Ursula K. Le Guin A praia mais longínqua

1 A ÁRVORE DO PÁTIO

No Pátio da Fonte, o Sol de Março brilhava através das jovens folhas de freixos e ulmeiros, a água erguia-se e voltava a tombar através de sombras e luz clara. Ao redor daquele pátio sem cobertura, erguiam-se quatro altos muros de pedra. Para além deles havia salas e outros pátios, passagens, corredores, torres e, finalmente, as pesadas muralhas exteriores da Casa Grande de Roke, capazes de suportar qualquer assalto bélico ou terremoto ou mesmo o próprio mar, pois não eram construídas apenas com pedra mas também de indisputável magia. Porque Roke é a Ilha dos Sages, onde é ensinada a arte mágica. E a Casa Grande é a escola e o centro da feitiçaria. E o centro da Casa é esse pequeno pátio, bem dentro das muralhas, onde a água da fonte dança e as árvores se erguem sob a chuva, o sol ou a luz das estrelas.

A árvore mais próxima da fonte, uma vetusta sorveira brava, fizera estalar e erguer o pavimento de mármore com as suas raízes. Veios de um musgo verde-claro enchiam as fendas, irradiando do trecho relvado que rodeava o tanque. Sentado sobre a ligeira elevação de mármore e musgo, um jovem seguia com o olhar a queda do jacto central da fonte. Era já quase um homem, mas ainda um rapaz. Era esguio, vestia ricamente e o seu rosto dir-se-ia moldado em bronze dourado, de tão finamente modelado e tão imóvel.

Por detrás dele, a uns cinco metros talvez, sob as árvores no outro extremo do pequeno relvado central, estava, ou parecia estar, um homem. Era difícil ter a certeza naquela alternância vacilante entre sombra e luz morna. Mas claro que estava, um homem vestido de branco, de pé e imóvel. Tal como o rapaz observava a fonte, assim o homem observava o rapaz. Para além do sussurrar das folhas e do correr da água no seu incessante cantar, não havia som nem movimento algum.

O homem avançou. Um sopro de vento agitou a sorveira e fez mover as suas folhas acabadas de abrir. O rapaz pôs-se em pé de um salto, ligeiro e sobressaltado. Voltou-se para o homem e fez-lhe uma reverência, dizendo:

— Meu Senhor Arquimago.

O homem parou em frente dele, uma figura baixa, direita e vigorosa, envergando um manto com capuz, de lã branca. Acima das dobras do capuz, deitado para trás, o seu rosto era de um tom escuro avermelhado, de nariz adunco como bico de falcão e com uma face marcada de velhas cicatrizes. Os olhos eram brilhantes e intensos. Porém, quando falou, a sua voz era suave.

— É um sítio muito agradável para se estar, o Pátio da Fonte — disse. E logo, prevendo as desculpas do rapaz, acrescentou: — A tua viagem foi longa e não descansaste. Torna a sentar-te.

Ajoelhou no rebordo branco do tanque e estendeu a mão para o anel de gotas brilhantes que caíam da bacia mais alta da fonte, deixando que a água lhe escorresse entre os dedos. O rapaz voltou a sentar-se sobre as lajes erguidas e, durante um minuto, nenhum deles falou. Por fim, o Arquimago pronunciou:

— Tu és o filho do Príncipe de Enlad e das Enlades, herdeiro do Principado de Morred. Não há patrimônio mais antigo em toda Terramar, nem mais belo. Vi os pomares de Enlad na Primavera e os telhados dourados de Berila… Como te chamam?

— Chamam-me Arren.

— Essa deve ser uma palavra no dialeto da tua terra. E o que significa na nossa fala comum?

— Espada — respondeu o rapaz.

O Arquimago assentiu com um aceno de cabeça. De novo se fez silêncio e depois, sem atrevimento, mas também sem timidez, o rapaz comentou:

— Julgava que o Arquimago soubesse todas as línguas. — O homem abanou a cabeça, os olhos postos na fonte. — E todos os nomes…

— Todos os nomes? Só Segoy, que pronunciou a Primeira Palavra, e assim ergueu as ilhas das profundezas do mar, conhecia todos os nomes. É claro que — e o olhar brilhante e intenso pousou no rosto de Arren —, se eu precisasse de conhecer o teu nome verdadeiro, conhecê-lo-ia. Mas não preciso. Chamar-te-ei Arren e eu sou Gavião. Mas diz-me, como foi a tua viagem até aqui?

— Demasiado longa.

— Tiveste ventos contrários?

— Os ventos sopraram favoravelmente, mas as novas que te trago nada têm de favorável, Senhor Gavião.

— Pois conta-as, então — disse gravemente o Arquimago, se bem que, ao mesmo tempo, parecesse estar apenas a fazer a vontade a uma criança impaciente. E, enquanto Arren falava, voltou a olhar para a límpida cortina de gotas de água que caía da bacia superior para a inferior, não como se não escutasse, antes como se ouvisse algo mais que as palavras do rapaz.

— Como sabes, meu Senhor, o príncipe meu pai é versado em feitiçaria, sendo como é da estirpe de Morred e tendo passado um ano aqui, em Roke, na sua juventude. Tem pois algum poder e saber, embora só raramente faça uso das suas artes, dado que está mais voltado para a administração e ordenamento do seu reino, o governo das cidades e os assuntos de comércio. As frotas da nossa ilha navegam para ocidente, chegando mesmo à Estrema Oeste, de onde trazem safiras, peles de boi e estanho. Ora, no princípio deste Inverno, um comandante voltou à nossa cidade de Berila com uma história que acabou por chegar aos ouvidos do meu pai, de maneira que mandou vir o homem para que a contasse pessoalmente.

O rapaz falava depressa e com segurança. Via-se que fora educado por gente cortês e civilizada, e não se lhe notava o constrangimento habitual nos jovens.

— O comandante — prosseguiu ele —, contou que na ilha de Narveduen, que fica a umas quinhentas milhas a ocidente de nós segundo as rotas dos navios, deixara de haver magia. Ali, contou ele, os encantamentos não tinham poder e as palavras de feitiçaria estavam esquecidas. O meu pai perguntou-lhe se seria por todos os feiticeiros e bruxas terem deixado a ilha, ao que ele respondeu que não, que havia por lá alguns que tinham sido feiticeiros, mas já não faziam encantamentos, nem que fossem coisa tão mínima como um esconjuro para remendar uma chaleira ou encontrar uma agulha perdida. E o meu pai perguntou se as pessoas em Narveduen não estavam consternadas e, mais uma vez, o comandante respondeu que não, e que pareciam indiferentes ao fato. E a verdade, acrescentou ainda, é que a doença alastra-se entre eles, e a colheita de Outono foi escassa, e mesmo assim continuavam a não se inquietar. Disse — eu estava lá quando ele falou com o meu pai — disse assim: «Eram como gente doente, como um homem a quem tivessem anunciado que iria morrer dentro de um ano e que dissesse a si próprio que não era verdade, que iria viver para sempre. Andam para ali» disse ele, «sem verem o mundo.» Quando outros comerciantes regressaram, também eles repetiram a história, segundo a qual Narveduen se tornara uma terra pobre e perdera a arte da feitiçaria. Mas tudo isto não passava de meras histórias da Estrema, que são sempre estranhas, e só o meu pai lhes prestou atenção. Depois, no Ano Novo, pelo Festival dos Cordeiros que realizamos em Enlad, quando as mulheres dos pastores vêm à cidade, trazendo os primogênitos dos rebanhos, o meu pai encarregou o feiticeiro Rut de dizer os encantamentos de desenvolver sobre os cordeiros. Mas Rut regressou ao nosso salão muito angustiado, deitou por terra o bordão e disse: «Senhor, não consigo dizer os encantamentos.» O meu pai interrogou-o, mas ele não conseguia dizer senão: «Esqueci as palavras e como tecê-las.» De modo que o meu pai foi até à praça do mercado, disse ele próprio os encantamentos e o festival pôde ser completado. Mas vi-o voltar ao palácio nessa tarde, com um aspecto sombrio e fatigado, e confiou-me: «Disse as palavras, mas não sei se tinham algum significado.» E a verdade é que há problemas com os rebanhos esta Primavera, com as ovelhas a morrer de parto, e muitos cordeiros natimortos e alguns deles são… disformes.

Aqui, a voz fluente e animada do rapaz baixou subitamente de tom. E, ao pronunciar a palavra, fez um esgar e engoliu em seco.

— Eu vi alguns deles — acrescentou, fazendo uma pausa. Depois prosseguiu: — O meu pai acredita que este caso, e a história de Narveduen, mostram que há coisa má em ação na nossa região do mundo. E desejaria obter o conselho dos Sages.

— O fato de te ter enviado prova que esse desejo é urgente — disse o Arquimago. — És o seu único filho e a viagem de Enlad a Roke não é curta. Tens algo mais a dizer?

— Apenas histórias das velhotas que vivem nas colinas.

— E o que contam as velhotas das colinas?

— Que todas as previsões que as bruxas fazem, ao lerem a sina no fumo e nos charcos de água, lhes falam de desastres, e que os filtros de amor falham. Mas isso é gente sem verdadeiro saber em feitiçaria.

— Ler a sina e fazer filtros de amor são coisas de pouca monta, mas vale a pena ouvir o que dizem as velhotas. Bem, podes ter a certeza de que a tua mensagem será discutida pelos Mestres de Roke. Mas, Arren, eu não sei que conselho poderão dar a teu pai. Porque Enlad não é o primeiro território de onde nos chegam tais novas.

A viagem de Arren desde o Norte, passando para além da grande Ilha de Havnor e cruzando o Mar Interior até Roke fora a primeira que fizera. Só naquelas últimas e poucas semanas lhe fora dado ver terras que não pertencessem à sua própria pátria, o que lhe dera uma consciência da distância e da diversidade, forçando-o a reconhecer que havia um vasto mundo para lá das belas colinas de Enlad e muita gente nesse mesmo mundo. Ainda não se habituara a pensar em termos de tal vastidão, pelo que levou algum tempo a compreender. Mas então perguntou: Mais, onde? algo desanimado, pois tivera a esperança de regressar a Enlad com uma cura rápida para aquele mal.

— Primeiro, na Estrema Sul — informou o Arquimago. — Mais recentemente, também na parte sul do Arquipélago, em Uothort. Os homens dizem que já se não pratica magia em Uothort. É difícil ter-se a certeza. Há muito que essa terra é rebelde e dada à pirataria. Diz-se que dar ouvidos a um comerciante meridional é dá-los a um mentiroso. Porém a história que contam é sempre a mesma. Que, lá, secaram as fontes da magia.

— Mas aqui, em Roke…

— Aqui, em Roke, ainda não sentimos nada disso. Aqui estamos defendidos contra as tempestades, a mudança e todo o tipo de má sorte. Porventura, demasiado bem defendidos. Mas diz-me, Príncipe, que farás agora?

— Voltarei a Enlad quando puder levar a meu pai alguma indicação clara sobre a natureza deste mal e como remediá-lo.

Uma vez mais o Arquimago o olhou e desta feita, apesar de toda a sua educação, Arren baixou a vista. Fê-lo sem saber porquê, já que não havia vestígios de inimizade naqueles olhos escuros que o fitavam. Antes se mostravam imparciais, calmos e compassivos.

Em Enlad, todos respeitavam o seu pai e ele era o filho de seu pai. Nenhum homem o olhara alguma vez assim, não como Arren, Príncipe de Enlad e filho do Príncipe Soberano, mas apenas como Arren. Não lhe agradava pensar que temia o olhar do Arquimago, mas não conseguia sustentá-lo. Era como se alargasse o mundo ainda mais ao seu redor e agora não só Enlad ficara reduzida a uma coisa insignificante, como também ele próprio, de tal modo que, aos olhos do Arquimago, era apenas uma pequena figura, muito pequena, num vasto cenário de terras rodeadas pelo mar e sobre as quais impendia uma escuridão.

Quedou-se sentado, apanhando pedacinhos do musgo que crescia nas fendas das lajes de mármore, e por fim disse, ouvindo a própria voz, que só nos últimos dois anos engrossara, soar aguda e rouca:

— E farei o que me ordenares.

— O teu dever é para com o teu pai e não para comigo — disse o Arquimago.

Continuava a fitar Arren e o rapaz ergueu então os olhos para ele. Ao fazer o seu ato de submissão esquecera-se de si próprio e agora via o Arquimago. Via o maior feiticeiro de toda Terramar, o homem que tapara o Poço Negro de Fundaur e arrancara o Anel de Erreth-Akbe dos Túmulos de Atuan, que construíra o dique de Nepp com os seus alicerces nas profundezas do oceano, o navegante que conhecia os mares desde Astowell até Selidor, o único Senhor de Dragões ainda vivo. E ali estava ajoelhado junto a uma fonte, um homem baixo e que já não era jovem, um homem de voz calma e olhos tão profundos como o entardecer.

Arren pôs-se de pé para logo ajoelhar, precipitada e formalmente, sobre ambos os joelhos.

— Meu Senhor — pronunciou, gaguejante —, permite que te sirva.

A sua segurança desaparecera, tinha o rosto corado e a voz tremia-lhe na garganta.

Trazia à cinta uma espada, numa bainha de couro novo e muito trabalhada com enfeites de vermelho e ouro. A própria espada, porém, era muito simples, com um punho em cruz, de bronze prateado, muito gasto. Sempre com a mesma precipitação, Arren desembainhou-a e estendeu o punho para o Arquimago, como o faz um vassalo para o seu suserano.

Mas o Arquimago não estendeu a mão para tocar o punho da espada. Limitou-se a olhá-lo e depois para Arren, e disse:

— Essa espada é tua, não minha. E tu não és vassalo de homem algum.

— Mas o meu pai disse-me que eu devia permanecer em Roke até saber que mal é este e talvez adquirir alguma mestria… não tenho talento, nem penso ter qualquer poder, mas houve magos entre os meus antepassados… se de algum modo eu pudesse aprender a ser-te útil…

— Antes de serem magos — retorquiu o Arquimago —, os teus antepassados foram reis.

Ergueu-se e, aproximando-se de Arren com passadas firmes e silenciosas, tomou a mão do rapaz e fê-lo levantar-se.

— Agradeço-te a oferta de me servires — disse — e embora a não aceite agora, talvez o venha a fazer, quando tivermos obtido conselho sobre estes assuntos. A oferta de um espírito generoso não deve ser recusada levianamente. Nem deve ser descuidadamente posta de lado a espada do filho de Morred!… E agora vai. O moço que aqui te trouxe providenciará para que comas e te banhes e descanses. Vai lá.

E empurrou Arren levemente entre as omoplatas com uma familiaridade que ninguém antes tomara com ele e que o jovem príncipe teria levado a mal vinda de qualquer outra pessoa. Porém, o toque do Arquimago foi para ele como um frêmito de exultação. Porque Arren fora tomado de paixão.

Ele fora um rapaz ativo, adorando jogos, retirando orgulho e prazer dos talentos do corpo e do espírito, dotado para os seus deveres de cerimônia e governo, que não eram leves nem simples. No entanto, nunca se entregara totalmente a coisa alguma. Tudo lhe chegara facilmente às mãos e ele tudo fizera facilmente. Fora tudo sempre como um jogo e também como jogo encarara o afeto. Mas, agora, o que nele havia de mais profundo fora desperto, não por um jogo ou sonho, mas pela honra, o perigo, a sabedoria, por um rosto marcado de cicatrizes, uma voz calma e uma mão escura que, sem cuidar do poder que empunhava, segurava o bordão de teixo que ostentava perto da empunhadura, em prata embutida na madeira negra, a Runa Perdida dos Reis.

E assim é dado de uma só vez o primeiro passo para fora da infância, sem olhar em frente ou para trás, sem cautelas e sem a mínima reserva.

Esquecendo as despedidas corteses, Arren apressou o passo em direção à porta, desajeitado, radiante, obediente. E Gued, o Arquimago, quedou-se a vê-lo afastar-se.

Gued ficou ainda por algum tempo junto à fonte, debaixo da sorveira, e depois ergueu o rosto para o céu lavado pelo Sol. «Um tão amável mensageiro, para tão más novas», disse a meia voz, como se falasse com a fonte. Esta não lhe deu atenção, continuando antes a falar na sua própria língua de prata e, por algum tempo mais, ele a escutou. Depois, dirigindo-se para outra entrada que Arren não vira e que na verdade poucos olhos teriam descortinado por muito perto que dela estivessem, chamou:

— Mestre Porteiro.

Logo apareceu um homem pequeno e de idade incerta. Jovem não era, pelo que forçoso seria chamar-lhe velho, mas a palavra não lhe assentava bem. Tinha um rosto seco e da cor do marfim, com um sorriso agradável que lhe cavava longos sulcos curvos nas faces.

— O que se passa, Gued? — perguntou.

Isto porque estavam sós e ele era uma das sete pessoas no mundo que sabiam o nome do Arquimago. As outras eram: o Mestre dos Nomes de Roke; Óguion, o Silencioso, feiticeiro de Re Albi que, há muito tempo, na Montanha de Gont, dera a Gued esse nome; a Dama Branca de Gont, Tenar do Anel; um feiticeiro de aldeia, em Iffish, chamado Vetch; também em Iffish, a mulher de um carpinteiro, mãe de três raparigas, ignorante de tudo o que fosse feitiçaria mas cheia de sabedoria em outras coisas, e a quem chamavam Mil-em-Rama; e finalmente, do outro lado de Terramar, no extremo mais afastado a ocidente, dois dragões, Orm Embar e Keilessine.

— Temos de nos reunir esta noite — disse o Arquimago. — Vou falar com o Configurador. E contatarei com Kurremkarmerruk, a ver se ele põe de parte as suas listas, deixa os alunos descansados por uma noite e vem ter conosco em espírito, se não puder ser em carne e osso. Encarregas-te dos outros?

— Claro — respondeu o Porteiro com um sorriso e desapareceu. E depois também o Arquimago desaparecera e só ficou a fonte a falar consigo própria, toda serenidade e sem cessar, à luz do Sol do princípio de Primavera.

Algures para ocidente da Casa Grande de Roke, e freqüentes vezes também para sul dela, é onde geralmente se avista o Bosque Imanente. Não tem lugar nos mapas nem há vereda que o alcance, a não ser para aqueles que conhecem o caminho até ele. Mas mesmo os noviços, as gentes da vila e os camponeses o podem ver, sempre a uma certa distância, um bosque de árvores altas cujas folhas, mesmo na Primavera, apresentam uma sugestão de ouro no verde das suas folhas. E consideram — os noviços, os vilãos, os fazendeiros — que o Bosque se desloca para um e outro lado da mais mistificadora maneira. Mas aí enganam-se, pois o Bosque não se move. As suas raízes são as raízes do ser. É tudo o resto que se move.

Vindo da Casa Grande, Gued caminhou através dos campos. Tirou o seu manto branco, pois o Sol estava no zênite. Um camponês que lavrava a encosta castanha de uma colina ergueu o braço numa saudação e Gued correspondeu com gesto idêntico. No ar, ergueram vôo pequenos pássaros, cantando. Nos alqueives e ao lado das estradas a erva-fagulha estava a acabar de florir. Lá no alto, um falcão descreveu no céu um vasto círculo. Gued relanceou o olhar para cima e voltou a erguer o braço. Com as penas a sussurrar no vento, a ave caiu do alto, direta ao pulso que se lhe oferecia, rodeando-o com as suas garras amarelas. Não era nenhum simples gavião, mas um grande falcão Ender de Roke, um falcão pesqueiro com as asas listadas de branco e castanho. Olhou de lado o Arquimago, com um olho redondo, de um dourado claro, depois fez estalar o bico adunco e voltou a olhá-lo, mas agora de frente, com ambos os seus olhos redondos e de um dourado claro.

— Destemido — disse-lhe o Arquimago na língua da Criação. O grande falcão bateu as asas e firmou melhor as garras, sempre a fitá-lo.

— Vai pois, irmão, irmão destemido.

O fazendeiro, lá longe na encosta da colina, parara a observar a cena. Certa vez, no Outono anterior, vira o Arquimago acolher uma ave selvagem no seu pulso e logo, no momento seguinte, não vira homem algum, mas sim dois falcões a subirem no vento.

Porém, desta vez, separaram-se enquanto o lavrador os olhava e a ave subiu alto nos ares ao passo que o homem prosseguia o seu caminho pelos campos enlameados.

Gued chegou assim à vereda que conduzia ao Bosque Imanente, uma vereda que seguia sempre a direito, independentemente do modo como o tempo e o mundo se contorciam ao seu redor, e, tomando por ela, em breve se encontrava sob a sombra das árvores.

Os troncos de algumas delas eram enormes. Ao vê-los era finalmente possível acreditar que o Bosque nunca se movia. Eram como torres de tempos imemoriais, cinzentas com o passar dos anos, e as suas raízes eram como as raízes das montanhas. E no entanto destas, as mais antigas, algumas havia que poucas folhas ostentavam, que tinham ramos mortos. Não eram imortais. Entre as gigantes, cresciam árvores novas, altas e vigorosas, com belas copas de rica folhagem, e ainda outras que eram como plantas de viveiro, frágeis varinhas folhudas, pouco mais altas que uma garotinha.

O solo sob as árvores era macio e rico, com as folhas apodrecidas de todos os anos. Ali cresciam fetos e pequenas plantas próprias das zonas arborizadas, mas não havia senão uma única espécie de árvore, espécie que não tinha nome na língua Hardic de Terramar. Sob os seus ramos o ar cheirava a terra e a fresco, deixando um gosto na boca como o da água pura de nascente.

Numa clareira feita anos antes pela queda de uma árvore enorme, Gued encontrou o Mestre das Configurações, que vivia no interior do Bosque e só raramente ou nunca o abandonava. O seu cabelo era de um amarelo de manteiga, pois não era arquipelaguiano. Desde que o Anel de Erreth-Akbe fora restaurado, os bárbaros de Kargad tinham cessado as suas pilhagens e estabelecido alguns tratados de comércio e paz com as Terras Interiores. Não eram gente amigável e mantinham-se à parte. Mas de vez em quando lá sucedia que um jovem guerreiro ou o filho de um mercador vinha para ocidente sozinho, atraído pelo amor da aventura ou ansiando por aprender feitiçaria. Um desses fora o Mestre das Configurações que, dez anos antes, ainda um jovem selvagem de Karego-At, de espada à cinta e emplumado de vermelho, chegara a Gont numa manhã chuvosa e dissera ao Porteiro num Hardic imperioso e reduzido, «Vim aprender!». E agora ali estava, na luz de um ouro esverdeado sob as árvores, um homem alto e claro de compleição, com longos cabelos louros e estranhos olhos verdes, o Mestre das Configurações de Terramar.

Era bem possível que também ele soubesse o nome de Gued mas, a ser esse o caso, nunca o pronunciou. Ambos se cumprimentaram em silêncio.

— O que estás aí a olhar? — perguntou o Arquimago. E o outro respondeu:

— Uma aranha.

Entre duas longas folhas da erva que crescia na clareira, uma aranha fizera a sua teia, um círculo delicadamente suspenso. Os fios prateados refletiam a luz do Sol. No centro esperava a aranha, uma coisa de um negro acinzentado, pouco maior que a pupila de um olho.

— Também ela é uma configuradora — disse Gued, analisando a artística teia.

— O que é o mal? — perguntou o homem mais novo.

A teia redonda, com o seu centro negro, parecia observá-los a ambos.

— Uma teia que nós, homens, tecemos — respondeu Gued.

Naquele bosque não havia canto de aves. Estava silencioso e quente à luz do meio-dia. Ao redor deles erguiam-se as árvores e as sombras.

— Veio notícia de Narveduen e de Enlad. A mesma.

— Sul e Sudoeste. Norte e Noroeste — disse o Configurador, sem deixar de fitar a teia redonda.

— Viremos aqui esta noite. Este é o melhor lugar para o conselho.

— Não tenho conselho a dar.

O Configurador olhava agora para Gued e os seus olhos esverdeados eram frios.

— Tenho medo — acrescentou. — Há um temor. Há temor nas raízes.

— Verdade — assentiu Gued. — Temos de voltar os olhos para as nascentes profundas, penso eu. Demasiado tempo nos deleitamos com a luz do Sol, gozando-o nessa paz que o Anel, ao ser restaurado, nos trouxe, levando a cabo pequenas coisas, pescando em águas baixas. Mas esta noite temos de interrogar as profundezas.

E assim deixou o Configurador sozinho, fitando ainda a aranha na erva ensoalhada.

Na orla do Bosque, onde as folhas das árvores se estendiam para fora, sobre um solo comum, sentou-se com as costas apoiadas a uma poderosa raiz, o bordão deitado sobre os joelhos. Fechou os olhos como para repousar e lançou um envio do seu espírito por sobre as colinas e campos de Roke, para norte, até ao cabo avassalado pelo mar onde se ergue a Torre Isolada.

— Kurremkarmerruk — pronunciou ele em espírito. E o Mestre dos Nomes ergueu os olhos do espesso volume com nomes de raízes e ervas, de folhas e sementes e pétalas que estava a ler aos seus pupilos, dizendo: — Estou aqui, meu Senhor.

Depois aquele velho grande e magro, de cabeleira branca sob o seu capuz escuro, pôs-se a escutar. E os estudantes, sentados às suas escrivaninhas na sala da torre, ergueram a vista para ele e logo se entreolharam.

— Irei — disse Kurremkarmerruk e, inclinando de novo a cabeça para o livro, prosseguiu: — Ora a pétala da flor do alho-mágico tem um nome, que é iebera, e o mesmo quanto à sépala, que é partonat. E caule e folha e raiz têm cada um seu nome…

Mas sob a sua árvore o Arquimago Gued, que sabia todos os nomes do alho-mágico, recolheu o seu envio e, estendendo mais confortavelmente as pernas e mantendo os olhos fechados, acabou por se deixar adormecer sob a luz do Sol entrecortada pelas sombras das folhas.

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