Para Jane,

com agradecimentos

a Rick e Heidi, pelo empréstimo de seu evento estável,

a Mogens e Andy e a todo mundo em Huntsham Court,

por alguns eventos instáveis,

e especialmente a Sonny Mehta,

por permanecer estável em meio a todos os eventos.

Prólogo

Muito além, nos confins inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um pequeno sol amarelo e esquecido.

Girando em torno deste sol, a uma distância de cerca de 148 milhões de quilômetros, há

um planetinha verde-azulado absolutamente insignificante, cujas formas de vida, descendentes de primatas, são tão extraordinariamente primitivas que ainda acham que relógios digitais são uma grande idéia.

Este planeta tem - ou melhor, tinha - o seguinte problema: a maioria de seus habitantes estava quase sempre infeliz. Foram sugeridas muitas soluções para esse problema, mas a maior parte delas dizia respeito basicamente à movimentação de pequenos pedaços de papel colorido com números impressos, o que é curioso, já que no geral não eram os tais pedaços de papel colorido que se sentiam infelizes.

E assim o problema continuava sem solução. Muitas pessoas eram más, e a maioria delas era muito infeliz, mesmo as que tinham relógios digitais.

Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar.

E, então, uma quinta-feira, quase dois mil anos depois que um homem foi pregado num pedaço de madeira por ter dito que seria ótimo se as pessoas fossem legais umas com as outras para variar, uma garota, sozinha numa pequena lanchonete em Rickmansworth, de repente compreendeu o que tinha dado errado todo esse tempo e finalmente descobriu como o mundo poderia se tornar um lugar bom e feliz. Desta vez estava tudo certo, ia funcionar, e ninguém teria que ser pregado em coisa nenhuma.

Infelizmente, porém, antes que ela pudesse telefonar para alguém e contar sua descoberta, aconteceu uma catástrofe terrível e idiota e a idéia perdeu-se para todo o sempre. Esta é a história dessa garota.

capítulo 1

Naquela noite escureceu cedo, o que era normal para aquela época do ano. Fazia frio e ventava bastante, o que também era normal.

Começou a chover, o que era particularmente normal.

Uma espaçonave aterrissou, o que não era.

Não havia ninguém que pudesse vê-la, exceto alguns quadrúpedes incrivelmente burros que não tinham a menor idéia do que pensar a respeito, ou mesmo se deviam pensar alguma coisa, ou comer aquela coisa, ou o que fosse. Fizeram então o que sempre faziam, que era sair correndo e tentar esconder-se um debaixo do outro, o que nunca dava certo. A nave deslizou das nuvens, aparentemente equilibrando-se em um único feixe de luz. De longe, dificilmente seria notada em meio aos relâmpagos e às nuvens carregadas, mas vista de perto era estranhamente bela - uma nave cinzenta, elegantemente esculpida: bem pequena.

É claro que ninguém pode saber ao certo o tamanho ou a forma das diferentes espécies, mas, se você considerasse as descobertas do último relatório do Censo Galáctico Central como um guia preciso de médias estatísticas, provavelmente chutaria que a nave era capaz de comportar cerca de seis pessoas, e estaria certo.

Provavelmente você acertaria de qualquer maneira. O relatório do Censo, como a maioria das pesquisas, havia custado uma fortuna e não dizia nada que as pessoas já não soubessem exceto que cada habitante da Galáxia tem 2,4 pernas e possui uma hiena. Já que isso obviamente não era verdade, todo o resto acabou sendo descartado. A nave deslizou silenciosa pela chuva, com as suas pálidas luzes envolvendo-a em agradáveis arco-íris. O seu zumbido, bem discreto, tornou-se gradualmente mais alto e intenso conforme a nave se aproximou do solo, transformando-se em uma forte vibração quando ela estava a uns 15 centímetros do chão. Finalmente aterrissou e ficou em silêncio. Uma escotilha se abriu. Um pequeno lance de escadas se desdobrou.

Surgiu uma luz na abertura, uma luz brilhante irradiando na noite encharcada, e sombras moveram-se lá dentro.

Uma figura alta surgiu na luz, olhou à sua volta, hesitou e então desceu correndo pelos degraus, carregando uma grande sacola de compras debaixo do braço. Virou-se e acenou bruscamente. A chuva já começava a correr pelo seu cabelo.

- Obrigado - gritou ele -, muito obriga...

Foi interrompido pelo estrondo súbito de um trovão. Olhou para cima, apreensivo, e, lembrando-se subitamente de algo, começou a vasculhar a grande sacola plástica de compras, descobrindo que estava furada no fundo.

Na sacola estava escrito em letras garrafais (para qualquer um que pudesse decifrar o alfabeto centauriano) Mega Mercado Duty Free, Porto Brasta, Alpha Centauri. Faça Como o Elefante Vinte e Dois de Valor Inflacionado no Espaço -Ladre!

- Espere! - gritou a figura, acenando para a nave.

Os degraus, que já estavam se recolhendo para dentro da escotilha, pararam e se desdobraram novamente, permitindo que ele voltasse à nave.

Alguns segundos depois, ele surgiu novamente, trazendo uma toalha surrada e puída, que jogou dentro da sacola.

Tornou a acenar para a nave, colocou a sacola debaixo do braço e correu para abrigar-se sob as árvores, deixando para trás a espaçonave, que já tinha começado a decolar. Os relâmpagos que cortavam o céu fizeram a figura parar por um momento e depois correr adiante, cuidando para evitar as árvores. Movia-se rapidamente, escorregando aqui e ali, encurvando-se sob a chuva que caía agora ainda mais concentrada, como se arrancada à força do céu.

Os seus pés chapinhavam na lama. Trovões roncavam acima das colinas. Ele secava inutilmente o rosto e avançava aos tropeções.

Mais luzes.

Não eram relâmpagos desta vez, e sim luzes mais difusas e fracas, que bailavam lentamente no horizonte e desapareciam.

A figura parou novamente ao vê-las e depois andou ainda mais rápido, dirigindo-se para o local onde haviam aparecido.

O terreno então começou a ficar mais íngreme, inclinando-se para cima e, uns três metros depois, a figura deparou-se com um obstáculo. Parou para examinar a barreira e depois jogou para o outro lado a sacola que estava carregando e pôs-se a escalar. Mal a figura havia tocado o solo do outro lado quando, surgida da chuva, veio uma máquina ao seu encontro, luzes irradiando através de uma torrente de água. A figura recuou enquanto a máquina avançava sobre ela. Tinha a forma de uma gota, como a de uma pequena baleia surfando. Além do design arrojado, era cinza, arredondada e movia-se a uma velocidade aterradora.

A figura instintivamente ergueu as mãos para se proteger mas foi atingida apenas por um jorro de água quando a máquina passou veloz por ela e sumiu na escuridão. Alguns relâmpagos cruzando o céu iluminaram brevemente a máquina, o que deu à figura encharcada à beira da estrada uma fração de segundo para ler uma pequena placa na traseira da máquina, antes que desaparecesse.

Para a sua incrédula surpresa, estava escrito na placa: MEU OUTRO CARRO TAMBÉM

É UM PORSCHE.

capítulo 2

Rob McKenna era um pobre coitado e sabia disso porque várias pessoas haviam chamado a sua atenção para esse fato ao longo dos anos e ele não via motivos para discordar, exceto o motivo mais óbvio, o fato de que gostava de discordar das pessoas, especialmente daquelas de quem não gostava, o que incluía, pela última contagem, todo mundo. Deu um suspiro e enfiou a mão para reduzir uma marcha.

A colina começava a ficar mais íngreme e o seu caminhão estava pesado, cheio de controles termostáticos de radiador dinamarqueses.

Não que fosse naturalmente tão mal-humorado, ou pelo menos esperava que não. Era só

aquela chuva que o deprimia, sempre a chuva.

E estava chovendo naquela hora, para variar um pouco.

Era um tipo específico de chuva, que ele detestava especificamente, sobretudo quando estava dirigindo. Tinha um número para ela. Era a chuva tipo 17. Havia lido em algum lugar que os esquimós têm mais de duzentas palavras diferentes para a neve, sem as quais as suas conversas possivelmente seriam bastante monótonas. Eles distinguiam então entre neve fina e neve grossa, neve leve e neve pesada, neve derretida, neve quebradiça, neve que vem acompanhada de uma rajada de vento, neve que é levada pelo vento, neve que vem trazida pela sola das botas do seu vizinho e arruinam o lindo chão limpinho do seu iglu, as neves do inverno, as neves da primavera, as neves da sua infância que eram tão melhores do que essas neves modernas, neve fina neve aerada, neve de colina, neve de vale, neve que cai pela manhã, neve que cai à noite, neve que cai de repente bem na hora em que você ia sair para pescar e neve na qual os seus huskies siberianos mijaram em cima, apesar de todos os seus esforços para treiná-los.

Rob McKenna tinha duzentos e trinta e um tipos diferentes de chuva anotados no seu caderninho, e não gostava de nenhum deles.

Reduziu outra marcha e o caminhão subiu o giro. Roncava de um jeito satisfeito com todos aqueles controles termostáticos de radiador dinamarqueses que estava transportando. Desde que deixara a Dinamarca na véspera, passara pelos tipos 33 (chuvisco leve e pinicante que deixava as estradas escorregadias), 39 (gotas pesadas), 47 a 51 (de garoa vertical leve passando por garoa refrescante inclinada indo de leve a moderada), 87 e 88 (duas variedades sutilmente distintas de aguaceiro vertical torrencial), 100 (ventania uivante pós-aguaceiro, gelada), todos os tipos de tempestades marítimas entre 192 e 213 ao mesmo tempo, 123, 124, 126, 127 (pancadas frias amenas e intermediárias e tamborilar regular e sincopado), 11 (gotículas frescas) e agora a que ele menos gostava de todas, a 17. A chuva tipo 17 era uma gosma suja, chocando-se com tanta força contra seu pára-brisa que não fazia muita diferença ligar ou não os limpadores.

Testou a sua teoria desligando-os brevemente, mas a visibilidade de fato ficou bem pior. Mas também não conseguiu melhorar muito quando ele tornou a ligá-los. Para falar a verdade, uma das lâminas começou a se soltar.

Swish swish flop swish flop swish swish flop swish flop flop flop arranhão. Esmurrou o volante, chutou o chão e socou o toca-fitas até que ele começou a tocar Barry Manilow de repente. Depois socou mais um pouco até ele parar de tocar e xingou, xingou, xingou, xingou e xingou.

Justo quando sua fúria estava atingindo o auge, lá estava, nadejante, diante de seus faróis, quase invisível por causa da gosma no pára-brisa, uma figura no acostamento. Uma pobre figura ensopada com uma roupa esquisita, mais encharcada do que uma lontra em uma máquina de lavar, pedindo carona.

"Pobre infeliz desgraçado", pensou Rob McKenna, percebendo que ali estava alguém com mais direito do que ele de sentir-se injustiçado. "Deve estar gelado até os ossos. Que burrice, ficar pedindo carona em uma noite como esta. Você só consegue ficar frio, molhado e exposto aos caminhões que passam por cima das poças só para te molhar." Ele balançou a cabeça entristecido, suspirou novamente, virou o volante e atingiu em cheio uma grande poça d'água.

"Você entende agora?", pensou, enquanto atravessava a poça. "Você encontra completos idiotas na estrada."

Alguns segundos depois, respingado no espelho retrovisor, estava o reflexo do mochileiro, ensopado à beira da estrada.

Por um segundo, o motorista sentiu-se bem com aquilo. Um ou dois segundos depois, sentiu-se mal por ter se sentido bem. Então sentiu-se bem por ter se sentido mal por ter se sentido bem e, satisfeito, prosseguiu noite adentro.

Pelo menos conseguira descontar em alguém o fato de ter sido finalmente ultrapassado pelo tal Porsche que ele vinha bloqueando com afinco nos últimos trinta quilômetros. À medida que dirigia, as nuvens carregadas o seguiam, arrastando-se pelo céu na sua direção, posto que, muito embora não soubesse, Rob McKenna era um Deus da Chuva. Tudo o que ele sabia era que os seus dias de trabalho eram uma porcaria e que tinha uma penca de férias lastimáveis. Tudo o que as nuvens sabiam era que o amavam e queriam ficar perto dele, para acalentá-lo e derramar água sobre a sua cabeça.

capítulo 3

Os outros dois caminhões que passaram em seguida não eram dirigidos por Deuses da Chuva, mas fizeram exatamente a mesma coisa.

A figura arrastou-se, ou melhor, chafurdou até a colina se inclinar novamente e ele deixar aquelas traiçoeiras poças d'água para trás.

Um pouco depois, a chuva começou a ficar mais branda e a lua surgiu brevemente por trás das nuvens.

Um Renault passou na estrada e o seu motorista fez sinais frenéticos e complexos para a figura que se arrastava, indicando que normalmente teria tido muito prazer em lhe dar uma carona, mas não daquela vez porque não estava indo na mesma direção da figura, seja lá qual fosse essa direção, mas tinha certeza de que a figura ia compreender. Concluiu a sinalização com um animado gesto de polegar para cima, como se quisesse dizer que esperava que a figura estivesse se sentindo realmente confortável por estar com frio e quase irrecuperavelmente molhado, e que esperava poder ajudá-lo na próxima.

A figura continuou se arrastando. Um Fiat passou na estrada e fez exatamente a mesma coisa que o Renault.

Um Maxi passou do outro lado da estrada e piscou os faróis para a figura que se arrastava, mas era impossível saber exatamente se aquilo significava um "Oi" ou um "Foi mal, estamos indo na direção contrária" ou ainda "Olha lá, tem um cara na chuva, que babaca". Uma faixa verde acima do pára-brisa indicava que a mensagem, seja lá qual fosse, vinha de Steve e Carola. A tempestade agora havia realmente enfraquecido e, se ainda havia sobrado algum trovão, estaria agora roncando sobre colinas mais distantes, como um homem que diz "E tem outra coisa..." vinte minutos depois de admitir que perdeu uma discussão. O ar estava mais claro e a noite, mais fria. O som viajava realmente bem. A figura perdida, tremendo desesperadamente, chegara a um entroncamento, onde uma estrada lateral virava à esquerda. Do lado oposto havia uma placa, em direção à qual a figura correu subitamente, estudando-a com febril curiosidade, e só se virando quando um outro carro passou de repente.

E mais outro.

O primeiro passou correndo, com total desdém, o segundo piscou os faróis inexpressivamente. Um Ford Cortina passou e freou.

Tonta de surpresa, a figura segurou a sacola junto ao peito e correu em direção ao carro, mas na hora H o Ford Cortina cantou os pneus e saiu em disparada, achando a maior graça. A figura foi parando aos poucos e estacou de vez, perdida e desanimada. Casualmente, no dia seguinte, o motorista do Cortina foi para o hospital para remover o apêndice, só que, devido a uma engraçadíssima confusão, o cirurgião removeu a sua perna por engano e, antes que a remoção do apêndice pudesse ser remarcada, a apendicite transformou-se em um quadro divertidamente sério de peritonite, e a justiça, ao seu modo, foi feita. A figura continuou caminhando penosamente.

Um Saab parou ao seu lado.

O vidro da janela desceu e uma voz amistosa perguntou:

- Andou muito?

A figura caminhou na direção do carro. Parou e agarrou a maçaneta.

***

A figura, o carro e a maçaneta estavam todos em um planeta chamado Terra, um mundo cuja definição no Guia do Mochileiro das Galáxias era composta por duas palavras:

"Praticamente inofensiva".

O autor desse verbete chama-se Ford Prefect, e ele estava, naquele exato momento, em um mundo nada inofensivo, sentado em um bar nada inofensivo, criando problemas de forma imprudente.

capítulo 4

Um observador casual não saberia dizer se ele estava bêbado, passando mal ou suicidamente insano, e, para falar a verdade, não havia observadores casuais no Old Pink Dog Bar, na zona barra-pesada de Han Dold City, porque aquele não era o tipo de lugar no qual você

podia se dar ao luxo de fazer as coisas casualmente, se quisesse continuar vivo. Naquele lugar, qualquer observador teria olhos de águia cruel, estaria armado até os dentes e sentiria dolorosas pontadas na cabeça, coisa que o levaria a cometer atos de loucura se observasse algo que não fosse do seu agrado.

Um daqueles silêncios desagradáveis tinha descido sobre o lugar, um tipo de silêncio de crise de mísseis.

Até mesmo o pássaro mal-encarado, empoleirado em uma haste de madeira no bar, havia parado de gritar esganiçadamente os nomes e os endereços dos assassinos de aluguel locais, um serviço que ele oferecia de graça.

Todos os olhos se voltaram para Ford Prefect. Alguns de forma maligna. A maneira exata que Ford escolhera para jogar a sorte com a morte naquele dia era tentando pagar uma conta de bebidas equivalente ao valor de um pequeno orçamento de defesa com um cartão de crédito da American Express, que não era aceito em lugar nenhum do Universo mapeado.

Qual é o seu problema? - perguntou com a voz animada. - A data de validade? Vocês nunca ouviram falar em Neo-Relatividade por aqui, não? Existem novas áreas da Física que podem dar conta disso. Efeitos de dilatação do tempo, relastática temporal...

- Não estamos preocupados com a data de validade - respondeu o homem a quem Ford tinha dirigido sua explicação, um barman perigoso em uma cidade perigosa. A sua voz era semelhante a um ronronar baixinho e suave, como o ronronar baixinho e suave da abertura de um silo de mísseis balísticos intercontinentais. Uma mão que lembrava um grande naco de bife tamborilou os dedos no balcão do bar, amassando-o levemente.

- Bom, então não há problema algum - disse Ford, arrumando a sua mochila e se preparando para sair.

Um dos dedos tamborilantes alcançou Ford Prefect e pousou delicadamente no seu ombro, impedindo-o de sair.

Embora o dedo estivesse preso à mão que mais parecia uma laje e a mão estivesse presa a um antebraço que mais parecia um taco de beisebol, o antebraço não estava preso a nada, exceto no sentido metafórico de que estava preso, com a feroz lealdade de um cão, ao bar que chamava de casa. Ele já estivera um dia convencionalmente preso ao dono original do bar, mas ele, em seu leito de morte, resolveu doá-lo no último minuto para a Medicina. A Medicina resolveu que não gostava do jeitão do braço e devolveu-o ao Old Pink Dog Bar. O novo barman não acreditava em sobrenatural, Poltergeist ou qualquer maluquice do gênero, apenas sabia reconhecer um aliado útil. A mão ficava no bar. Anotava pedidos, servia os drinques, tratava de forma assassina as pessoas que se comportavam como se quisessem ser assassinadas. Ford Prefect estava sentado, imóvel.

- Não estamos preocupados com a data de validade - repetiu o barman, satisfeito por finalmente ter a atenção completa de Ford Prefect. - Estamos preocupados com o pedacinho de plástico em si.

- O quê? - perguntou ele, um tanto surpreso.

- Isso - retrucou o barman, segurando o cartão como se fosse um peixinho cuja alma batera as asas há três semanas para a Terra Onde os Peixes São Eternamente Abençoados - nós não aceitamos.

Ford considerou brevemente se devia levantar a questão de não ter outros meios de pagamento consigo, mas decidiu ficar quieto mais um tempo. A mão sem corpo estava agora apertando o seu ombro de forma gentil, porém firme, entre o indicador e o polegar.

- Mas vocês não estão entendendo - ponderou Ford, a sua expressão amadurecendo lentamente de uma leve surpresa para total incredulidade. - Estamos falando do American Express. A melhor maneira de pagar as contas conhecida pelo homem. Vocês não lêem aquelas porcarias que eles mandam pelo correio, não?

O tom de voz animadinho de Ford estava começando a irritar os ouvidos do barman. Soava como um sujeito soprando sem parar um apito durante as passagens mais lúgubres de um réquiem de guerra.

Um dos ossos do ombro de Ford começou a entrar em atrito com outro osso de seu ombro de uma maneira que levava a crer que a mão aprendera os princípios da dor com um massagista altamente habilidoso. Esperava resolver aquela situação antes que a mão começasse a colocar um dos ossos do seu ombro em atrito com qualquer osso de outra parte do seu corpo. Felizmente, o ombro onde a mão estava pousada não era o ombro onde ele pendurara a sua mochila.

O barman deslizou o cartão de volta para Ford por cima do balcão.

- Nunca - disse ele, com uma selvageria contida - ouvimos falar desse troço. Não era de se admirar.

Ford somente o adquirira devido a um grave erro de computador perto do final de sua estada de quinze anos no planeta Terra. Exatamente o quão grave havia sido o erro foi algo que a American Express descobriu bem depressa, e as cobranças cada vez mais histéricas e apavoradas do departamento de cobrança só foram silenciadas pela inesperada demolição de todo o planeta pelos vogons, para a construção de uma via expressa hiperespacial. Ford tinha guardado o cartão depois disso porque achava útil carregar uma forma de pagamento que ninguém ia aceitar.

- Posso pendurar? - perguntou ele. - Aaaargggh...

Essas três palavras normalmente vinham em seqüência no Old Pink Dog Bar.

- Eu pensei - disse Ford, arfando - que este fosse um estabelecimento de classe. Olhou à sua volta para a diversificada coleção de assassinos, cafetões e executivos de gravadoras que se escondiam bem no limite das áreas de luz tênue que marcavam os contornos das profundas sombras em que todos os cantos do bar estavam imersos. Naquele momento, todos olhavam muito deliberadamente para qualquer direção que não fosse a dele, retomando cuidadosamente o fio da meada de suas conversas sobre assassinatos, quadrilhas de drogas e contratos para lançamento de bandas. Sabiam o que estava prestes a acontecer e não queriam ver, caso fosse algo que os fizesse perder a vontade de beber seus drinques. Você vai morrer, rapaz - murmurou baixinho o barman para Ford Prefect, e as evidências eram favoráveis a ele. O bar costumava ter uma daquelas placas penduradas onde se lia "Por

favor, não peça para pendurar a conta, pois um soco na boca geralmente machuca", mas, para torná-la absolutamente precisa, fora alterada para "Por favor, não peça para pendurar a conta, pois ter a sua garganta dilacerada por um pássaro selvagem enquanto uma mão sem corpo esmaga a sua cabeça contra o bar geralmente machuca". Isso, no entanto, tornara o aviso completamente ilegível e, além disso, o espírito da coisa se perdeu, de modo que a placa foi removida. Acharam que a história iria se espalhar por conta própria e de fato se espalhou.

- Deixa eu dar uma olhada na conta de novo - pediu Ford. Ele a apanhou e estudou minuciosamente, sob o maléfico olhar do barman e do igualmente maléfico olhar do pássaro que, naquele momento, estava fazendo um estrago na superfície do balcão com as suas garras. Era um pedaço de papel razoavelmente grande.

Na ponta inferior havia um número que parecia um número de série, daqueles que podem ser encontrados no lado de baixo dos rádios e que a gente sempre leva um tempão para copiar no formulário de registro. É bem verdade que Ford tinha passado o dia todo no bar, bebendo uma porção de coisas borbulhantes e também havia oferecido uma quantidade impressionante de rodadas de bebida grátis para os cafetões, assassinos e executivos de gravadoras que, de repente, não lembravam mais quem era aquele cara.

Pigarreou baixinho e tateou os bolsos. Estavam vazios, como ele estava cansado de saber. Com suavidade, mas com firmeza, pousou a mão esquerda na aba entreaberta da sua mochila. A mão sem corpo renovou a pressão no seu ombro direito.

- Veja bem - disse o barman e o seu rosto parecia oscilar com certa perversidade diante de Ford -, eu tenho uma reputação a zelar. Você entende isso, não entende?

“Chega”, pensou Ford. Não tinha outro jeito. Havia obedecido às regras, havia feito uma tentativa de boa-fé de pagar a sua conta e ela fora rejeitada. Estava agora correndo perigo de vida.

- Bem - respondeu ele, calmamente -, se é a sua reputação que está em jogo... Com súbita rapidez, abriu a mochila e socou no balcão seu exemplar do Guia do Mochileiro das Galáxias com o cartão oficial afirmando que ele era um pesquisador de campo do Guia e que não podia fazer, de jeito nenhum, o que estava fazendo naquele momento.

- Vai querer uma resenha?

O rosto do barman parou no meio de uma oscilação. O pássaro parou no meio de uma arranhada do balcão. A mão foi soltando aos poucos o ombro de Ford.

- Isso - disse o barman em um sussurro quase inaudível, por entre os lábios secos - resolve tudo, senhor.

capítulo 5

O Guia do Mochileiro das Galáxias é um órgão poderoso. Na verdade, a sua influência é

tão extraordinária que sua equipe editorial foi obrigada a criar regras severas para evitar o seu uso indevido. Por isso, nenhum dos seus pesquisadores de campo pode aceitar qualquer tipo de serviços, descontos ou tratamento preferencial de qualquer tipo em troca de favores editoriais, a não ser que:

a) tenham feito uma tentativa de boa-fé de pagar por um serviço de maneira convencional; b) suas vidas estejam em perigo;

c) estejam realmente a fim de fazer isso.

Já que invocar a terceira regra sempre envolvia uma pequena comissão para o editor, Ford preferia se entender com as duas primeiras.

Saiu do bar, caminhando alegremente pela calçada.

O ar estava abafado, mas ele gostava porque era um ar abafado urbano, repleto de cheiros emocionantemente desagradáveis, música perigosa e o som distante de tribos policiais em guerra.

Carregava a mochila com um gingado despretensioso, pronto para dar um belo safanão em quem tentasse apanhá-la à sua rvelia Tudo o que ele possuía estava lá dentro e, no momento ,

.

não era lá grande coisa.

Uma limusine passou em disparada, desviando das pilhas de lixo em chamas e assustando um velho animal de carga, que cambaleou, urrando, tentando não ser atingindo pelo carro. Ele foi parar contra a vitrine de uma loja de ervas medicinais, disparando um alarme estridente, e seguiu capengando rua baixo até os degraus de uma pequena cantina italiana, onde fingiu tropeçar e cair nas escadas porque sabia que ali seria fotografado e receberia alguma comida. Ford caminhava rumo ao norte. Achou que provavelmente estava a caminho do espaçoporto, mas já tinha pensado isso. Sabia que estava passando pela parte da cidade onde os planos das pessoas costumavam mudar abruptamente.

- Quer se divertir? - perguntou uma voz, saída de uma porta aberta.

- Que eu saiba - respondeu Ford -, já estou me divertindo. Obrigado.

- Você é rico? - perguntou outra voz. Aquilo fez Ford rir.

Ele se virou e abriu bem os braços.

- Por acaso pareço rico? - perguntou.

- Sei lá - disse a garota. - Talvez sim, talvez não. Talvez você fique rico. Eu ofereço um serviço muito especial para os ricos...

- Ah, é? - disse Ford, intrigado, mas cauteloso. - E como é isso?

- Eu digo a eles que não há nada de errado em ser rico.

Tiros espocaram, vindos de uma janela bem acima deles, mas era só um baixista sendo fuzilado por ter tocado um riff errado três vezes seguidas. A cotação dos baixistas estava em baixa em Han Dold City.

Ford parou e tentou distinguir alguma coisa dentro da entrada escura.

- Você o quê? - perguntou ele.

A garota riu e deu um passo à frente, saindo das sombras Era alta e tinha aquele tipo de timidez altiva que funciona superbem para quem sabe fazer direitinho.

- É a minha especialidade - continuou ela. - Fiz mestrado em economia social e posso ser bem convincente. As pessoas adoram. Principalmente nesta cidade.

- Goosnargh - disse Ford Prefect. Aquela era uma palavra betelgeusiana que ele usava quando sabia que devia dizer algo mas não sabia exatamente o quê. Sentou-se em um degrau e tirou da mochila uma garrafa de Aguardente Janx e uma toalha. Abriu a garrafa e limpou o gargalo com a toalha, o que produziu um efeito contrário ao pretendido, no sentido que a Aguardente Janx matou instantaneamente os milhões de germes que estavam aos poucos criando uma civilização bastante complexa e esclarecida nas manchas mais fedorentas da toalha.

- Quer? - ofereceu ele, depois de ter tomado um trago.

Ela deu de ombros e apanhou a garrafa.

Ficaram sentados por um tempo, ouvindo tranqüilamente a algazarra de alarmes contra roubo vinda do quarteirão vizinho.

- Acontece que estão me devendo muito dinheiro - disse Ford -, então, se algum dia eu conseguir receber, posso vir aqui e procurar você?

- Claro, estarei aqui - respondeu a garota. - Mas quanto é "muito", no seu caso?

- Salário atrasado por quinze anos de trabalho.

- Por...?

- Escrever duas palavras.

- Zarquon - disse a garota. - Qual delas levou mais tempo?

- A primeira. Depois que eu consegui a primeira, a segunda me ocorreu naturalmente numa tarde após o almoço.

Uma bateria eletrônica enorme foi arremessada pela janela e se espatifou na calçada diante deles.

Logo ficou claro que alguns dos alarmes contra roubo no quarteirão vizinho haviam sido disparados de propósito por uma tribo policial para armar uma emboscada para a outra. Viaturas com sirenes histéricas dirigiram-se para o local, apenas para serem recebidas com uma saraivada de tiros disparados por helicópteros que surgiram com um estrondo por entre gigantescos arranha-céus da cidade.

- Na verdade - disse Ford, tendo que gritar por causa da barulheira -, não foi bem assim. Eu escrevi coisa à beca, mas eles cortaram tudo.

Tirou a sua cópia do Guia de dentro da mochila.

- Então o planeta foi demolido - gritou ele. - É o tipo de trabalho que realmente valeu a pena, né? Mas, de qualquer jeito, eles têm que me pagar.

- Você trabalha pra isso? - gritou a garota de volta.

- Trabalho.

- Legal.

- Quer ver o que escrevi? - berrou ele. - Antes que apaguem? As novas revisões vão ser lançadas hoje à noite na rede. A essa altura, alguém já deve ter descoberto que o planeta onde fiquei por quinze anos foi demolido. Eles não atualizaram nas últimas revisões, mas não vão poder ignorar isso pra sempre.

- Está ficando impossível conversar, não?

- O quê?

Ela deu de ombros e apontou para cima.

Havia um helicóptero sobre eles que parecia estar envolvido em um conflito paralelo com a banda do andar de cima. Nuvens de fumaça saíam do prédio. O engenheiro de som estava pendurado pelos dedos na janela e um guitarrsta enlouquecido estava batendo nos seus dedos com uma guitarra em chamas. O helicóptero estava atirando em todos eles.

- Será que podemos sair daqui?

Desceram a rua, fugindo do barulho. Cruzaram com um grupo de atores de rua - eles tentaram apresentar um pequeno esquete sobre os problemas do centro decadente da cidade mas acabaram desistindo e desaparecendo dentro daquele restaurante recentemente freqüentado pelo animal de carga.

Durante todo esse tempo, Ford estava remexendo no painel de interface do Guia. Enfiaram-se em um beco. Ford se sentou sobre uma lata de lixo enquanto as informações começaram a surgir na tela.

Localizou o seu verbete.

"Terra: Praticamente inofensiva."

Quase imediatamente, a tela se converteu em um monte de mensagens do sistema.

- Aí vem - disse ele.

"Por favor, aguarde" - diziam as mensagens. "Os verbetes estão sendo atualizados via Subeta Net. Esse verbete está sendo revisado. O sistema ficará fora do ar por dez segundos." No final do beco, uma limusine cinza-metálico passou devagar.

- Olha - disse a garota -, se te pagarem, me procura. Estou no horário de trabalho e tem gente ali precisando de mim. Tenho que ir.

Ela ignorou os protestos semi-articulados de Ford e o deixou sentado desanimadamente na lata de lixo, preparando-se para assistir a uma boa parte de sua vida profissional ser varrida eletronicamente para o éter.

Lá fora, na rua, as coisas haviam se acalmado um pouco. A batalha policial movera-se para os outros setores da cidade, os poucos membros sobreviventes da banda de rock haviam reconhecido as suas diferenças musicais e decidido seguir carreiras solo e o grupo de atores de rua reaparecera, saindo da cantina italiana com o animal de carga, prometendo levá-lo a um bar onde ele seria tratado com algum respeito. Um pouco além, a limusine cinza-metálico estava silenciosamente estacionada à beira da calçada. A garota correu até ela.

***

Ford Prefect ficou para trás, imerso na escuridão do beco, com o rosto banhado pelo brilho verde da tela. Os seus olhos iam ficando cada vez mais arregalados de espanto. Lá onde nada mais esperava encontrar senão um verbete apagado, removido, havia, pelo contrário, um fluxo contínuo de dados - textos, diagramas, figuras e imagens, descrições emocionantes sobre o surfe nas praias australianas, iogurte nas ilhas gregas, restaurantes a serem evitados em Los Angeles, transações monetárias a serem evitadas em Istambul, clima a ser evitado em Londres, bares para freqüentar em qualquer lugar do mundo. Páginas e mais páginas. Estava tudo lá, tudo o que ele escrevera.

Com a testa profundamente franzida em perplexa incompreensão, consultava o Guia freneticamente, parando aqui e ali em vários pontos.

Dicas para alienígenas em Nova York: Aterrissem onde quiserem, no Central Park, em qualquer lugar. Ninguém vai se importar - aliás, não vão nem mesmo perceber. Como sobreviver: Arrume um emprego como motorista de táxi imediatamente. Ser um motorista de táxi significa levar as pessoas para qualquer lugar que elas queiram ir, em grandes máquinas amarelas chamadas táxis. Não se preocupe se você não souber como a máquina funciona, não falar a língua, não entender a geografia ou mesmo a física básica da área e tiver grandes antenas verdes saindo de sua cabeça. Acredite, esta é melhor maneira de permanecer despercebido.

Se o seu corpo for realmente esquisito, tente exibi-lo na rua em troca de dinheiro. Formas de vida anfíbias de qualquer um dos mundos nos sistemas Stagnos, Nodjent e Nausália irão apreciar particularmente o East River, que, ao que parece, é mais rico em adoráveis nutrientes vitais do que a melhor e mais virulenta gosma já produzida em laboratório.

Lazer: Essa é a melhor parte. É impossível divertir-se mais sem eletrocutar os seus centros de prazer...

Ford clicou no botão, vendo que agora estava escrito "Modo de Execução Preparado" em vez do já antiquado "Acesso em Espera", que há muito havia substituído o espantosamente préhistórico "Desligar". Aquele era um planeta que ele vira ser completamente destruído, e havia visto com seu próprio par de olhos, ou melhor, não havia visto, já que ficara cego diante da irrupção infernal de ar e luz, mas havia sentido com seu próprio par de pés quando o solo começou a sacudir como um martelo sob eles, dando solavancos, rugindo e sendo arrancado pelos tsunamis de energia que jorravam das asquerosas naves amarelas dos vogons. E finalmente, cinco segundos após o que havia determinado ser o último momento possível, sentiu a suave náusea revolvente da desmaterialização, enquanto ele e Arthur Dent eram teleportados pela atmosfera como uma transmissão esportiva.

Não fora um equívoco, não podia ter sido. A Terra fora destruída definitivamente. Definitivamente definitiva. Evaporada no espaço.

E no entanto ali - ativou novamente o Guia -estava o verbete que ele próprio escrevera sobre como conseguir se divertir em Bournemouth, Dorset, na Inglaterra, do qual sempre se orgulhara, pois era uma das invenções mais barrocas que já tinha escrito. Releu o texto e balançou a cabeça, em completo espanto.

Subitamente descobriu qual era a resposta para o problema e a resposta era esta: algo muito estranho estava acontecendo algo muito estranho estava acontecendo, pensou ele, queria que estivesse acontecendo com ele.

Guardou o Guia de volta na mochila e andou rapidamente de volta para a rua. Caminhando rumo ao norte, tornou a passar pela limusine cinza-metálico estacionada no meio-fio e pôde ouvir uma voz suave, vinda de uma porta entreaberta ali por perto, dizendo:

"Tudo bem, querido, está tudo bem, você precisa aprender a gostar disso. Pense na forma como toda a economia está estruturada..."

Ford sorriu, fez um desvio em torno do quarteirão vizinho, que agora estava ardendo em chamas, deparou-se com um helicóptero da polícia abandonado na rua, invadiu-o, colocou o cinto de segurança, cruzou os dedos e lançou-se inexperientemente no céu. Contorceu-se temerosamente por entre os altos prédios da cidade e, tendo se livrado deles, arremeteu através do véu de fumaça negra e avermelhada que pairava permanentemente sobre ela.

Dez minutos depois, com todas as sirenes do helicóptero ligadas e seu canhão de fogo contínuo atirando a esmo nas nuvens, Ford Prefect fez um pouso forçado entre as plataformas de lançamento e as luzes de aterrissagem no espaçoporto de Han Dold, onde a aeronave se assentou como um mosquito gigante, assustado e extremamente barulhento. Como não o havia danificado muito, conseguiu trocá-lo por uma passagem de primeira classe para a próxima nave a deixar o sistema. Acomodou-se em uma das suas enormes e voluptuosas poltronas massageadoras.

Aquilo ia ser divertido, pensou com os seus botões, enquanto a nave piscava silenciosa, atravessando as distâncias enlouquecedoras do espaço sideral e o serviço de bordo entrava em seu modo de plena e extravagante atividade total.

"Sim, obrigado", dizia ele para qualquer atendente sempre que apareciam para lhe oferecer qualquer coisa.

Sorriu com uma curiosa alegria maníaca enquanto navegava novamente pelo verbete sobre o planeta Terra que havia sido misteriosamente reintroduzido. Poderia, enfim, resolver um assunto inacabado e estava extremamente feliz por constatar que a vida havia subitamente lhe dado um objetivo sério a alcançar.

De repente pensou onde estaria Arthur Dent e se ele já sabia da novidade.

***

Arthur Dent estava a mil quatrocentos e trinta e sete anos-luz dali, em um Saab, bastante apreensivo.

Atrás dele, no banco traseiro, estava a garota que fizera com que ele enfiasse a cabeça na porta ao entrar no carro. Não sabia dizer se aquilo havia acontecido porque ela era a primeira fêmea da sua própria espécie que ele via há anos, ou o quê, mas ficara maravilhado com, com...

"Isso é ridículo", pensou ele. "Segure a sua onda", instruiu a si mesmo. "Você não está", prosseguiu Arthur, "conversando consigo mesmo no tom de voz mais firme possível em um estado normal e racional. Você acabou de pegar carona e atravessar cem mil anos-luz da galáxia, está muito cansado, um pouco confuso e extremamente vulnerável. Relaxe, não entre em pânico, concentre-se apenas em respirar profundamente." Virou-se no banco do carona.

- Tem certeza de que ela está bem? - perguntou novamente. Além do fato de ela ser, na sua opinião, taquicardiacamente linda, não descobriu quase nada, como altura, idade, tonalidade exata do cabelo. E sequer podia perguntar alguma coisa à

proria garota porque, infelizmente, ela estava completamente inconsciente.

- Ela só está drogada - respondeu o irmão da garota, dando de ombros, sem desviar os olhos da estrada.

- E você acha isso normal? - perguntou, assustado.

- Tudo legal... - respondeu ele.

- Ah - disse Arthur. - Uhn - acrescentou, após refletir um pouco mais. A conversa, até agora, ia de mal a muito pior.

Após a comoção inicial dos "ois" de apresentação, ele e Russell - o nome do irmão daquela garota espetacular era Russell, um nome que, para Arthur, sempre evocava homens corpulentos com bigodes loiros e cabelos escovados com secador que, diante da menor provocação, começariam a usar smokings de veludo e camisas com babados e teriam de ser impedidos à força de tecerem comentários sobre partidas de sinuca - descobriram rapidamente que não gostavam nem um pouco um do outro.

Russell era corpulento. Tinha um bigode loiro. O seu cabelo era bonito e escovado com secador. Para lhe fazer justiça - apesar de Arthur não ver nenhuma necessidade disso, além do mero exercício mental -, ele próprio, Arthur, estava com uma aparência grotesca. Nenhum homem consegue atravessar cem mil anos-luz, na maior parte das vezes alojado nos compartimentos de bagagens dos outros, sem ficar ligeiramente desalinhado, e Arthur estava bem desalinhado.

"Não que ela seja uma viciada - explicou Russell derepente, obviamente como se achasse que outra pessoa naquele carro pudesse ser. - Está apenas sob sedativos.

- Mas isso é terrível - disse Arthur, virando-se para olhar novamente para a garota. Ela parecia ter se mexido um pouco e a sua cabeça deslizara para o lado, repousando sobre ombro.

O cabelo negro caiu sobre o seu rosto, ocultando-o

- O que há de errado com ela, está doente?

- Não - respondeu Russell -, só é completamente maluca

- O quê? - perguntou Arthur, horrorizado.

- Pirada, completamente tantã. Estou levando ela de volta para o sanatório, para pedir que tentem novamente. Deram alta enquanto ela ainda achava que era um porco-espinho.

- Um porco-espinho?

Russell buzinou furiosamente para o carro que dobrou a esquina, na direção deles, invadindo metade da sua pista e fazendo com que ele desviasse abruptamente. A raiva aparentemente fez com que se sentisse melhor.

- Bem, talvez não um porco-espinho - disse ele, após ter se acalmado. - Se bem que seria muito mais fácil resolver o problema se fosse assim. Se alguém pensa que é um porco-espinho, acho que basta dar um espelho pra pessoa e umas fotos de porcos-espinhos, depois esperar que ela chegue a uma conclusão sozinha e caia na real quando estiver melhor. Pelo menos, a medicina poderia dar um jeito, sabe como é. Mas, ao que parece, isso não é o bastante para Fenny.

- Fenny...?

- Sabe o que eu comprei pra ela de Natal?

- Ah, não.

- Um dicionário médico.

- Belo presente.

- Eu também achei. Milhares de doenças, todas em ordem alfabética.

- O nome dela é Fenny?

- É. Escolha uma, eu disse. Tudo o que está aí pode ser tratado. Os remédios adequados podem ser receitados. Mas não, ela tinha que ter uma coisa diferente. Só pra dificultar a vida. Na época da escola ela já era assim, sabe.

- Era?

- Era. Levou um tombo jogando hóquei e quebrou um osso do qual ninguém nunca tinha ouvido falar.

- Imagino que isso deve ter sido irritante - disse Arthur, sem muita convicção. Estava um pouco decepcionado por ter descoberto que o nome dela era Fenny. Era um nome bobo, desanimador, como o que uma tia solteirona e feia escolheria para si mesma caso não se entendesse com o nome Fenella.

- Não que eu não tenha ficado solidário - prosseguiu Russell -, mas a coisa foi meio irritante mesmo. Ela ficou mancando durante meses.

Ele diminuiu a velocidade.

- Você fica nesse cruzamento, né?

- Ah não - disse Arthur -, faltam ainda uns oito quilômetros. Tudo bem pra você?

,

- Tudo bem - disse Russell, após uma breve pausa para deixar bem claro que não estava nada bem. Acelerou novamente.

Na verdade, era ali que Arthur deveria descer, mas ele não podia ir embora sem saber mais a respeito da garota que parecia ter dominado sua atenção, mesmo desacordada. Ele poderia descer num dos dois próximos cruzamentos.

Estavam voltando para a cidadezinha que havia sido o seu lar, embora Arthur nem quisesse imaginar o que encontraria por lá. Já tinha passado por alguns locais familiares, como velhos fantasmas na escuridão da noite, causando arrepios que só coisas muito, muito normais podem provocar, se vistas quando a mente não está preparada e sob um ângulo desconhecido. Pela sua própria escala pessoal de tempo, até onde conseguia calcular, vivendo como ele vivera sob as rotações alienígenas de sóis distantes, estivera fora de circulação por oito anos, mas quanto tempo havia de fato passado ali, disso não fazia a menor idéia. Na verdade, os acontecimentos em si estavam além da sua exausta compreensão porque aquele planeta, o seu lar, não deveria estar lá.

Há oito anos-luz, na hora do almoço, aquele planeta tinha sido demolido, totalmente destruído pelas enormes naves vogons, pairando no céu do meio-dia como se a lei da gravidade não passasse de uma norma local que podia ser quebrada sem nenhum problema, ou, no máximo, uma multa de trânsito.

- Delírios - disse Russell.

- O quê? - disse Arthur, retornando de seus devaneios.

- Ela diz que sofre de delírios estranhos, de que está vivendo no mundo real. Não adianta nada dizer pra ela que ela está vivendo no mundo real, porque ela te diz que é exatamente por isso que os delírios são tão estranhos. Não sei quanto a você, mas eu acho esse tipo de conversa um saco. Prefiro dar logo os remédios dela e sair para tomar uma cervejinha. Quero dizer, não há nada que eu possa fazer, sacou?

Arthur franziu a testa, e não era a primeira vez.

-Bem...

- E todo esse papo de sonhos e pesadelos. E os médicos falando sobre alterações estranhas nos seus padrões cerebrais.

- Alterações?

- Isso - disse Fenny.

Arthur girou no seu assento e olhou dentro dos olhos dela, inesperadamente abertos, mas completamente apáticos. Fosse lá o que ela estivesse vendo, não estava dentro do carro. Piscou os olhos, sacudiu a cabeça e voltou a dormir em paz.

- O que ela disse? - perguntou Arthur, ansioso.

- Disse "isso".

- Isso o quê?

- Isso o que? E como diabos vou saber? Isso, o porco-espmho, da lareira, o outro par de pinças de Don Alfonso. Ela é completamente louca, achei que você já tivesse entendido.

- Você parece não ligar muito. - Arthur tentou dizer aquilo tom de voz mais neutro possível, mas não deu muito certo.

- Olha aqui, cara...

- Tudo bem, desculpa. Eu não tenho nada a ver com isso. Acho que me expressei mal contemporizou Arthur. - Tenho certeza de que você se preocupa muito com ela, sim acrescentou ele, mentindo. - Sei que você precisa extravasar de alguma maneira. Foi mal, cara. É que eu acabei de vir de carona do outro lado da nebulosa Cabeça de Cavalo. Olhou furiosamente para fora da janela.

Estava pasmo, pois, de todas as sensações brigando por um espaço na sua cabeça naquela noite em que estava voltando para a sua casa - aquela que imaginava ter desaparecido para sempre -, a que mais estava mexendo com ele era uma obsessão por uma garota bizarra da qual não sabia mais nada além do fato de que ela havia dito "isso" e de que não desejaria aquele irmão nem mesmo para um vogon.

- Então, ah, que alterações eram essas, as que você mencionou? - acrescentou o mais rápido que pôde.

- Olha, ela é minha irmã, eu nem sei por que estou falando com você sobre...

- O.k., desculpa. Talvez seja melhor eu descer aqui. Esse é... No momento em que disse isso, a coisa ficou impossível, Porque a tempestade que havia passado por ele subitamente ressurgiu. Relâmpagos chicoteavam o céu e alguém parecia estar derramando algo bem parecido com o oceano Atlântico através de uma peneira sobre eles. Russell xingou e dirigiu concentrado por alguns segundos enquanto o céu esbravejava sobre eles. Descontou a sua raiva acelerando temerariamente para ultrapassar um caminhão onde estava escrito "Fretes McKeena - faça chuva ou faça sol" A tensão foi diminuindo à

medida que a chuva ia parando.

- Tudo começou com aquela história do agente da CIA que eles encontraram na represa, quando todo mundo teve aquelas alucinações, lembra?

Arthur cogitou por um momento se devia ou não mencionar novamente que havia acabado de chegar de carona do outro lado da nebulosa Cabeça de Cavalo e que estava, por esse e outros motivos similares e surpreendentes, um pouquinho por fora dos últimos acontecimentos, mas acabou achando que aquilo só ia confundir ainda mais as coisas.

- Não - respondeu ele.

- Foi ali que ela pirou. Estava num café, sei lá onde. Acho que Rickmansworth. Não faço idéia do que ela estava fazendo lá, mas foi lá que ela pirou. Ao que parece, ela se levantou, anunciou calmamente que tinha acabado de ter uma revelação extraordinária ou algo do tipo, cambaleou um pouco, ficou meio confusa e finalmente desmaiou, gritando, em cima de um sanduíche de ovo.

Arthur estremeceu.

- Sinto muito - disse ele, um pouco áspero.

Russell soltou um ruído rabugento.

- E o que - prosseguiu Arthur, tentando juntar as peças - o agente da CIA estava fazendo na represa?

- Boiando aqui e ali, é claro. Estava morto.

- Mas o que...

- Deixa disso, você se lembra da coisa toda. As alucinações. Todo mundo disse que foi uma armação, que a CIA estava testando armas químicas ou algo do tipo. Alguma teoria alucinada de que em vez de invadir um país, ia ser mais barato e mais eficaz fazer as pessoas todas acharem que foram invadidas .

- Que alucinações eram essas, exatamente...? - perguntou Arthur, com uma voz bem tranqüila.

- Como assim, que alucinações? Estou falando sobre aquela história das grandes naves amarelas, todo mundo enlouquecendo, dizendo que íamos morrer e, de repente, puft, tudo aquilo desapareceu assim que o efeito passou. A CIA negou a coisa toda, o que significa que deve ser verdade.

A cabeça de Arthur ficou um tanto confusa. A sua mão agarrou alguma coisa para se segurar e apertou-a com firmeza. A sua boca ficava abrindo e fechando, como se pretendesse dizer alguma coisa, mas não saía nada.

- De qualquer jeito - continuou Russell -, seja lá qual foi a droga, não perdeu o efeito assim tão depressa com a Fenny. Por mim tínhamos processado a CIA, mas um advogado camarada meu disse que seria como tentar atacar um hospício com uma banana, então... - ele deu de ombros.

- Os vogons... - chiou Arthur. - As naves amarelas... desapareceram?

- Claro que sim, eram alucinações - disse Russell, olhando para Arthur intrigado. - Você

está tentando me dizer que não se lembra de nada disso? Por onde você andou, pelo amor de Deus?

Essa era, para Arthur, uma pergunta tão surpreendentemente boa que ele chegou a pular do banco, chocado.

- Meu Deus!!! - gritou Russell, lutando para controlar o carro que subitamente estava tentando derrapar. Conseguiu desviar de um caminhão que se aproximava e jogou o carro para cima do gramado na margem da estrada. Quando o carro parou bruscamente, a garota no banco de trás foi arremessada contra o banco de Russell e desabou, desconjuntada. Arthur olhou para trás em pânico.

- Ela está bem? - perguntou depressa.

Russell passou as mãos pelo cabelo escovado com irritação. Mexeu no bigode loiro. Virou-se para Arthur.

- Será que dá pra você - pediu ele - fazer o favor de soltar o freio de mão?

capítulo 6

Dali era uma caminhada de uns seis quilômetros até a sua casa: uns dois até o próximo cruzamento, onde o abominável Russell recusara-se terminantemente a deixá-lo, e, de lá, mais quatro por uma tortuosa ruela campestre.

O Saab partiu furioso. Arthur ficou olhando enquanto o carro partia, tão embasbacado quanto um homem que, depois de passar cinco anos acreditando firmemente que era cego, descobrisse de repente que só estava usando um chapéu grande demais. Balançou a cabeça vigorosamente, na esperança de deslocar algum fato importante que pudesse se encaixar e dar sentido a um Universo que, do contrário, seria extremamente desconcertante. Mas como o fato importante, se é que existia, não deu as caras, Arthur prosseguiu pela estrada, torcendo para que uma boa caminhada vigorosa, e talvez até mesmo algumas bolhas insuportáveis, o ajudassem a reafirmar a sua existência, se possível até mesmo a sua sanidade.

Eram dez e meia quando chegou, detalhe que pôde comprovar pela janela embaçada e gordurosa do bar Horse and Groom, onde se via pendurado há anos um velho e gasto relógio da cerveja Guiness com uma imagem de uma ema com um copo de chope divertidamente entalado em sua garganta.

Aquele era o bar onde havia passado a fatídica hora do almoço durante a qual primeiro a sua casa e, depois, todo planeta Terra foi demolido, ou então pelo menos pareceu ter sido demolido. Não, caramba, foi demolido, caso contrário onde diabos ele teria estado durante os últimos oito anos e como teria chegado até lá, senão em uma das imensas naves amarelas dos vogons, que o terrível Russell acabara de dizer que não passavam de alucinações induzidas por drogas, mas entretanto, se o planeta foi mesmo demolido, o que era essa coisa sobre a qual ele estava de pé agora...?

Interrompeu bruscamente a sua linha de raciocínio porque não chegaria a nenhuma conclusão além da que chegara nas últimas vinte vezes. Começou de novo. Aquele era o bar onde havia passado a fatídica hora do almoço durante a qual aconteceu fosse o que fosse que ele iria descobrir depois que tinha acontecido e... Ainda não fazia sentido. Começou de novo. Aquele era o bar onde... Aquele era um bar.

Bares serviam bebidas e ele precisava desesperadamente de uma. Satisfeito porque os seus confusos processos mentais haviam finalmente chegado a uma conclusão, e a uma conclusão que o deixara satisfeito, mesmo não sendo a que ele inicialmente queria, caminhou em direção à porta.

E parou.

Um pequeno fox terrier pêlo-de-arame preto saiu correndo por trás de um muro baixo e, ao ver Arthur, começou a rosnar. Ora, Arthur conhecia aquele cachorro, e conhecia-o bem. Era de um amigo publicitário e se chamava Idiota-Sem-Noção, porque o modo como seu pêlo formava um topete na cabeça fazia as pessoas se lembrarem do presidente dos Estados Unidos, e o cachorro conhecia Arthur, ou pelo menos deveria. Era um cachorro burro, que não conseguia nem ler um teleprompter, motivo pelo qual algumas pessoas reclamaram do seu nome, mas ele devia, no mínimo, ser capaz de conhecer Arthur, em vez de ficar parado, de prontidão, o se Arthur fosse a aparição mais pavorosa a se intrometer em sua vida de cão medíocre.

Aquilo fez com que Arthur voltasse até a janela e olhasse novamente não para a ema asfixiada dessa vez, mas para a sua própria imagem refletida.

Vendo-se pela primeira vez em um contexto familiar, teve de admitir que o cachorro tinha razão.

Parecia-se muito com algo que um fazendeiro usaria para afugentar os pássaros e não havia a menor dúvida de que entrar no bar daquele jeito daria margem a comentários desagradáveis e, ainda pior, com certeza toparia com várias pessoas conhecidas lá dentro, que certamente o bombardeariam com perguntas que, no momento, não se sentia preparado para responder.

Will Smithers, por exemplo, o dono do Idiota-Sem-Noção, o Cachorro Antiprodígio, um animal tão imbecil que foi demitido de um dos comerciais do próprio Will por ser incapaz de saber qual das rações de cachorro devia preferir, apesar da carne em todas as outras tigelas ter sido encharcada com óleo de motor.

Will com certeza estaria lá dentro. O cachorro dele estava ali, o carro dele também, um Porsche 928S cinza com um adesivo na janela traseira onde se podia ler: "Meu outro carro também é um Porsche." Que babaca!

Olhando para o carro, percebeu que tinha acabado de perceber algo que ainda não tinha descoberto.

Will Smithers, como todos os idiotas com excesso de dinheiro e falta de escrúpulos que Arthur conhecia no meio publicitário, fazia questão de trocar de carro todo ano no mês de agosto, para poder dizer para as pessoas que havia sido um idéia do seu contador, embora na verdade o seu contador estivesse tentando enlouquecidamente fazê-lo desistir daquilo, por causa de todas as pensões que ele tinha de pagar, etc. e tal - e aquele era o mesmo carro que Arthur já conhecia. O número da placa proclamava o seu ano.

Levando-se em consideração que estavam no inverno e que o acontecimento que causara tantos problemas a Arthur durante oito de seus anos particulares ocorrera no início de setembro, no máximo seis ou sete meses haviam passado ali.

Ficou horrivelmente parado por um momento e deixou o Idiota-Sem-Noção pular para cima e para baixo, latindo para ele. Fora atingido de repente por uma constatação inevitável, que era a seguinte: a partir de agora era um ET em seu próprio mundo. Por mais que tentasse, ninguém ia acreditar na sua história. Não apenas soava perfeitamente louca, mas também era totalmente contraditória diante do mais simples dos fatos observáveis. Aquela era a Terra mesmo? Havia alguma possibilidade de ele ter cometido um erro incrível?

O bar diante dele parecia insuportavelmente familiar, em todos os detalhes - cada tijolo, cada pedacinho de tinta descascada. Ele podia perceber, lá dentro, o mesmo calor familiar, abafado e barulhento, as suas vigas expostas, as suas luminárias imitando ferro fundido, o bar grudento de cerveja onde conhecidos seus haviam colocado os cotovelos, de onde se podia contemplar garotas recortadas em papelão com pacotes de amendoim grampeados nos peitos. Coisas típicas do seu lar, do seu mundo.

Conhecia até aquele cachorro desgraçado.

- Ei, Sem-Noção!

O som da voz de Will Smithers significava que ele tinha que decidir o que fazer, e rápido. Se ficasse onde estava, seria descoberto e a confusão toda ia começar. Se ele se escondesse, estaria apenas adiando o momento, e estava fazendo um frio danado. O fato de ser Will tornou a decisão mais fácil. Não que Arthur não gostasse dele - Will era um cara divertido. O problema é que era divertido de uma maneira cansativa porque, sendo publicitário, sempre queria que todo mundo soubesse o quanto estava se divertindo e onde comprara a sua jaqueta.

Tendo isso em mente, Arthur escondeu-se atrás de uma van.

- E aí, Sem-Noção, qual é o caso?

A porta se abriu e Will saiu do pub, usando uma jaqueta de aviador contra a qual um carro havia sido arremessado, a seu pedido, por um amigo do Laboratório de Simulação de Acidentes, para que ficasse com aquela aparência desgastada. Sem-Noção latiu todo bobo e, ganhando a atenção que queria, esqueceu-se alegremente de Arthur. Will estava com uns amigos e eles sempre faziam a mesma brincadeira com o cachorro.

- Olha os comunas! - gritavam para ele, todos ao mesmo tempo. - Comunas, comunas, comunas!!!

O cachorro ficava descontrolado, latindo sem parar, saltitando, colocando os bofes pra fora, transportado para além de si num êxtase de raiva. Eles riram e continuaram a brincadeira e depois, gradualmente, foram se dispersando para os seus respectivos carros e desapareceram noite adentro.

“Bom, isso esclarece uma coisa”, pensou Arthur atrás da van, “esse é definitivamente o planeta de que me lembro.”

capítulo 7

A sua casa continuava no mesmo lugar.

Como ou por que, não fazia a menor idéia. Resolveu dar uma olhada enquanto esperava o pub esvaziar, para poder entrar e solicitar ao dono uma acomodação para aquela noite, depois que todos tivessem ido embora. E lá estava a sua casa, no mesmo lugar. Entrou correndo, usando a chave que guardava debaixo de um sapo de pedra no jardim, porque, surpreendentemente, o telefone estava tocando.

Tinha ouvido aquele toque baixinho enquanto avançava pela rua e começou a correr assim que percebeu de onde vinha o som.

Teve de abrir a porta à força, por causa do incrível acúmulo de correspondência inútil no capacho. Estava bloqueada pelo que ele mais tarde descobriria serem quatorze convites pessoais idênticos para que ele se associasse a um cartão crédito que já tinha, dezessete cartas ameaçadoras idênticas por causa do não pagamento das contas de um cartão de crédito que ele não tinha, trinta e três cartas idênticas informando que ele havia sido pessoalmente selecionado a dedo por ser um homem distinto e de bom gosto que sabia o que queria e para onde estava indo no sofisticado mundo do jet-set e que, portanto, gostaria de comprar uma carteira grotesca e também um gatinho morto.

Esgueirou-se pela abertura relativamente estreita que conseguiu em meio aquele caos, tropeçou em uma pilha de ofertas de vinhos que nenhum connoisseur poderia perder, deslizou sobre um monte de folhetos de férias em casas de praia, subiu desajeitadamente as escadas escuras até o seu quarto e atendeu o telefone bem na hora em que parou de tocar. Desabou, ofegante, na sua cama fria e com cheiro de mofo e, por alguns minutos, parou de tentar evitar que o mundo girasse em sua cabeça do modo como ele obviamente queria girar. Depois de o mundo ter curtido a sua voltinha e se acalmado um pouco, Arthur alcançou o abajur na cabeceira, achando que não acenderia. Para a sua surpresa, acendeu. Aquilo fazia sentido dentro da lógica de Arthur. Já que a Companhia Elétrica sempre cortava a luz quando ele pagava a conta, parecia razoável mantê-la funcionando quando não pagasse. Mandar o dinheiro obviamente só servia para se fazer notar por eles.

O quarto estava exatamente como ele deixara, ou seja, putridamente desarrumado, embora o efeito estivesse um pouco amenizado por uma grossa camada de poeira. Livros e revistas semilidos repousavam entre pilhas de toalhas semi-usadas. Semipares de meia recostavam-se em semibebidas xícaras de café. O que uma vez fora um semicomido sanduíche agora semivirara algo que Arthur completamente queria ignorar. "Basta lançar um raio aqui nessa zona", pensou ele, e toda a evolução da vida começa do zero novamente." Só havia uma coisa diferente no quarto.

Ele não conseguiu ver de imediato o que essa única coisa dirente era, porque ela também estava coberta por uma película de poeira nojenta. Então, os seus olhos a encontraram e pararam.

Estava ao lado da sua velha e gasta televisão, onde só era possível assistir às aulas da Universidade Aberta, porque se ela tentasse exibir algo mais interessante iria quebrar. Era uma caixa.

Arthur apoiou-se nos seus cotovelos e a examinou.

Era uma caixa cinza, com um brilho fosco. Uma caixa pardacenta quadrada, com uns trinta centímetros de altura. Estava amarrada com uma única fita cinza, arrematada com um belo laço em cima.

Ficou de pé, foi até ela e a tocou, surpreso. Fosse o que fosse, estava lindamente

embrulhada para presente, esperando que ele a abrisse.

Apanhou a caixa com cuidado e levou-a de volta até a sua cama. Espanou a poeira da parte de cima e desfez o laço. O topo da caixa era uma tampa, com uma aba dobrada. Abriu e olhou para dentro da caixa. Era um globo de vidro envolvido em um delicado papel cinzento. Ele o removeu, com cuidado. Não era exatamente um globo porque tinha uma abertura embaixo, ou, como Arthur percebeu ao virá-lo, em cima, circundada por um grosso aro. Era um aquário.

Um aquário de peixes, feito do vidro mais maravilhoso, perfeitamente transparente, mas, ainda assim, possuía uma tonalidade cinzenta extraordinária, como se tivesse sido feito de cristal e ardósia.

Arthur o girou devagar entre as mãos. Era um dos objetos mais lindos que já vira na vida, mas ele estava completamente perplexo diante dele. Olhou dentro da caixa, mas, tirando o papel do embrulho, não havia nada. Fora da caixa, também nada.

Girou o aquário novamente. Era maravilhoso. Era sofisticado. Mas era um aquário. Deu uma batidinha com a unha e ele vibrou com um clangor profundo e glorioso, que durou mais tempo do que parecia possível e, quando finalmente desvaneceu, pareceu não terminar, e sim migrar para outros mundos, como para dentro de um sonho em alto-mar. Encantado, Arthur o girou novamente e desta vez a luz do abajur empoeirado na cabeceira o atingiu em um ângulo diferente e cintilou sobre umas delicadas gravações na superfície do aquário. Ele o suspendeu, ajustando o ângulo da luz, e de repente viu claramente as palavras delicadamente gravadas na superfície do vidro.

"Até mais", diziam elas, "e obrigado..."

E isso era tudo. Piscou, sem entender nada.

Por uns cinco minutos, ele girou o objeto de um lado para o outro, olhou contra a luz sob diferentes ângulos, deu pancadinhas para repetir o seu som hipnótico e ponderou qual seria o significado daquelas palavras vagas, mas não encontrou nenhum. Finalmente, levantou-se, encheu o aquário com água da bica e colocou-o novamente na mesa ao lado da televisão. Sacudiu o pequeno peixe-babel da orelha e deixou-o cair, contorcendo-se, no aquário. Não precisaria mais dele, exceto para ver filmes estrangeiros.

Voltou para deitar-se na cama e apagou a luz.

Ficou parado, em silêncio. Absorveu a escuridão envolvente, relaxando aos poucos os seus membros de cima a baixo, acalmando e regulando a respiração, gradualmente esvaziando a sua mente de todos os pensamentos. Fechou os olhos e descobriu que não conseguia dormir de jeito nenhum.

A noite estava inquieta com a chuva. As nuvens carregadas já haviam se deslocado e estavam naquele momento concentrando a sua atenção em um café de beira de estrada em Bournemouth, mas o céu que percorreram tinha sido perturbado por elas e exibia agora um ar amuadamente encrespado, como se não soubesse o que mais seria capaz de não fazer se fosse provocado.

A lua despontou, aguada. Parecia uma bola de papel enfiada no bolso de trás de um jeans que tinha acabado de sair da máquina de lavar e que só o tempo e um ferro de passar diriam se era uma velha lista de compras ou uma nota cinco libras.

O vento se agitou, de leve, como o rabo de um cavalo tentando decidir que tipo de humor adotaria naquela noite e algum lugar um sino badalou meia-noite. Uma clarabóia se abriu, num estalo. Estava emperrada e teve de ser sacudida e um pouco persuadida, porque o caixilho estava meio podre e as dobradiças haviam sido, em algum momento de sua vida, inteligentemente pintadas por cima, mas finalmente ela se abriu. Uma escora foi usada para mantê-la aberta e uma figura saiu com dificuldade pela estreita vala entre as duas faces do telhado.

A figura ficou imóvel, admirando o céu em silêncio.

Estava completamente irreconhecível, diferente da criatura selvagem que irrompera loucamente dentro de casa há mais ou menos uma hora. Tinha dado adeus ao roupão puído e esfarrapado, manchado com a lama de cem mundos e condimentos de junk food de cem espaçoportos imundos, tinha dado adeus ao cabelo desgrenhado, à barba comprida e cheia de nós com seu ecossistema florescente e tudo o mais.

Em vez de tudo isso, havia o Arthur Dent tranqüilo e descontraído, usando calças de veludo cotelê e um suéter bem grosso. O seu cabelo estava curto e lavado, o rosto bem barbeado. Apenas os seus olhos ainda diziam que, fosse lá o que o Universo pensasse estar fazendo com ele, gostaria muito que por favor parasse.

Aqueles não eram os mesmos olhos com os quais observara aquela vista pela última vez, e o cérebro que interpretava a. imagens que seus olhos montavam também não era o mesmo cérebro. Nenhuma cirurgia envolvida, apenas a desarticulação contínua da experiência. A noite parecia uma coisa viva para ele naquele momento e terra escura à sua volta era um ser no qual estava enraizado.

Podia sentir como um formigamento em terminações nervosas distantes, o fluxo de um rio longínquo, colinas invisíveis ondulantes, o grupo de nuvens carregadas estacionadas em algum lugar ao sul.

Podia sentir também a emoção de ser uma arvore, o que era algo inesperado. Sabia que era bom enroscar os dedos dos pés na terra mas nunca imaginara que pudesse ser tão bom assim. Podia sentir uma onda de prazer quase indecente o atingindo em cheio, vindo da New Forest. "Algo para fazer no verão", pensou ele, "experimentar a sensação de ter folhas." De outra direção, sentiu o que era ser uma ovelha assustada com um disco voador, mas aquela era uma sensação virtualmente indistinguível da sensação de ser uma ovelha assustada com qualquer outra coisa que aparecesse no seu caminho, pois as ovelhas eram criaturas que aprendem muito pouco na sua jornada pela vida e ficariam assustadas ao ver o sol nascendo na manhã e admiradas com aquelas coisas verdes recobrindo os campos. Ficou surpreso ao perceber que podia sentir a ovelha se assustando com o sol naquela manhã e na manhã anterior e se assustando com um arvoredo dois dias antes. Podia voltar cada vez mais para trás, mas acabou ficando chato porque eram sempre ovelhas assustadas com coisas que as assustaram na véspera.

Abandonou a ovelha e deixou a sua mente deslizar distante, sonolenta, em ondas crescentes. Ela sentiu a presença de outras mentes, centenas delas, milhares, algumas sonolentas, algumas em sonhos, algumas muito agitadas, uma fraturada. Uma fraturada.

Perpassou brevemente por esta última, depois tentou voltar a senti-la, mas ela lhe escapou, como a segunda carta com a imagem da maçã no jogo de memória. Sentiu um espasmo de emoção, porque sabia instintivamente de quem era aquela mente ou, pelo menos, de quem gostaria que fosse e, quando se sabe o que se deseja ser verdade, o instinto é uma ferramenta muito útil para permitir que se saiba que de fato é. Sabia instintivamente que era Fenny e queria encontrá-la; mas não podia. Se tentasse forçar a barra, sentia que perdia aquela nova e estranha habilidade, então desistiu da busca deixou que a sua mente perambulasse à toa mais uma vez.

E, novamente, sentiu a fratura.

Novamente não conseguia encontrá-la. Desta vez, fosse lá o que o seu instinto estivesse tentando lhe dizer no que era legal acreditar, não tinha mais tanta certeza de que era Fenny talvez fosse uma outra fratura daquela vez. Tinha a mesma característica desjuntada, mas parecia um sentimento mais geral de fratura, mais profundo, não uma única mente, ou sequer uma mente. Era outra coisa.

Deixou a sua mente afundar devagarinho e em sua totalidade na Terra, ondulando, penetrando, afundando.

Estava acompanhando as idades da Terra, vagando com os ritmos de seus inúmeros pulsos, permeando suas teias da vida, boiando em suas marés, girando com o seu peso. A fratura sempre retornava, uma desjuntada dor distante e melancólica. E agora viajava sobre uma terra de luz; a luz era o tempo, as suas marés eram dias retrocedendo. A fratura que havia sentido, a segunda fratura, encontrava-se ao longe, diante dele, cruzando a terra, fina como um único fio de cabelo ao longo da paisagem de sonhos dos dias da Terra.

E subitamente ele estava lá.

Dançou vertiginosamente sobre a extremidade enquanto a terra de sonhos desprendia-se abruptamente abaixo dele, um precipício apavorante para o nada, e ele loucamente contorcia-se, agarrando o vazio, retorcido no espaço horrorizante, girando, caindo. Sobre o abismo rachado antes houvera outra Terra, outro antigo mundo, sem fraturas, antes forçosamente unido: duas Terras. Ele acordou.

Uma brisa fria tocou o suor febril em sua testa. O pesadelo tinha passado e levara junto suas forças. Curvado sobre os ombros, esfregou delicadamente os olhos com a ponta dos dedos. Finalmente, estava não só com sono como muito cansado. E quanto ao significado do sonho, se é que tinha algum, era algo que só pensaria pela manhã; agora ia para cama dormir mesmo. A sua cama, o seu sono.

Podia ver a sua casa lá longe e não estava entendendo aquilo. Sua silhueta estava recortada contra a luz da lua e ele reconheceu o seu formato quadradão. Olhou à sua volta e percebeu que estava uns quarenta centímetros acima das roseiras de um dos seus vizinhos, John Ainsworth. Aquelas roseiras eram delicadamente cultivadas, podadas no inverno, presas por bambus e etiquetadas, e Arthur se perguntou o que estava fazendo ali, pairando sobre elas. Depois se perguntou o que o mantinha no ar e, quando descobriu que nada o segurava, caiu desajeitado no chão.

Levantou, sacudiu a poeira e voltou mancando para casa com o tornozelo torcido. Despiuse e caiu na cama. Enquanto dormia, o telefone tocou novamente. Tocou por exatos quinze minutos e fez com que ele mudasse de posição na cama duas vezes. Nunca, porém, teve a menor chance de acordá-lo

capítulo 8

Arthur acordou sentindo-se ótimo, absolutamente fabuloso, descansado, superfeliz por estar em casa, cheio de energia e nada decepcionado ao descobrir que estava em meados de fevereiro.

Foi praticamente dançando até a geladeira, catou as três coisas menos assustadoras que estavam lá dentro, colocou-as no prato e observou-as fixamente por dois minutos. Já que não fizeram menção de se mexer durante esse período, chamou-as de café-da-manhã e comeu-as. Juntas, elas neutralizaram uma doença espacial virulenta que ele havia contraído sem saber nos Pântanos Gasosos de Flargathon alguns dias antes que, do contrário, teria matado metade da população do hemisfério ocidental, cegado a outra metade e deixado todo o resto psicótico e estéril, de modo que a Terra teve sorte.

Sentia-se forte, sentia-se saudável. Pegou uma pá e jogou fora as correspondências inúteis vigorosamente. Depois enterrou o gato.

Justo quando estava terminando o serviço, o telefone tocou, mas ele deixou tocar, mantendo um minuto de silêncio respeitoso. Seja lá quem fosse, ligaria novamente se fosse algo importante.

Limpou a lama dos sapatos e voltou para dentro de casa.

Conseguiu encontrar umas poucas cartas importantes no meio daquela montoeira de lixo alguns documentos do conselho, datados de três anos atrás, sobre a suposta demolição da sua casa e algumas outras cartas sobre a instauração de uma investigação pública sobre o plano de construção de um desvio na área; havia também uma carta antiga do Greenpeace, o de ativistas ecológicos para o qual contribuía ocasionalmente, pedindo ajuda para o seu projeto de libertar golfinhos e orcas do cativeiro e alguns cartões-postais de amigos, reclamando vagamente que ele nunca mais tinha dado notícias.

Juntou tudo isso e colocou num arquivo de papelão, no qual escreveu "Coisas Para Fazer". Já que estava se sentindo bastante vigoroso e dinâmico naquela manhã, chegou até mesmo a acrescentar a palavra "Urgente!".

Tirou a sua toalha e outras bugigangas esquisitas da sacola de compras que adquirira no Mega Mercado de Porto Brasta. O slogan impresso na sacola era um trocadilho inteligente e rebuscado no idioma centauriano, completamente incompreensível em qualquer outro idioma e, portanto, absolutamente sem sentido para uma loja de Duty Free em um espaçoporto. A sacola também estava furada, então ele a jogou fora.

Percebeu então que devia ter perdido outra coisa na pequena nave que o trouxera à Terra, gentilmente fazendo um desvio para deixá-lo próximo ao A303. Havia perdido a sua cópia surrada e desgastada daquilo que o ajudara a encontrar o seu caminho através das incríveis imensidões espaciais que ele cruzara. Havia perdido o Guia do Mochileiro das Galáxias.

“Bem”, pensou ele, "não devo precisar dele novamente." Tinha que fazer umas ligações.

Decidira como lidar com o volume de contradições que a sua volta para casa precipitara: ia simplesmente ignorá-lo.

Ligou para a BBC e pediu para falar com o diretor do seu departamento.

- Alô, oi, aqui quem fala é Arthur Dent. Escuta, desculpa ter faltado ao trabalho nos últimos seis meses, mas é que eufiquei maluco.

- Ah, não tem problema, não. Achei que fosse algo no gênero. Acontece o tempo todo por aqui. Quando é que você volta?

- Quando os porcos-espinhos param de hibernar?

- Durante a primavera, eu acho.

- Volto um pouquinho depois, então.

- Tudo bem.

Folheou as Páginas Amarelas e fez uma pequena lista com possíveis números de telefone.

- Alô, é do Hospital Old Elms? Bem, eu estou ligando para saber se posso dar uma palavrinha com Fenella, ah... Fenella. Meu Deus, como eu sou idiota, daqui a pouco vou esquecer o meu próprio nome, ah, Fenella - é ridículo, não é? É uma paciente de vocês, uma garota de cabelos escuros, deu entrada aí ontem à noite...

- Sinto muito, mas não temos nenhuma paciente chamada Fenella.

- Ah, não? Na verdade eu queria dizer Fiona, é claro, é que nós a chamamos de Fen...

- Sinto muito, adeus.

Click.

Seis conversas mais ou menos como essa começaram a desgastar o seu otimismo vigoroso e dinâmico, então decidiu que, antes que ele o abandonasse completamente, iria levá-lo par dar uma volta até o bar e exibi-lo para as pessoas.

Teve a idéia perfeita para explicar cada estranheza inexplicável sobre si mesmo de uma só

vez, e assoviou para si mesmo abrir ao porta que tanto o intimidara na noite anterior.

- Arthur!!!

Sorriu alegremente diante dos olhares perplexos que o contemplavam de todos os cantos do pub e contou para todo mundo como havia se divertido na Califórnia do Sul. capítulo 9

Aceitou outra cerveja e mandou ver.

- É claro, eu também tinha o meu alquimista particular.

- Você o quê?

Estava começando a falar besteiras e sabia disso. A mistura das melhores cervejas pretas da Exuberance, Hall e Wood-house era algo que impunha respeito, mas um dos seus primeiros efeitos era fazer com que você parasse de respeitar qualquer coisa, e a hora em que Arthur devia ter parado de explicar coisas foi justamente a hora em que começou a soltar sua criatividade.

- Isso aí! - insistiu ele com um alegre sorriso vidrado. - Por isso eu perdi tanto peso.

- Como assim? - perguntou a sua platéia.

- Isso aí! - repetiu ele. - Os californianos redescobriram a alquimia. Isso aí!

Sorriu novamente.

- Só que - disse ele - de um jeito muito mais útil do que aquele que... - Ele parou, pensativo, para deixar um pouquinho de gramática reunir-se na sua cabeça. - Aquele que os antigos costumavam praticar. Ou, pelo menos - acrescentou ele -, não conseguiam praticar. Eles não conseguiam fazer nada disso funcionar, sabem? Nostradamus e todo o pessoal. Não davam uma dentro.

- Nostradamus? - perguntou alguém na platéia.

- Eu não sabia que ele era alquimista - comentou outro.

- Eu pensava - disse um terceiro - que ele fosse um profeta.

- Ele virou profeta - explicou Arthur para a sua platéia, cujos membros começavam a oscilar e a ficar um pouco indistintos - justamente porque era um péssimo alquimista. Vocês deveriam saber disso.

Deu outro gole na cerveja. Era algo que não provava há oito anos. Provava e provava.

- O que a alquimia tem a ver - perguntou um borrão na audiência - com a perda de peso?

- Foi bom você ter perguntado - disse Arthur. - Muito bom. E eu agora vou explicar pra vocês qual é a relação entre... - Fez uma pausa. - Entre essas duas coisas. Essas que vocês mencionaram. Eu vou explicar.

Parou e manobrou os seus pensamentos. Era como assistir a um navio-petroleiro executando uma inversão de curso em três movimentos no canal da Mancha.

- Eles descobriram como transformar o excesso de gordura no corpo em ouro - disse ele, em um súbito acesso de coerência.

- Tá brincando.

- Isso aí! - disse ele. - Quer dizer, não - corrigiu -, é sério. Olhou para a parte da sua platéia que estava desconfiada, o que era basicamente a platéia toda, então demorou um pouco mais para olhar todo mundo.

- Vocês já foram à Califórnia? - perguntou ele. - Vocês sabem o que eles fazem por lá?

Três membros da platéia responderam que sim e que ele estava falando besteira.

- Vocês não viram nada - insistiu Arthur. - Isso aí! - acrescentou ele, porque alguém estava se oferecendo para pagar mais uma rodada.

- A prova - disse ele, apontando para si mesmo e errando por poucos centímetros - está

diante dos seus olhos. Quatorze horas em transe - disse ele - em um tanque. Em transe. Eu estava em um tanque. Acho - acrescentou ele, após uma breve reflexão - que já disse isso. Esperou, paciente, enquanto a nova rodada era devidamente distribuída. Já havia composto a próxima parte da história na sua cabeça, que ia ser algo sobre o tanque ter de ser orientado de acordo com uma linha traçada perpendicularmente da Estrela Polar até uma linha imaginária traçada entre Marte e Vênus e estava começando a tentar dizer isso quando decidiu deixar para lá.

- Muito tempo - disse, em vez disso - em um tanque. Em transe. - Olhou severamente para a platéia, para ter certeza de que todos estavam ouvindo com atenção. Tornou a falar.

- Onde é que eu estava mesmo? - perguntou.

- Em transe - disse um.

- No tanque - disse outro.

- Isso aí! - disse Arthur. - Obrigado. E aos poucos, bem aos poucos, todo o excesso de gordura... se transforma... em... - fez uma pausa para dar mais efeito - ...ouro subicoo... subconan... subtucân... - parou para respirar - ...ouro subcutâneo e você pode fazer uma cirurgia para retirá-lo do seu corpo. Sair do tanque é um inferno. O que você disse?

- Eu só estava limpando a garganta.

- Eu acho que você não está acreditando em mim.

- Eu estava limpando a garganta.

- Ela estava limpando a garganta - confirmou uma parte significativa da platéia em um sussurro.

- Isso aí - disse Arthur -, tudo bem. E então você divide o ouro... - parou novamente para fazer as contas - ...meio a meio com o alquimista. Ganha muito dinheiro!

Olhou girando para a sua platéia e não pôde deixar de perceber um ar de ceticismo em seus rostos confusos.

Tomou aquilo como uma afronta pessoal.

- De que outro modo - perguntou ele - eu teria dinheiro para pagar um envelhecimento facial?

Braços amigos começaram a ajuda-lo a ir para casa.

- Vejam bem - protestou, enquanto a brisa gelada de fevereiro tocava o seu rosto -, parecer maduro é a última moda na Califórnia atualmente. Você tem que parecer alguém que já viu a Galáxia. A vida, quero dizer. Você tem que parecer alguém que já viu a vida. Tá na cara, dei uma envelhecida. Manda aí uns oito anos, eu disse. Só espero que ter trinta anos não volte à

moda, senão gastei uma fortuna à toa.

Ficou em silêncio por alguns minutos, enquanto os braços amigos continuavam a ajudá-lo.

- Voltei ontem - murmurou ele. - Estou muito feliz de estar em casa. Ou em algum lugar muito parecido...

- Jet lag - sussurrou um dos seus amigos. - Viagem longa, da Califórnia pra cá. Derruba qualquer um por alguns dias.

- Eu acho que ele nem esteve lá - cochichou um outro. - Onde será que ele estava? E o que será que aconteceu com ele?

Após um cochilo, Arthur se levantou e zanzou um pouco pela casa. Estava meio alto e um pouco deprimido, ainda meio perdido por causa da viagem. Estava pensando em como faria para encontrar Fenny.

Sentou-se e ficou olhando para o aquário. Deu uma batidinha com a unha e, apesar de ele estar cheio d'água e com o pequeno peixe-babel amarelo borbulhando desanimado lá dentro, som que ele produziu foi profundo e ressonante, tão claro e hipnótico quanto antes.

“Alguem está tentando me agradecer”, pensou. Perguntou-se quem e por quê. capítulo 10

No terceiro bipe será uma hora... trinta e dois minutos... e vinte segundos.

- Bipe... bipe... bipe.

Ford Prefect sufocou um risinho de satisfação diabólica, percebeu que não tinha motivo para sufocá-lo e deu uma gargalhada bem alta, uma gargalhada perversa. Alterou o sinal de entrada da Subeta Net para o sistema de som da nave e a estranha voz, um tanto afetada, cantarolou com extraordinária clareza na cabine.

- No terceiro bipe será uma hora... trinta e dois minutos... e trinta segundos.

- Bipe... bipe... bipe.

Ele aumentou um pouco o volume enquanto observava atentamente uma tabela de números que se alteravam rapidamente na tela do computador da nave. Considerando-se quanto tempo aquilo deveria durar, a questão do consumo de energia era importante. Não queria um assassinato pesando em sua consciência.

- No terceiro bipe será uma hora... trinta e dois minutos. -e quarenta segundos.

- Bipe... bipe... bipe.

Olhou em volta da pequena nave. Andou pelo pequeno corredor.

- No terceiro bipe...

Meteu a cabeça dentro do pequeno e funcional banheiro de aço cintilante.

- ...será...

Ouvia-se bem lá de dentro.

Verificou o minúsculo dormitório.

- uma hora... trinta e dois minutos...

O som estava um pouco abafado. Havia uma toalha sobre um dos alto-falantes. Ele tirou a toalha.

- ...e cinqüenta segundos.

Agora, sim.

Checou o compartimento de cargas e não ficou nem um pouco satisfeito com o som. Havia muita tralha encaixotada no caminho. Deu um passo para trás e esperou a porta se fechar sozinha. Forçou um painel de controle que estava fechado e apertou o botão de eliminação de carga. Não sabia como não tinha pensado nisso antes. Ouviu um turbilhão de ar acompanhado por alguns ruídos surdos que se transformou rapidamente em silêncio. Após uma pausa, um leve sibilar pôde ser ouvido novamente.

Parou.

Esperou a luzinha verde aparecer e então abriu novamente a porta do compartimento de carga, agora vazio.

- uma hora... trinta e três minutos... e cinqüenta segundos.

Ótimo.

- Bipe... bipe... bipe.

Foi fazer então uma última verificação minuciosa na câmara de animação suspensa de emergência, que era onde estava especificamente interessado que a voz fosse ouvida.

- No terceiro bipe será uma hora... e trinta e quatro... em ponto. Sentiu um calafrio ao espreitar, através da superfície incrivelmente congelada, a forma imprecisa da criatura lá dentro. Um dia, sabe-se lá quando, ela acordaria e, quando acordasse saberia as horas. Não seria exatamente a hora local, é verdade mas fazer o quê?

Verificou duas vezes a tela do computador sobre a cama de resfriamento, diminuiu as luzes e verificou novamente.

- No terceiro bipe será...

Saiu na ponta dos pés e voltou para a cabine de controle

- ...uma hora... trinta e quatro minutos... e vinte segundos.

A voz soava tão clara como se estivesse em um telefone em Londres, coisa que não estava, nem de longe.

Contemplou a noite escura. A estrela do tamanho de uma migalha brilhante de biscoito que conseguia ver lá longe era Zondostina ou, como era conhecida no mundo de onde vinha a voz afetada e cantarolante, Zeta de Plêiades.

A brilhante curva alaranjada que preenchia mais da metade da área visível era o gigante planeta gasoso Sesefras Magna, onde as naves de guerra xaxisianas atracavam e, logo acima do seu horizonte, via-se uma pequena lua azulada, Epun.

- No terceiro bipe será...

Durante vinte minutos ele ficou sentado, olhando enquanto a distância entre a nave e Epun diminuía, e o computador da nave arredondava e massageava os números que a aproximariam da órbita em torno da pequena lua, depois transformariam aquilo em uma órbita permanente, aprisionando e mantendo a nave ali, em perpétua obscuridade.

- uma hora... cinqüenta e nove minutos...

O seu plano inicial tinha sido o de desligar todas as sinalizações e emissões de radiação externas da nave para deixá-la o mais invisível possível, a não ser que você estivesse olhando diretamente para ela, mas então teve uma outra idéia e e achou que era muito melhor. A nave agora emitiria um único feixe contínuo, tão fino quanto um lápis, transmitindo o sinal de tempo recebido para o planeta de onde o sinal se origina

O sinal levaria uns quatrocentos anos para chegar lá à velocidade da luz mas certamente causaria uma boa comoção quando finalmente chegasse.

- Bipe-bipe... bipe.

Riu baixinho.

Não gostava de pensar que era uma dessas pessoas que riem baixinho ou seguram o riso, mas tinha de admitir que estava rindo baixinho e segurando o riso sem parar havia mais de meia hora.

- No terceiro bipe...

A nave estava agora quase perfeitamente alinhada em sua órbita perpétua ao redor de uma lua pouco conhecida e jamais visitada. Quase perfeito.

Faltava só uma coisa. Acionou novamente no computador a simulação do lançamento da cápsula de fuga da nave, estimando ações, reações, forças tangenciais e toda aquela poesia matemática do movimento e viu que estava tudo o.k.

Antes de sair, apagou as luzes.

Quando a sua minúscula navezinha de fuga partiu zunindo no início de sua viagem de três dias até a estação espacial de Porto Sesefron, acompanhou por alguns segundos um longo feixe de radiação, fino como um lápis, que estava começando uma viagem muito mais longa. No terceiro bipe serão duas horas... treze minutos... e cinqüenta segundos. Ele riu baixinho, segurando o riso. Gostaria de ter rido bem alto, mas não tinha espaço.

- Bipe... bipe... bipe.

capítulo 11

-Chuvas de abril, essas são especialmente detestáveis.

Apesar dos grunhidos evasivos de Arthur, o homem parecia determinado a conversar com ele. Chegou a pensar em levantar-se e ir para outra mesa, mas aparentemente não havia uma única mesa vazia no restaurante. Mexeu o seu café, irritado.

- Malditas chuvas de abril. Detesto, detesto, detesto.

Arthur estava olhando fixamente para fora da janela, franzindo a testa. Uma chuva fininha e ensolarada pairava sobre a estrada. Fazia dois meses que ele voltara para casa. Retomar a sua vida havia sido ridiculamente fácil. As pessoas tinham uma memória incrivelmente curta, inclusive ele. Oito anos de perambulações malucas pela Galáxia agora lhe pareciam não como uma espécie de pesadelo, mas como um filme gravado na tevê que ele deixara esquecido atrás de um armário, sem a menor vontade de assistir.

Um efeito que ainda permanecia, porém, era a sua alegria por estar de volta. Agora que a atmosfera da Terra havia se fechado de vez sobre a sua cabeça, pensou ele, completamente enganado, tudo no planeta lhe proporcionava um extraordinário prazer. Olhando o brilho prateado dos pingos chuva, sentiu-se na obrigação de discordar.

- Bem eu gosto delas - disse, de repente -, e por vários motivos. São leves e refrescantes. Cintilam e fazem a gente se sentir bem.

O homem bufou, debochado.

- É o que todos dizem - comentou, com a cara fechada, do outro canto na mesa. Era um motorista de caminhão. Arthur sabia disso porque o comentário inicial e absolutamente espontâneo havia sido: "Sou motorista de caminhão. E detesto dirigir na chuva. Irônico, não é? Irônico pra cacete."

Se havia uma conexão lógica oculta entre os dois fatos daquele comentário, Arthur não foi capaz de adivinhá-la e apenas resmungou de maneira afável, mas sem puxar papo. Ainda assim, o homem não tinha parado de falar naquela hora e continuava falando agora.

- Sempre dizem a mesma coisa sobre as insuportáveis chuvas de abril - disse ele. - Tão insuportavelmente boas, tão insuportavelmente refrescantes, um clima tão insuportavelmente agradável.

Inclinou-se para a frente, fazendo uma careta feia, como se estivesse prestes a dizer algo sobre o governo.

- O que eu quero saber é o seguinte: se o tempo vai ficar bom, por que - ele quase cuspiu não pode ficar bom sem essa maldita chuva?

Arthur desistiu. Decidiu abandonar o seu café, que estava quente demais para ser bebido depressa e ruim demais para ser bebido frio.

- Bom, vejo que já está de saída - disse, levantando-se. - Tchau. Deu uma parada na lojinha do posto de gasolina e depois atravessou o estacionamento, fazendo questão de desfrutar um pouco aquele agradável chuvisco no rosto. Havia até como pôde notar, um tênue arco-íris resplandecendo sobre colinas de Devon. Desfrutou aquilo também.

Entrou no seu velho mas amado Golf GTi preto cantando os pneus e seguiu, deixando para trás as ilhas de bombas de gasolina, em direção à estrada de acesso, de volta à rodovia principal.

Estava enganado ao pensar que a atmosfera da Terra havia finalmente se fechado, e se fechado para sempre, sobre a sua cabeça.

Estava enganado ao pensar que algum dia seria possível deixar para trás a emaranhada teia de irresoluções para a qual as suas viagens galácticas o haviam arrastado. Estava enganado ao pensar que podia esquecer que a Terra - imensa, sólida, oleosa, suja e pendurada em um arco-íris - na qual vivia não passava de um pontinho microscópico em um outro pontinho microscópico na infinitude inimaginável do Universo. Continuou dirigindo, cantarolando, redondamente enganado sobre todas essas coisas. O motivo pelo qual ele estava enganado estava parado na beira da estrada, cobrindo-se com um pequeno guarda-chuva.

O seu queixo caiu. Torceu o tornozelo contra o pedal do freio e derrapou tão violentamente que o carro quase capotou.

- Fenny! - gritou ele.

Tendo evitado por pouco não atingir a garota com o carro em si, atingiu-a com a porta do carro ao abri-la para que ela pudesse entrar. A porta bateu na mão da moça e fez com que deixasse cair seu guarda-chuva, que saiu rodopiando descontroladamente pela estrada.

- Merda! - gritou Arthur, enquanto saltava para fora do carro o mais gentilmente que podia, não sendo atropelado pelo "Fretes McKeena - Faça chuva ou faça sol" por um triz e assistindo, horrorizado, ele destruir o guarda-chuva de Fenny. O caminhão seguiu pela estrada, indiferente.

O guarda-chuva jazia como um pernilongo recém-esmagado, tristemente moribundo no chão. Pequenas rajadas de vento faziam com que ele estrebuchasse um pouco. Arthur o apanhou.

- Ah - disse ele. Não fazia muito sentido oferecer aquela coisa de volta para ela.

- Como é que você sabe o meu nome?

-Ah, bem - disse ele. - Olha, eu compro outro para você...

Olhou para ela e ficou fraco.

Ela era alta, com cabelos negros caindo em ondas em volta do seu rosto pálido e sério. Imóvel na beira da estrada, completamente sozinha, parecia quase lúgubre, como uma estátua de alguma virtude importante, mas pouco popular, em um jardim formal. Ela parecia estar olhando para outra coisa que não aquilo para o que ela parecia estar olhando. Mas quando sorria, como naquele instante, era como se tivesse chegando de algum lugar. Calor e vida inundavam o seu rosto e um movimento inacreditavelmente gracioso tomava o seu corpo. O efeito era muito desconcertante e desconcertou Arthur completamente. Ela sorriu, jogou a sua bolsa no banco de trás e acomodou-se no banco do carona.

- Não se preocupe com o guarda-chuva - ela disse, entrando no carro. - Era do meu irmão e ele não devia gostar muito dele, do contrário não teria me dado. - Ela riu e colocou o cinto de segurança. - Você não é amigo do meu irmão, é?

-Não.

A voz dela era a única parte do todo que não dizia "Bom". A sua presença física dentro do carro, o seu carro, era algo extraordinário para Arthur. Sentia, saindo devagarzinho com o carro que mal conseguia pensar ou respirar e esperava que nenhuma destas duas funções fosse vital para dirigir, senão estariam perdidos. Então aquilo que sentira no outro carro, o do irmão dela, na noite em que voltara exausto e confuso dos seus anos de pesadelo nas estrelas, não havia sido um mero desequilíbrio momentâneo ou, se fosse, ele estava agora pelo menos duas vezes mais desequilibrado e muito propenso a despencar lá do lugar onde as pessoas bem equilibradas supostamente equilibravam.

- Então... - disse ele, esperando iniciar a conversa de maneira empolgante.

- Ele ficou de vir me buscar - o meu irmão - mas telefonou dizendo que não ia dar. Eu perguntei sobre os ônibus, mas ele começou a consultar o calendário em vez de uma folha com horários; aí eu decidi pedir carona. Então...

- Então...

- Então, aqui estou. E o que eu gostaria muito de saber é como você sabe o meu nome.

- Talvez fosse melhor decidirmos primeiro - disse Arthur, olhando para trás por cima do ombro, enquanto encaixava suavemente o seu carro no tráfego da estrada - para onde devo levar você.

Para muito perto, torceu ele, ou para muito longe. Perto significaria que eram praticamente vizinhos e longe significaria que poderia levá-la até lá de carro.

- Eu gostaria de ir para Taunton - ela disse -, por favor. Se estiver tudo bem pra você. Você pode me deixar no...

- Você mora em Taunton? - perguntou ele, esperando ter conseguido parecer meramente curioso, e não extasiado. Taunton era divinamente perto da sua casa. Ele podia...

- Não, eu moro em Londres - disse ela. - Tem um trem saindo em menos de uma hora. Era a pior coisa possível. Taunton ficava a apenas alguns minutos dali. Perguntou-se o que faria e, enquanto estava ocupado se perguntando, para o seu horror ouviu-se dizendo:

- Ah, eu posso te levar até Londres. Deixe-me levar você até Londres... Que trapalhão idiota. Por que diabos havia dito "deixe-me" daquele jeito ridículo? Estava se comportando como um garoto de doze anos.

- Você está indo para Londres? - perguntou ela.

- Não estava, não - disse ele -, mas...

Que trapalhão idiota.

- É muita gentileza sua, mas é melhor não. Eu gosto de viajar de trem. - E, de repente, ela se foi. Ou melhor, a parte dela que a trazia à vida se foi. Ela ficou olhando para fora da janela de uma maneira muito distante e cantarolando baixinho para si mesma. Ele não conseguia acreditar.

Trinta segundos de conversa e já conseguira estragar tudo.

Homens adultos, explicou para si mesmo, em total contradição com séculos de evidências acumuladas sobre a maneira como os homens adultos se comportam, não se comportavam assim.

Taunton 8 km, dizia a placa.

Agarrou o volante com tanta força que o carro chegou a balançar. Tinha que fazer algo drástico.

- Fenny - disse.

Ela se virou bruscamente para ele. -Você ainda não me disse como é... Escuta - disse Arthur -, eu vou te contar, embora a história seja meio estranha. Muito estranha. Ela estava olhando para ele, em silêncio.

- Escuta...

- Você já disse isso.

- Disse? Ah. Tenho que conversar com você sobre umas coisas, coisas que você precisa saber... uma história que eu preciso te contar, mas... - Estava desesperado. Queria algo no gênero "dividiria os emaranhados cachos de tua cabeleira e cada um de teus cabelos se levantaria em separado com cabelos de um porco-espinho assustado", mas achava não ia chegar

lá e, além disso, não gostava da referência ao porco-espinho.

- ...mas levaria mais do que oito quilômetros - disse ele afinal, embora fosse uma frase meio tosca.

- Bem...

- Supondo, apenas supondo - não sabia o que viria a seguir então decidiu relaxar e ouvir -, que você fosse, de alguma maneira extraordinária, muito importante para mim e que embora você não soubesse disso, eu fosse muito importante para você e que tudo isso se perdesse nas nossas vidas porque só tivemos oito quilômetros e eu sou um completo imbecil quando se trata de dizer algo muito importante para alguém que eu acabei de conhecer sem bater em caminhões ao mesmo tempo, o que você acha - ele parou, desamparado, e olhou para ela - que eu deveria fazer?

- Olhar para a frente! - gritou ela.

- Merda!

Por pouco não bateram na lateral de cem máquinas de lavar italianas que um caminhão alemão transportava.

- Eu acho - disse ela, com um breve suspiro de alívio - que devíamos tomar um drinque antes do meu trem partir.

capítulo 12

Há uma razão desconhecida para que os bares próximos às estações tenham algo de especialmente sinistro, um tipo específico de imundície, um tipo especial de palidez nos salgadinhos.

Pior do que os salgadinhos, contudo, são os sanduíches. Há um sentimento predominante na Inglaterra de que tornar um sanduíche interessante, atraente ou de algum modo agradável de comer é algo pecaminoso que só os estrangeiros fazem.

"Vamos fazê-los secos" é a instrução enraizada em algum lugar na consciência coletiva nacional. "Vamos fazê-los borrachudos. Se for preciso manter os malditos hambúrgueres frescos, lave-os uma vez por semana."

É comendo sanduíches em bares durante o almoço, aos sábados, que os ingleses procuram expiar sejam lá quais forem os seus pecados nacionais. Não sabem direito quais são esses pecados e nem querem saber, porque ninguém quer ficar sabendo muitos detalhes sobre seus pecados. Mas, sejam lá quais forem os tais pecados, são amplamente expiados pelos sanduíches que eles se obrigam a comer.

Se há algo ainda pior do que os sanduíches são as salsichas que ficam expostas ao lado deles. Tubos infelizes, cheios de cartilagens, boiando em um mar de algo quente e triste, atravessados por um palitinho de plástico no formato do chapéu de um chef de cozinha - possivelmente uma homenagem póstuma a algum chef que detestava o mundo inteiro e que morreu, esquecido e solitário, entre os seus gatos num escada dos fundos em Stepney. As salsichas são para aqueles que sabem muito bem quais são os seus pecados e querem expiar algo bem específico.

- Deve ter um lugar melhor - disse Arthur.

- Não dá tempo - disse Fenny, olhando o relógio. - O meu trem sai em meia hora. Sentaram em uma mesinha bamba. Sobre ela, alguns copos sujos, alguns descansos de copo encharcados. Arthur pediu um suco de tomate para Fenny e um copo de água amarelada com gás para ele. E duas salsichas. Não sabia ao certo por quê. Pediu-as mais para ter o que fazer enquanto esperava o gás assentar-se no seu copo.

O barman atirou o troco de Arthur em uma poça de cerveja sobre o bar e Arthur ainda agradeceu.

- Muito bem - disse Fenny, olhando o seu relógio - Conte-me o que é que tem para me contar.

Soava extremamente cética, como era de se esperar, e Arthur ficou desanimado. Aquele era o ambiente menos adequado, pensou, para tentar explicar a ela por que estava sentada ali, subitamente distante e na defensiva, que, numa espécie de sonho extracorpóreo, ele teve uma sensação telepática de que o colapso nervoso que ela sofrerá estava ligado ao fato de que a Terra, apesar das aparências contrárias, tinha sido demolida para abrir caminho para a construção de uma nova via expressa hiperespacial, algo que somente ele em todo o planeta sabia tendo realmente presenciado a demolição de dentro de uma nave vogon, e de que, além disso, o seu corpo e a sua alma desejavam insuportavelmente e ele precisava ir para a cama com ela tão rápido quanto fosse humanamente possível.

- Fenny - começou a dizer.

- Vocês gostariam de comprar alguns bilhetes da nossa rifa? Unzinho, pelo menos?

- Ele olhou para cima, irritado.

- Para ajudar a Anjie, que está se aposentando.

- O quê?

- Ela precisa de uma máquina de diálise.

Estava sendo abordado por uma senhora de meia-idade cadavericamente magra, usando um delicado conjuntinho de tricô um delicado permanentezinho e um delicado sorrisinho que provavelmente recebia freqüentes lambidas de delicados cachorrinhos. Ela estava segurando um bloquinho de rifas e uma latinha para coletar as contribuições.

- Custa apenas dez pence cada - disse ela -, então de repente dá para comprar até duas. Sem quebrar a conta! - Ela deu uma risadinha tilintante, seguida de um suspiro curiosamente longo. Ter dito "Sem quebrar a conta" obviamente lhe dera mais prazer do que qualquer outra coisa desde que alguns soldados americanos ficaram alojados na sua casa durante a Segunda Guerra.

- Ah, tá, tudo bem - respondeu Arthur, metendo a mão no bolso apressadamente e tirando algumas moedas.

Com uma moleza irritante e uma delicada teatralidade, se é que isso existe, a mulher destacou dois bilhetes, que entregou Para Arthur.

- Eu realmente espero que você ganhe - disse ela, com um sorriso que de repente se dobrou como um modelo avançado de origami. -Os prêmios são tão bons.

- Obrigado - respondeu Arthur, colocando os bilhetes no bolso meio bruscamente e olhando para o seu relógio.

Virou-se para Fenny

A mulher com os bilhetes de rifa também.

- E você, mocinha? - perguntou ela. - É para a máquina diálise de Anjie. Ela está se aposentando, sabe. E então? Levantou o sorrisinho ainda mais em seu rosto. Ela ia ter parar uma hora ou outra, ou a sua pele ia arrebentar.

- Está bem, aqui vai - disse Arthur, estendendo uma moeda de cinqüenta pence para ela, na esperança de que fosse logo embora

- Ah, estamos com dinheiro, hein? - disse a mulher com um longo suspiro sorridente. Viemos de Londres, não é?

Arthur gostaria que ela não falasse tão irritantemente devagar.

- Não, tudo bem, pode deixar - disse ele, agitando a mão mas já era tarde, ela estava começando a destacar os cinco bilhetes, um por um, com uma lentidão pavorosa.

- Ah, mas você tem que ficar com os bilhetes - insistiu a mulher - ou não vai poder pegar seu prêmio. E são ótimos prêmios, sabe. Muito apropriados.

Arthur apanhou os bilhetes e agradeceu o mais rapidamente que pôde. A mulher virou-se para Fenny novamente.

- E, agora, que tal...

- Não! - Arthur estava quase berrando. - Esses aqui são para ela - explicou ele, sacudindo os cinco novos bilhetes.

- Ah, sim, entendi! Que gentileza!

Ela atirou mais um sorriso nauseante para eles.

- Bem, eu realmente espero que...

- Está bem - cortou Arthur. - Obrigado.

A mulher finalmente partiu para a mesa ao lado. Arthur virou-se desesperadamente para Fenny e ficou aliviado ao ver que ela estava se sacudindo em uma risada silenciosa. Ele suspirou e sorriu.

- Onde estávamos?

- Você estava me chamando de Fenny e eu estava prestes te pedir para não me chamar mais assim.

Como assim?

Ela mexeu o seu suco de tomate com um longo palitinho de madeira.

- Foi por isso que eu perguntei se você era amigo do meu irmão. Do meu meio-irmão, na verdade. Ele é a única pessoa que me chama de Fenny e eu não gosto dele por causa disso.

- Então qual é...

- Fenchurch.

- O quê?

- Fenchurch.

- Fenchurch.

Ela lançou um olhar severo para ele.

- Isso mesmo - disse ela -, e eu estou te observando como um lince para ver se você vai me fazer a mesma pergunta idiota que todo mundo faz até eu ficar com vontade de gritar. Vou ficar chateada e decepcionada com você, se fizer. E vou gritar. Por isso, muito cuidado. Ela sorriu e sacudiu o cabelo, deixando que caísse sobre sua testa. Ficou olhando para Arthur por trás das mechas.

- Ah, isso é um pouquinho injusto, não é?

-É.

- Tudo bem.

- Tá bom - ela disse, rindo -, pode perguntar. Assim nos livramos logo disso. De qualquer forma, é melhor do que você ficar me chamando de Fenny o tempo todo.

- Possivelmente... - disse Arthur.

- Estão faltando apenas dois bilhetes, sabe, e já que você foi tão generoso agora há

pouco...

- O quê? - interrompeu Arthur.

A mulher do permanente, do sorriso e do agora praticamente vazio bloquinho de rifas estava sacudindo os dois últimos bilhetes debaixo do nariz de Arthur.

- Quis lhe dar essa chance, porque os prêmios são ótimos.

Franziu o nariz e acrescentou, confiante:

- De muito bom gosto. Tenho certeza de que vocês gostar. E é para o presente de aposentadoria de Anjie, sabe. Nós queremos lhe dar...

- Uma máquina de diálise, já sei - disse Arthur. - Aqui está.

Estendeu mais duas moedinhas de dez pence e apanhou os bilhetes. Um pensamento pareceu ocorrer então à mulher. Ocorreu bem devagarzinho. Era possível vê-lo chegando, como uma onda bem grande se aproximando da praia.

- Oh, Deus - disse ela. - Não estou interrompendo nada, estou? Olhou aflita para os dois.

- Não, tudo bem - respondeu Arthur. - Tudo o que poderia possivelmente estar bem insistiu ele -, está bem. Obrigado - acrescentou.

- Digo - ela disse, em um prazeroso êxtase de preocupação - vocês não estão... apaixonados, estão?

- Olha, é difícil dizer - respondeu Arthur. - Ainda não tivemos chance de conversar. Olhou de soslaio para Fenchurch. Ela estava sorrindo.

A mulher balançou a cabeça, num gesto cúmplice.

- Vou deixar vocês darem uma olhadinha nos prêmios em um minuto - disse ela e saiu. Arthur, suspirando, virou-se para a garota pela qual achava difícil dizer se estava apaixonado.

- Você ia me fazer uma pergunta - disse ela.

- Sim.

- Podemos fazer isso juntos se você quiser - disse Fenchurch. - Você queria saber se eu fui encontrada...

- ...em uma bolsa de mão - acrescentou Arthur.

- ...no balcão de Achados e Perdidos - disseram juntos.

- ...na estação de Fenchurch Street - terminaram.

- E a resposta - disse Fenchurch - é não.

- Exato - disse Arthur.

- Fui concebida lá.

- No balcão de Achados e Perdidos? - perguntou Arthur, espantado.

- Não claro que não. Não seja ridículo. O que meus pais estariam fazendo no balcão de Achados e Perdidos? - perguntou ela, meio confusa com aquele idéia.

- Bem eu não sei - disse Arthur, perplexo -, ou melhor...

- Foi na fila para comprar passagens.

- Na...

- Fila para comprar passagens. Pelo menos é o que eles dizem. Recusam-se a dar maiores explicações. Apenas dizem que ninguém imagina como é chato ficar parado na fila para comprar passagens na estação de Fenchurch Street.

Tomou o seu suco de tomate, um pouco acanhada, e consultou o relógio. Arthur continuou gorgolejando por alguns minutos.

- Vou ter que ir daqui a pouquinho - disse Fenchurch - e você ainda nem começou a me contar qual é a coisa terrivelmente extraordinária que você queria tanto desabafar.

- Por que não me deixa levar você de carro até Londres? - perguntou Arthur. - Hoje é

sábado, eu não tenho nada de especial para fazer, eu...

- Não - respondeu Fenchurch -, obrigada, você é um doce, mas é melhor não. Preciso ficar sozinha por uns dias. - Ela sorriu e deu de ombros.

- Mas...

- Você pode me contar depois. Vou te dar o meu telefone.

O coração de Arthur começou a fazer bum bum tchacabum enquanto ela rabiscava sete números a lápis em um pedaço de papel que em seguida entregou a ele.

-Agora podemos relaxar - ela disse, com um sorriso calmo que preencheu Arthur a tal ponto que achou fosse explodir.

- Fenchurch - disse ele, gostando do som daquele nome -, eu...

- Uma caixa - disse uma voz arrastada - de licores de cereja e, sei que vão gostar disso, um disco com música de gaita de foles escocesa...

- Sim, obrigado, excelente - insistiu Arthur.

- Achei que deveria mostrar para vocês - disse a mulher do permanente - porque vieram de Londres...

Ela estava exibindo os prêmios orgulhosamente para Arthur. Ele podia ver que eram realmente uma caixa de licores de cereja e um disco de gaita de foles. Era exatamente o que eram.

- Vou deixar vocês tomarem os seus drinques em paz agora - disse ela, dando uma leve batidinha no ombro fervilhante de Arthur -, mas tinha certeza de que vocês gostariam de ver. Os olhos de Arthur encontraram os de Fenchurch novamente e, de repente, não soube mais o que dizer. O momento tinha surgido e ido embora, mas a sintonia entre eles fora arruinada por aquela maldita mulher imbecil.

- Não se preocupe - disse Fenchurch, olhando fixamente para ele por cima do seu copo -, vamos conversar novamente. - Tomou um gole do suco. - Talvez - acrescentou ela - não tivesse funcionado tão bem se não fosse por ela. - Ela deu um sorrisinho sutil e o seu cabelo caiu novamente sobre o rosto.

Isso era realmente verdade.

Ele tinha que admitir que era realmente verdade.

capítulo 13

Naquela noite, em casa, enquanto galopava pela casa fazendo de conta que estava correndo por entre campos de milho em câmera lenta e explodindo sem parar em ataques súbitos de riso, Arthur imaginou que poderia até mesmo agüentar ouvir o disco de gaita de foles que ganhara na rifa. Eram oito horas e ele havia decidido que se forçaria, que se obrigaria a ouvir o disco inteiro antes de ligar para ela. Talvez fosse até mesmo melhor deixar para o dia seguinte. Aquela talvez fosse a melhor coisa a fazer. Quem sabe, até mesmo para a próxima semana.

Não. Nada de jogos. Ele a desejava e não dava a mínima se alguém percebesse. Ele a desejava, definitiva e absolutamente, queria estar ao lado dela, adorava-a e tinha tantas coisas que queria fazer com ela que não haveria nomes suficientes para todas. Chegou a se surpreender dizendo coisas como "Iupi!" enquanto saltitava ridiculamente pela casa. Os olhos dela, o cabelo, a voz, tudo...

Parou.

Era melhor colocar o disco de gaita de foles de uma vez. E ligar para ela depois. Ou ligar para ela antes, que tal?

Não. Ia fazer o seguinte. Ia colocar o disco de gaita de foles. Ia ouvir o disco todo, até o último lamúrio. E só então ligaria para ela. Aquela era a ordem certa. Era aquilo que ia fazer. Tinha medo de tocar as coisas, achando que iria fazer que explodissem. Apanhou o disco. Ele não explodiu. Tirou da capa. Abri toca-discos, ligou o amplificador. Ambos sobreviveram. Dava risadas tolas enquanto pousava a agulha sobre o disco. Sentou-se e ouviu solenemente A Scottish Soldier.

Ouviu Amazing Grace.

Ouviu algo sobre um glen ou algo no gênero.

E relembrou a sua miraculosa hora do almoço.

Estavam prestes a sair quando foram perturbados por uma terrível explosão de "iúhuuuus". A pavorosa mulher de permanente estava acenando para eles do outro lado do recinto, como um pássaro idiota com a asa quebrada. Todo mundo no bar estava olhando para eles e pareciam esperar alguma resposta.

Não haviam ouvido a parte sobre quão satisfeita e feliz Anjie ficaria com as quatro libras e trinta pence que haviam conseguido recolher para ajudar a comprar sua máquina de diálise. Haviam percebido vagamente que alguém na mesa ao lado ganhara uma caixa de licores de cereja e levaram um momento ou dois para descobrir que a senhora do “iú-hu” estava tentando saber se o bilhete número 37 era deles.

Arthur descobriu que era, de fato. Olhou irritado para o relógio. Fenchurch lhe deu um empurrão.

- Vai lá - disse ela. - Vai lá buscar. Não seja mal-humorado. Faça um discurso bem bonito e diga o quanto está contente, depois você me liga e me conta como foi. Vou querer ouvir o disco, hein? Vai lá.

Ela deu um tapinha amigável no seu braço e foi embora.

Os fregueses acharam o seu discurso de agradecimento um pouco efusivo demais. Afinal, era só um disco de gaita de foles. Arthur lembrou de tudo, ouviu a música e continuou tendo acessos de riso.

capítulo 14

Trim trim.

Trim trim.

Trim trim.

- Alô, pois não? Sim, isso mesmo. Dá pra falar mais alto, tá a maior barulheira aqui. O

quê? [...] Não, eu só trabalho aqui no bar à noite. Quem fica aqui na hora do almoço é a Yvonne e o Jim, que é o dono. Não, eu não estava. O quê? [...] Fala mais alto, meu filho. [...] O quê?

[...] Não, não tô sabendo nada de rifa, não. [...] Não, realmente não sei nada sobre isso. Güenta aí, eu vou chamar o Jim.

A garçonete tapou o fone com a mão e chamou o Jim.

- Jim, tem um cara no telefone dizendo que ganhou uma rifa. Fica repetindo que tinha o bilhete 37 e que ganhou.

- Não, o cara que ganhou estava aqui no bar - gritou o barman.

- Ele tá querendo saber se o bilhete ficou aqui.

- Ué, como é que ele acha que ganhou se nem tem um bilhete?

- O Jim está perguntando como é que você sabe que ganhou se nem tem um bilhete. O

quê?

Ela tapou novamente o fone.

- Jim, ele fica me xingando, me enchendo a paciência, dizendo que tem um número no bilhete.

- Claro que tem um número no bilhete, era um maldito bilhete de rifa, né?

- Ele tá dizendo que tem um número de telefone no bilhete.

- Desliga esse telefone e vai servir os malditos clientes, tá?

capítulo 15

Oito horas a oeste, um homem sozinho estava sentado em uma praia, lamentando uma perda inexplicável. Só conseguia refletir sobre essa perda em pequenos pacotes de dor um de cada vez, porque se pensasse na coisa toda seria grande demais para suportar. Observava as grandes e lentas ondas do Pacífico avançando pela areia e esperava e esperava pelo nada que sabia que estava prestes a acontecer. Quando chegou a hora de nada não acontecer, realmente nada não acontecia e assim a tarde se consumia e o sol descia por trás da longa linha do mar e o dia chegava ao fim.

A praia era uma praia cujo nome não vamos citar, porque era onde ficava a sua casa particular, mas era uma pequena faixa arenosa dentre as centenas de milhas do litoral que parte de Los Angeles rumo ao oeste - o mesmo que é descrito em um verbete da nova edição do Guia do Mochileiro das Galáxias como "enlodada, enlameada, emporcalhada, embostada e mais aquela outra palavra que esqueci, além de várias outras coisas ruins", e em outro, escrito poucas horas depois, como "parecido com milhares de milhas quadradas de impressos de marketing do American Express, mas sem mesmo sentido de profundidade moral. E, além disso, por algum motivo o ar é amarelo".

O litoral estende-se pelo oeste, depois faz uma curva em direção ao norte até a nevoenta baía de São Francisco, que o Guia descreve como "um bom lugar para ir. É fácil acreditar que todo mundo que você encontra por lá também é um espacial. Fundar uma nova religião para você é a a que eles usam para dizer 'oi'. Até que você esteja inslado e tenha dominado a manha do lugar é melhor dizer não para três de cada quatro perguntas que lhe fizerem, porque existem coisas estranhíssimas acontecendo por lá e muitas podem ser letais para um alienígena desprevenido". As centenas de milhas sinuosas de penhascos e areia, palmeiras, arrebentações e entardeceres são descritas no Guia como "Impressionante. Mesmo". E em algum lugar neste longo trecho de litoral ficava a casa desse homem inconsolável, um homem que muitos achavam ser louco. Mas apenas porque, dizia ele às pessoas, ele era louco mesmo.

Um das inúmeras razões pela qual as pessoas achavam que ele era louco era a peculiaridade da sua casa, que, mesmo em uma terra onde a maioria das casas era peculiar de uma maneira ou de outra, era bastante radical em sua peculiaridade. A sua casa se chamava O

Exterior do Asilo. O seu nome era simplesmente John Watson, embora ele preferisse ser chamado - e alguns dos seus amigos haviam relutantemente concordado com isso agora - de Wonko, o São. Na sua casa havia várias coisas estranhas, incluindo um aquário de vidro acinzentado com seis palavras gravadas nele.

Podemos falar sobre ele bem mais tarde - esse foi apenas interlúdio para apreciar o pôrdo-sol e para dizer que ele estava lá, apreciando-o também. Perdera tudo o que mais amava e agora estava simplesmente esperando o fim do mundo sem saber que já tinha chegado e passado. capítulo 16

Depois de passar um domingo nojento esvaziando latas de lixo atrás de um bar em Taunton, sem encontrar absolutamente nada, nenhum bilhete de rifa, nenhum número de telefone, Arthur fez tudo o que podia para encontrar Fenchurch e, quanto mais ele tentava, mais as semanas passavam.

Estava com ódio de si mesmo, do destino, do mundo e do clima. Chegou até, mergulhado no seu sofrimento e na sua fúria, a voltar ao restaurante do posto de gasolina, na beira da estrada, onde estivera antes de encontrá-la.

- É o chuvisco que me deixa particularmente mal-humorado.

- Por favor, pare de reclamar do chuvisco - interrompeu Arthur.

- Eu pararia, se parasse de chuviscar.

- Olha...

- Posso te contar o que vai acontecer quando parar de chuviscar?

- Não.

- Vai cair uma chuva gosmenta.

- O quê?

- Vai cair uma chuva gosmenta.

Arthur observava o mundo hediondo lá fora por cima aro da sua xícara de café. Aquele era um lugar completamente inútil para se estar, constatou ele, e tinha sido atraído de volta para lá mais por uma questão de superstição do que de lógica. No entanto como se para espezinhá-lo com a prova de que coincidências incríveis de fato podem acontecer, o destino decidira reuni-lo com o motorista de caminhão que encontrara da última vez.

Ouanto mais tentava ignorá-lo, mais se via sendo arrastado dentro do vórtice gravítico da conversa exasperante do sujeito.

- Acho - disse Arthur vagamente, xingando-se por sequer se dar ao trabalho de dizer isso que está parando.

- Rá!

Arthur deu de ombros. Devia ir embora. Era isso que devia fazer. Devia simplesmente ir embora.

- Nunca pára de chover - vociferou o motorista de caminhão. Deu um murro na mesa, derrubou o seu chá e, de fato, por um momento, pareceu estar irritado. Impossível simplesmente sair sem responder a um comentário como aquele.

- É claro que pára de chover - disse Arthur. Não chegava a ser uma refutação sofisticada, mas era algo que tinha de ser dito.

- Chove... o tempo... todo - enfureceu-se o homem, esmurrando a mesa novamente, pontuando cada palavra com um soco.

Arthur balançou a cabeça.

- É burrice dizer que chove o tempo todo... - disse ele.

O sujeito levantou as sobrancelhas de repente, afrontado.

- Burrice? Por que é burrice? Por que é burrice dizer que e o tempo todo se chove o tempo todo mesmo?

- Não choveu ontem.

- Choveu em Darlington.

Arthur estacou, desconfiado.

- Não Vai me perguntar onde eu estava ontem? - perguntou Ajeito. - Hein?

- Não.

- Mas imagino que dê para imaginar.

- É mesmo?

- Começa com um D.

- Jura?

- E estava chovendo pacas por lá, pode acreditar.

- É melhor não sentar aí, não, colega - disse um estranho de macacão alegremente para Arthur, ao passar. - Esse é o Canto da Nuvem Negra, isso aí. Reservado especialmente para

"Raindrops Keep Falling On My Head" aí do seu lado. Tem um canto como esse reservado para ele em cada lanchonete, daqui até a ensolarada Dinamarca. Fique longe, é o meu conselho. É o que todos nós fazemos. Como vai indo, Rob? Muito ocupado? Está usando os seus pneus de chuva? Rá rá.

Passou por eles rapidamente e foi contar uma piada sobre Britt Ekland para alguém na mesa ao lado.

- Viu só, nenhum desses palhaços me leva a sério - disse Rob McKeena. - Mas acrescentou soturnamente, inclinando-se para a frente e revirando os olhos - todos sabem que é

verdade!

Arthur franziu a testa.

- Como a minha mulher - sussurrou o único dono e motorista do “Fretes McKeena - Faça chuva ou faça sol” - Ela diz que é besteira, que eu faço escândalo e reclamo à toa, mas - fez uma pausa dramática e disparou olhares perigosos - sempre recolhe as roupas do varal quando ligo para dizer que estou voltando para casa! - Ele sacudiu si colher de café. - O que você me diz?

- Bem...

- Eu tenho um caderninho - prosseguiu. - Um caderninho. Um diário. Há quinze anos. Anotei todos os lugares por onde já passei. Dia a dia. E como estava o tempo. E o tempo se esteve invariavelmente horrível - rosnou ele. - Já estive em todos os cantos da Inglaterra, da Escócia, do Pais de Gales. Por toda a Europa, Itália, Alemanha, varias vezes na Dinamarca, na Iugoslávia. Tenho tudo isso anotado e mapeado. Até quando fui fui visitar o meu irmão - acrescentou ele - em Seattle.

- Bem - disse Arthur, finalmente levantando-se para ir embora -, talvez você devesse mostrar isso para alguem.

- Eu vou - disse Rob McKeena.

E de fato mostrou.

capítulo 17

Angústia, depressão. Mais angústia e mais depressão. Precisava de um projeto e arrumou um.

Ia descobrir onde havia sido a sua caverna.

Na Terra Pré-Histórica, morara em uma caverna, não uma caverna agradável, na verdade uma caverna pavorosa, mas... Não havia mas. Era uma caverna totalmente pavorosa e ele a detestara. Mas morara nela durante cinco anos e isso fazia dela uma espécie de lar e as pessoas não gostam de perder os seus lares de vista. Arthur Dent era uma dessas pessoas; então, foi até

Exeter comprar um computador.

Aquilo era realmente o que ele queria, é claro, um computador. Mas sentia que devia ter um propósito sério em mente antes de sair por aí gastando a maior nota no que as pessoas podiam encarar como sendo apenas um brinquedinho. Então, esse era o seu propósito sério. Descobrir a localização exata de uma caverna na Terra Pré-Histórica. Explicou isso para o sujeito da loja.

- Por quê? - quis saber o sujeito da loja.

Perguntinha capciosa.

- Tudo bem, vamos pular essa parte - disse o sujeito da loja - Como?

- Bem, eu estava esperando que você pudesse me ajudar com essa parte. O sujeito suspirou e deixou cair os ombros.

- Você tem muita experiência com computadores?

Arthur chegou a cogitar se devia mencionar Eddie, o computador de bordo da nave Coração de Ouro, que teria feito o em um segundo, ou o Pensador Profundo, ou... mas cidiu que era melhor não.

- Não - respondeu ele.

"Essa vai ser uma tarde bem divertida", disse o sujeito da loja para si mesmo. De todo jeito, Arthur comprou o Apple. E, alguns dias depois adquiriu também alguns softwares astronômicos, traçou os movimentos das estrelas, esquematizou pequenos diagramas toscos de como se lembrava da posição das estrelas no céu à noite sobre a sua caverna e trabalhou com afinco na coisa durante semanas, alegremente adiando a conclusão que sabia que teria de encarar inevitavelmente, ou seja, que o projeto em si era absurdo. Desenhos toscos feitos de memória eram inúteis. Não sabia nem dizer há quanto tempo tinha sido, a não ser pelo chute de Ford Prefect, na época, de que tinham voltado no tempo "uns dois milhões de anos" e ele nem sabia como calcular a coisa toda. Ainda assim, no final, criou um método que pelo menos iria produzir um resultado. Decidiu não se importar com o fato de que, com a extraordinária mistureba de regras inventadas, aproximações tresloucadas e conjecturas misteriosas que ele estava usando, seria preciso muita sorte para localizar a Galáxia certa, mas seguiu em frente assim mesmo e chegou a um resultado.

Ele o chamaria de resultado correto. Quem iria discordar?

Acontece que em meio a insondável miríade de possibilidades do destino, o resultado estava de fato correto, embora ele jamais fosse saber disso. Ele simplesmente foi até Londres bateu na porta certa.

- Ué, pensei que você fosse me ligar primeiro.

Arthur estava pasmo com a surpresa.

- Você não vai poder ficar muito tempo - disse Fenchurch. - É que eu estou de saída. capítulo 18

Um dia de verão em Islington, repleto do pesaroso lamento das máquinas de restauração de antigüidades.

Fenchurch estava inevitavelmente ocupada durante a tarde, então Arthur saiu para passear envolto em uma névoa de êxtase e deu uma olhada em todas as lojas que, em Islington, são bastante úteis, como qualquer um que habitualmente precise de velhas ferramentas para trabalhar a madeira, capacetes da Guerra Bôer, dragas, mobília de escritório ou peixes pode prontamente confirmar.

O sol batia sobre os jardins nos terraços. Batia sobre arquitetos e encanadores. Batia em advogados e ladrões. Batia sobre as pizzas. Batia em fiscais do estado. Bateu em Arthur quando ele entrou em uma loja de mobília restaurada.

-É um prédio interessante - disse o proprietário, efusivo. - No porão tem uma passagem secreta que dá para o bar mais próximo. Parece que foi construída para o príncipe regente, para ele pudesse dar as suas escapadinhas.

- Entendi, para ninguém surpreendê-lo comprando móveis de pinho descascados - disse Arthur.

- Não - respondeu o proprietário -, não por esse motivo.

- Desculpe - disse Arthur. - Estou terrivelmente feliz.

-Estou vendo.

Continuou vagando atordoadamente e acabou indo parar bem na frente dos escritórios do Greenpeace. Lembrou-se do conteúdo do seu arquivo marcado "Coisas Para Fazer - Urgente!", que nunca mais havia aberto. Entrou no prédio com um sorriso alegre e disse que tinha vindo dar contribuição em dinheiro para ajudar a libertar os golfinhos.

- Muito engraçado - responderam -, vá embora.

Não estava exatamente preparado para aquela resposta então tentou novamente. Desta vez ficaram bastante irritados com ele; então ele acabou deixando algum dinheiro e voltou para a rua ensolarada.

Um pouco depois das seis voltou para a casa de Fenchurch na travessa, trazendo uma garrafa de champanhe.

- Segura isso aqui - disse ela, colocando uma pesada corda em suas mãos e desaparecendo para dentro das enormes portas de madeira branca, de onde pendia um pesado cadeado em uma tranca de ferro preta.

A casa era um estábulo reformado, em uma pequena travessa industrial atrás do Royal Agricultural Hall de Islington, agora abandonado. Além das enormes portas de estábulo, também havia uma porta da frente de aparência normal, revestida de madeira envernizada com ornamentos e um golfinho preto servindo de batente. A única coisa estranha sobre essa porta era sua posição, a quase três metros de altura, já que a porta fora colocada no segundo andar e provavelmente havia sido originalmente usada para receber o feno para cavalos famintos. Uma velha roldana projetava-se para fora dos tijolos acima entrada e era nela que a corda que Arthur segurava estava presa. Na outra ponta da corda havia um violoncelo pendurado. A porta abriu-se sobre a sua cabeça.

- O.k. - disse Fenchurch -, puxe a corda e mantenha o violoncelo firme. Depois faça-o subir até aqui.

Ele puxou a corda, mantendo o violoncelo firme.

- Não dá para puxar a corda de novo - disse ele - sem soltar o violoncelo. Fenchurch deitou-se no chão.

- Eu cuido do violoncelo - disse ela. - Pode puxar a corda. O violoncelo subiu até a altura da porta, balançando um ouço, e Fenchurch puxou-o para dentro.

- Agora, suba você - ela gritou lá para baixo.

Arthur apanhou a sacola com as comprinhas que tinha feito e entrou pelas portas do estábulo, radiante.

O cômodo de baixo, que ele vira brevemente mais cedo, era bem rústico e cheio de tralhas. Havia coisas como uma enorme e velha máquina de passar de ferro fundido e uma surpreendente pilha de pias de cozinha em um canto. Havia também um carrinho de bebê que deixou Arthur momentaneamente alarmado, mas estava caindo aos pedaços e descomplicadamente cheio de livros.

O chão era de concreto, velho e manchado, empolgantemente rachado. E essa era a medida do humor de Arthur, enquanto olhava para os degraus de madeira malconservados do outro lado da sala. Até mesmo um chão de concreto rachado parecia-lhe insuportavelmente sensual.

- Um arquiteto amigo meu vive me dizendo que poderia fazer coisas fantásticas aqui disse Fenchurch, toda falante quando Arthur surgiu pela porta. - Ele vive vindo aqui em casa, e fica aí parado, embasbacado, resmungando alguma coisa sobre espaço, objetos, acontecimentos e propriedades maravilhosas de luz, aí me pede um lápis e some por várias semanas. Coisas fantásticas, como você vê, até agora não aconteceram por aqui. Para falar a verdade, pensou Arthur ao examiná-lo, o cômodo superior era no mínimo razoavelmente fantástico de qualquer forma. Fora decorado com simplicidade e mobiliado com coisas feitas de almofadas e tinha um aparelho de som estéreo com auto-falantes que teriam impressionado caras que construíram Stonehenge. s Havia flores pálidas e quadros interessantes.

Havia uma espécie de jirau abaixo do telhado que sustentava uma cama e um banheiro no qual, explicou Fenchurch, seria até possível dançar uma valsa.

- Mas - acrescentou - apenas se você quisesse dançar sozinho e não se importasse de bater nas paredes o tempo todo. Enfim. Aqui está você.

- Pois é.

Olharam-se por um momento.

Aquele momento tornou-se um momento mais longo e, de repente, virou um momento muito longo, tão longo que mal se podia dizer de onde aquele tempo todo estava vindo. Para Arthur, que normalmente conseguia dar um jeito de sentir-se constrangido se fosse deixado a sós por muito tempo mesmo com um vaso de banana-do-mato, aquele momento foi de constante revelação. Sentiu-se, de repente, como um animal enjaulado, nascido no zoológico, que um belo dia acorda, encontra a porta da sua jaula tranqüilamente aberta e vê, diante de si, a savana estender-se cinzenta e rosada até o distante sol nascente, enquanto à sua volta novos sons despertam.

Perguntou-se quais seriam esses novos sons, olhando para o rosto dela, francamente maravilhado, e para os seus olhos, que sorriam com uma compartilhada surpresa. Nunca antes percebera que a vida está sempre falando com uma voz que responde às perguntas que você vive fazendo sobre ela; nunca detectara conscientemente ou reconhecera esses tons até agora, quando a vida estava algo que jamais dissera para ele, que era "sim". Fenchurch finalmente abaixou os olhos, sacudindo a cabeça de um modo quase imperceptível.

Eu sei - disse ela. - Vou ter que me lembrar - acrescentou - que você é o tipo de pessoa que não consegue segurar um pedacinho de papel por dois minutos sem ganhar uma rifa com ele.

Ela se virou.

Vamos dar uma volta - disse ela, rapidamente. - Hyde Park. Vou só colocar uma roupa menos decente.

Ela usava um vestido escuro um tanto severo, não exatante simétrico, que realmente não lhe caía bem.

- Eu uso esse vestido especialmente para o meu professor de violoncelo - explicou ela. Ele é um cara legal, mas às vezes eu acho que todos aqueles movimentos com o arco o deixam um pouco excitado. Já volto.

Subiu com delicadeza os degraus até o jirau e disse lá de cima:

- Coloque a garrafa no congelador para mais tarde.

Ele percebeu, quando acomodou a garrafa de champanhe no congelador, que havia uma garrafa idêntica lá dentro.

Foi até a janela e olhou para fora. Virou-se e começou a fuçar os discos dela. Lá de cima, ouviu o farfalhar do seu vestido caindo no chão. Teve uma conversa consigo mesmo sobre o tipo de pessoa que ele era. Disse a si mesmo, com muita firmeza, que pelo menos por enquanto ia manter os olhos firme e inabalavelmente vidrados nas lombadas dos discos, ler os títulos, balançar a cabeça em sinal de aprovação, até mesmo contar os desgraçados, se fosse preciso. Ia manter a cabeça baixa.

Coisa que ele completa, absoluta e abjetamente não foi capaz de fazer. Lá de cima, ela estava olhando para ele com tanta intensidade que mal pareceu notar que ele estava olhando para ela lá de baixo. Depois balançou a cabeça, deslizou um vestido leve de verão sobre o corpo e desapareceu dentro do banheiro.

Reapareceu um pouco depois, toda sorridente e com um chapéu-de-sol, descendo as escadas com extraordinária leveza. Ela tinha um jeito estranho de se mover, quase dançando. Viu que ele tinha notado isso e inclinou a cabeça para o lado perguntando:

- Você gosta?

- Você está maravilhosa - disse ele, simplesmente, por ela de fato estava.

- Hummm - ela disse, como se ele não tivesse realmente respondido sua pergunta. Fechou a porta da frente do andar de cima, que tinha ficado aberta esse tempo todo, e olhou em torno do pequeno aposento para certificar-se de que as coisas conseguiriam ficar naquele estado durante algum tempo. Os olhos de Arthur seguiram os dela e, quando ele estava olhando em outra direção, ela tirou uma coisa de uma gaveta e colocou na bolsa de lona que estava levando.

Arthur olhou para ela.

- Você está pronta?

- Você sabe - perguntou ela, com um sorriso ligeiramente intrigado - que há algo de errado comigo?

Aquela objetividade pegou Arthur de surpresa.

- Bem - disse ele -, ouvi vagamente algo sobre...

-Gostaria de saber o que você sabe sobre mim - disse ela. - Se você ficou sabendo por quem estou imaginando, pode esquecer. Russell meio que inventa umas coisas, porque não consegue lidar com a coisa em si.

Uma pontada de preocupação atingiu Arthur em cheio.

- E qual é a coisa real? - perguntou ele. - Você pode me dizer?

- Não se preocupe - respondeu ela -, não é nada demais. Só não é comum. Não é nada, nada comum.

Tocou a mão de Arthur, inclinou-se em sua direção e deu um beijo rápido.

- Estou realmente curiosa para saber - disse ela - se você descobrir o que é, esta noite. Arthur sentia que, se alguém o tocasse naquele momento, ele produziria o mesmo som profundo e prolongado que o seu aquário cinzento fazia quando ele lhe dava um peteleco com a ponta da unha.

capítulo 19

Ford Prefect estava de saco cheio de ser continuamente acordado com o som de tiros. Deslizou pela escotilha de manutenção que havia transformado em uma espécie de leito inutilizando algumas das maquinarias mais barulhentas por perto e estofando-a com toalhas. Desceu pela escada de acesso e vagou pelos corredores, mal-humorado. Eles eram claustrofóbicos e mal iluminados. Além disso, a pouca luz que havia por lá

ficava piscando e mudando de intensidade conforme a energia oscilava para cá e para lá, provocando fortes vibrações e zumbidos irritantes.

Não era isso, porém.

Parou e apoiou-se contra a parede quando algo parecido com uma pequena furadeira elétrica prateada passou voando por ele pelo corredor escuro com um desagradável chiado cortante.

Também não era isso.

Com muito desânimo, passou por cima de uma antepara e foi dar em um corredor maior, embora igualmente mal iluminado.

A nave balançou. Já vinha fazendo isso há algum tempo, mas dessa vez foi mais forte. Um pequeno pelotão de robôs passou por ele, produzindo um estardalhaço terrível. Ainda não era isso, porém.

De um dos lados do corredor vinha uma fumaça acre; então ele foi para o outro lado. Passou por uma série de monitores de observação inseridos nas paredes por trás de grossas lâminas de plexiglas, que ainda assim estavam bastante arranhadas. Um deles exibia uma figura réptil verde, escamosa e grotesca fazendo um discurso e tanto sobre o sistema de Voto Único Transferível. Era difícil dizer se ele era a favor ou contra, mas ele certamente tinha uma opinião muito forte a respeito. Ford diminuiu o som. Também não era isso.

Passou por outro monitor. Estava exibindo um comercial de pasta de dentes que supostamente faria com que seus usuários se sentissem livres. Havia uma retumbante música nele, igualmente irritante, mas também não era aquilo.

Passou por outra tela tridimensional, muito maior do que as outras, que estava monitorando a área externa da imensa e prateada nave xaxisiana. Enquanto observava, surgiram mil cruzadores estelares robóticos de Zirzla, terrivelmente armados, saindo da sombra de uma lua, em silhueta contra o disco cegante da estrela Xaxis, e a nave simultaneamente detonou uma chama feroz de forças incompreensivelmente pavorosas de todos os seus orifícios contra eles.

Era isso.

Ford balançou a cabeça, irritado, e esfregou os olhos. Sentou-se sobre a carcaça destruída de um robô prateado, sem brilho, que obviamente tinha pegado fogo, mas, àquela altura, já estava frio o bastante para servir de assento.

Bocejando, pegou sua cópia do Guia do Mochileiro das Galáxias na mochila. Ativou a tela e pesquisou meio desatento alguns verbetes de nível três e outros de nível quatro. Estava procurando algumas receitas para curar a sua insônia. Encontrou REPOUSO, que de fato era o que estava precisando. Encontrou REPOUSO E RECUPERAÇÃO e estava prestes a prosseguir quando subitamente teve uma idéia melhor. Olhou para a tela do monitor. A batalha tornava-se mais feroz a cada segundo e o barulho era estarrecedor. A nave sacudia, gritava e cambaleava cada vez que um novo raio de colossal energia era desferido ou recebido. Tornou a olhar para o Guia e pesquisou algumas possíveis localizações. Subitamente começou a rir e então remexeu novamente na sua mochila.

Apanhou um pequeno módulo de transferência de memória, retirou todos os fiapos e as migalhas de biscoito e conectou-o a uma interface na parte de trás do Guia. Quando todas as informações que ele julgava relevantes já tinham sido transferidas para o módulo, ele o desconectou, colocou-o delicadamente na palma da mão, guardou o Guia de volta na mochila, deu um sorriso afetado e saiu em busca dos bancos de dados do computador da nave.

capítulo 20

- O objetivo do pôr-do-sol à tardinha, no verão, sobretudo nos parques - disse a voz, muito séria -, é fazer os peitos das meninas pularem para cima e para baixo mais visivelmente. Estou convencido disso.

Arthur e Fenchurch riram do comentário ao passarem pelo homem. Ela o abraçou com mais força por um instante.

- E eu tenho certeza - disse o rapaz de cabelo ruivo encaracolado e nariz comprido e fino que estava debatendo sentado em uma cadeira dobrável ao lado do lago Serpentine - que, se alguém levasse a fundo o argumento, iria perceber que ele flui com perfeita naturalidade e lógica de tudo aquilo - insistiu com seu magro companheiro de cabelo escuro que estava afundado na cadeira ao lado, arrasado por causa das suas espinhas - de que Darwin estava falando. Tenho certeza. Isso é indiscutível. E - acrescentou ele - adoro isso. Ele se virou bruscamente e semicerrou os olhos por trás dos óculos para observar Fenchurch. Arthur puxou-a para longe e pôde sentir que ela estava tremendo de rir em silêncio.

- Próximo palpite - disse ela, quando parou de rir -, vamos lá.

- O.k. - disse ele -, o seu cotovelo. O seu cotovelo esquerdo. Há algo de errado com ele.

- Errou de novo - disse ela -, errou feio. Você está totalmente na pista errada. O sol de verão estava mergulhando por trás das árvores no parque e era como se... Certo, não vamos medir as palavras. O Hyde Park é espetacular. Tudo nele é espetacular, tirando o lixo nas manhãs de segunda-feira. Até os patos são espetaculares. Qualquer um que passasse por lá numa tarde de verão sem ficar comovido provavelmente estaria dentro de uma ambulância com o rosto coberto pelo lençol.

Naquele parque há gente fazendo coisas bem mais insólitas do que em qualquer outro lugar. Arthur e Fenchurch viram um homem de short tocando gaita de foles sozinho sob uma árvore. O sujeito parou por um instante de tocar para colocar um casal de americanos para correr porque tinham tentado, timidamente, colocar algumas moedas no estojo do instrumento.

- Não! - gritou ele para os americanos. - Saiam daqui! Eu só estou praticando. Recomeçou a soprar a sua gaita, mas nem mesmo o barulho que isso provocava pôde estragar o humor de Arthur e Fenchurch.

Ele a envolveu com os seus braços e foi descendo as mãos devagar pelo seu corpo.

- Não acho que seja a sua bunda - disse Arthur, depois de um tempo. - Acho que não tem nada de errado com ela.

- Não - concordou ela -, não tem absolutamente nada de errado com a minha bunda. Eles se beijaram por tanto tempo que o gaiteiro acabou indo praticar do outro lado da árvore.

- Vou te contar uma história - disse Arthur.

- Está bem.

Encontraram um espaço na grama, relativamente livre de casais deitados um em cima do outro, sentaram-se e observaram os patos espetaculares e a luz do sol ondulando na superfície do lago que corria sob os patos espetaculares.

- Uma história - disse Fenchurch, aconchegando o braço dele no dela.

- Que vai te dar uma idéia do tipo de coisa que acontece comigo. É completamente real.

-Você sabe que algumas vezes as pessoas contam histórias que supostamente aconteceram com o melhor amigo do primo da sua mulher, mas que, no fim das contas, foram inventadas mesmo.

Bom, parece mesmo uma dessas histórias, só que realmente aconteceu e eu sei que aconteceu, porque a pessoa com a qual tudo aconteceu fui eu.

- Como o bilhete da rifa.

Arthur riu.

- Exatamente. Eu ia pegar um trem - prosseguiu ele. - Cheguei na estação...

- Eu já te contei - interrompeu Fenchurch - o que aconteceu com os meus pais numa estação?

- Já - disse Arthur.

- Só estou conferindo.

Загрузка...