40 O que a Roda tecer

Assim que Galad sumiu de vista, os olhos de Nynaeve percorreram a rua à frente. Estava furiosa, tanto consigo mesma quanto com Galadedrid Damodred. Nynaeve, sua cabeça de vento imbecil! Era uma via estreita como todas as demais, pavimentada com pedras redondas, ladeada por fileiras de casas, tavernas e lojas cinzentas, e com a movimentação menos intensa do período da tarde. Se você não tivesse vindo até a cidade, ele nunca a teria encontrado! Não havia gente suficiente para escondê-la. Você tinha que se encontrar com o Profeta! Só você para acreditar que o Profeta lhe ajudaria a sumir daqui antes que Moghedien aparecesse! Quando vai aprender que não pode depender de ninguém, só de si mesma? Em um instante, fez sua escolha. Quando Galad virasse aquela esquina e não os visse, começaria a procurar em lojas e talvez em tavernas.

— Por aqui. — Segurando as saias, ela disparou em direção à viela mais próxima e pressionou as costas contra a parede.

Ninguém prestou atenção nela, mesmo com aquele comportamento suspeito, e o que isso dizia sobre o povo de Samara era algo que não queria nem considerar. Uno e Ragan estavam ao seu lado antes mesmo que terminasse de se acomodar, empurrando-a ainda mais para dentro da viela empoeirada, para trás de um balde lascado e de um barril coletor de água da chuva tão seco que estava a ponto de ruir sob os próprios aros. Pelo menos os dois estavam fazendo o que ela queria. De certa maneira. Com as mãos tensas nos longos punhos das espadas embainhadas despontando acima dos ombros, eles estavam prontos para protegê-la, desejasse ela ou não. Deixe os homens, sua tola! Acha que consegue se proteger sozinha?

Nynaeve decerto estava com raiva suficiente. Galad, dentre todas aquelas pessoas! Nunca deveria ter saído de perto do conjunto! Um capricho bobo, e que poderia pôr tudo a perder. Não podia canalizar ali, tanto quanto não pudera contra Masema. A simples possibilidade de que Moghedien ou as irmãs Negras estivessem em Samara a tornava dependente da proteção dos dois homens. E isso era o bastante para deixá-la com ainda mais raiva. Nynaeve poderia ter aberto um buraco na parede atrás de si a dentadas. Sabia por que as Aes Sedai tinham Guardiões — menos as Vermelhas. Racionalmente, ela sabia. Mas sua alma só queria rosnar.

Galad apareceu, abrindo caminho devagar pelo meio do povo nas ruas, os olhos varrendo a multidão esparsa. Ele deveria ter seguido em frente — deveria —, mas, quase de imediato, seu olhar parou na viela. Neles. Não teve nem a elegância de parecer contente ou surpreso.

Uno e Ragan se moveram em sincronia quando Galad foi na direção da viela. O caolho desembainhou a espada em um piscar de olhos, e Ragan foi um pouco mais lento por ter de fazer uma pausa para empurrar Nynaeve mais para dentro da passagem estreita. Os dois se posicionaram um atrás do outro. Se Galad passasse por Uno, ainda precisaria enfrentar Ragan.

Nynaeve rangeu os dentes. Poderia tornar todas aquelas espadas desnecessárias, inúteis. Conseguia sentir a Fonte Verdadeira feito uma luz invisível acima de seus ombros, esperando ser agarrada. Poderia. Se ousasse.

Galad parou na boca da viela, o manto jogado para trás, uma das mãos repousando serenamente no punho da espada, gracioso e pronto para o ataque. Não fosse pela armadura escovada, poderia estar num baile.

— Não quero matar nenhum de vocês dois, shienarano — disse calmamente para Uno.

Nynaeve ouvira Elayne e Gawyn falarem a respeito das habilidades de Galad com a espada, mas aquela era a primeira vez que pensava que ele de fato podia ser tão bom quanto diziam. Pelo menos ele achava que era. Dois soldados experientes com as lâminas à mostra, e ele os encarava como um cão de caça encararia um par de cães de menor porte; sem procurar briga, mas com absoluta confiança de que era capaz de dar conta dos dois. Sem jamais afastar o olhar dos homens, Galad dirigiu-se a ela:

— Outra pessoa teria ido para uma loja ou uma estalagem, mas você nunca faz o esperado. Vai me deixar falar com você? Não há necessidade de me obrigar a matar estes dois.

Nenhum dos pedestres estava parando, mas, mesmo com três homens lhe bloqueando a visão, Nynaeve enxergava cabeças se virando para dar uma olhadela no que teria atraído o Manto-branco. E para simplesmente admirar as espadas. Boatos estariam brotando em todas aquelas cabeças e alçando voo com uma velocidade que faria um falcão parecer lento.

— Deixem o homem passar — ordenou Nynaeve.

Ao ver que Uno e Ragan nem se mexeram, repetiu a ordem com ainda mais firmeza. Foi então que, hesitantes, ambos se afastaram para o lado, tanto quanto a viela estreita permitia. E, ainda que nenhum deles tenha dito uma só palavra, havia entre os homens um quê de reclamação. Galad se aproximou tranquilamente, parecendo esquecer os shienaranos. Nynaeve suspeitava que acreditar naquilo seria um erro. Os homens de coque claramente não acreditavam.

Exceto por um dos Abandonados, Nynaeve não imaginava que homem gostaria menos de ter à sua frente no momento, mas, com aquele rosto diante dela, estava conscientíssima da própria respiração, da própria pulsação. Era ridículo. Por que aquele sujeito não podia ser feio? Ou ao menos comum.

— Você sabia que eu sabia que você estava nos seguindo. — O tom de acusação foi intenso, embora ela não tivesse certeza do que o estava acusando. De não fazer o que ela esperara e desejara, imaginou, com pesar.

— Presumi isso assim que a reconheci, Nynaeve. Lembro que você geralmente enxerga mais do que demonstra.

Ela não permitiria que o homem a distraísse com elogios. Bastava ver no que aquilo dera com Valan Luca.

— O que você está fazendo em Ghealdan? Achei que estivesse a caminho de Altara.

Por um momento, ele a encarou com aqueles belos olhos escuros, e então, de repente, gargalhou.

— No mundo inteiro, Nynaeve, só você me faria a pergunta que eu deveria estar lhe fazendo. Muito bem, eu vou responder, ainda que devesse ser o contrário. Eu de fato tinha ordens para ir a Salidar, em Altara, mas tudo mudou quando este tal de Profeta… Qual é o problema? Está passando mal?

Nynaeve se forçou a suavizar a expressão.

— Claro que não — respondeu, irritada. — Minha saúde está ótima, muitíssimo obrigada.

Salidar! Claro! Aquele nome foi como um dos malabares de fogo de Aludra explodindo em sua mente. Quebrara tanto a cabeça, e Galad lhe entrega por acaso o que ela não dera conta de desencavar sozinha. Se ao menos Masema conseguisse encontrar logo um barco… Se ao menos ela pudesse ter certeza de que Galad não lhes trairia… Sem permitir que Uno e Ragan o matassem, claro. Apesar do que Elayne dizia, Nynaeve não achava que a garota gostaria de ver o irmão morto. E havia pouca chance de que ele acreditasse que Elayne não estava com ela.

— Estou apenas surpresa por encontrá-lo aqui.

— Não é uma surpresa tão grande quanto a que eu tive quando soube que vocês tinham dado um jeito de ir embora de Sienda. — A severidade distorcia um pouco aquele rosto bonito, mas o tom de voz compensava. Em certo nível. Galad poderia estar dando um sermão em uma garotinha que saíra escondida de casa depois do horário de dormir só para subir em uma árvore. — Eu quase morri de preocupação. O que deu em vocês, sob a Luz? Fazem ideia do risco que correram? E vir para cá, ainda por cima. Elayne sempre escolhe encilhar um cavalo quando ele já está galopando, se puder, mas eu achei que você, pelo menos, tinha mais juízo. Este tal de Profeta… — Ele se interrompeu e encarou os dois homens. Uno cravara a ponta da espada no chão, as mãos cheias de cicatrizes entrelaçadas sobre o pomo. Ragan parecia estar única e exclusivamente inspecionando o fio da lâmina.

— Eu ouvi boatos — prosseguiu Galad, devagar — de que ele é shienarano. Não é possível você ter sido tão cabeça oca a ponto de se misturar com ele. — Havia questionamentos demais naquelas palavras, para o gosto de Nynaeve.

— Nenhum deles é o Profeta, Galad — retrucou ela com ironia. — Já conheço os dois há algum tempo, posso lhe garantir. Uno, Ragan, a menos que vocês pretendam cortar as unhas dos pés, guardem estes troços. E então? — Os homens hesitaram, Uno resmungando sozinho e cravando os olhos nela, mas, por fim, acabaram obedecendo. Homens costumavam reagir a uma voz firme. A maioria. Algumas vezes.

— Não pensei que fossem, Nynaeve. — O tom de voz de Galad, ainda mais seco que o dela, a deixou arrepiada, mas, quando prosseguiu, seu ar parecia mais de irritação que de superioridade. E de preocupação. O que a deixou ainda mais arrepiada, claro. Ele lhe causava palpitações, e ele tinha a coragem de ficar preocupado. — Não sei no que você e Elayne se meteram aqui, e nem quero saber, desde que eu consiga tirar vocês duas deste lugar antes que se machuquem. O comércio no rio está devagar, mas um barco apropriado, de qualquer tipo, deve chegar nos próximos dias. Trate de me dizer onde posso encontrar vocês, e eu garanto a viagem até algum ponto de Altara. De lá, vocês vão poder seguir caminho até Caemlyn.

Ela ficou boquiaberta a contragosto.

— Você pretende encontrar um navio para nós?

— É tudo o que eu posso fazer no momento. — Seu tom era de quem pedia desculpas. Então, sacudiu a cabeça, se autocensurando. — Não tenho como escoltá-las até estarem seguras. Minha obrigação é ficar aqui.

— Não queremos afastá-lo das suas obrigações — respondeu ela, meio ofegante. Se ele quisesse interpretar mal, que fosse. O melhor que ela torcera para acontecer era que ele as deixasse em paz.

Galad achou que precisava se defender.

— Mandar vocês para lá sozinhas não é nada seguro, mas uma embarcação vai levá-las embora antes que um conflito exploda na fronteira. E isso vai acontecer, mais cedo ou mais tarde. Basta uma centelha, e com certeza o Profeta vai acendê-la, caso ninguém mais o faça. Vocês precisam dar um jeito de ir até Caemlyn, você e Elayne. Só peço que me prometam que irão para lá. A Torre não é lugar para nenhuma das duas. Nem para… — Galad trincou os dentes, mas poderia muito bem ter citado o nome de Egwene.

Mal não faria se Galad também estivesse em busca de um barco. Se Masema se esquecia de fechar ou não tavernas, também poderia se esquecer de mandar alguém encontrar um barco. Sobretudo se achasse que um conveniente rompante de esquecimento pudesse manter Nynaeve por perto para levar adiante seus próprios planos. Mal não fazia… caso pudesse confiar em Galad. Se não, precisaria torcer para que ele não fosse tão bom com a espada quanto achava que era. Era um pensamento desagradável, mas não tanto quanto o que poderia acontecer, e aconteceria, caso o homem se provasse um traidor.

— Eu sou o que sou, Galad, e o mesmo vale para Elayne. — Ser cuidadosa com Masema deixara um gosto ruim na boca de Nynaeve. Um pouco de esquiva à moda da Torre Branca era o máximo que podia fazer. — E agora você é o que é. — Ela ergueu as sobrancelhas indicando o manto branco dele. — Eles odeiam a Torre e odeiam mulheres que sabem canalizar. Agora que é um deles, por que eu não deveria pensar que vai haver cinquenta iguais a você atrás de mim daqui a menos de uma hora, tentando enfiar uma flecha nas minhas costas caso não consigam me arrastar para uma cela? Arrastar a mim e a Elayne também.

Irritado, Galad sacudiu a cabeça. Ou talvez estivesse ofendido.

— Quantas vezes eu tenho que repetir? Eu jamais deixaria minha irmã em perigo. Nem você.

Nynaeve achou bem irritante notar que ficara chateada com aquela pausa, deixando claro que ela só fora acrescentada depois. Não era nenhuma boba, daquelas que perdiam a sensatez por um par de olhos doces e incrivelmente penetrantes ao mesmo tempo.

— Se você diz — afirmou ela, fazendo-o voltar a balançar a cabeça.

— Me diga onde vocês estão hospedadas e eu darei um jeito de ir avisar ou mandar um recado assim que encontrar um barco adequado.

Se Elayne tivesse razão, Galad era tão capaz de mentir quanto uma Aes Sedai que tivesse feito os Três Juramentos, mas, ainda assim, Nynaeve hesitou. Qualquer erro ali poderia ser seu último. Ela tinha direito de correr riscos sozinha, mas aquele também envolvia Elayne. E Thom e Juilin, aliás. Independentemente do que quisessem pensar, ambos ainda eram responsabilidade dela. Mas Nynaeve estava ali, e a decisão teria de ser dela. Não que fosse ser diferente de qualquer jeito, para dizer a verdade.

— Pela Luz, mulher, o que mais você quer de mim? — rosnou Galad, erguendo as mãos como se quisesse segurá-la pelos ombros. A lâmina de Uno surgiu entre eles feito um raio de aço reluzente, mas o irmão de Elayne apenas a afastou para o lado como se fosse um galho, sem dar muita importância. — Não quero machucá-la, nem agora nem nunca. Juro pelo nome da minha mãe. Você não diz que é o que é? Eu sei o que você é. E o que não é. Pode ser que metade da razão para eu usar isto — Galad tocou o manto cor de neve — seja a Torre ter mandado vocês embora, você, Elayne e Egwene, por só a Luz sabe o quê, mesmo vocês sendo o que são. Foi como mandar um garoto que acabou de aprender a manejar uma espada para a batalha, e eu nunca vou perdoá-las por isso. Ainda há tempo para vocês desistirem. Não precisam empunhar essa espada. A Torre é perigosa demais para você ou para a minha irmã, ainda mais agora. Metade do mundo se tornou perigoso demais para vocês! Me deixe ajudá-las a chegarem a um lugar seguro. — Sua voz era firme, embora tivesse adquirido um quê de aspereza. — Eu imploro, Nynaeve. Se acontecesse alguma coisa com Elayne… Quase desejo que Egwene estivesse aqui com vocês, para que eu pudesse… — Passando a mão pelo cabelo, Galad olhou para um lado e para o outro, buscando um jeito de convencê-la. Uno e Ragan tinham as lâminas em riste, mas Galad nem parecia notar. — Em nome da Luz, Nynaeve, me deixe fazer o que eu posso, por favor.

Foi um detalhe que, por fim, fez a balança pender na mente dela: estavam em Ghealdan. Amadícia era o único local em que era crime uma mulher canalizar, e eles estavam na margem oposta do rio. Isso fazia com que só restassem os juramentos de Galad como Filho da Luz para lutar contra o dever dele para com Elayne. Nesse conflito, Nynaeve achou que o sangue venceria. Além disso, ele de fato era bonito demais para que deixasse Uno e Ragan o matarem. Não que isso tenha tido alguma relação com a decisão que tomou, claro.

— Estamos no espetáculo de Valan Luca — confessou ela, por fim.

Galad pareceu aturdido e franziu o cenho.

— No espetáculo de…? Em um dos conjuntos itinerantes, você diz? — Havia um misto de incredulidade e desgosto na voz do homem. — O que, sob a Luz, estão fazendo com esse tipo de companhia? O pessoal que mantém esses espetáculos não é nada diferente de… Deixa para lá. Se estão precisando de umas moedas, eu posso arranjar. O bastante para pôr vocês em uma estalagem decente.

Galad soou como se tivesse certeza de que Nynaeve faria como ele desejava. Não foi um “Posso lhe ajudar com algumas coroas?” ou um “Quer que eu encontre um quarto para vocês?”. Ele achava que elas deveriam ficar em uma estalagem, então era para uma estalagem que elas iriam. O homem a conhecia o suficiente para saber que ela se esconderia em uma viela, mas, ao que parecia, não sabia muito mais que isso. Além do quê, havia motivos para que permanecessem com Luca.

— Você acha que em Samara há algum quarto, ou mesmo um depósito de feno, que não esteja ocupado? — perguntou ela, um tantinho mais azeda do que pretendia.

— Tenho certeza de que consigo encontrar…

Ela o interrompeu.

— O último lugar em que qualquer pessoa nos procuraria é no meio dos espetáculos. — O último lugar em que qualquer pessoa, exceto Moghedien, pelo menos, procuraria. — Você não concorda que temos que evitar o máximo possível que nos vejam? Se realmente encontrasse um quarto, seria muitíssimo provável que tivesse que tirar alguém dele. Um Filho da Luz tão empenhado em garantir um quarto para duas mulheres? Isso atiçaria línguas e atrairia olhares que nem um monte de estrume atrai moscas.

Ele não gostou daquilo, pela careta e pelo olhar que lançou a Uno e Ragan, como se fosse culpa dos dois, mas tinha bom senso suficiente para ver que ela estava certa.

— Não é um lugar adequado para nenhuma das duas, mas provavelmente é mais seguro do que qualquer outro dentro da cidade. Como você pelo menos já concordou com Caemlyn, não toco mais nesse assunto.

Nynaeve se manteve inexpressiva e o deixou pensar o que bem entendesse. Se Galad achava que ela tinha prometido o que não tinha, o problema era dele. Porém, Nynaeve precisava mantê-lo o mais longe possível do espetáculo. Bastaria uma olhadela na irmã com aquelas calças brancas de lantejoulas e a briga eclipsaria qualquer motim que Masema pudesse causar.

— Você vai ter que ficar bem longe do conjunto itinerante, lembre disso. Até encontrar um navio, pelo menos. Aí é só vir aos carroções dos artistas no cair da noite e perguntar por Nana. — Ele gostou menos ainda dessa parte, se é que era possível, mas ela o alertou com firmeza. — Não vi um único Filho da Luz por perto de nenhum dos espetáculos. Se você visitar um deles, não acha que as pessoas vão perceber e perguntar por quê?

O sorriso de Galad ainda foi lindo, mas mostrou dentes demais.

— Você tem resposta para tudo, ao que parece. Alguma objeção a pelo menos eu lhe escoltar de volta para lá?

— Claro que sim. Do jeito que a coisa está, já vai haver boatos, já que umas cem pessoas devem ter percebido esta nossa conversa. — Não conseguia mais ver a rua para além dos três homens, mas não tinha dúvida de que os pedestres ainda estavam olhando para a viela, além de Uno e Ragan não terem tornado a embainhar as espadas. — Mas, se você me acompanhar, seremos vistos por dez vezes mais gente.

Galad se contraiu em um misto de pesar e diversão.

— Resposta para tudo — resmungou. — Mas você tem razão. — Estava claro que ele gostaria que ela não tivesse. — Me escutem, shienaranos — disse, virando a cabeça e com a voz, de uma hora para outra, feito aço. — Eu sou Galadedrid Damodred, e esta mulher está sob a minha proteção. Quanto à acompanhante dela, eu consideraria minha vida uma perda pequena em troca de salvá-la do menor dos perigos. Se vocês permitirem que qualquer uma das duas sofra esse menor dos perigos, eu encontro vocês dois e os mato. — Ignorando tão completamente a expressão súbita e perigosa nos rostos dos shienaranos quanto ignorara as espadas, ele tornou a encarar Nynaeve. — Suponho que você continuará não me dizendo onde Egwene está.

— Tudo o que você precisa saber é que ela está bem longe daqui. — Ela cruzou os braços no peito e sentiu o coração batendo contra as costelas. Será que estava cometendo um erro perigoso por conta de um rosto bonito? — E mais segura do que qualquer ação sua poderia deixá-la.

Ele não pareceu acreditar, mas não levou o assunto adiante.

— Com sorte, encontro um navio em um ou dois dias. Até lá, não saia de perto desse… espetáculo de Valan Luca. Seja discreta e evite ser notada. O máximo que seu cabelo desta cor lhe permitir. E diga para Elayne não fugir de mim de novo. A Luz as iluminou por me permitir encontrá-las ainda inteiras, e terá que iluminar com o dobro do brilho para mantê-las longe de perigo, caso tentem ficar zanzando por Ghealdan. Os bandidos blasfemos desse Profeta estão por toda parte, não têm o menor respeito pela lei e pelas pessoas, e isso sem falar nos salteadores, que se aproveitam da desordem. A própria Samara é um ninho de vespas, mas, se você ficar quietinha e convencer a cabeça-dura da minha irmã a fazer o mesmo, vou encontrar um jeito de tirá-las daqui antes que sejam picadas.

Nynaeve precisou se esforçar para segurar a língua. Galad pegara tudo que ela dissera e transformara em ordens! A próxima providência do homem seria embalar tanto ela quanto Elayne em lã e deixar as duas sentadas em uma prateleira! Não seria melhor se alguém fizesse mesmo isso?, perguntou uma vozinha diminuta. Você já não causou problemas suficientes fazendo tudo como queria? Nynaeve mandou a tal voz ficar quieta. A voz não lhe deu ouvidos e, em vez disso, começou a listar desastres e quase desastres provocados por sua própria teimosia.

Galad pareceu tomar o silêncio de Nynaeve como concordância, afastou-se dela… e parou. Uno e Ragan haviam se movido para bloquear o caminho dele até a rua, olhando para ela com aquela calma estranha e ilusória que os homens adotavam quando estavam a um fiapo de atacar. O ar pareceu crepitar — até ela gesticular, apressada. Os shienaranos baixaram as lâminas e se puseram ao lado dela, e Galad tirou as mãos da espada, passou pelos três e se misturou à multidão sem olhar para trás.

Nynaeve olhou feio tanto para Uno quanto para Ragan e saiu apressada na direção oposta. Lá estava ela, arranjando as coisas da melhor maneira possível, e os dois quase tinham posto tudo a perder. Homens pareciam achar que violência resolvia tudo. Se ela tivesse um pedaço de pau bem robusto, teria espancado os três até tomarem juízo.

Os shienaranos pareciam ter criado algum juízo. Os dois a alcançaram, as espadas novamente embainhadas às costas, e seguiram-na sem dar um só pio mesmo quando, por duas vezes, ela virou na rua errada e precisou dar meia-volta. Foi bom para eles não terem dito nada. Nynaeve já estava farta de ter que se segurar. Primeiro Masema, depois Galad. Tudo o que ela queria era a menor das desculpas para dizer umas verdades a alguém. Em especial para aquela vozinha em sua cabeça, já reduzida a um zumbido de inseto, mas que se recusava a se calar.

Enquanto saía de Samara por aquele caminho para carroças com tráfego esparso, a voz se recusava a ser ignorada. Nynaeve se preocupava com a arrogância de Rand, mas a dela colocara a si mesma e a outras pessoas em tanto perigo quanto se tivesse sido negligente. Com Birgitte, ultrapassara os limites, ainda que a mulher estivesse viva. O melhor seria Nynaeve não voltar a enfrentá-las, nem a Ajah Negra nem Moghedien, até que alguém com conhecimento decidisse o que deveria ser feito. Sua mente protestou, mas ela a calou com a mesma firmeza que sempre tivera com Thom ou Juilin. Iria a Salidar e repassaria a questão para as Azuis. Era isso que ia fazer. Estava decidida.

— Você comeu alguma coisa que lhe fez mal? — indagou Ragan. — Está com cara de quem comeu pimenta madura.

Ela lhe lançou um olhar que o fez calar a boca e seguiu em frente. Os dois shienaranos acompanhavam o ritmo, um de cada lado.

O que Nynaeve ia fazer com eles? Precisava encontrar uma serventia para aqueles homens, com certeza. A aparição deles fora providencial demais para ser desperdiçada. No mínimo, eram dois pares a mais de olhos — bem, só três olhos, na verdade, e ela se acostumaria a olhar para aquele tapa-olho sem ficar com medo, nem que fosse a última coisa que fizesse —, e mais gente à procura de um navio poderia significar encontrá-lo mais rápido. Não haveria problema nenhum caso Masema ou Galad encontrassem primeiro, mas ela não queria que nenhum dos dois soubesse mais sobre sua vida do que era obrigada a revelar. Não sabia o que eles eram capazes de fazer.

— Vocês estão me acompanhando porque Masema mandou cuidarem de mim, ou porque Galad mandou?

— Maldição! Que diferença isso faz? — resmungou Uno. — Se o Lorde Dragão a convocou, você… — Ele se interrompeu, o cenho franzido, quando ela levantou o dedo. Ragan encarou aquele dedo como se fosse uma arma.

— Vocês pretendem nos ajudar a encontrar Rand?

— Não temos nada melhor para fazer — respondeu Ragan, seco. — Pelo andar da carruagem, não vamos voltar a ver Shienar até estarmos banguelas e de cabelos grisalhos. Talvez possamos cavalgar com você e Elayne até Tear ou onde quer que ele esteja.

Nynaeve não havia considerado aquela possibilidade, mas fazia sentido. Mais dois para ajudar Thom e Juilin com as tarefas e com a guarda. Não era preciso deixá-los a par de quanto tempo aquilo poderia levar ou de quantas paradas e desvios poderiam esperar por eles no caminho. As Azuis em Salidar talvez não as deixassem avançar mais. Assim que alcançassem as Aes Sedai, voltariam a ser apenas Aceitas. Pare de pensar nisso! Você vai encontrá-las!

A multidão que aguardava diante da espalhafatosa placa de Luca não parecia menor do que antes. Uma torrente de pessoas fluía para o prado para se juntar à aglomeração enquanto outro fluxo serpenteava para fora, comentando sobre o que acabara de ver. Vez ou outra, os cavalos-javali ficavam visíveis, empinados acima do muro de tela, arrancando os “oohs” e “aahs” dos que esperavam para entrar. Cerandin estava botando os animais para trabalhar de novo. A Seanchan sempre cuidava para que os s’redit descansassem bastante. Era muito rígida com isso, independentemente da vontade de Luca. Os homens obedeciam quando percebiam que não havia outra escolha. Geralmente.

A pouca distância da grama marrom e pisoteada, Nynaeve parou e se virou para encarar os dois shienaranos. Eles continuavam com o rosto tranquilo, mas pareciam adequadamente cautelosos, embora, no caso de Uno, isso envolvesse brincar com o tapa-olho de um jeito que a deixava nauseada. O povo que entrava ou saía do espetáculo não dava a mínima para eles.

— Então não vai ser por causa de Masema ou de Galad — declarou, com firmeza. — Se vão viajar comigo, vão fazer conforme eu disser, ou então podem tomar outro rumo, já que não vou aceitar nenhum dos dois.

Claro que eles tiveram de se entreolhar antes de balançar a cabeça em concordância.

— Se é assim que tem que ser, maldição — rosnou Uno —, então tudo bem. Se você não tem ninguém para cuidar da sua segurança, nunca vai conseguir sobreviver para o maldito reencontro com o Lorde Dragão. Algum fazendeiro tripa mole vai acabar servindo você no café da manhã só por causa dessa sua língua. — Ragan lhe lançou um olhar reservado que indicava concordar com cada palavra, mas que tinha imensas dúvidas sobre Uno ter resolvido vocalizá-las. Ragan, ao que parecia, era um homem sábio.

Desde que aceitassem os termos de Nynaeve, o motivo não importava muito. Por enquanto. Mais tarde haveria bastante tempo para esclarecer tudo.

— Não duvido que os outros também vão concordar — opinou Ragan.

— Outros? — perguntou ela, atônita. — Está me dizendo que não são só vocês dois? Mais quantos?

— Agora somos quinze. Acho que nem Bartu nem Nengar vão querer vir.

— Ficam atrás do Profeta. — Uno virou a cabeça e cuspiu. — Só quinze. Sar caiu daquele maldito pico nas montanhas, e Mendao teve que se meter em um maldito duelo contra três Caçadores da Trombeta, e…

Nynaeve estava ocupada demais tentando não ficar boquiaberta para escutar o que diziam. Quinze! Não pôde se impedir de calcular mentalmente quanto custaria alimentar quinze homens. Mesmo quando não estavam com muita fome, Thom e Juilin comiam mais do que ela e Elayne juntas. Luz!

Por outro lado, com quinze soldados shienaranos, não havia necessidade de ficar esperando um navio. Um barco com certeza era a maneira mais rápida de viajar — agora ela se lembrava do que ouvira a respeito de Salidar: uma cidade à beira do rio, ou bem perto, e um barco poderia levá-las direto para lá —, mas uma escolta de shienaranos daria ao carroção a mesma segurança, tanto contra Mantos-brancos e bandidos quanto contra seguidores do Profeta. Só que bem mais lento. E um único carroção partindo de Samara com uma escolta dessas certamente chamaria a atenção. Para Moghedien ou para a Ajah Negra, seria como ter uma placa apontando a partida delas. Vou deixar as Azuis cuidarem delas e pronto!

— Qual o problema? — perguntou Ragan.

— Eu não devia ter mencionado como Sakaru morreu — disse Uno, arrependido. Sakaru? Devia ter sido depois que ela parou de prestar atenção. — Eu não passo tanto tempo perto dessas mald… perto de damas. Esqueço que vocês têm fraqueza nas trip… quer dizer… é… o estômago delicado. — Se ele não parasse de puxar aquele tapa-olho, ia ver como o estômago dela era delicado.

A quantidade não mudava nada. Se era bom ter dois shienaranos, ter quinze era maravilhoso. Seu próprio exército particular. Não seria preciso se preocupar com Mantos-brancos, salteadores ou motins, nem mesmo se havia ou não se equivocado com relação a Galad. Quantos presuntos quinze homens comeriam por dia?

— Então tudo bem. Toda dia, assim que anoitecer, um de vocês, e só um, vai vir até aqui e perguntar por Nana. É o nome pelo qual me conhecem. — Não havia motivos para dar aquela ordem, exceto para ir criando neles o hábito de obedecê-la. — Elayne é conhecida como Morelin, mas perguntem por Nana. Se precisarem de dinheiro, me procurem, e não a Masema. — Nynaeve teve que suprimir uma careta ao dizer isso. Ainda havia ouro no fogão do carroção, mas Luca não cobrara suas cem coroas, e cobraria. Porém, sempre havia as joias, caso a necessidade surgisse. Ela precisava se assegurar de que os homens se afastariam de Masema. — Fora isso, nenhum de vocês deve vir me procurar ou ver o espetáculo. — Se não dissesse aquilo, era provável que eles montassem guarda ou fizessem alguma idiotice do tipo. — A menos que apareça um barco. Nesse caso, venham correndo na mesma hora. Estão me entendendo?

— Não — resmungou Uno. — Por que precisamos ficar longe, mald…? — Ele recuou a cabeça quando Nynaeve ergueu um dedo em riste diante de seu nariz.

— Você se lembra do que eu falei sobre seu linguajar? — Ela precisou se obrigar a encará-lo. Aquele tapa-olho vermelho fazia o estômago de Nynaeve dar piruetas. — Caso não lembre, vai aprender por que os homens de Dois Rios têm línguas decentes dentro da boca.

Ela observou Uno ponderar a questão. O homem não sabia qual era a ligação dela com a Torre Branca, só que a ligação existia. Nynaeve poderia ser uma agente da Torre, ou treinada pela Torre. Ou até uma Aes Sedai, ainda que recém-formada. E a ameaça foi vaga o bastante para que ele interpretasse tudo da pior maneira. Nynaeve aprendera aquela técnica muito antes de ouvir Juilin explicá-la a Elayne.

Quando pareceu que a ideia fora assimilada — e antes que o sujeito pudesse fazer quaisquer perguntas —, ela baixou a mão.

— Você vai ficar longe pelo mesmo motivo de Galad: para não chamar atenção. Quanto ao resto, vai fazer porque eu disse que é para fazer. Se eu tiver que lhe explicar todas as minhas decisões, não vou ter tempo para mais nada, então é melhor aceitar tudo de bom grado.

Foi um comentário digno de uma Aes Sedai. Além disso, os homens não tinham escolha, caso pretendessem ajudá-la a chegar até Rand, como pensavam que iam fazer. Ela estava se sentindo bastante satisfeita consigo mesma ao enxotá-los de volta para Samara e passar às pressas pela multidão na fila e por baixo da placa que exibia o nome de Valan Luca.

Para sua surpresa, havia uma novidade no espetáculo. Em uma nova plataforma não muito longe da entrada, uma mulher de calça amarela estava de ponta-cabeça com os braços abertos bem esticados e um par de pombas brancas em cada mão. Não, não estava apoiada com a cabeça. A mulher se agarrava a uma espécie de moldura de madeira com os dentes, e nela se equilibrava. Enquanto Nynaeve observava, perplexa, a peculiar acrobata baixou as mãos até a plataforma por um momento e foi se dobrando ao meio até parecer estar sentada sobre a própria cabeça. Ainda assim, não foi o bastante. As pernas se curvaram para baixo, à frente do corpo, e depois, de modo impossível, de volta para baixo dos braços. Então ela transferiu as pombas para as solas do pé, que, àquela altura, eram os pontos mais altos da bola contorcida em que ela se transformara. Os espectadores ofegaram e aplaudiram, mas a cena deixou Nynaeve arrepiada. Era uma recordação demasiado forte do que Moghedien fizera com ela.

Não é por isso que eu pretendo entregá-la para as Azuis, disse para si mesma. Só não quero causar outra calamidade. Era verdade, mas Nynaeve também temia que, na próxima vez, não escapasse tão fácil ou tão ilesa. Jamais admitiria aquilo para outra alma. Não gostava de admitir nem para si mesma.

Lançando um último olhar intrigado na direção da contorcionista — Nynaeve não conseguira nem começar a decifrar a forma em que a mulher se contorcera em seguida —, ela se virou. E tomou um susto quando Elayne e Birgitte surgiram de repente ao seu lado, saindo da multidão. Elayne usava um manto que cobria decentemente as calças e o casaco branco, e Birgitte só faltava ostentar o vestido vermelho decotado. Não, não faltava, não. Estava ainda mais ereta que o normal e com a trança jogada para trás, para remover qualquer mínima cobertura. Nynaeve dedilhava o nó do xale na cintura, desejando que cada olhadela para Birgitte não a fizesse se lembrar de quanto ela própria estaria exibindo assim que a lã cinza fosse retirada. A aljava da outra mulher estava pendurada no cinto, e ela carregava consigo o arco que Luca lhe arrumara. As horas certamente já avançavam demais para que ela realizasse tiros.

Uma olhada para o céu sinalizou para Nynaeve que estava equivocada. Apesar de tudo o que acontecera, o sol ainda estava bem acima do horizonte. As sombras já se alongavam bastante, mas não o suficiente para dissuadir Birgitte, suspeitou.

Tentando disfarçar que estava verificando o sol, ela fez um meneio na direção da mulher com a calça amarela, que àquela altura começara a se contorcer de um jeito que Nynaeve sabia que era impossível. E ainda se equilibrava com os dentes.

— De onde ela veio?

— Luca contratou — respondeu Birgitte calmamente. — Também comprou alguns leopardos. O nome dela é Muelin.

Enquanto Birgitte estava calma e controlada, Elayne quase que tremia de emoção.

— De onde ela veio? — gaguejou. — De um espetáculo que uma turba quase destruiu!

— Eu soube — disse Nynaeve —, mas o importante não é isso. Eu…

— Não é importante! — Elayne olhou para o céu, como se buscasse alguma orientação. — Você também soube por quê? Não sei se foram os Mantos-brancos ou esse Profeta, mas alguém inflamou uma multidão dizendo que… — Ela olhou ao redor, sem parar de falar, e apenas baixou a voz. Ninguém do público havia parado, mas todos que passavam ficavam olhando para as duas óbvias artistas ali. — … que uma das mulheres do espetáculo talvez usasse xale. — Elayne enfatizou a última palavra. — São tolos de pensar que ela estaria em um conjunto itinerante, mas, em todo caso, você e eu estamos. E aí você sai correndo para a cidade sem dizer nada a ninguém. Já escutamos de tudo, desde um homem careca te carregando nos ombros até você beijando um shienarano e saindo com ele de braços dados.

Nynaeve ainda estava boquiaberta quando Birgitte completou:

— Luca estava chateado, com qualquer das versões. Ele disse… — A mulher pigarreou e deixou a voz mais grave. — “Então ela gosta de homens rudes, é? Bem, eu posso ser tão rude quanto um cavalo selvagem!”. E lá foi ele, levando dois rapazes com ombros que nem os de pedreiros s’Gandin, para buscar você. Thom Merrilin e Juilin Sandar também foram, e bem irritados. Isso não melhorou nada o humor de Luca, mas todos estavam tão aborrecidos com você que não havia espaço para sentirem raiva uns dos outros.

Por um momento, Nynaeve encarou-as, confusa. Ela gostava de homens rudes? O que ele quis dizer com…? Aos poucos, foi assimilando, e soltou um gemido.

— Ah, era só o que me faltava. — E Thom e Juilin soltos por Samara. Só a Luz sabia em que confusões poderiam se meter.

— Eu ainda quero saber o que você pensava que estava fazendo — disse Elayne —, mas estamos perdendo tempo aqui.

Uma de cada lado, Nynaeve permitiu que as duas a levassem para longe da multidão, mas, mesmo com a notícia sobre Luca e os outros, estava satisfeita com seu trabalho naquele dia.

— Com sorte, devemos estar longe daqui em um ou dois dias. Se Galad não encontrar um barco para nós, Masema vai encontrar. Ele é o tal Profeta. Você se lembra de Masema, Elayne. Aquele shienarano da cara azeda que vimos… — Ao notar que Elayne parara, Nynaeve fez uma pausa para ela poder alcançá-las.

— Galad? — disse ela, descrente, esquecendo-se de manter o manto fechado. — Você viu… você falou com Galad? E com o Profeta? Deve ter falado, senão como eles estariam tentando encontrar um barco? Você tomou chá com eles, ou só se encontrou com os dois em um salão qualquer? Foi para lá que o careca levou você, sem dúvida. Talvez o Rei de Ghealdan também estivesse lá, não? Você poderia fazer o favor de me convencer de que estou sonhando, para que eu possa acordar?

— Trate de se acalmar — respondeu Nynaeve, com firmeza. — Agora é uma rainha, não um rei, e sim, ela estava lá. E ele não era careca, usava um coque. Estou falando do shienarano, não do Profeta. Esse é tão careca quanto…

Nynaeve encarou Birgitte até ela parar de dar risadinhas. O olhar se atenuou um pouco quando se lembrou de quem era a mulher e do que fizera a ela, mas se Birgitte não tivesse feito uma expressão neutra, poderiam ter descoberto se Nynaeve teria coragem ou não de estapeá-la. As três voltaram a caminhar, e Nynaeve continuou, da maneira mais comedida que pôde:

— Elayne, o que aconteceu foi o seguinte: eu vi Uno, um dos shienaranos que estava em Falme, assistindo você andar na corda. Aliás, a opinião dele sobre a Filha-herdeira de Andor ficar mostrando as pernas não é melhor que a minha. Seja como for, Moiraine o mandou para cá depois de Falme, mas…

Enquanto abriam caminho pelo meio da multidão, Nynaeve relatou tudo bem rápido, não dando a menor importância para as exclamações cada vez mais incrédulas de Elayne e respondendo às perguntas das duas com o mínimo possível de explicação. Apesar de um breve interesse pelas sucessões no trono de Ghealdan, Elayne se concentrou no que exatamente Galad dissera e no porquê de Nynaeve ter sido tola o bastante para se aproximar do Profeta, quem quer que ele fosse. Aquela palavra — tola — pipocou com bastante frequência e obrigou Nynaeve a manter o próprio temperamento em rédea curta. Podia até duvidar de que seria capaz de esbofetear Birgitte, mas Elayne não tinha toda essa proteção, Filha-herdeira ou não. Se repetisse aquilo mais algumas vezes, a garota acabaria descobrindo. Birgitte estava mais interessada nas intenções de Masema, de um lado, e nos shienaranos, do outro. Parecia que ela havia se deparado com pessoas das Terras da Fronteira em vidas anteriores, embora as nações tivessem nomes diferentes, e, em grande medida, as enxergava com bons olhos. Ela falou pouco, na verdade, mas deu a impressão de aprovar que os shienaranos se juntassem ao grupo.

Nynaeve esperava que as notícias sobre Salidar as assustassem, entusiasmassem ou resultassem em qualquer coisa diferente do que ocorreu. Birgitte encarou com muita naturalidade, como se ela tivesse dito que as três iriam jantar com Thom e Juilin naquela noite. Só pretendia ir aonde Elayne fosse, e tudo o mais pouco importava. Elayne pareceu cheia de dúvidas. Dúvidas!

— Tem certeza? Você se esforçou tanto para lembrar e… Bem, me parece ridiculamente fortuito que Galad tenha simplesmente dito o nome do lugar para você.

Nynaeve a encarou.

— Claro que eu tenho certeza. Coincidências de fato acontecem. Há de ser o que a Roda tecer, como você já deve ter ouvido falar. Agora eu lembro que ele também já havia mencionado o nome em Sienda, mas eu estava tão preocupada com você estar preocupada com ele que nem… — Ela não concluiu a frase.

Tinham chegado a uma área longa e estreita demarcada por cordas, próxima à cerca norte. Em uma das extremidades repousava algo parecido com uma placa de madeira, com duas passadas de largura e outras duas de altura. As pessoas se amontoavam junto às cordas em quatro fileiras, as crianças agachadas na frente ou agarradas à perna de um pai ou às saias de uma mãe. Um burburinho irrompeu quando as três apareceram. Nynaeve teria empacado ali mesmo, mas Birgitte segurara seu braço, então era andar ou ser arrastada.

— Achei que estávamos indo para o carroção — comentou. Ocupada com os relatos, prestara pouca atenção aonde estavam indo.

— Não, a menos que você queira me ver atirando no escuro — retrucou Birgitte. Ela parecia disposta demais a experimentar.

Nynaeve queria ter feito algum outro comentário diferente de um grunhido. O trecho de cerca preencheu sua visão à medida que avançaram em direção ao espaço aberto, distanciando-se dos espectadores. Até seus murmúrios cada vez mais intensos soavam distantes. A cerca parecia a uma milha de distância de onde Birgitte ficaria.

— Você tem certeza de que ele disse que jurava pela… nossa mãe? — questionou Elayne, amargurada. Reconhecer Galad como irmão ainda lhe era desagradável.

— O quê? Tenho, sim. Foi o que eu disse, não foi? Escute: se Luca está na cidade, não tem como ele ficar sabendo se fizemos o número ou não até que já seja tarde demais para… — Nynaeve sabia que estava gaguejando, mas parecia não conseguir fazer a língua parar. Por algum motivo, nunca se dera conta de como cem passadas eram uma distância enorme. Em Dois Rios, homens adultos sempre atiravam em alvos duas vezes mais longe que isso. Só que nenhum desses alvos jamais tinha sido ela. — É que… já está muito tarde. As sombras… O brilho… Nós realmente deveríamos fazer isso pela manhã. Quando a luz estiver…

— Se ele jurou por ela — interrompeu Elayne, como se nem estivesse ouvindo —, então é porque, aconteça o que acontecer, vai manter a palavra. É mais fácil ele quebrar um juramento pela esperança dele na salvação e no renascimento do que esse. Acho que… não, eu sei que podemos confiar nele. — Mas não soou particularmente feliz com aquilo.

— A luz está boa — afirmou Birgitte, uma pitada de empolgação na voz calma. — Posso tentar com uma venda nos olhos. Acho que esse pessoal vai querer que pareça bem difícil.

Nynaeve abriu a boca, mas não emitiu som nenhum. Desta vez, teria ficado feliz com um grunhido. Birgitte só estava fazendo uma piadinha de mau gosto. Só podia estar brincando.

As duas a posicionaram com as costas contra a cerca áspera de madeira, e Elayne começou a puxar o nó do xale enquanto Birgitte se virava na direção de onde tinham vindo e retirava uma flecha da aljava.

— O que você fez hoje foi muito tolo — reclamou Elayne. — Nós podemos confiar no juramento de Galad, tenho certeza, mas você não tinha como saber de antemão o que ele era capaz de fazer. E procurar o Profeta! — Ela puxou o xale dos ombros de Nynaeve sem delicadeza. — Não tinha como você ter a menor ideia do que ele poderia fazer. Você deixou todo mundo preocupado e colocou tudo em risco!

— Eu sei — conseguiu responder Nynaeve. O sol lhe batia nos olhos. Não tinha mais como enxergar Birgitte. Mas Birgitte podia vê-la. Claro que podia. O importante era isso.

Elayne olhou para ela, desconfiada.

— Sabe?

— Sei que arrisquei tudo. Eu deveria ter conversado com você, perguntado. Sei que fui tola. Não deveriam me deixar sair sem alguém tomando conta. — Tudo saiu de um só fôlego. Birgitte tinha de estar enxergando.

A desconfiança de Elayne se transformou em preocupação.

— Você está bem? Se não quiser mesmo fazer isto…

Elayne achava que ela estava com medo. Nynaeve não podia, e não iria, permitir isso. Forçou um sorriso e torceu para que seus olhos não estivessem muito arregalados. Sentia o rosto tenso.

— Claro que eu quero. Estou até bem ansiosa, na realidade.

Elayne lhe lançou um olhar de dúvida, mas acabou anuindo.

— Você tem certeza a respeito de Salidar?

Sem esperar resposta, a Filha-herdeira afastou-se às pressas para o lado e dobrou o xale. Por algum motivo, Nynaeve não conseguiu sentir a indignação adequada por aquela pergunta, ou por Elayne não esperar pela resposta. Sua respiração estava tão acelerada que só tinha uma vaga consciência do que poderia escapulir pelo decote do vestido, ainda que nem isso tenha sido capaz de acalmá-la. O sol preenchia sua visão. Se estreitasse os olhos, talvez fosse capaz de divisar Birgitte, mas seus olhos tinham vontade própria e se arregalavam cada vez mais. Àquela altura, não havia nada que pudesse fazer. Era um castigo por correr riscos bobos. Nynaeve só conseguia sentir o menor dos ressentimentos por ser castigada mesmo depois de cuidar de tudo tão bem. E Elayne nem chegara a acreditar sobre Salidar! Teria de aceitar aquilo estoicamente. Teria de…

Vindo aparentemente do nada, uma flecha acertou a madeira ao lado de seu pulso direito, e aquela determinação estoica se desfez em um discreto gemido. Teve que usar toda sua força de vontade para manter os joelhos eretos. Uma segunda flecha raspou o outro pulso e produziu um ganido um pouco mais alto. A possibilidade de Nynaeve parar as flechas de Birgitte era a mesma de ficar em silêncio. Flecha a flecha, as exclamações foram aumentando, e lhe pareceu que o público estava quase que comemorando suas lamúrias. Quanto mais alto gritava, mais alto eles vibravam e aplaudiam. Quando ela acabou toda delineada, dos joelhos à cabeça, os aplausos foram estrondosos. Na verdade, Nynaeve sentiu certa irritação ao final, quando toda a multidão saiu correndo para se aglomerar em torno de Birgitte, deixando-a lá, parada, olhando para as hastes emplumadas que a rodeavam. Algumas ainda tremiam. Ela ainda tremia.

Nynaeve se afastou e partiu em direção aos carroções o mais rápido que pôde, antes que alguém percebesse o quanto suas pernas estavam vacilantes. Não que qualquer pessoa ali estivesse prestando atenção nela. Tudo o que Nynaeve fizera fora ficar lá, parada, rezando para que Birgitte não espirrasse nem tivesse uma coceira. E, no dia seguinte, teria de passar por tudo aquilo de novo. Ou isso ou deixar que Elayne — ou, pior, Birgitte — descobrisse que ela não tinha condições de encarar a situação.

Quando Uno apareceu naquela noite, procurando por Nana, ela lhe disse com absoluta clareza para incitar Masema o máximo que ousasse e para encontrar Galad e lhe dizer que ele tinha de encontrar um barco depressa, fossem quais fossem as exigências. Depois, Nynaeve foi para a cama sem comer e tentou se forçar a acreditar que era capaz de convencer Elayne e Birgitte de que estava doente demais para ficar de pé contra aquela madeira. O problema era que estava bem certa de que as duas saberiam exatamente qual era sua doença. O fato de que até Birgitte provavelmente demonstrasse compaixão só piorava tudo. Um daqueles tolos tinha que encontrar um barco!

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