3 A CIDADE DE HORT

No escuro que precede a alvorada, Arren envergou as roupas que lhe tinham dado, vestuário de marinheiro, usado mas limpo, e apressou-se a atravessar as salas silenciosas da Casa Grande até à porta oriental, talhada em corno e em dente de dragão. Ali, o Mestre Porteiro deixou-o sair e indicou-lhe o caminho, com um leve sorriso. O rapaz seguiu pela rua superior da vila e desceu depois um caminho que conduzia ao alpendre onde se guardavam os barcos da Escola, a sul das docas de Thwil, seguindo a costa da baía. Mal conseguia distinguir o caminho. Árvores, telhados, colinas, tudo se erguia como massas obscuras no meio da obscuridade. O ar escuro estava totalmente parado e muito frio. Tudo permanecia quieto, tudo se mantinha remoto e obscuro. Só para oriente, por sobre o negrume do mar, se distinguia uma fraca linha clara. O horizonte, momentaneamente a inclinar-se em direção ao Sol invisível.

Chegou aos degraus que conduziam ao alpendre. Não estava ali ninguém, nada se movia. Embora suficientemente aquecido dentro do seu volumoso casaco de marinheiro e gorro de lã, teve um calafrio, enquanto aguardava, no escuro, de pé sobre os degraus de pedra.

Os alpendres dos barcos erguiam-se negros acima do negro da água. E de repente, de lá de dentro, veio um som mortiço e cavo, uma pancada ecoante que se repetiu por três vezes. Arren sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe. Uma sombra comprida deslizou silenciosamente para a água. Era um barco que se aproximou suavemente do molhe. Arren correu pelos degraus abaixo até ao molhe e saltou para dentro do barco.

— Põe-te ao leme — disse o Arquimago, uma figura flexível, quase uma sombra apenas, à proa. — Mantém o barco firme enquanto eu iço a vela.

Estavam já em plena água, com a vela a abrir-se no mastro como uma asa, sob a luz nascente.

— Este vento de oeste que nos vai poupar de remar para fora da baía é um presente de despedida do Mestre Chave-do-Vento, tenho a certeza. Cuidado com o barco, rapaz, olha que ele é ligeiro a obedecer! Ora, pois. Um vento de oeste e uma manhã de céu limpo no primeiro dia da Primavera.

— Este barco é o Vê-longe? — perguntou Arren que ouvira falar do barco do Arquimago em canções e histórias.

— É, sim — respondeu o outro, ocupado com os cabos. O barco encabritou-se e virou de bordo com o avivar do vento. Cerrando os dentes, Arren esforçou-se por o manter na rota.

— É verdade que o barco é ligeiro a obedecer, mas parece-me um pouco voluntarioso, Senhor.

O Arquimago riu-se.

— Deixa-o ir como lhe apetece. Também ele é sábio. Mas, escuta, Arren — e fez uma pausa, ajoelhando-se no banco para olhar o rapaz de frente. — Agora, nem eu sou Senhor, nem tu és Príncipe. Eu sou um mercador chamado Falcão e tu és o meu sobrinho, a quem ando a ensinar as coisas do mar, chamado Arren. E vimos de Enlad. De que povoação? Tem de ser uma grande, não se dê o caso de depararmos com um citadino.

— Temíar, na costa sul? Fazem comércio com todas as Estremas.

O Arquimago aprovou com um aceno de cabeça.

— Mas — disse Arren cautelosamente —, tu não tens bem o sotaque de Enlad.

— Bem sei. Tenho o sotaque de Gont — disse o companheiro e riu-se, erguendo os olhos para leste, onde crescia a claridade do dia. — Mas acho que posso tomar de empréstimo o que preciso de ti. Viemos, pois de Temíar no nosso barco, o Golfinho, e eu não sou Senhor, nem mago, nem Gavião, mas… então como é que me chamam?

— Falcão, meu Senhor.

E logo Arren mordeu o lábio.

— Ensaia, sobrinho — disse o Arquimago. — É preciso ensaiar. Toda a vida nunca foste outra coisa senão um príncipe. Ao passo que eu fui muitas coisas e a última de todas, talvez a menor de todas, Arquimago… Vamos para sul em busca de pedra emmel, esse material azul de que se fazem talismãs. Sei que o apreciam em Enlad. Com eles fazem amuletos contra as dores reumáticas, entorses, torcicolos e deslizes de língua.

Passado um instante, Arren riu-se e, ao levantar a cabeça, o barco foi erguido por uma grande vaga e ele viu perante si o rebordo do Sol sobre a orla do oceano, um súbito clarão dourado.

De pé, o Gavião apoiava-se ao mastro, pois o pequeno barco saltava sobre o mar picado, e, encarando o nascer do Sol do equinócio da Primavera, cantou. Arren não conhecia a Antiga Fala, a língua dos feiticeiros e dos dragões, mas escutou louvor e regozijo nas palavras, além de que havia nelas um forte ritmo como de marcha, semelhante ao subir e descer das marés ou ao equilíbrio de dia e noite, seguindo-se um ao outro para sempre. Gaivotas gritavam no vento, as praias da Baía de Thwill deslizaram para trás deles à direita e à esquerda, e finalmente entraram nas longas vagas, plenas de luz, do Mar Interior.

A viagem não é muito longa entre Roke e a Cidade de Hort, mas passaram três noites no mar. O Arquimago tivera grande urgência em partir mas, uma vez que o fizera, mostrou-se mais que paciente. Os ventos passaram a contrários logo que se afastaram do tempo mágico de Roke, porém ele não invocou um vento de magia para a vela, como o teria feito qualquer fazedor de tempo. Em vez disso, gastou horas a ensinar Arren como governar o barco com vento forte de proa, no mar povoado de rochedos a leste de Issel. Na segunda noite choveu, a chuva agreste e fria de Março, mas ele não teceu esconjuro algum para a manter afastada. Na noite seguinte, encontravam-se eles fora da entrada para o Porto de Hort, numa escuridão calma, fria e enevoada, Arren pensou em tudo isso e reparou que, no breve tempo passado desde que o conhecera, o Arquimago não fizera magia absolutamente nenhuma.

Mas era um marinheiro incomparável. Arren aprendera mais ao navegar com ele durante três dias que nos dez anos que passara a remar e a entrar em regatas na Baía de Berila. E mago e marinheiro não estão assim tão distantes um do outro. Ambos trabalham com os poderes do céu e do mar, vergam grandes ventos ao uso nas suas mãos, reúnem o que estava afastado. Arquimago ou Falcão, mercador dos mares, eram quase a mesma coisa.

Era um homem bastante calado, se bem que de perfeito bom humor. Não havia falta de jeito de Arren que o irritasse. Era um bom companheiro. Não poderia haver melhor camarada de bordo, pensava Arren. Mas era capaz de se enfronhar nos seus próprios pensamentos e permanecer em silêncio durante horas a fio. Depois, quando voltava a falar, havia aspereza na sua voz e o seu olhar trespassava Arren. Isso não enfraquecia o afeto que o rapaz tinha por ele, mas talvez reduzisse o quanto dele gostava. Era um pouco assustador. Talvez o Gavião tivesse sentido isso, porque, nessa noite de nevoeiro ao largo das praias de Uothort, começou a falar a Arren, com bastantes interrupções, acerca de si próprio.

— Não me agrada ir encontrar-me outra vez entre as pessoas, amanhã — começou. — Tenho andado a fingir que sou livre… Que não há nada de errado no mundo. Que não sou Arquimago, nem sequer um mágico. Que sou Falcão de Temíar, sem responsabilidades nem privilégios, não devendo nada a ninguém…

Fez uma pausa e, daí a pouco, continuou:

— Tenta escolher cuidadosamente, Arren, quando as grandes escolhas tiverem de ser feitas. Quando eu era novo, tive de escolher entre a vida de ser e a vida de fazer. E lancei-me à segunda como a truta se lança à mosca. Mas cada coisa que fazes, cada ato teu, liga-te a ele e às suas conseqüências, obriga-te a agir de novo, e de novo ainda. E então é muito raro que alcances um espaço, ou um tempo como este, entre um ato e outro, quando podes parar e simplesmente ser. Ou tentar saber, ao fim e ao cabo, quem és.

Mas como podia um tal homem, cogitou Arren, estar em dúvida em relação a quem ou o que era? Sempre acreditara que tais dúvidas estavam reservadas aos jovens, que não tinham feito nada ainda.

O barco balançava na vasta e fria escuridão.

— É por isso que gosto do mar — soou a voz do Gavião no meio daquele negrume.

Arren compreendia-o, mas os seus próprios pensamentos corriam para diante, como o tinham feito durante todos aqueles três dias e noites, para a sua demanda, a finalidade do seu navegar. E como o companheiro estava disposto finalmente a falar, perguntou-lhe:

— Achas que iremos encontrar na Cidade de Hort o que procuramos?

O Gavião sacudiu a cabeça, talvez significando que não, ou talvez que não sabia.

— Poderá tratar-se de uma espécie de pestilência, uma praga, que vai indo de terra em terra, que faz mirrar as colheitas, os rebanhos e o espírito dos homens?

— Não. Uma pestilência é uma deslocação da grande Harmonia, do próprio Equilíbrio. Isto é diferente. Há nele o fedor do mal. Nós podemos sofrer quando a harmonia das coisas se restaura a si própria, mas não perdemos a esperança, nem renunciamos à arte, nem esquecemos as palavras da Criação. Nada há na Natureza que não seja natural. Isto não é uma restauração da harmonia, mas a corrupção dela. Só uma criatura é capaz de fazer tal.

— Um homem? — sugeriu Arren.

— Nós, homens.

— Mas como?

— Por um desmesurado desejo de vida.

— De vida? Mas então é errado querer viver?

— Não. Mas quando ansiamos por alcançar poder sobre a vida, riqueza infinita, segurança inatacável, imortalidade, então o desejo torna-se avidez. E se o saber se alia a essa avidez, então nasce o mal. E o equilíbrio do mundo vacila, a ruína começa a pesar fortemente na balança.

Arren quedou-se a cismar sobre isto durante algum tempo e depois disse:

— Achas então que é um homem o que buscamos?

— Um homem, sim, e mago. É isso que penso.

— Mas eu julgava, a partir do que o meu pai e os professores me ensinaram, que as grandes artes de feitiçaria estavam dependentes da Harmonia, do Equilíbrio das coisas, e não podiam ser usadas para o mal.

— Essa — replicou o Gavião com uma certa ironia — é uma questão a debater. Infindáveis são as discussões dos magos… Não há ilha em Terramar onde não se saiba de uma bruxa que lança sortilégios impuros, mágicos que usam a sua arte para alcançar riquezas. Mas há mais. O Senhor do Fogo, que tentou desfazer a escuridão e parar o Sol ao meio-dia, era um grande mago. Até Erreth-Akbe teve dificuldade em vencê-lo. O Inimigo de Morred era semelhante a esse. Onde chegava, cidades inteiras dobravam o joelho perante ele, exércitos por ele combatiam.

O encantamento que teceu contra Morred era tão poderosa que, mesmo quando ele foi abatido, não houve processo de a fazer parar e a Ilha de Soléa foi devastada pelo mar e todos que estavam nela pereceram. Esses foram homens em quem a grande força e o grande poder serviram o desejo do mal e dele se alimentaram. E não sabemos se a feitiçaria que serve uma melhor finalidade demonstrará ser a mais forte. Temos esperança.

Há uma certa tristeza ao encontrar esperança onde esperávamos certeza. Arren deu por si a desejar ver-se longe de tão gélidos discursos. Passados uns instantes, disse:

— Estou a ver porque dizes que só os homens fazem o mal, julgo eu. Até os tubarões são inocentes, pois matam porque têm de matar.

— E é por isso que nada nos pode resistir. Só há uma coisa no mundo que pode resistir a um homem de ruim coração. É outro homem. Na nossa vergonha está a nossa glória. Porque só o nosso espírito, que tem capacidade para o mal, tem também a de o aniquilar.

— Mas, e os dragões? — interpôs Arren. — Não fazem grande mal? Serão eles inocentes?

— Ah, os dragões! Os dragões são avarentos, insaciáveis, traiçoeiros. Não têm piedade nem remorso. Mas haverá mal neles? Quem sou eu para julgar os atos dos dragões?… São mais sábios que os homens. Passa-se com eles o mesmo que com os sonhos, Arren. Nós, homens, sonhamos sonhos, praticamos magia, fazemos bem, fazemos mal. Os dragões não sonham. Eles são sonhos. Não praticam magia porque ela é a sua essência, o seu ser. Os dragões não fazem, são.

— Em Serilune — disse Arren —, está a pele de Bar Oth, morto por Keor, Príncipe de Enlad, há já trezentos anos. Desde esse dia, nenhum dragão voltou a aparecer em Enlad. Eu vi a pele de Bar Oth. É pesada como ferro e tão grande que se a estendessem, diz-se, cobriria toda a praça do mercado de Serilune. Os dentes são tão compridos como o meu antebraço. E no entanto dizem que Bar Oth era um dragão jovem, ainda não completamente desenvolvido.

— Há em ti um desejo — interpôs o Gavião — de ver dragões, não é assim?

— É.

— O seu sangue é frio e venenoso. Não deves olhá-los nos olhos. São mais antigos que o homem… — Ficou em silêncio durante algum tempo e depois prosseguiu: — E ainda que eu venha a esquecer ou a lamentar tudo o que alguma vez fiz, mesmo assim recordaria que certa vez vi os dragões voando alto no vento, ao pôr do Sol, por sobre as ilhas ocidentais. E isso me contentaria.

Ambos se quedaram então em silêncio e não havia som algum, a não ser o segredar da água e do barco, nem luz. E foi assim que finalmente, ali sobre as águas profundas, adormeceram.

Na névoa clara da manhã entraram no Porto de Hort, onde uma centena de embarcações estava atracada ou a largar. Barcos de pesca, lagosteiros, traineiras, barcos mercantes, duas galeras de vinte remos, uma grande de sessenta remos a necessitar de grandes reparações e alguns veleiros esguios e compridos, ostentando altas velas triangulares, destinadas a captar as brisas mais elevadas nas quentes calmarias da Estrema Sul.

— Aquele é um navio de guerra? — perguntou Arren, quando iam a passar por uma das galeras de vinte remos, ao que o companheiro respondeu:

— A ajuizar pelas manilhas de correntes no porão, é um transporte de escravos. Na Estrema Sul vendem-se homens.

Arren ponderou o assunto durante uns momentos e depois foi à caixa dos apetrechos e dela retirou a sua espada que embrulhara cuidadosamente e ali arrumara na manhã da partida. Destapou-a e ficou-se indeciso, segurando a espada embainhada com ambas as mãos, o cinto pendendo dela, a balançar.

— Esta não é uma espada de mercador marítimo — disse por fim. — A bainha é demasiado luxuosa.

O Gavião, ocupado com o leme, lançou-lhe um olhar de relance.

— Usa-a, se quiseres.

— Achei que podia ser uma sábia atitude.

— Para uma espada, acho que essa é bem sábia — comentou o companheiro, o olhar alerta para a passagem através da baía atravancada de embarcações. — Essa não é uma espada que tem relutância em ser usada?

Arren acenou que sim.

— É isso que dizem. E no entanto já matou. Matou homens. — E baixou os olhos para o punho esguio, gasto das mãos que o tinham segurado. — Ela sim, mas eu não. Faz-me sentir como um idiota. É muito mais velha que eu, demasiado… Acho que me ficarei pela faca — concluiu. E, voltando a embrulhar a espada, lançou-a para o fundo da caixa dos apetrechos. No seu rosto lia-se perplexidade e raiva.

O Gavião nada disse naquele momento, mas daí a pouco perguntou:

— Não te importas de pegar agora nos remos, rapaz? Vamos para aquele molhe ali, junto às escadas.

A Cidade de Hort, um dos Sete Grandes Portos do Arquipélago, erguia-se a partir da sua barulhenta orla marítima pelas encostas de três íngremes montes, numa confusão de cor. As casas eram de barro e rebocadas a vermelho, laranja, amarelo ou branco. Cobriam-nas telhas de um vermelho purpúreo. Arvores pendick em flor formavam densas massas de um vermelho escuro ao longo das ruas superiores. Toldos garridos, às riscas, estendiam-se de telhado a telhado, dando sombra a estreitas praças de mercado. Os cais rebrilhavam com a luz do Sol. E as ruas que partiam da orla marítima eram como fendas escuras, cheias de sombras, gente e ruído.

Depois de terem amarrado o barco, o Gavião inclinou-se junto de Arren como se verificasse o nó e disse:

— Arren, há gente em Uothot que me conhece bastante bem, de maneira que quero que me olhes com atenção, para me poderes reconhecer.

E quando se endireitou não havia cicatriz alguma no seu rosto. O seu cabelo era agora completamente grisalho, tinha o nariz largo e um tanto arrebitado e, em vez de um bordão de teixo da sua altura, segurava uma varinha de marfim que guardou dentro da camisa.

— Nã me conheces? — perguntou a Arren com um largo sorriso e falando com o sotaque de Enlad. — Sará que nunca viste o tê tio antes?

Na corte de Berila, Arren vira feiticeiros mudar as feições quando mimavam o Feito de Morred e sabia que se tratava apenas de ilusão. Assim, manteve o sangue-frio e foi capaz de dizer:

— Ora pois que sim, mê ti Falcão!

Mas, enquanto o mago regateava com um guarda do porto o que este pedia para manter em doca e guardar o barco, Arren continuou a olhá-lo, para ficar bem certo de o reconhecer realmente. E ao olhar, a transformação começou a perturbá-lo mais em vez de menos. Era demasiado completa. Aquele não era de modo algum o Arquimago, não era sábio guia nem chefe coisa nenhuma. A paga do guarda do porto permaneceu alta e, ao pagar, o Gavião não parou de resmungar, nem mesmo quando se afastou com Arren.

— Este é um teste à minha paciência — dizia. — Ter de pagar àquele ladrão barrigudo para me guardar o barco! E isto quando um encantamento teria feito muito melhor trabalho! Mas pronto, é o que me custa o disfarce… E até me esqueci de falar como deve ser, nã foi mê sobrinho?

Iam caminhando por uma rua garrida, fedorenta e cheia de gente, ladeada por lojas que pouco mais eram que barracas e cujos donos permaneciam à entrada, rodeados por montes e grinaldas de mercadorias, proclamando em altos brados a beleza e barateza dos seus tachos, camisas, chapéus, pás, alfinetes, bolsas, chaleiras, cestos, ganchos de fogão, facas, cordas, ferrolhos, roupa de cama e toda e qualquer outra espécie de quinquilharia e tecidos.

— Isto é uma fera?

— Hãe! — fez o homem do nariz abatatado, inclinando a cabeça grisalha.

— Se isto é uma fêra, mê tio?

— Fêra? Nã, nã. Cá aqui, fazem isto o ano todo. Guarde lá os seus pastéis de pêxe, santinha, que eu já matê o bicho.

Entretanto, já Arren tentava livrar-se de um homem com um tabuleiro de pequenas vasilhas de cobre, que se lhe colara aos calcanhares, lamuriando:

— Comprai, experimentai, meu jovem e belo senhor, não vos vão deixar mal, dar-vos-ão um hálito tão suave como as rosas de Numima, e as mulheres encantar-se-ão convosco, experimentai meu jovem senhor do mar, meu jovem príncipe…

De imediato, o Gavião interpôs-se entre Arren e o bufarinheiro, perguntando:

— Que talismãs são esses?

— Não são talismãs! — choramingou o homem, encolhendo-se perante ele. — Eu não vendo talismãs, mestre do mar! Só uns xaropes para suavizar o hálito depois da bebida ou da raiz de hádzia… só xaropes, grande príncipe!

E agachou-se completamente nas pedras da rua, com o seu tabuleiro de frasquinhos a tinir e a chocalhar, e alguns deles mesmo a inclinarem-se de tal maneira que uma gota do líquido espesso que tinham dentro, rosa ou púrpura, escorreu para fora do gargalo.

Sem mais palavras o Gavião virou costas e seguiu em frente com Arren. Em breve as pessoas começavam a ser menos e as lojas tornaram-se de uma pobreza confrangedora, uns casinhotos ostentando como única mercadoria, este um punhado de pregos tortos, aquele uma mão de almofariz partida e aqueloutro uma velha escova de cardar. Esta pobreza desagradou menos a Arren que o resto. No lado mais rico da rua sentira-se chocado, sufocado, pela pressão das coisas a serem vendidas e das vozes a gritarem-lhe que comprasse, comprasse. E acima de tudo chocara-o a abjeção do bufarinheiro. Recordou as frescas e brilhantes ruas da sua cidade setentrional. Em Berila, nenhum homem se teria humilhado assim perante um estranho.

— Esta é uma gente baixa! — comentou.

— Por aqui, mê sobrinho — foi tudo o que obteve como resposta do companheiro. Voltaram para uma passagem entre paredes altas, vermelhas e sem janelas, que corriam ao longo da encosta, e atravessaram uma entrada em arco, engalanada com velhas e esfarrapadas flâmulas, saindo de novo para a luz do Sol num largo íngreme, outra praça de mercado, a abarrotar de tendas e quiosques, enxameada de gente e de moscas.

Ao longo dos lados do largo havia uma série de homens e mulheres, sentados ou deitados no chão, imóveis. As suas bocas tinham um estranho aspecto enegrecido, como se tivessem sido feridos, e ao redor dos seus lábios as moscas juntavam-se aos magotes como montes de uvas passas.

— Tantos… — soou a voz do Gavião, em tom baixo e precipitado, como se também ele tivesse sofrido um choque. Mas quando Arren olhou, havia apenas o rosto vulgar e bonacheão do robusto mercador Falcão, vazio de quaisquer preocupações.

— O que se passa com esta gente?

Hádzia! Acalma e entorpece, deixando que o corpo se liberte da mente. E a mente vagueia livremente. Mas quando regressa ao corpo precisa de mais hádzia… E a ânsia cresce e a vida é curta, porque essa coisa é um veneno. Primeiro vem uma tremura, mais tarde paralisia e depois a morte.

Arren olhou para uma mulher que estava sentada com as costas apoiadas numa parede aquecida pelo sol. Erguera a mão como se tencionasse afastar as moscas da cara, mas a mão fez um movimento circular e sacudido, como se ela se tivesse esquecido completamente da sua intenção inicial e o movimento resultasse apenas de um repetido estremecer dos músculos. O gesto era como um encantamento vazio de todo o sentido, um esconjuro sem significado.

O Gavião olhava também para ela, inexpressivamente.

— Vem daí! — disse.

E abriu caminho através da praça e até uma tenda sombreada por um toldo. Riscas de cores avivadas pelo sol, verde, laranja, limão, carmim e azul, alongavam-se sobre tecidos, xales e cintos entretecidos em exposição, e dançavam, refletidas como um sem-fim de clarões nos pequenos espelhos que enfeitavam a alta e emplumada cabeleira da mulher que vendia a mercadoria exposta. Era grande, forte e forte era também a sua voz.

— Sedas, cetins, linhos, peles, feltros, lãs, velos de ovelha de Gont, gazes de Saul, sedas de Lorbanery! Ei, homens do Norte, larguem esses casacões. Não vêem o sol que faz? E que tal isto para levar às vossas raparigas lá na longínqua Havnor? Olhem-me para isto, seda do Sul, fina como a asa de uma borboleta de Maio!

Com mãos destras, abrira uma peça de seda finíssima, cor-de-rosa e salpicada com fios de prata.

— Nã, senhora, nã somos noivos de rainhas — disse o Falcão. Mas logo a voz da mulher se ergueu como um trovão.

— E então com que é que vestem as vossas mulheres, com serapilheira? Lona de velas? Gente mesquinha que não compra um pecinha de seda para uma pobre mulher que enregela nas neves eternas lá do Norte! Então e que tal este velo de Gont, para a ajudar a aquecer nas noites frias de Inverno?

E lançou por cima do balcão um grande quadrado de um pano creme e castanho, tecido com o pêlo sedoso das cabras das ilhas setentrionais. O falso mercador estendeu a mão, apalpou-o e teve um sorriso.

— Ei, és algum gontiano? — fez a voz retumbante e a cabeleira, agitando-se, lançou mil pontos coloridos a girar por cima do toldo e dos tecidos.

— Isto é trabalho das Andrades — retorquiu o Falcão. — Estás a ver. A largura do dedo só apanha quatro fios da urdideira. Os de Gont têm seis ou mais. Mas diz-me cá. Deixaste de fazer magia para vender quinquilharias? Quando por aqui passei, há uns anos, vi-te a tirar labaredas das orelhas às pessoas e depois transformavas as labaredas em pássaros e sinos dourados. Era um negócio bem melhor que este.

— Isso não era negócio nenhum — disse a enorme mulher e, por um instante, Arren notou os seus olhos, duros e firmes como ágatas, olhando-o e ao Falcão lá de dentro do brilho e agitação das suas penas oscilantes e relampejantes espelhos.

— Ah, mas se era bonito aquilo de tirar fogo das orelhas — insistiu o Falcão num tom de voz obstinado mas simplório.

— Tinha pensado em mostrá-lo aqui ao mê sobrinho.

— Pois, pois. Mas olha cá — disse a mulher, menos asperamente, apoiando os gordos braços castanhos e o vasto peito sobre o balcão. — Nós já não fazemos esses truques. As pessoas não estão interessadas. Perceberam como eram feitos. Agora, estes espelhos, estou a ver que te lembras dos meus espelhos — e sacudiu a cabeça, fazendo rodopiar os pontinhos de luz em volta deles de forma entontecedora. — Pois pode-se confundir o espírito de um homem com os reflexos dos espelhos e com palavras e ainda com outros truques de que não te vou falar, até ele pensar que vê o que não vê, o que não está ali. Como as labaredas e os sinos dourados, ou os fatos com que eu costumava enfeitar os marinheiros, tecido de ouro com diamantes do tamanho de abrunhos, e lá iam eles todos pimpões como se fossem o Rei de Todas as Ilhas… Mas eram truques, ilusões. É possível iludir os homens. São como galinhas encantadas por uma cobra, ou por um dedo em frente do bico. E os homens são como as galinhas. Mas depois, no fim, percebem que foram iludidos, entontecidos, de maneira que se zangam e deixam de ter prazer com tais coisas. Foi assim que me voltei para este negócio e talvez que nem todas as sedas sejam sedas, nem todos os velos gontianos, mas de qualquer maneira duram… lá isso, duram! São coisas de verdade e não simples mentiras e ar como os fatos de pano de ouro.

— Bem, bem — fez o Falcão —, quer então dizer que já não há ninguém em toda a Cidade de Hort que tire fogo das orelhas, nem faça mágicas como costumavam?

Perante estas últimas palavras, a mulher franziu o cenho, endireitou-se e começou a enrolar o velo com todo o cuidado.

— Aqueles que ainda querem mentiras e visões mastigam hádzia — informou secamente.

Com um aceno de cabeça, indicou as figuras imóveis ao redor do largo e acrescentou:

— Fala com aqueles, se quiseres.

— Mas havia mágicos, aqueles que invocavam os ventos para os homens do mar e lançavam esconjuros de boa sorte sobre os carregamentos. Esses também se viraram para outros negócios?

Mas a mulher, subitamente furiosa, interrompeu-o com a sua voz retumbante.

— Há um mágico, se o quiseres. Um dos grandes, um feiticeiro com bordão e tudo. Estás a vê-lo ali? Navegou com o próprio Egre, invocando ventos e encontrando galeras bem pejadas, dizia ele, mas era tudo mentiras e por fim o Capitão Egre deu-lhe a recompensa merecida. Decepou-lhe a mão direita. E agora para ali está, como podes ver, com a boca cheia de hádzia e a barriga de vento. Ar e mentiras! Ar e mentiras! É tudo o que há nessa tua magia, Comandante Bode!

— Pronto, pronto, senhora —, disse o Falcão com impenitente brandura. — E estava só a perguntar.

A mulher voltou-lhes as amplas costas com um grande remoinhar de reflexos e ele desandou dali, com Arren ao lado.

Mas era um desandar com um propósito e que os levou até perto do homem que a mulher indicara. Estava sentado de encontro a uma parede e com o olhar perdido no vácuo. O rosto escuro e barbudo fora belo em tempos. O coto enrugado do punho jazia nas pedras do chão, sob a luz quente e brilhante do Sol, um símbolo de vergonha.

Havia uma certa agitação nas tendas por detrás deles, mas Arren não conseguia desviar os olhos do homem, preso por um fascínio relutante.

— Era realmente um feiticeiro? — perguntou em voz muito baixa.

— É talvez aquele a quem chamavam Lebre e era fazedor de vento ao serviço do pirata Egre. Eram famosos ladrões… Ei! Afasta-te, Arren!

Um homem, a correr a toda a velocidade e saindo do meio das tendas, por pouco não chocava contra ambos. Outro veio a trotar atrás do primeiro, vergado ao peso de um grande tabuleiro dobradiço, cheio de cordões, fitas e rendas. Uma das tendas veio abaixo com estrondo. Toldos estavam a ser enrolados ou retirados à pressa. Gente às molhadas empurrava-se ou lutava por todo o espaço do mercado. Erguiam-se vozes, vociferando, gritando. E acima de todas elas destacava-se a gritaria ensurdecedora da mulher com o toucado de espelhos. Arren vislumbrou-a brandindo uma espécie de pau ou vara contra uma data de homens, afugentando-os com grandes golpes a varrer, como um espadachim encurralado. Se se tratava de alguma discussão que degenerara em motim, um ataque por uma quadrilha de ladrões ou a luta entre dois grupos rivais de vendilhões, ninguém saberia dizê-lo. Havia gente a correr com braçadas de mercadorias que podiam ter sido fruto de roubo ou arrebanhadas pelos proprietários para as salvar da pilhagem. Havia lutas à faca e ao soco, e zaragatas por todo o largo.

— Por ali — disse Arren, apontando para uma rua lateral, perto deles, que conduzia para fora do largo. Deu uns passos em direção a essa rua, pois era evidente que o melhor era saírem dela o mais depressa possível, mas o companheiro agarrou-lhe o braço. Arren olhou para trás e viu que o homem chamado Lebre estava a esforçar-se por se pôr de pé. Quando se ergueu, ficou um momento a oscilar e logo, sem sequer olhar em volta, começou a caminhar ao longo das paredes que limitavam o largo, arrastando por elas a sua única mão como para se guiar ou segurar.

— Não o percas de vista! — disse o Gavião. E seguiram ambos no seu encalço. Ninguém os molestou, nem ao homem que seguiam, e daí a um minuto estavam fora do largo do mercado, encosta abaixo, no silêncio de uma rua estreita e tortuosa.

Por cima deles, os sótãos das casas quase se juntavam sobre a rua, reduzindo a claridade. A seus pés, a pedras estavam escorregadias de água e imundícies. O Lebre avançava a boa velocidade, se bem que continuasse a roçar a mão pelas paredes, como um cego. Tinham de se manter perto dele não fossem perdê-lo nalgum cruzamento. De súbito, Arren sentiu-se tomado pela excitação da caçada. Todos os seus sentidos estavam despertos, tal como estariam numa caçada ao veado, nas florestas de Enlad. Via nitidamente o rosto de cada pessoa por quem passavam e aspirava o doce fedor da cidade, um cheiro a lixo, incenso, carne morta e flores. Ao abrirem caminho através de uma rua larga e cheia de gente, ouviu o rufar de um tambor e viu de relance uma fileira de homens e mulheres nus, cada um acorrentado ao que lhe estava mais próximo pelo pulso e pela cintura, o cabelo eriçado a cair-lhes para a cara. Uma brevíssima visão e já tinham desaparecido, enquanto ele se esgueirava atrás do Lebre por um lance de degraus deitando para uma praça estreita, vazia à exceção de um pequeno grupo de mulheres a dar à língua junto a uma fonte.

Foi aí que o Gavião alcançou o Lebre e lhe pôs a mão no ombro, perante o que o homem se encolheu como se o tivessem queimado, recuando assustado, e se acolheu sob a maciça entrada de uma porta. Ficou-se ali a tremer, fitando-os com o olhar desvairado dos fugitivos.

— És tu aquele a quem chamam Lebre? — perguntou o Gavião, falando com a sua própria voz que era áspera na qualidade, mas suave na entoação. O homem nada respondeu, parecendo não atender ou não ouvir. — Preciso de uma coisa de ti — continuou o Gavião, mais uma vez sem obter resposta. — Estou disposto a pagar por ela.

Houve uma lenta reação.

— Marfim ou ouro?

— Ouro.

— Quanto?

— O feiticeiro sabe qual o valor do seu encantamento.

O rosto do Lebre estremeceu e alterou-se, adquirindo vida por um instante, tão depressa que se diria tremular, e logo voltando a nublar-se de vazio.

— Foi-se tudo — disse —, tudo…

Um ataque de tosse fê-lo dobrar-se ao meio e cuspir negro. Quando se voltou a endireitar, quedou-se passivo e trêmulo, parecendo ter esquecido de que estavam a falar.

Uma vez mais Arren o fitava, fascinado. O recesso em que o homem se encontrava era formado por duas figuras gigantescas, flanqueando a entrada, estátuas cujo pescoço se vergava ao peso de um frontão triangular e cujos corpos de músculos tensos só parcialmente se destacavam da parede, como se tivessem tentado lutar para sair da pedra e entrar na vida, só incompletamente o conseguindo. A porta que guardavam era de madeira podre segura pelos gonzos. A casa, em tempos um palácio, era agora uma ruína. Os rostos carrancudos e protuberantes dos gigantes estavam lascados e cobertos de liquens. Entre aquelas duas poderosas figuras, o homem chamado Lebre parecia ainda mais inerme e frágil, de olhos tão mortiços como as janelas da casa vazia. Levantando o braço mutilado entre ele e o Gavião, lamuriou:

— Dá qualquer coisinha a um pobre estropiado, senhor… O mago fez uma careta de vergonha ou dor. Arren sentiu que, por um momento, lhe vira o rosto verdadeiro sob o disfarce. Voltando a pôr a mão sobre o ombro do Lebre, o Gavião pronunciou algumas palavras, suavemente, na língua dos feiticeiros que Arren não entendia.

Mas o Lebre entendeu. Com a sua única mão agarrou-se ao Gavião e gaguejou:

— Tu ainda podes falar… falar… Vem comigo, anda…

O Arquimago olhou de relance para Arren e fez um aceno afirmativo.

Por ruas íngremes, desceram até um dos vales entre as três colinas da Cidade de Hort. A medida que iam descendo, os caminhos iam-se tornando mais estreitos, escuros e sossegados. O céu era uma tira pálida entre os beirais acima das suas cabeças e as paredes das casas, de ambos os lados, eram úmidas e frias. Ao fundo daquela espécie de garganta corria um rio, fedorento como um esgoto a céu aberto. Entre pontes em arco, apinhavam-se casas ao longo das margens. O Lebre virou para a escura entrada de uma dessas casas, desaparecendo como uma vela que um sopro tivesse apagado. Seguiram-no.

Os degraus da escada sem luz estalavam e oscilavam debaixo dos seus pés. Ao cimo das escadas o Lebre abriu uma porta com um empurrão e puderam então ver onde estavam. Era um quarto vazio, com uma enxerga de palha a um canto e uma janela sem vidros, entaipada, que deixava entrar uma tênue claridade poeirenta.

O Lebre voltou-se para encarar o Gavião e de novo lhe segurou o braço. Os seus lábios agitaram-se e por fim, gaguejante, disse:

— Dragão… dragão…

O Gavião olhou-o também, firmemente, mas sem uma palavra.

— Não consigo falar — disse o Lebre e, soltando o braço do Gavião, agachou-se no soalho vazio, a chorar.

O mago ajoelhou junto dele e falou-lhe suavemente na Antiga Fala. Arren deixou-se ficar junto à porta fechada, com a mão sobre o punho da faca. A luz cinzenta e o quarto empoeirado, as duas figuras ajoelhadas, o suave e estranho som da voz do mago, falando na língua dos dragões, tudo se ligava entre si como sucede nos sonhos, sem relação com o que acontece fora deles ou com o passar do tempo.

Lentamente, o Lebre voltou a erguer-se. Limpou o pó dos joelhos com a sua única mão e escondeu o braço mutilado atrás das costas. Olhou em volta, olhou para Arren. Agora via aquilo para que estava a olhar. Arren permaneceu de pé junto à porta, de guarda. Mas, com a simplicidade de alguém que carecera de mobiliário durante toda a sua infância, o Gavião sentou-se, de pernas cruzadas, no soalho nu.

— Conta-me como perdeste a tua arte e a linguagem da tua arte — instou.

Durante algum tempo o Lebre não deu resposta. Começou a bater com o braço mutilado de encontro à coxa, de modo impaciente, sacudido, e por fim disse, forçando-se a pronunciar as palavras em frases bruscas e soltas.

— Eles cortaram a minha mão. Não posso tecer os encantamentos. Cortaram a minha mão. O sangue correu, até secar.

— Mas isso foi depois de teres perdido o teu poder, Lebre. De outro modo não podiam ter-te feito tal coisa.

— Poder…

— Sim, o poder sobre os ventos e as ondas e os homens. Chamava-los pelos seus nomes e eles obedeciam-te.

— Sim. Lembro-me de estar vivo — disse o homem numa voz suave e rouca. — E conhecia as palavras e os nomes…

— E agora, estás morto?

— Não. Vivo. Vivo. Só que dantes eu era um dragão… Não, não estou morto. Durmo por vezes. O sono está muito perto da morte, toda a gente sabe disso. Os mortos caminham nos sonhos, toda a gente sabe disso. Vêm vivos até nós e dizem-nos coisas. Saem da morte para dentro dos sonhos. Há uma maneira, um caminho. E se prosseguires até chegares suficientemente perto, há um caminho de volta, todo um caminho. Todo um caminho. Podes encontrá-lo se souberes onde procurar. E se estiveres disposto a pagar o preço.

— Que preço é esse? — e a voz do Gavião flutuava no ar sombrio como a sombra de uma folha a cair.

— A vida, o que havia de ser? Que podes tu comprar com a vida, senão vida?

O Lebre balançava-se para trás e para diante na sua enxerga, com um brilho matreiro, inquietante, nos olhos.

— Bem vês — prosseguiu ele —, podem cortar-me a mão. Podem cortar-me a cabeça. Não interessa, porque eu posso encontrar o caminho de volta. Sei onde procurar. Só homens de poder lá podem ir.

— Feiticeiros, queres tu dizer?

— Sim.

O Lebre hesitou, como se tentasse, por várias vezes, pronunciar a palavra. Mas não conseguiu dizê-la.

— Homens de poder — acabou por repetir. — E têm… têm de renunciar a ele. De pagar.

Depois quedou-se ensimesmado, como se a palavra «pagar» tivesse enfim despertado associações e ele houvesse compreendido que estava a oferecer informações em vez de as vender. Não foi possível arrancar-lhe mais nada, nem sequer as insinuações vagas e gaguejadas acerca de um «caminho de volta» que o Gavião parecia considerar significativas. Assim, pouco demorou para o mago se levantar.

— Bom, meias respostas sempre são melhores que resposta nenhuma e o mesmo se passa com o pagamento.

E, hábil como um prestidigitador, fez saltar uma moeda de ouro para cima da enxerga, em frente do Lebre.

O Lebre deitou-lhe a mão. Olhou a moeda e depois fitou o Gavião e Arren com movimentos espasmódicos da cabeça.

— Esperem — gaguejou. Logo que a situação se alterara, perdera-lhe o controlo e agora o seu espírito tateava em busca do que pretendia dizer.

— Esta noite — disse por fim. — Esperem. Esta noite. Vou ter hádzia.

— Não preciso disso.

— Para te mostrar… Para te mostrar o caminho. Esta noite. Eu levo-te. Eu mostro-te. Tu podes lá chegar porque tu… tu és…

E voltou a tentar encontrar a palavra até que o Gavião disse:

— Eu sou um feiticeiro.

— Sim, isso! De maneira que podemos… podemos lá chegar. Ao caminho. Quando eu sonho. No sonho. Percebes? Eu levo-te. Vais comigo até… ao caminho.

O Gavião deixou-se ficar em silêncio, imóvel e meditativo, no meio da sala sombria.

— Talvez — acabou por dizer. — Se viermos, estaremos aqui ao anoitecer.

Depois voltou-se para Arren que logo abriu a porta, ansioso por sair dali para fora.

A rua escura, fria e úmida, parecia tão clara como um jardim depois do quarto do Lebre. Dirigiram-se para a parte alta da cidade pelo caminho mais curto, uma íngreme escadaria de pedra entre paredes de casas cobertas de hera. Arren aspirava e expelia o ar como um leão marinho.

— Áque! — fez ele. — Vais voltar ali?

— Bem, irei, se não conseguir obter a mesma informação de uma fonte menos arriscada. Não me admirava que nos armasse uma cilada.

— Mas tu não estás defendido contra ladrões e assim?

— Defendido? — fez o Gavião. — Que queres tu dizer? Achas que ando por aí embrulhado em encantamentos como uma velhota com medo do reumatismo? Não tenho tempo para isso. Oculto a minha cara verdadeira para ocultar a nossa demanda e é tudo. Nós podemos tomar conta um do outro. Mas a verdade é que não vamos conseguir manter-nos afastados do perigo nesta jornada.

— Claro que não — disse Arren rigidamente, furioso, ferido no seu orgulho. — Também não era isso que eu pretendia.

— Pois tanto melhor — replicou o mago, inflexível, mas mesmo assim com uma espécie de bom humor que apaziguou a zanga de Arren. E o certo é que ele ficara sobressaltado com a sua própria. Nunca pensara em falar assim ao Arquimago. Mas depois aquele era e não era o Arquimago, cuja voz era umas vezes a de um homem e outras a de outro, um estranho, alguém que não era de fiar.

— O que ele te disse faz algum sentido? — perguntou Arren, pois não lhe agradava nada ter de voltar àquele quarto sombrio por cima do rio fedorento. — Todas aquelas frioleiras acerca de estar vivo e morto, e de voltar com a cabeça cortada?

— Não sei se faz sentido. Eu queria falar com um feiticeiro que tivesse perdido o poder. Ele diz-me que não o perdeu, mas o deu… que o trocou. Mas por quê? Vida por vida, foi o que ele disse. Poder por poder. Não, não o entendo, mas vale a pena ouvi-lo.

O calmo raciocínio do Gavião envergonhou Arren anda mais. Considerou-se petulante e nervoso, como uma criança. O Lebre fascinara-o, mas agora que o fascínio se quebrara sentia uma espécie de enjôo doentio, como se tivesse comido alguma coisa estragada. Decidiu não voltar a falar até ter controlado o seu temperamento e, no momento seguinte, pousou mal o pé nos degraus desgastados, escorregou e recuperou o equilíbrio raspando a pele das mãos nas pedras.

— Amaldiçoada seja esta cidade nojenta! — lançou, enraivecido. E o mago replicou secamente:

— Não me parece que precise de ser amaldiçoada.

Havia realmente algo de errado na Cidade de Hort, de errado no próprio ar, pelo que se podia pensar muito seriamente que estava debaixo de uma maldição. E no entanto não se tratava de uma presença de qualquer espécie, antes de uma ausência, de um enfraquecimento de todas as qualidades, como uma doença que em breve infectasse também o espírito de qualquer visitante. Até o calor do Sol da tarde era doentio, demasiado pesado para Março. As praças e ruas agitavam-se de atividade e comércio, mas não havia ordem nem prosperidade. As mercadorias eram más, os preços altos e os mercados não eram seguros, nem para negociantes nem para compradores, pois estavam cheios de ladrões e quadrilhas de vadios. Poucas mulheres se viam nas ruas e as poucas que havia andavam em grupos. Era uma cidade sem lei nem governo. Falando com as pessoas, Arren e o Gavião em breve descobriram que não havia realmente conselho de cidadãos, presidente do município ou senhor na Cidade de Hort. Alguns dos que costumavam governar a cidade tinham morrido, outros resignado e outros ainda sido assassinados. Vários chefes lideravam os vários bairros da cidade, os guardas do porto ocupavam-se do embarcadouro e enchiam as algibeiras, e por aí adiante.

A cidade já não tinha centro algum. As pessoas, apesar de toda a sua febril atividade, pareciam não ter finalidade alguma. Dir-se-ia que os artesãos tinham perdido a vontade de trabalhar bem. Até os ladrões roubavam porque era tudo o que sabiam fazer. Todo o burburinho e brilho de um grande porto de mar estava presente, à superfície, mas em redor de tudo isso sentavam-se os comedores de hádzia, imóveis. E abaixo da superfície as coisas não pareciam totalmente reais, nem sequer os rostos, os sons, os cheiros. De vez em quando era como se se apagassem, durante aquela longa e quente tarde, enquanto o Gavião e Arren caminhavam pelas ruas, falando com este e com aquele. E apagavam-se realmente. Os toldos às riscas, as sujas pedras do chão, as paredes coloridas e toda a vivacidade do ser se perdia, deixando a cidade como algo visto em sonhos, vazia e lúgubre, sob a luz nevoenta do Sol.

Só no ponto mais alto da cidade, aonde se dirigiram para descansarem um pouco ao fim da tarde, houve uma interrupção naquela sensação doentia de sonho acordado.

— Esta não é uma cidade que dê sorte — dissera Gavião algumas horas atrás. E agora, após horas de um vaguear sem destino e de infrutíferas conversas com estranhos, tinha um ar cansado e carrancudo. O seu disfarce tinha-se desgastado um pouco e, através do rosto ilusório de mercador, descortinava-se uma certa dureza, um certo tom escuro. Arren não fora capaz de se libertar da sua irritabilidade da manhã. Sentaram-se na relva áspera do topo do monte, sob a folhagem de um bosque de árvores pendick, de folhas escuras e cheias de botões vermelhos, alguns dos quais já estavam abertos. Dali nada viam da cidade, para além dos telhados, descendo em múltiplos degraus até ao mar. A baía abria largamente os seus braços, de um azul-escuro e baço sob a neblina primaveril, apontando para o ar do horizonte. Não se viam linhas de demarcação nem fronteiras. Ficaram de olhos fitos naquele imenso espaço azul e a mente de Arren clareou, abrindo-se para receber e celebrar o mundo.

Quando foram beber a um pequeno ribeiro ali perto, que corria límpido sobre rochas castanhas, vindo da sua fonte nalgum jardim principesco na colina atrás deles, bebeu a longos haustos e meteu completamente a cabeça debaixo da água fria. Depois levantou-se e declamou os versos do Feito de Morred que diziam:

Louvadas são as Fontes de Xélieth, a harpa argêntea das águas, Mas abençoado seja em meu nome e para sempre este rio que apaziguou a minha sede!

O Gavião riu-se e também Arren riu. Sacudiu a cabeça como um cão e fez saltar em chuva brilhante a água dos cabelos, que voou clara na última luz dourada do Sol.

Mas tiveram de deixar o bosque e voltar a descer para as ruas da cidade. Depois de arranjarem de cear numa tenda que vendia bolos de peixe gordurosos, já a noite pesava no ar. A escuridão penetrava cedo nas ruelas estreitas.

— O melhor é irmos, rapaz — disse o Gavião.

— Para o barco? — perguntou Arren. Mas sabia que não se iam dirigir para o barco, e sim para a casa sobre o rio, para o terrível quarto, vazio e cheio de pó.

O Lebre esperava por eles à entrada da casa.

Acendeu uma candeia de azeite para lhes iluminar a subida pela negra escada. A minúscula chama tremia constantemente na mão do homem, lançando vastas e rápidas sombras pelas paredes acima.

Tinha arranjado outro saco de palha para os visitantes se sentarem, mas Arren escolheu antes um lugar no chão nu, junto à porta. Esta abria-se para fora e, para a guardar, ele deveria antes ter-se sentado no exterior, mas aquele vestíbulo escuro como breu era mais que o que ele podia suportar, além de que queria manter um olho no Lebre. A atenção do Gavião, provavelmente também os seus poderes, iam estar voltados para o que o Lebre tinha para lhe dizer ou mostrar. Cabia a Arren ficar atento a alguma velhacaria.

O Lebre estava agora mais direito e tremia menos, além de que limpara a boca e os dentes. De princípio, embora excitadamente, falou de maneira razoavelmente sensata. A luz da candeia, os seus olhos eram tão escuros que, como os dos animais, pareciam não ter branco. Discutiu vivamente com o Gavião, instando com ele para que comesse hádzia.

— Eu quero levar-te, levar-te comigo. Temos de seguir pelo mesmo caminho. Não falta muito para que eu vá, estejas pronto ou não. Tens de tomar a hádzia para me seguires.

— Acho que posso seguir-te.

— Não onde eu vou. Isto não é… de deitar encantamentos. — Não parecia capaz de dizer as palavras «feiticeiro» ou «feitiçaria». — Eu sei que tu és capaz de ir até ao… ao lugar, tu sabes, a parede. Mas não é por aí. É um caminho diferente.

— Se tu fores, posso seguir-te.

O Lebre sacudiu a cabeça. O seu belo rosto, agora uma ruína do que fora, estava afogueado. Olhava freqüentemente para Arren, como a incluí-lo na conversa, embora apenas falasse para o Gavião.

— Ouve. Há duas espécies de homens, não há? A nossa e o resto. Os… os dragões e os outros. Gente sem poder e só meia viva. Esses não contam. Não sabem o que sonham. Têm medo do escuro. Mas os outros, os senhores dos homens, não têm medo de penetrar na escuridão. Nós temos a força.

— Desde que saibamos os nomes das coisas.

— Mas os nomes, lá, não contam… aí é que está, aí é que está! Não é o que fazes, o que sabes, que precisas. Os encantamentos não servem de nada. Tens de esquecer isso tudo, deixar ir. E aí é que comer hádzia ajuda. Esquecemos os nomes, deixamos para trás a forma das coisas e vamos direitos à realidade. Agora já falta muito pouco para eu ir e, se queres saber para onde, devias fazer como eu te digo. E eu digo como ele diz. Tens de ser um senhor de homens para seres um senhor da vida. Tens de descobrir o segredo. Eu podia dizer-te o seu nome, mas o que é um nome? Um nome não é real, o real, o real para sempre. Os dragões não podem ir até lá. Os dragões morrem. Todos morrem. Esta noite comi tanta que nunca vais conseguir acompanhar-me. Não há vendas nos meus olhos. Onde eu me perco, podes guiar-me. Lembras-te qual é o segredo? Lembras-te? Não há morte. Não há morte… não! Acabou-se a cama suada, o caixão a apodrecer, acabou-se, nunca mais. O sangue seca como o rio seco e desaparece. Não há medo. Não há morte. Os nomes foram-se e as palavras e o medo, tudo se foi. Mostra-me onde é que eu me perco, mostra-me, senhor…

E assim prosseguiu num êxtase de palavras meio sufocadas que era como o entoar de um encantamento, mas onde não havia encantamento, nem unidade, nem sentido. Arren escutava, escutava, esforçando-se por compreender. Se ao menos pudesse compreender! O Gavião devia fazer como ele dizia e tomar a droga, pelo menos desta vez, para finalmente descobrir de que estava o Lebre a falar, o mistério que ele não queria ou não podia revelar. Senão, que estavam eles ali a fazer? Mas afinal (e Arren desviou os olhos do rosto extático do Lebre para o outro perfil) talvez o mago já tivesse compreendido… Duro como pedra, aquele perfil. Falcão, o mercador, desaparecera, fora olvidado. Era o mago, o Arquimago, que estava ali agora. A voz do Lebre não era já senão um trautear indistinto e, de pernas cruzadas, balançava o corpo para trás e para diante. O seu rosto tomara um ar desvairado, a boca amolecera. De frente para ele, à luz tênue mas firme da lamparina pousada no chão entre eles, o outro não dizia palavra, mas estendera o braço e pegara na mão do Lebre, como que a segurá-lo. Arren não o vira estender o braço. Havia vazios na ordem dos acontecimentos, vazios de inexistência… sonolência, devia ter sido. Por certo teriam passado horas, devia ser perto da meia-noite. Se adormecesse, seria também ele capaz de seguir o Lebre no seu sonho e chegar ao lugar, ao caminho secreto? Talvez pudesse. Agora parecia-lhe bem possível. Mas tinha de guardar a porta. Ele e o Gavião quase não tinham falado disso, mas estavam ambos cientes de que, ao fazê-lo voltar ali de noite, o Lebre poderia ter planejado alguma emboscada. Ele fora pirata, conhecia ladrões. Nada haviam combinado, mas Arren sabia que tinha de estar de guarda porque, enquanto fizesse aquela estranha viagem do espírito, o mago estaria indefeso. Mas, como um idiota, deixara a sua espada no barco e de que lhe poderia servir a faca se aquela porta de repente se abrisse por detrás dele? Mas isso não iria acontecer. Ele podia estar atento, à escuta. O Lebre já deixara de falar. Os dois homens mantinham um silêncio absoluto. Toda a casa estava em silêncio. Ninguém poderia subir aqueles degraus bamboleantes sem fazer algum ruído. E, se ouvisse barulho, ele podia falar, soltar um brado de aviso. Então o transe quebrar-se-ia, o Gavião voltar-se-ia para se defender e a Arren com o raio terrível que é a ira de um feiticeiro… Quando Arren se sentara junto da porta, o Gavião olhara-o, apenas um relance, com aprovação. Aprovação e confiança. Ele era o guarda. Não haveria perigo se permanecesse atento. Mas era difícil. Era difícil continuar a vigiar aqueles dois rostos, à pequena pérola de luz que era a chama da candeia entre eles, no chão. E agora silenciosos ambos, imóveis ambos, de olhos abertos mas sem verem a luz nem o quarto cheio de pó, sem verem o mundo, mas sim algum outro mundo de sonho ou de morte… Continuar a vigiá-los sem tentar segui-los…

E ali, na vasta, na seca escuridão, alguém se erguia, com um gesto de chamamento. Vem, disse ele, o alto senhor das sombras. Na sua mão segurava uma chama minúscula, não maior que uma pérola, e estendeu-a para Arren, oferecendo vida. Lentamente, Arren deu um passo em direção a ele, obedecendo.

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