Arthur deu uma olhada no relógio.
- Acho que já podíamos voltar - disse ele.
- Conte a sua história - respondeu ela, decidida. - Você chegou na estação.
- Eu estava uns vinte minutos adiantado. Confundi o horário do trem. Acho que é no mínimo igualmente possível - acrescentou, após uma breve reflexão - que a companhia de trens tenha confundido o horário. Nunca tinha pensado nisso.
- Tá, continua. - Fenchurch riu.
- Aí eu comprei um jornal, para fazer as palavras cruzadas, e fui até o restaurante para tomar um café.
- Você faz palavras cruzadas?
-" Faço.
- Quais?
- As do The Guardian, normalmente.
- Eu acho que eles sempre tentam ser espertinhos. Prefiro a do Times. Você resolveu?
- O quê?
- As palavras cruzadas do Guardian.
- Ainda não tive chance de dar uma olhada nelas - disse Arthur. - Ainda estou tentando comprar um café.
- Tudo bem, então. Compre o café.
- Estou comprando. Estou comprando também alguns biscoitos.
- Que tipo?
- Rich Tea.
- Boa escolha.
- Também gosto. Com tudo isso em mãos, eu procuro uma mesa e me sento. E, antes que você me pergunte como era a mesa, não sei, não lembro, isso aconteceu há séculos. Provavelmente era redonda.
- Tá bem.
- Deixa eu recapitular a cena. Eu lá, sentado à mesa. A minha esquerda, o jornal. À direita, o café. E no meio da mesa o pacote de biscoitos.
- Estou vendo perfeitamente.
- O que você não vê - disse Arthur -, porque ainda não o mencionei, é um cara que já
estava sentado nessa mesa. Ele está sentado na minha frente.
- Como ele é?
- Perfeitamente normal. Maleta de couro. Terno e gravata. Não tinha cara de quem estava prestes a fazer uma coisa estranha.
- Ah. Conheço bem esse tipo. O que ele fez?
- Ele fez o seguinte. Ele se inclinou sobre a mesa, pegou o pacote de biscoito, abriu, pegou um e...
- E?
- Comeu.
- O quê"?
- Ele comeu.
Fenchurch olhou para ele, abismada.
- E que diabos você fez?
- Bem, diante das circunstâncias, fiz o que qualquer inglês viril faria. Fui obrigado a ignorá-lo.
- Como assim? Por quê?
- Bom, não é o tipo de coisa para a qual a gente está preparado, né? Vasculhei minha alma e descobri que não havia nada na minha criação, experiência ou até nos meus instintos básicos me dizendo como reagir diante de alguém que, sentado na minha frente, simplesmente, calmamente, rouba um dos meus biscoitos.
- Ah, você podia... - Fenchurch pensou a respeito. - É, tenho que admitir que eu teria feito a mesma coisa. E aí, o que aconteceu?
- Concentrei furiosamente a minha atenção nas palavras cruzadas - disse Arthur. - Não consegui preencher nada, tomei um gole de café, estava quente demais para beber, então eu não tinha nada para fazer. Me preparei. Apanhei um biscoito, tentando fingir que não tinha reparado que o pacote já estava misteriosamente aberto...
- Mas você reagiu, adotou uma postura firme.
- Do meu jeito, sim. Comi o biscoito. Comi deliberada e ostensivamente, para que ele não tivesse dúvida sobre o que estava fazendo. E, quando eu como um biscoito - disse Arthur -, devo dizer que não tem volta.
- E o que ele fez?
Apanhou outro. Sério - insistiu Arthur -, foi exatamente o que ele fez. Ele apanhou outro biscoito e comeu. Tão claro como a luz do dia. Tão certo como estarmos sentados aqui no chão. Fenchurch mexeu-se desconfortavelmente.
- E o problema - disse Arthur - é que, como eu não havia dito nada da primeira vez, ficou ainda mais difícil levantar o assunto da segunda vez. O que eu poderia dizer? "Com licença... não pude deixar de notar que..." Não dava mais. Não eu o ignorei, até mesmo com mais vigor do que antes
- Esse é o meu homem...
-Olhei para as palavras cruzadas, novamente, não consegui fazer uma linha, aí, inspirando-me na coragem de Henrique V no Dia de São Crispim...
- Ahn?
- Eu ataquei novamente. Peguei outro biscoito. E, por um momento, os nossos olhos se encontraram.
- Assim?
- Sim, bem, não, não desse jeito. Mas se encontraram. Por um breve instante. E nós dois desviamos o olhar. Mas devo dizer - disse Arthur - que houve uma pequena eletrícidade no ar. Havia uma pequena tensão crescendo naquela mesa. Àquela altura.
- Imagino.
- Acabamos com o pacote assim. Ele, eu, ele, eu.
- O pacote todo?
- Bom, eram só oito biscoitos, mas parecia que toda uma vida de biscoitos havia se passado diante de nós. Nem mesmo os gladiadores enfrentavam algo tão difícil.
- Os gladiadores - disse Fenchurch - teriam que fazer tudo isso sob um sol forte. Exige mais do condicionamento físico.
- É, tem isso. Enfim. Quando o pacote vazio jazia morto entre nós, o cara finalmente se levantou, já tendo feito o pior e foi embora. Eu suspirei aliviado, é claro. Anunciaram o meu trem um pouco depois, então terminei o meu café, levantei, apanhei o jornal e, embaixo do jornal...
- Ahn?
- Estavam os meus biscoitos.
O quê? - perguntou Fenchurch. - O quê?
- É sério.
- Ela ficou sem ar e se jogou de costas na grama, morrendo de rir. Sentou-se novamente.
- Seu bobalhão - disse ela, levantando a voz -, seu bobo, tolo e completo idiota!
Empurrou Arthur para trás, rolou sobre ele, lhe deu um beijo e rolou de volta ao seu lugar. Ele ficou impressionado ao sentir como ela era leve.
- Agora é a sua vez de me contar uma história.
- Pensei - disse ela, com uma voz rouca e baixa - que você estivesse doido para voltar.
- Não estou com pressa - disse ele, aéreo -, quero que você me conte uma história. Ela olhou em volta, pensando.
-Tá bem - disse ela -, mas é uma história bem curta. E não é engraçada como a sua, mas... tudo bem.
Olhou para baixo. Arthur podia sentir que era um daqueles momentos. O ar parecia estar parado em torno deles, esperando. Arthur queria que o ar fosse embora, cuidar de sua própria vida.
- Quando eu era criança... - disse ela. - Essas histórias sempre começam assim, né?
"Quando eu era criança..." Tudo bem. É nesse ponto em que a garota diz, de repente, "Quando eu era criança" e começa a desabafar. Chegamos a esse ponto. Quando eu era criança, eu tinha esse quadro pendurado aos pés da cama... O que você está achando até agora?
- Estou gostando. Está fluindo bem. Você está conseguindo tornar o quarto interessante bem no início. Provavelmente seria bom desenvolver melhor a história do quadro.
- Era um desses quadros de que as crianças supostamente gostam - disse ela -, mas na prática não. Cheio de animaizinhos carinhosos, fazendo coisas carinhosas, sabe como é?
- Sei. Também fui atormentado por eles. Coelhos usando coletes.
- Exatamente. Na verdade, os meus coelhos estavam em uma balsa com ratos e corujas. Acho até que tinha uma rena
- Na balsa.
- Na balsa. E tinha um garoto sentado lá também.
- No meio dos coelhos de colete, das corujas e da rena
- Exatamente. Um garoto com aquele jeito de moleque cigano sorridente.
- Argh.
- O quadro me deixava preocupada, tenho que admitir. Tinha uma lontra nadando na frente da balsa e eu costumava ficar acordada à noite, preocupada com aquela lontra puxando a balsa, com todos aqueles animais desprezíveis lá dentro, que não deveriam nem estar numa balsa, para começar, e a pobre lontra tinha um rabo tão fininho para puxar a balsa... eu ficava imaginando que devia doer muito, puxar aquilo o tempo todo. A coisa me preocupava. Não muito, mas levemente, o tempo todo.
- Aí um dia - lembre-se de que eu olhava para esse quadro todas as noites, durante anos de repente percebi que a balsa tinha uma vela. Nunca tinha visto antes. A lontra estava bem, ela só estava nadando, na dela.
Ela deu de ombros.
- Gostou da história? - perguntou ela.
- O final é fraco - disse Arthur -, deixa a plateia perguntando "Sim, mas e daí?". A história estava indo bem, mas precisa de um fechamento antes dos créditos. Fenchurch riu e abraçou as pernas.
- Foi uma revelação tão inesperada, anos de preocupação quase despercebida subitamente abandonados, como se eu tirasse um peso das costas, como se o que era preto e branco passase a ser colorido, como uma plantinha seca finalmente regada. Aquele tipo de mudança de perspectiva súbita que dizer "Deixe as suas preocupações de lado, o mundo é um lugar maravilhoso e perfeito. Na verdade, tudo é muito fácil" Você deve estar achando que estou dizendo isso porque e senti assim hoje à tarde, ou algo do tipo, não é?
- Bem, eu... - disse Arthur, perdendo a compostura de repente.
- Não, tudo bem - disse ela. - É verdade. Foi exatamente assim que me senti. Mas, veja bem, já me senti assim antes, e foi até mais forte. Incrivelmente forte. Acho que sou do tipo disse ela, com o olhar perdido no horizonte - que tem revelações surpreendentes. Arthur estava confuso, mal conseguia falar e sentiu que era sábio, portanto, não tentar ainda.
- Foi muito estranho - disse ela, mais ou menos como teria dito um dos egípcios em perseguição a respeito do comportamento do mar Vermelho quando Moisés moveu seu cajado.
- Muito estranho - repetiu ela -, porque dias antes já estava sentindo uma coisa estranha crescendo dentro de mim, como se estivesse para dar à luz ou algo assim. Não, na verdade não foi bem isso, era mais como se eu estivesse sendo conectada a alguma coisa, aos poucos. Não, também não era isso, era como se toda a Terra, através de mim, fosse...
- O número quarenta e dois significa algo para você? - perguntou Arthur gentilmente.
- O quê? Não, sobre o que você está falando? - perguntou fenchurch.
- É so algo que me passou pela cabeça - murmurou Arthur.
- Arthur isso e muito importante para mim, e sério.
- Minha pergunta era bem séria - disse Arthur. - Já o Universo, bem, nunca tenho muita certeza sobre ele.
- O que você quer dizer com isso?
- Me conte o resto - disse ele. - Não se preocupe se parecer estranho. Acredite, você está
falando com alguém que já viu de tudo que é estranho - acrescentou ele. - E não esto referindo aos biscoitos.
Ela concordou com a cabeça e parecia acreditar nele. Derepente, agarrou o braço de Arthur.
- Foi tão simples - disse ela -, tão maravilhosa dinariamente simples, quando me ocorreu.
- O que foi? - perguntou Arthur, baixinho.
- Veja bem, Arthur - disse ela -, é isso que eu não sei mais. E a perda é insuportável. Se eu tento voltar até aquele momento, fica tudo confuso e, mesmo quando me esforço, chego até a parte da xícara de chá e depois acabo desmaiando.
- O quê?
- Bom, como na sua história, a melhor parte também aconteceu numa lanchonete. Eu estava lá sentada, tomando um chá. Isso aconteceu dias depois da tal sensação crescente de estar me conectando a alguma coisa. Acho que meu corpo estava até vibrando um pouco. O
prédio em frente à lanchonete estava em obras e eu estava observando pela janela, por cima da borda da minha xícara de chá, que para mim continua sendo a melhor maneira de observar os outros trabalhando. E aí, de repente, surgiu na minha cabeça uma mensagem, vinda de não sei onde. E ela era tão simples. Fazia com que tudo fizesse tanto sentido. Eu me endireitei na cadeira e pensei: “Ah! Ah, sim, então está tudo bem.” Fiquei tão sobressaltada que quase derrubei a xícara de cha..-verdade, derrubei, sim. É - acrescentou ela, pensativa -, tenho certeza de que derrubei mesmo. Você está entendendo.
- Estava, até a parte da xícara de chá.
Ela sacudiu a cabeça e depois sacudiu novamente, como se tentasse limpar a mente, que era exatamente o que estava tentando fazer.
- Então foi isso. Estava tudo bem até a parte da xícara de chá. Foi então que tive a impressão de que o mundo literalmente explodiu.
- O quê?
- Eu sei que parece maluquice e todo mundo diz que foram alucinacões, mas, se aquilo foi uma alucinação, então tenho alucinações em telão, em 3D com som Dolby Stereo de dezesseis canais e deveria arrumar um emprego com essa gente que já se cansou de filmes de tubarão. Foi como se o chão tivesse sido literalmente arrancado sob os meus pés e... e... Ela bateu suavemente na grama, como se para verificar que ela estava lá e depois pareceu mudar de ideia sobre o que ia dizer.
- E então acordei no hospital. Acho que tenho entrado e saído de lá desde então. E é por isso que tenho um nervosismo instintivo diante de súbitas revelações surpreendentes de que tudo vai ficar bem. - Ela levantou o rosto e olhou para ele.
Arthur simplesmente parara de se preocupar com as estranhas anomalias que envolviam a sua volta à Terra, ou melhor, as relegara à parte do seu cérebro marcada com "Coisas Para Pensar - Urgente". "O mundo está aqui", dissera para si mesmo. "O mundo, seja lá por que for, está aqui e ele fica aqui. Comigo dentro." Mas agora o mundo parecia ondular à sua volta, como naquela noite, no carro do irmão de Fenchurch, quando ele estava contando as histórias malucas sobre o gente da CIA na represa. As árvores ondulavam diante dele. O lago ondulava, mas isso era absolutamente normal e não motivo para ficar alarmado, já que um ganso cinzento acabara de pousar nele. Os gansos estavam numa boa, relaxados, e não tinham grandes respostas para as quais quisessem saber a pergunta.
- De todo jeito - disse Fenchurch, súbita e radiantemente, com um largo sorriso -, tem alguma coisa errada com uma parte do meu corpo e você precisa descobrir o que é. Vamos para casa.
Arthur balançou a cabeça.
- O que foi? - perguntou ela.
Arthur não balançara a cabeça para discordar da sugestão de Fenchurch, que ele achara verdadeiramente excelente uma das melhores sugestões do mundo, e sim porque estava alguns instantes, tentando se livrar da impressão recorrente de que, quando menos esperasse, o Universo ia sair de trás da porta e fazer buuu para ele.
- Só estou tentando esclarecer as coisas na minha cabeça - disse Arthur. - Você diz que sentiu como se a Terra tivesse realmente... explodido...
- Foi. Mais do que senti.
- E todo mundo diz - continuou ele, hesitante - que isso foram alucinações?
- Sim, mas Arthur, isso é ridículo. As pessoas acham que basta dizer "alucinações" que tudo o que você quer explicar fica magicamente explicado e, se sobrar alguma coisa que você
não consiga entender, isso eventualmente desaparece. É só uma palavra, não explica nada. Não explica por que os golfinhos desapareceram.
- Não - respondeu Arthur. - Não - acrescentou ele, pensativo. - Não - acrescentou novamente, ainda mais pensativo. - O quê? - perguntou finalmente.
- Não explica por que os golfinhos desapareceram.
- Não - disse Arthur -, eu ouvi. De que golfinhos você esta falando?
-Como assim, de que golfinhos? Estou falando de quando todos os golfinhos desapareceram.
Ela pousou a mão no joelho de Arthur, o que fez ele perceber que o formigamento que subia e descia pela sua espiha não era um carinho que ela estava fazendo nas suas costas e devia ser então uma daquelas terríveis sensações horripilantes que ele costumava ter quando as pessoas estavam tentando explicar coisas para ele.
- Os golfinhos?
- Todos os golfinhos desapareceram? - perguntou Arthur.
- Sim.
- Os golfinhos? Você está me dizendo que todos os golfinhos desapareceram? É isso perguntou Arthur, tentando ser absolutamente claro quanto aquele ponto - o que você está
dizendo?
- Arthur, onde foi que você esteve, pelo amor de Deus? Todos os golfinhos desapareceram no mesmo dia em que eu...
Ela olhou atentamente para o olhar assustado de Arthur.
- O que...?
- Nada de golfinhos. Sumiram todos. Desapareceram.
Ela examinou o rosto dele.
- Você realmente não sabia disso?
Era óbvio, pela sua expressão assustada, que ele não sabia.
- Para onde eles foram? - perguntou ele.
- Ninguém sabe. É isso o que desapareceram quer dizer. - Ela fez uma pausa. - Bom, tem um homem que diz que sabe a verdade, mas todo mundo diz que ele mora na Califórnia - disse ela - e é louco. Eu estava pensando em ir até lá falar com ele, porque essa me parece a única pista que eu tenho sobre o que aconteceu comigo.
Ela deu de ombros e olhou para ele, longa e profundamente. Colocou a mão no rosto de Arthur.
- Eu realmente gostaria de saber por onde você andou - disse ela-- Acho que algo terrível aconteceu com você também. E foi por isso que nós nos reconhecemos. Ela olhou o parque à sua volta, que já estava sendo atado pelas garras do anoitecer.
- Bom - disse ela -, agora você tem alguém para contar.
Arthur exalou vagarosamente um suspiro acumulado há muito tempo.
- E uma história muito longa — disse ele.
Fenchurch inclinou-se sobre ele e apanhou a sua bolsa de lano.
- Tem alguma coisa a ver com isso? - perguntou ela. O que ela tirou da bolsa era algo velho e usado em muitas viagens, como se tivesse sido arremessado em rios pré-históricos, tostado sob o sol que brilha tão vermelho sobre os desertos de Kakrafon, semi-enterrado nas areias de mármore que permeiam os intoxicantes oceanos de Santraginus V, congelado nas geleiras da lua de Jaglan Beta, usado como assento, chutado para lá e para cá em naves espaciais, pisado e maltratado e, como seus fabricantes previram que seriam exatamente coisas assim que aconteceriam com ele, haviam prudentemente criado uma capa com um plástico bem resistente e escrito nele, em amistosas letras garrafais, as palavras "Não entre em pânico".
- Onde você arrumou isso? - perguntou Arthur, sobressaltado, puxando-o da mão dela.
- Ah - respondeu ela -, achei mesmo que fosse seu. No carro de Russell, naquela noite. Você deixou cair. Você esteve em muitos desses lugares?
Arthur tirou o Guia do Mochileiro das Galáxias da capa. Era como um laptop pequeno, fino e flexível. Digitou algumas coisas até que a tela ficou iluminada com o texto.
- Em alguns - respondeu ele.
- Podemos ir até lá?
- O quê? Não - respondeu Arthur abruptamente, mas seguida se acalmou, mas se acalmou com cautela. - Você quer? - perguntou ele, torcendo para que a resposta fosse negativa. Foi um ato de suprema generosidade da sua parte não ter dito "Você não quer, não é?", sendo o que esperava.
- Quero - respondeu ela. - Quero descobrir qual era a mensagem que eu perdi e de onde ela veio. Porque não acho - acrescentou ela, levantando-se e olhando à sua volta para a crescente escuridão que tomava o parque - que tenha vindo daqui. _-Não tenho nem mesmo certeza - acrescentou ela em seguida, abraçando Arthur pela cintura - de que sei onde é aqui.
capítulo 21
O Guia do Mochileiro das Galáxias é, como já foi freqüente e precisamente dito antes, uma daquelas coisas bastante sensacionais. Ele é, essencialmente, como já diz o título, um guia. O problema - ou melhor, um dos problemas, já que existem vários, sendo que uma boa parte deles continua atravancando os tribunais civis, comerciais e criminais em todas as partes da Galáxia e especialmente, sempre que possível, as partes mais corruptas - é este. A frase anterior faz sentido. O problema não é esse.
É este:
Alteração.
Leia tudo novamente e você vai entender.
A Galáxia é um lugar em constantes mudanças. Honestamente, há uma quantidade enorme de mudanças e cada parte está continuamente em movimento, continuamente mudando. Um verdadeiro pesadelo, você diria, para um editor escrupuloso e consciencioso, rigorosamente empenhado em manter esse volume eletrônico enormemente detalha e complexo a par de todas as circunstâncias e condições mutantes que a Galáxia cospe a cada minuto de cada hora a cada dia, e você estaria enganado. Você estaria enganado por deixar de perceber que o editor, como todos os editores que o teve até hoje, não tem a menor idéia do que palavras “escrupuloso”,
"consciencioso" ou "empenhado" significam e de a tende pesadelos a conta-gotas. O verbetes tendem a ser atualizados ou não via Subeta Net dependendo de quão fáceis são de ser lidos. Por exemplo, vejam o caso de Brequinda no Foth de Avalars, famosa em mito, lenda e nas incrivelmente chatas minisséries 3D como o lar dos imponentes e mágicos Dragões de Fogo Fuolornis.
No passado remoto, antes do Advento de Sorth de Bragadox, quando Fragilis cantava e Saxaquine de Quenelux imperava, quando o ar era doce e as noites perfumadas, mas todos, de algum modo, conseguiam ser (ou pelo menos era o que diziam, embora como diabos eles possam ter, mesmo que remotamente, achado que alguém ia acreditar em uma alegação tão estapafúrdia, com todo aquele ar doce e aquelas noites perfumadas e o que mais se pode imaginar) virgens, não era possível atirar um tijolo em Brequinda no Foth de Avalars sem atingir, no mínimo, meia dúzia de Dragões de Fogo Fuolornis.
Se isso era algo que você desejaria ou não fazer, bom, aí já são outros quinhentos. Não que os Dragões de Fogo não fossem uma espécie essencialmente pacífica, porque eram. Eles adoravam cada pedacinho de tudo, mas essa história de adorar coisas até o último pedacinho muitas vezes era justamente o problema: quando a pessoa ama, muitas vezes a pessoa machuca a pessoa que a pessoa ama, especialmente se a pessoa for um Dragão de Fogo Fulornis com bafo de lança-chamas e dentes como uma cerca de parque. Outro problema é que, quando entravam no clima, as vezes iam em frente e machucavam bastante muitas pessoas que outras pessoas amavam também. Acrescente a o número relativamente pequeno de malucos que realmente saíam por aí atirando tijolos e o resultado inevitável era um monte de gente seriamente ferida por dragões em Brequinda no Foth de Avalars. E eles ligavam para isso? Nem um pouco.
Alguém os ouvia deplorando seu destino? Não.
Os Dragões de Fogo de Fuolornis eram reverenciados toda a parte em Brequinda no Foth de Avalars por sua beleza selvagem, suas maneiras nobres e o seu hábito de morder pessoas que não os reverenciavam.
Por quê?
A resposta era simples.
Sexo.
Há, por algum motivo inescrutável, algo quase insuportavelmente sexy em se ter imensos dragões mágicos cuspidores de fogo sobrevoando o céu em noites enluaradas, que já eram por si só perigosíssimas por conta do ar doce e coisa e tal.
Por que isso acontecia é algo que o apaixonado povo de Brequinda no Foth de Avalars não saberia explicar, assim como não teriam sequer parado a fim de discutir o assunto depois que o efeito de coisa começasse, pois bastava uma meia dúzia de Dragões de Fogo Fuolornis despontarem no horizonte do crepúsculo, com suas asas de seda e sua pele de couro, para que metade da população de Brequinda saísse correndo feito louca, floresta adentro, com a outra metade, passando lá uma noite muito ativa e ofegante a dois, e ressurgindo, com os primeiros raios da aurora, sorrindo alegremente e insistindo em afirmar, afetuosamente, que eram virgens
- ainda que virgens coradas e lânguidas.
Feromônios, diziam alguns pesquisadores.
Algo sônico, diziam outros.
- O lugar estava sempre apinhado de pesquisadores tentando chegar ao fundo da questão e gastando bastante tempo nessas pesquisas.
Não era de se admirar que a detalhada descrição sedutora da situação geral desse planeta no Guia tenha se mostrado incrivelmente popular entre os mochileiros que se permitem ser guiados por ele, de modo que jamais foi removida, deixando que os viajantes modernos descubram, por conta própria, que a Brequinda contemporânea, na Cidade-Estado de Avalars, não passa de concreto, bares de strip-tease e lanchonetes Dragon Burger. capítulo 22
A noite em Islington estava doce e perfumada.
Claro que não havia Dragões de Fogo Fuolornis por perto, mas, se eles por acaso tivessem dado as caras, podiam muito bem dar uma parada na estrada e comer uma pizza, pois não seriam necessários.
Caso surgisse uma emergência enquanto ainda estavam no meio da sua fatia de pepperoni com porção extra de anchova, podiam tranqüilamente mandar um recado para colocarem Dire Straits no som, coisa que, como hoje é conhecido, tem o mesmo efeito.
- Não - disse Fenchurch -, ainda não.
Arthur colocou o disco do Dire Straits no som. Fenchurch deixou a porta da frente do andar de cima entreaberta, para que o ar doce e perfumado da noite encontrasse o seu carminho. Sentaram-se em algum móvel feito de almofadas, próximos da garrafa de champanhe aberta.
- Não - repetiu Fenchurch -, não até você descobrir o que há de errado comigo, com qual parte do meu corpo. Mas acho que - acrescentou ela, muito, muito, muito baixinho - podemos começar por onde a sua mão está agora.
Arthur disse:
- Então para que lado eu vou?
- Para baixo - respondeu Fenchurch -, nesse caso.
Ele mexeu a mão.
- Para baixo - disse ela -, é do outro lado.
-Ah, tá.
Mark Knopfler tem um talento extraordinário para fazer a guitarra Schecter Custom Stratocaster cantar e uivar como anjos no sábado à noite, exaustos de serem bonzinhos a semana toda e precisando de uma cerveja bem forte - o que não é estritamente relevante agora, já que o disco ainda não chegou nessa parte, mas vai estar rolando muita coisa quando chegar lá
e, além do mais, o autor não tem a menor intenção de ficar aqui sentado com uma lista com os nomes das faixas e um cronômetro, então é melhor comentar isso logo, enquanto as coisas ainda estão indo devagar.
- Então chegamos - disse Arthur - ao seu joelho. Há uma coisa terrível e tragicamente errada com o seu joelho esquerdo.
- O meu joelho esquerdo - disse Fenchurch - vai bem, obrigada.
- Certamente.
- Você sabia que...
- O quê?
- Ah, tudo bem, dá para ver que você sabe. Não, continue.
- Então deve ser alguma coisa com os seus pés...
Ela sorriu à luz suave e aconchegou seus ombros nas almofadas com um movimento sutil. Já que existem almofadas no Universo, especificamente em Squornshellous Beta, dois mundos depois do pantanal dos colchões, que têm um prazer ativo em ser roçadas, especialmente de maneira sutil, devido ao movimento sincopado dos ombros, foi uma pena que elas não estivessem lá. Não estavam, mas a vida é assim mesmo.
Arthur apoiou o pé esquerdo de Fenchurch no colo e examinou-o minuciosamente. Várias coisas relacionadas ao modo como o vestido dela caía por entre as pernas tornavam difícil para ele pensar com clareza naquele instante.
- Tenho que admitir - disse ele - que não faço a idéia do que estou procurando.
- Você vai saber quando encontrar - respondeu ela - Tenho certeza. - A sua voz estava levemente embargada. - Não é esse pé.
Sentindo-se cada vez mais confuso, Arthur colocou o pé esquerdo dela no chão e mudou de lugar para poder observar o pé direito. Ela se inclinou um pouco, abraçando Arthur e o beijou, porque o disco tinha chegado naquele momento em que, se você conhece o disco, sabe que seria impossível não fazer isso.
Depois, ela lhe estendeu o pé direito.
Arthur o afagou, deslizou os dedos em torno do calcanhar debaixo dos dedos, ao longo do peito do pé e não viu nada de errado com ele.
Ela o observou, achando muita graça, deu uma risada e balançou a cabeça.
- Não, não pára - pediu ela -, mas agora não é esse.
Arthur parou e olhou curioso, com a testa franzida, para o seu pé esquerdo no chão.
- Não pára.
Ele acariciou o pé direito dela, deslizou os dedos em torno do calcanhar, por baixo dos dedos, pelo peito do pé e disse:
- Quer dizer que tem a ver com qual das pernas eu estou segurando...?
Ela fez mais um daqueles movimentos de ombros que teriam alegrado a vida de uma simples almofada em Squornshellous Beta.
Ele franziu a testa.
- Me pega no colo - disse ela, baixinho.
Ele pousou o pé direito dela no chão e se levantou, Ela também ficou de pé. Ele a segurou em seus braços e eles se beijaram novamente. Ficaram assim por alguns instantes, ela disse:
- Agora me coloque de volta no chão.
Ainda confuso, ele obedeceu.
- E aí?
Ela o olhou, quase desafiadora.
- Qual o problema com meus pés? - perguntou ela.
Arthur ainda não estava entendendo. Sentou-se no chão, depois ficou agachado examinando os pés dela in loco, em seu habitat natural. E, ao olhar bem de perto, algo estranho o surpreendeu. Agachou a cabeça rente ao chão e olhou. Houve uma longa pausa. Depois sentou-se de volta, pesadamente.
- Sim - ele disse -, entendi o problema com os seus pés. Eles não encostam no chão.
- E aí... o que você acha?
Arthur olhou para ela depressa e viu uma apreensão profunda tornando os olhos dela subitamente escuros. Ela mordeu o lábio; estava tremendo.
- O que... - gaguejou ela - ...você está...? - Ela jogou o cabelo sobre os olhos, carregados de lágrimas escuras de medo.
Ele levantou-se imediatamente, abraçou-a e lhe deu um beijo.
- Talvez você consiga fazer o que eu faço - disse ele, saindo pela porta da frente do segundo andar, noite adentro.
O disco chegou naquela parte boa.
capítulo 23
A batalha prosseguia implacável sobre a estrela de Xaxis. Centenas de naves zirzlas, aterradoras e horrivelmente armadas, haviam sido esmagadas e reduzidas a átomos pelas forças devastadoras que a gigantesca nave xaxisiana prateada podia lançar. Uma parte da lua também se fora, destruída pelas mesmas armas flamejantes que rasgaram o próprio tecido do espaço ao passarem por ele.
As naves zirzlas que haviam sobrado, embora temivelmente armadas, estavam, naquele momento, irremediavelmente sobrepujadas pelo poder devastador da nave xaxisiana e procuravam se esconder atrás da lua, que se desintegrava rapidamente, quando a nave xaxisiana, em uma perseguição ensandecida, anunciou de repente que precisava de férias e abandonou o campo de batalha.
Houve um momento de medo redobrado e consternação, mas a nave de fato foi embora. Utilizando seus extraordinários poderes, afastou-se veloz pela vasta imensidão daquele espaço irracionalmente delineado, rapidamente, sem fazer esforço e, sobretudo, em silêncio. Recolhido em seu leito ensebado e fedorento, improvisado em uma escotilha de manutenção, Ford Prefect dormia em meio às suas toalhas, sonhando com antigos refúgios. Em algum momento sonhou com Nova York.
No sonho, estava caminhando tarde da noite pelo East Side, ao longo do rio que se tornara tão extravagantemente poluído que novas formas de vida já surgiam dele espontaneamente, exigindo planos de aposentadoria e direito de voto.
Uma dessas formas de vida flutuou perto dele, acenando. Ford acenou de volta. A coisa foi jogada na margem e esforçou-se para sair da água.
- Oi - disse ela. - Acabei de ser criada. Sou completamente ignorante em relação ao Universo, em todos os sentidos. Será que você pode me ensinar alguma coisa?
- Puxa - murmurou Ford, um tanto perplexo. - Bom, acho que posso te indicar uns bares.
- E sobre o amor e a felicidade? Sinto uma profunda necessidade de coisas assim - disse a criatura, balançando os tentáculos. - Alguma dica?
- Você pode encontrar algo próximo ao que procura na Sétima Avenida - disse Ford.
- Eu sinto, instintivamente - insistiu ela -, que preciso ser bonito. Sou?
- Você é bem direto, hein?
- Não faz sentido ficar enrolando. Sou ou não sou?
A criatura estava esvaindo-se pelo chão, chapinhando e debulhando-se em lágrimas. Um bebum nas proximidades começou a se interessar.
- Para mim? - perguntou Ford. - Não. Mas, escuta - acrescentou ele, após uma breve pausa
-, a maioria das pessoas se dá bem, sabe? Têm outros como você lá embaixo?
Sei lá, cara - respondeu a criatura. - Como eu disse, sou novo por aqui. A vida é
completamente estranha para mim. Como ela é?
Ali estava algo que Ford sentia que podia responder com autoridade.
- A vida - disse ele - é como um grapefruit.
- Tá, e como é isso?
- Bom, é meio amarelo-alaranjado, com uma casca dura do lado de fora, molhado e bem macio por dentro, onde tem uns caroços. Ah, e algumas pessoas comem metade no café-damanhã.
- Tem mais alguém aqui com quem eu possa conversar?
-Acho que sim - respondeu Ford. - Pergunte a um policial.
Recolhido em seu leito, Ford Prefect se contorceu e virou para o outro lado. Aquele não era o seu tipo de sonho favorito, porque não tinha Eccentrica Gallumbits, a Prostituta de Três Seios de Eroticon VI, que estrelava vários dos seus sonhos. Mas pelo menos era um sonho. Pelo menos estava dormindo.
capítulo 24
Por sorte havia uma forte corrente de ar na travessa, porque há muito tempo Arthur não fazia aquele tipo de coisa ou, pelo menos, não deliberadamente, e deliberadamente era exatamente a maneira como a coisa não deve ser feita.
Lançou-se bruscamente para baixo, quase quebrando o queixo na soleira da porta, e saiu trôpego pelo ar, tão subitamente embasbacado com a coisa profundamente idiota que tinha acabado de fazer que esqueceu completamente daquela parte de cair no chão estatelado, e não caiu.
Um belo truque, pensou ele, se você é capaz de fazê-lo.
O chão estava ameaçadoramente pendurado sobre a sua cabeça.
Tentou não pensar no chão, em como ele era extraordinariamente grande e como iria machucá-lo caso decidisse parar de ficar dependurado ali e caísse sobre ele de repente. Tentou, em vez disso, ter pensamentos agradáveis sobre os lêmures, o que era uma boa idéia, porque não conseguia se lembrar exatamente o que era um lêmure: se era uma daquelas coisas que percorrem em grandes hordas majestosas as planícies de sei lá onde ou se esses eram os gnus, de modo que era uma daquelas coisas peculiares para se pensar sem ter de recorrer apenas a um tipo grudento de boa vontade generalizada em relação às coisas e tudo isso manteve a sua mente bem ocupada enquanto o seu corpo tentava se ajustar ao fato de que não estar tocando em nada.
Um papel de chocolate Mars flutuava pela travessa.
Após um aparente momento de dúvida e indecisão, permitiu finalmente que o vento deixasse as coisas fluírem, flutuantes, entre ele e o chão.
- Arthur...
O chão continuava ameaçadoramente pendurado sobre a sua cabeça e ele sentia que provavelmente já estava na hora de tomar alguma atitude a respeito, como descer em direção a ele, e foi o que fez. Devagar. Muito, muito devagar.
Enquanto descia devagar, muito, muito devagar, fechou os olhos, com cuidado, para não esbarrar em nada.
A sensação dos seus olhos se fechando percorreu todo o seu corpo. Quando ela chegou aos pés e o corpo todo já estava avisado do fato de que seus olhos estavam fechados e não entrara em pânico por causa disso, ele virou devagar, muito, muito devagar o seu corpo para um lado e a sua mente para o outro.
Isso deveria resolver a questão do chão.
Podia sentir o ar puro sobre ele, ventando à sua volta alegremente, sem se incomodar com a sua presença e devagar, muito, muito devagar, como se acordando de um sono profundo e distante, ele abriu os olhos.
Já havia voado antes, é claro. Voara várias vezes em Krikkit até que todo aquele passareado o deixasse de saco cheio, mas aquilo era diferente. Lá estava ele em seu próprio mundo, calmo e sem confusões, a não ser uma ligeira tremedeira que poderia atribuída a diversas coisas, estando em pleno ar. Uns quatro ou cinco metros abaixo dele estava o asfalto e um pouco depois, à direita, os postes de luz amarelos da Upper Street.
Felizmente a travessa estava escura, já que a luz que supostamente funcionaria à noite era regulada por um temporizador engenhoso, que acendia um pouco antes do meio-dia apagava novamente ao anoitecer. Estava, portanto, protegido por um manto de escuridão. Devagar, muito, muito devagar, levantou a cabeça para Fenchurch, que estava parada em uma perplexidade muda, em contraluz na soleira do andar superior. O seu rosto estava a alguns centímetros do dele.
- Eu ia te perguntar - disse ela em voz trémula e sussurrada - o que você estava fazendo. Aí percebi que eu estava vendo o que você estava fazendo. Você estava voando. Então me pareceu - prosseguiu, após uma breve reflexão - um pouco idiota perguntar. Arthur perguntou:
- Você consegue? - Não.
- Não quer tentar?
Ela mordeu o lábio e balançou a cabeça, num gesto que era mais de espanto do que de negação. Estava tremendo da cabeça aos pés.
- É muito fácil - insistiu Arthur - se você não sabe como fazer. Essa é a parte mais importante. Ter absoluta certeza de não saber como está fazendo isso. Para demonstrar como era fácil, ele flutuou pela travessa, subiu dramaticamente e voltou para o lado dela, como uma nota soprada pelo vento.
- Pergunte-me como foi que eu fiz isso.
- Como foi que... você fez isso?
- Não sei. Nem a menor ideia.
Ela deu de ombros, confusa.
- Então como é que eu posso...?
Arthur flutuou para baixo e estendeu a mão.
- Quero que você tente - disse ele - subir na minha mão. Só um pé.
- O quê?
- Tente.
Nervosa, hesitante, quase como, pensou consigo mesma estivesse tentando subir na mão de alguém que estava flutuando na sua frente em pleno ar, ela apoiou o pé na mão dele.
- Agora o outro.
- Como assim?
- Tira o peso do outro pé.
- Não consigo.
- Tenta.
- Assim?
- Isso.
Nervosa, hesitante, quase como, pensou ela, se estivesse... Parou de pensar no que estava fazendo porque tinha a impressão de que na verdade não estava muito interessada em saber. Fixou o olhar muito, muito firmemente na calha do telhado de um armazém decrépito em frente à sua casa que a incomodava há semanas porque claramente estava prestes a desabar e ela estava pensando se alguém ia tomar alguma providência ou se devia falar com alguém sobre aquilo e nem por um segundo pensou no fato de que estava de pé sobre as mãos de alguém que não estava de pé sobre nada.
- Agora - disse Arthur -, tire o peso do pé esquerdo.
Achava que o armazém pertencia à companhia de carpetes que tinha um escritório na esquina e então provavelmente deveria ir até lá e falar com eles sobre a calha - tirou o peso do pé esquerdo.
- Agora - disse Arthur -, tire o peso do seu pé direito.
- Não consigo.
- Tenta.
Nunca tinha visto a calha daquele ângulo antes e parecia que, além da lama e da gosma, tinha um ninho de passarinhos lá em cima também. Se pudesse se inclinar um pouquinho mais tirando o peso do pé direito, possivelmente conseguiria ver melhor. Arthur ficou preocupado ao notar que alguém lá embaixo estava tentando roubar a bicicleta dela. A última coisa que queria no momento era ter de criar caso com alguém, então torceu para o sujeito não fazer muito barulho e não olhar para cima. Ele tinha o ar tranquilo e astuto de alguém que habitualmente rouba bicicletas em becos e habitualmente não encontra os donos das bicicletas flutuando alguns metros acima destas. Bem relaxado graças a esses dois hábitos, foi em frente com determinação e concentração, e, quando descobriu que a bicicleta estava indiscutivelmente presa por aros de carboneto de tungsténio a uma barra de ferro enterrada no concreto, ele entortou pacificamente as duas rodas e seguiu seu caminho.
Arthur deu um longo suspiro.
- Veja que pedaço de casca de ovo achei para você - disse Fenchurch no seu ouvido. capítulo 25
Os fiéis seguidores dos feitos de Arthur Dent podem ter tido uma impressão de seu caráter e seus hábitos que, apesar de incluir toda a verdade e, claro, nada além da verdade, de algum modo não chega aos pés, como um todo, da verdade absoluta em todos os seus gloriosos aspectos.
E os motivos são óbvios. Editar, selecionar, ter de equilibrar o que é interessante com o que é relevante e cortar os acontecimentos banais mais chatos. Como esse, por exemplo: "Arthur Dent foi se deitar. Subiu as escadas, todos os quinze degraus, abriu a porta, entrou no quarto, tirou os sapatos, as meias, depois o resto da roupa, peça por peça, e as depositou em cima de uma pilha caprichosamente amarrotada no chão. Vestiu o pijama, aquele azul listrado. Lavou o rosto e as mãos, escovou os dentes, usou a privada, percebeu que mais uma vez tinha feito tudo na ordem errada, teve que lavar as mãos de novo e foi para a cama. Leu por uns quinze minutos, dos quais os primeiros dez minutos foram gastos tentando descobrir em que página havia parado na noite anterior, depois apagou a luz e alguns minutos depois pegou no sono.
Estava escuro. Ficou deitado para o lado esquerdo durante cerca de uma hora. Depois agitou-se inquieto em seu sono por alguns minutos e então decidiu virar-se para o lado direito. Uma hora depois, piscou os olhos rapidamente e coçou levemente o nariz, faltando ainda uns bons vinte minutos antes que se virasse novamente do lado esquerdo. E assim passou a noite toda, dormindo.
Às quatro ele se levantou e foi ao banheiro novamente. Abriu a porta do banheiro..." E
assim por diante.
Isso é encheção de lingüiça. A ação do livro não avança. De fato produz aqueles grossos volumes dos quais o mercado norte-americano vive, mas não leva ninguém a lugar algum. Resumindo: você não está a fim de saber.
Mas existem outras omissões, além dessas coisas do tipo escovar os dentes e tentar achar um par de meias limpas, e as pessoas parecem estar incrivelmente interessadas por algumas dessas.
Como é, elas querem saber, que terminou toda aquela história entre Arthur e Trillian, afinal?
A resposta é, obviamente, vá cuidar da sua vida.
E o que, perguntam eles, Arthur fazia durante todas aquelas noites no planeta Krikkit? Só
porque não havia Dragões de Fogo Fuolornis ou Dire Straits no planeta, isso não quer dizer que as pessoas passassem suas noites lendo.
Ou, pegando um exemplo ainda mais específico, e naquela noite, depois da reunião do comitê na Terra Pré-Histórica, quando Arthur ficou sentado em uma colina, contemplando a lua nascendo no céu por trás do brilho vermelho das árvores com uma bela garota chamada Mella, que havia escapado por pouco de ter que passar o resto da vida olhando, todas as manhãs, para uma centena de fotografias praticamente idênticas de tubos de pasta de dentes taciturnamente iluminados no departamento de arte de uma agência de publicidade no planeta Golgafrincham?
E aí? O que aconteceu depois? E a resposta, obviamente, é que o livro terminou. No livro seguinte, a história é retomada cinco anos depois e é possivel, afirmam alguns, exagerar na discrição. "Esse tal de Arthur Dent", faz-se ouvir o grito provindo dos cantos longínquos da Galáxia, que agora foi até mesmo encontrado inscrito em uma misteriosa sonda espacial, supostamente originária de uma galáxia alienígena e vinda de uma distância demasiado horrorosa para sequer ser ponderada, "o que é ele, um homem ou um rato? Será
possível que não se interesse nada além de chá e das questões mais amplas da existência? Não tem vigor? Não tem personalidade? Será que, em outra palavras, ele não trepa?" Os que querem respostas devem continuar lendo. Outros podem preferir pular direto para o último capítulo, que é bem legal e é onde aparece o Marvin.
capítulo 26
Deixando que o vento os carregasse, Arthur Dent permitiu-se pensar, por um momento indigno, que gostaria muito que seus amigos que sempre o acharam legal mas chato, ou, nos últimos tempos, esquisito mas chato, estivessem se divertindo bastante no bar, mas aquela era a última vez, por um bom tempo, que pensaria neles.
O vento os carregava, subindo em espiral vagarosamente, um em volta do outro, como as sementes de sicômoros caindo da árvore no outono, só que na direção contrária. E enquanto subiam, carregados pelo vento, as suas mentes cantavam com a consciência em êxtase, sabendo que ou o que eles estavam fazendo era completa e totalmente impossível ou a Física tinha que se atualizar muito.
A Física balançou a cabeça e, olhando para o outro lado, concentrou-se em manter os carros na estrada de Euston e na direção do viaduto de Westway, em manter os postes de luz iluminados e em garantir que, quando alguém deixasse um cheeseburger cair em Baker Street, ele se estatelasse no chão.
Diminuindo temerariamente abaixo deles, as distantes fileiras de luz de Londres - Arthur tinha de se lembrar constantemente de que não estava nos campos coloridos e surreais de Krikkit, nas margens mais remotas da Galáxia, cujas sardas iluminadas cobriam fracamente o céu aberto acima deles, mas em Londres - balançavam, balançando, e, girando, giravam.
- Tente uma descida rápida - disse ele para Fenchurch.
- O quê?
A sua voz parecia curiosamente clara mas distante, naquele imenso vazio do ar. Sua voz soava rouca e fraca de incredulidade - tudo isso, clara, rouca, distante, fraca, tudo ao mesmo tempo.
- Estamos voando... - disse ela.
- Normal - disse Arthur -, não pense nisso. Tente uma descida rápida.
- Uma desc...
A sua mão segurou a de Arthur e, logo em seguida, o seu peso a acompanhou e, por incrível que pareça, lá foi ela, despencando abaixo dele, tentando loucamente se agarrar ao nada.
A Física deu uma olhadinha para Arthur e, congelado em horror, lá se foi ele também, tonto com a queda vertiginosa, gritando com todo o corpo, em silêncio. Caíram porque, afinal de contas, era Londres, e realmente não era para fazer aquele tipo de coisa por lá.
Não conseguiu segurá-la porque estavam em Londres e não a alguns milhões de milhas dali, mas a setecentas e cinqüenta e seis, para ser exato; em Pisa, Galileu demonstrara claramente que dois corpos em queda caíam exatamente com a mesma aceleração, fossem quais fossem seus pesos relativos.
Caíram.
Enquanto caía, vertiginosamente, nauseantemente, Arthur constatou que, se fosse ficar vagando pelo céu acreditando e tudo o que os italianos diziam sobre a Física, quando na verdade eles mal conseguiam manter uma simples torre em pé, em estariam com um problema mortal, então resolveu cair mias rápido do que Fenchurch.
Ele a agarrou por cima e tateou seus ombros até segurá-los com firmeza. Conseguiu. Maravilha. Agora estavam caindo juntinhos, o que era muito lindo e romântico, mas não resolvia o problema básico de estarem caindo, e o chão, em vez de esperar para ver se ele tirava mais alguns truques malandros da manga, estava vindo de encontro a eles como um trem expresso.
Ele não conseguiu sustentar o peso dela, não tinha com que nem onde apoiá-lo. A única coisa que conseguia pensar era que obviamente iam morrer e que, se quisesse que qualquer coisa que não o óbvio acontecesse, teria que fazer alguma coisa que não o óbvio. Estava, enfim, em um território familiar.
Ele a soltou, empurrando-a, e quando ela se virou para olhar para ele, em completo pânico, ele segurou o dedo mindinho dela com o seu dedo mindinho e jogou-a de volta para cima, em seguida subindo aos tropeções atrás dela.
- Merda - disse Fenchurch, sentada ofegante sobre absolutamente nada e, quando ela se recuperou, voaram noite adentro.
Um pouquinho abaixo do nível das nuvens, eles pararam para conferir onde impossivelmente tinham ido parar. O chão lá embaixo era algo que não devia ser olhado com muita firmeza ou rigidez, meramente algo a ser vislumbrado en passant. Fenchurch, ousada, se aventurou em algumas descidas, e descobriu que, ao se colocar exatamente acima de uma rajada de vento, conseguia fazer altos movimentos, com direito a uma pirueta no final, seguida de uma suave queda que fazia o seu vestido se inflar como um balão, e é exatamente neste ponto da história que os leitores ansiosos para saber o que Marvin e Ford Prefect andaram fazendo durante todo esse tempo deveriam pular direto para os últimos capítulos, porque nesse exato momento Arthur não pôde mais se controlar e ajudou Fenchurch a se livrar daquele vestido.
O vestido se foi, carregado pelo vento, até virar um pontinho distante que finalmente desapareceu de vista e, por vários motivos complexos, revolucionou a vida de uma família em Hounslow, quando foi descoberto estendido sobre o seu varal na manhã seguinte. Em um silencioso abraço, flutuaram para cima até estarem nadando entre os enevoados espectros de umidade, desses que a gente consegue ver pairando em volta das asas do avião, mas nunca consegue sentir, porque estamos sentados quentinhos lá dentro do avião abafado olhando pela janelinha arranhada enquanto o filho de alguém tenta com zelo derrubar leite quente na nossa camisa.
Arthur e Fenchurch podiam senti-los, delicadamente frios e etéreos, entrelaçando-se em volta dos seus corpos, muito frios, muito etéreos. Sentiram - até mesmo Fenchurch, que, àquelas alturas, só estava protegida dos elementos por um par de peças da Marks & Spencer que, como não iam deixar a força da gravidade perturbá-los, o frio e a escassez da atmosfera podiam muito bem se danar.
As duas peças da Marks & Spencer, que, assim que Fenchurch emergiu da massa nevoenta das nuvens, Arthur fez questão de remover muito, muito devagar - a única maneira possível de removê-las quando se está voando e não se usa as mãos -, acabaram causando um considerável estrago na manhã seguinte em, respectivamente, do sutiã para a calcinha, Isleworth e Richmond.
Ficaram um bom tempo na nuvem, porque era espessa, quando finalmente emergiram molhados, Fenchurch girando devagar, como uma estrela-do-mar carregada por uma maré alta, descobriram que é acima das nuvens que a noite fica realmente enluarada. A luz é sombriamente brilhante. Existem montanhas diferentes lá em cima, mas são montanhas, com as suas próprias e brancas neves gélidas.
Emergiram no alto de um denso cúmulo-nimbo e começaram a descer preguiçosamente em seus contornos, enquanto Fenchurch ajudava Arthur a se libertar das suas roupas, até que todas se foram, embaladas pelo vento, caindo aos poucos para dentro da brancura envolvente. Ela o beijou, beijou o seu pescoço, o seu peito, e logo, logo estavam flutuando sem rumo, girando devagar, na forma de um T sem fala que teria feito até mesmo um Dragão de Fogo Fuolornis, empanturrado de pizza, bater as asas e tossir um pouquinho. Mas não havia nenhum Dragão de Fogo Fuolornis nas nuvens, nem poderia, pois como os dinossauros, os dodôs e os majestoso Drubbered Wintwock de Stegbartle Major, na constelação de Fraz, e ao contrário do Boeing 747, que pode ser facilmente encontrado, todos foram lamentavelmente extintos, e o Universo jamais encontrará criaturas como aquelas novamente. O motivo do Boeing 747 ter surgido do nada na lista acima não deixa de estar relacionado ao fato de que algo muito similar surgiu na vida de Arthur e Fenchurch alguns instantes depois. E eles são enormes, assustadoramente enormes. Dá para notar quando um deles está no ar com você. São precedidos por um estrondoso deslocamento de ar, uma muralha em deslocamento de vento uivante e você é arremessado para longe , se for idiota o bastante para estar fazendo algo remotamente parecido com que o Arthur e Fenchurch estavam fazendo nas suas redondezas, como borboletas em um assalto relâmpago.
Daquela vez, porém, houve uma queda desesperadora ou perda de coragem, um reencontro alguns momentos depois e uma interessante idéia nova entusiasticamente sinalizada em meio ao barulho ensurdecedor.
A senhora E. Kapelsen, de Boston, Massachusetts, já era uma senhora idosa; na verdade, sentia que a sua vida estava chegando ao fim. Já havia visto muita coisa, ficara intrigada com algumas, mas estava um pouco incomodada de sentir-se enfadada com quase tudo. A vida fora bastante agradável, mas talvez um pouquinho previsível demais, um pouquinho repetitiva. Deixando escapar um suspiro, ela abriu a cortina de plástico da janela do avião e olhou para fora, por cima da asa.
Primeiro, pensou que devia chamar a aeromoça, mas depois ela pensou, melhor, não, que se dane, definitivamente não, aquilo era para ela e só para ela. Quando suas duas pessoas inexplicáveis finalmente deslizaram para fora da asa e sumiram na turbulência das turbinas, ela já estava bem mais alegrinha. Estava sobretudo imensamente aliviada por constatar que praticamente tudo que as pessoas lhe disseram durante toda a sua vida estava errado.
***
Na manhã seguinte Arthur e Fenchurch dormiram até bem tarde na travessa, apesar do barulho contínuo de mobílias sendo restauradas.
Na noite seguinte fizeram tudo de novo, só que desta vez levaram um walkman da Sony. capítulo
27
Isso tudo é maravilhoso - disse Fenchurch alguns dias depois. - Mas eu realmente preciso saber o que aconteceu comigo. Sabe, essa é a diferença entre nós dois. Você perdeu alguma coisa e encontrou novamente e eu encontrei alguma coisa e depois a perdi. Preciso encontrá-la novamente.
Ela teve de sair o dia todo, então Arthur se programou para passar o dia pendurado no telefone.
Murray Bost Henson era um jornalista que trabalhava em um daqueles jornais com páginas pequenas e letras grandes. Seria bom poder dizer que aquilo não o afetava, porém, infelizmente, não era o caso. Como era o único jornalista que Arthur conhecia, decidiu telefonar para ele mesmo.
- Arthur, minha velha colher de sopa, minha velha sopeira de prata, que maravilha ouvir a sua voz. Alguém me disse que você tinha ido para o espaço ou algo assim. Murray tinha um jeito peculiar de falar, que ele inventara para o seu próprio uso e que ninguém mais conseguia imitar Sequer entender. A maior parte não significava absolutamente nada mesmo. E as partes que de fato tinham algum significado estavam tão incrivelmente soterradas em uma avalanche de de absurdos que ninguém conseguia identificá-las no meio daquilo. Quando você finalmente percebia, bem mais tarde, quais eram as partes importantes, normalmente já era tarde demais para todos os envolvidos.
- O quê? - perguntou Arthur.
- Só um boato, minha velha presa de elefante, minha mesinha de cartas de baeta verde, só
um boato. Provavelmente não quer dizer nada, mas eu posso precisar de uma declaração sua a respeito.
- Não tenho nada a declarar, isso é conversa de botequim
- Nós vivemos disso, meu velho membro protético, nós vivemos disso. E, depois, isso se encaixaria perfeitamente de alguma forma com uma das outras coisas nas histórias dessa semana; portanto, se você negasse tudo, estaria ótimo. Com licença, acabou de cair alguma coisa do meu ouvido.
Houve uma ligeira pausa e logo depois Murray Bost Henson voltou ao telefone, com a voz genuinamente abalada.
- Acabei de me lembrar - disse ele - que noite estranha eu tive ontem. De qualquer forma, meu velho, não vou contar. Como foi andar no Cometa de Halley?
- Eu não andei no Cometa de Halley - respondeu Arthur, contendo um suspiro.
- O.k., como foi não ter andado no Cometa de Halley?
- Bastante confortável, Murray.
Houve uma pausa, enquanto Murray anotava.
- Bom para mim, Arthur, bom para Ethel, para mim e para as galinhas. E se encaixa bem com o surrealismo geral da semana. Semana Surreal, estamos pensando em chamá-la assim. Bom, né?
- Muito bom.
- Soa bem. Primeiro, tivemos esse cara que atrai a chuva
- O quê?
- É a mais pura verdade. Tudo documentado no caderninho preto, tudo comprovado em cada detalne delicioso. O Serviço de Meteorologia está como um manequim azombado subindo pelas paredes e homenzinhos esquisitos vestindo jalecos brancos estão pegando aviões nos quatro cantos do mundo, com as suas pequenas réguas e caixas e refeições rápidas. Esse cara é
o joelho da abelha, Arthur, é o mamilo da vespa. Ele é, eu chegaria ao ponto de dizer, o conjunto completo das zonas erógenas de todos os insetos do mundo ocidental. Nós o estamos chamando de Deus da Chuva. Legal, né?
- Acho que conheci ele.
- Isso me soa bem. O que você disse?
- É possível que eu o tenha conhecido. Reclama o tempo todo, não é?
- Incrível! Você conhece o Deus da Chuva?
- Se for o mesmo cara. Eu disse a ele para parar de reclamar e mostrar o caderninho dele para alguém.
Murray Bost Henson fez uma pausa impressionada do outro lado da linha.
- Bom, você gerou fortunas. Você gerou grandes fortunas. Escuta, sabe quanto um agente de turismo está pagando para esse sujeito não ir a Málaga esse ano? Quero dizer, esqueça a parte de irrigar o Saara e outras coisas sem graça, esse sujeito tem uma carreira inteiramente nova à sua frente, simplesmente evitando ir aos lugares e sendo pago por isso. O cara esta virando um fenômeno, Arthur, talvez até tenhamos que fazê-lo ganhar na loteria. Escuta, é
possível que a gente queira fazer uma matéria com você: Arthur, O Homem que Fez o Deus da Chuva Chover. Soa bem não é?
- É, mas...
- Talvez tenhamos que fotografar você debaixo de uma mangueira de jardim, mas vai ficar bom. Onde você está?
- Ah estou em Islington. Escuta, Murray...
- Isligton!
- É...
mgton!
- Bom, e sobre o acontecimento realmente mais surreal da semana, a verdadeira maluquice absoluta. Você sabe alguma coisa sobre essas pessoas voadoras?
- Não.
- Você deve saber. Essa é a viagem mais pancada de todos os tempos. É a verdadeira azeitona na empada. Os moradores não param de ligar para cá para dizer que tem um casal que passa as noites voando. Já colocamos uns fotógrafos trabalhando sem parar nos nossos laboratórios para conseguirem uma foto decente. Você deve ter ouvido.
- Não.
- Arthur, por onde você andou? Ah, é, no espaço, já peguei a sua declaração. Mas isso foi há meses. Escuta, isso foi noite após noite nesta semana, meu velho ralador de queijo, bem aí na sua área. O casal fica voando por aí, fazendo de tudo o que você puder imaginar. E não estou falando de espiar pelas paredes ou fingir que são pontes de viga. Você está realmente por fora?
- Sim.
- Arthur, foi quase inexprimivelmente delicioso conversar com você, chumbum, mas tenho que desligar. Eu vou mandar um cara com a câmera e a mangueira. Me passa o endereço, estou com papel e caneta na mão.
- Escuta, Murray, eu liguei para te pedir uma coisa.
- Estou cheio de coisas para fazer, Arthur.
- Eu só queria saber uma coisa sobre os golfinhos.
- Notícia velha. Ano passado. Esqueça os golfinhos. Eles se foram.
- É importante.
- Escuta, ninguém vai falar sobre isso. Vê se me entende, não dá para sustentar uma história quando a única noticia é a contínua ausência do assunto da história, sabe? Esta fora da nossa praia, de qualquer maneira. Tente o Sundays. Talvez eles façam uma matéria no gênero
"Que Fim Levou 'Que Fim Levaram os Golfinhos'" daqui a uns dois anos, lá para agosto. Mas... agora? Fazer o quê? "Os Golfinhos Continuam Sumidos"? "A Ausência dos Golfinhos Continua"? "Golfinhos - Mais Dias sem Eles"? A história morre, Arthur. Ela tomba no chão e sacode os seus pezinhos para cima e logo, logo vai para a grande espiga dourada no céu, meu velho morcego.
- Murray, eu não estou interessado se existe ou não uma história. Só quero saber como faço para entrar em contato com aquele cara na Califórnia, que diz saber alguma coisa sobre o assunto. Pensei que você pudesse me ajudar.
capítulo 28
- As pessoas estão começando a falar - disse Fenchurch naquela noite, depois de eles terem subido o violoncelo para dentro.
- Não só a falar - respondeu Arthur -, mas a publicar, em letras garrafais, logo abaixo dos prémios da loteria. É por isso que eu achei melhor providenciar isso aqui. Mostrou a ela os dois talões longos e estreitos das passagens áreas.
- Arthur! - exclamou, abraçando-o. - Isso quer dizer que você conseguiu falar com ele?
- Tive um dia - disse Arthur - de extrema exaustão telefónica. Falei com absolutamente todos os departamentos de absolutamente todos os jornais na Fleet Street até finalmente conseguir o telefone do sujeito.
- Você obviamente trabalhou demais, está encharcado de suor, pobrezinho.
- Não é suor - disse Arthur, exausto. - Um fotógrafo acabou de sair. Eu tentei argumentar, mas... deixa pra ia, fato é que sim.
- Você falou com ele.
- Falei com a mulher dele. Ela me disse que ele estava esquisitão demais para atender o telefone e pediu para eu mais tarde.
Arthur sentou-se pesadamente, percebendo então que esta va esquecendo de alguma coisa e foi até a geladeira buscar.
- Quer um drinque?
- Mataria alguém para conseguir um. Sempre sei que estou perdida quando o meu professor de violoncelo me olha de cima a baixo e diz: "Pois bem, minha cara, que tal um pouquinho de Tchaikovsky hoje..."
- Eu liguei novamente - disse Arthur - e ela me disse que ele estava a 3.2 anos-luz do telefone e que era para eu tornar a ligar mais tarde.
- Ah.
- Aí eu liguei de novo. Ela disse que a situação estava um pouquinho melhor. Ele já estava a apenas 2.6 anos-luz do telefone, mas ainda estava muito longe para gritar.
- Você não acha - perguntou Fenchurch, meio incerta - que podíamos falar com uma outra pessoa?
- Ainda não terminou - disse Arthur. - Eu falei com uma pessoa em uma revista científica que conhece o sujeito e ele me disse que John Watson não apenas acredita como tem provas concretas, frequentemente ditadas para ele por anjos com barbas douradas, asas verdes e usando sandálias ortopédicas do Dr. Scholl, que a teoria popular mais absurda do momento é
verdadeira. Para as pessoas que questionam a veracidade dessas visões, ele triunfantemente apresenta as sandálias em questão, e a coisa não passa disso.
- Não sabia que era tão ruim assim - Fenchurch resmungou baixinho. Ela estava brincando distraidamente com as passagens.
- Bom, liguei para a Sra. Watson novamente - prosseguiu Arthur. - Aliás, talvez te interesse saber que ela é conhecida como Jill, a Enigmática.
- Entendo.
- Ainda bem que você entendeu. Fiquei com medo de você não acreditar em nada disso; então, quando eu tornei a ligar, usei a secretária eletrônica para gravar a conversa. Foi até a secretária eletrônica, mexeu para lá e para cá, apertando todos os botões por um tempo, porque aquele aparelho que havia sido especialmente recomendado por uma revista especializada e era quase impossível usá-lo se enlouquecer.
- Aqui está - disse ele, finalmente, enxugando o suor da testa A voz era fina e quebradiça devido a sua viagem de ida e volta a um satélite geoestacionário, mas também era assustadoramente tranqüila.
- Talvez eu devesse explicar - disse a voz de Jill Watson, a Enimática - que o telefone na verdade fica em um quarto onde ele nunca entra. É no Asilo, sabe. Wonko, o São, não gosta de entrar no Asilo, então nunca entra. Acho melhor você ficar sabendo disso, para poupar o seu tempo e suas ligações. Se você quer encontrar com ele, isso pode ser facilmente providenciado. Você só precisa chegar aqui. Ele só encontra as pessoas fora do Asilo. Ouviram a voz de Arthur, completamente aturdido:
- Sinto muito, mas não estou entendendo. Onde fica esse Asilo?
- Onde fica o Asilo? - perguntou Arcane Jill Watson. - Você já leu as instruções nas caixinhas de palitos de dente?
Na gravação, a voz de Arthur teve de admitir que não.
- Faça isso. Talvez isso esclareça um pouquinho as coisas. Você vai ver que lá está
explicado onde é que fica o Asilo. Obrigada.
A linha ficou muda. Arthur desligou a secretária eletrônica.
- Bom, creio que a gente pode encarar isso como uni convite - disse ele, dando de ombros.
- Eu acabei conseguindo o endereço com o cara que trabalha na revista científica. Fenchurch olhou para Arthur novamente com uma expressão pensativa e depois para as passagens em suas mãos.
- Você acha que vale a pena? - perguntou ela.
- Bom - disse Arthur -, a única coisa com a qual todos concordam , além do fato de acharem ele completamente maluco, é que ele de fato sabe mais do qualquer outra pessoa sobre golfinhos.
capítulo 29
“Este é um aviso importante. Este é o vôo 121 para Los Angeles. Se os seus planos de viagem hoje não incluem Los Angeles, agora seria um bom momento para desembarcar.”
capítulo 30
Alugaram um carro em Los Angeles, em um desses lugares que alugam carros que as outras pessoas jogaram no lixo.
- É um pouquinho complicado conseguir que ele faça uma curva - disse o cara de óculos escuros, entregando a chave do carro para eles. - Às vezes, é mais fácil descer e pegar um carro que esteja indo na direção que vocês querem.
Pernoitaram em um hotel em Sunset Boulevard, seguindo o conselho de alguém que havia dito que eles iam gostar de se sentirem intrigados nele.
- Todo mundo lá ou é inglês, ou esquisito, ou os dois. E eles têm uma piscina onde você
pode assistir a roqueiros ingleses lendo Linguagem, verdade e lógica para os fotógrafos. E era verdade. Lá estava um deles e ele estava fazendo exatamente isso. O manobrista olhou com desdém para o carro deles, o que não era problema, já que eles faziam o mesmo.
Mais tarde, naquela noite, dirigiram por Hollywood Hill, passando por Mulholland Drive e pararam primeiro para contemplar o deslumbrante mar de luzes flutuantes que é Los Angeles, e, mais tarde, pararam novamente para contemplar o deslumbrante mar de luzes flutuantes que é
o vale de São Fernando. Concordaram que o deslumbramento cessou imediatamente no fundo dos seus olhos, não atingindo nenhuma outra parte dos seus corpos, e foram embora estranhamente insatisfeitos com o espetáculo. Em termos de mares espetaculares de luz até que aquilo era legal, mas a luz existe na iluminar alguma coisa e, tendo passado de carro pelas coisas que aquele espetacular mar de luz estava iluminando especificamente, eles não acharam nada demais.
Dormiram tarde, descansaram pouco e acordaram ao meio-dia, justo quando estava boçalmente quente.
Dirigiram pela auto-estrada até Santa Mônica, para verem o oceano Pacífico pela primeira vez, oceano esse que Wonko, o São, passava todos os seus dias, e uma boa parte das suas noites, contemplando.
- Alguém uma vez me contou - disse Fenchurch - que ouviu duas velhinhas na praia fazendo a mesma coisa que estamos fazendo, olhando para o oceano Pacífico pela primeira vez na vida. E, segundo contaram, após uma longa pausa, uma delas disse para a outra: "Sabe, não é
tão grande quanto eu esperava."
O humor deles foi melhorando enquanto passeavam pela praia em Malibu e viam todos aqueles milionários em seus barracos de praia chiques, cada um vigiando cuidadosamente o outro para verificar o quão ricos estavam ficando.
O humor melhorou ainda mais quando o sol começou a descer na parte ocidental do céu. Quando voltaram para o seu carro chinfrim e dirigiram em direção a um pôr-do-sol diante do qual ninguém com um mínimo de sensibilidade sonha em construir uma cidade como Los Angeles, estavam se sentindo do surpreendente e irracionalmente felizes e nem se incomodavam que o rádio daquele carro velho só pegasse duas estações, ao mesmo tempo ainda por cima. E daí? Ambas estavam tocando o bom e velho rock'n'roll.
- Tenho certeza de que ele vai poder nos ajudar - disse Fenchurch, convicta. - Tenho certeza. Como é mesmo o nome dele aquele pelo qual gosta de ser chamado?
- Wonko, o São.
- Tenho certeza de que ele vai poder nos ajudar.
Arthur se perguntava se Wonko ajudaria mesmo e esperava que sim, e torcia para que o que Fenchurch perdera pudesse ser encontrado aqui, nesta Terra, fosse lá o que esta Terra fosse. Ele esperava, assim como tinha esperado ininterrupta e fervorosamente desde o dia em que conversaram às margens do Serpentine, que não lhe obrigassem a lembrar de coisas que ele firme e deliberadamente enterrara nos recantos mais remotos da sua memória, onde esperava que as lembranças parassem de implicar com ele.
Pararam em Santa Bárbara em um restaurante de frutos do mar, instalado no que parecia ser um armazém reformado.
Fenchurch pediu um salmonete e disse que estava uma delícia.
Arthur pediu um filé de peixe-espada e disse que estava irritado. Puxou o braço de uma garçonete que ia passando e a repreendeu:
- Por que diabos esse peixe está tão gostoso? - perguntou ele, irado.
- Por favor, desculpe o meu amigo - disse Fenchurch para a garçonete assustada. - Acho que ele está tendo um grande dia.
capítulo 31
Se você pegasse dois David Bowies e colocasse um David Bowie em cima do outro, depois colocasse um David Bowie na extremidade de cada braço do David Bowie que estava por cima e daí cobrisse tudo com um roupão de praia sujo, você teria algo que não seria exatamente parecido com John Watson, mas aqueles que o conheciam na certa o julgariam assombrosamente familiar.
Ele era alto e desengonçado.
Quando ficava sentado na sua espreguiçadeira contemplando o Pacífico, não mais com nenhum tipo de desconfiança tresloucada, e sim com uma profunda e tranqüila tristeza, era um pouco difícil dizer exatamente onde terminava a espreguiçadeira e onde começava o homem, e você hesitaria em colocar a mão, digamos, no seu antebraço, temendo que toda a estrutura se fechasse com um estalo e arrancasse o seu dedão.
Mas o seu sorriso, quando se virava para você, era extraordinário. Parecia ser composto de todas as piores coisas que a vida pode fazer com uma pessoa, mas que, quando ele reagrupava rapidamente naquela ordem específica em seu rosto, fazia com que você sentisse que "ah, bom, então está tudo bem".
Quando ele falava, você ficava contente por ele usar o sorriso que o fazia sentir-se assim com bastante freqüência.
- Ah, sim - disse ele - , eles vêm me ver. Eles sentam aí mesmo. Aí onde vocês estão sentados.
Estava falando sobre os anjos com barbas douradas, asas verdes e sandálias ortopédicas do Dr. Scholl.
- Comem nachos, porque dizem que lá, de onde eles vêm, não tem nada parecido. São viciadões em cocaína e maravilhosos, no geral.
- São mesmo? - perguntou Arthur. - É mesmo? Então... quando é que isso acontece?
Quando eles vêm?
Arthur também voltou os seus olhos para o Pacífico. Havia pequenos ituituís correndo ao longo do litoral e, aparentemente, todos com o mesmo problema: precisavam encontrar comida na areia logo após a onda ter retornado para o mar, mas não suportavam ter de molhar os pezinhos. Para contornar o problema, corriam de um jeito esquisito, como se tivessem sido criados por alguém muito esperto na Suíça.
Fenchurch estava sentada no chão, desenhando umas figuras na areia, vagarosamente.
- Geralmente nos fins de semana - respondeu Wonko, o São -, em pequenas motonetas. São ótimas máquinas. - Ele sorriu.
- Entendi - comentou Arthur. - Entendi.
Uma tosse de Fenchurch chamou a sua atenção e ele olhou para ela. Havia rascunhado uma imagem na areia, representando os dois nas nuvens. Por um momento, ele achou que ela estava tentando deixá-lo excitado, depois percebeu que aquilo era uma reprimenda. "Quem somos nós", ela estava querendo dizer, "para dizer que ele é louco?" A casa dele era certamente peculiar, e, como essa foi a primeira coisa que Fenchurch e Arthur encontraram, ajudaria Se vocês soubessem como ela era.
Era assim:
Do avesso.
Do avesso mesmo, a ponto de terem de estacionar no carpete
Ao longo do que normalmente chamaríamos de parede externa, muito bem decorada em um elegante tom de rosa havia estantes, duas daquelas estranhas mesinhas de três pés, com tampo semicircular, que dão a impressão de que alguém acabou de derrubar a parede no meio delas, e quadros que foram claramente produzidos para relaxar. O que ficava realmente estranho era o teto.
Dobrava-se sobre si mesmo, como algo que Maurits C. Escher (caso ele fosse chegado a madrugadas de farra na cidade, coisa que esta narrativa não visa de modo algum sugerir, embora seja difícil, ao olhar para os seus quadros, especialmente aquele dos degraus, não pensar a respeito) poderia ter sonhado ao chegar de uma delas, pois os pequenos candelabros que deveriam estar pendurados do lado de dentro estavam do lado de fora, apontando para cima.
Confuso.
A placa na porta da frente dizia "Entre Fora" e assim, meio apreensivos, eles fizeram. Dentro, é claro, era onde ficava Fora. Alvenaria rústica, pintura bem-feita, calhas em ordem, um pequeno jardim, algumas árvores, alguns quartos dando para fora. E as paredes internas estendiam-se para baixo, dobrando-se curiosamente e alargavam-se no fim como se - em uma ilusão de ótica que teria feito Maurits C. Escher franzir a testa e se perguntar como havia sido criada - envolvesse o próprio oceano Pacífico.
- Oi - disse John Watson, Wonko, o São.
Ótimo, pensaram consigo mesmos, "Oi" é algo com o qual podemos lidar.
- Oi - responderam eles e, surpreendentemente, todos sorriram. Durante um bom tempo ele pareceu curiosamente relutante em falar sobre os golfinhos, aparentando estar estranhamente distraído e dizendo "Esqueci..." sempre que eles tocavam no assunto, após ter mostrado aos dois, não sem um certo orgulho, as excentricidades da sua casa.
- Isso me dá prazer - disse ele - de uma maneira bem peculiar e não causa nenhum mal que um bom oculista não possa corrigir.
Gostaram dele. Tinha um jeitão aberto, cativante e parecia ser capaz de debochar de si mesmo antes que outra pessoa o fizesse.
- A sua mulher - disse Arthur, olhando à sua volta - mencionou uns palitos de dente. Disse isso com um olhar acossado, como se estivesse achando que a qualquer momento ela sairia de trás de uma porta para mencioná-los novamente.
Wonko, o São, deu uma gargalhada. Era uma risada leve e franca que, aparentemente, ele já usara muitas vezes e que o deixava muito satisfeito.
- Ah, sim - disse ele -, isso tem a ver com o dia em que finalmente percebi que o mundo tinha enlouquecido completamente e decidi construir o Asilo e colocá-lo lá dentro, coitadinho, torcendo para que ficasse melhor logo.
Foi nessa hora que Arthur voltou a ficar um pouquinho nervoso.
- Aqui - explicou Wonko, o São - estamos fora do Asilo. - Apontou novamente para a alvenaria rústica, a pintura, as calhas. - Atravesse aquela porta - ele apontou para a primeira porta pela qual haviam entrado - e você entrará no Asilo. Tentei decorá-lo direitinho, para deixar os internos contentes, mas não é possível ir muito além. Nunca entro lá. Se por acaso me sinto tentado, o que raramente acontece atualmente, basta dar uma olhadinha na placa pendurada na porta que dou no pé imediatamente.
- Aquela ali? - perguntou Fenchurch apontando, um tanto confusa, para uma placa azul com algumas instruções escritas.
- Exatamente. Foram aquelas palavras que me transformaram no eremita que hoje em dia eu sou. Aconteceu de repente. Assim que eu li, soube o que devia fazer. Estava escrito na placa:
Segure o palito no centro. Umedeça a extremidade pontiaguda na boca. Insira entre os dentes, a extremidade afiada próxima à gengiva. Movimente suavemente de dentro para fora.
- Cheguei à conclusão - disse Wonko, o São - de que uma civilização que havia perdido a cabeça a ponto de sentir a necessidade de incluir instruções de uso detalhadas em uma caixinha de palitos de dente não era mais uma civilização onde eu pudesse viver e continuar são. Contemplou o Pacífico novamente, como se o desafiasse a se enfurecer e dar uma bronca nele, mas ele continuou calmo, brincando com os ituituís.
- E, caso tenha passado pela cabeça de vocês duvidar, como posso ver que seria possível, sou completamente são. E é por isso que me chamo de Wonko, o São, apenas para que as pessoas fiquem tranqüilas quanto a isso. Minha mãe me chamava de Wonko quando eu era criança, todo desajeitado, derrubando as coisas, e São é o que sou e como - acrescentou ele, com um daqueles sorrisos que fazem você pensar "ah, bom, então está tudo bem" - pretendo continuar. Vamos para a praia ver o que temos para conversar?
Foram até a praia e foi lá que ele recomeçou a falar sobre o anjos com barbas douradas, asas verdes e sandálias do Dr. Scholl.
- Sobre os golfinhos... - disse Fenchurch, delicadamente, esperançosamente.
- Posso mostrar as sandálias - disse Wonko, o São.
- O senhor por acaso sabe...
- Gostaria que eu lhes mostrasse - perguntou Wonko, o São - as sandálias? Ficaram comigo. Vou buscar. Foram fabricadas pela Dr. Scholl e os anjos dizem que elas servem direitinho para o terreno no qual têm de trabalhar. Dizem que trabalham em uma barraca perto da mensagem. Quando eu digo que não entendo o que querem dizer com isso, eles respondem
"não, você não sabe" e acham graça. Bom, vou buscar assim mesmo. Quando ele voltou para dentro, ou para fora, dependendo do seu ponto de vista, Arthur e Fenchurch entreolharam-se de uma maneira intrigada e levemente desesperada, depois deram de ombros e voltaram a rabiscar desenhos na areia.
- Como estão os seus pés hoje? - perguntou Arthur, baixinho.
- Bem. Até que na areia não é tão estranho. Nem na água. A água toca neles perfeitamente. Só continuo achando que este não é o nosso mundo. Ela deu de ombros.
- O que você acha que ele quis dizer com a mensagem? - perguntou ela.
- Não sei - respondeu Arthur, embora a lembrança de um sujeito chamado Prak, que ria da cara dele sem parar, insistisse em perturbá-lo.
Quando Wonko voltou, estava carregando algo que surpreendeu Arthur. Não eram as sandálias, elas eram sandálias absolutamente comuns, com o característico solado de ladeira.
-Achei que vocês gostariam de ver o que os anjos calçam. Só por curiosidade mesmo. Não estou tentando provar nada, a propósito. Sou um cientista e sei muito bem o que pode ser chamado de prova. Mas o motivo pelo qual desejo ser chamado pelo meu apelido de infância é
exatamente esse: me lembrar de que um cientista deve, acima de tudo, ser como uma criança. Se ele vê algo, deve dizer o que está vendo, independentemente daquilo ser o que ele imaginava ver ou não. Ver primeiro, testar depois. Mas sempre ver primeiro. Senão, você só vai ver o que você espera ver. A maioria dos cientistas se esquece disso. Mais tarde, vou mostrar uma coisa a vocês para demonstrar o que estou falando. Então, o outro motivo pelo qual gosto de ser chamado de Wonko, o São, é para que as pessoas pensem que sou bobo. Isso me permite dizer o que eu vejo quando eu vejo. Não dá para ser um cientista se você for ficar se preocupando se as pessoas vão ou não te achar bobo. Enfim, imaginei que vocês fossem gostar de ver isso também.
Era essa a coisa que surpreendeu Arthur quando ele a viu nas mãos de Wonko, pois era um aquário com um incrível vidro cinza-prateado, aparentemente idêntico ao que tinha em seu quarto.
Durante uns trinta segundos, Arthur ficou tentando, sem êxito, perguntar "Onde foi que você arrumou isso?" repentinamente e com a voz ofegante.
Finalmente chegara a hora, mas ele a perdeu por um milésimo de segundo.
- Onde foi que você arrumou isso? - perguntou Fenchurch repentinamente e com a voz ofegante.
Arthur olhou para Fenchurch e, repentinamente e com a voz ofegante, perguntou:
- Como assim? Você já viu um desses antes?
- Já - respondeu ela -, eu tenho um desses. Ou melhor, tinha. Russell roubou, para guardar bolas de golfe. Não sei de onde ele veio, só sei que fiquei pau da vida com Russell. Pror que, você tem um também?
-Tenho, foi...
Perceberam então que Wonko, o São, estava olhando repentinamente de um para o outro, acompanhando o diálogo e tentando encaixar uma voz ofegante no meio.
- Vocês também têm um? - perguntou aos dois.
- Sim. - Responderam juntos.
Ele olhou longa e calmamente para cada um e depois levantou o aquário, para que a luz do sol californiano o atingisse em cheio.
O aquário parecia praticamente cantar sob o sol, repicar com a intensidade da luz que ele emanava e refletir uma miríade de arco-íris sombriamente brilhantes ao redor da areia e sobre eles. Ele o girou e girou novamente. Puderam ver claramente as palavras delicadamente gravadas sobre o vidro: "Até Mais, e Obrigado pelos Peixes".
- Vocês sabem o que é isso? - perguntou Wonko, baixinho.
Ambos balançaram a cabeça devagar, em um gesto negativo, admirados, praticamente hipnotizados pelo brilho das sombras cintilantes no vidro cinza.
- Isso é um presente de despedida dos golfinhos - respondeu Wonko com uma voz grave e baixa -, os golfinhos que amei e estudei, e nadei ao lado deles, e alimentei com peixes, e até
mesmo tentei aprender a sua língua, uma tarefa que eles pareciam tornar inacreditavelmente impossível, levando-se em consideração que agora sei que eles eram absolutamente capazes de se comunicar na nossa língua, se quisessem.
Ele balançou a cabeça com um sorriso lento e depois olhou novamente para Fenchurch e então para Arthur.
- Você já... o que você fez com o seu? Desculpe a pergunta - falou para Arthur.
- Bom, eu coloquei um peixe nele - respondeu Arthur, um pouco envergonhado. - Por acaso eu tinha esse peixe, e não sabia direito o que fazer com ele, e aí apareceu o aquário...
-Arthur foi diminuindo a voz, aos poucos.
- Não fez mais nada com ele? Não - ele próprio respondeu -, Se tivesse feito, saberia. Wonko balançou a cabeça novamente. - Minha mulher guardava gérmen de trigo no nosso continuou ele, com uma voz mais vivida -, até que, na noite passada...
- O que aconteceu noite passada? - perguntou Arthur lentamente, sussurrando.
- Acabou o nosso gérmen de trigo - disse Wonko, finalmente. - Minha mulher acrescentou ele - saiu para comprar mais. - Ele pareceu perdido em seus próprios pensamentos por alguns segundos.
- O que aconteceu então? - quis saber Fenchurch no mesmo tom soprado.
- Eu o lavei - disse Wonko. - Lavei com muito, mas muito muito cuidado, removendo até
o último grãozinho de gérmen de trigo, depois enxuguei com calma, com um pano desses que não soltam fiapos, bem devagar, com bastante cuidado, girando aos poucos. E aí eu o encostei no ouvido. Vocês já... já encostaram o de vocês no ouvido?
Eles balançaram a cabeça, em um gesto negativo lento e silencioso.
- Talvez - disse ele -, vocês devessem.
capítulo 32
O profundo clamor do oceano.
As ondas dissolvendo-se na arrebentação em litorais mais longínquos do que o pensamento pode imaginar.
Os silenciosos trovões das profundezas.
Em meio a isso, vozes falando, vozes que não são vozes, trinados, morfemas, as canções semi-articuladas do pensamento.
Saudações, ondas de saudações, deslizando novamente até o inarticulado, palavras na arrebentação.
Uma onda de mágoa chocando-se nos litorais da Terra.
Ondas de alegria em - onde? Um mundo indescritivelmente descoberto, indescritivelmente alcançado, indescritivelmente molhado, uma canção de água.
Súbito, uma fuga de vozes, explicações clamorosas sobre um desastre irreversível, um mundo a ser destruído, uma onda de impotência, um espasmo de desespero, uma queda fatal e novamente palavras na arrebentação.
E então um fio de esperança, a descoberta da sombra de uma Terra nas implicações do tempo redobrado, dimensões submersas, a tração dos paralelos, profunda tração, a torção da yontade, seu arremesso e a rachadura, a passagem. Uma nova Terra puxada para o mesmo lugar; os golfinhos se foram.
Então, uma única voz espantosamente clara.
- Este aquário é um oferecimento da Campanha para Salvar os Humanos. Adeus para vocês.
Depois o som de corpos grandes, pesados e perfeitamente cinzentos, girando para uma profundeza desconhecida e insondável, rindo baixinho.
capítulo 33
Naquela noite ficaram Fora do Asilo e assistiram à tevê que vinha de dentro.
- Era isso o que eu queria que vocês vissem - disse Wonko, o São, quando repetiram as notícias na tevê. - Um antigo colega meu. Ele está no país de vocês conduzindo uma investigação. Vejam isso.
Era uma coletiva de imprensa.
"Receio não poder mencionar o nome Deus da Chuva no momento. Acreditamos que seja um exemplo de um Fenômeno Meteorológico Paracausal Espontâneo.
"O senhor pode nos explicar o que isso significa?
"Ainda não sei ao certo. Mas sejamos francos: quando encontramos alguma coisa que não compreendemos, gostamos de chamá-la usando um nome que vocês também não possam compreender e, de preferência, sequer consigam pronunciar. Digo, se deixássemos vocês saírem por aí chamando o sujeito de Deus da Chuva, ia parecer que vocês sabem de alguma coisa que nós não sabemos, o que seria totalmente inadmissível.
“Então, não, primeiro temos que encontrar um nome que deixe bem claro que isso é coisa nossa e não de vocês. Depois damos um jeito de provar que ele não é nada do que vocês disseram e sim aquilo que dissermos que é.
"Para terminar, mesmo que vocês estejam corretos ainda assim estarão errados, porque diremos que ele é... ah... 'Sobrenormal' - não paranormal ou sobrenatural, porque vocês acham que já sabem o significado destas palavras, não, será um 'Indutor de Precipitação Incremental Sobrenormal'. É bem provável que alguém consiga encaixar um quasi aí no meio, por precaução. Deus da Chuva! Bolas, nunca ouvi uma coisa tão absurda em toda a minha vida. Óbvio, contudo, que vocês não vão me pegar saindo de férias com o sujeito. Obrigado, é tudo que tenho a dizer por enquanto, gostaria apenas de mandar um 'oi' para o Wonko, se ele estiver assistindo."
capítulo 34
No avião de volta para Londres a mulher que estava sentada ao lado deles olhava os dois de forma bem estranha. Eles conversavam baixinho entre si.
- Eu ainda tenho que descobrir isso - disse Fenchurch - e tenho certeza absoluta de que você sabe de alguma coisa que não quer me contar.
Arthur suspirou e apanhou um pedaço de papel.
- Você tem um lápis aí? - perguntou ele. Ela revirou a bolsa e encontrou um.
- O que você está fazendo, querido? - perguntou ela, depois de observar Arthur durante vinte minutos, franzindo a testa, mordiscando o lápis, rabiscando algumas coisas no papel, riscando outras, rabiscando novamente e resmungando irritado.
- Estou tentando me lembrar de um endereço que alguém me deu uma vez.
- A sua vida seria infinitamente mais simples - disse ela -se você comprasse um caderninho de endereços.
Finalmente ele passou o papel para ela.
- Fique com isso - pediu ele.
Ela olhou para o papel. Em meio a todas as anotações e os rabiscos, Arthur escrevera as palavras "Montanhas de Quentulus Quazgar. Sevorbeupstry. Planeta Preliumtarn. Sol Zarss. Setor Galáctico QQ7, Ativo J Gama".
- E o que é que tem lá?
- Aparentemente - respondeu Arthur - é a Mensagem Final de Deus para a Sua Criação.
- Ah, agora sim a coisa está ficando interessante - disse Fenchurch. - E como é que a gente chega lá?
- Você tem certeza de que...?
- Quero, sim - respondeu Fenchurch, decidida. - Eu preciso saber. Arthur olhou pela janelinha do avião para o céu aberto lá fora.
- Com licença - disse, de repente, a mulher que estava olhando os dois com uma cara esquisita. - Espero que não me achem grosseira. É que fico tão entediada nesses vôos muito longos e é sempre bom conversar com alguém. O meu nome é Enid Kapelsen, eu sou de Boston. E vocês? Voam muito?
capítulo 35
Foram para a casa de Arthur no West Country, enfiaram algumas toalhas e algumas coisinhas em uma mochila e depois ficaram sentados fazendo o que todo mochileiro galáctico acaba fazendo na maior parte do seu tempo. Ficaram esperando um disco voador passar.
- Um amigo meu fez isso durante quinze anos - disse Arthur em uma noite, quando estavam sentados observando o céu, desanimados.
- Quem?
- O nome dele era Ford Prefect.
Arthur se pegou fazendo algo que jamais imaginara fazer novamente. Quis saber por onde andava Ford Prefect.
Por uma extraordinária coincidência, no dia seguinte saíram duas matérias no jornal, uma sobre incidentes espantosos com um disco voador e a outra sobre uma série de brigas indecorosas em bares.
Ford Prefect apareceu um dia depois desse, com ressaca, e queixando-se de que Arthur nunca atendia o telefone.
Ele aparentava estar realmente muito mal, não só como se tivesse sido puxado através de uma cerca viva ao contrário, mas como se a cerca viva em si estivesse ao mesmo tempo sendo puxada ao contrário através de uma ceifadeira e debulhadora. Cambaleou pela sala de Arthur, rejeitando todas as ofertas de ajuda, o que foi um erro, porque o esforço fez com que ele perdesse o equilíbrio de vez, e Arthur teve, no fim das contas, que arrastá-lo até o sofá.
- Obrigado - disse Ford -, muito obrigado. Você tem... - disse ele, e dormiu por três horas seguidas.
- ...idéia - continuou subitamente, quando voltou a si - de como é difícil acessar o sistema telefônico britânico estando nas Plêiades? Estou vendo que não, então vou te contar - disse ele
-, assim que você me trouxer uma xícara bem grande do café bem forte que você vai preparar agora.
Seguiu Arthur até a cozinha, mal se agüentando em pé.
- As retardadas das telefonistas ficam te perguntando de onde você está falando, você vai e diz que é de Letchworth e elas dizem que não é possível, estando naquele circuito. O que você
está fazendo?
- Café para você.
- Ah, tá. - Ford pareceu curiosamente decepcionado. Olhou à sua volta, com muito desânimo. - O que é isso? -perguntou ele.
- Flocos de arroz.
- E isso?
- Páprica.
- Sei - disse Ford, solene, devolvendo ambos à mesa, um sobre o outro. Constatou que a coisa não parecia muito equilibrada, então inverteu a posição e achou melhor assim.
- Ainda estou sofrendo com o jet lag espacial - explicou. - O que eu estava dizendo mesmo?
- Que não estava ligando de Letchworth.
- Pois é, não estava. Eu expliquei para a mulher: "Dane-se Letchworth, se você acha que isso é uma questão. Na verdade, estou ligando de uma pequena nave do departamento de vendas da Companhia Cibernética de Sirius, atualmente no trecho subvelocidade-da-luz de uma viagem entre as estrelas conhecidas pelo seu mundo, mas não necessariamente por você, cara senhora." Eu disse "cara senhora" - explicou Ford prefect -, porque não queria que ela ficasse ofendida com a minha insinuação de que ela era uma cretina ignorante...
- Muito diplomático - comentou Arthur Dent.
- Exatamente - concordou Ford -, diplomático. Ele franziu a testa.
- Essas orações subordinadas não colaboram muito com o meu jet lag espacial. Você vai ter que me ajudar de novo com isso - prosseguiu ele - e me repetir o que era mesmo que eu estava falando?
- "Entre as estrelas" - repetiu Arthur - "conhecidas pelo seu mundo, mas não necessariamente por você, cara senhora..."
- Epsílon de Plêiades e Zeta de Plêiades - concluiu Ford, triunfante. - Uau, essa conversa pirada é bem divertida.
- Toma um café.
- Não, obrigado. "E o motivo", eu disse, "de estar incomodando a senhora em vez de fazer uma ligação direta como eu poderia, pois temos aparelhos de telecomunicação altamente sofisticados aqui nas Plêiades, é que o pão-duro do filho de uma besta espacial que está
pilotando essa nave filha de uma besta espacial faz questão que eu ligue a cobrar. Dá pra acreditar numa coisa dessas?"
- E ela acreditou?
- Sei lá. Desligou na minha cara quando cheguei nesse ponto. É isso! Então o que você
acha que fiz depois? - perguntou, exaltado.
- Não faço a menor idéia, Ford.
- Que pena - disse Ford -, estava esperando que você pudesse me lembrar. Eu realmente detesto esses caras, sabe. Eles são os seres mais desprezíveis do cosmos, zunindo de um lado para o outro no infinito celestial com as suas maquininhas ridículas que nunca funcionam direito, ou então, quando funcionam, executam funções que nenhum homem, em sã
consciência, gostaria que executassem e - acrescentou ele feroz — ainda fazem bipe para você
no final!
Aquilo era a mais pura verdade e uma visão altamente respeitada, amplamente compartilhada por todas as pessoas que pensavam direito, as quais podem ser reconhecidas como pessoas que pensam direito pelo mero fato de compartilharem esse ponto de vista. O Guia do Mochileiro das Galáxias, em um momento de lucidez ponderada, o que é
praticamente único em suas atuais cinco milhões, novecentos e setenta e cinco mil, quinhentas e nove páginas, diz o seguinte sobre os produtos da Companhia Cibernética de Sirius: "é muito fácil não enxergar a sua inutilidade essencial devido à enorme realização que você sente ao conseguir finalmente fazer com que eles funcionem".
"Em outras palavras - e essa é a sólida base sobre a qual o sucesso da Companhia em toda a Galáxia está apoiado -, os seus erros de projeto fundamentais são completamente ocultados pelos seus erros de projeto superficiais."
- E esse cara - esbravejava Ford - ainda estava se esforçando para vender mais dessas coisas! Era sua missão de cinco anos para explorar novos mundos, para pesquisar novas vidas e vender Sistemas Substitutos de Música Avançados para os seus restaurantes, elevadores e barzinhos! Ou então, se eles por acaso não tivessem restaurantes, elevadores e barzinhos ainda, para acelerar o crescimento da sua civilização até que eles tivessem essa droga toda! Onde está
o maldito café que eu pedi?
- Joguei fora.
- Faça mais. Lembrei agora o que eu fiz depois. Salvei a civilização tal qual a conhecemos. Sabia que era algo assim.
Voltou trôpego para a sala, onde continuou falando sozinho, esbarrando na mobília e fazendo uns sons de bipe-bipe.
Alguns minutos depois, usando uma expressão facial bastante serena, Arthur foi atrás dele. Ford estava assustado.
- Onde você estava? - perguntou ele.
- Fazendo café para você - respondeu Arthur, ainda usando a mesma expressão serena. Há
muito constatara que a única maneira de ficar junto de Ford sem problemas era manter um amplo estoque de expressões bastante serenas e usá-las o tempo todo ao lado dele.
- Você perdeu a melhor parte! - gritou Ford. - Você perdeu justo a parte em que eu ataquei o cara! Agora - concluiu ele -, eu vou ser obrigado a atacar novamente!
Ele se lançou temerariamente sobre uma cadeira e a quebrou.
- Da primeira vez, foi mais legal - disse ele, mal-humorado, fazendo um gesto vago na direção de outra cadeira quebrada, que ele tinha apoiado na mesa de jantar.
- Estou vendo - disse Arthur, lançando um olhar sereno para os destroços escorados - e, ah, para que servem todos esses cubos de gelo?
- O quê? - berrou Ford. - Como assim? Você perdeu essa parte também? Esse é o equipamento de animação suspensa! Coloquei o cara em animação suspensa. Eu tinha que fazer isso, não tinha?
- Imagino que sim - disse Arthur, com a sua voz serena.
- Não mexa nisso!!! - gritou Ford.
Arthur, que estava prestes a recolocar o telefone - que por alguma razão misteriosa estava sobre a mesa - no gancho, estacou, serenamente.
- O.k. - disse Ford, se acalmando -, dá uma ouvida.
Arthur colocou o telefone no ouvido.
- E a hora certa - disse.
- Bipe, bipe; bipe - repetiu Ford - exatamente o que está sendo ouvido em todos os compartimentos da nave do tal sujeito de que te falei, enquanto ele dorme, lá no gelo, circulando devagarzinho em volta de uma lua pouco conhecida de Sesefras Magna. A Hora Certa de Londres!
- Entendo - disse Arthur novamente e decidiu que era a hora de fazer a grande pergunta.
- Por quê? - perguntou ele, serenamente.
- Se eu tiver sorte - disse Ford -, a conta telefônica vai levar aqueles desgraçados à
falência.
Atirou-se no sofá, suando em bicas.
- De qualquer jeito - disse ele -, foi uma chegada dramática, não foi?
capítulo 36
O disco voador no qual Ford Prefect viajou clandestinamente causou a maior comoção em todo o mundo. Finalmente, não havia mais nenhuma dúvida ou possibilidade de erro, nenhuma alucinação e nem misteriosos agentes da CIA flutuando em reservatórios. Daquela vez, era real, era definitivo. Era total e definitivamente definitivo. O disco voador desceu com um magnífico desdém por qualquer coisa que pudesse estar abaixo dele e esmagou uma extensa área de algumas das propriedades mais caras do mundo, incluindo uma boa parte da loja Harrods.
A coisa era enorme, com quase dois quilômetros de extensão, prateada, esburacada, chamuscada e desfigurada com as cicatrizes de inúmeras batalhas espaciais violentas, lutadas com selvageria à luz de sóis desconhecidos para o homem.
Uma escotilha se abriu demolindo uma seção de gastronomia da Harrods, demoliu a Harvey Nichols e, com um rangido final de arquitetura torturada, derrubou o Sheraton Park Tower.
Após um longo e angustiante momento no qual se ouviram estrondos e resmungos de maquinaria destruída, de lá saiu, descendo pela rampa, um enorme robô prateado, com trinta metros de altura.
Ele fez um gesto, levantando a mão.
- Eu venho em paz - anunciou ele, acrescentando após um longo momento de esforço adicional - levem-me ao seu lagarto.
Ford Prefect, é claro, tinha uma explicação para aquilo tudo, enquanto assistia com Arthur às repetidas reportagens frenéticas na televisão que, por sinal, não tinham nada a dizer, além de anunciar que a coisa tinha causado um prejuízo tal, avaliado em tantos bilhões de libras e que tinha matado aquele outro número completamente diferente de pessoas, e depois repetiam tudo novamente, porque o robô, desde então, estava prostrado, balançando levemente o corpo e emitindo pequenas mensagens de erro incompreensíveis.
- Ele vem de uma democracia muito antiga, sabe...
- Você está querendo dizer que ele vem de um mundo de lagartos?
- Não - respondeu Ford que, àquelas alturas, já estava um pouco mais racional e coerente do que antes, tendo finalmente sido forçado a tomar uma xícara de café -, nada tão trivial. Nada assim tipo isso tão compreensível. No mundo dele, as pessoas são pessoas. Os líderes é que são lagartos. As pessoas odeiam os lagartos e os lagartos governam as pessoas.
- Ué - comentou Arthur -, achei que você tinha tido que era uma democracia.
- Eu disse - afirmou Ford. - E é.
- Então - quis saber Arthur, torcendo para não soar ridiculamente estúpido -, por que as pessoas não se livram dos lagartos?
- Isso sinceramente nunca passou pela cabeça delas - disse Ford. - Como elas têm direito de voto, acabam supondo que o governo que elegeram é mais ou menos parecido com o governo que querem.
- Quer dizer que eles realmente votam nos lagartos?
- Ah, sim - disse Ford, dando de ombros -, é claro.
- Mas - perguntou Arthur, sem medo de ser feliz - por quê?
- Porque, se deixam de votar em um lagarto - explicou Ford -, o lagarto errado pode assumir o poder. Você tem gim?
- O quê?
- Eu perguntei - disse Ford, com um tom crescente de impaciência entranhando-se em sua voz - se você tem gim.
- Vou ver. Conte-me sobre os lagartos.
Ford deu de ombros novamente.
- Algumas pessoas dizem que os lagartos são a melhor coisa que já lhes aconteceu - explicou ele. - Elas estão completamente enganadas, é claro, completa e absolutamente enganadas, mas é preciso que alguém tenha a coragem de dizer isso.
- Mas isso é terrível - disse Arthur.
- Olha, meu camarada - disse Ford -, se eu ganhasse um dólar altairiano cada vez que eu ouvisse um fragmento do Universo olhando para o outro fragmento do Universo e dizendo
"Isso é terrível", eu não estaria sentado aqui como um limão procurando por um gim. Mas não ganho e aqui estou. Enfim, por que você está assim todo sereno, com essa cara de babaca? Está
apaixonado?
Arthur disse serenamente que estava, sim.
- Com alguém que sabe onde está a garrafa de gim? E eu vou conhecê-la?
Conheceu, porque Fenchurch entrou naquele exato momento com a pilha de jornais que foi comprar na cidade. Hesitou diante dos destroços na mesa e dos destroços de Betelgeuse alojados no sofá.
- Onde está o gim? - Ford perguntou a Fenchurch. E, virando-se para Arthur: - O que aconteceu com a Trillian, por sinal?
- Hum, essa é Fenchurch - disse Arthur, completamente sem graça. - Não rolou nada com a Trillian, você deve ter visto ela por último.
- Ah, é - disse Ford -, ela se mandou com Zaphod para algum lugar. Tiveram filhos ou algo no gênero. Ou ao menos - acrescentou -, eu acho que eram filhos. Zaphod deu uma boa sossegada, sabe.
- Sério? - perguntou Arthur, ajudando Fenchurch com as compras.
- Sério - disse Ford. - Ao menos uma de suas cabeças agora está mais sã do que um avestruz que tenha tomado ácido.
- Arthur, quem é esse? - perguntou Fenchurch.
- Ford Prefect - respondeu ele. - Acho que já te falei dele por alto. capítulo 37
Durante três dias e três noites o gigantesco robô prateado prostrou-se profundamente perplexo sobre as ruínas de Knightsbridge, balançando-se levemente e tentando compreender um monte de coisas.
Delegações do governo foram examiná-lo e jornalistas alarmados surgiram aos borbotões, fazendo perguntas uns aos outros no ar, perguntando o que achavam daquilo. Alguns aviões militares tentaram um ataque patético, mas os lagartos não deram o ar de sua graça. O robô
vasculhava o horizonte, vagarosamente.
À noite, ele parecia ainda mais espetacular, iluminado pelas equipes de tevê que o filmavam continuamente enquanto ele continuamente não fazia nada. Ele pensou e pensou e finalmente chegou a uma conclusão.
Teria de enviar seus robôs de manutenção.
Devia ter pensado naquilo antes, mas estava preocupado com outras coisas. Os minúsculos robôs voadores surgiram chiando pela escotilha em uma tarde, em uma terrível nuvem de metal. Rondaram pelas áreas vizinhas, atacando freneticamente algumas coisas e defendendo outras.
Um deles finalmente encontrou uma loja de animais onde havia alguns lagartos, mas, ao defender a loja de animais em nome da democracia, agiu tão brutalmente que não sobrou pedra sobre pedra no lugar.
O momento crítico se deu quando uma divisão avançada de chiadores voadores descobriu o zoológico em Regent's Parle e mais especificamente, a jaula dos répteis. Com um pouco mais de cuidado, devido aos erros cometidos anteriormente no pet shop, as furadeiras e serras tico-tico voadoras conseguiram libertar as maiores e mais rechonchudas iguanas, levando-as até o robô prateado gigante, que tentou iniciar negociações de alto nível com elas.
Finalmente o robô anunciou ao mundo que, apesar de uma troca rica, franca e generosa de pontos de vista, as negociações de alto nível haviam falhado, os lagartos foram aposentados e ele, o robô, ia sair de férias em algum lugar. Por algum motivo acabou escolhendo Bournemouth.
Ford Prefect, vendo isso na tevê, balançou a cabeça, deu risadas e tomou outra cerveja. Tomaram providências imediatas para a sua partida.
Os kits de ferramenta voadores guincharam e serraram e furaram e fritaram coisas com luz durante um dia e uma noite e, na manhã seguinte, para a surpresa geral, um gigantesco suporte móvel começou a se dirigir para o oeste, em diversas pistas simultaneamente, com o robô sobre ele, alojado no suporte.
Dirigiu-se para o oeste, em um estranho carnaval, cercado por seus servos, por helicópteros e vans da imprensa, rasgando seu caminho até Bournemouth, onde o robô se desvencilhou lentamente das amarras do sistema de transporte e foi se deitar durante dez dias na praia.
Essa foi, de longe, a coisa mais incrível jamais acontecida em Bournemouth. Multidões reuniram-se diariamente ao longo de um perímetro que estava sendo vigiado e protegido como área de recreação do robô, tentando ver o que ele estava fazendo. Ele não estava fazendo nada. Estava deitado na areia. Estava deitado na areia de bruços, um pouco desajeitado.
Foi o jornalista de um periódico local que, tarde da noite, conseguiu fazer o que ninguém no mundo havia conseguido até então, que era bater um papo breve e inteligível com um dos robôs que estava vigiando a área.
Foi um feito extraordinário.
- Acho que tem uma boa matéria aí - confidenciou o jornalista, passando um cigarro pela cerca de trama de aço -, mas eu preciso de uma perspectiva local. Fiz uma lista de perguntas prosseguiu ele, vasculhando o bolso de dentro do casaco -, e você talvez pudesse fazer com que ele, aquilo, sei lá como vocês o chamam, talvez ele pudesse dar algumas respostas rápidas. A pequena chave de catraca voadora disse que ia ver o que podia fazer a respeito e saiu, chiando.
Não houve nenhuma resposta.
No entanto, curiosamente, as perguntas no pedaço de papel batiam mais ou menos exatamente com as perguntas que estavam passando pelos maciços circuitos de padrão industrial da mente do robô. As perguntas eram:
"O que você acha de ser um robô?"
"Como você se sente, vindo do espaço sideral?" e
"Está gostando de Bournemouth?"
Na manhã seguinte, bem cedo, começaram a arrumar as coisas, e, dentro de alguns dias, estava claro que o robô se preparava para ir embora de vez.
- O que eu quero saber é: você consegue nos colocar dentro da nave? - perguntou Fenchurch para Ford.
Ford olhou impaciente para o seu relógio.
- Tenho assuntos sérios e inacabados que preciso resolver - exclamou. capítulo 38
Multidões se aglomeraram o mais perto possível da gigante nave prateada, o que não era nada perto. No perímetro da nave havia uma cerca patrulhada pelos minúsculos robôs de manutenção. Postado em torno desse perímetro estava o exército, que não conseguira penetrar o perímetro de jeito nenhum, mas iam garantir que ninguém penetrasse o perímetro deles. Por sua vez, estavam cercados por um cordão de isolamento da polícia, embora saber se estavam ali para proteger o público do exército ou o exército do público, ou para garantir a imunidade diplomática da nave gigante e evitar que recebesse multas de estacionamento irregular, isso era assunto completamente indefinido e sujeito a infindáveis discussões. A cerca mais próxima da nave estava agora sendo desfeita. O exército movimentava-se, constrangido, sem saber como reagir diante do fato que a razão de estarem ali dava sinais de que iria levantar vôo e desaparecer.
O robô gigante se arrastou para dentro por volta do meio-dia; já eram cinco horas da tarde e, até então, não houve nenhum sinal do robô. Diversos barulhos foram ouvidos - mais estrondos e resmungos vindos do interior da nave, a sinfonia de um milhão de defeitos pavorosos; mas a sensação de espera tensa na multidão nascia do fato de estarem tensamente esperando uma decepção. Aquela coisa maravilhosa e extraordinária surgira em suas vidas e, de repente, estava prestes a se mandar, deixando-os para trás.
Duas pessoas sentiam isso de forma particularmente intensa. Arthur e Fenchurch vasculhavam a multidão, ansiosos, sem conseguir avistar Ford Prefect ou qualquer sinal de que ele fosse aparecer por lá.
- Ele é confiável? - perguntou Fenchurch, com a voz desanimada.
- Confiável? - repetiu Arthur. Deu uma risada cínica. - O oceano é raso? O sol é gelado? disse ele. As últimas partes do suporte do robô estavam sendo carregadas para dentro da nave e os últimos componentes da cerca mais próxima estavam amontoados ao pé da rampa, esperando para subir.
Os soldados em volta da rampa se postaram com convicção, ordens foram berradas de um lado para o outro, rápidas reuniões foram realizadas, mas, claro, não havia nada a ser feito. Sem esperanças e sem um plano definido, Arthur e Fenchurch abriram caminho em meio à
multidão, mas, como toda a multidão também estava tentando abrir caminho pela multidão, não chegaram a lugar nenhum.
Alguns minutos depois não havia mais nada fora da nave, todos os componentes da cerca estavam a bordo. Alguns serrotes voadores e um nível de bolha aparentemente foram dar uma última olhada em volta, depois voltaram chiando para dentro da imensa escotilha. Alguns segundos se passaram.
Os sons de desordem mecânica vindos do interior da nave mudaram de intensidade e, lentamente, pesadamente, a imensa rampa de aço começou a ser recolhida da seção de gastronomia da Harrods. O som que acompanhou esse preparativo de decolagem foi o som de milhares de pessoas tensas inquietas e sendo completamente ignoradas.
- Parem tudo! - bradou um megafone de dentro de um táxi que parou cantando pneus bem próximo à multidão confusa.
- Acabamos de conseguir - bradou o megafone - um importante desfalque científico!
De...coberta. Isso, uma descoberta - ele se corrigiu. A porta do táxi se abriu e um homenzinho vindo de algum lugar nos arredores de Betelgeuse pulou para fora, usando um jaleco branco. Parem tudo! - gritou ele novamente e, desta vez, sacudiu um bastão curto, grosso e preto, com luzes na ponta. As luzes piscaram brevemente, a rampa parou de subir e, obedecendo aos sinais do Polegar (sinais estes que metade dos engenheiros eletrônicos da Galáxia está constantemente tentando descobrir novas maneiras para interceptar, enquanto a outra metade está
constantemente buscando novas maneiras de interceptar os sinais de interceptação), começou a descer novamente, bem devagar.
Ford Prefect apanhou o seu megafone de dentro do táxi e começou a gritar para a multidão.
- Abram caminho - berrava ele -, abram caminho, por favor, essa é uma descoberta científica importantíssima. Você aí e você também apanhem o equipamento dentro do táxi. Absolutamente por acaso, ele apontou para Arthur e para Fenchurch, que lutaram para se desvencilhar da multidão e alcançaram o táxi o mais rápido possível.
- Muito bem, quero que vocês abram caminho, por favor, para alguns equipamentos científicos fundamentais - gritou Ford. - Por favor, fiquem calmos. Está tudo sob controle, não há nada para se ver aqui. Trata-se apenas de uma descoberta científica importante. Fiquem calmos. Equipamentos científicos importantes. Vamos abrindo caminho aí. Ávida por emoções novas, encantada com aquela suspensão temporária e repentina da frustração, a multidão entusiasticamente recuou e começou a abrir caminho. Arthur ficou um pouco surpreso ao ler o que estava impresso nas caixas dos equipamentos científicos importantíssimos que estavam no banco de trás do táxi.
- Coloca o seu casaco por cima das caixas - sussurrou para Fenchurch, enquanto as levantava e passava para ela. Rapidamente, tirou o grande carrinho de supermercado que também estava espremido no banco de trás. Ele bateu no chão fazendo barulho e, juntos, Arthur e Fenchurch colocaram as caixas lá dentro.
- Abram caminho, por favor - gritou Ford novamente. - Está tudo sob controle científico.
- Ele disse que você ia pagar a corrida - disse o motorista de táxi para Arthur, que desencavou algumas notas e entregou ao homem. Pôde ouvir o som distante de sirenes da polícia.
- Saiam da frente - gritou Ford - e ninguém vai se machucar aqui. A multidão se movimentou, fechando-se novamente atrás deles, enquanto Arthur e Fenchurch empurravam e arrastavam o carrinho de supermercado freneticamente em meio aos entulhos até a rampa.
- Está tudo bem - Ford continuou a gritar. - Não há nada para se ver aqui, já acabou. Na verdade, nada disso está acontecendo.
- Abram o caminho, por favor - bradou um megafone da polícia, por trás da multidão. Houve um desfalque, abram caminho.
- Descoberta - berrou Ford, contra-atacando. - Uma descoberta científica!
- Aqui é a polícia! Abram caminho!
- Equipamento científico! Abram caminho!
- Polícia! Precisamos passar!
- Walkmans de graça! - gritou Ford, puxando meia dúzia de aparelhos portáteis dos bolsos e jogando-os para a multidão. Os segundos de absoluta confusão que se seguiram permitiram que eles pudessem levar o carrinho até a rampa e o arrastarem para dentro.
- Segurem-se - sussurrou Ford, apertando um botão em seu Polegar Eletrônico. Debaixo dos três, a imensa rampa começou a vibrar e a subir, bem devagar.
- O.k., crianças - disse ele, conforme a multidão ensandecida ia ficando mais e mais distante e eles começavam a avançar, cambaleantes, da rampa inclinada para o interior da nave
-, parece que estamos a caminho.
capítulo 39
Arthur Dent estava de saco cheio de ser continuamente acordado com o som de tiros. Cuidando para não acordar Fenchurch, que ainda conseguia dormir intermitentemente, deslizou pela escotilha de manutenção que haviam transformado em uma espécie de leito, desceu pela escada de acesso e vagou pelos corredores, mal-humorado. Eles eram claustrofóbicos e mal iluminados. Os circuitos deluz emitiam um zumbido irritante.
Não era isso, porém.
Parou e apoiou-se contra a parede quando uma furadeira elétrica voadora passou por ele no corredor escuro com um desagradável chiado cortante, por vezes batendo contra as paredes como uma abelha confusa.
Também não era isso.
Passou por cima de uma antepara e foi dar em um corredor maior. De um dos lados do corredor vinha uma fumaça acre; então ele foi para o outro lado. Chegou até um monitor de observação inserido na parede por trás de grossas lâminas de plexiglas, que ainda assim estavam bastante arranhadas.
- Será que dá para desligar isso? - pediu a Ford Prefect, que estava agachado diante dele, em meio a uma pilha de equipamentos de vídeo que ele usurpara de uma vitrine em Tottenham Court Road, após ter arremessado um pequeno tijolo através do vidro, e também a uma quantidade indecente de latinhas de cerveja vazias.
- Psst! - sussurrou Ford, olhando com uma concentração maníaca para a tela. Estava assistindo a Sete homens e um destino.
- Só um pouquinho - insistiu Arthur.
- Não! - gritou Ford. - Estamos chegando na melhor parte! Escuta, eu finalmente consegui resolver tudo, as voltagens, conversões de linha, tudo, e essa é a melhor parte!
Com um suspiro e uma dor de cabeça, Arthur sentou-se ao lado dele e assistiu à melhor parte. Ouviu os brados, gritos e uivos de Ford o mais placidamente que pôde.
- Ford - disse ele, finalmente, quando o filme terminou e Ford estava caçando Casablanca em uma pilha de fitas -, como é possível...
- Esse é o melhor - disse Ford. - Esse é o filme que me fez voltar. Você sabia que nunca consegui vê-lo inteiro? Eu sempre perco o final. Eu revi pela metade na véspera do ataque dos vogons. Quando eles destruíram tudo, pensei que nunca mais fosse ver o final. Ei, o que aconteceu com aquela história toda, afinal?
- Coisas da vida - disse Arthur, e apanhou uma cerveja.
- Ah, isso de novo - disse Ford. - Imaginei que pudesse ser algo assim. Eu prefiro coisas assim - disse ele quando o Bar do Rick apareceu na tela. - Como é possível o quê?
- O quê?
-Você começou a dizer "como é possível...".
- Como é possível, se você detesta tanto a Terra, que você... ah, deixa pra lá, vamos assistir ao filme.
- Isso aí - concordou Ford.
capítulo 40
Não há muito mais para contar.
Para além do que costumava ser conhecido como os Ilimitados Campos de Luz de Flanux, antes que os Feudos Confinantes Cinzentos de Saxaquine fossem descobertos pouco depois deles, encontram-se os Feudos Confinantes Cinzentos de Saxaquine. Nos Feudos Confinantes Cinzentos de Saxaquine encontra-se a estrela Zarss, em torno da qual orbita o planeta Preliumtarn, onde fica a terra de Sevorbeupstry, e foi à terra de Sevorbeupstry que Arthur e Fenchurch finalmente chegaram, um pouco cansados da viagem.
E em meio à terra de Sevorbeupstry chegaram à Grande Planície Vermelha de Rars, limitada ao sul pelas Montanhas de Quentulus Quazgar, no extremo das quais, de acordo com as últimas palavras de Prak, encontrariam em letras flamejantes de dez metros de altura a Mensagem Final de Deus para Sua Criação.
Segundo Prak, se a memória de Arthur fosse correta, o lugar era vigiado pelo Lajéstico Vantraconcha de Lob e foi, de certa maneira, o que descobriram. O Lajéstico Vantraconcha de Lob era um homenzinho usando um chapéu esquisito que vendeu um ingresso para eles.
- Mantenham-se à esquerda, por favor - disse ele -, à esquerda - instruía o sujeito, passando por eles em uma motoneta.
Perceberam que não eram os primeiros a passar por ali, pois o caminho pela esquerda para a Grande Planície estava gasto e salpicado de barraquinhas. Em uma delas compraram uma caixa de chocolate que havia sido cozinhado em um forno numa caverna da montanha, caverna essa que era aquecida pelo fogo das letras que formavam a Mensagem Final de Deus para Sua Criação. Em outra barraquinha, compraram alguns cartões-postais. As letras haviam sido embaçadas com tinta em spray, "para não estragar a Grande Surpresa!", conforme dizia no verso do postal.
- A senhora sabe qual é a mensagem? - perguntaram a uma senhora franzina em uma das barracas.
- Ah, sim - respondeu ela, toda alegre -, sei sim!
Fez um gesto para que prosseguissem.
A cada trinta quilômetros, aproximadamente, havia uma pequena cabana de pedra com chuveiros e toaletes, mas a caminhada era penosa e o sol a pino torrava a Grande Planície Vermelha e a Grande Planície Vermelha ondulava no calor.
- Podemos alugar uma dessas motonetas? - perguntou Arthur em uma das barracas maiores. - Uma daquelas que o Lajéstico Vantrasei-lá-o-quê tinha.
- As motonetas não são para os devotos - respondeu a senhora que servia sorvetes.
- Tudo bem, está resolvido, não somos exatamente devotos. Apenas interessados - disse Fenchurch.
- Então vão ter que voltar agora - disse a senhora, severamente, e, quando eles contestaram, ela aproveitou para lhes vender bonés da Mensagem Final e uma fotografia dos dois abraçados na Grande Planície Vermelha de Rars.
Beberam refrigerantes à sombra da barraca e depois voltaram a se arrastar pelo sol.
- O nosso creme protetor está acabando - comentou Fenchurch alguns quilômetros depois.
- Podemos seguir até apróxima barraca ou voltar para a última, que está mais perto, mas aí
vamos ter que voltar tudo de novo.
Olharam para a frente e viram, lá longe, o minúsculo pontinho preto tremulando sob o sol; olharam para trás. Decidiram continuar andando.
Então descobriram que não só não eram os primeiros a fazer aquela jornada como não eram os únicos caminhando naquele exato momento.
Um pouco mais adiante deles, uma criatura atarracada e desajeitada se arrastava miseravelmente, avançando com penosa lentidão, meio mancando, meio rastejando. Andava tão devagar que eles logo alcançaram a criatura e puderam ver que era feita de um metal gasto, marcado e retorcido.
Gemeu para eles quando se aproximaram, despencando no chão quente, seco e coberto de poeira.
- Tanto tempo - gemeu ele -, ai, tanto tempo. E tanta dor, mas tanta, e tempo demais para lamentar essa dor. Se fosse apenas um ou outro, dava até para agüentar. Mas os dois juntos realmente acabam comigo. Ah, oi, você outra vez.
- Marvin? - disse Arthur bruscamente, agachando-se ao lado dele. - É você?
- Você continua imbatível quanto às perguntas superinteligentes, não? - gemeu ele.
- O que é isso? - perguntou Fenchurch num sussurro, alarmada e agachada atrás de Arthur, agarrando-se no seu braço.
- Um velho amigo meu - disse Arthur - Eu...
- Amigo! - resmungou o robô, tristemente. A palavra morreu em uma espécie de estalo e lascas de ferrugem saíram de sua boca. - Sinto muito, mas preciso de um tempinho para tentar lembrar o que essa palavra significa. Os meus bancos de memória já não são mais os mesmos, sabe, e qualquer palavra que caia em desuso por alguns poucos zilhões de anos tem que ser transferida para um banco de memória auxiliar. Ah, aqui está.
A cabeça danificada do robô estalou um pouco, como se estivesse pensando.
- Hum - disse ele -, que conceito peculiar.
Pensou mais um pouco.
- Não - disse ele, finalmente -, acho que nunca conheci um desses. Sinto muito, não posso ajudá-lo nisso.
Arranhou o joelho no chão, tentando se levantar apoiado nos cotovelos deformados.
- Existe alguma última tarefa que eu possa fazer por vocês? - perguntou ele, com uma voz trêmula e oca. - Um pedacinho de papel que talvez queiram que eu apanhe no chão para vocês?
Ou talvez preferissem que eu - continuou ele -, abrisse uma porta?
Girou a cabeça em seu pescoço enferrujado e lançou um olhar perscrutador para o horizonte distante.
- Não vejo nenhuma porta por aqui no momento - disse ele -, mas tenho certeza de que, se esperarmos o tempo necessário, alguém vai construir uma. E aí - disse ele, girando a sua cabeça lenta e penosamente para olhar Arthur mais uma vez -, eu poderia abri-la para você. Já estou bastante acostumado a esperar, sabe.
- Arthur - sussurrou Fenchurch em seu ouvido, ríspida -, você nunca me falou sobre isso. O que você fez a essa pobre criatura?
- Nada - garantiu Arthur, tristemente -, ele é sempre assim...
- Ah! - interrompeu Marvin. - Ah! - repetiu ele. - O que você sabe sobre sempre? Você
vem dizer "sempre" para mim, logo eu que, por causa dos servicinhos idiotas que vocês, formas de vida orgânicas, me obrigaram a fazer infindavelmente, estou agora trinta e sete vezes mais velho do que o próprio Universo? Escolha as suas palavras com mais cuidado - tossiu ele - e com mais tato.
Teve um ataque de tosse estridente e depois prosseguiu.
- Deixem-me - disse ele -, continuem em seu caminho, deixem-me penar em meu próprio caminho. A minha hora finalmente está chegando. A minha corrida está terminando. Eu realmente espero - disse ele, acenando debilmente com um dedo quebrado para que prosseguissem - chegar por último. Seria bem apropriado. Aqui estou, com o cérebro do tamanho...
Arthur e Fenchurch o levantaram, apesar dos seus débeis protestos e insultos. O metal estava tão quente que por pouco não criou bolhas nos seus dedos, mas ele era surpreendentemente leve e ficou pendurado sem firmeza entre os braços dos dois. Foram carregando Marvin pelo caminho da esquerda da Grande Planície Vermelha de Rars em direção às montanhas de Quentulus Quazgar.
Arthur tentou se explicar com Fenchurch, mas era freqüentemente interrompido pelos dolorosos desvarios cibernéticos de Marvin.
Tentaram ver se conseguiam comprar umas peças avulsas para ele em uma das barracas e um pouco de lubrificante, mas Marvin não queria nada.
- Eu não passo de partes avulsas - disse ele.
- Me deixem em paz! - gemeu.
- Cada parte do meu corpo - resmungou - foi substituída pelo menos umas cinqüenta vezes... exceto... - Pareceu alegrar-se, quase imperceptivelmente, por um breve instante. - Você
se lembra da primeira vez que nos encontramos? - perguntou a Arthur. - Eu tinha recebido a tarefa mentalmente extenuante de conduzir vocês até a ponte? Eu cheguei a comentar com você
que eu estava com uma dor horrível em todos os meus diodos do lado esquerdo? Que eu tinha pedido para eles serem substituídos, mas nunca foram?
Marvin fez uma longa pausa antes de continuar. Eles o carregavam nos ombros, andando sob o sol ardente que não parecia sequer se mover, muito menos se pôr.
- Vê se você consegue adivinhar - continuou Marvin, quando achou que a pausa já havia sido constrangedora o bastante - quais partes do meu corpo nunca foram trocadas? Vamos lá, vê
se você adivinha.
- Ai - gemeu ele -, ai, ai, ai, ai, ai.
Finalmente alcançaram a última das pequenas barracas, repousaram Marvin entre eles e pararam para descansar à sombra. Fenchurch comprou umas abotoaduras para Russell, abotoaduras nas quais haviam incrustado pequenos cristais de rocha polidos, garimpados na Montanha Quentulus Quazgar, diretamente debaixo das letras de fogo nas quais a Mensagem Final de Deus para Sua Criação estava escrita.
Arthur passou os olhos em alguns folhetos religiosos no balcão, algumas meditações sobre o significado da Mensagem.
- Está pronta? - perguntou a Fenchurch, que assentiu. Suspenderam Marvin. Contornaram o sopé da Montanha Quentulus Quazgar e lá estava a Mensagem, escrita em letras flamejantes sobre o topo da Montanha. Havia um pequeno mirante com um parapeito construído sobre uma enorme rocha logo em frente à Montanha, de onde era possível ter uma visão mais nítida. Tinha, inclusive, um daqueles pequenos telescópios que funcionam com moedas para as pessoas enxergarem as letras detalhadamente, mas ninguém nunca tinha usado o aparelho porque a letras ardiam com o brilho divino dos céus e, se vistas através de um telescópio, causariam danos graves à retina e ao nervo ótico.
Contemplaram a Mensagem Final de Deus, maravilhados, e uma enorme sensação de paz os invadiu, lenta e inefável, uma sensação de compreensão total e definitiva. Fenchurch suspirou.
- Era isso mesmo - disse ela.
Já estavam olhando há dez minutos quando finalmente perceberam que Marvin, pendurado entre eles, estava tendo dificuldades. O robô, que não conseguia mais levantar a cabeça, não tinha lido a mensagem. Suspenderam sua cabeça, mas ele reclamou que os seus circuitos de visão já estavam quase inoperantes.
Arrumaram uma moeda e o ajudaram a olhar pelo telescópio. Marvin reclamou e xingou os dois, mas eles o ajudaram a ler, letra por letra. A primeira letra era "n", a segunda "o" e a terceira um "s". Havia um espaço. Então, vinha um "d", depois um "e", um "s". Marvin parou para descansar.
Um pouco depois, eles continuaram e ele pôde ver um "c", um "u", um "l", seguido de um
"p", um "a", um "m", um "o" e um "s". A próxima palavra era "pelo". A última era grande, então Marvin precisou descansar novamente antes de encará-la.
Começava com um " i ", depois um "n" e um "c". Então vinha um "o", outro "n", seguido por um "v", um "e", mais um "n" e um "i". Após uma última pausa, Marvin reuniu as suas forças para o trechinho final. Leu um "e", um "n", um "t" e, no último "e", deixou-se cair sobre os braços de Arthur e Fenchurch.
- Eu acho - murmurou finalmente, lá do fundo do seu peito corroído e barulhento - que me sinto bem com isso.
As luzes apagaram-se em seus olhos, pela última vez, para sempre. Felizmente havia um quiosque ali perto, onde era possível alugar motonetas com sujeitos de asas verdes.
epílogo
Um dos maiores benfeitores de todas as formas de vida foi um homem que não conseguia se concentrar em qualquer trabalho que estivesse fazendo.
Foi brilhante?
Certamente.
Foi um dos maiores engenheiros genéticos de sua geração ou de qualquer outra, inclusive várias que ele mesmo projetou?
Sem dúvida.
O problema é que se interessava muito por coisas pelas quais não deveria se interessar ou, pelo menos, como costumavam dizer para ele, não naquele momento. Ele também possuía, em grande parte por causa disso, um pavio muito curto. Então, quando o seu mundo se viu ameaçado por invasores terríveis de uma estrela distante, que ainda estavam muito longe mas viajavam bem rápido, ele, Blart Versenwald III (o nome dele era Blart Versenwald III, o que não é estritamente relevante, mas bem interessante porque - deixa pra lá, o nome do cara era esse e podemos explicar por que era interessante depois), foi conduzido a um lugar onde pudesse ficar completamente isolado, protegido pelos mestres de sua raça, com instruções para criar uma linhagem de superguerreiros fanáticos, prontos para resistir e para derrotar os temidos invasores. Ele tinha que criá-los o mais rápido possível e disseram-lhe: "Concentre-se!"
Então ele se sentou próximo a uma janela e contemplou um jardim em pleno verão e projetou, projetou e projetou, mas, inevitavelmente, distraiu-se um pouco com outras coisas e, quando os invasores já estavam praticamente em órbita em torno deles, inventou uma nova raça de supermoscas que podiam descobrir, por conta própria, como voar pela metade aberta de uma janela entreaberta e também um interruptor para desligar crianças. As comemorações dessas incríveis descobertas pareciam fadadas a durar muito pouco, porque o desastre era iminente - as naves espaciais já estavam pousando. Mas, para a surpresa de todos, os temíveis invasores, que, como a maioria das raças beligerantes, só estavam comprando briga com os outros porque não sabiam lidar com seus problemas domésticos, ficaram tão impressionados com as invenções extraordinárias de Versenwald que decidiram participar das comemorações e foram imediatamente persuadidos a assinarem uma série de acordos comerciais abrangentes e a instituírem um programa de intercâmbio cultural. E, em uma surpreendente inversão da prática tradicional na conduta desses assuntos, todos os envolvidos viveram felizes para sempre. Havia um motivo para contar esta história, mas, temporariamente, fugiu da mente do autor.
Links:
Portal Detonando – http://www.portaldetonando.com.br
Compartilhando.org – http://www.compartilhando.org
CdmsShare - http://www.cdmsshare.org
“Acreditar num conhecimento que poder ser vendido e comprado é uma forma sutil (e cruel) de perpetuar a ignorância. ”