8 Cabeças duras

Pelo jeito que o rapaz olhava na direção de Egwene, meio perplexo, Elayne não sabia com certeza se Rand tinha notado que ela ainda estava no quarto. De vez em quando, ele balançava a cabeça como se discutisse consigo mesmo ou se tentasse pôr os pensamentos em ordem. Ela ficou feliz em esperar. Ficaria feliz com qualquer coisa que adiasse um pouco aquele momento. Concentrava-se em manter a aparente tranquilidade, com as costas eretas e a cabeça erguida, as mãos cruzadas no colo e uma calma no rosto que poderia rivalizar com a melhor expressão de Moiraine. O frio na barriga era tão grande que seu estômago podia muito bem virar gelo.

Não era medo de que ele canalizasse. Ela soltara saidar assim que Egwene se levantou para partir. Queria confiar nele, e tinha de confiar. Era o desejo do que queria que acontecesse que a fazia tremer. Precisava se concentrar para não ficar mexendo no colar ou cutucando a tiara de safiras no cabelo. Será que o perfume estava exagerado? Não. Egwene disse que ele gostava de cheiro de rosas. O vestido. Queria puxá-lo para cima, mas…

Rand se virou — mancando de leve, de um jeito que a fez contrair os lábios, pensativa — viu que ela estava sentada na cadeira e levou um susto, arregalando os olhos com uma expressão quase que de pânico. Elayne ficou contente em notar a reação, e fez dez vezes mais esforço para manter o rosto sereno assim que o rapaz pôs os olhos nela. Aqueles olhos agora estavam azuis, como um céu matutino nebuloso.

Ele se recuperou no mesmo instante, curvando-se em uma mesura um tanto desnecessária e esfregando as mãos no casaco, nervoso.

— Eu não percebi que você ainda estava… — Parou de falar, ruborizado. Esquecer-se da presença dela poderia ser tomado como insulto — Quer dizer… Eu não… Eu, hã… — Ele respirou fundo e recomeçou. — Nem sempre ajo como bobo da corte, apesar de ser isso que pareço para você, milady. Não é todo dia que alguém revela que não o ama mais, milady.

Ela assumiu um tom rígido e zombeteiro.

— Se me chamar assim mais uma vez, vou chamá-lo de Lorde Dragão. E fazer uma reverência. Até a Rainha de Andor pode se curvar diante de você, e eu sou só a Filha-herdeira.

— Luz! Não faça isso. — Ele pareceu incomodado demais com a ameaça.

— Eu não vou, Rand — respondeu a jovem, com a voz mais séria — se você me chamar pelo meu nome. Elayne. Diga.

— Elayne. — Ele proferiu a palavra com embaraço, mas também com prazer, como se saboreasse o nome.

— Bom. — Era um absurdo ficar tão satisfeita. Afinal de contas, ele só dissera seu nome. Havia algo que ela precisava saber, antes de prosseguir. — Doeu demais? — Percebeu que a frase poderia ser interpretada de duas formas. — O que Egwene disse, quer dizer.

— Não. Sim. Um pouco. Não sei. É mais do que justo, afinal de contas. — Um leve sorriso aliviou um pouco da cautela. — Estou agindo feito um bobo da corte outra vez, não estou?

— Não. Não para mim.

— Eu disse a pura verdade, mas acho que ela não acreditou. Acho que eu também não queria acreditar no que ela disse. Não mesmo. Se isso não é agir como um bobo da corte, não sei o que é.

— Se você se chamar de bobo da corte mais uma vez, talvez eu comece a acreditar. — Ele não vai tentar ir atrás dela, não terei que lidar com isso. Elayne estava com a voz calma, um tom leve o bastante para indicar que não falava sério. — Já vi o bobo da corte de um lorde cairhieno, ele usava um casaco listrado meio engraçado, grande demais e cheio de sinos. Você ficaria ridículo com um casaco de sinos.

— Acho que sim — respondeu ele, pesaroso. — Vou me lembrar disso.

O sorriso lento foi maior desta vez, aquecendo toda a expressão.

O frio na barriga era quase congelante, mas ela se ocupou em ajeitar as saias. Precisava ir devagar, com cautela. Senão ele vai pensar que sou só uma garota. E vai ter razão. Agora havia uma verdadeira geleira em sua barriga.

— Quer uma flor? — perguntou ele, de súbito, e a jovem piscou os olhos, confusa.

— Uma flor?

— É. — Ele avançou até a cama, pescou dois punhados de penas do colchão esfarrapado e as segurou diante dela. — Eu fiz uma para a majhere, ontem à noite. Pela reação dava para pensar que eu tinha dado a Pedra a ela. Mas a sua será muito mais bonita — acrescentou, mais do que depressa. — Muito mais bonita. Eu prometo.

— Rand, eu…

— Vou tomar cuidado. Basta só um pouquinho do Poder. Só um fiozinho, e vou tomar muito cuidado.

Confiar. Ela tinha de confiar nele. Era uma leve surpresa perceber que de fato confiava.

— Eu gostaria muito, Rand.

Por um longo instante, o rapaz encarou o montinho de plumas nas mãos com uma leve careta no rosto. De repente, deixou as plumas desabarem, batendo as palmas.

— Flores não são um presente apropriado para você. — disse ele. Elayne sentiu compaixão, o rapaz claramente tentara abraçar saidin, sem sucesso. Disfarçando a decepção, ele coxeou, apressado, até o tecido metálico e começou a enrolá-lo em volta do braço. — Esse sim é um presente apropriado para a Filha-herdeira de Andor. Você pode mandar uma costureira fazer… — Ele se atrapalhou para dizer o que uma costureira poderia fazer com um pedaço de tecido de ouro e prata de quatro passadas e menos de dois pés de largura.

— Tenho certeza de que a costureira terá várias ideias — respondeu Elayne, diplomática. — Puxando um lenço de seda azul-claro da manga, ela se ajoelhou por um instante e recolheu as plumas que ele deixara cair.

— As serviçais vão cuidar disso — disse ele, enquanto a Filha-herdeira enfiava a pequena trouxa na bolsa do cinto.

— Bom, esse tanto está limpo. — Como Rand poderia entender que ela queria guardar as plumas porque ele quisera fazer uma flor com elas? Ele remexeu os pés, segurando a trouxa brilhante como se não soubesse o que fazer com ela. — A majhere deve ter costureiras — continuou Elayne. — Vou entregar a ela. — Rand se animou e sorriu, ela não via motivo para dizer que seria um presente para a outra mulher. Aquela geleira não a deixava mais se conter. — Rand, você… gosta de mim?

— Gosto de você? — O rapaz franziu a testa. — É claro que gosto de você. Gosto muito.

Ele precisava mesmo fazer cara de quem não estava entendendo absolutamente nada?

— Eu tenho afeto por você, Rand. — Ficou assombrada por conseguir dizer aquilo com tanta calma. O estômago parecia rastejar até a garganta, e as mãos e os pés estavam gélidos. — Mais que afeto.

Era o suficiente, ela não faria papel de boba. Ele primeiro precisa dizer mais do que “gosto”. Elayne quase riu, histérica. Vou me controlar. Não vou deixar que ele me veja com o comportamento de uma garotinha apaixonada. Não vou.

— Eu sinto afeto por você — respondeu ele, com cautela.

— Não costumo ser tão atrevida. — Não, isso poderia fazê-lo pensar em Berelain. As bochechas dele estavam vermelhas. Rand estava pensando em Berelain. Que o queime! A voz dela saiu suave como seda: — Em breve terei que partir, Rand. Irei embora de Tear. Talvez eu passe meses sem vê-lo. — Talvez nunca mais o veja, ressoou uma vozinha em sua cabeça. Elayne se recusou a escutá-la. — Não poderia ir embora sem dizer como me sinto. Eu… sinto um enorme afeto por você.

— Elayne, eu sinto mesmo afeto por você… Eu quero… — O vermelho em seu rosto se intensificou. — Elayne, não sei o que dizer, não sei como…

De súbito foi o rosto dela que ardeu em brasa. Rand devia estar pensando que ela queria forçá-lo a dizer algo mais. E não quer?, zombou a vozinha, o que fez seu rosto esquentar ainda mais.

— Rand, não estou pedindo para você… — Luz! Como dizer aquilo? — Só queria que você soubesse como me sinto. Só isso. — Berelain não deixaria a coisa terminar ali. Àquela altura, a Primeira já estaria enroscada no pescoço do rapaz. Dizendo a si mesma que não deixaria aquela mulherzinha seminua levar a melhor, Elayne se aproximou dele, puxou o pedaço de tecido cintilante de seus braços e largou-o no carpete. Por alguma razão, o rapaz parecia mais alto do que nunca. — Rand… Rand, quero que você me beije. — Pronto. Estava dito.

— Beijar você? — repetiu ele, como se fosse a primeira vez que ouvia aquela palavra. — Elayne, não quero prometer mais do que… Quer dizer, não é como se estivéssemos noivos. Não que eu esteja sugerindo que devêssemos ficar noivos. É só que… Eu gosto de você, Elayne. Mais do que isso. Só não quero que você pense que eu…

Ela tinha que rir dele, com toda aquela confusão tão sincera.

— Não sei como as coisas funcionam em Dois Rios, mas em Caemlyn ninguém espera até o noivado para beijar uma garota. E isso também não significa que os dois devam ficar noivos. Mas talvez você não saiba como se faz…

Ele a envolveu com os braços de um jeito quase rude, e os lábios tocaram os dela. Elayne ficou tonta, os dedos de seus pés tentaram se enroscar dentro das sandálias. Algum tempo depois — ela não soube precisar quanto — percebeu que estava apoiada no peito dele, os joelhos trêmulos, tentando recuperar o fôlego.

— Desculpe a interrupção — disse o rapaz. Ela ficou contente em notar que ele parecia um pouco ofegante. — Sou só um pastor acanhado de Dois Rios.

— Você é bruto — murmurou a Filha-herdeira, colada à camisa de Rand — e não fez a barba hoje, mas eu não diria que é acanhado.

— Elayne, eu…

Ela cobriu a boca de Rand com a mão.

— Não quero ouvir mais nada que não venha do seu coração — disse a jovem com firmeza. — Nem agora nem nunca.

Ele assentiu, não como se entendesse o porquê, mas pelo menos como se compreendesse que ela estava falando sério. Ajeitando os cabelos — seria impossível ajeitar a tira de safiras toda enroscada sem um espelho — ela se soltou do abraço de Rand, não sem relutar. Seria muito fácil permanecer ali, e ela já se comportara de forma mais atrevida do que jamais sonhara fazer. Falando daquele jeito, pedindo um beijo. Pedindo! Ela não era Berelain.

Berelain. Talvez Min houvesse tido uma visão. O que Min via costumava acontecer, mas ela não o dividiria com Berelain. Talvez precisasse esclarecer mais as coisas. Indiretamente, pelo menos.

— Imagino que não vá lhe faltar companhia, depois que eu for embora. Só lembre-se de que algumas mulheres enxergam um homem com o coração, enquanto outras não veem nada além de uma bugiganga para usar, não muito diferente de um colar ou um bracelete. Lembre-se de que vou voltar, e sou eu quem enxerga com o coração. — Rand pareceu confuso de início, depois um pouco assustado. Ela falara demais e muito depressa. Precisava desviar a atenção dele. — Quer saber de uma coisa que não fez? Você não tentou me afugentar dizendo o quanto é perigoso. Nem tente. É tarde demais.

— Não pensei nisso. — Mas outro pensamento passara por sua cabeça, e os olhos dele se encresparam, desconfiados. — Você e Egwene tramaram isso?

Ela tentou mesclar inocência e um leve ultraje no olhar.

— Como pode pensar uma coisa dessas? Acha que iríamos passar você de mão em mão, como um pacote? Está se achando importante demais. Existe um limite para o excesso de orgulho. — Ele agora parecia confuso. O que era muito satisfatório. — Você lamenta o que fez conosco, Rand?

— Eu não pretendia assustar vocês — respondeu ele, hesitante. — Egwene me deixou com raiva, ela nunca precisa se esforçar muito para isso. Não é desculpa, eu sei. Eu disse que sentia muito, e sinto mesmo. Olhe só o que minha atitude me custou. Mesas queimadas e outro colchão arruinado.

— E quanto… ao beliscão?

O rosto dele enrubesceu outra vez, mas o rapaz a encarou com firmeza, mesmo assim.

— Não. Não, eu não me sinto mal por isso. Vocês duas falando como se eu não estivesse aqui, como se eu fosse um pedaço de madeira sem ouvidos. Vocês mereceram, as duas, e não vou dizer o contrário.

Ela o contemplou por um tempo. Rand esfregou os braços nas mangas do casaco enquanto ela abraçava saidar por um instante. Não aprendera sobre Cura em nenhum grau, mas sabia algumas coisinhas aqui e ali. Canalizando, aliviou o machucado causado pelo beliscão. Ele arregalou os olhos, surpreso, e remexeu os pés como se testasse a ausência de dor.

— Pela honestidade — disse a jovem, simplesmente.

Houve uma batida na porta, e Gaul espiou lá dentro. A princípio, o Aiel manteve a cabeça baixa, mas depois de uma breve olhadela para os dois, endireitou-se. O vermelho preencheu a face de Elayne quando ela percebeu que o homem suspeitava ter interrompido algo que não deveria ter visto. Ela quase abraçou saidar e ensinou uma lição a ele.

— Os tairenos estão aqui — anunciou Gaul. — Os Grão-lordes que o senhor estava esperando.

— Eu já vou indo, então — disse ela a Rand. — Você precisa falar com eles sobre… impostos, não era? Pense no que eu disse. — Ela não dissera “pense em mim”, mas teve certeza de que o efeito seria o mesmo.

O rapaz estendeu o braço como se quisesse detê-la, mas ela se desvencilhou. Não tinha intenção de revelar qualquer coisa na frente de Gaul. O homem era Aiel, mas o que pensaria dela, toda de perfume e safiras àquela hora da manhã? Elayne fez um grande esforço para não subir o decote do vestido.

Os Grão-lordes entraram assim que ela alcançou a porta, um grupo de homens grisalhos de barbas pontudas e casacos coloridos, ornamentados com mangas bufantes. Eles abriram caminho com mesuras relutantes, rostos imperturbáveis e murmúrios educados, sem esconder o alívio em vê-la partir.

Ela deu uma espiada pela porta. Rand, um jovem alto e de ombros largos, vestindo um casaco verde e liso, em meio aos Grão-lordes de seda e listras de cetim. Mais parecia uma cegonha entre pavões. Mas havia algo nele, uma presença, que proclamava seu direito de comando. Os tairenos reconheciam isso, inclinando os pescoços rígidos com relutância. Rand achava que os homens só deviam se curvar porque ele era o Dragão Renascido, e talvez os próprios tairenos pensassem assim. Mas Elayne conhecera homens — como Gareth Bryne, o Capitão Comandante da Guarda de sua mãe — capazes de comandar um salão inteiro vestidos em andrajos, sem título algum e sem que ninguém soubesse seus nomes. Rand talvez não percebesse, mas era um deles. Ainda não era quando ela o vira pela primeira vez, mas se tornara um. Elayne fechou a porta atrás de si.

Os Aiel ao redor da entrada a encararam, e o capitão que comandava o círculo de Defensores no centro da antessala a olhou incomodado, mas ela mal percebeu. Estava feito. Ou, pelo menos, começara. Elayne tinha quatro dias até que Joiya e Amico embarcassem naquele navio, quatro dias para se enroscar com tanta firmeza aos pensamentos de Rand que não restaria espaço para Berelain. Ou então com firmeza o suficiente para ocupar a cabeça dele até ter chance de fazer algo mais. Nunca imaginara que faria algo do tipo, perseguir um homem como uma caçadora atrás de um javali selvagem. A geleira em sua barriga continuava firme. Pelo menos não deixara transparecer o nervosismo. Então lhe ocorreu que não pensara sequer um instante no que a mãe diria. Com isso, o frio na barriga desapareceu. Ela não se importava com o que a mãe diria. Morgase teria de aceitar que a filha era uma mulher. Isso era tudo.

Os Aiel se curvaram quando ela se afastou, e Elayne os cumprimentou com um gracioso meneio de cabeça que teria deixado Morgase orgulhosa. Até os capitães tairenos a encararam como se pudessem ver sua nova serenidade. Ela não pensou que seria incomodada pelo frio na barriga outra vez. Talvez causadas pela Ajah Negra, mas não por causa de Rand.


Ignorando o semicírculo de Grão-lordes ansiosos, Rand observou, admirado, a porta se fechar atrás de Elayne. Sonhos se tornando realidade, mesmo que fossem tão pequenos, o deixavam desconfortável. Nadar na Floresta das Águas era uma coisa, mas ele jamais teria imaginado um sonho em que ela fosse até ele daquela forma. Elayne sempre fora tão fria e contida, e ele tropeçava na própria língua. E Egwene tinha os mesmos pensamentos que ele em relação aos dois, só estava preocupada em não magoá-lo. Como as mulheres podiam se despedaçar ou explodir de raiva pelas menores coisas e sequer piscar por outras que deixavam os homens boquiabertos?

— Meu Lorde Dragão? — murmurou Sunamon, em um tom ainda mais desconfiado que o usual.

Os boatos daquela manhã já deveriam ter se espalhado pela Pedra. Aquele primeiro grupo saíra quase em disparada, e era pouco provável que Torean fosse dar as caras, ou repetir aquelas sugestões imundas, em qualquer lugar onde Rand estivesse.

Sunamon ensaiou um sorriso agradável, depois o reprimiu, secando as mãos roliças quando Rand o encarou. O restante fingia que não via as mesas queimadas, o colchão despedaçado, os livros espalhados e os caroços meio derretidos sobre a lareira — o que antes era uma cena mostrando o veado e os lobos. Os Grão-lordes tinham talento para enxergar apenas o que queriam. Carleon e Tedosian, com a humildade mais fingida que Rand já vira, sem dúvida não percebiam como era suspeito não olharem um para o outro. Por outro lado, Rand jamais teria notado não fosse pelo bilhete de Thom, encontrado no bolso de um casaco que acabava de voltar da limpeza.

— O Lorde Dragão queria nos ver? — perguntou Sunamon.

Será que Egwene e Elayne tinham combinado tudo? Claro que não. As mulheres não faziam esse tipo de coisa, assim como os homens. Ou será que faziam? Só podia ter sido coincidência. Elayne ouviu que ele estava livre e decidiu se pronunciar. Era isso.

— Impostos — vociferou.

Os tairenos não se moveram, mas deram a impressão de recuar um passo. Como ele odiava ter de lidar com aqueles homens. Seu desejo era mergulhar de volta nos livros.

— É um mau precedente, meu Lorde Dragão, reduzir os impostos — comentou um homem esguio e grisalho de voz melíflua. Meilan era alto para um taireno, apenas um palmo mais baixo que Rand, e tão rígido quanto qualquer Defensor. Ele se mantinha curvado na presença de Rand. Seus olhos escuros revelavam o quanto odiava fazer aquilo, mas também odiara quando Rand mandou os homens pararem de se agachar à sua volta. Nenhum deles se endireitou, mas Meilan não gostou de ser lembrado do que fazia. — Os camponeses sempre pagaram com facilidade, mas, se baixarmos os impostos, no dia em que os elevarmos ao valor original os idiotas vão reclamar de um jeito tão amargo quanto fariam se dobrássemos a taxação atual. Quando chegar esse dia, pode muito bem haver motins, meu Lorde Dragão.

Rand caminhou pelo quarto e parou diante de Callandor. A espada de cristal cintilava, ofuscando o brilho das douraduras e pedras preciosas que a rodeavam. Uma lembrança de quem ele era, do poder que era capaz de brandir. Egwene. Era bobagem ficar magoado por ela ter dito que não o amava mais. Por que deveria esperar que ela mantivesse sentimentos que ele não nutria por ela? Ainda assim, doía. Era um alívio, mas não dos mais agradáveis.

— Vocês terão ainda mais motins se tirarem os homens de suas fazendas. — Três livros jaziam em uma pilha quase aos pés de Meilan. Os tesouros da Pedra de Tear, Viagens pelo Deserto e Transações com o território de Mayene. As chaves estavam naqueles volumes e nas diversas traduções de O Ciclo de Karaethon, ainda que ele não as conseguisse encontrar para encaixá-las nas fechaduras corretas. Voltou a atenção outra vez para os Grão-lordes. — Acham mesmo que eles vão ficar olhando as famílias passando fome sem fazer nada?

— Os Defensores da Pedra já contiveram motins antes, meu Lorde Dragão — retrucou Sunamon, muito calmo. — Nossos próprios guardas podem manter a paz no interior. Os camponeses não vão perturbá-lo, eu lhe dou a minha palavra.

— Já existem fazendeiros demais. — Carleon se encolheu sob o olhar de Rand. — Cairhien está em guerra civil, meu Lorde Dragão — explicou, mais do que depressa. — Os cairhienos não podem comprar grãos, e os celeiros estão abarrotados. A colheita deste ano vai apodrecer inteirinha. E ano que vem…? Que a minha alma queime, Lorde Dragão, mas precisamos é que alguns daqueles camponeses parem de cavar e plantar sem parar. — Ele pareceu perceber que falara demais, embora claramente não fosse capaz de entender por quê.

Rand se perguntou se o homem tinha alguma ideia de como a comida chegava em sua mesa. Será que via algo além de ouro e poder?

— O que vocês vão fazer quando Cairhien voltar a comprar grãos? — perguntou Rand, com frieza. — Aliás, será que Cairhien é o único lugar que precisa de grãos?

Por que Elayne se abrira daquela forma? O que esperava dele? Afeto, foi o que ela dissera. As mulheres, assim como as Aes Sedai, sabiam jogar com as palavras. Será que ela estava dizendo que o amava? Não, isso era a mais pura bobagem. Podia até ser orgulhoso demais, mas sem exageros.

— Meu Lorde Dragão — começou Meilan, meio subserviente, meio como se explicasse algo a uma criança — se as guerras civis acabassem hoje, ainda assim Cairhien não poderia comprar mais que umas poucas barcaças carregadas pelos próximos dois anos, talvez três. Sempre vendemos os grãos a Cairhien.

Sempre — por vinte anos, desde a Guerra dos Aiel. Eram tão atrelados ao que sempre haviam feito que pareciam incapazes de enxergar uma coisa tão simples. Ou não queriam ver. Quando os repolhos rebentavam feito ervas ao redor de Campo de Emond, era quase certo que uma chuva ruim ou vermes tinham assolado Trilha de Deven ou Colina da Vigília. Quando Colina da Vigília colhia nabos em profusão, era certo que Campo de Emond ou Trilha de Deven estavam lidando com a escassez.

— Ofereça para Illian — sugeriu. O que Elayne esperava dele? — Ou para Altara. — Gostava dela, mas da mesma forma que gostava de Min. Ou que pensava que gostava. Era impossível entender o sentimento que nutria pelas duas. — Vocês têm navios para jogar no mar, além de barcos e barcaças, e, se não tiverem o suficiente, aluguem navios de Mayene. — Ele gostava das duas, mas, além disso… passara quase a vida inteira suspirando por Egwene. Não estava disposto a embarcar nisso outra vez sem certeza. Qualquer certeza. Certeza. Se Transações com o Território de Mayene estivesse relatando a verdade… Pare com isso, disse a si mesmo. Mantenha o foco nessas fuinhas ardilosas, ou eles encontrarão buracos por onde fugir para dar uma mordida nos seus calcanhares. — Paguem com grãos. Tenho certeza de que, por um bom preço, a Primeira concordará. E talvez um acordo assinado, um tratado… — Era uma boa palavra, do tipo que eles usavam. — A promessa de deixar Mayene em paz em troca dos navios. — Devia isso à Primeira.

— Fazemos poucos negócios com Illian, meu Lorde Dragão. São uma escória de abutres. — Tedosian soou escandalizado. Assim como Meilan, que disse:

— Sempre lidamos com Mayene na base da força, meu Lorde Dragão. Nunca dobramos os joelhos.

Rand respirou fundo. Os Grão-lordes ficaram tensos. Era sempre a mesma coisa. Tentava ser razoável com eles, e sempre dava errado. Thom dizia que os Grão-lordes tinham as cabeças mais duras que a Pedra, e estava certo. O que é que eu sinto por ela? Fico tendo esses sonhos. Ela com certeza é linda. Não sabia ao certo se pensava em Elayne ou Min.

— Primeiro vocês vão reduzir três quartos dos impostos dos fazendeiros e metade dos de todo o resto da população. Não discutam! Façam! Segundo, vão falar com Berelain e perguntar… É para perguntar! Por quanto poderiam alugar…

Os Grão-lordes escutaram com sorrisos falsos e rangendo os dentes, mas escutaram.


Egwene pensava em Joiya e Amico quando Mat surgiu ao seu lado, caminhando pelo corredor como se fosse uma enorme coincidência estar passando por ali. O rapaz estava com a testa franzida e os cabelos desgrenhados, como se os tivesse bagunçado com os dedos. Ele a encarou uma ou duas vezes, mas não disse uma palavra. Os servos que passavam por eles se curvavam em mesuras e reverências, bem como os Grão-lordes e grã-ladies, ainda que com entusiasmo menos evidente. Os olhares carrancudos de Mat aos nobres teriam lhe causado problemas se Egwene não estivesse ali, amigo do Lorde Dragão ou não.

O silêncio não combinava com ele, não com o Mat que Egwene conhecia. Exceto pelo fino casaco vermelho — amassado, como se o rapaz tivesse dormido com ele — não parecia diferente do velho Mat, embora todos estivessem mudados. Seu silêncio era inquietante.

— Está incomodado com a noite passada? — perguntou a jovem, por fim.

Mat tropeçou.

— Você ficou sabendo? Bom, é de se esperar, não é? Não me incomodou. Não foi nada demais. De qualquer modo, já está no passado.

Egwene fingiu acreditar.

— Nynaeve e eu não temos visto muito você. — Era um eufemismo e tanto.

— Tenho andado ocupado — murmurou o rapaz, e deu de ombros, constrangido, olhando para todos os lados, menos para Egwene.

— Jogando dados? — perguntou ela, desdenhosa.

— Cartas. — Uma serviçal roliça, curvando-se em mesuras com os braços cheios de toalhas dobradas, olhou para Egwene e, parecendo pensar que a jovem não reparava, piscou para Mat. O rapaz abriu um sorriso em resposta. — Tenho andado ocupado jogando cartas.

As sobrancelhas de Egwene se ergueram. Aquela mulher deveria ser uns dez anos mais velha que Nynaeve.

— Entendi. Deve tomar bastante tempo, jogar cartas. Tempo demais para que sobre um pouco para os velhos amigos.

— Da última vez que passei um tempo com vocês, você e Nynaeve me prenderam com o Poder como um porco em um mercado para vasculharem meu quarto. Amigos não roubam de amigos. — Ele fez uma careta. — Além do mais, vocês estão sempre com aquela Elayne, toda de nariz em pé. Ou com Moiraine. Eu não gosto… — Com um pigarro, ele lançou a ela um olhar de esguelha. — Não gosto de tomar o tempo de vocês. Pelo que andei ouvindo, estão muito ocupadas. Interrogando Amigas das Trevas. Fazendo uma série de coisas importantes, imagino. Já sabem que esses tairenos pensam que vocês são Aes Sedai, não sabem?

Egwene balançou a cabeça, pesarosa. Era das Aes Sedai que ele não gostava. Por mais coisas do mundo que Mat visse, nada o faria mudar.

— Pegar de volta o que estava emprestado não é roubar — retrucou.

— Não me lembro de você ter falado qualquer coisa sobre empréstimo. Ah, de que me adianta uma carta da Amyrlin? Só me causa problemas. Vocês poderiam ter pedido.

Ela se conteve e não mencionou que de fato haviam pedido. Não queria discutir, e nem queria que ele fosse embora emburrado. Mat não chamaria aquilo de pedido, naturalmente. Dessa vez, ela o deixaria seguir com a própria versão.

— Bom, agradeço por você ainda estar disposto a falar comigo. Alguma razão especial para me procurar hoje?

Mat enfiou os dedos nos cabelos e resmungou sozinho. Precisava era de um puxão de orelha da mãe e uma longa conversa. Egwene recomendou a si mesma paciência. Sabia ser paciente quando queria. Não diria uma palavra antes dele, ainda que estivesse explodindo por dentro.

O corredor se abria em uma colunata de mármore branco com uma balaustrada que dava para um dos poucos jardins da Pedra. Grandes botões de flores brancas cobriam as árvores esparsas, pequenas e de folhas moles, com aroma ainda mais doce do que os arbustos de rosas vermelhas e amarelas. Uma brisa úmida falhava em remexer os reposteiros na parede interna, mas reduzia o calor crescente e abafado da manhã. Mat sentou-se na larga balaustrada e encostou-se em uma coluna, erguendo um dos pés à frente do corpo. Contemplando o jardim, disse, por fim:

— Eu… preciso de um conselho.

Mat queria um conselho dela? Egwene arregalou os olhos.

— O que eu puder fazer para ajudar — respondeu, a voz fraca. O rapaz virou a cabeça para ela, que se esforçou para assumir a feição tranquila de uma Aes Sedai. — Quer um conselho a respeito de quê?

— Eu não sei.

Era uma queda de dez passadas até o jardim. Além do mais, havia homens lá embaixo, capinando a grama entre as rosas. Se Egwene o empurrasse, ele poderia cair em cima de um deles.

— Como é que eu vou poder aconselhá-lo, então? — perguntou, com a voz aguda.

— Estou… tentando decidir o que fazer. — Ele parecia envergonhado. Na opinião dela, estava muito certo.

— Espero que não esteja pensando em fugir. Você sabe o quanto é importante. Não pode simplesmente fugir, Mat.

— Você acha que não sei disso? Acho que não poderia ir embora nem se Moiraine permitisse. Acredite em mim, Egwene, eu não vou a lugar nenhum. Só quero saber o que é que vai acontecer. — Ele sacudiu a cabeça, e sua voz ficou mais firme. — O que é que acontecerá em seguida? Por que a minha memória está cheia de buracos? Alguns pedaços da minha vida nem estão lá, eles simplesmente não existem, como se jamais tivessem acontecido! Por que é que eu volta e meia falo umas baboseiras? Dizem que é Língua Antiga, mas para mim são só umas asneiras sem sentido. Eu quero saber, Egwene. Preciso saber, antes que fique tão doido quanto Rand.

— Rand não está doido — respondeu ela, sem pensar. Então Mat não estava tentando fugir. Era uma surpresa agradável. O rapaz não parecia acreditar em responsabilidade. Mas havia sofrimento e preocupação em sua voz. Mat nunca demonstrava preocupação, pelo menos não na frente de alguém. — Eu não sei as respostas, Mat — disse, com gentileza. — Talvez Moiraine…

— Não! — Ele deu um salto e se levantou. — Nada de Aes Sedai! Quer dizer… Você é diferente. Eu conheço você, você não é… Elas não ensinaram nada na Torre, algum truque ou coisa assim, alguma coisa que possa servir?

— Ah, Mat, eu lamento. Eu lamento muito.

A risada dele a fez lembrar-se da infância dos dois. Mat sempre ria quando tinha as grandes expectativas frustradas.

— Ah, bem, acho que não importa. Ainda seria um conselho da Torre, mesmo que de segunda mão. Não se ofenda.

Mat sempre reclamava horrores por uma farpa no dedo, mas tratava uma perna quebrada como se não fosse nada demais.

— Pode ser que haja um jeito — começou Egwene, com cautela. — Se Moiraine concordar. Talvez ela concorde.

— Moiraine! Você não ouviu uma palavra do que eu disse? A última coisa que quero é Moiraine se intrometendo. Que jeito?

Mat sempre fora impulsivo. Mas não queria mais do que ela própria: saber. Se ele ao menos demonstrasse um pouco de cautela e bom senso, para variar. Uma nobre tairena que passava, com tranças escuras enroladas na cabeça e ombros desnudos acima do linho amarelo, dobrou de leve o joelho, encarando os dois sem expressão. Ela caminhava depressa, as costas rijas. Egwene a observou até que ela saísse do alcance de sua voz e os dois estivessem sozinhos. A menos que os jardineiros, trinta pés abaixo, contassem. Mat a encarava, na expectativa.

No fim, ela contou a ele sobre o ter’angreal, o batente de porta retorcido que revelava respostas do outro lado. Enfatizou os riscos, as consequências das perguntas tolas e das respostas relativas à Sombra, perigos que talvez nem as Aes Sedai conhecessem. Ela estava mais do que lisonjeada por Mat tê-la procurado, mas o rapaz precisava demonstrar um pouco de bom senso.

— Lembre-se disso, Mat. Perguntas frívolas podem acabar matando. Então, se o usar, vai precisar agir com seriedade pela primeira vez na vida. E não pode perguntar nada relativo à Sombra.

Ele escutara com crescente incredulidade. Quando Egwene terminou, o rapaz exclamou:

— Três perguntas? Você entra como Bili, eu suponho, passa uma noite lá e volta dez anos depois com uma bolsa cheia de dinheiro que não esvazia nunca e um…

— Pela primeira vez na vida, Matrim Cauthon — retrucou ela, irritada —, pare de bancar o idiota. Você sabe muito bem que ter’angreal não são histórias. Precisa tomar cuidado com os perigos. Talvez as respostas que procura estejam dentro desse, mas você não pode fazer nada sem a autorização de Moiraine. Tem que me prometer isso, ou juro que arranco você de lá como uma truta encordoada. Sabe que eu consigo.

Ele bufou alto.

— Eu seria idiota se tentasse, mesmo com a autorização de Moiraine. Entrar em uma droga de um ter’angreal? Eu quero ter menos a ver com o Poder, não mais. Pode ir desistindo dessa ideia.

— É o único jeito que eu conheço, Mat.

— Não para mim, para mim não é — respondeu o rapaz, com firmeza. — Ficar sem solução ainda é melhor do que isso.

Apesar do tom de Mat, Egwene sentiu vontade de abraçá-lo. Só que ele faria alguma piadinha às suas custas e tentaria lhe dar um beliscão. Ele sempre fora incorrigível, desde o dia em que nasceu. Mesmo assim, fora até lá pedir ajuda.

— Eu lamento, Mat. O que é que você vai fazer?

— Ah, acho que jogar cartas. Se alguém quiser jogar comigo. Jogar pedras com Thom. Dados nas tavernas. Ainda posso ir até a cidade, pelo menos. — Ele fixou o olhar em uma serviçal mais adiante, uma garota esbelta e de olhos escuros, quase da idade deles. — Vou arrumar alguma coisa para passar o tempo.

Egwene sentiu a mão coçar com a vontade de dar um tapa no rapaz, mas em vez disso disse, cautelosa:

— Mat, você não está mesmo pensando em ir embora, está?

— Se eu estivesse, você contaria a Moiraine? — Ele ergueu a mão para impedi-la se responder. — Bom, não tem necessidade. Eu já disse que não vou. Não posso fingir que não queria, mas não vou embora. Está bom para você? — Ele franziu o cenho, pensativo. — Egwene, já sentiu vontade de voltar para casa? Já desejou que nada disso tivesse acontecido?

Era uma pergunta surpreendente, vinda dele, mas ela sabia a resposta.

— Não. Mesmo com tudo isso, não. E você?

— Eu seria um idiota, não seria? — Mat deu risada. — Eu gosto é de cidades, e esta aqui basta, por enquanto. Esta basta. Egwene, você não vai contar a Moiraine sobre isso, vai? Sobre eu vir pedir conselhos, e tudo o mais?

— Por que eu não deveria? — perguntou a jovem, desconfiada. Afinal de contas, era de Mat que estavam falando.

O rapaz deu de ombros, encabulado.

— Tenho mantido mais distância dela do que de… de qualquer forma, eu a tenho evitado, principalmente quando ela resolve vasculhar a minha cabeça. Pode pensar que estou amolecendo. Não conte a ela, está bem?

— Não conto — disse Egwene — se você me prometer que não vai chegar perto daquele ter’angreal sem a permissão dela. Eu não devia nem ter falado disso com você.

— Eu prometo. — Mat escancarou um sorriso. — Só vou chegar perto daquele treco se a minha vida estiver dependendo dele. — O rapaz concluiu a frase com uma seriedade zombeteira.

Egwene balançou a cabeça. Por mais que todo o resto mudasse, Mat jamais mudaria.

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