O ceticismo é a castidade do intelecto e é vergonhoso abandoná-lo demasiado cedo ou ao primeiro que apareça: há nobreza em conservá-lo serena e orgulhosamente durante a longa juventude, até finalmente, na maturidade do instinto e do entendimento, ser possível trocá-lo em segurança por fidelidade e felicidade.
Estava numa missão de insurreição e subversão. O inimigo era imensamente maior e mais poderoso. Mas ele conhecia-lhe as fraquezas. Podia apoderar-se do Governo estranho e encaminhar os recursos do adversário no sentido do seu próprio objetivo. Ora, com milhões de agentes devotados no local…
A presidente espirrou e procurou um lenço de papel limpo na algibeira dilatada do presidencial roupão de banho turco. Não estava maquilada, embora os seus lábios gretados revelassem manchas de bálsamo mentolado.
— O meu médico diz-me que tenho de ficar na cama se não quero apanhar uma pneumonia virótica. Pedi-lhe um antibiótico e ele respondeu-me que não há nenhum antibiótico para os vírus. Sendo assim, como é que sabe que tenho um vírus?
Der Heer abriu a boca para responder, esboçou um gesto, mas a presidente interrompeu-o logo:
— Não, deixe lá isso. Começava a falar-me do ADN e do reconhecimento do portador, e eu preciso dos recursos que me restam para ouvir a sua estória. Se não tem medo do meu vírus, puxe uma cadeira e sente-se.
— Obrigado, senhora Presidente. É a respeito do manual. Tenho aqui o relatório. Está incluída como apêndice uma extensa parte técnica. Pensei que também poderia estar interessada nela. Resumindo, estamos a ler e a compreender efetivamente a coisa sem dificuldade nenhuma. É um programa de ensino diabolicamente inteligente. Não emprego a palavra «diabolicamente» em qualquer sentido literal, claro. Nesta altura devemos ter um vocabulário de três mil palavras.
— Não compreendo como é possível. Vi como eles conseguiam ensinar-lhes os nomes dos seus números. Vocês fazem um ponto e escrevem por baixo as letras U M, e por aí fora. Vi como conseguem obter o desenho de uma estrela e depois escrever por baixo E S T R E L A. Mas não vejo como podem decifrar verbos, ou o pretérito, ou os condicionais.
— Fazem uma parte com movies. Os movies são perfeitos para verbos. E uma quantidade do resto fazem-no com números. Até mesmo abstrações; são capazes de comunicar abstrações com números. É mais ou menos assim: primeiro contam os números para nós e depois introduzem algumas palavras novas — palavras que não compreendemos. Olhe, vou indicar as suas palavras por letras. Lemos qualquer coisa deste gênero (as letras representam símbolos que os Veganianos introduzem)…
Escreveu:
1A1B2Z
1A2B3Z
1A3B4Z
— Que lhe parece que é?
— A caderneta das minhas notas liceais? Quer dizer que há uma combinação de pontos e traços que A representa e uma combinação de pontos e traços representados por B, e assim por diante?
— Exatamente. Sabe-se o que o um e o dois significam, mas não se sabe o que significam A e B. Que lhe diz uma seqüência destas?
— A significa «mais» e B significa «igual». É aí que quer chegar?
— Ótimo. Mas não compreendemos o que Z significa, pois não? Suponhamos que aparece uma coisa como:
1A2B4Y
«Compreende?
— Talvez. Dê-me outra que acabe em Y
2000A4000B0Y
— Está bem, acho que percebi. Desde que não leiam os três últimos símbolos como uma palavra. Z significa que é verdadeiro e Y significa que é falso.
— Certo. Exatamente. Muito bom para uma presidente com um vírus e uma crise sul-africana. Portanto, com algumas linhas de texto, eles ensinaram-nos quatro palavras: mais, igual, verdadeiro e falso. Quatro palavras muito úteis. Depois ensinam divisão, dividem um por zero e dão-nos a palavra que significa infinidade. Ou talvez seja apenas a palavra que significa indeterminado. Ou dizem: «A soma dos ângulos internos de um triângulo é dois ângulos retos.» Depois observam que a afirmação é verdadeira se o espaço é plano, mas falsa se o espaço é curvo. Aprendemos assim a dizer a palavra se e…
— Eu não sabia que o espaço era curvo. Ken, de que diabo está a falar? Como pode o espaço ser curvo? Não, deixe lá, deixe lá. Isso não pode ter nada a ver com o assunto que temos pela frente.
— Na realidade…
— Sol Hadden disse-me que a idéia da localização do manual foi dele. Não olhe para mim com essa cara cômica, Der Heer. Falo com todos os tipos de gente.
— Não queria dizer… hmmm… No meu entender, Mister Hadden apresentou algumas sugestões que já tinham sido todas feitas por outros cientistas. A doutora Arroway verificou-as e acertou em cheio com uma delas. Chama-se modulação de fase ou codificação de fase.
— Muito bem. Agora, Ken, é verdade que o manual está espalhado por toda a Mensagem, não é? Montes de repetições. E houve um manual qualquer pouco depois de a Arroway começar a captar o sinal.
— Pouco depois de ela captar a terceira camada do palimpsesto, o desenho da Máquina.
— E muitos países possuem a tecnologia necessária para ler o manual, não é verdade?
— Bem, precisam de um instrumento chamado correlacionador desses. Mas, sim. Os países que contam, de qualquer modo.
— Nesse caso, os Russos podiam ter lido o manual há um ano, não podiam? Ou os Chineses, ou os Japoneses. Como sabe que, neste preciso momento, eles não estão já a meio da construção da Máquina?
— Pensei nisso, mas o Marvin Yang diz que é impossível. Fotografias por satélite, inteligência eletrônica e pessoas no local, tudo confirma não existir nenhum sinal do gênero de grande projeto de construção que seria necessário para construir a Máquina. Não, nós temos estado todos a dormir na forma. Fomos seduzidos pela idéia de que o manual de instruções tinha de vir no princípio, e não intercalado ao longo da Mensagem. Foi só quando a Mensagem reciclou e descobrimos que ele não estava lá que começamos a pensar noutras possibilidades. Todo este trabalho foi feito em estreita colaboração com os Russos e com todos os outros. Não achamos que alguém nos tenha passado à frente, mas, por outro lado, agora todos têm o manual. Não creio que exista algum curso de ação unilateral para nós.
— Eu não quero um curso de ação unilateral para nós. Só quero ter a certeza de que mais ninguém tem um curso de ação unilateral. Mas pronto, voltemos ao seu manual. Sabem dizer «verdadeiro-falso», «se-então» e «o espaço é curvo». Como constroem uma máquina com isso?
— Sabe, não acho que a constipação, ou lá o que é que tem, lhe tenha diminuído um nadinha que seja as faculdades. Bem, parte tudo daí. Por exemplo, eles traçam-nos um quadro periódico dos elementos, de modo a mencionarem todos os elementos químicos, a idéia de um átomo, a idéia de um núcleo, de prótons, nêutrons e elétrons. Depois passam alguma mecânica quântica, só para terem a certeza de que estamos a prestar atenção — já adquirimos algumas novas percepções no material corretivo. Depois começam a concentrar-se nos materiais específicos necessários para a construção. Por exemplo, por qualquer razão, precisamos de duas toneladas de érbio e, por isso, eles explicam uma técnica para o extrair de rochas vulgares.
Der Heer levantou a mão, de palma para a frente, num gesto apaziguador:
— Não me pergunte por que precisamos de duas toneladas de érbio. Ninguém faz a mínima idéia.
— Não ia perguntar isso. O que quero saber é como eles lhes disseram quanto é uma tonelada.
— Contaram-na para nós em massas de Planck. Uma massa de Planck é…
— Deixe lá, deixe lá. É qualquer coisa do conhecimento de todos os físicos do universo, não é verdade? E eu nunca ouvi falar dela. Agora a conclusão: compreendemos o manual suficientemente bem para começar a ler a Mensagem? Seremos ou não capazes de construir a coisa?
— A resposta parece ser «sim». Temos o manual há poucas semanas apenas, mas estão a cair-nos no colo, com toda a clareza, capítulos inteiros da Mensagem. Há desenho meticuloso, explicações redundantes e, tanto quanto nos parece, tremenda redundância na concepção da Máquina. Devemos poder ter um modelo tridimensional dela para si a tempo daquela reunião para selecionar a tripulação na próxima quinta-feira, se se sentir em condições para isso. Até agora não temos nenhuma pista quanto ao que a Máquina faz ou como funciona. E há alguns componentes químicos orgânicos esquisitos que não fazem sentido nenhum como parte de uma máquina. Mas quase toda a gente parece convencida de que a podemos construir.
— Quem não parece?
— Bem, Lunacharsky e os Russos. E Billy Jo Rankin, claro. Ainda há quem tema que a Máquina faça o mundo ir pelos ares, desvie o eixo da Terra, ou qualquer coisa desse gênero. Mas o que tem impressionado a maioria dos cientistas é como as instruções são cuidadosas e as muitas maneiras diferentes que eles utilizam para tentar explicar a mesma coisa.
— E que diz a Eleanor Arroway?
— Diz que, se eles nos quiserem tramar, estarão aqui dentro de vinte cinco anos, pouco mais ou menos, e não há nada que possamos fazer nesse espaço de tempo para nos protegermos. Estão excessivamente à nossa frente. Por isso, construam-na, diz ela, e, se estão preocupados com perigos ambientais, construam-na num lugar distante. O professor Drumlin diz que, pela parte que lhe toca, até podemos construí-la na baixa de Pasadena. Na verdade, diz mesmo que estará lá todos os minutos que forem necessários para construir a Máquina, de modo que seja o primeiro a ir desta para melhor se ela explodir.
— Drumlin é aquele tipo que intuiu tratar-se do desenho de uma máquina, não é?
— Não foi exatamente assim, ele…
— Lerei o material de informação a tempo para a tal reunião de quinta-feira. Tem mais alguma coisa para mim?
— Está a pensar seriamente deixar o Hadden construir a Máquina?
— Bem, não depende só de mim, como sabe. Aquele acordo que estão a negociar em Paris dá-nos cerca de um quarto de peso decisional. Os Russos têm um quarto, os Chineses e os Japoneses juntos têm um quarto e o resto do mundo tem um quarto, falando grosso modo. Uma quantidade de nações quer construir a Máquina, ou, pelo menos, partes dela. Pensam em prestígio e em novas indústrias, novo conhecimento. Desde que ninguém nos passe a perna, tudo isso me parece bem. É possível que o Hadden apanhe também um bocado. Qual é o problema? Não o acha tecnicamente competente?
— É, com certeza. Trata-se apenas…
— Se não há mais nada, Ken, voltamos a ver-nos na quinta-feira, se o vírus quiser.
Quando Der Heer fechava a porta e entrava na sala de estar contígua, soou um explosivo espirro presidencial. O oficial-às-ordens de serviço, rigidamente sentado num sofá, assustou-se visivelmente. A pasta a seus pés estava atafulhada de códigos de autorização de guerra nuclear. Der Heer acalmou-o com um gesto repetitivo da mão, de dedos abertos e palma para baixo. O oficial sorriu, encabulado.
— Aquilo é Vega? É por causa daquilo que há toda esta lufa-lufa? — perguntou a presidente com alguma decepção.
A oportunidade de a imprensa tirar fotografias terminara e os olhos dela já se tinham quase adaptado à escuridão depois do ataque dos flashes dos fotógrafos e da iluminação da televisão. As fotografias da presidente a olhar fixamente através do telescópio do Observatório Naval que apareceram no dia seguinte em todos os jornais eram, evidentemente, uma pequena impostura. Ela fora incapaz de ver fosse o que fosse pelo telescópio enquanto os fotógrafos não tinham saído e a escuridão voltado.
— Por que motivo tremelica?
— É turbulência no ar, senhora Presidente — explicou Der Heer. — Passam bolhas de ar quente que deformam a imagem
— É como olhar para si através da mesa do pequeno-almoço, quando está uma torradeira ligada entre nós. Lembro-me de ver um lado inteiro da cara dele descair — disse a presidente afetuosamente, levantando a voz para que o consorte presidencial, que se encontrava perto a conversar com o comandante do Observatório, a pudesse ouvir.
— Sim, mas nos tempos que vão correndo não há torradeira ligada na mesa do pequeno-almoço — respondeu ele, em tom amigável.
Antes de se reformar, Seymour Lasker fora um alto funcionário da União Internacional de Trabalhadores de Vestuário Feminino. Conhecera a mulher décadas atrás, quando ela representava a New York Girl Coat Company, e tinham-se apaixonado durante uma demorada negociação laboral. Considerando a novidade presente das posições de ambos, a saúde aparente do seu relacionamento era digna de nota.
— Posso passar sem a torradeira, mas não estou a ter pequenos-almoços suficientes com o Sr. — A presidente inflectiu as sobrancelhas mais ou menos na direção do marido e depois voltou a prestar atenção ao instrumento monocular. — Parece uma ameba azul, toda… esborrachada.
Depois da difícil reunião para selecionar os tripulantes, a presidente mostrava um estado de espírito despreocupado. A sua constipação estava quase curada.
— E se não houvesse nenhuma turbulência, Ken? Que veria eu nesse caso?
— Então seria como o Telescópio Espacial acima da atmosfera da Terra. Veria um ponto de luz firme e imóvel.
— Só a estrela? Só Vega? Nenhuns planetas, nenhuns anéis, nenhumas estações de combate com raios laser?
— Não, senhora Presidente. Tudo isso seria excessivamente pequeno e pouco brilhante para poder ser visto mesmo com um telescópio muito grande.
— Bem, espero que os seus cientistas saibam o que estão a fazer — disse ela, quase num murmúrio. — Estamos a tomar uma tremenda quantidade de compromissos baseados numa coisa que nunca vimos.
Der Heer ficou um pouco surpreendido.
— Mas nós vimos trinta e uma mil páginas de texto, desenhos, palavras e mais um enorme manual de instruções.
— No meu livro isso não é o mesmo que ver. Um pouco… ilativo demais. Não me venha dizer que cientistas de todo o mundo estão a receber os mesmos dados. Sei tudo isso. E não me diga como são claros e sem ambigüidades os projetos da Máquina. Também sei tudo isso. E que, se recuarmos, outro qualquer construirá com certeza a Máquina. Sei todas essas coisas. Mas nem mesmo assim deixo de me sentir nervosa.
O grupo voltou, através do recinto do Observatório Naval, à residência do vice-presidente. Nas últimas semanas tinham-se delineado trabalhosamente acordos provisórios quanto à seleção dos tripulantes. Os Estados Unidos e a União Soviética haviam lutado por dois lugares cada; em tais questões, eram aliados dignos de confiança. Mas era difícil sustentar semelhante argumento com as outras nações do Consórcio Mundial da Mensagem. Nos tempos que corriam, os Estados Unidos e a União Soviética — mesmo tratando-se de questões em que estavam de acordo — tinham muito maior dificuldade do que outrora em levar a sua avante com as outras nações.
O empreendimento era agora largamente reclamado como uma atividade da espécie humana. O nome Consórcio Mundial da Mensagem estava prestes a ser mudado para Consórcio Mundial da Máquina. Nações com excertos da Mensagem tentavam servir-se desse fato como direito de acesso de um dos seus cidadãos à qualidade de membro da tripulação. Os Chineses tinham argumentado serenamente que em meados do século seguinte seriam 1,5 mil milhões no mundo, mas com muitos deles nascidos como filhos únicos em virtude da experiência chinesa de controle dos nascimentos apoiado pelo Estado. Essas crianças, quando crescessem, predisseram, seriam mais inteligentes e emocionalmente mais seguras do que as crianças de outras nações com normas menos severas no tocante às dimensões da família. Conseqüentemente, argumentaram, em virtude de estarem a desempenhar um papel mais proeminente nos assuntos mundiais dentro de cinqüenta anos, os Chineses tinham direito a pelo menos um dos cinco lugares da Máquina. Era um argumento que estava a ser discutido em muitas nações por funcionários sem nenhuma responsabilidade na Mensagem ou na Máquina.
A Europa e o Japão prescindiram da representação na tripulação em troca de maior responsabilidade na construção de componentes da Máquina, por considerarem que isso seria economicamente mais vantajoso. No fim foi reservado um lugar para os Estados Unidos, a União Soviética, a China e a Índia, ficando a atribuição do quinto lugar por decidir. Isto exigiria longas e difíceis negociações multilaterais e teria em consideração a dimensão populacional, o poder econômico, industrial e militar, os alinhamentos políticos presentes e até um pouco da história da espécie humana.
Para se candidatarem ao quinto lugar, o Brasil e a Indonésia basearam-se na dimensão populacional e no equilíbrio geográfico; a Suécia propôs-se desempenhar um papel moderador em caso de disputas políticas; o Egito, o Iraque, o Paquistão e a Arábia Saudita apresentaram argumentos fundamentados na equidade religiosa. Outros sugeriram que, pelo menos, esse quinto lugar fosse atribuído tendo em consideração mais o mérito individual do que a nacionalidade. De momento, a decisão ficara em suspenso: um trunfo para ser jogado mais tarde.
Nas quatro nações selecionadas, cientistas, líderes nacionais e outros entregavam-se à tarefa de escolher os seus candidatos. Iniciou-se nos Estados Unidos uma espécie de debate à escala nacional. Em sondagens de opinião, foram sempre mencionados com vários graus de entusiasmo dirigentes religiosos, heróis desportivos, astronautas, detentores à Medalha de Honra do Congresso, cientistas, artistas de cinema, uma ex-consorte presidencial, anfitriões de talk shows e pivots de noticiários da televisão, membros do Congresso, milionários com ambições políticas, executivos de fundações, cantores de música country e western e rock-and-roll, presidentes de universidades e a Miss América do momento.
Por tradição antiga, desde que a residência do vice-presidente tinha sido mudada para o recinto do Conservatório Naval, os criados domésticos eram sargentos filipinos em serviço ativo na Armada dos EUA. De elegantes blazers azuis com uma tira bordada onde se lia «vice-presidente dos Estados Unidos», estavam naquele momento a servir café. A maioria dos participantes na reunião de todo o dia para a seleção dos tripulantes não tinham sido convidados para aquela sessão informal noturna.
Fora singular destino de Seymour Lasker ser o primeiro Primeiro Cavalheiro da América. Ele carregava o fardo — as caricaturas dos jornais, as piadas lisonjeadoras e os chistes espirituosos de que nenhum homem chegara onde ele chegara — com tal franqueza e boa disposição que, por fim, a América conseguiu perdoar-lhe o fato de ter casado com uma mulher com o atrevimento de imaginar que seria capaz de dirigir metade do mundo. Lasker pusera a esposa e o filho adolescente do vice-presidente a rir à gargalhada quando a presidente conduziu Der Heer para um anexo adjacente à biblioteca.
— Muito bem — começou. — Hoje não temos nenhuma decisão oficial a tomar, nem nenhum comunicado público das nossas deliberações a fazer. Mas vejamos se podemos elaborar uma súmula. Não sabemos o que a maldita Máquina fará, mas é razoável supor que vá a Vega. Ninguém faz a mínima idéia de como isso funcionará nem sequer de quanto tempo levará. Diga-me outra vez, a que distância fica Vega?
— Vinte e seis anos-luz, senhora Presidente.
— Portanto, se esta Máquina fosse uma espécie de nave espacial e pudesse viajar à velocidade da luz — eu sei que não se pode viajar à velocidade da luz, só próximo dela, não me interrompa —, levaria vinte e seis anos para chegar lá, mas só do modo como medimos o tempo aqui na Terra. É assim, Der Heer?
— É. Exatamente. Talvez mais um ano para atingir a velocidade da luz e um ano para desacelerar e entrar no sistema de Vega. Mas, do ponto de vista dos membros da tripulação, levaria muito menos tempo. Talvez apenas uns dois anos, dependendo da proximidade da velocidade da luz a que viajassem.
— Para um biólogo, Der Heer, tem andado a aprender muita astronomia.
— Obrigado, senhora Presidente. Tentei mergulhar no assunto.
Ela fitou-o apenas um momento e depois prosseguiu:
— Portanto, desde que a Máquina viaje a uma velocidade muito próxima da luz, poderá não ter importância a idade dos membros da tripulação. Mas se levar mais dez ou vinte anos — e você diz que isso é possível —, então precisamos de ter alguém jovem. Ora os Russos não estão a dar crédito a este argumento. Sabemos que a escolha vai ser entre Arkhangels e Lunacharsky, ambos sexagenários.
Lera os nomes com certa dificuldade numa ficha que tinha à sua frente.
— É, quase certo que os Chineses vão enviar Xi, também sexagenário. Por conseqüência, se eu pensasse que eles sabem o que estão a fazer, sentir-me-ia tentada a dizer: «Com os diabos, mandemos um homem de sessenta anos!»
Der Heer sabia que Drumlin tinha exatamente sessenta anos.
— Por outro lado… — começou a argumentar.
— Bem sei, bem sei. A doutora indiana. Essa tem quarenta e tal anos… De certo modo, esta é a coisa mais estúpida de que já ouvi falar. Estamos a escolher alguém para participar nos Jogos Olímpicos e não sabemos quais vão ser as provas. Também não sei por que motivo estamos a falar em enviar cientistas. O Mahatma Gandhi, aí está quem deveríamos enviar. Ou, já que estamos com a mão na massa, Jesus Cristo. Não me diga que eles não estão disponíveis, Der Heer. Eu sei isso.
— Quando não sabemos quais são as provas, mandamos um campeão do decatlo.
— E depois descobrimos que as provas são xadrez, ou oratória, ou escultura, e o nosso atleta fica em último lugar. Está bem, você diz que deve ser alguém que tenha pensado na vida extraterrestre e que tenha estado intimamente envolvido na recepção e na decifração da Mensagem.
— Pelo menos uma pessoa assim estaria intimamente informada do modo como os Veganianos pensam. Ou, pelo menos, do modo como eles julgam que nós pensamos.
— E, no tocante a gente verdadeiramente do topo, diz que isso reduz o campo a três pessoas.
Consultou de novo os seus apontamentos.
— Arroway, Drumlin e… aquele que julga ser um general romano.
— O doutor Valerian, senhora Presidente. Não sei se ele julga que é um general romano; trata-se apenas do seu nome.
— Valerian nem sequer responderia ao questionário do Comitê Selecionador. Não consideraria a escolha porque não deixaria a mulher. Não é isso? Não estou a criticá-lo. Não é parvo. Sabe fazer funcionar um relacionamento. Não se trata de a mulher ser doente, ou coisa do gênero, pois não?
— Não. Que eu saiba, ela goza de excelente saúde.
— Ótimo. Ótimo para eles. Mande-lhe um bilhete pessoal a minha parte… qualquer coisa no sentido de ela ser uma mulher e tanto, para um astrônomo a preferir ao universo. Mas tenha cuidado com a linguagem, Der Heer. Você sabe o que eu quero. E atire-lhe com algumas citações. Poesia, talvez. Mas não demasiado lamecha. — Acenou-lhe com o indicador esticado. — Esses Valerians podem ensinar-nos alguma coisa. Por que não os convidamos para um jantar importante? O rei do Nepal vem cá daqui a duas semanas. Será boa altura.
Der Heer estava a escrever apressadamente. Tinha de telefonar para casa da secretária dos convites da Casa Branca assim que a reunião terminasse e precisava de fazer um telefonema ainda mais urgente.
Havia horas que não conseguia aproximar-se sequer do telefone.
— Restam portanto a Arroway e o Drumlin. Ela é uns vinte anos mais nova, mas ele está numa forma física espantosa. Voa em hang-glider, pratica aquele pára-quedismo em que evolucionam em queda livre antes de abrirem o pára-quedas, pratica mergulho aquático autônomo… é um cientista brilhante, ajudou muito a decifrar a Mensagem e passará um bom bocado a discutir com todos os outros velhos. Não trabalhou em armas nucleares, pois não? Não quero mandar ninguém que tenha trabalhado em armas nucleares.
«Claro que a Arroway também é uma cientista brilhante. Dirigiu todo este Projeto Argus, conhece todos os pormenores da Mensagem e tem uma mente inquiridora. Toda a gente diz que os seus interesses são muito vastos. E daria uma imagem americana mais jovem.
Fez uma pausa.
— E você gosta dela, Ken. Não há nada de mal nisso. Eu também gosto dela. Mas às vezes destrambelha-se. Ouviu com cuidado o seu questionário?
— Julgo saber a que passagem se está a referir, senhora Presidente. Mas a Comissão Selecionadora estava a fazer-lhe perguntas havia quase oito horas, e por vezes ela irrita-se com o que considera perguntas estúpidas. O Drumlin também é assim. Talvez ela tenha aprendido com ele. Foi sua aluna durante algum tempo, como sabe.
— Sim, ele também disse algumas coisas idiotas. Olhe, parece que está aqui tudo gravado para nós neste VCR. Primeiro o questionário da Arroway e depois o de Drumlin. Carregue no botão de ligar, Ken.
No écran da televisão via-se Ellie a ser entrevistada no seu gabinete do Projeto Argus. Ele conseguiu mesmo distinguir o bocado de papel já amarelecido com a citação de Kafka. No fim de contas, tomando todas as coisas em consideração, talvez Ellie fosse mais feliz se tivesse recebido apenas silêncio das estrelas. Tinha vincos à volta da boca e papos debaixo dos olhos. Viam-se também dois sulcos verticais, que não eram habituais, na sua fronte, mesmo por cima do nariz. Em vídeotape, Ellie parecia terrivelmente fatigada e Der Heer sentiu uma punhalada de culpa.
— … que penso da «crise populacional do mundo»? — dizia Ellie. — Quer saber se sou contra ou a favor? Acha que se trata de uma pergunta-chave que me vão fazer em Vega e quer ter a certeza de que dou a resposta certa? Muito bem. É por causa do excesso de população que sou a favor da homossexualidade e do clero celibatário. Um clero celibatário é uma idéia particularmente boa, porque tem tendência para suprimir qualquer propensão hereditária para o fanatismo.
Ellie aguardou de rosto inexpressivo, gelado mesmo, a pergunta seguinte. A presidente carregara no botão de «pausa».
— Admito que algumas das perguntas possam não ter sido as melhores declarou. — Mas não queremos numa posição tão proeminente num projeto com implicações internacionais verdadeiramente positivas alguém que se revele um racista parvo. Neste assunto queremos o mundo em desenvolvimento do nosso lado. Tivemos uma boa razão para fazer aquela pergunta. Não acha que a resposta dela demonstra uma certa… falta de tato? A sua doutora Arroway é um bocado chica-esperta. Agora dê uma vista de olhos ao Drumlin.
De laço azul às pintinhas, Drumlin parecia bronzeado e muito em forma.
— Sim, eu sei que todos nós temos emoções — dizia —, mas tenhamos em consideração o que são exatamente as emoções. São motivações para comportamento adaptativo vindas de um tempo em que éramos demasiado estúpidos para compreender as coisas. Mas eu compreendo que, se uma matilha de hienas vem direta a mim de presas arreganhadas, me esperam problemas. Não preciso de alguns centímetros cúbicos de adrenalina para me ajudarem a compreender a situação. Consigo até perceber que talvez fosse importante para eu dar um contributo genético qualquer à próxima geração. Não preciso realmente de testosterona na minha corrente sanguínea para me ajudar nisso. Tem a certeza de que um ser extraterrestre muito avançado em contraste conosco estará sobrecarregado com emoções? Sei que há quem me considere demasiado frio, demasiado reservado Mas, se quiserem compreender realmente os extraterrestres, mandar-me-ão a mim. Sou mais parecido com eles do que qualquer outra pessoa que possam encontrar.
— Mas que alternativa! — exclamou a presidente. Uma é ateia, o outro já julga que ele próprio é de Vega. Por que temos de mandar cientistas? Por que não podemos mandar alguém… normal? Trata-se apenas de uma pergunta retórica — apressou-se a acrescentar. — Sei por que motivo temos de mandar cientistas. A Mensagem é acerca de ciência e está escrita em linguagem científica. Ciência é uma coisa que sabemos que compartilhamos com os seres de Vega. Não, estas são, porém, boas razões, Ken. Não me esqueço delas.
— Ela não é ateia. É agnóstica. Tem um espírito aberto. Não está limitada por um dogma. É inteligente, é tenaz e é muito profissional. O âmbito do seu conhecimento é deveras vasto. É exatamente a pessoa de que precisamos nesta situação.
— Ken, gosto do seu empenho em defender a integridade deste projeto. Mas há muito medo lá fora. Não julgue que não sei quanto as pessoas já tiveram de engolir. Mais de metade daquelas com quem falo acham que não temos nada que construir esta coisa. Se não há possibilidade nenhuma de arrepiar caminho, querem que enviemos alguém que seja absolutamente seguro. A Arroway pode ser todas as coisas que você diz, mas segura não é. Estou a ser muito pressionada pelo Hill, pelos Earth-Firsters, pela minha própria Comissão Nacional e pelas igrejas. Suponho que ela impressionou o Palmer Joss naquele encontro na Califórnia, mas conseguiu enfurecer Billy Jo Rankin. Ele telefonou-me ontem e disse: «Senhora Presidente» — não consegue disfarçar o desagrado com que diz «senhora» —, «Senhora Presidente», disse-me, «aquela Máquina vai voar direto a Deus ou ao Diabo. Seja qual deles for, será melhor a senhora enviar um cristão autêntico.» Tentou servir-se do seu relacionamento com Palmer Joss para me pressionar, com os diabos! Não creio que haja alguma dúvida de que estava a fazer-se para ir ele próprio. O Drumlin será muito mais aceitável para alguém como Rankin do que a Arroway.
«Reconheço que o Drumlin é um tipo frio, insensível. Mas é digno de confiança, patriota, fixe. Tem credenciais científicas impecáveis. E quer ir. Não, tem de ser o Drumlin. O melhor que posso oferecer é escolhê-la como reserva.
— Posso dizer-lhe isso?
— Não podemos informar a Arroway antes do Drumlin, pois não? Comunico-lhe, Ken, assim que for tomada uma decisão definitiva e tivermos informado o Drumlin… Oh, Ken, anime-se! Não quer que ela fique aqui, na Terra?
Passava das seis horas quando Ellie terminou os seus esclarecimentos à «Equipe Tigre» do Departamento de Estado que servia de suporte aos negociadores americanos em Paris. Der Heer prometera telefonar-lhe assim que a reunião para a escolha dos tripulantes acabasse. Queria que ela soubesse por ele, e não por qualquer outra pessoa, se tinha sido escolhida ou não. Sabia que fora insuficientemente deferente para com as pessoas encarregadas dos interrogatórios e que podia perder por essa razão, entre uma dúzia de outras. No entanto, achava que talvez ainda houvesse uma probabilidade.
Esperava-a uma mensagem no hotel — não um impresso cor-de-rosa do gênero «Enquanto esteve ausente…» preenchido pelo recepcionista, mas uma carta fechada e sem selo, entregue pessoalmente. Dizia: «Encontre-se comigo no Museu Nacional de Ciência e Tecnologia às oito horas desta noite. Palmer Joss.»
Nenhum cumprimento, nenhumas explicações, nenhuma agenda, nenhum sinceramente seu, pensou ela. Este é realmente um homem de fé. O papel da carta era do próprio hotel e não havia nenhum endereço do remetente. Ele devia ter passado por ali de tarde, sabendo — o que ela achava perfeitamente possível —, por intermédio do próprio secretário de Estado, que Ellie estava na cidade e esperando encontrá-la. Tinha sido um dia estafante e ficou aborrecida por ter de roubar algum tempo à tarefa de transformar a Mensagem num todo coerente. Apesar de uma parte dela sentir relutância em ir, tomou ducha, mudou de roupa, comprou um pacote de cajus e decorridos três quartos de hora estava num táxi.
Faltava cerca de uma hora para o encerramento e o museu estava quase deserto. Havia enormes máquinas escuras arrumadas em todos os cantos de um grande salão de entrada. Estava ali o orgulho das indústrias do calçado, têxtil e carvoeira do século XIX. Um órgão a vapor da Exposição de 1876 tocava uma música alegre, parecia-lhe que originariamente escrita para metais, para um grupo de turistas da África Ocidental. Joss não estava à vista. Ellie reprimiu o impulso de girar nos calcanhares e ir-se embora.
Se tivesses de encontrar Palmer Joss neste museu, pensou, e as únicas coisas de que jamais tivesses falado com ele fossem religião e a Mensagem, onde o procurarias? Era um pouco como o problema da seleção de freqüências da SETI: nunca recebemos uma mensagem de uma civilização avançada e temos de decidir em que freqüências esses seres — acerca dos quais não sabemos virtualmente nada, nem sequer se existem — resolveram transmitir. Tem de envolver qualquer conhecimento que nós e eles compartilhemos. Nós e eles sabemos com certeza qual a espécie de átomo mais abundante no universo e a única radiofreqüência em que caracteristicamente absorve e emite. Tinha sido essa a lógica pela qual a linha de hidrogênio neutro de mil quatrocentos e vinte megahertz fora incluída em todas as explorações iniciais da SETI. Qual seria ali o equivalente? O telefone de Alexandre Graham Bell? O telégrafo? O TSF de Marconi?… Claro!
— Este museu tem um pêndulo de Foucault? — perguntou ao guarda.
O bater dos seus saltos ecoava no chão de mármore enquanto ela se dirigia para a rotunda. Joss estava encostado ao gradeamento, a olhar para uma representação em mosaico dos pontos cardeais. Havia pequenas marcas horárias verticais, umas direitas e outras obviamente derrubadas durante o dia pelo pêndulo. Por volta das sete da tarde alguém parara a sua oscilação e ele estava agora imóvel. Estavam completamente sós. Joss ouvira-a aproximar-se durante pelo menos um minuto, e não dissera nada.
— Chegou à conclusão de que a oração pode fazer parar um pêndulo? — perguntou Ellie, a sorrir.
— Isso seria abusar da fé.
— Não vejo por quê. Converteria uma quantidade de gente. É bastante fácil para Deus fazê-lo e, se a memória não me falha, você fala com Ele regularmente… Não se trata disso, pois não? Quer realmente pôr à prova a minha fé na física dos osciladores harmônicos? Muito bem.
Uma parte dela estava estupefata por Joss a submeter àquela prova, mas, por outro lado, sentia-se decidida a dar boa conta de si. Deixou a mala escorregar-lhe do ombro e descalçou os sapatos. Ele saltou, com um movimento gracioso, o gradeamento de segurança de latão e ajudou-a a passar para o outro lado. Desceram a vertente de mosaico, meio a andar, meio a escorregar, até pararem ao lado do pêndulo. Tinha um revestimento preto-baço e ela perguntou-se se seria feito de aço ou de chumbo.
— Terá de me dar uma ajuda — disse Ellie.
Conseguiu passar facilmente os braços à volta do pêndulo e, juntos, empurraram-no até ficar inclinado, a formar um bom ângulo com a vertical e nivelado com a cara dela. Joss observava-a atentamente. Não lhe perguntou se estava certa, absteve-se de a advertir do perigo de cair para a frente, não lhe recomendou que desse ao pêndulo um componente horizontal de velocidade quando o largasse. Atrás dela havia um bom metro ou metro e meio de chão plano, antes de começar a inclinar-se para cima e se transformar numa parede circunferencial. Se mantivesse a serenidade, disse a si mesma, aquilo ia ser canja.
Largou. O pêndulo afastou-se dela.
O tempo de duração da oscilação de um pêndulo simples, pensou um pouco tonta, é 27r, raiz quadrada de C sobre g, sendo C o comprimento do pêndulo e g a aceleração devida à gravidade. Em conseqüência de atrito na chumaceira, o pêndulo nunca pode ultrapassar, no regresso, a sua posição primitiva. Tudo quanto tenho de fazer é não cambalear para a frente, recordou a si própria.
Perto do gradeamento oposto, o pêndulo afrouxou e parou. Invertendo a trajetória, desatou subitamente a avançar muito mais depressa do que ela calculara. À medida que se inclinava na sua direção, o seu tamanho aumentou alarmantemente. Era enorme e estava quase em cima dela. Ellie soltou um ofego abafado.
— Recuei — disse, decepcionada, quando o pêndulo se afastou dela.
— Só um bocadinho pequeníssimo.
— Não, eu recuei.
— Você acredita. Você acredita na ciência. Existe apenas um niquinho de dúvida.
— Não, não se trata disso. Foi um milhão de anos de inteligência a lutar contra mil milhões de anos de instinto. É por isso que o seu trabalho é muito mais fácil do que o meu.
— Nesta questão, o nosso trabalho é o mesmo. Agora é a minha vez — disse, e agarrou desequilibradamente o pêndulo no ponto mais alto da sua trajetória.
— Mas nós não estamos a pôr à prova a sua crença na conservação da energia.
Ele sorriu e tentou firmar os pés.
— Que estão a fazer aí em baixo? — perguntou uma voz. — São doidos? — Um guarda do museu, numa ronda para se certificar de que todos os visitantes sairiam até à hora do encerramento, vira-se perante o espetáculo inesperado de um homem, uma mulher, um fosso e um pêndulo num recesso do cavernoso edifício onde não havia mais nada.
— Oh, não há novidade, senhor guarda — tranqüilizou-o Joss, bem-humorado. — Estamos apenas a pôr à prova a nossa fé.
— Não podem fazer isso na Smithsonian Institution — respondeu o homem. — Isto é um museu.
A rir, Joss e Ellie restituíram com dificuldade o pêndulo a uma posição quase estacionária e subiram pela inclinada parede de mosaico.
— Deve ser permitido pela Primeira Emenda — observou ela.
— Ou pelo Primeiro Mandamento — redargüiu ele.
Ellie enfiou os sapatos, pôs a mala ao ombro e, de cabeça levantada, saiu com Joss e o guarda da rotunda. Sem se identificarem e sem serem reconhecidos, conseguiram convencer o homem a não os prender. Mas foram conduzidos à saída do museu por uma falange coesa de pessoal uniformizado, porventura receoso de que Ellie e Joss fossem capazes de se infiltrar no órgão a vapor à procura de um deus esquivo.
A rua estava deserta. Caminharam em silêncio ao longo do Mall. A noite estava clara e Ellie distinguiu Lira no horizonte.
— Além, aquela brilhante. É Vega — disse.
Ele olhou a estrela fixamente durante muito tempo.
— Aquela decifração foi uma realização brilhante — disse por fim.
— Oh, que tolice! Foi banal. Tratava-se da mensagem mais fácil que uma civilização avançada poderia imaginar. Teria sido uma autêntica vergonha se não tivéssemos sido capazes de a entender.
— Já reparei que não aceita elogios de bom grado. Mas não, esta é uma daquelas descobertas que mudam o futuro. Pelo menos as nossas esperanças no futuro. É como o fogo, ou a escrita, ou a agricultura. Ou a Anunciação.
Fitou de novo Vega.
— Se conseguisse um lugar naquela Máquina, se pudesse viajar nela para o seu remetente, que pensa que veria?
— A evolução é um processo estocástico. Há pura e simplesmente demasiadas possibilidades para que se possam fazer predições razoáveis acerca do que poderá ser a vida noutro lado. Se tivesse visto a Terra antes da origem da vida, teria previsto a existência de um «atydid»[16] ou de uma girafa?
— Sei a resposta a essa pergunta. Suponho que você imagina que nós nos limitamos a inventar estas coisas, que as lemos em qualquer livro ou ouvimos nalguma tenda de orações. Mas não é assim. Eu tenho conhecimento certo, positivo, resultante da minha própria experiência direta. Não posso ser mais claro do que isto. Vi Deus cara a cara.
Parecia não haver dúvidas quanto à profundidade do seu empenhamento.
— Conte-me.
E ele contou.
— Muito bem — disse ela, por fim —, esteve clinicamente morto, depois reviveu e lembra-se de ter subido através de uma escuridão para uma luz brilhante. Viu uma radiância com forma humana, que tomou por Deus. Mas não houve nada na experiência que lhe dissesse que a radiância fez o universo ou ditou a lei moral. A experiência é uma experiência. De que foi profundamente abalado por ela, não restam dúvidas. Mas existem outras explicações possíveis.
— Tais como?
— Bem, como nascer. Nascer é subir através de um túnel comprido e escuro para uma luz brilhante. Não esqueça como é brilhante: o bebê passou nove meses na escuridão. Nascer é o primeiro encontro com a luz. Imagine como se sentiria espantado e intimidado no seu primeiro contato com a cor, ou a luz e a sombra, ou o rosto humano — que está provavelmente pré-programado para reconhecer. Talvez, se quase morremos, o odômetro retroceda a zero durante um momento. Compreenda, não insisto nesta explicação. Trata-se apenas de uma de muitas possibilidades. Estou a sugerir que pode ter interpretado mal a experiência.
— Não viu o que eu vi.
Voltou a olhar para a luz fria, trêmula e azul-branca de Vega e depois virou-se para ela:
— Nunca se sente… perdida no seu universo? Como sabe o que fazer, como comportar-se, se não há Deus? É tudo uma questão de obedecer à lei ou ser preso?
— Não está preocupado com perder-se, Palmer. Está preocupado com não ser fulcral, não ser a razão porque o universo foi criado. Há ordem suficiente no meu universo. Gravitação, eletromagnetismo, mecânica quântica, superunificação, tudo isso implica leis. E, quanto a comportamento, por que não podemos imaginar o que é do nosso melhor interesse, como espécie?
— Essa é uma visão generosa e nobre do mundo, sem dúvida, e eu seria o último a negar que existe bondade no coração humano: Mas quanta crueldade não foi cometida quando não existia o amor de Deus?
— E quanta crueldade quando havia? Savonarola e Torquemada amavam Deus, ou assim diziam. A sua religião parte do princípio de que as pessoas são crianças e precisam de um papão para se comportarem bem. Vocês querem que as pessoas acreditem em Deus para obedecerem à lei e o único modo que lhes ocorre: uma severa força policial secular e a ameaça do castigo de um deus que tudo vê para compensar tudo quanto escapa aos olhos da polícia. Avaliam muito por baixo dos seres humanos.
«Palmer, você pensa que, se não tive a sua experiência religiosa, não posso apreciar a magnificência do seu deus. Mas trata-se precisamente do contrário. Eu escuzo-o e penso: o deus dele é demasiado pequeno! Um mísero planeta, uns poucos milhares de anos… isso dificilmente merece a atenção de uma divindade menor, quanto mais do Criador do universo.
— Está a confundir-me com outro pregador qualquer. Aquele museu era território do Irmão Rankin. Eu estou preparado para um universo com milhares de milhões de anos de idade. Digo apenas que os cientistas não o provaram.
— E eu digo que você não compreendeu as provas. Como pode ser benéfico para as pessoas se a sabedoria convencional, as «verdades» religiosas, são uma mentira? Quando acreditar realmente que as pessoas podem ser adultas, pregará um sermão diferente.
Seguiu-se um breve silêncio, pontuado apenas pelo eco dos seus passos.
— Peço desculpa se fui um pouco contundente demais. Acontece-me de vez em quando.
— Dou-lhe a minha palavra, doutora Arroway, de que refletirei cuidadosamente no que disse esta noite. Suscitou algumas questões para as quais preciso de resposta. Mas, no mesmo espírito, permita que lhe faça algumas perguntas. De acordo?
Ela acenou afirmativamente e ele prosseguiu:
— Pense na sensação que causa a percepção, na sensação que causa neste momento. Causa a sensação de milhares de milhões de minúsculos átomos a debaterem-se para ocupar o seu lugar? E, para além da engrenagem biológica, onde, na ciência, pode uma criança aprender o que é o amor? Aqui tem…
O beeper de Ellie soou. Provavelmente era Ken com a notícia por que esperava. Se era, fora uma reunião muito longa para ele. Mas talvez, apesar disso, as notícias fossem boas. Olhou para as letras e para os números que se formavam no cristal líquido: o número do telefone do escritório de Ken. Não havia cabinas telefônicas à vista, mas, decorridos poucos minutos, conseguiram arranjar um táxi.
— Lamento ter de me ir embora tão subitamente — desculpou-se Ellie. — Gostei da nossa conversa e pensarei muito a sério nas suas perguntas… Queria fazer mais uma, não queria?
— Queria. O que existe nas normas da ciência que impeça um cientista de fazer mal?