CAPÍTULO XII

Chegamos — disse Vijaya quando o carro atingiu o fim da pequena rua enladeirada que partia da praça do mercado. Abrindo uma cancela, introduziu seu hóspede num pequeno jardim, no fundo do qual uma casa de sapé se erguia sobre curtos varais.

Surgindo de trás do bangalô, um vira-lata amarelo, agitando a cauda, saudou-os calorosamente com latidos e saltos. Minutos depois, um grande papagaio verde, de cabeça branca e bico negro como azeviche, vindo não se sabe de onde, pousou com um grito e um barulhento agitar de asas sobre o ombro de Vijaya.

— Papagaios para você e mainás para a pequena Mary Sarojini — disse Will. — Todos vocês parecem manter excelentes relações de amizade com a fauna local.

Vijaya balançou a cabeça afirmativamente.

— Provavelmente Pala é o único país no qual um animal, se fosse teólogo, não teria razão para acreditar em demônios. Em todas as outras partes do mundo, satã é com muita razão representado pelo homo sapiens.

Após subirem as escadas que conduziam à varanda, atravessaram a porta da frente e entraram na sala de estar do bangalô. Sentada numa cadeira baixa, uma mulher jovem, vestida de azul, amamentava o filho. Levantando o rosto de fronte larga e que se estreitava até terminar num queixo delicado, saudou-os com um sorriso.

— Trouxe Will Farnaby comigo — disse Vijaya enquanto se inclinava para beijá-la.

Shanta estendeu a mão livre ao estranho.

— Espero que Mr. Farnaby não faça objeções à natureza como ela é.

Como se quisesse dar ênfase às palavras da mãe, o bebê retirou a boca do mamilo marrom e arrotou. Uma bolha branca e sedosa apareceu entre seus lábios, cresceu e se desfez. Após outro arroto, recomeçou a mamar.

— Mesmo aos oito meses — acrescentou — as maneiras de Rama à mesa são ainda muito primitivas.

— É uma bela criança — disse Will delicadamente. Não se interessava muito por bebês e sempre fora grato aos repetidos abortos que frustraram todas as esperanças e desejos de Molly.

— Com quem será parecido? Com você ou com Vijaya?

Shanta deu uma gargalhada e Vijaya acompanhou-a uma oitava mais abaixo.

— Tenho certeza de que não se parecerá com Vijaya — respondeu Shanta.

— Por que não?

— Pela simples razão de que geneticamente eu não sou o responsável — disse Vijaya.

— Em outras palavras, a criança não é filha de Vijaya.

Will olhou de uma para outra daquelas fisionomias risonhas e, com um levantar de ombros, disse:

— Desisto de querer entender.

— Há quatro anos tivemos um par de gêmeos que são a imagem viva de Vijaya — falou Shanta. — Desta vez, pensamos que seria interessante que houvesse uma mudança radical e decidimos adicionar à família um ser inteiramente diferente, não só no físico como também no temperamento. Já ouviu falar em Gobind Singh?

— Vijaya acabou de me mostrar um de seus quadros que se encontra na sala de meditações.

— Foi esse o homem que escolhemos para ser o pai de Rama.

— Mas pelo que depreendi, ele estava morto.

Shanta aquiesceu com um movimento de cabeça.

— No entanto, sua alma continua viva.

— Que é que você quer dizer com isso?

— C. e I. A.

— C. e I. A.?

— Congelação e Inseminação Artificial.

— Oh! Estou entendendo.

— Estamos cerca de vinte anos mais adiantados do que vocês, no que diz respeito às técnicas de I. A. — disse Vijaya. — Mas não pudemos fazer muita coisa até que tivéssemos energia elétrica e refrigeradores dignos de confiança, o que só conseguimos nos últimos anos da década de 20. Desde essa época, a I. A. tem sido amplamente utilizada.

— Meu bebê — disse Shanta — pode vir a se tornar um pintor, caso essa espécie de talento possa ser herdada. Mesmo que isso não aconteça, ele será muito mais pícnico e viscerotônico do que seus irmãos e do que qualquer um de seus pais. Esse fato será muito interessante e ilustrativo para aqueles que se dedicam a tal assunto.

— É grande o número de pessoas que recorrem à inseminação? — perguntou Will.

— Cada dia aumenta mais — respondeu Shanta. — Posso lhe dizer que praticamente todos os casais que se decidem a ter um terceiro filho recorrem a esse processo. O mesmo está sendo feito por muitos que se dedicam a limitar a dois o número de filhos. Vou lhe citar o exemplo da minha família. Na família do meu pai houve casos de diabete. Em vista disso, ele e minha mãe decidiram que deveriam recorrer à I. A. para terem filhos. Meu irmão descende de três gerações de dançarinos, e, geneticamente, eu sou a filha de Malcolm Chakravarti MacPhail, o secretário particular do rajá e primo em primeiro grau do dr. Robert.

— Ele foi também o autor da melhor história de Pala e era um dos homens mais capazes da sua geração — acrescentou Vijaya.

Will dirigiu um olhar a Shanta e depois voltou a encarar Vijaya.

— E a habilidade foi herdada? — perguntou Will.

— Em tal quantidade — respondeu Vijaya — que tenho enorme dificuldade para manter a superioridade masculina. Shanta é mais inteligente do que eu, mas felizmente não pode competir com a força dos meus músculos.

— Força muscular — disse Shanta, repetindo ironicamente — força muscular… Ainda me lembro bem da história de uma jovem chamada Dalila.

— Devo lhe dizer — prosseguiu Vijaya — que Shanta tem trinta e dois meios-irmãos e vinte e nove meias-irmãs. Mais de um terço desse total são pessoas excepcionalmente inteligentes.

— Você está contribuindo para melhorar a raça, não é verdade?

— Isso mesmo! Se as circunstâncias o permitirem, dentro de mais um século nosso coeficiente intelectual médio será superior a cento e quinze.

— Enquanto o nosso, com o progresso de que dispomos, decrescerá para cerca de oitenta e cinco. Melhor nível de medicina, maior número de deficiências congênitas que são preservadas e transmitidas. Isso facilitará muito o trabalho dos futuros ditadores. — Ao pensamento dessa brincadeira cósmica, Will deu uma gargalhada.

Após um curto silêncio, perguntou:

— Que é que você me diz dos problemas éticos e religiosos da inseminação artificial?

— De início, havia um bom número daqueles que apresentavam objeções de consciência. Atualmente, porém, depois que as vantagens da I. A. foram tão claramente demonstradas, a maioria dos casais acha que é muito mais digno tomar uma injeção e ter uma criança mais bem dotada, do que correr o risco de reproduzir servilmente todas as deficiências e defeitos que possam existir na família do marido. Enquanto isso, os teólogos andaram ocupados. A inseminação artificial foi justificada em termos de reencarnação e da teoria do carma. Pais devotos sentem-se agora felizes ao pensarem que estão dando aos filhos de suas esposas a oportunidade de criarem um destino melhor para eles mesmos e para os seus descendentes.

— Um destino melhor?

— Sim, porque eles trazem em si um plasma germinal de melhor linhagem. E a linhagem é melhor porque é a manifestação de um carma melhor. Dispomos de um banco central de linhagens superiores. Linhagens superiores de todas as variedades de físico e de temperamento. No seu ambiente, a hereditariedade da maioria do povo nunca tem a menor oportunidade. No nosso, isso não ocorre. Devo acrescentar que dispomos de excelentes registros genealógicos e antropométricos que nos permitem retroceder ao século XVIII. Deste módo, não estamos trabalhando inteiramente no escuro. Por exemplo, sabemos que a avó materna de Gobind Singh era uma médium e que viveu até os noventa e seis anos.

— Por aí você vê que nós podemos vir a ter um clarividente centenário na família — disse Shanta.

O bebê arrotou outra vez e, rindo, ela tornou a comentar:

— O oráculo falou e, como de costume, de maneira muito enigmática. — Dirigindo-se a Vijaya, disse: — Se você quiser que o almoço esteja pronto na hora é bom que comece a fazer alguma coisa. Ficarei ocupada com Rama pelo menos durante mais dez minutos.

Vijaya levantou-se, colocou uma das mãos sobre o ombro da esposa e com a outra acariciou delicadamente o bebê.

Curvando-se, Shanta esfregou o rosto na penugem da cabeça da criança.

— É o papai — murmurou. — É um bom pai, bom, muito bom.

Depois de um último tapinha no rosto do bebê, Vijaya disse a Will:

— Você tem mostrado curiosidade em saber como é que mantemos boas relações com a nossa fauna. Eu lhe mostrarei. — Vijaya levantou a mão e disse: — Polly, Polly.

Cautelosamente, o grande pássaro começou a andar de seu ombro em direção ao indicador estendido.

— Polly é um bom pássaro — entoou. — Polly é um pássaro muito bom.

Abaixou a mão com o intuito de possibilitar uma aproximação entre o corpo do pássaro e o da criança. Começou então a fazer movimentos lentos de modo a pôr em contato as suas penas com a pele morena, e enquanto fazia esses movimentos repetia continuamente: «Polly é um bom pássaro… um bom pássaro».

O papagaio emitia uma série de sons de baixa tonalidade, semelhantes a uma risada, e, curvando-se para diante, sobre o dedo onde estava empoleirado, bicou com cuidado a delicada orelha da criança.

— Que bom pássaro — murmurou Shanta, continuando a repetir o refrão. — Que bom pássaro…

— O dr. Andrew aprendeu isso — disse Vijaya — quando, trabalhando como naturalista no Melampus, entrou em contato com uma tribo do norte da Nova Guiné. Povo neolítico; porém, do mesmo modo que os cristãos e os budistas, acreditava no amor. Eram diferentes de nós e de vocês porque inventaram métodos práticos de tornarem reais as coisas em que acreditavam. Essa teoria foi uma das suas descobertas mais felizes. Acaricie uma criança enquanto ela está sendo alimentada. Isso duplica o seu prazer. Enquanto ela está mamando e sendo acariciada, apresente o animal ou a pessoa de quem você quer que ela goste. Esfregue o seu corpo contra o dela. Permita que haja um contato físico caloroso entre a criança e o objeto a ser amado. Simultaneamente repita uma palavra, como, por exemplo, «bom». A princípio, ela perceberá somente o som de sua voz. Com o passar do tempo, quando aprender a falar, compreenderá a significação do que ouvia. Alimento, mais carícia, mais contato, mais «bom» é igual a amor. E amor é igual a prazer. Amor é igual a satisfação.

— Isto é puro Pavlov!

— Pavlov usado exclusivamente com um bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão. Enquanto isso vocês preferem usá-lo para lavagens mentais, para vender cigarros, vodca e patriotismo. Pavlov para beneficiar os ditadores, os generais e os magnatas.

Recusando-se a continuar isolado, o vira-lata amarelo veio juntar-se ao grupo e lambia imparcialmente tudo que fosse dotado de vida e que estivesse à seu alcance — o braço de Shanta, a mão de Vijaya, os pés do papagaio, as nádegas do bebê. Puxando-o para perto de si, Shanta esfregou a criança contra o seu flanco peludo.

— Este é um cachorro muito, muito bom — disse. — Toby é um cachorro muito, muito bom. É um cachorro muito bom.

Will deu uma risada.

— Será que eu não deveria entrar na função? — perguntou.

— Estava querendo lhe sugerir isso, mas estava receosa de que você considerasse tudo isso como coisa aquém da sua dignidade — respondeu Shanta.

— Tome meu lugar — disse Vijaya. — Devo ir providenciar nosso almoço.

Ainda carregando o papagaio, dirigiu-se para a porta que levava à cozinha.

Levantando a cadeira, Will se aproximou da criança e começou a acariciar seu frágil corpo.

— É outro homem — murmurou Shanta. — É um homem bom, meu bebê. Um homem bom.

— Como gostaria que tudo isso fosse verdade — disse Will com um curto e triste sorriso.

— Aqui e agora é a verdade. — Inclinando-se novamente sobre a criança, continuou a repetir: — Ele é um bom homem. Um homem muito bom.

Will olhou para aquela fisionomia feliz, na qual havia um sorriso apenas esboçado, e sentiu na ponta dos dedos o corpo quente e macio da criança. Bom, bom, bom…

Se sua vida tivesse sido completamente diferente, na sua absurda e odiosa realidade, ele também poderia ter conhecido essa bondade. Por isso nunca aceita o «sim» como resposta, mesmo quando, num momento como este, parece conter toda a evidência. Olhando novamente com os olhos propositadamente voltados para uma outra onda de avaliação, pôde ver a caricatura de um altar de Memling. Viu a Madona com a Criança, o cão, Pavlov e o conhecimento casual. Subitamente compreendeu, do fundo do seu ser, por que Mr. Bahu odiava aquele povo. A razão pela qual estava tão empenhado em destruí-los. É desnecessário dizer que, como sempre, tudo era feito em nome de Deus.

— Bom — murmurava ainda Shanta para o bebê. — Bom, bom, bom.

Bons demais, eis o crime deles. Isso simplesmente não podia ser permitido, e, no entanto, era tão precioso! Quão apaixonadamente desejara tomar parte nisso! «Puro sentimentalismo!» disse a si mesmo, e, depois, em voz alta:

— Bom, bom, bom — repetiu com ironia. — E quando a criança cresce um pouco e descobre que muitas pessoas e coisas são completamente más, más, más?

— O afeto gera o afeto — respondeu ela.

— Somente dos benevolentes!! Mas não dos gananciosos, dos amantes do poder, dos frustrados ou dos amargos. Para estes, a benevolência não passa de fraqueza, de um convite à exploração, à tirania ou à vingança impune.

— É preciso correr esse risco, é preciso começar. Felizmente ninguém é imortal. Os que foram condicionados a enganar, a tiranizar e a amargurar estarão mortos daqui a alguns anos. Mortos e substituídos por homens e mulheres educados de maneira diferente. Isso aconteceu conosco e pode acontecer a vocês.

— Pode acontecer — concordou ele —, porém com a bomba H, o nacionalismo e cinqüenta milhões de pessoas nascendo anualmente não há a menor possibilidade disso.

— Não se pode julgar até que se experimente.

— Não podemos tentá-lo enquanto o mundo estiver como está. E é claro que assim permanecerá, a menos que tentemos mudá-lo. Além dessa tentativa, é necessário que haja pelo menos um sucesso como o seu. Foi isso que me levou à pergunta inicial. Que acontece quando o bom, bom, bom descobre que, mesmo em Pala, existe muita coisa má, má, má? As crianças não se sentem desagradavelmente chocadas?

— Tentamos imunizá-las contra esses choques.

— De que modo? Tornando-lhes as coisas desagradáveis enquanto ainda são jovens?

— Desagradável não é a palavra certa, e sim real. Nós lhes ensinamos a amar e confiar, porém ao mesmo tempo os expomos a todos os aspectos da realidade. Damos-lhes responsabilidades para que saibam que Pala não é um éden ou uma «terra de cocanhos». É um lugar agradável que somente permanecerá assim se todos trabalharem e procederem com decência. Enquanto isso, mesmo aqui, a realidade é a mesma.

— Que dizer de realidades como as horripilantes cobras que encontrei quando escalava o rochedo? Vocês podem continuar dizendo «bom, bom, bom», e mesmo assim as cobras continuarão mordendo.

— Você se refere ao fato de elas ainda poderem morder, mas será que continuarão a fazê-lo?

— Por que não?

— Olhe ali — disse Shanta.

Virando a cabeça, Will observou que ela apontava para um nicho na parede atrás dele. Dentro do nicho, um Buda de pedra estava sentado sobre um pedestal cilíndrico, curiosamente entalhado, encimado por uma espécie de dossel em forma de folha que, estreitando-se para baixo, formava um largo pilar atrás dele. A escultura tinha a metade das dimensões de um homem.

— É uma pequena réplica do Buda que se encontra no acampamento. Aquela figura enorme que está à beira do lago de lótus — continuou ela.

— Acho que é um excelente exemplar de escultura — disse Will. — Aquele sorriso realmente dá às pessoas uma idéia de como deve ser a visão beatífica. Porém, qual a sua relação com as cobras?

— Olhe novamente.

Ele obedeceu, dizendo em seguida:

— Não vejo nada de especial.

— Olhe com mais atenção.

Passaram-se os segundos e, de repente, com grande surpresa, notou algo estranho e perturbador. Aquilo que imaginara ser um pedestal cilíndrico, estranhamente enfeitado, revelara-se subitamente como sendo uma enorme cobra enrolada. Aquela abóbada inclinada e que ia se estreitando, sob a qual sentava-se o Buda, não passava de um capuz formado pelo achatamento da cabeça de uma cobra gigantesca.

— Meu Deus! Não havia percebido! Como se pode ser tão desatento?

— É esta a primeira vez que vê o Buda representado desta maneira?

— Sim, é a primeira vez. Existe alguma lenda a respeito?

Ela balançou a cabeça afirmativamente, dizendo:

— É uma das minhas preferidas. Com certeza você já ouviu falar a respeito da árvore Bodhi, não é verdade?

— Sim. Sei alguma coisa a respeito.

— Mas essa não foi a única árvore sob a qual Gautama sentou-se por ocasião da sua Iluminação. Depois da árvore Bodhi ele sentou-se durante sete dias sob uma figueira, a árvore do Goatherd. Após isso, mudou-se para a árvore do Muchalinda.

— Quem era Muchalinda?

— Muchalinda era o rei das cobras, que por ser um Deus sabia tudo o que acontecia. Quando Buda se sentou debaixo da sua árvore, o rei Cobra, saindo da sua toca a vários metros de distância, veio se arrastando, a fim de prestar à Sabedoria as homenagens da Natureza. Quando esse fato se deu, desencadeou— se uma grande tempestade vinda do oeste. A divina cobra enrolou— se naquele corpo mais do que divino, abriu o capuz sobre sua cabeça e abrigou o Tathagata da chuva e do vento, durante os sete dias em que esteve em contemplação. Desse modo continua até hoje. Sentado sobre a cobra, coberto pela cobra, estando cônscio simultaneamente da cobra, da Grande Luz e da sua suprema identidade.

— Como divergem os nossos pontos de vista a respeito das cobras! — disse Will.

— Presume-se que esse seu ponto de vista seja o mesmo de Deus. Lembra-se do Gênesis?

— Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a descendência dela e a tua — citou ele.

— Porém a Sabedoria nunca distribui inimizades. Todas essas verdadeiras «brigas de galo» entre o homem e a natureza, entre a natureza e Deus e entre a carne e o espírito são destituídas de sentido! A Sabedoria não faz essas separações insanas!

— Nem tampouco a ciência…

— Com passadas largas, a Sabedoria conduz a ciência a pontos distantes.

— E o totemismo? — perguntou Will. — E os cultos de fertilidade? Eles não faziam quaisquer separações. Representam sabedoria?

— Claro que sim. A sabedoria primitiva. A sabedoria do nível neolítico. Passado algum tempo as pessoas começaram a se sentir constrangidas e os velhos «deuses negros» começaram a não lhes merecer respeito. O cenário mudou. Surgiram os «deuses da luz», os profetas, Pitágoras e Zoroastro, os jainistas e os primitivos budistas. Mais tarde surgiu a «idade da briga de galos cósmica», Ormuz versus Arimã, Jeová versus Satã e Baal. Nirvana se opôs a samsara e a aparência à «realidade ideal» de Platão. Exceto nos cérebros de alguns tankriksistas, mahaianistas, taoístas e cristãos heréticos, essa «briga de galos» se prolonga por quase dois mil anos.

— Que se seguiu a isso?

— Foi então que a biologia moderna começou a dar os primeiros passos.

— Deus ordenou: «Darwin seja feito». E houve Nietzsche, o imperialismo e Adolf Hitler.

— Houve tudo isso, mas também a possibilidade de uma nova espécie de sabedoria para todos — concordou ela. — Darwin elevou o velho totemismo ao nível da biologia. Os cultos de fertilidade reapareceram sob a forma de genética e de Havelock Ellis. Agora, cabe-nos dar outra meia-volta na espiral. O darwinismo era a velha «sabedoria neolítica» construída sobre bases de conceitos científicos. Esta nova «sabedoria consciente», a espécie de sabedoria que foi profeticamente entrevista no zen, no taoísmo e no tantra, é a teoria biológica vivida na prática. E o darwinismo elevado à categoria de compaixão e compreensão interior. Sendo assim, não existe nenhuma razão terrena muito menos celestial pela qual Buda ou qualquer outro não possa contemplar a Grande Luz que se revelou em uma cobra.

— Mesmo que essa cobra pudesse tê-lo matado?

— Mesmo assim.

— Mesmo sendo o mais antigo e o mais universal dos símbolos fálicos?

Shanta riu-se e respondeu:

— «Medite sob a árvore de Muchalinda», é o conselho que damos a todos os pares de namorados. E, no intervalo dessas meditações amorosas, lembre-se daquilo que lhe foi ensinado quando criança: as cobras são suas irmãs, merecendo por isso sua compaixão e seu respeito. Resumindo em uma só palavra, elas são boas, boas, boas.

— São também venenosas, venenosas, venenosas.

— Porém, se você se lembrar de que sua bondade é proporcional a seu veneno e agir de acordo com isso, elas não o usarão.

— Quem disse isso?

— Isto já é um fato constatado. Aqueles que não se amedrontam com elas e aqueles que não se aproximam delas com a idéia fixa de que a melhor cobra é a que está morta, quase nunca são mordidos. Na próxima semana pedirei emprestado a nosso vizinho seu píton domesticado. Por alguns dias darei as refeições de Rama entre os anéis da «velha serpente».

Do lado de fora da casa vieram os sons de risadas e de uma confusão de vozes de crianças falando inglês e palanês. Após um momento, parecendo alta e maternal em relação aos seus encargos, Mary Sarojini entrou no aposento ladeada por um par de gêmeos idênticos de quatro anos, e seguida pelo robusto querubim que estava com ela quando Will abriu os olhos em Pala, pela primeira vez.

— Trouxemos Tara e Arjuna do jardim da infância — explicou Mary Sarojini, enquanto os gêmeos se atiravam sobre a mãe.

Com o bebê num dos braços e com o outro envolvendo os dois meninos, Shanta agradeceu sorrindo:

— Foi muita bondade sua.

Tom Krishna foi quem respondeu:

— A senhora não tem nada que agradecer. — Dando um passo à frente, após um momento de hesitação, tornou a dizer: — Estava pensando… — começou ele, interrompendo-se e olhando suplicante para a irmã. Mary Sarojini balançou a cabeça.

— Que estava pensando? — perguntou Shanta.

— Bem, na verdade, nós estávamos pensando… Quer dizer, poderíamos jantar com vocês?

Shanta olhou de um para outro e disse:

— E melhor que vá perguntar a Vijaya se há bastante comida, pois é ele quem está cozinhando hoje.

— Está bem — disse Tom Krishna sem entusiasmo.

Com passos vagarosos e relutantes atravessou o aposento, dirigindo-se à cozinha. Shanta voltou-se para Mary Sarojini, perguntando:

— Que houve?

— Mamãe já lhe disse pelo menos umas cinqüenta vezes que não gosta que ele traga lagartixas para dentro de casa. Hoje pela manhã ele fez isso de novo e ela ficou muito zangada.

Por isso vocês acharam melhor vir jantar aqui não foi?

— Sim, mas se não lhe convier poderemos tentar a casa dos Rao ou dos Rajajinnadasa.

— Estou certa de que não será incômodo — assegurou-lhe Shanta. — Apenas achei que seria bom para Tom Krishna ter uma pequena conversa com Vijaya.

— A senhora está perfeitamente certa — disse Mary Sarojini gravemente.

Após dizer isso, chamou com ar eficiente:

— Tara, Arjuna, venham comigo ao banheiro para que eu os lave. Eles estão bastante sujos — disse, virando-se para Shanta, enquanto se afastava com os gêmeos.

Will esperou que estivessem fora do alcance de sua voz e disse para Shanta:

— Parece que tive a oportunidade de ver o Clube de Adoção Mútua em pleno funcionamento.

— Felizmente em ação muito moderada. Tom Krishna e Mary Sarojini se dão maravilhosamente com a mãe. Não há nenhum problema pessoal por lá. Apenas o problema do destino, o enorme e terrível problema da morte de Dugald.

— Susila se casará novamente? — indagou Will.

— Espero que sim. Para o bem de todos. Enquanto isso, faz bem às crianças passar algum tempo com um e outro dos pais que escolheram. É bom, especialmente para Tom Krishna. Ele está chegando à idade em que os meninos descobrem sua virilidade. Apesar de ainda chorar como um bebê, passados alguns momentos já está se jactando, se exibindo e trazendo lagartixas para dentro de casa, somente para provar que é duzentos por cento homem. Foi por isso que eu o mandei falar com Vijaya, que representa tudo aquilo que Tom Krishna gosta de imaginar que é: dois metros e setenta de altura, um metro e oitenta de largura, terrivelmente forte e imensamente competente. Quando Vijaya lhe diz como proceder, Tom Krishna escuta; escuta como nunca o faria comigo ou com sua mãe, se disséssemos as mesmas coisas. A vantagem é que Vijaya pode dizer as mesmas coisas que diríamos, pois, além de ser duzentos por cento másculo, sua sensibilidade é quase cinqüenta por cento feminina. Desse modo, o menino está realmente lucrando. Agora, preciso pôr esse homenzinho na cama e aprontar-me para o almoço — concluiu ela, olhando para a criança adormecida em seus braços.

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