?

— “Esta cara não me é estranha”.

Compreendi que não havia maneira de a persuadir de que eu não saíra para denunciar Sonzogne. Nada havia a fazer.

— Está bem. Está bem — interrompi-a bruscamente. — E o ferido… como é que o levaram?

— Qual ferido?

— Disseram-me que havia um moribundo.

— Informaram-te mal… Um dos polícias teve um raspão num braço com um tiro… fui eu quem lhe ligou a ferida… foi-se embora pelo seu pé. Mas se tu tivesses ouvido aqueles tiros! Foi na escada que eles dispararam. Toda a casa estremeceu de alto a baixo. Depois interrogaram-me. Mas eu disse que nada sabia.

— Onde está Diodatti?

— No teu quarto.

Se eu tive esta pequena conversa com minha mãe fora porque agora experimentava uma espécie de repugnância em ir ter com Jaime, como se pressentisse uma má notícia. Saí da sala e dirigi-me para o quarto. Estava mergulhado numa escuridão completa; mas mesmo antes de eu ter posto a mão no interruptor, ouvi a voz de Jaime que me dizia:

— Por favor, não acendas a luz.

Feriu-me o tom da sua voz, muito pouco alegre de verdade! Fechei a porta, aproximei-me da cama às apalpadelas e sentei-me aos seus pés:

— Sentes-te bem? — perguntei.

— Sinto-me muito bem.

— Não estás cansado?

— Não, não estou.

Previra um encontro diferente. Mas a verdade é que a alegria não se pode separar da luz. Nesta escuridão parecia-me que os meus olhos não podiam brilhar, a minha voz não podia soltar exclamações alegres, as minhas mãos não se podiam estender para reconhecer as formas queridas. Esperei um momento; depois inclinando-me sobre ele, murmurei-lhe:

— Que queres fazer? Queres dormir?

— Não.

— Queres que me vá embora?

— Não.

— Que fique ao pé de ti?

— Sim.

— Queres que me deite em cima da cama?

— Sim.

— Queres que nos amemos? — perguntei por perguntar.

— Sim.

Esta resposta surpreendeu-me porque, como já disse, ele nunca estava realmente disposto a fazer amor. Senti-me de repente perturbada e acrescentei com voz acariciadora:

— Gostas de fazer amor comigo?

— Sim.

— Vais amar-me sempre daqui em diante?

— Sim.

— E ficaremos juntos para sempre?

— Sim.

— Mas não queres mesmo que eu acenda a luz?

— Não.

— Não tem importância… Dispo-me às escuras.

Comecei a despir-me com o embriagador sentimento da vitória completa. Pensava que a noite passada na prisão lhe revelara bruscamente que me amava e que precisava de mim. Enganava-me, como se verá em seguida; se bem que pensasse que houvera uma ligação entre esta brusca condescendência e a prisão, não compreendia que esta mudança de atitude nada tinha que me pudesse envaidecer, ou simplesmente alegrar. O meu corpo, como um cavalo há muito tempo refreado, impelia-me impetuosamente para ele; estava impaciente por lhe fazer o alegre, o ardente acolhimento que um momento antes a obscuridade e a sua atitude me não tinham permitido.

Mas quando me aproximei e me inclinei sobre a cama para me estender ao seu lado, senti-o de repente tomar-me os joelhos com os braços e morder-me a anca esquerda até fazer sangue. Senti ao mesmo tempo uma dor aguda e uma sensação de desespero que se exprimia por esta dentada, como se não fôssemos dois amantes preparando-se para se amarem, mas dois danados que o ódio, o furor e a tristeza impelissem, no fundo de um inferno de um novo gênero, a morder-se um ao outro. A dentada foi tão grande que quase se podia dizer que ele me queria arrancar um bocado de carne. Enfim, se bem que eu quase gostasse que ele me mordesse e, a despeito do pouco amor que eu sentia nesta mordedura, me desse prazer, não pude suportar a dor e empurrei-o dizendo em voz baixa e magoada:

— Mas não… que fazes? Magoas-me.

Foi assim que acabou o meu ilusório sentimento de vitória. Em seguida, durante todo o tempo em que nos amamos, não dissemos uma palavra; mas a sua atitude não deixava por isso de me revelar obscuramente o verdadeiro porque do seu abandono, que ele me explicaria mais tarde pormenorizadamente. Compreendi que até então o que ele não aceitava não era tanto a minha pessoa como uma parte dele próprio levada a desejar-me; agora, pelo contrário, por um motivo que só ele sabia, deixava esta parte dele próprio, refreada até então, saciar-se livremente. Eu em nada contribuíra. Da mesma maneira que ele não me amava antes, também não me amava agora. Eu ou outra era a mesma coisa para ele. Agora como dantes eu não era mais do que um meio do qual ele fazia uso para se punir ou para se recompensar. Todas estas coisas, enquanto estivemos deitados no escuro, não as pensara; sentia-as na, minha carne e no meu sangue, da mesma maneira que algum tempo antes sentira que Sonzogne era um monstro, sem saber ainda nada do seu crime. Mas amava Jaime, e o meu amor era mais forte do que este sentimento. Admirou-me a violência e insaciabilidade do seu desejo, anteriormente tão avaro. Sempre pensara que ele se moderava um pouco por razões de saúde, porque era de compleição fraca. Por isso, depois de me ter possuído duas vezes, ao vê-lo recomeçar pela terceira vez, não pude deixar de lhe sussurrar ao ouvido:

— Por mim, podes… mas vê lá não te faça mal.

Tive a impressão de que se riu e ouvi a sua voz murmurar-me:

— De futuro nada me pode fazer mal.

Este de “futuro” deu-me uma impressão fúnebre, se bem que até mesmo o prazer que eu encontrava nestes beijos foi quase suprimido e eu esperava com impaciência o momento em que lhe pudesse falar e saber enfim o que lhe acontecera. Depois do amor pareceu dormitar: mas talvez não dormisse. Esperei um tempo razoável e, fazendo um esforço tal que o coração quase me saltava do peito, perguntei-lhe em voz alta:

— Agora vais dizer-me o que te aconteceu.

— Nada me aconteceu.

— No entanto deve ter sucedido qualquer coisa.

Calou-se um momento, depois disse-me como se falasse consigo próprio:

— Depois disto tudo, suponho que tu também o deves saber. Pois bem! Aconteceu que depois das onze horas da noite eu tornei-me um traidor.

Estas palavras gelaram-me horrivelmente, não tanto por elas, como pela maneira como foram ditas.

— Um traidor? — balbuciei. — Porquê?

Respondeu-me no seu tom frio e lúgubre:

— Entre os seus companheiros de ideal político, o Sr. Diodatti era conhecido pela sua intransigência de opiniões e pela violência dos seus ódios. Consideravam muito simplesmente o Sr. Diodatti como um futuro chefe e ele estava de tal maneira certo de que faria boa figura em qualquer circunstância que quase desejava ser preso e posto à prova. Sim, porque o Sr. Diodatti pensava que a captura, a prisão e os outros sofrimentos são necessários na vida de um homem político como são necessários os longos cruzeiros, as tempestades e os naufrágios na vida de um homem do mar!… Mas à primeira onda, o marinheiro sentiu-se mal como qualquer criaturinha sem importância… Assim que se viu em frente de um polícia, sem mesmo esperar que o ameaçassem ou o espancassem, o Sr. Diodatti abandonou a carreira política e entrou na que podia chamar-se da denúncia.

— Tiveste medo! — gritei.

Respondeu-me com calma:

— Não. Nem sequer tive medo. Somente sucedeu-me aquilo que me aconteceu naquela famosa noite, contigo, quando querias que te explicasse as minhas ideias… bruscamente aquilo deixou de me interessar por completo. O que me interrogou pareceu-me quase simpático. Tinha interesse em saber certas coisas… e eu, nesse momento, não tinha interesse em esconder-lhas… então disse-lhas… simplesmente. Ou talvez — acrescentou depois de uns minutos de reflexão — não tão simplesmente como isso, mas logo, apressadamente, poderia dizer que quase com zelo. Mais um pouco e seria ele quem moderaria o meu entusiasmo!

Pensei em Astárito e pareceu-me estranho que Jaime o tivesse achado simpático.

— Mas quem te interrogou? — perguntei.

— Não o conheço. Um homem novo, com uma cara amarelada, olhos pretos, muito bem vestido. Devia ser um alto funcionário.

— E achaste-o simpático! — não me pude impedir de gritar, reconhecendo nesta descrição o próprio Astárito.

No escuro, disse-me ao ouvido:

— Devagarinho… não ele pessoalmente, mas a sua função. Mas sim, quando se renuncia a si mesmo, ou quando não somos aquilo que devíamos ser, o que conta é o que se é. Não sou eu o filho de um rico proprietário? E este homem, dentro das suas funções, não defende os meus interesses? Reconhecemos que éramos da mesma raça… solidários da mesma causa… Que imaginas? Que simpatizei com ele pessoalmente? Não, não… senti simpatia pela sua função… Senti que era eu quem lhe pagava, que era a mim que ele defendia; comparecendo perante a sua pessoa como acusado estava por detrás como patrão.

Ria, ou, melhor, dava umas risadinhas que arranhavam os meus ouvidos. Eu nada percebia, senão que acontecera qualquer coisa muito triste e que a minha vida estava de novo em risco.

Acrescentou passado um momento:

— Talvez eu me calunie… talvez eu tenha falado assim, porque nenhuma importância dava ao facto de não falar… Porque bruscamente tudo me pareceu absurdo e sem importância e porque não compreendia coisas nas quais deveria ter acreditado.

— Nada mais compreendias? — perguntei maquinalmente.

— Não… Quando muito compreendia as palavras como as compreendo agora, mas não os factos que essas palavras traduziam… E então… não se pode sofrer pelas palavras. As palavras não são mais que sons… E ninguém vai para a cadeia porque um burro zurrou ou a roda de um carro guincha. As palavras já não tinham valor para mim, pareciam-me todas iguais e absurdas. Ele queria palavras, eu dei-lhe tantas quantas ele queria.

— Mas então — objectei eu — se eram só palavras, que mal é que isso te pode fazer?

— Sim, mas, infelizmente, logo que foram pronunciadas essas palavras cessaram de ser simples palavras e passaram a ser factos.

— Porquê?

— Porque eu comecei a sofrer. Porque devo ter tido remorsos de as ter dito. Porque, compreendi, senti que dizendo essas palavras me tornara naquilo que se chama um traidor.

— Mas então porque as disseste?

Respondeu-me lentamente:

— Porque se fala quando se sonha? Dormia talvez… mas agora acordei.

Virávamos o assunto por todos os lados e voltávamos sempre ao mesmo ponto. Senti um desalento atroz e disse-lhe com esforço:

— Talvez te tenhas enganado; julgas ter dito sabe Deus o que é possível que não te tenhas comprometido.

— Não, não me engano — respondeu.

Calei-me um momento. Depois disse:

— E os teus amigos?

— Quais amigos?

— Túlio e Tomás.

— Nada sei a respeito deles — disse afectando indiferença. — Vão prendê-los.

— Não — gritei. — Não os prenderão.

Pensava que Astárito não se tinha com certeza aproveitado deste momento de fraqueza de Jaime. Pela primeira vez, no entanto, a ideia da prisão dos dois amigos fez-me entrever a gravidade de toda esta história.

— Porque não os prenderão? — disse ele. — Dei os seus nomes. Nenhuma razão há para que não os prendam.

— Oh! Jaime! — gritei com angústia. — Porque fizeste isso?

— É o que pergunto a mim próprio.

— Mas se os prendem — disse eu, passado um momento, agarrando-me assim à única esperança que me restava — nada há de irreparável. Eles nunca saberão que foste tu…

— Não — interrompeu-me. — Mas eu saberei… saberei sempre… saberei que não mais serei como era, que sou outra personagem, à qual no momento em que falava dera a vida como a mãe dá ao filho deitando-o ao mundo. E, infelizmente, esta personagem não me agrada… aí é que está a desgraça… Há maridos que matam as mulheres porque lhes é intolerável continuarem a viver juntos. Imagina o que é ter dois seres no mesmo corpo quando há um que odeia o outro até à morte. Quanto aos meus amigos, vão com certeza prendê-los.

Não pude conter-me por mais tempo e disse-lhe:

— Mesmo que não tivesses falado, terias sido posto em liberdade. E os teus amigos não correm qualquer perigo.

Contei por alto e rapidamente a história das minhas relações com Astárito, a minha intervenção a seu favor e a promessa que Astárito me havia feito. Ouviu-me sem dizer palavra, depois declarou:

— Sim, senhor! Com que então devo a minha liberdade não só à minha actividade de espião, mas ainda às tuas relações amorosas com um polícia.

— Jaime! Não fales assim!

— De resto — continuou, passado um momento —, estou contente que os meus amigos se consigam livrar; pelo menos não terei esses remorsos na consciência.

— Vês? — disse-lhe vivamente. — Que diferença há entre ti e os teus amigos? Eles também devem a sua liberdade, assim como tu, a mim e ao facto de Astárito estar apaixonado.

— Perdão, aí há uma diferença! Eles não falaram.

— Quem to disse?

— Espero bem que não o tenham feito, fossem eles o que fossem: de resto isso não seria uma consolação para mim.

— Mas tu não tens mais que passar a comportar-te como se nada se tivesse passado! — insisti de novo. — Volta para o pé deles sem fazer nenhuma alusão ao assunto… Que pode acontecer? Acontece a toda a gente ter um momento de fraqueza.

— Sim — respondeu-me —, mas não acontece a toda a gente morrer e continuar vivo. Sabes o que me aconteceu no momento em que falei? Morri… estou morto… simplesmente morto… para sempre.

Incapaz de suportar por mais tempo a angústia que me apertava o coração desfiz-me em lágrimas.

— Mas porque estás a chorar? — perguntou-me.

— Por causa das coisas que dizes — respondi soluçando —, que estás morto. Isso assusta-me tanto!

— Desagrada-te estar ao lado de um morto? — perguntou-me brincando. — No entanto não é tão horrível como parece… Não é mesmo nada horrível… Estou morto mas de uma maneira particular… no que diz respeito ao corpo, estou bem vivo… apalpa aqui e vê lá se não estou vivo.

Agarrou-me a mão e fez-me tocar-lhe no corpo.

— Estou bem vivo como tu sentes…

Puxava-me a mão para obrigar-me a apalpá-lo.

— Estou portanto vivo… por aquilo que te diz respeito, como acabas de verificar, estou mais vivo do que nunca… não tenhas medo; se nós, enquanto eu estava vivo, não nos amamos muitas vezes, em compensação vamos fazê-lo agora, que estou morto, com muito mais frequência.

Com uma espécie de desprezo raivoso tirou de cima dele a minha mão inerte. Levei as duas ao rosto e dei largo curso à minha miserável dor. Desejaria ter chorado sempre, não parar de chorar, porque temia o momento em que o pranto cessa e se fica vazio e como que apatetado diante das coisas que o faziam sofrer. No entanto, esse momento chegou; limpei ao lençol a minha cara inundada e fixei os olhos dilatados no vácuo. Então ouvi que ele me perguntava numa voz afectuosa e doce:

— Vejamos, na tua opinião que devia eu fazer?

Voltei-me para ele com violência, apertei-me contra o seu peito e disse-lhe:

— Não pensar mais nisso… o que aconteceu, aconteceu… não te preocupes… é o que deves fazer!

— E depois?

— Depois, retoma o trabalho… faz o teu doutoramento… depois volta para a tua terra… pouco me importa se não te tornar a ver desde que te saiba feliz… arranja um emprego! Quando chegar o momento, casa com uma rapariga da tua região, da tua situação social, que te ame sinceramente… A política para que te serve? Tu não foste feito para a política… fizeste mal em te meter nela… foi um erro; acontece a toda a gente cometer erros… Um dia há-de parecer-te estranho como chegaste a interessar-te por essas coisas. Eu amo-te sem egoísmo. Jaime. Outra mulher não quereria separar-se de ti… Pois bem!… se for preciso parte amanhã… não nos veremos mais, contanto que sejas feliz!

— Mas eu — disse ele em voz baixa e clara —, nunca mais serei feliz; sou um delator.

— Não é verdade! — respondi, exasperada. — Não és um delator! E mesmo que o tivesses sido podias ainda ser feliz. Há pessoas que cometeram verdadeiros crimes, e no entanto são felizes. Eu, por exemplo. Quando se diz uma mulher da rua, sabe Deus o que se imagina: ora eu sou uma rapariga como as outras. Muitas vezes sou até feliz. Nestes últimos dias — acrescentei com amargura — era tão feliz!

— Eras feliz?

— Sim, completamente! Mas sabia bem que não podia durar muito, e naturalmente…

Ao dizer isto tive outra vez vontade de chorar, mas contive-me.

— Tu julgavas ser muito diferente do que és… E o que aconteceu, aconteceu. Agora aceita ser como és realmente… e verás como tudo se arranjará depressa. No fundo sofres pelo sucedido porque tens vergonha e receias o julgamento dos outros, dos teus amigos… Pronto! Deixa de andar com eles, procura outras pessoas, o mundo é tão grande… Se eles não te querem o suficiente para compreenderem que isto não foi mais que um momento de fraqueza, fica comigo, eu amo-te, compreendo-te e não te julgo… Asseguro-te — gritei com força —, quanto pior fosse a acção que tivesses cometido mais serias para sempre o meu Jaime!

Nada replicou e eu continuei:

— Não sou mais que uma pobre rapariga ignorante, eu sei, mas há coisas que compreendo melhor do que tu. Eu também já passei pelo que tu sentes neste momento. A primeira vez que nos vimos, e em que tu nem sequer me tocaste, meteu-se-me na cabeça que era porque me desprezavas e de repente perdi até mesmo o gosto de viver. Sentia-me tão desgraçada! Gostaria de ser outra e ao mesmo tempo compreendia ser impossível e que continuaria sempre a ser o que era; tinha uma vergonha que me queimava, um aborrecimento, um desespero… sentia-me gelada. paralisada… por instantes desejei morrer. Depois, um dia, saí com minha mãe e entrei por acaso numa igreja, e ali, rezando. compreendi que no fundo nada havia de que corar… que se eu era feita desta maneira era porque Deus o tinha querido, que não me devia revoltar contra a minha sorte, mas, pelo contrário, aceitá-la com docilidade e confiança, e que se me desprezavas era por defeito teu e não meu… Em suma, pensei muitas coisas, e por fim passou-me toda a mortificação e senti-me de novo alegre.

Começou a rir, com aquele riso que me gelava, e disse:

— Em resumo, devia aceitar o que fiz e não me revoltar. Devia aceitar aquilo em que me tornei e não me julgar. Talvez que na igreja se possam passar essas coisas, mas fora da igreja…

— Pois bem! Vai à igreja! — propus-lhe, agarrando-me a esta nova esperança.

— Não, não irei. Não sou crente e a igreja aborrece-me. E depois…

Recomeçou a rir, depois, de repente, pôs-se sério, agarrou-me pelos ombros e começou a sacudir-me com violência, gritando:

— Mas tu não compreendes a minha acção? Não compreendes? Não compreendes?

Abanava-me com tal força que me cortava a respiração. Com uma última sacudidela atirou-me para trás e senti-o saltar da cama e começar a vestir-se às escuras.

— Não acendas a luz! — disse-me com ar ameaçador. — É preciso que eu me habitue a que me olhem outra vez de frente… por agora é ainda cedo. Ai de ti se a acendes!

Nem ousava respirar, mas acabei por perguntar:

— Vais-te embora?

— Sim, mas voltarei — disse-me.

Pareceu-me que ria de novo:

— Não tenhas medo, que voltarei… Devo mesmo dar-te uma boa notícia: tenciono viver contigo definitivamente.

— Aqui, em minha casa?

— Sim, mas não te incomodarei… terás a liberdade necessária para continuares com a tua vida habitual. De resto — acrescentou — poderemos viver os dois com o que me manda a minha família… dava para pagar a pensão… mas aqui em casa chega bem para os dois.

Esta ideia de ele viver em minha casa parecia-me mais estranha do que agradável. No entanto nada me atrevi a dizer. Acabou de vestir-se em silêncio, às escuras.

— Voltarei esta noite — disse-me.

Ouvi-o abrir a porta, sair e tornar a fechá-la. Fiquei com os olhos abertos fixos na escuridão.

10

Nessa mesma tarde, como Astárito me aconselhara, fui ao comissariado do bairro fazer um depoimento sobre a história de Sonzogne. Não entrava ali sem repugnância, porque depois do que acontecera a Jaime, tudo o que era polícia ou policial inspirava-me um mal-estar de morte. Mas agora já estava quase resignada. Compreendia que durante algum tempo a vida não teria o menor atractivo para mim.

— Esperamo-la de manhã — disse-me o comissário quando lhe disse o motivo da minha visita.

Era um excelente homem e há muito tempo que o conhecia: se bem que fosse pai de família e tivesse passado os cinquenta, já há muito tempo que eu compreendia que tinha por mim mais do que uma simples simpatia. Lembro-me, sobretudo do seu nariz: grosso, esponjoso e com um ar melancólico. Tinha sempre o cabelo despenteado e os olhos sonolentos, como se tivesse acabado de levantar-se. Esses olhos, de um azul intenso, olhavam como do interior de uma máscara num rosto espesso, rosado e gretado, lembrando a casca de certas laranjas enormes, mas ocas.

Disse-lhe que me fora impossível vir mais cedo. Os seus olhos olharam-me um momento, depois perguntou-me com um ar cúmplice:

— Então como se chama ele?

— Como quer que saiba?

— Então, sabe muito bem!

— Palavra de honra! — disse-lhe pondo a mão no peito. Abeirou-se de mim no Corso. Tive, de facto, a impressão de qualquer coisa estranha na sua atitude, mas não lhe prestei grande atenção.

— Como se compreende que não estivesse em casa e ele tivesse lá ficado só?

— Tinha-o deixado porque tinha um encontro urgente.

— Mas ele julgou que tivesse saído para ir procurar a policia. Sabia? Julgou que o tinha vendido.

— Já sei.

— E que lhe faria pagar isso.

— Tanto pior.

— Mas não percebe — acrescentou olhando-me de lado — que é um homem perigoso e que amanhã, para se vingar da sua suposta denúncia, pode muito bem atirar-lhe, como disparou sobre os polícias?

— Com certeza que já percebi!

— Então porque não diz o seu nome? Seria preso e deixaria de a preocupar.

— Pois se eu lhe digo que não sei! Não é por mal! Só me faltava saber o nome de todos os homens que levo para casa!

— Está bem! Nós, pelo contrário — afirmou de repente com voz forte e teatral, curvando-se para a frente —, nós sabemos o nome dele!

Percebi que era uma cilada e respondi tranquilamente:

— Se o sabe, porque me atormenta tanto? Prendam-no e não se fala mais nisso.

Olhou-me um momento em silêncio; notei que os seus olhos, incertos e perturbados, fixavam mais o meu corpo do que a minha cara e compreendi subitamente que, contra a sua vontade, o seu velho desejo substituíra o fervor profissional.

— Sabemos ainda outra coisa — continuou — é que se ele disparou e se safou é porque tinha boas razões para o fazer!

— Ah! Quanto a isso não tenho dúvidas!

— Mas conhece essas razões?

— Não sei coisa alguma. Pois se eu nem lhe conheço o nome, com quer que saiba o resto?

— Nós sabemos muito bem o resto.

Falava mecanicamente, como se pensasse noutra coisa: tinha a certeza de que não tardaria a levantar-se e a vir ao pé de mim.

— Nós sabemos muito bem e havemos de o apanhar… é uma questão de dias, talvez de horas.

— Ainda bem para vocês.

Levantou-se, como eu tinha previsto, chegou-se a mim e agarrou-me o queixo com a mão:

— Vamos! Vamos! — disse-me. — Sabe tudo e não quer dizer. De que tem medo?

— De nada tenho medo e nada sei — respondi. — Mas trate de tirar as mãos…

— Vamos! Vamos! — repetiu.

Mas voltou a sentar-se à secretária.

— Tem sorte em eu simpatizar consigo e saber que é boa rapariga — disse-me. — Sabe o que qualquer outro faria para a obrigar a falar? Tê-la-ia engaiolado durante um bom bocado. Ou então mandava-a para S. Galicano.

Levantei-me declarando:

— Bem! Tenho que fazer! Se nada mais tem para me dizer…

— Pode retirar-se — concordou — mas tenha cuidado com a frequência… políticos e outros!

Fingi não perceber as últimas palavras, pronunciadas num tom cheio de alusões, e saí rapidamente das salas sórdidas do comissariado.

Enquanto andava pensava em Sonzogne. O comissário não tinha feito mais que confirmar o que eu já tinha pensado: Sonzogne estava convencido de que eu o denunciara e queria vingar-se. Fui tomada de pavor, não por mim, mas por Jaime. Sonzogne estava furioso; se ele encontrasse Jaime comigo não hesitaria em matá-lo também. Devo dizer que a ideia de morrer com Jaime me sorria estranhamente. Parecia-me ver a cena: Sonzogne disparava; eu punha-me à frente de Jaime para o proteger e recebia a bala em seu lugar. Mas não me desagradava imaginar Jaime também ferido e a nossa morte comum, com os nossos sangues misturados. No entanto reflectia que ser morto ao mesmo tempo pelo mesmo assassino não era tão belo como um suicídio duplo, o qual me parecia um fim digno de um grande amor. Era como matar uma flor antes de ela começar a fenecer, fechar-se no silêncio depois de ter ouvido uma música sublime. Tinha algumas vezes pensado nesta forma de suicídio que pára o tempo antes que ele corrompa e avilte o amor e que se leva a efeito mais por excesso de alegria que pela intolerância da dor. Momentos havia em que me parecia amar Jaime com demasiada intensidade ao ponto de recear a impossibilidade de, no futuro, o amar tanto; tive a ideia deste suicídio duplo com a mesma naturalidade e a mesma espontaneidade como o beijava e o acariciava. Mas nunca lhe falara nisso porque sabia que para nos matarmos juntos era condição essencial que o nosso amor tivesse a mesma intensidade. E Jaime não me tinha amor ou se o tinha não me queria o suficiente para desejar deixar de viver.

Continuando a andar de cabeça baixa na direcção de casa, reflectia intensamente em tudo isto. De repente senti uma espécie de vertigem acompanhada de náuseas e de um mal-estar horrível. Nem sei como consegui entrar numa leitaria. Estava a poucos passos da minha casa, mas não tinha forças para fazer aquele curto trajecto; teria caído no chão se o tentasse.

Sentei-me a uma mesa atrás da porta envidraçada e fechei os olhos. Continuava a sentir uma violenta sensação de náusea e de vertigem e esta sensação era agravada pelo arquejar da máquina do café, embora bastante afastada, que me produzia uma sensação de angústia. Sentia na cara e nas mãos a tepidez da sala fechada e aquecida e, no entanto tinha muito frio. O empregado conhecia-me e gritou-me por detrás do balcão:

— Um café, menina Adriana?

Disse que sim com a cabeça, sem abrir os olhos. Por fim reanimei-me e tomei o café que o empregado colocara em cima da mesa. A bem dizer não era a primeira vez que era tomada por esta má disposição; nos últimos tempos sentira-a já, mas não tinha ligado importância, devido aos acontecimentos insólitos e angustiantes. Mas agora, pensando nisso e estabelecendo uma relação entre a indisposição e uma irregularidade significativa verificada na minha vida física no decurso do mês, convenci-me de que certas suspeitas que ultimamente haviam atravessado o meu espírito e a que eu não dera consistência correspondiam à verdade.

“Não há dúvida alguma”, pensei bruscamente. “Espero com certeza um filho.” Paguei o café e saí. O que nesse momento sentia era muito complicado: hoje ainda, passado tanto tempo, não me é fácil traduzi-lo. Por experiência própria sabia que as desgraças nunca vêm sós; a presente certeza que tempo atrás e noutras circunstâncias seria acolhida com alegria, neste momento não podia deixar de considerá-la uma desgraça. Mas, por outro lado, um movimento irresistível e misterioso da minha alma leva-me sempre a descobrir o lado agradável das coisas mais desconcertantes. Desta vez o lado agradável não era difícil de descobrir; era o mesmo que enchia de esperança e de satisfação o coração de todas as mulheres logo que sentem que foram tomadas pela prenhez. Era um facto que o meu filho nasceria nas mais desfavoráveis condições; no entanto, não seria menos meu filho: seria eu quem o amamentaria, o criaria e o educaria. “Um filho é um filho”, pensava eu; “não há pobreza, nem circunstâncias adversas, nem futuro sombrio que possam impedir uma mulher, por mais miserável e abandonada que seja, de se alegrar à ideia de ir ser mãe.” Estas reflexões acalmaram-me; depois de um minuto de apreensão e de desencorajamento senti-me tão tranquila e confiante como sempre. O jovem médico que me vira há tanto tempo já, quando minha mãe me levara à farmácia de serviço para saber se eu tinha ou não pertencido a Gino. tinha o consultório próximo da pastelaria. Resolvi ir lá e consultá-lo. Era cedo: ninguém havia na sala de espera; o doutor, que me conhecia muito bem, acolheu-me com simpatia. Logo que fechei a porta, anunciei-lhe tranquilamente:

— Doutor, tenho quase a certeza de estar grávida.

Ele começou a rir porque sabia qual era o meu ofício e perguntou-me:

— Estás contrariada por isso?

— De maneira nenhuma. Estou contente.

— Vejamos.

Depois de me ter feito algumas perguntas sobre a minha indisposição, mandou-me estender na marquesa, examinou-me e disse alegremente:

— Desta vez é certo!

Senti-me feliz por ver as minhas suspeitas confirmadas. Disse-lhe com o espírito tranquilo e sem sombra de desapontamento:

— Já o sabia; vim só para ter a certeza.

— Agora podes estar certa.

Esfregava as mãos alegremente como se fosse ele o pai da criança, alegre, cheio de simpatia por mim. Mas uma dúvida atravessou-me o espírito:

— Há quanto tempo? — perguntei.

— Bom! Talvez dois meses… um pouco mais, um pouco menos… Porquê, queres saber de quem é?

— Já sei.

Dirigi-me para a porta.

— Se precisares seja do que for, podes procurar-me — disse, abrindo-me a porta. — Quando chegar a altura, procuraremos fazer com que nasça nas melhores condições possíveis.

Tinha por mim, como o comissário, uma inclinação muito acentuada. Mas a diferença é que este agradava-me.

Vinha frequentemente consultá-lo. Pelo menos uma vez de quinze em quinze dias. E duas ou três vezes, por gratidão, tinha consentido que ele me amasse, ali mesmo sobre a marquesa coberta de oleado onde acabara de me examinar. Mas ele era discreto e contentava-se com pequeninos gracejos afectuosos, sem nunca me impor os seus desejos. Dava-me conselhos e imagino que, à sua maneira, estava também um pouco apaixonado por mim.

Tinha dito ao médico que conhecia o pai do meu filho. Na realidade no momento em que pronunciei estas palavras não tinha mais do que uma suspeita e mais por instinto que por cálculo. Mas caminhando, quando contei os dias e reavivei as minhas recordações, esta suspeita tornou-se certeza. Lembrei-me do desejo e do terror que me tinham arrancado, precisamente quase há dois meses, um longo grito lamentoso de agonia e de prazer, e fiquei quase certa que o pai não podia ser outro senão Sonzogne. Era horrível pensar que iria ter um filho de um assassino insensível e monstruoso como Sonzogne; podia recear que a criança se parecesse com o pai e viesse marcada com o seu carácter. Por outro lado não podia deixar de encontrar alguma justiça nesta paternidade. Entre tantos homens que me tinham amado Sonzogne era o único que realmente me possuíra fora de qualquer sentimento amoroso, no fundo mais obscuro e mais secreto da minha carne. O facto de eu experimentar por ele apenas medo e horror e de me ter entregue contra vontade não desmentia, antes confirmava, a profundidade desta posse. Nem Gino, nem Astárito, nem mesmo Jaime, por quem eu tinha uma paixão de um gênero completamente diferente, tinham suscitado em mim o sentimento de uma posse tão legítima quão detestada. Tudo isto me parecia ao mesmo tempo estranho e assustador, mas era assim: os sentimentos são a única coisa que não se pode recusar, nem desmentir, nem mesmo analisar, num certo sentido. Acabei por concluir que o amor exige uns certos homens e a procriação outros, e que se era justo que eu tivesse um filho de Sonzogne não era menos justo da minha parte detestá-lo, fugir-lhe e amar Jaime como o amava.

Subi lentamente a minha escada pensando no fardo vivo que de futuro traria no ventre. Quando entrei no vestíbulo ouvi falar na sala grande. Espreitei e vi com surpresa Jaime, sentado à mesa, conversando calmamente com minha mãe, sentada a coser ao pé dele. Só o candeeiro central estava iluminado: um candeeiro de suspensão. Uma grande parte da sala estava às escuras.

— Boas-noites — disse, molemente, aproximando-me.

— Boas-noites, boas-noites — disse-me Jaime com voz hesitante e desagradável.

Olhei-o de frente, vi-lhe os olhos brilhantes e tive a certeza de que estava embriagado. Num canto da mesa havia dois guardanapos e dois pratos. Como minha mãe comia sempre na cozinha, percebi que o outro era para Jaime.

— Boas-noites — repetiu. — Trouxe as minhas malas. Estão no teu quarto. Já conversei amigavelmente com tua mãe… Não é verdade, minha senhora, que nos entendemos às mil maravilhas?

Senti no coração um enorme desalento ao ouvir esta voz sarcástica e lugubremente chocarreira. Caí sobre uma cadeira e fechei os olhos. Ouvi minha mãe responder-lhe:

— Disse que nos entendíamos… se diz mal de Adriana nunca nos entenderemos.

— Mas que disse eu? — gritou Jaime, falsamente admirado. — Que Adriana é feita para a vida que leva. Que Adriana se sente bem nesta vida… Que mal há nisso?

— Não é verdade — retorquiu a minha mãe. — Pelo contrário, a Adriana não é feita para a vida que leva. Com a sua beleza ela merecia melhor, muito melhor. Não sabe que a Adriana é uma das mais bonitas raparigas do bairro, para não dizer de Roma? Vejo outras raparigas muito mais feias do que ela fazerem fortuna, enquanto a Adriana, que é bela como uma rainha, nada possui. Mas eu sei porque é.

— Porque é?

— Porque ela é boa de mais, aí está! É tão bonita como boa. Se ela fosse bonita e má, veria como as coisas seriam diferentes.

— Então! Então! — disse eu aborrecida com a discussão, e sobretudo com o tom de Jaime, que parecia troçar de minha mãe. — Tenho uma destas fomes! O jantar ainda não está pronto?

— Está quase pronto — disse minha mãe pousando a costura sobre a mesa e saindo rapidamente.

Levantei-me e segui-a até à cozinha.

— Então isto agora é uma pensão? — resmungou ela quando me aproximei. — Veio armado em patrão… meteu as malas no teu quarto, deu-me dinheiro para as despesas…

— Então não estás contente?

— Preferia como dantes.

— Bem. Faz de conta que estamos noivos. E depois é provisório; é uma questão de dias; ele não vai ficar sempre aqui.

Disse-lhe outras coisas do mesmo gênero para a apaziguar, beijei-a e voltei para a sala grande.

Recordarei por muito tempo este primeiro jantar com Jaime lá em casa, comigo e com minha mãe. Ele esteve sempre a brincar enquanto comia com apetite. Mas a mim as suas brincadeiras pareciam-me mais frias do que gelo e amargas como o fel. Via-se bem que não tinha senão uma ideia, que esta ideia estava enterrada na consciência como um espinho na carne e que estas brincadeiras não faziam senão mergulhar mais profundamente este espinho e reavivar-lhe a dor. Era a ideia do que dissera a Astárito. Nunca na minha vida vi alguém arrepender-se tão sinceramente de uma falta cometida. Somente, ao contrário do que os padres me tinham ensinado quando eu era garota, que o arrependimento lava a falta — este arrependimento parecia não ter fim, nem consequência, nem o mínimo resultado benéfico. Compreendi que Jaime sofria horrivelmente e eu tanto como ele ou talvez ainda mais, porque não sofria somente a sua dor, mas a minha impotência para lha tirar, ou pelo menos aliviar.

Comemos em silêncio o primeiro prato. Depois minha mãe, de pé, disse não sei o quê sobre o preço da carne e então Jaime levantou a cabeça e respondeu-lhe:

— Não tenha medo, minha senhora. De ora em diante serei eu quem pensará em tudo; vou ter um bom emprego.

A esta notícia senti um pouco de esperança.

— Que lugar? — perguntou a minha mãe.

— Um lugar na polícia — respondeu-lhe Jaime, com uma gravidade contrita —, foi um amigo da Adriana quem mo propôs… o Sr. Astárito.

Pousei o garfo e a faca e olhei-o intensamente.

— Descobriu-se — continuou — que eu possuía excelentes qualidades para fazer parte da organização.

— É possível — respondeu minha mãe —, mas eu nunca gostei de polícias… O filho da lavadeira que mora cá em cima também se fez policia. Sabe o que disseram os rapazes que trabalham no depósito de cimento, aqui ao lado? “Podes pôr-te ao largo porque já não te conhecemos!” Além disso, eles ganham mal.

Fez uma careta, mudou-lhe o prato e apresentou-lhe a carne.

— Mas não se trata disso — replicou Jaime servindo-se. — Trata-se de um lugar importante, delicado, secreto… Que diabo! Eu para alguma coisa andei a estudar! Estou quase doutorado, falo várias línguas. Só os pobres-diabos se tornam agentes, não pessoas como eu.

— É possível — repetiu minha mãe. — Toma! — acrescentou pondo no meu prato o bocado maior da carne.

— Não é possível — disse Jaime — é certo!

Calou-se por um instante, depois repetiu:

— O governo sabe que há mal-intencionados por toda a parte… Não só nas classes pobres, mas também nas ricas… Para vigiar os ricos são precisas pessoas bem educadas, que falem como eles, se vistam como eles, tenham os mesmos modos… que lhes inspirem confiança, em suma… É o que farei… frequentarei os hotéis de primeira categoria, viajarei no wagon-lit, comerei nos melhores restaurantes, vestirei dos melhores alfaiates, frequentarei as praias de luxo, os desportos de Inverno mais famosos… Que diabo! Por quem me tomam vocês?

Minha mãe agora olhava-o pasmada. Todos estes esplendores a maravilharam.

— Nesse caso — declarou — já nada mais tenho a dizer.

E eu, tendo acabado de comer, de repente tornara-se-me impossível continuar a assistir a esta lúgubre troca de palavras.

— Estou cansada — disse bruscamente. — Vou para o meu quarto.

Levantei-me e saí da sala. Uma vez no quarto, sentei-me na cama, e toda enrolada comecei a chorar em silêncio com o rosto entre as mãos. Pensava no desgosto de Jaime e na criança que ia nascer e tinha a impressão de que as duas coisas, a mágoa e a criança, aumentavam por uma força estranha que não dependia de mim e que eu não podia dominar; elas estavam vivas, nada havia a fazer. Passado um momento ele entrou; levantei-me e errei um pouco pelo quarto para que ele não visse os meus olhos com lágrimas e dar tempo a secá-los. Acendeu um cigarro, atirou-se para cima da cama e ficou deitado de costas. Sentei-me ao seu lado e pedi-lhe:

— Suplico-te, Jaime… não fales assim à minha mãe.

— Porque?

— Porque ela não compreende; eu, pelo contrário, compreendo e cada uma das tuas palavras é como uma agulha que me enterrassem no coração.

Não respondeu e continuou a fumar em silêncio. Tirei da gaveta uma das minhas camisas, agulha e linha, sentei-me na cama ao lado da lâmpada e, calada, comecei a coser. Não queria falar porque tinha medo de que ele voltasse ao mesmo assunto; esperava, pelo contrário, que se guardássemos silêncio ele acabaria por desanuviar o espírito e pensar noutra coisa. A costura requer muita atenção visual, mas deixa o espírito livre; as mulheres batidas nesse trabalho sabem-no bem. Enquanto cosia, os pensamentos fervilhavam e giravam-me na cabeça, ou, melhor, assim como o fio passava e repassava através do tecido, assim eles pareciam coser no meu espírito não sei que bainha ou rasgão. Também eu tinha agora a mesma obsessão e não conseguia deixar de pensar no que ele dissera a Astárito e nas consequências que se seguiriam. Mas queria libertar o espírito destes pensamentos, até porque receava que alguma misteriosa influência o poderia obrigar a pensar a ele também, levando-o a aumentar a sua dor. Queria, pois, pensar nalguma coisa clara, alegre e leve, e com todas as forças da minha alma concentrava toda a minha imaginação sobre o filho que iria nascer; era, com efeito, o único aspecto alegre da minha vida entre tantas coisas terrivelmente tristes. Imaginava-o tal como seria quando tivesse dois ou três anos, a melhor idade, em que as crianças são sempre mais bonitas e mais engraçadas; e, cogitando em tudo o que ele faria e diria e na maneira como o criaria, senti voltar-me a alegria, como esperava; esqueci por momentos Jaime e a sua mágoa. Acabara de coser a camisa; peguei noutra peça de roupa para passajar, e lembrei-me de que poderia aliviar a tensão das longas horas que passaria com Jaime fazendo o enxovalinho do meu filho. Somente, seria preciso fazê-lo às escondidas ou arranjar um pretexto. Diria a Jaime que o destinava a uma das nossas vizinhas que também, por acaso, com efeito esperava um bebé; a ideia pareceu-me óptima, até porque já falara nesta mulher a Jaime e aludira à sua pobreza. Estes pensamentos distraíram-me de tal maneira que comecei, quase sem dar por isso, a cantar em voz baixa. Tenho a voz fraca, mas afinada, com uma grande doçura de timbre, que se nota mesmo quando falo. Comecei uma canção muito em voga naquele tempo que se chamava Cidade Triste. Como levantasse os olhos para partir a linha com os dentes, vi que Jaime me olhava. Então, pensando que me poderia censurar por cantar num momento tão grave, calei-me:

Olhou-me e disse:

— Continua a cantar.

— Gostas que eu cante?

— Sim.

— Mas não canto bem.

— Não faz mal.

Recomecei a coser e a cantar para ele. Como todas as raparigas, eu sabia um grande número de canções; tinha boa memória e lembrava-me do que aprendera em criança. Cantei-lhe um pouco de tudo. A uma canção seguia-se outra. Comecei por cantar em surdina, mas depois tomei-lhe o gosto e cantei em voz alta com o maior sentimento que podia. As cantigas sucediam-se; enquanto cantava uma pensava já noutra. Ele ouviu-me com uma certa seriedade no rosto e eu sentia-me feliz por poder distrair o seu espírito. Mas ao mesmo tempo pensava que quando era pequena tinha perdido não sei que brinquedo de que gostava muito; como não deixasse de chorar a sua perda, minha mãe, para me consolar, sentara-se na minha cama e começara a cantar as três únicas canções que sabia. Cantava mal, tinha voz de falsete, mas apesar de tudo acabara por me distrair: ouvia-a exactamente como Jaime me ouvia agora. Passado um momento. a ideia do brinquedo perdido começou a infiltrar-se como gotas de amargura no breve esquecimento que minha mãe me oferecera e acabou por apagá-lo totalmente e torná-lo, por contraste, insuportável, tanto assim que eu tinha recomeçado a chorar e que minha mãe, impaciente, me tinha apagado a luz deixando-me a chorar às escuras. Tinha a certeza de que apenas tivesse passado a apaziguadora doçura do meu canto, era impossível que ele não voltasse a sentir a sua mágoa, mais forte e mais aguda ainda, pelo contraste do superficial sentimentalismo das minhas canções. Não me enganava. Havia quase uma hora que eu cantava quando de repente me interrompeu:

— Agora chega! Aborreces-me com as tuas canções!

Enroscou-se como para dormir e voltou-me as costas. Esperava esta indelicadeza, por isso não me afligiu. De resto agora só esperava coisas desagradáveis e só o contrário me faria admirar. Levantei-me e fui guardar a minha roupa já passajada. Depois despi-me sem dizer palavra e enfiei-me na cama no lado que Jaime deixara livre. Ficamos assim muito tempo, em silêncio, de costas um para o outro. Sabia que ele não dormia e que continuava possuído da sua ideia dominante; esta certeza, aliada ao agudo sentido da minha impotência, provocava no meu espírito um turbilhão de pensamentos confusos e desesperados. Estava deitada de lado e, reflectindo, fixava os olhos num canto do quarto. Via uma das duas malas que Jaime trouxera de casa da viúva Medolaghi; uma velha mala de couro amarelo, recamada de etiquetas de hotéis. Havia uma, com um rectângulo de mar azul, uma grande rocha vermelha e a inscrição: “Capri”. Na sombra, pelo meio do mobiliário pálido e pobre do meu quarto, esta mancha azul parecia-me luminosa; dir-se-ia, mais que uma mancha, um buraco através do qual eu podia ver um bocado deste mar longínquo. Assaltou-me uma grande nostalgia do mar, tão alegre, tão vivo, onde todos os objectos, mesmo os mais corruptos e os mais disformes, se purificam, se alisam, se arredondam, até se tornarem puros e belos. Sempre gostei do mar, até do mar entulhado de óstia. Ao ver o mar sinto sempre uma impressão de liberdade que embriaga os meus ouvidos mais do que os meus olhos, como se as notas de uma música mágica eterna andassem sobre as vagas. Pus-me a pensar no mar com um desejo agudo da sua espuma transparente, que parece lavar ao mesmo tempo os corpos e as almas, tornando-as leves pelo seu líquido contacto. Disse a mim mesma que se pudesse levar Jaime para o mar talvez que esta imensidade, este marulhar perpétuo obtivessem o efeito que o meu amor só por si não podia provocar. Perguntei-lhe de repente:

— Estiveste em Capri?

— Sim — respondeu sem se voltar.

— É bonito?

— Sim… muito bonito.

— Ouve — disse-lhe voltando-me e passando-lhe o braço pelo pescoço — porque não vamos a Capri ou a qualquer outro sítio junto do mar? Ficando aqui, em Roma, nada mais farás do que pensar nessas coisas desagradáveis… Se mudares de ares e de meio, tenho a convicção de que verás tudo por outro prisma. Há tantas coisas que agora não vês… Estou certa de que te faria bem!

Não respondeu imediatamente e parecia reflectir. Depois disse-me:

— Não preciso de ir para o mar. Também aqui podia, como tu dizes, ver as coisas de outra maneira… Seria suficiente aceitar o que fiz, como me aconselhas; gozaria logo a existência do céu, da terra, de ti, de tudo… Julgas que não sei que o mundo é belo?

— Então aceita — disse eu com voz ansiosa… — Que te pode isso fazer?

Começou a rir.

— Seria preciso pensar nisso antes — respondeu-me. — Aceitar desde o início. Mesmo os mendigos que se aquecem ao sol aceitaram-no desde o princípio. Para mim é demasiado tarde.

— Mas porque?

— Há os que aceitam e os que não aceitam. É evidente que eu pertenço à segunda categoria.

Calei-me sem saber que dizer. Acrescentou, passado um momento:

— Agora apaga a luz; dispo-me às escuras… Creio que são horas de dormir.

Obedeci. Despiu-se às escuras e deitou-se ao meu lado. Voltei-me para ele e tentei beijá-lo. Repeliu-me sem uma palavra, enrolou-se e voltou-me as costas. Este gesto encheu-me de amargura e aconcheguei-me, por minha vez, a alma viúva, esperando o sono. Tornei a pensar no mar: desejei ardentemente morrer afogada. Pensava que não sofreria mais do que um momento. Depois o meu corpo inanimado flutuaria muito tempo sob o céu, de vaga em vaga. Os pássaros marinhos debicariam os meus olhos, o sol queimar-me-ia o peito e o ventre; os peixes morder-me-iam as costas. Por fim mergulharia puxada por alguma corrente azul e fria que me faria viajar no fundo do mar durante meses e anos, pelo meio de recifes submarinos, peixes e algas; e muita, muita água límpida e salgada, passaria sobre a minha testa, o meu peito, o meu ventre, as minhas pernas, levando lentamente a minha carne, polindo-me, gastando-me cada vez mais. Por fim qualquer vaga, num dia qualquer, me atiraria com fragor para uma praia distante, reduzida a alguns ossos frágeis e brancos. Gostava da ideia de ser arrastada pelos cabelos para o fundo do mar; gostava da ideia de um dia ou outro ser reduzida a uma ossada sem identificação, no meio dos brancos calhaus de uma praia. Talvez alguém, sem que o sentisse, caminhasse sobre os meus ossos e os reduzisse a poeira branca. Acabei por adormecer com estes pensamentos voluptuosos e tristes.

11

No dia seguinte verifiquei que o sono e o repouso não haviam modificado de forma alguma os sentimentos de Jaime. Pelo contrário, julguei notar que se tinham agravado. Como na véspera, passava muito tempo em longos silêncios obstinados e lúgubres ou falava com sarcasmo sobre coisas indiferentes, mas nas quais, no entanto, transparecia sempre o mesmo pensamento dominante. O agravamento que julguei observar consistia numa inércia, numa apatia e numa negligência quase voluntárias que nele, sempre tão activo e enérgico, era qualquer coisa nova e parecia indicar um desprendimento progressivo de tudo o que fizera até então. Abri-lhe as malas e arrumei-lhe as roupas e os fatos. Mas quando se tratou dos livros dos seus estudos, e que eu sugeri os alinhasse provisoriamente sobre o mármore da cômoda, em frente do espelho, respondeu-me:

— Podes deixá-los na mala… já não servirão mais.

— Porquê? — perguntei-lhe. — Tu não tens que fazer o teu doutoramento?

— Não farei o doutoramento.

— Não queres continuar a estudar?

— Não.

Não insisti, receosa que voltasse a falar da sua habitual angústia e deixei os livros na mala. Também não se lavava nem pensava em fazer a barba, ele que fora sempre asseado e muito cuidadoso com a sua pessoa. Este segundo dia passou-o no quarto fumando, estendido na cama, ou passeando para trás e para diante, com ar pensativo e as mãos nos bolsos. Mas ao almoço, como me prometera, não falou com minha mãe. Veio a noite, declarou-me que jantaria fora e saiu sozinho; não ousei propor-lhe a minha companhia. Não sei onde foi; estava já para ir deitar-me quando entrou; era patente que tinha bebido. Beijou-me com grandes e cômicos gestos e quis possuir-me. Anui, embora notasse que amar era para ele, de fato, como beber, um acto desagradável, cumprido por força, com o único fim de se fatigar e aturdir.

Disse-lho e acrescentei:

— Tanto te fazia ir comigo como com qualquer outra.

Riu-se e respondeu:

— Com efeito, tanto fazia… mas como és tu quem está aqui, é mais fácil!…

Magoaram-me estas palavras e, mais ainda, afligiu-me a pouca afeição, ou melhor, a falta absoluta de afeição que as suas palavras demonstravam.

Mas bruscamente, como se alguma coisa me iluminasse, voltei-me para ele e disse-lhe:

— Olha… eu sei que não sou mais do que uma rapariga qualquer… mas procura amar-me. É por ti que o peço. Se chegares a amar-me, estou certa de que acabarás por te amar a ti mesmo.

Olhou e repetiu com voz forte e trocista: “Amor! O amor!” e apagou a luz. Fiquei às escuras com os olhos dilatados, aflita, perplexa, não sabendo o que pensar.

Os dias que se seguiram não lhe trouxeram qualquer modificação: tudo continuou na mesma. Parecia ter substituído os seus velhos hábitos por outros novos, e era tudo. Primeiro trabalhava, ia à Universidade, conversava com os amigos no café e lia. Agora fumava, estendido na cama, passeava no quarto, tinha as suas conversas habituais alusivas e estranhas, embebedava-se e possuía-me. Ao quarto dia comecei a sentir-me desesperada. Sabia que a sua mágoa não diminuíra e parecia-me impossível continuar a viver assim. O meu quarto, constantemente cheio de fumo dos cigarros, parecia-me uma oficina de dor, trabalhando noite e dia sem descanso; o próprio ar tornara-se carregado de tristes e obcecantes pensamentos. Nesses momentos amaldiçoava muitas vezes a minha insignificância, a minha ignorância e o facto de ter uma mãe ainda mais insignificante e ignorante do que eu. Quando se têm graves problemas o nosso primeiro movimento é pedir conselhos a uma pessoa mais velha e mais experiente. Ora eu ninguém conhecia que estivesse nessas condições: pedir conselhos a minha mãe era a mesma coisa que os pedir a uma das muitas crianças que brincavam no pátio da casa. Por outro lado não chegava a penetrar bem fundo na dor de Jaime: havia muitas coisas fora do alcance da minha inteligência, e acabei por me persuadir de que o seu principal tormento era saber que as declarações que fizera perante Astárito constavam dos papéis da polícia, que ficariam no arquivo como o eterno testemunho da sua fraqueza. Certas frases dele confirmaram-me esta ideia. Uma tarde disse-lhe:

— Se te tortura que se tenha escrito tudo o que disseste a Astárito… ele fará por mim seja o que for. Tenho a certeza de que se lho pedir ele fará desaparecer o interrogatório.

Olhou-me e perguntou-me em tom singular:

— Que te faz pensar isso?

— Tu mesmo o declaraste no outro dia… Quando te disse que devias tentar esquecer tu respondeste-me: “Mesmo que eu o esquecesse, a polícia lembrar-se-á”.

— E como lhe pedirás?

— É muito simples. Telefono-lhe e vou ao Ministério.

Não disse nem sim nem não. Insisti:

— Então queres que lhe vá pedir?

— Por mim, faz como entenderes.

Saímos juntos para irmos telefonar à leitaria. Encontrei logo Astárito e disse-lhe que precisava de falar com ele. Perguntei-lhe se podia ir ao Ministério. Mas ele, gaguejando, respondeu-me de uma maneira estranha:

— Ou em tua casa, ou então não.

Compreendi que queria pagar-se do favor que eu lhe podia e procurei disfarçar:

— Num café? — perguntei.

— Ou em tua casa, ou então não.

— Está bem! — disse. — Então vem a minha casa!

E acrescentei que o esperava nesse mesmo dia ao fim da tarde.

— Sei o que ele quer — disse a Jaime quando voltávamos. — Mas ninguém pode obrigar uma mulher a fazer isso contra vontade. Chantagens… fez-mas enquanto eu era ainda uma inexperiente, mas agora não mas fará mais!

— Mas porque não queres? — perguntou-me Jaime negligentemente.

— Porque é a ti a quem amo.

— É muito possível — disse no mesmo tom indiferente que se tu não quiseres aceder aos seus desejos ele se recuse a destruir o interrogatório… E então?

— Há-de destruí-lo, não tenhas receio.

— Mas se não o fizer senão com essa condição?

Estávamos já na escada. Parei e declarei-lhe:

— Farei o que tu quiseres.

Segurou-me pela cintura e disse-me lentamente:

— Pois bem! Ouve o que quero. Que faças com que Astárito venho cá e que o leves para o teu quarto com o pretexto de ires para a cama com ele… Eu estarei à espreita atrás da porta e quando ele entrar matá-lo-ei com um tiro de revólver. A seguir empurramo-lo para debaixo da cama e nós é que nos amaremos toda a noite!

Livres pela primeira vez da névoa que os embaciara durante os dias antecedentes, os seus olhos brilhavam agora. Assustei-me, sobretudo porque sentia que havia uma lógica nesta proposta e também porque daqui em diante só esperava desgraças cada vez maiores e definitivas e este crime tinha todo o ar de se poder executar.

— Tem pena de mim, Jaime! — gritei. — Não digas isso nem a brincar!

— Nem a brincar! — repetiu. — Com efeito estava a brincar!

Eu admitia que talvez até mesmo não brincasse. Mas o que me tranquilizou um pouco era a ideia de que o revólver de que se serviria estava vazio, porque eu às escondidas lhe tirara as balas.

— Está descansado — disse-lhe. — Astárito fará tudo o que eu quiser. Mas não fales mais dessa maneira, que me assustas!

— Então agora já não tenho o direito de brincar? — disse num tom ligeiro penetrando em casa.

Desde que chegamos à sala grande notei que fora tomado de uma brusca excitação. Começou a passear de um lado para o outro, com as mãos nos bolsos, segundo o seu hábito, mas com uma atitude diferente, mais enérgica, com uma expressão que parecia denotar uma profunda e lúcida reflexão e não a sua costumada apatia. Atribui esta mudança ao alívio que sentia ao saber que esses documentos bem depressa seriam destruídos; mais uma vez abri o coração à esperança e disse-lhe:

— Verás que tudo se arranjará!

Olhou-me como se não me conhecesse e repetiu num tom mecânico:

— Sim, com certeza… tudo se há-de arranjar!

Tinha mandado minha mãe fazer compras para o jantar. Tive de repente uma onda de optimismo. Pensava que de facto tudo se arranjaria talvez até melhor do que se esperava. Astárito anuiria ao meu pedido, se não o tinha feito já; e em cada dia que passasse Jaime veria diminuir o seu remorso, retomaria o gosto pela vida, tornaria a olhar o futuro com confiança. Os homens têm este traço comum; na infelicidade contentam-se em sobreviver; mas logo que a sorte parece querer mudar, acalentam os planos mais vastos e mais ambiciosos. Dois dias antes sentia-me capaz de renunciar a Jaime se isso fosse necessário para que ele fosse feliz; agora, que confiava na possibilidade de lhe poder oferecer rapidamente esta felicidade, não só já não pensava em deixá-lo, mas estudava até a maneira de o prender. O que me levava a fazer estes planos não eram cálculos inteligentes, mas um impulso obscuro da minha alma, que espera sempre e não suporta por muito tempo a mortificação e a dor. Tive a impressão de que no ponto em que estavam as coisas não havia para nós mais do que duas soluções: ou nos separaríamos ou nos uníamos para toda a vida. Como não queria nem a sonhar a primeira solução, perguntava a mim própria se não haveria um meio de conseguir a segunda.

Não gosto da mentira; posso contar no número das minhas raras qualidades uma franqueza quase excessiva. Se naquele momento eu mentia a Jaime era porque não tinha a impressão de mentir, mas de dizer a verdade. Uma verdade mais verdadeira do que a própria verdade; uma verdade segundo a alma e não baseada em factos materiais. De resto em nada pensei; foi como que uma inspiração.

Continuava a andar de um lado para o outro; estava sentada ao pé da mesa. Chamei-o subitamente!

— Ouve, pára um momento… tenho uma coisa para te dizer.

— O quê?

— Havia já um tempo que não me sentia bem; um destes dias fui ao médico… Estou grávida.

Parou, olhou-me e repetiu:

— Estás grávida?

— Estou. E tenho a certeza de que é de ti.

Ele era inteligente. Não podia adivinhar que eu mentia, como compreendeu de repente e perfeitamente a verdadeira razão desta notícia. Pegou numa cadeira, sentou-se ao pé de mim, fez-me uma festa afectuosa na cara e disse-me:

— Suponho que esta devia ser mais uma razão… ou, melhor, a razão principal… para me fazer esquecer tudo o que se passou… não é?

— Que queres dizer? — perguntei-lhe fingindo não perceber.

— Vou tornar-me “pai de família”. — continuou. — O que não queria fazer por ti vou ter de o fazer por amor desse pequenino, como vocês dizem, as mulheres.

— Farás o que quiseres — disse-lhe, encolhendo os ombros, fingindo indiferença. — Digo-te isto porque é verdade, mais nada.

— Um filho — continuou no seu tom meditativo, como se pensasse em voz alta —, pode ser uma razão para viver… Um filho é um bom pretexto. Pode até chegar-se a roubar e a matar pelo próprio filho!

— Mas quem te pede que roubes ou assassines? — interrompi, indignada. — Peço-te apenas que estejas contente… se não podes, paciência!

Olhou-me e acariciou-me de novo a face com afeição:

— Se estás contente, eu também estou. Estás contente?

— Eu estou! — respondi com segurança e orgulho. — Em primeiro lugar porque gosto muito de crianças e depois porque é teu.

Riu e disse-me:

— Que finória me saíste!

— Porquê finória? Por estar grávida?

— Não, mas tens de reconhecer que neste momento e nestas circunstâncias foi um golpe de mestre! Estou grávida… por conseguinte…

— Por conseguinte?

— Por conseguinte é preciso que aceites o que fizeste! — gritou bruscamente muito alto, saltando e agitando os braços. — Por conseguinte é preciso que vivas! Que vivas! Que vivas!

Não saberei descrever o tom da sua voz. Senti um aperto no coração e os olhos encheram-se-me de lágrimas.

— Faz o que quiseres! — balbuciei. — Se me queres deixar, deixa-me…

Pareceu arrepender-se do seu movimento, aproximou-se de mim e acariciou-me, dizendo:

— Desculpa… não faças caso do que eu disse… pensa no teu filho e não te preocupes comigo.

Segurei-lhe a mão e passei-a pela minha cara molhando-a com as minhas lágrimas e soluçando:

— Oh! Jaime… como posso não me preocupar contigo? Ficamos muito tempo assim em silêncio: ele de pé, junto de mim, passando a mão pela minha cara, eu beijando-lha e chorando.

Depois ouvimos bater à porta.

Ele afastou-me de mim; tive a impressão de que empalideceu; mas de momento não percebi porque e não tive a ideia de lho perguntar. Levantei-me e disse-lhe:

— Foge! Deve ser o Astárito! Sai! Depressa!

Foi para a cozinha deixando a porta entreaberta. Limpei rapidamente os olhos, arrumei as cadeiras e passei para o vestíbulo. Senti-me de novo tranquila e perfeitamente segura; enquanto caminhava às escuras no vestíbulo, lembrei-me de que poderia dizer a Astárito que estava grávida; com isso ele deixar-me-ia sossegada, e se não me quisesse fazer por amor o que lhe iria pedir, com certeza o faria por piedade.

Abri a porta e dei um passo atrás: em vez de Astárito era Sonzogne que estava na soleira da porta. Tinha as mãos nos bolsos como era seu hábito; ao gesto maquinal que fiz de fechar a porta, ele, com uma leve pressão dos seus ombros, abriu-ma inteiramente e entrou. Segui-o até à sala grande. Foi pôr-se junto da mesa ao pé da janela. Não trazia chapéu, e ainda não tinha entrado já eu sentia sobre mim os seus olhos fixos. Fechei a porta de comunicação e perguntei-lhe afectando indiferença:

— Porque vieste?

— Denunciaste-me, hem?

Encolhi os ombros e sentei-me na beira da mesa:

— Não te denunciei.

— Deixaste-me, desceste a escada e foste chamar a polícia.

Estava tranquila. Se sentia algum sentimento era mais cólera que medo. Já não me inspirava qualquer receio, mas sentia-me possuída de um grande furor contra ele e contra todos os que como ele impedem os outros de serem felizes.

— Deixei-te — disse-lhe — e fui-me embora porque amo outro e não quero ter mais relações contigo. Mas não foi para chamar a polícia. Eu não sou delatora! Os polícias vieram por sua conta. Procuravam outro.

Aproximou-se de mim, agarrou-me a cara entre dois dedos e apertou-ma com uma força terrível levantando-ma à altura da sua e forçando-me a descerrar os dentes.

— Agradece ao teu Deus o seres uma mulher! — disse-me. Continuava a apertar-me a cara, obrigando-me a fazer uma careta de dor que eu sentia que era feia e ridícula. Enfurecida, pus-me de pé, repeli-o e gritei:

— Vai-te embora, imbecil!

Ele tornou a meter as mãos nos bolsos, aproximando-se ainda mais de mim e olhando-me, como sempre, fixamente nos olhos. Tornei a gritar:

— Não passas de um imbecil… com os teus músculos… os teus terríveis olhinhos azuis… a tua cabeçorra! Vai-te embora! Desaparece, cretino!

“É realmente um imbecil”, pensava eu quando vi que nada dizia, mas que, com um ligeiro sorriso nos seus lábios finos e tortuosos, avançava para mim, olhando-me. Corri para o outro lado da mesa, empunhei um ferro de engomar — um ferro de alfaiate muito pesado — e gritei-lhe:

— Desaparece, cretino, ou atiro-te com isto ao focinho!

Hesitou um momento e parou. Nesse instante a porta da sala abriu-se atrás de mim e Astárito apareceu. Evidentemente que encontrara a porta aberta e entrara. Voltei-me para ele e disse-lhe:

— Diz-lhe que se vá embora… Não sei o que me quer… Diz-lhe que se vá embora!

Não sei porquê, mas senti um grande prazer ao notar a elegância de Astárito. Vestia um sobretudo cinzento, que parecia novo, e uma camisa com riscas encarnadas sobre fundo branco que parecia de seda. Uma bonita gravata cinzento-prata e um fato azul. Olhou-me, enquanto eu brandia o ferro, fixou Sonzogne e disse com voz tranquila:

— Esta menina disse-te que te fosses embora… porque esperas?

— Esta menina e eu — respondeu Sonzogne, em voz baixa —, temos várias coisas a dizer e é melhor que o senhor desapareça.

Astárito, ao entrar, tirara o chapéu, um feltro preto debruado de seda. Sem pressa colocou-o sobre a mesa e avançou até à frente de Sonzogne. A sua atitude deixava-me estupefacta. Um brilho combativo parecia cintilar nos seus olhos negros e melancólicos. A sua boca, que era grande, alargou-se ainda mais num sorriso de satisfação e desafio. Mostrava os dentes. Disse martelando as sílabas:

— Ah! Não queres ir? Pois bem! Eu, pelo contrário, digo-te que vás, e o mais depressa possível!

O outro abanou a cabeça em sinal negativo, mas, com grande admiração minha, recuou. Astárito deu um passo em frente. Estavam agora um em frente do outro, os dois quase da mesma altura.

— Vamos lá a saber! Quem és tu? — disse-lhe Astárito sempre com o mesmo ricto. — O teu nome! E depressa!

O outro não respondeu.

— Não queres dizer, hem? — insistiu Astárito num tom quase voluptuoso, como se o silêncio de Sonzogne lhe desse prazer. — Não queres dizer e não te queres ir embora… É isto?

Esperou um momento, depois levantou a mão e esbofeteou Sonzogne, primeiro numa face, depois na outra. Eu mordi o pulso. “Sonzogne mata-o!”, pensava fechando os olhos. Mas ouvi a voz de Astárito, que dizia:

— E agora desaparece! Quanto mais depressa melhor!

Abri os olhos e vi Astárito empurrar Sonzogne para a porta, segurando-o pela gola. Sonzogne tinha ainda as faces encarnadas e inchadas, mas parecia não resistir. Deixava-se levar como se pensasse noutra coisa. Astárito arrastou-o para a porta da sala, depois ouvi fechar a porta com violência e Astárito reapareceu na sala.

— Mas quem é? — perguntou-me tirando maquinalmente um grão de poeira da banda do sobretudo e olhando-se como se receasse ter comprometido a sua elegância pelo esforço violento que acabara de fazer.

— Nunca soube o seu nome todo. Só sei que se chama Carlos.

— Carlos! — repetiu abanando a cabeça.

Depois aproximou-se de mim. Eu estava no vão da janela e olhava através dos vidros. Astárito passou-me o braço à volta da cintura e perguntou-me num tom de voz já mudado — E tu como vais?

— Bem, obrigada — respondi sem o olhar.

Foi ele quem me olhou fixamente, depois apertou-me com força contra ele, sem dizer nada. Repeli-o docemente e disse-lhe:

— Foste bem gentil comigo. Telefonei-te para te pedir outro favor.

— Diz.

Continuava a olhar-me e parecia nem sequer ouvir-me.

— Aquele rapaz que tu interrogaste… — comecei eu.

— Ah! Sim! — interrompeu fazendo uma careta. — Ainda esse! Não se revelou um herói.

Tive curiosidade de saber a verdade sobre o interrogatório de Jaime.

— Porquê? Ele teve medo?

Astárito abanou a cabeça.

— Não sei se teve medo — respondeu-me —, o que é certo é que à primeira pergunta disse logo tudo. Se ele tivesse negado, eu nada teria podido fazer… Nenhuma prova havia.

“Então”, pensava eu, “passou-se tudo como Jaime me contou. Uma espécie de brusca ausência, como se se tivesse afundado, sem razão, sem que o provocassem”.

— Bem! — continuei. — Suponho que escreveram aquilo que ele disse. Queria que tu fizesses desaparecer aquilo que ficou escrito.

— Foi ele quem te pediu, hem? — troçou.

— Não, sou eu quem pede! — respondi.

E jurei-lho solenemente:

— Eu morra agora mesmo se não é verdade!

— Todos querem ver os processos desaparecer — declarou ele. — Os arquivos da polícia e o seu peso da consciência. Desaparecido o processo, não há mais remorsos!

Lembrei-me de Jaime e respondi-lhe:

— Isso poderá ser verdade! Mas desta vez receio bem que te enganes!

Puxou-me outra vez, apertando o meu ventre contra o seu; e perguntou-me, todo trêmulo e balbuciante:

— E tu em troca que me dás?

— Nada — respondi-lhe simplesmente. — Desta vez, absolutamente nada.

— E se eu recusasse?

— Davas-me um grande desgosto porque amo esse homem, e tudo o que lhe acontece é como se acontecesse a mim.

— Mas não me tinhas dito que serias gentil comigo?

— Tinha… mas mudei de ideias.

— Porquê?

— Porque sim.

Estreitou-me de novo, e falando-me ao ouvido e gaguejando, suplicou-me que cedesse ao seu desejo desesperado, nem que fosse pela última vez. Não saberei repetir as coisas que ele me disse, porque, misturadas com as suas súplicas, proferia enormidades que eu não desejaria escrever, das que se dizem às mulheres como eu e que as mulheres como eu dizem aos seus amantes. Ele dizia-as com uma precisão meticulosa, mas sem a alegria maliciosa que acompanha habitualmente estas efusões; antes com uma sombra de prazer obcecado. Vi uma vez, num asilo, um doido descrever ao enfermeiro as torturas que lhe infligiria se lhe caísse nas mãos no mesmo tom fanfarrão, mas grave e escrupuloso que tinha Astárito para me sussurrar estas obscenidades. Na realidade o que ele me descrevia desta maneira era o seu amor, ao mesmo tempo sombrio e luminoso, que poderia parecer simples deboche, mas que eu sabia profundo, completo, e à sua maneira tão puro como qualquer outro. Como sempre, inspirava-me sobretudo pena, por causa da solidão que eu sentia no fundo de todas estas enormidades. Deixei-o acabar as suas efusões; depois declarei-lhe:

— Não te queria dizer, mas tu obrigas-me a isso… Faz como quiseres, mas eu não quero voltar a ser o que era dantes… Estou grávida.

Não ficou admirado e não abandonou a ideia fixa:

— Bem? — disse. — E depois?

Revelara-lhe o meu estado primeiro que tudo para o consolar da minha recusa. Mas enquanto lho dizia apercebi-me de que dissera realmente o que pensava e que as minhas palavras vinham do coração. Acrescentei com um suspiro:

— Já, antes de te conhecer, eu queria casar… não foi por culpa minha que o não fiz.

Ele conservara o braço à roda da minha cintura, mas já não me apertava. Afastou-se de mim e gritou:

— Maldito seja o dia em que te encontrei!

— Porquê, se me amaste?

Cuspiu de lado e disse ainda:

— Maldito o dia em que te encontrei e maldito o dia em que nasci!

Não gritava agora, nem parecia traduzir um sentimento violento; falava com calma e com convicção.

— O teu amigo nada tem a recear — acrescentou. — Nenhum interrogatório foi escrito. Não anotaram qualquer das suas informações… Continua a figurar como um político perigoso. Adeus, Adriana.

Tinha ficado ao pé da janela: disse-lhe adeus vendo-o afastar-se. Pegou no chapéu e afastou-se sem olhar para trás.

Logo a porta de comunicação do meu quarto com a cozinha se abriu e Jaime entrou com o revólver na mão. Olhava-o espantada, vazia, sem forças, muda.

— Tinha decidido matar Astárito — disse-me com um sorriso. — Julgas que realmente me interessava que o meu processo desaparecesse?

— E porque não o fizeste? — perguntei como num sonho.

Ele abanou a cabeça.

— Ele amaldiçoou tanto o dia em que nasceu! Deixemo-lo amaldiçoá-lo ainda durante mais alguns anos.

Sentia qualquer coisa que me angustiava, mas não conseguia compreender o que era.

— Em todo o caso, consegui aquilo que queria. Não há nenhum processo.

— Ouvi, ouvi — interrompeu-me. — Ouvi tudo; estava atrás da porta e a porta estava aberta… Também vi que é corajoso o teu Astárito — acrescentou negligentemente. — Pan! Pan! Que duas estaladas magistrais aplicou no Sonzogne! Mesmo para dar bofetadas é preciso categoria. Estas eram verdadeiramente de um superior para um inferior, de um patrão; de alguém que se julga patrão, a um servidor. E como Sonzogne as recebeu! Nem piou!

Jaime ria enquanto guardava o revólver na algibeira.

Fiquei um pouco desconcertada com o elogio que ele fazia a Astárito. Perguntei-lhe com uma certa hesitação:

— Que julgas que Sonzogne vai fazer?

— Como queres que saiba?

Era quase noite, a sala estava mergulhada na penumbra. Jaime inclinou-se sobre a mesa, acendeu o candeeiro de suspensão e tudo ficou escuro à volta da luz. Em cima da mesa estavam os óculos de minha mãe e as cartas com as quais ela fazia paciências. Jaime sentou-se, agarrou-as e baralhou-as. Depois disse-me:

— Queres jogar uma partida enquanto esperamos pelo jantar?

— Que ideia! — gritei. — Uma partida?

— Sim… uma partida de bisca… vá, anda!

Obedeci, sentei-me ao seu lado e segurei maquinalmente nas cartas que ele me estendia. Tinha a cabeça atordoada e as mãos tremiam-me, não sei porquê. Comecei a jogar. As figuras pareciam-me ter um carácter maldoso, pouco seguro: o valete de paus sombrio e sinistro com o olho negro e a flor negra na mão; a rainha de copas luxuriante; o rei de ouros frio, impassível, inumano. Jogando, tinha a impressão de que jogávamos qualquer coisa importante, mas não sabia o quê. Sentia-me mortalmente triste. De quando em quando soltava um ligeiro suspiro, para ver se aliviava o peso que sentia no peito e que mo oprimia.

Ele ganhou o primeiro jogo, depois o segundo.

— Mas que tens? — perguntou-me baralhando as cartas. — Tu jogas francamente mal.

Larguei as cartas e disse-lhe:

— Não me atormentes assim, Jaime! Não tenho disposição para jogar.

— Porquê?

— Não sei.

Levantei-me e dei alguns passos pela sala, torcendo as mãos. Depois perguntei-lhe:

— Vamos para o quarto? Queres?

— Vamos.

Passamos para o vestíbulo e ali no escuro agarrou-me pela cintura e beijou-me no pescoço. Então, talvez pela primeira vez na vida, considerei o amor como ele o considerava: um meio de se aturdir e de não pensar, nem mais agradável nem mais importante que qualquer outro meio. Segurei-lhe a cabeça entre as mãos e beijei-o furiosamente. Foi assim que entrámos no quarto. Estava mergulhado na escuridão, mas eu nem dei por isso. Uma sombra vermelha empalidecia-me os olhos; cada um dos nossos gestos tinha o brilho de uma língua de fogo, brusca e rápida, do incêndio que nos devorava.

De repente encontrei-me estendida na cama, com a luz da lâmpada reflectindo-se sobre o meu ventre nu. Fechei as coxas, talvez por causa do frio, talvez por vergonha, e tapei-me com as duas mãos. Jaime olhou e disse-me:

— Bem depressa a tua barriga inchará… inchará cada dia mais… um dia a dor obrigar-te-á a abrir essas pernas que tu fechas tão ciosamente e a cabeça da criança, já coberta de cabelos, sairá, tu a empurrarás para a luz, agarrá-la-ão e depois irão pô-la nos teus braços… ficarás contente e haverá mais um novo ser neste mundo… Esperemos que ele não venha a falar vomo Astárito!

— Como?

— “Maldito seja o dia em que nasci!”

— Astárito é um desgraçado — respondi —, mas eu tenho a convicção plena de que o meu filho terá sorte e será feliz.

Depois enrolei-me na roupa e julgo que dormi. Mas o nome de Astárito tinha reavivado o sentimento de angústia que eu já sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu não conhecia gritar-me com força aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como quando se quer imitar dois tiros de revólver; e sem sair da cama dei um salto com um movimento de susto e de angústia. A lâmpada estava ainda acesa; desci da cama e fui à porta para me certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava, de pé, ao pé da porta. Confusa, voltei para a cama, sentei-me dentro da roupa e perguntei:

— Que diz que irá fazer o Sonzogne?

Olhou-me e respondeu:

— Como poderei saber?

— Eu conheço-o — disse eu exprimindo por fim, por palavras, a angústia que me oprimia. — Não quer dizer o ter consentido que o pusessem fora da sala sem protestar. É capaz de o matar. Que julgas tu?

— É muito possível.

— Pensas que o vai matar?

— Se o fizesse não me admiraria.

— E preciso avisá-lo! — gritei levantando-me e vestindo-me. — Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque não pensei nisto mais cedo?

Vestia-me a pressa falando sempre do meu receio, do meu pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disse-lhe:

— Vou a casa de Astárito… A esta hora está em casa… Espera-me aqui.

— Vou contigo.

Não insisti. No fundo agradava-me que me acompanhasse, porque estava tão agitada que receava sentir-me mal. Enfiei o casaco e declarei:

— É preciso apanhar um táxi.

Jaime vestiu o sobretudo e saímos.

Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr, enquanto Jaime, sem me largar o braço, me seguia. Encontramos logo um táxi; gritei a direcção de Astárito. Era uma rua no bairro Prati; nunca lá tinha ido, mas sabia que não era longe do Palácio da Justiça. O táxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso curvando-me, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur. A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo, pronunciar:

— E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.

Não lhe prestei atenção. Quando chegávamos em frente do Palácio da Justiça mandei parar e Jaime pagou. Atravessámos as ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as árvores. A rua de Astárito surgiu na minha frente como uma espada: longa e direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edifícios regulares e maciços, sem lojas, e que parecia deserta. Astárito morava no fim da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:

— É possível que eu não tenha feito outra coisa que imaginar tudo isto… Fosse como fosse era meu dever vir.

Passamos três ou quatro prédios e várias ruas transversais. Então Jaime disse-me com uma voz tranquila:

— Deve ter acontecido alguma coisa… olha.

Levantei os olhos e a pouca distância vi um ajuntamento em frente de uma porta. Um cordão de gente alinhava-se no passeio fronteiro; olhavam para cima, na direcção do céu sombrio. Senti logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astárito. Comecei a correr; tive a impressão de que Jaime corria também.

— Que há aqui? O que aconteceu? — perguntei, sem fôlego. aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da porta de Astárito.

— Não se percebe bem — respondeu aquele a quem me dirigi, um homem louro, sem casaco, sem chapéu, que segurava a bicicleta pelo guiador —, foi alguém que se atirou para a caixa da escada… ou atiraram-no. A polícia subiu ao telhado para investigar o caso.

Abri caminho por entre a multidão, e à força de cotoveladas penetrei no hall da casa, que era espaçoso, bem iluminado e estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimão de ferro forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas cabeças. Quando consegui chegar à frente, vi por entre todos aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um pilar redondo de mármore branco suportava uma estátua de bronze dourado, alada e nua, com um braço levantado segurando um facho que continha uma lâmpada. Mesmo debaixo do pilar estava um corpo humano coberto com um lençol. Toda a gente olhava para o mesmo lado; olhei também e vi um pé calçado de preto que saía do lençol. No mesmo instante uma voz começou a gritar imperiosamente.

— Para trás! Vão-se embora!

Senti-me projectada com violência para a rua, juntamente com os outros. Os altos batentes da porta fecharam-se logo em seguida. Disse com voz apagada a quem estava atrás de mim:

— Jaime, vamos!

Vi então uma pessoa desconhecida que, admirada, me olhava. Depois de terem em vão protestado em voz alta e batido com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaram-se pelas ruas fazendo comentários: Outras chegavam de todos os lados correndo. Dois automóveis e um bom número de bicicletas pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta multidão com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciam-me os de Jaime; enfiava-me impetuosamente pelo meio de grupos e via um grande número de pessoas que me olhava com surpresa. Havia muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um cadáver e tinham esperança de o poder ver. Lá estavam, apertados, com uma expressão paciente e grave, como as bichas à porta dos teatros.

Continuava a errar ainda quando me apercebi que já tinha examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas pessoas. Pareceu-me ouvir, num destes grupos, o nome de Astárito e notei que não me preocupava com ele, mas que toda a minha angústia se concentrava em Jaime. Acabei por me convencer de que já lá não estava. Devia ter-se afastado no momento em que penetrei no hall. Pareceu-me, não sei porquê, que deveria ter esperado esta fuga; admirava-me de não ter pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forças, arrastei-me até praça, subi para um táxi e dei a direcção da minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera.

Não estava em casa e não voltou nem nessa noite nem no dia seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um mal-estar tão angustiante que não podia deixar de tremer da cabeça aos pés. Mas não tinha febre. Parecia-me apenas que vivia fora de mim própria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectáculo, todo o ruído, todo o contacto me feriam e me produziam desfalecimentos de coração. Nada me podia impedir de pensar em Jaime, nem mesmo a descrição em pormenor do novo crime de Sonzogne, que os jornais que minha mãe tinha comprado traziam em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne; parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o patamar em frente da porta de Astárito, depois Sonzogne tinha-o empurrado contra o corrimão, levantara-o e atirara-o pela caixa da escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais ninguém a não ser Sonzogne poderia matar um homem desta maneira. Mas, como já disse, tinha uma única ideia e nem mesmo cheguei a interessar-me pelos artigos que contavam como mais tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia pelos telhados como um gato. Experimentava uma espécie de náusea por tudo o que não dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo tempo pensar nele enchia-me de uma angústia insuportável. Por duas ou três vezes recordei Astárito; lembrava-me do seu amor por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tão forte como impotente; se não sentisse esta angústia por causa de Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma forma tão prematura e tão desumana. Foi assim que passei este primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na cama ou sentada numa cadeira, apertava com força entre as mãos um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e beijava-o de vez em quando com paixão, ou mordia-o para refrear a minha grande inquietação. Mesmo quando minha mãe me obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das mãos e com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite minha mãe quis deitar-me; deixei-me despir sem oferecer resistência. Mas quando tentou tirar-me o casaco, dei um grito de tal maneira aflitivo que minha mãe se assustou. Ela nada sabia, mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausência de Jaime.

Ao terceiro dia tive uma ideia e toda a manhã me agarrei a ela com obstinação, se bem que compreendesse que não tinha muito fundamento. Pensava que Jaime se assustara ao saber que eu estava grávida, que quisera fugir às obrigações que lhe impunham o meu estado e que se refugiara em sua casa, na província. Era uma vil suposição: mas preferia imaginar uma cobardia sua a admitir outra hipóteses tão tristes, sugeridas pelas circunstâncias que tinham acompanhado a sua desaparição.

Nesse mesmo dia, à tarde, minha mãe entrou no meu quarto e atirou-me para cima da cama uma carta. Reconheci a letra de Jaime e senti uma grande alegria. Esperei primeiro que minha mãe saísse, depois que me passasse a perturbação que me assaltara. Em seguida abri a carta. Ei-la completa :


“Querida Adriana:

No momento em que receberes esta carta estarei já morto. Quando abri o meu revólver e não encontrei as balas compreendi logo que tinhas sido tu quem o esvaziara e pensei em ti com grande amizade. Pobre Adriana, tu não conheces as armas, não sabias que há uma bala no cano! O facto de não te terás apercebido disso reforçou a minha resolução. Aliás há tantas maneiras de se matar! Como te disse não posso aceitar o que fiz. Senti nestes últimos dias que te amava; mas, se eu fosse lógico, deveria odiar-te, porque tudo o que odeio em mim, e que o meu interrogatório me revelou, existe em ti no mais alto grau.

Na realidade, naquele momento, foi a personagem que eu deveria ter sido quem baqueou; fui unicamente o homem que sou. Não houve da minha parte nem cobardia, nem traição, mas somente uma misteriosa interrupção da vontade. Não talvez completamente misteriosa, mas o bastante para vir a conduzir-me longe de mais. Basta-me dizer que matando-me, reponho as coisas no seu devido lugar. Não tenhas medo, não te odeio; pelo contrário, amo-te a tal ponto que o simples facto de pensar em ti chega para me reconciliar com a vida. Se isso fosse possível, com certeza que viveria, casaria contigo e seríamos felizes, como tu o dizias tantas vezes. Mas realmente não era possível. Pensei na criança que vai nascer e escrevi nesse sentido duas cartas: uma à minha família e outra a um advogado meu amigo. Apesar de tudo, os meus são boa gente e, se bem que não se possa ter ilusões sobre os sentimentos deles a teu respeito, estou convencido de que cumprirão o seu dever. No caso improvável de se recusarem a fazê-lo, não deves hesitar em servir-te da lei. Este amigo advogado irá procurar-te e podes confiar nele. Pensa algumas vezes em mim.

Beija-te

Teu Jaime

P. S. — O nome do meu amigo advogado é Francisco Laureau. A sua direcção é Rua Cola Rienzo, 3.”


Quando acabei de ler esta carta enfiei-me debaixo da roupa, enrolei a cabeça nos lençóis e chorei lágrimas ardentes. Não saberei dizer por quanto tempo chorei. De cada vez que julgava ter acabado, uma espécie de amarga e violenta derrocada se produzia no meu peito e rompia de novo em soluços. Não gritava, como sentia desejos de o fazer, para não chamar a atenção da minha mãe. Chorava em silêncio, sentindo que era a última vez na minha vida que chorava. Chorava por Jaime, por mim própria, pelo meu passado e pelo meu futuro.

Em seguida, sem deixar de chorar, levantei-me e, atordoada. com a vista nublada de lágrimas, vesti-me à pressa. Lavei os olhos com água fria e pintei ao acaso a cara vermelha e inchada e sai sem que a minha mãe me visse.

Corri ao comissariado do bairro e pedi para ser recebida pelo comissário. Ouviu a minha história e disse-me com ar céptico :

— Para dizer a verdade de nada temos conhecimento. Vai ver que ele deve ter-se arrependido.

Desejava que ele tivesse razão. Mas ao mesmo tempo, sem saber porquê, senti uma grande irritação:

— Se fala assim é porque não o conhecia — disse-lhe com dureza. — Julga que toda a gente é como o senhor!

— Mas em suma — perguntou-me — pensa que ele está vivo ou morto?

— Eu quero que ele viva! Quero que ele viva! Mas receio bem que esteja morto!

Reflectiu por um momento e depois disse-me:

— Acalme-se. No momento em que escreveu essa carta tinha toda a intenção de se matar… Depois é possível que se tenha arrependido… É humano… pode acontecer a toda a gente.

— Sim, é humano — balbuciei.

Não sabia o que dizia.

— Seja como for, volto esta noite — concluiu. — Esta noite já lhe poderei dizer qualquer coisa.

Do comissariado fui direita à igreja. Era a igreja onde eu fora baptizada, onde tinha feito a primeira comunhão e onde fora crismada. Uma velha igreja, comprida e nua, com duas alas de colunas de pedra bruta e o chão de mosaicos poeirentos. Ao fundo abriam-se três capelas muito ricas e muito douradas, como grutas profundas cheias de tesouros. Uma dessas capelas era consagrada à Virgem. Ajoelhei-me na penumbra, sobre o mosaico, em frente da grade de bronze que fechava a capela. A Virgem estava num grande altar, em frente do qual havia muitos vasos cheios de flores. Ela segurava o Menino nos braços; a seus pés um santo com hábito de monge adorava-O de joelhos, com as mãos postas. Prostrei-me e bati com força com a testa no solo de pedra. Cobrindo o chão de beijos em forma de cruz, invoquei a Virgem e pronunciei mentalmente um voto. Prometi que nunca mais na minha vida se aproximaria de mim nenhum homem, nem mesmo Jaime; o amor era a única coisa no mundo que me fazia falta e de que eu gostava: parecia-me que não poderia fazer pela salvação de Jaime um sacrifício maior. Depois, sempre prostrada, a fronte contra a laje, rezei sem palavras, durante muito tempo, apenas com a grande força do meu coração dolorido. Mas quando me levantei tive como que um deslumbramento; pareceu-me que uma brusca claridade envolvia a capela e afastava a espessa sombra em que estava mergulhada; e, nessa claridade, indistintamente a Virgem olhar-me com doçura e bondade, mas ao mesmo tempo fazer-me com a cabeça sinal que não, como para me indicar que não aceitava a minha promessa. Foi coisa de um instante; em seguida encontrei-me de pé junto da grade, em frente do altar. Mais morta que viva, fiz o sinal da cruz e voltei para casa.

Esperei o dia todo, contando os minutos e os segundos. À tardinha voltei ao comissariado. O comissário olhou-me de uma maneira estranha; meio desfalecida perguntei-lhe com um fio de voz:

— Então? É verdade? Matou-se?

Ele agarrou uma fotografia que estava em cima da mesa, estendeu-ma e disse:

— Um individuo não identificado matou-se de facto, num hotel, próximo da gare. Veja se é ele.

Peguei na fotografia e reconheci-o logo. Tinham-no fotografado da cintura para cima, estendido sobre a cama. segundo me pareceu. Da têmpora, que a bala furara, numerosos fios de sangue negro ralavam-lhe a cara. Mas apesar disso o seu rosto tinha uma expressão de tão completa serenidade como nunca tivera em vida.

Disse com voz apagada que era ele e levantei-me. O comissário quis ainda falar, talvez para me consolar. Nem o ouvi e saí sem olhar para trás.

Fui para casa e desta vez atirei-me para os braços de minha mãe, mas sem chorar. Sabia que ela era estúpida e nada compreendia; ela era a única pessoa a quem eu podia confiar o meu desgosto. Contei-lhe tudo: o suicídio de Jaime, o nosso amor e que eu estava grávida. Mas não lhe disse que o pai de meu filho era Sonzogne. Falei-lhe também da minha promessa e disse-lhe que tinha decidido mudar de vida, que voltaria a fazer camisas, com ela, ou que me empregaria como criada. Depois de tentar consolar-me por meio de uma quantidade de frases parvas mas sinceras, minha mãe disse que não valia a pena precipitar-me: por agora era necessário ver o que faria a família de Jaime.

— Isso — respondi-lhe — é uma coisa que diz respeito ao meu filho e não a mim.

No dia seguinte de manhã os dois amigos de Jaime, Túlio e Tomás, apareceram-me de maneira inesperada. Também eles tinham recebido uma carta, na qual, depois de lhes anunciar que se matava, Jaime advertia-os daquilo a que chamava “a sua traição” e punha-os em guarda contra as consequências do seu acto.

— Não tenham medo — disse-lhes eu duramente —, se estão com medo podem ficar descansados. Nada vos acontecerá.

E contei-lhes a história de Astárito, dizendo-lhes que Astárito, o único que tomara conhecimento das declarações de Jaime, estava morto, que o interrogatório não fora transcrito e que não tinham sido denunciados. Pareceu-me que Tomás estava sinceramente desgostoso com a morte de Jaime, mas que o outro ainda não estava refeito do susto que apanhara. Passado um momento, Túlio declarou-me:

— De qualquer maneira ele meteu-nos num sarilho… quem pode confiar na polícia? Nunca se sabe! É na verdade uma traição!

E esfregava as mãos emitindo uma das suas enormes gargalhadas habituais, como se a coisa fosse realmente cômica.

Levantei-me indignada :

— Como uma traição? Como? Ele matou-se; que mais querem? Nenhum de vocês teria coragem para fazer o mesmo! E depois é preciso que vos diga uma coisa: a vossa traição não vos traria mérito algum, porque vocês não passam de dois pobres-diabos, dois miseráveis, que nunca tiveram um tostão, filhos de desgraçados, pobres camponeses, e se as coisas tivessem corrido bem acabariam por ter aquilo que nunca tiveram e conheceriam uma vida regalada, vocês e as vossas famílias. Mas ele tinha dinheiro; era de boa família; era um senhor; se andava metido nisso era porque acreditava e esperava qualquer coisa de melhor para todos. Ele sim, que tinha tudo a perder, ao passo que vocês tinham tudo a ganhar!… Era isto que eu tinha para lhes dizer… E vocês deviam ter vergonha de me vir falar em traição!

— E tu… — abriu a sua enorme boca para me responder; mas o outro, que me compreendera, fez-lhe um gesto para que se calasse e disse-me:

— Tem razão, mas esteja descansada. Por mim, nunca pensarei senão bem de Jaime.

Parecia comovido e simpatizei com ele porque se via que era de facto amigo de Jaime. Cumprimentaram-me e retiraram-se.

Quando fiquei só senti um grande alívio pelas palavras que dissera a estes dois homens. Pensei em Jaime, depois no meu filho. Sabia que iria nascer de um assassino e de uma prostituta. Mas pode acontecer a qualquer homem ter de matar, a qualquer mulher dar-se por dinheiro; o importante era que viesse ao mundo em bom estado e fosse vigoroso e saudável. Decidi, se fosse um rapaz, que se chamaria Jaime, em memória do meu amado. Mas se fosse uma rapariga, chamar-se-ia Letícia, porque queria que a sua vida fosse, ao contrário da minha, alegre e feliz; e tinha a certeza de que com a ajuda da família de Jaime ela teria essa vida.

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