18- UM ROSTO DE PEDRA


OUVIR AQUELA terceira voz foi uma coisa extraordinária. Até aquele momento, o ritual exigira somente um diálogo para servir de fundo aos horríveis ruídos provocados pela tortura. Os sentidos adormecidos de Bond mal puderam ouvi-la. Então, de repente, Ele já andara meio caminho de volta à consciência. Descobriu que podia ver e ouvir novamente. Podia ouvir o silêncio de morte que se fizera na sala depois que uma palavra fora pronunciada em voz baixa na soleira da porta. E podia ver a cabeça de Le Chiffre levantar-se devagar, e aquela expressão vazia de espanto, de inocente surpresa, transformar-se vagarosamente em medo.

"Parre", disse a voz baixinho, carregando num sotaque duro.

Bond ouviu passos vagarosos aproximarem-se atrás de sua cadeira.

"Larrgue a faca", ordenou a voz.

Bond viu a mão de Le Chiffre abrir-se obedientemente e a faca cair no chão com estrépito

Tentou desesperadamente ler no rosto de Le Chiffre o que se passava às suas costas, mas só viu cega incompreensão e terror. Le Chiffre abriu a boca, mas só conseguiu articular um pequeno grito, fininho. Suas bochechas pesadas tremeram quando ele tentou reunir saliva suficiente para dizer alguma coisa perguntar alguma coisa. Estava com as mãos na barriga e elas esboçaram um movimento quase imperceptível. Uma delas moveu-se levemente em direção ao bolso, mas no mesmo instante caiu. Os olhos redondos e arregalados de Le Chiffre baixaram numa fração de segundo, e Bond adivinhou que havia uma arma apontada para Ele.

Houve um momento de silêncio.

"Smersh".

Esta palavra foi pronunciada quase como um suspiro. Veio numa cadência baixa, como se nada mais houvesse a dizer. Era a explicação final. A última de todas as palavras.

"Não", disse Le Chiffre. "Não, eu. . .". Sua voz sumiu.

Talvez Ele quisesse explicar alguma coisa, pedir desculpas, mas o que deve ter visto no rosto do outro mostrou que tudo era inútil.

"Seus dois homens. Os dois estão mortos. Você é um idiota, um ladrão e um traidor. Vim da União Soviética com ordem de matá-lo. Você tem sorte, porque o tempo é escasso, e eu terei de matar você a bala. Porque minhas instruções diziam que, se fosse possível, você deveria morrer de maneira bastante dolorosa. Não sabemos ainda como vai acabar toda esta encrenca que você causou".

A voz grave parou de falar. A sala estaria em silêncio absoluto, não fosse a respiração entrecortada de Le Chiffre.

Lá fora um passarinho começou a cantar e ouviram-se também outros ruídos do campo que acordava. No rosto de Le Chiffre, o suor brilhava intensamente.

"Você se confessa culpado?"

Bond lutava contra a inconsciência. Firmou bem a vista e tentou balançar a cabeça, para clarear um pouco os sentidos; mas todo seu sistema nervoso estava anestesiado e não conseguia transmitir mensagem alguma aos músculos. Bond só conseguia focalizar o grande rosto pálido à sua frente e aqueles olhos esbugalhados.

Um fio fino de saliva escorreu da boca aberta até o queixo.

"Sim", disse a boca.

Ouviu-se um fit agudo, um ruído da mesma intensidade que uma bolha de ar escapando de um tubo de pasta dentifrícia.

Não se ouviu mais nenhum barulho, mas subitamente um terceiro olho aparecera em Le Chiffre, na mesma altura que os outros dois, exatamente no local em que o nariz grosso começava, abaixo da testa. Era um olho preto e pequeno, sem cílios nem sobrancelhas.

Durante um segundo, os três olhos fixaram o outro lado da sala, depois o rosto pareceu escorregar. Os dois olhos laterais viraram para o teto. Então a pesada cabeça caiu de lado, o ombro direito também caiu, e finalmente toda a parte superior do corpo balançou para o lado, sobre o braço da cadeira, como se Le Chiffre fosse vomitar. Mas ouviu-se apenas o barulho rápido de seus calcanhares no chão. E não se ouviu mais nada, nenhum outro movimento.

O alto espaldar da cadeira olhava impassível o cadáver que tinha nos braços.

Houve um ligeiro movimento atrás de Bond. Uma mão veio por trás, agarrou seu queixo e puxou-o para o lado.

Bond viu dois olhos brilhando dentro de uma máscara negra e estreita. Teve a impressão de que, sob a aba daquele chapéu, havia um rosto de pedra escondido também pela gola de um sobretudo castanho. Não pôde notar mais nada, porque sua cabeça foi novamente jogada para a frente.

"Você tem sorte", disse a voz. "Não tenho ordens para matá-lo. Sua vida foi salva duas vezes em um dia. Mas você pode dizer aos seus chefes que Smersh só faz caridade por acaso ou por engano. Você foi salvo primeiro por acaso e agora por engano, porque eu deveria ter recebido ordens para matar qualquer espião estrangeiro que estivesse rodeando este traidor como moscas que rodeiam sujeira de cachorro".

"Mas deixarei meu cartão de visita. Você é um jogador. Você brinca com cartas. Talvez algum dia você jogue contra um de nós. Seria bom que você fosse logo reconhecido como um espião".

Passos deram a volta pelo lado direito de Bond. Ouviu-se o clic de uma faca se abrindo. Um braço envolto em tecido cinza atravessou o campo de visão de Bond. Uma mão grande c peluda, saindo de um punho sujo de camisa branca, segurava um estilete fino como uma caneta-tinteiro. Esta mão pousou nas costas da mão direita de Bond, que continuava imóvel, amarrada com arame aos braços da cadeira. A ponta do estilete executou três cortes retos e rápidos. Um quarto corte cruzou-os onde eles terminavam, perto dos nós dos dedos. O sangue começou a correr daquele M invertido, a inicial russa da Smersh, até pingar lentamente no chão.

Em comparação ao que já sentira, aquela dor não era nada para Bond, mas foi o suficiente para levá-lo de novo à inconsciência.

Os passos abafados afastaram-se pela sala. A porta fechou-se suavemente.

Em meio àquele silêncio, pequenos sons alegres de um dia de verão atravessaram a janela. Bem alto, na parede esquerda, pendiam duas pequenas manchas cor de rosa. Eram os reflexos de duas poças de sangue não muito distantes entre si, que o sol de junho atirava na parede.

Com o correr do dia, as duas manchas cor de rosa marchavam vagarosamente pela parede. E vagarosamente aumentaram de tamanho.

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