Tomo III As Pedras dos Albos

Novos caminhos

Farodin alisou a nuca de seu cavalo para acalmá-lo. O animal estava tão inquieto quanto ele. Desconfiado, o elfo olhou para dentro da escuridão. Nuramon descrevera precisamente a ele e a Mandred o que os esperaria. Mas Farodin não estava contando que isso teria tanto efeito sobre os seus nervos.

Tudo estava sinistramente calmo. O tempo todo ele tinha a sensação de que algo lá fora estava à espreita. Mas o que seria capaz de sobreviver no nada?

Com cautela, ele prestava atenção para não sair da trilha estreita de luz pulsante que cortava a escuridão sem fim. Era impossível dizer o que o aguardava além da trilha. Seria o caminho algo como uma ponte estreita sobre um abismo?

Depois de poucos passos, eles chegaram a um ponto onde quatro trilhas de luz se entrecortavam. Uma estrela alba. Nuramon, que ia à frente, deteve-se por um momento. Então desviou para um caminho de luz avermelhado e fez um sinal para o seguirem.

Farodin e Mandred entreolharam-se, aflitos. Não havia possibilidade de se orientar ali. Era necessário conhecer a trama de trilhas iluminadas, ou então estariam perdidos, sem qualquer esperança de voltar.

Novamente deram poucos passos, mas que no mundo dos humanos poderiam ser centenas de milhas. Na estrela alba seguinte, cruzavam-se seis trilhas. Uma sétima cortava verticalmente a estrela de caminhos. Nuramon pareceu inquieto.

Farodin olhou ao seu redor. Ali flutuavam finos véus de névoa na escuridão. Teria ouvido um barulho? Um som raspante como o de garras? Bobagem!

De repente, um arco de luz formou-se à sua frente. Nuramon conduziu seu cavalo através dele. Farodin sinalizou a Mandred que fosse antes dele. Depois que o jarl desapareceu, o guerreiro elfo também deixou as estranhas trilhas entre os mundos.

Estavam novamente sob uma ampla abóboda. O chão era guarnecido de um mosaico colorido, que mostrava um sol se levantando e sete grous que voavam para longe do sol em diferentes direções do céu. Nas paredes ao redor viam-se imagens de um banquete de centauros, faunos, elfos, anões e outros filhos de albos. Mas os rostos das figuras estavam arranhados ou borrados de ferrugem. Velas queimadas tinham deixado poças rasas de cera.

A mão de Farodin tateou em busca da espada. Ele conhecia aquele lugar. Ficava embaixo da mansão de Sem-la, a elfa que, disfarçada de viúva de um comerciante, vigiava a única grande estrela que levava de Iskendria à biblioteca dos filhos de albos.

— O que está acontecendo? — perguntou Farodin. — Por que você não nos levou diretamente à biblioteca? Lá também poderíamos ter abrigado os cavalos no alojamento dos centauros.

Nuramon parecia perturbado.

— O portal. Ele está diferente. Nele há uma… — E hesitando um pouco: — Uma barreira.

Farodin expirou devagar.

— Uma barreira? Está de brincadeira?

— Não. Mas esse feitiço de proteção não é como o da ilha de Noroelle. Ele é... — Encolhendo os ombros desamparado: — Diferente.

Mandred grunhiu.

— Aqui tem algo de diferente. Apontou para os símbolos no chão. — Parecem bruxarias ruins. O que pode ter acontecido neste lugar?

— Não temos de nos preocupar com isso — retrucou Farodin, áspero. — Você consegue abrir o portal, Nuramon?

— Acho que sim.

Uma batida soou.

Antes que Farodin pudesse detê-lo, Mandred puxou seu machado e subiu com três grandes passos a rampa que levava para fora da cobertura abobadada.

— Maldito cabeça-quente! — praguejou Farodin. E, voltando-se para Nuramon: — Veja se consegue abrir o portal! Vou buscá-lo de volta.

Farodin subiu a rampa caminhando. Seguiu por várias pequenas salas subterrâneas, até de repente ouvir um grito ressoar.

Foi junto aos porões de estoque que encontrou Mandred. Ele agarrara um homem franzino de barba por fazer que vinha pela esquina. No chão havia um lampião a óleo de chama trêmula. Cacos de ânforas de vidro grosso jaziam por toda parte. Ao lado do lampião havia uma pequena tigela com lentilhas. O homem gemia, tentando se soltar de Mandred, mas era indefeso diante da força do guerreiro do norte.

— Um saqueador — esclareceu Mandred com desprezo. — Ele estava prestes a roubar Sem-la. Eu o apanhei bem na hora em que quebrava uma das ânforas.

— Por favor, não me matem — suplicou o prisioneiro de Mandred em valético, a língua falada na costa de Iskendria a Terakis. — Meus filhos estão morrendo de fome. Não quero nada disso para mim.

— Ora, ele está implorando misericórdia? — perguntou Mandred, que claramente não entendera sequer uma palavra.

— Olhe você mesmo para ele! — retrucou Farodin, colérico. — As faces encovadas. As pernas magricelas. Ele me disse que seus filhos estão passando fome.

Mandred pigarreou baixo e soltou seu prisioneiro.

— O que está acontecendo na cidade? — perguntou Farodin.

O homem olhou-os surpreso, mas não ousou perguntar por que estavam tão desinformados.

— Os sacerdotes brancos querem acabar com Balbar. Estão sitiando a cidade há mais de três anos. Eles vieram pelo mar para matar o nosso Deus. Desde que o portão a oeste caiu, há três luas, eles avançam de bairro em bairro. Mas os guardas do templo sempre os fazem recuar com o fogo sagrado de Balbar.

— Tjured? — perguntou Farodin, admirado.

— Um bastardo miserável! Seus sacerdotes dizem que só existe um deus. Segundo eles, também teríamos feito negócios com filhos de demônios. Eles são totalmente loucos! Tão loucos que simplesmente não entendem que não conseguirão vencer.

— Mas você está dizendo que eles já tomaram algumas partes da cidade — retrucou Farodin, direto ao ponto.

— Partes. — Foi a ressalva do homem esguio. — Ninguém consegue tomar Iskendria totalmente. O fogo de Balbar já incendiou a esquadra deles duas vezes. Estão morrendo aos milhares. — De súbito, começou a soluçar. — Desde que eles tomaram o porto, não recebemos mais provisões. Já nem há mais ratos para comer. Se ao menos esses malditos cavaleiros-sacerdotes reconhecessem que não se pode conquistar Iskendria... Balbar é forte demais. Agora estamos fazendo sacrifícios para ele dez vezes por dia. Ele afogará os inimigos em seu próprio sangue!

Farodin lembrou-se da menina que daquela vez foi queimada na palma da mão do deus. Dez crianças por dia! Que tipo de cidade é essa? Ele não lamentaria se Iskendria perecesse.

— Vocês são amigos da senhora Al-beles? — O humano olhou na direção do estoque de ânforas. — Eu fiz isso pelos meus filhos. Sempre sobram algumas ervilhas ou feijões no fundo das ânforas grandes. Elas nunca ficam totalmente vazias. — E baixando o olhar: — A não ser que sejam quebradas.

Farodin ouviu dizer que Sem-la já mudara de papel várias vezes, e também se passara por sua própria sobrinha para poder continuar à frente da casa. Como uma elfa que jamais envelhecia, mais ou menos de vinte em vinte anos ela era obrigada a assumir disfarces como esses. Farodin não tinha dúvidas de que essa tal Al-beles era a mesma elfa que ele conhecera como Sem-la.

— O que aconteceu no porão abobadado? — perguntou Farodin.

— Quando o bairro foi invadido, alguns monges vieram para cá. Acho que também estavam no porão. Dizem que estavam procurando demônios. Eles são loucos!

— Vamos indo, Mandred — disse Farodin em fiordlandês. — Precisamos saber se há risco de sermos perturbados ou se Nuramon conseguirá fazer seu feitiço em paz.

— Sinto muito pelos seus filhos — replicou Mandred com pesar. — Ele puxou uma de suas largas pulseiras de prata e deu-a de presente ao homem. — Eu me precipitei.

Farodin não sentia compaixão pelo saqueador. Hoje ele se preocupava com seus filhos de forma altruísta. Mas provavelmente se sentiria honrado quando amanhã os sacerdotes exigissem uma de suas filhas para queimá-la em praça pública.

O elfo subiu a escada apressado e adentrou o amplo pátio da mansão. Sobre ele se estendia um céu estrelado vermelho-sangue. O ar estava repleto de fumaça sufocante. Eles atravessaram o salão principal e se apressaram para o terraço na parte traseira da casa. A mansão ficava sobre uma colina baixa, de forma que tinham uma boa vista da cidade.

— Por Deus! — gritou Mandred. — Que incêndio é esse!

O porto estava inteiro em chamas. Até mesmo a água parecia queimar. Todos os grandes armazéns ao redor haviam desabado e as enormes gruas de madeira, desaparecido. Algo bem distante a oeste atirava bolas brancas de fogo sobre um dos subúrbios da cidade. Farodin observou guerreiros vestidos de branco avançando em grupos densos pelas ruas estreitas, tentando desesperadamente desviar dos tiros de fogo.

— É preciso queimar a carne que apodreceu. — A voz do saqueador soou atrás deles. O homem magro saiu para o terraço. Seus olhos brilhavam febris. — Os guardas do templo estão queimando os bairros que foram perdidos. — Acrescentou, rindo: — Iskendria não pode ser tomada! Os sacerdotes de branco morrerão todos. — Apontou para o porto lá embaixo: — A esquadra deles já está em chamas há dois dias. Os guardas do templo conduziram o fogo de Balbar pelos canais até chegar à água do porto, e então o acenderam. Todos esses sacerdotes queimarão, assim como o seu maldito... — Interrompeu a frase no meio e apontou para a rua que conduzia para cima, de onde vinham as esferas: — Eles estão voltando.

Um grupo de guerreiros trajando sobrevestes brancas de guerra escoltava vários monges de hábitos azul-marinho. Cantando solenemente, eles se dirigiam diretamente à mansão.

— Vocês foram bons comigo — disse o homem, apressado. — Por isso aconselho que sumam rápido. Vocês têm uma aparência estranha, e aqueles ali matam todos que parecem estranhos.

— O que o sujeito está dizendo?

— Que não devemos esperar muito da hospitalidade da cidade. Venha, vamos voltar até Nuramon.

O jarl alisou a lâmina do machado.

— Aqueles poucos homens ali embaixo não o estão deixando com medo, estão?

— Se dois exércitos claramente comandados por loucos vão se aniquilar, então eu vou fazer o que puder para não estar no caminho, Mandred. Nós não temos nada a ver com a guerra deles. Vamos tratar de ir embora daqui!

O guerreiro murmurou algo incompreensível por entre a barba e deixou o terraço. Nuramon já os esperava no porão abobadado. Um arco dourado de luz subia para o ar no meio do mosaico. O elfo sorriu.

— Não foi difícil quebrar a barreira. O feitiço de proteção tinha uma estrutura estranha. Como se não tivesse sido criado para manter filhos de albos longe dele.

Farodin agarrou as rédeas de seu garanhão sem prestar mais atenção nas explicações do companheiro.

O sorriso de Nuramon desapareceu.

— Há algo de errado?

— Nós só precisamos partir rápido.

Decidido, Farodin rumou para dentro da luz. Ficou ofuscado por um instante, piscou algumas vezes e, assim que recuperou a visão, deu de cara com uma besta engatilhada.

— Não atirem! — soou uma voz rouca. — São elfos!

— Liuvar! — gritou alguém diferente.

Farodin abaixou-se por reflexo e agarrou a espada. A estrela alba estava cercada de vultos estranhos: dois guardiões do saber com seus hábitos vermelhos, segurando espadas em riste; alguns gnomos com bestas e um centauro branco, que Farodin reconheceu ser Chiron. O gallabaal de pedra também estava entre os peculiares vigilantes.

Nuramon e Mandred vieram pelo portal com seus cavalos.

Com um rangido, o gallabaal deu um passo em direção ao filho de humanos. Um dos gnomos mirou o largo peito de Mandred com sua besta.

— Liuvar! Paz! — gritou o centauro. — Eu conheço os três. O humano é um inútil presunçoso, mas eles não são inimigos.

— O que está acontecendo aqui? — quis saber Nuramon.

— Suponho que vocês possam responder melhor a essa pergunta — retrucou Chiron com ar de desprezo. — O que está acontecendo no mundo dos humanos?

Farodin contou rapidamente sobre o encontro com o saqueador e a cidade em chamas. Quando terminou, os vigilantes entreolharam-se, desnorteados.

Chiron pigarreou baixo.

— Vocês devem ter dado um salto no tempo quando atravessaram o portal. Há mais de cem anos Iskendria não é nada além de ruínas. — Ele fez uma pausa para dar chance de os três compreenderem o que ouviram e então prosseguiu com sua explicação: — Os monges de Tjured ainda não desistiram da sua intenção de quebrar a barreira para a biblioteca. Eles continuam ocupando a estrela alba e lá ergueram uma das suas torres de templos. Assim eles impedem que os filhos de albos cheguem até nós por esse caminho. Vocês são os primeiros visitantes aqui em anos. — Curvou-se numa saudação formal e disse, por fim: — Eu lhes dou as boas-vindas em nome dos guardiões do saber.

— Mas eles realmente representam algum perigo? — perguntou Nuramon.

A cauda de Chiron encolheu-se, inquieta.

— Sim, representam. O ódio cego por todos os filhos de albos é o que os impele. A pergunta não é se eles chegarão até aqui, ao nosso refúgio no Mundo Partido, mas quando chegarão. Nenhum de nós está enganando a si próprio no que diz respeito a esse perigo. — Falava repleto de amargura, e então abriu os braços num gesto patético: — A biblioteca agonizante está à disposição de vocês. Até para você, filho de humanos. Sejam bem-vindos!

A opala de fogo

Nuramon entrou na sala em que o gnomo Builax o recebera havia mais de cinquenta anos — conforme sua noção de tempo. Mas, por causa de seus conhecimentos insuficientes, ao entrar na biblioteca eles saltaram ao menos cem anos, provavelmente até mais; então o encontro com o gnomo havia sido há ainda mais tempo. Todas as estantes e livros ainda estavam lá, e das pedras de barin emanava a mesma luz branda. Só Builax não era visto em lugar nenhum. No nicho entre as paredes de estantes onde o gnomo daquela vez guardara a sua espada Nuramon encontrou livros, materiais de escrita e até mesmo uma pequena faca. Mas a poeira sobre eles mostrava que ninguém estivera ali havia muito tempo.

Um pote virado de tinta atraiu em especial os olhos do elfo. A tinta havia se espalhado sobre a mesa e estava seca há muito tempo. Tudo ali dava a impressão de que Builax pegara somente o mais importante, simplesmente deixando o restante para trás. Teria o gnomo precisado fugir?

Nuramon foi até a 23ª estante e escalou as escadas. Ao alcançar a que procurava, retornou o sentimento que se apoderara dele da primeira vez que esteve ali. Na época, estava seguindo a pista de Yulivee, como se ela fosse sua confidente, assim como Noroelle era a confidente de Obilee.

Ele apanhou o livro e pôs-se novamente a descer. Enquanto percorria os degraus, refletia sobre os últimos acontecimentos. O ataque à estrela dos albos o inquietava. Conseguiriam os sacerdotes de Tjured avançar até mesmo para dentro da biblioteca? Até então parecia que não, mas os seus ataques contra a estrela dos albos estavam causando danos também ali, no Mundo Partido.

Mais uma vez, Nuramon deixou o olhar vaguear pela sala. Era lamentável que nem Builax nem Reilif estivessem ali. E, agora, quem mostraria o caminho aos ávidos pelo saber? Talvez Reilif pudesse ser encontrado em algum outro lugar da biblioteca. Se não havia mais ninguém ali que pudesse dar informações sobre os livros, a enorme biblioteca era quase inútil para os visitantes.

Nuramon deixou o salão e meditou sobre onde deveria iniciar sua pesquisa sobre as pedras dos albos. Farodin louvara a sua intuição e lhe propusera que buscasse as anotações por conta própria, enquanto ele próprio falava com os guardiões do saber.

Nuramon entrou em uma das salas e deixou o livro de Yulivee sobre uma mesa. Nas paredes, nas divisões em formato de losango das estantes, havia pergaminhos empilhados. Pegou um deles e o abriu. Mal lera as primeiras linhas, suspirou. Era uma árvore genealógica de centauros.

Ele foi até outra estante e apanhou outro rolo. O texto tratava dos feitos heroicos de um humano que defendera um portal para a Terra dos Albos com todas as forças. Não mencionava detalhes sobre os portais. Presumiu estar na pista certa. Cada cultura tinha os seus mitos e a sua própria concepção sobre o início dos mundos. Essas eram as histórias nas quais ele deveria descobrir indicações ocultas.

Após horas de busca, encontrara uma única pista. Em uma crônica, constava que Emerelle teria usado a sua pedra alba para criar um importante portal marítimo entre o mundo dos homens e Dailos, na Terra dos Albos. Dizia: Oh, se os antigos não tivessem partido, nós teríamos podido criar nossos próprios portais! Tudo que lia indicava que a rainha possuía a única pedra de albos que existia.

— Assim você nunca a encontrará — disse uma voz familiar. — O tempo é curto...

Nuramon deu meia-volta. Em pé, junto à porta, estava um vulto vestindo um casaco negro; seu capuz cobria a testa somente até a metade.

— Mestre Reilif! — gritou Nuramon.

— Sim, sou eu. E estou desapontado por você estar buscando conhecimento à maneira dos elfos.

Nuramon pôs o pergaminho que acabara de ler de volta na estante.

— É tão estranho assim um elfo agir dessa maneira? Mas você tem razão. Eu deveria pensar no meu companheiro humano e encurtar a busca.

— Não é o que quero dizer. Mas você deve saber que o fim deste lugar está próximo.

Incrédulo, Nuramon encarou o guardião do saber. Até então, o perigo não lhe parecera tão grande.

— Os humanos destruirão os portais sem saber o que estão fazendo?

— O que os humanos sabem e com qual intenção eles estão agindo não cabe a mim prever. Só posso dizer que falta pouco para que esta biblioteca esteja perdida. Mas também qual sentido teria abrigar conhecimento, quando se está preso junto a ele e ninguém mais consegue chegar aqui?

— Nenhum — disse Nuramon em voz baixa.

— Então, para que ao menos você tenha algo de toda a sabedoria que este lugar abriga, eu o ajudarei. — Reilif sorriu solícito.

— Você já falou com Farodin?

— Não, Gengalos e os outros guardiões estão com ele. Eu só queria falar com você. — Reilif olhou para a mesa. — Estou vendo que você pegou o livro de Yulivee.

— Eu gostaria de lê-lo mais uma vez — disse Nuramon, e suas palavras soaram como um pedido de desculpas.

— Faz bem. Pode ficar com o livro.

— Como? Pensei...

— O conhecimento desta biblioteca desaparecerá, mesmo que os outros não vejam isso com tanta clareza quanto eu. Se este lugar perecerá, então ao menos um pouco do conhecimento destas salas deve ser salvo. Além disso, os livros não têm valor para mim e para os outros. Eu já os li. Agora são uma parte de mim.

— Por que vocês não abandonam este local e erguem uma nova biblioteca em algum outro lugar? — perguntou Nuramon, pensando na Terra dos Albos, onde os guardiões do saber certamente seriam recebidos de braços abertos.

— Nós fizemos o juramento de não deixar estas salas antes de todo o conhecimento reunido aqui ter sido por nós absorvido. Até agora, pensávamos que isso jamais aconteceria e que este lugar permaneceria para sempre como uma fonte borbulhante de sabedoria. Mas a fonte secou, pois nada de novo chega até nós. E como é assim, chegará o dia em que teremos em nós todos os tesouros destas salas. Então poderemos ir embora. Infelizmente somos muito lentos. Somente um de nós, que admitimos por necessidade, consegue ler mais rápido que todos. Caso consigamos adquirir o conhecimento desta biblioteca antes de o fim chegar, nós a deixaremos e retornaremos para a Terra dos Albos.

— Quanto tempo isso vai demorar?

— Pelo menos cem anos. Por todos os albos! Cem anos! Houve o tempo em que ambos de nós zombaríamos de um período curto assim. O que são cem anos? Temo, porém, que os humanos consigam chegar antes e arruinar tudo.

Nuramon conseguia entender o guardião. Se um juramento os atava, então precisavam correr o risco de, uma vez quebradas as conexões com o mundo dos humanos, viver ali enclausurados. Mas talvez fosse mais esperto quebrar o juramento para salvar ao menos uma parte daquele conhecimento incalculável. Emerelle certamente não os desprezaria se fossem até ela.

— Vamos andar um pouco — disse Reilif, saindo para o corredor.

Nuramon apanhou o livro de Yulivee da mesa e seguiu o guardião do saber.

— Você pode me ajudar a descobrir algo sobre as pedras dos albos?

Reilif riu baixinho.

— Na sua pergunta já se esconde uma hipótese forte: pode haver ainda mais pedras dos albos além da que Emerelle possui.

— E pode?

Reilif concordou dentro de seu capuz.

— Mas ninguém sabe onde elas estão, e eu tampouco sei onde é possível encontrar uma.

Nuramon ficou desapontado. Esperara mais de Reilif. Será que em todos os livros que ele lera realmente não havia nada sobre onde encontrar uma pedra alba?

— Não fique assim cabisbaixo ainda! De fato, eu não sei dizer onde encontrar uma delas, mas posso esclarecer sobre a sua utilidade. Ouça bem! Se você tiver uma pedra como essa, ela vai permitir passar de uma ponta de um mundo até outra. Com isso, você cria trilhas albas onde não havia nenhuma. Portanto, pode criar ou destruir estrelas albas e, por conseguinte, abrir e fechar portais. Em mãos erradas, pode ser um grande mal.

— Com elas também é possível quebrar barreiras mágicas?

— Claro.

Essa era a resposta que Nuramon esperava ouvir. Queria apenas usar uma pedra como essa para libertar sua amada.

Eles deixaram o corredor e começaram a subir uma escada. O guardião do conhecimento continuou:

— Aquele que quiser usar uma pedra alba precisa conhecer magia. Quanto mais quiser alcançar, mais difícil será dominar a força da pedra.

— Mas tem de ser possível encontrar a pista para uma pedra poderosa como essa! Sua força deve ofuscar tudo à sua volta — objetou Nuramon.

Pensou no castelo da rainha. Lá não se sentia nenhum rastro da pedra alba. Talvez Emerelle a tivesse envolvido com um feitiço para esconder a aura do seu poder.

— Você está enganado. Mal se percebe a força da pedra. Com certeza você a sentiria se eu a segurasse nas mãos aqui ao seu lado, mas, apesar da sua grandeza, você a perceberia somente como algo insignificante.

— Qual é a aparência dela?

Reilif calou-se e conduziu-o para dentro de um pequeno cômodo que começava na escada. Ali as pedras de barin brilhavam em um tom frio de verde. Havia armários até o teto. O guardião do conhecimento abriu um deles, tirou um grande volume e fez força para erguê-lo e colocá-lo no púlpito que havia no meio da sala. O livro estava fechado por duas fivelas, que Reilif abriu.

— Neste livro há a ilustração de uma pedra alba. Não é a de Emerelle e o seu portador já sucedeu os albos há muito tempo.

O capuz de Reilif escorregou sobre os olhos. Com um movimento rápido de mão, ele o jogou totalmente para trás, e Nuramon ficou surpreso ao ver orelhas de elfo despontando no meio do cabelo grisalho. Achara inesperado o velho elfo mostrar sua cabeça. Reilif pareceu não perceber sua admiração e buscou a página desejada.

A imagem da pedra ocupava uma folha inteira. Parecia lisa e de coloração cinza-escura. Cinco sulcos brancos atravessavam sua superfície. O desenho era simples, certamente nenhuma obra de mestre. Mas era suficiente para transmitir uma impressão da pedra.

Nuramon apontou para as cavidades na imagem.

— Que linhas são essas? — perguntou ele.

Reilif passou os dedos sobre o sulco da esquerda.

— Este é o mundo dos humanos. Ao seu lado há o mundo que agora está quebrado, que é onde estamos. A seguir vem a Terra dos Albos e, depois, o lar deles. — E tateando sobre a linha bem à direita: — E, por fim, isto é o que os elfos chamam de luar.

Nuramon admirou-se.

— Eu não posso acreditar.

— No que você não pode acreditar?

— Que os mundos que eu conheço simplesmente ficam assim, ao lado do lar dos albos e do luar.

— Não se deixe confundir por isso, Nuramon. Dizem que cada pedra alba é única. Cada uma delas deve contribuir para uma nova compreensão do mundo. Quanto à pedra de Emerelle, dizem que nela os sulcos ficam um sobre o outro.

— A quem esta pedra pertence? — perguntou Nuramon.

— A um dragão chamado Cheliach. Não sabemos muito sobre ele, somente que veio bem depois dos albos, quando os dragões perderam sua importância.

Nuramon ficou satisfeito. Era o começo com que estava contando.

— Agradeço por ter me mostrado essa imagem.

Reilif fechou o livro.

— Você poderá encontrar este volume aqui, caso queira mostrá-lo a seus companheiros. Vou deixá-lo sobre a mesa. Mas, para começar, você deve ver uma pessoa que o conhece e certamente vai gostar de revê-lo.

— E quem seria ela? — perguntou Nuramon, surpreso.

Mestre Reilif sorriu com vontade.

— O nome eu não posso dizer. Eu prometi. — E, apontando para a escada: — Siga os degraus até bem lá em cima! Em uma das salas nuas você encontrará esse alguém. — Os olhos cinzentos do velho elfo brilharam à luz das pedras de barin.

Hesitante, Nuramon deixou a sala. Subiu a escada respirando fundo. Parecia que o guardião do conhecimento havia lançado um feitiço sobre ele, tamanho o encanto que seus olhos exerceram. Qual poderia ser a história daquele elfo? Ele não se atreveria a perguntar. Além disso, no momento havia outra coisa ocupando seus pensamentos. Quem estaria esperando por ele lá em cima?

Quando chegou ao fim da escada, seguiu por um corredor amplo do qual saíam salas menores. Estavam vazias; lá não havia nem livros, nem estantes. Estava claro que o conhecimento da biblioteca ainda não havia crescido até aquele patamar e, pelas palavras de Reilif, isso nunca chegaria a acontecer. Surpreendeu-se ainda mais ao ver, em um corredor lateral, livros empilhados junto à parede, à esquerda e à direita.

Uma voz fraca ressoou pelo corredor. Nuramon a seguiu, espreitou pela abertura da porta e mal pôde acreditar em quem viu: em uma sala circular e de paredes nuas, sobre um trono de livros, estava sentado o dschinn. Estava tirando naquele instante um volume de uma pilha minuciosamente organizada à sua esquerda; lançou um olhar sobre suas páginas e jogou-o de forma desatenta sobre um monte à direita. O dschinn tinha cabelos brancos e vestia uma túnica da mesma cor, que o fazia parecer muito mais respeitável do que quando o encontrara em Valemas.

Mal adentrou a sala, o dschinn ergueu a cabeça:

— Ah, é você, Nuramon — disse ele, como se tivessem se visto havia pouco. Montou rapidamente uma pequena pilha com os livros espalhados ao redor, e apontou para ela. — Sente-se!

Assim que Nuramon se instalou, o dschinn lhe perguntou:

— Você seguiu o meu conselho daquela vez?

— Sim, e quero agradecer muito por ele. Foi de um valor inestimável.

Nuramon contou que, na época, seguiu a pista de Yulivee na biblioteca. E narrou sobre os anões e sobre Dareen.

— Estou vendo que você tem certa fixação por Yulivee. — O dschinn apontou para o livro que descansava sobre os joelhos de Nuramon.

— Reilif me deu. Talvez deva levá-lo a Valemas, para os libertos. Seu ódio por Emerelle certamente seria um pouco suavizado por estes escritos.

O dschinn fez uma cara aflita.

— Seria inútil levar o livro a Valemas. O oásis foi destruído.

— O quê? — perguntou Nuramon, comovido. — Como isso pôde acontecer?

— Os cavaleiros brancos do norte, que cavalgam sob o estandarte de Tjured, aniquilaram os libertos.

— Como isso é possível? Como guerreiros humanos podem se mover tão fundo deserto adentro e derrotar guerreiros como os libertos de Valemas?

— Com magia. Alguns dos humanos aprenderam a arte do feitiço. Eles se uniram sob o estandarte de Tjured. São eles os comandantes, e sentem o poder das trilhas albas. Eles encontraram o anel de pedras no deserto e, como lá não havia nenhuma barreira protetora, conseguiram abrir o portal e a luta começou. Fugi, e quando retornei não encontrei nada além de ruínas e mortos. Não pouparam nem as crianças.

— Isso é inconcebível! Esses loucos destruirão tudo. — Nuramon hesitou: — Eles chegaram a atacar também a Terra dos Albos?

— Não se preocupe. Eu saí em nome dos libertos de Valemas para observar os humanos. Eu os vi se reunindo ao redor de uma estrela que levava à Terra dos Albos. Ali os sacerdotes rezaram e perguntaram ao seu deus se naquele lugar encontrariam a prosperidade. Então disseram palavras que não compreendi. Certamente era um feitiço. Percebi algo bater contra a estrela dos albos; ao mesmo tempo, os guerreiros sacaram suas espadas. Como nada aconteceu, foram embora. Eu vi as pegadas que eles deixaram. Com aquele feitiço, jamais chegariam à Terra dos Albos. Encontrei as mesmas pegadas após a destruição de Valemas, junto ao anel de pedras. Pelo visto, pelo menos por enquanto, os sacerdotes só conseguem abrir portais para o Mundo Partido.

— E por que eles pouparam a biblioteca até agora?

— Não pouparam. Já faz um tempo que eles estão tentando entrar aqui. Os guardiões do saber dizem que os humanos estão desnorteados porque por Iskendria passam muitas trilhas albas. Além disso, eles teriam dificuldades para quebrar os feitiços de proteção dos portais. Mas Reilif acha que, lentamente, os humanos estão derrubando as barreiras. A cada dia eles avançam consideravelmente. Então não resta muito mais tempo para absorver o conhecimento deste lugar e desaparecer daqui.

— É você que consegue adquirir o conhecimento tão rápido?

— Certamente.

— O que eles fizeram para persuadi-lo?

O dschinn fez uma careta aborrecida.

— Esses sujeitos me enrolaram. Eles conseguiram fazer com que eu pronunciasse o meu nome. Agora devo servi-los. Esses malandros são simplesmente espertos demais para mim. Fazer o quê! O que está acontecendo aqui me lembra a biblioteca dos dschinns. Pelo visto, o destino do grande saber é simplesmente perecer. — O olhar do dschinn perdeu-se no vazio. — Eu me pergunto onde tudo isso vai terminar.

Nuramon sacudiu a cabeça.

— Se o destino for generoso conosco, filhos de albos, os guerreiros queimarão tudo o que há nestas salas. Mas, se jogar duro com a gente, aprenderão todas as línguas e desbravarão o conhecimento.

— Nós pensamos nisso. No instante em que os humanos se infiltrarem aqui, lançaremos um feitiço para destruir tudo que é guardado neste lugar. Nós também vamos desaparecer. O feitiço já foi feito. Só temos de pronunciar as últimas palavras e então tudo aqui será transformado em um enorme... — o dschinn interrompeu-se e olhou para a porta.

Nuramon seguiu o olhar do espírito e teve uma surpresa profunda com o que viu. Uma pequena menina elfa entrou na sala com uma pilha de livros nos braços. Devia ter cerca de oito anos, não mais que isso. A criança arregalou os olhos ao vê-lo e, com o susto, deixou os livros caírem.

O dschinn se levantou.

— Não precisa ter medo, pequena. Este é Nuramon, um amigo da Terra dos Albos.

A menina baixou os olhos para os livros. Com um solavanco, eles flutuaram e voltaram a se empilhar nas mãos dela. Nuramon ficou perplexo. Para a criança o feitiço pareceu ser somente um estalar de dedos. Ela aproximou-se e depositou a pilha ao lado do grande trono de livros.

— Venha cá! Cumprimente o nosso convidado! — disse o dschinn.

Com um sorriso tímido, a garota pôs-se ao lado do dschinn e deixou o espírito afagar seu cabelo castanho-escuro.

— Qual é o seu nome? — perguntou Nuramon.

— O que você quer dizer? — disse a pequena quase no mesmo tom de voz que o dschinn.

— Você não tem nome? — continuou Nuramon.

— Ah, entendi! Eles me chamam de elfinha ou criança.

Nuramon emudeceu. O dschinn sequer dera um nome a ela!

— Então, criança, leve estes livros de volta lá para baixo — recomendou o dschinn.

Ela fez uma careta insatisfeita e pôs-se a apanhar alguns volumes da pilha de livros já lidos. Sorriu para Nuramon mais uma vez e deixou o salão. Nuramon dirigiu-se ao dschinn:

— Como você foi capaz de não dar um nome a ela?

— Nomes só trazem problemas, eu já lhe disse. Eles só permitem que os outros tenham poder sobre você.

Nuramon apontou para a porta.

— Mas você fica mandando essa criança para lá e para cá como uma criada!

— Ei! Você não conhece a pequena. Ela é uma peste malvada. Agora mesmo ela só me ouviu porque você está aqui. Ela tem a cabeça tão dura que, perto dela, até a de um troll é delicada! Além disso, só a mandei embora por um motivo.

— Que seria?

— Ela não sabe nada sobre sua própria origem. Eu contei uma história a ela para protegê-la da verdade.

— E qual é a verdade? — perguntou Nuramon, mas logo prosseguindo com um gesto: — Eu já tenho ideia. A pequena vem de Valemas, não é?

— Sim. Talvez seja a última dos libertos.

Nuramon encarou o dschinn admirado.

— Como isso é possível? Eu pensei que ao menos cem anos tivessem se passado. Como ela ainda pode ser criança?

O dschinn riu.

— Depende justamente da força que as barreiras de proteção das estrelas dos albos têm, e de até onde a força da arte do feitiço vai. Vocês com certeza quiseram fazer milagres sem buscar o equilíbrio com a magia.

Nuramon compreendeu o que o dschinn queria dizer.

— Então vocês vieram para cá no tempo que nós perdemos ao atravessar o portal? Quer dizer, os veneradores de Tjured primeiro tomaram Iskendria e então...

— Valemas! E, com certeza, também destruíram outros lugares. É isso. A menina foi confiada a mim quando a batalha era iminente para Valemas. Hildachi, a mãe dela, era uma poderosa feiticeira e vidente. Ela disse que devíamos pôr as crianças em segurança. Mas como lá só havia poucas crianças e os guerreiros subestimavam o perigo, levei só a pequena embora. Hildachi me disse que deveria levá-la a um lugar seguro e trazê-la de volta mais tarde. Depois de encontrar Valemas destruída, vim com ela para cá. Isso foi há seis anos. Na época, a pequena mal sabia falar. Ensinei algumas línguas a ela, inclusive leitura e escrita. Além disso, ensinei um pouco de magia. Não a subestime! Como estou preso a este lugar enquanto os guardiões do conhecimento não quiserem deixá-lo, não posso colocá-la em segurança. Mas eu não queria que ela vivesse o risco que esta biblioteca corre. É possível que não consigamos cumprir nosso objetivo antes que os humanos consigam chegar.

Nuramon refletiu um pouco. Uma criança era a coisa que menos ajudaria na busca deles. Mas o dschinn tinha razão. Aquele não era lugar para uma criança elfa.

— Eu vou levá-la comigo. Mesmo que primeiro precise explicar aos meus companheiros e que isso certamente dificulte a nossa busca.

— Ouvi que estão procurando uma pedra alba.

— Você por acaso sabe alguma coisa a respeito?

— É claro. Mas tudo o que posso lhe dizer em minha grande sabedoria eu já transmiti.

— O que quer dizer com isso?

— O que estou dizendo — respondeu sorrindo. — De mim você não vai saber nada de novo.

O que o dschinn queria dizer ao afirmar que já tinha dito tudo sobre as pedras dos albos? Não havia dito nada! Nem hoje, nem daquela vez em Valemas. A conversa nunca havia sido sobre pedras dos albos.

— Continue pensando nisso com calma. Enquanto isso, eu vou ler.

O dschinn apanhou o livro que havia iniciado e começou a folheá-lo, devagar. Nuramon percebeu que os olhos do espírito moviam-se rápido. Ele não estava só folheando — estava lendo.

Nuramon refletiu sobre o que o dschinn dissera aquela vez em Valemas. Ele contara sobre o Mundo Partido e que era impossível viajar pela escuridão sem fim. Mas a conversa nunca havia sido sobre uma pedra. Ou havia?

— A opala de fogo! — soltou Nuramon.

O dschinn pôs o livro de lado.

— Você tem boa memória, Nuramon.

— Você se refere à opala de fogo que ficava na coroa perdida do marajá de Berseinischi? Ela é uma pedra alba?

Nuramon ainda se lembrava das palavras do dschinn. Ele perguntara se Nuramon acreditaria se ele dissesse que a opala era uma estrela alba que se movia... Depois de tudo que Reilif lhe contou sobre o poder das pedras albas, agora ele entendia o sentido oculto por trás das palavras do dschinn. Nuramon sacudiu a cabeça:

— A pedra alba dos dschinns! Isso combina com vocês. Esconder a pedra em um lugar tão visível, de que ninguém jamais suspeitaria!

— É que nós, espíritos, somos mesmo espertos. Mas veja, nem tanto assim. Pois nem suspeitamos que aquele imbecil do Elebal levaria a coroa consigo na sua tropa de conquista.

— Ainda mal consigo acreditar. Você está dizendo mesmo a verdade, não é?

O dschinn deu um sorriso zombeteiro.

— Eu menti para você daquela vez?

— Não, isso você não fez. Você até me disse onde devo começar a busca pela coroa. Em Drusna, o marajá Elebal perdeu a batalha decisiva, e foi lá que a coroa com a opala de fogo desapareceu. Só não entendi uma coisa: por que não procurou a coroa você mesmo? Você também estava preso a Valemas com seu nome?

— Não, não estava. Eu procurei a coroa, mas não consegui encontrá-la. Ou foi destruída, ou há um feitiço de proteção a cercando. Antes eu conseguia senti-la em qualquer lugar.

— Eu pensei que as pedras albas não podiam ser sentidas à distância.

— Está certo, mas nós pusemos um feitiço especial na pedra, que só nós, os dschinns, conhecemos; ele nos diz onde está a opala de fogo. Mas, como eu disse, o grito dela foi calado. E, de qualquer forma, não seria possível ouvi-lo além das fronteiras de um mundo.

Talvez Farodin pudesse ajudar. Seu feitiço de busca porventura poderia ajudar a descobrir a pista da coroa.

— Há um retrato da coroa?

— Sim, aqui nesta biblioteca. Quando estive aqui pela primeira vez, mandei pintá-la. Na época, ainda a procurava. Esperava descobrir alguma coisa aqui sobre o seu paradeiro. Venha, vou mostrar a pintura! — disse, levantando-se.

— Meu companheiro Farodin domina um feitiço de busca. Se mostrarmos a ele uma imagem da coroa e você contar a ele o que sabe sobre ela, pode ser que ele consiga rastreá-la. Caso a encontremos, temos permissão para usar a pedra também para os nossos propósitos?

— Se você encontrar a opala de fogo, os dschinns formarão fila para beijar os seus pés! Todos vão dizer os seus nomes e adivinhar qualquer desejo seu! Para dizer com todas as letras: sim, Nuramon!

A pequena elfa

Em seu quarto, Nuramon debruçou-se sobre o livro que o dschinn lhe dera e observou a coroa do marajá, pintada em cores brilhantes sobre pergaminho. Que obra-prima! Mal era possível acreditar que um humano podia usar aquela enorme criação na cabeça. A coroa parecia quase uma fortaleza dourada, coberta de pedras preciosas. A grande opala de fogo ocupava o centro e, ao redor dela, concentravam-se todas as demais pedras.

Com aquela ilustração, ele encontrara uma pista importante. Estava ansioso para saber o que seus dois companheiros diriam a respeito. De repente, ouviu um ruído que soava como um soluço. Fechou o livro e aproximou-se da porta. Alguém estava chorando ali! Abriu-a com cuidado e saiu para o corredor. A elfinha estava sentada, recostada na parede, e chorava. Ao lado dela havia uma bolsa e três livros.

— O que aconteceu? — perguntou Nuramon, agachando-se diante da pequena.

— Você sabe muito bem! — retrucou a pequena elfa, com os lábios trêmulos. Ela desviou o olhar para o chão, e então disse, entre soluços: — O dschinn já me contou tudo.

Nuramon sentou-se ao seu lado.

— Olhe para mim! — disse ele, em voz baixa.

Ela olhou-o no rosto. Seus olhos castanhos brilhavam.

— Agora você sabe de onde vem.

— Sim... O dschinn me disse onde eu nasci, quem foram meus pais e o que aconteceu com Valemas.

— Ele nunca havia contado nada antes? Nada mesmo?

— Ele sempre disse que eu era descendente de uma família ilustre e que um dia meus irmãos me pegariam e levariam para casa. Eu acreditei!

— Ele não mentiu para você. De certa forma, até disse a verdade.

A pequena elfa enxugou as lágrimas do rosto.

— Pensei que tinha uma família; uma mãe e um pai. Pensei que eles estariam esperando por mim em algum lugar. Pensei que tinha irmãos.

— É claro que dói descobrir que as coisas não são da forma como se imagina. Mas não é por isso que vai desistir dos seus sonhos. Se quer ter uma família, um dia pode acontecer que você encontre uma. — Nuramon lembrou-se da noite anterior à partida da Caçada dos Elfos e das palavras do oráculo que Emerelle lhe dera como conselho. — Você sabe o que a rainha me disse uma vez?

A pequena elfa fez que não com a cabeça.

— Ela me disse: “Escolha a sua própria família!”.

A garota ficou admirada.

— Quem disse isso foi a poderosa Emerelle?

— Exatamente. E essas palavras também podem ajudá-la. Mas primeiro você precisa escolher um nome.

Finalmente um sorriso estampou-se no rosto da elfa. Parecia até ter esquecido que estava chorando havia pouco.

— Um nome!

— Escolha bem!

— Mas por que você não faz isso? Olhe no meu rosto e diga que tipo de nome sou eu!

Sorrindo, Nuramon balançou a cabeça. Que tipo de nome sou eu! A pequena elfa via as coisas de forma muito particular. Ele se deixou levar e disse:

— Bem, talvez você seja uma Obilee…

— Gosto desse nome — opinou a garota.

— Espere! Ainda é um pouco brando. Além disso, eu já conheço uma elfa que se chama assim. Há um nome que soa parecido. — Nessa hora ficou claro para Nuramon o que estava procurando. Para aquela criança elfa só poderia haver um nome: — O que você acha de Yulivee?

A menina soltou os cabelos, e as mechas onduladas caíram sobre seus ombros.

— É um nome lindo — disse com voz aguda.

— Você com certeza já o ouviu antes, não é?

— Ainda não.

— Bem, foi uma elfa de nome Yulivee que liderou seu povo quando ele deixou a Terra dos Albos e fundou Valemas.

Nuramon contou à menina sobre a velha cidade de Valemas, na Terra dos Albos, e a cidade-oásis de mesmo nome na qual encontrou o dschinn.

— Mas o dschinn disse que o meu clã era o de Diliskar.

— Esse era o avô de Yulivee, fundador do clã. Se é assim, você é até parente dela.

— Então eu posso usar o nome dela?

— Mas é claro! É comum dar nomes aos recém-nascidos cujos antigos donos partiram para o luar.

— Então eu vou adotar esse.

— Boa escolha! Talvez você seja a última dos libertos de Valemas. Não poderia haver um nome melhor para você. Yulivee!

— Yu-li-vee! — repetiu a pequena elfa algumas vezes, marcando as sílabas de formas diferentes.

Num salto travesso, pôs-se de pé e gritou seu próprio nome. Então aproximou-se de Nuramon e olhou-o no rosto.

— De agora em diante quero viver aventuras ao seu lado.

— Mas assim você certamente não estará tão segura quanto na Terra dos Albos. Nós poderíamos levá-la até o portal de lá e, dali, alguém a levaria até a rainha.

Yulivee balançou a cabeça em negativa.

— Não, eu não quero. Prefiro ficar com você.

Nuramon apontou para a bolsa e os livros junto à parede.

— Aquele é o seu equipamento?

— Sim. Roupas e conhecimento. Não preciso de mais nada.

— Então pegue as suas coisas e traga-as para dentro do quarto!

Nuramon foi na frente; Yulivee cumpriu a ordem, e pôs os livros sobre a mesa. Nuramon sentou-se.

— Que livros são esses?

— Eles são meus!

— É claro — respondeu Nuramon. — Mas se você me disser que livros são, eu dou este livro aqui de presente para você — disse ele, pousando a mão sobre o desenho de Yulivee.

— São contos de fadas. Com eles eu aprendi muito sobre a Terra dos Albos. Meus preferidos são as lendas de Emerelle. Ela é muito sábia. Gostaria de conhecê-la.

Nuramon pensou no comportamento de Emerelle em relação a eles. Não combinava muito com a rainha dos elfos das lendas que ele tanto gostava de ouvir quando era criança.

— Então você pode me contar uma das lendas de Emerelle?

Yulivee sorriu para ele.

— Claro. Sabe que eu nunca contei nada assim para ninguém? Todos estavam simplesmente ocupados demais.

— Bem, eu tenho tempo — disse Nuramon.

A pequena Yulivee começou a narrar o conto de Emerelle e o dragão, no qual tantos guerreiros fracassaram. Estava chegando na parte da traição vergonhosa do dragão, quando Farodin e Mandred entraram. Mandred fez uma cara satisfeita, mas os traços de Farodin, em contrapartida, refletiam desconfiança e desaprovação.

A garota olhou rapidamente para os dois e continuou a sua narração.

— Então Emerelle voltou e deu o tesouro do dragão de presente para o clã de Terevoi, que mandara tantos guerreiros para enfrentá-lo. Mestre Alvias alegrou-se com o fato de a rainha estar em segurança. E assim termina a história.

Nuramon percebeu que Yulivee contou o final muito rápido. Fez carinho nos cabelos dela.

— Foi uma história muito bonita. Obrigado.

Levantou-se e disse:

— Agora eu gostaria de apresentar meus amigos. Este é Farodin. Ele é o melhor guerreiro da corte de Emerelle. — Farodin ergueu de leve os cantos da boca, esboçando um pálido sorriso. Mandred, por sua vez, sorriu satisfeito. — E este é Mandred Torgridson, jarl de Firnstayn. Um humano.

A garota, boquiaberta, levantou os olhos na direção de Mandred, como se ele fosse uma estátua magnífica a que só resta admirar.

— Gostaria de apresentar a vocês dois a última elfa de Valemas!

Farodin fez uma cara de espanto:

— Isso quer dizer que...

— Sim. Valemas não existe mais. — E, depois de contar rapiramente o que acontecera, acrescentou: — O dschinn salvou esta elfa, trazendo-a até aqui. Seu nome é Yulivee e, a partir de agora, ela é nossa companheira.

— Saudações — disse Farodin, sendo mais cortês do que amável.

— Ela nos acompanhará por um tempo — prosseguiu Nuramon. — Então a levarei para a Terra dos Albos.

— Mas eu não quero de modo algum ir para a Terra dos Albos — retrucou Yulivee. — Eu prefiro ficar com vocês. E vocês não podem fazer nada para me impedir — disse, cheia de si.

Mandred sorriu.

— A pequena parece já ter um plano. Gostei dela! Vamos deixá-la ficar conosco!

Farodin abanou a cabeça, reprovando a ideia.

— Mandred, ficar conosco é perigoso demais para uma criança. Imagine se nos depararmos com uma batalha.

— Aí eu fico invisível — disse Yulivee.

Mandred jogou a cabeça para trás e riu alto.

— Viu só? Ela já sabe o que fazer.

Farodin encarou-a, cético:

— Você consegue ficar invisível?

Yulivee fez um gesto de desdém.

— Isso é fácil.

Nuramon interferiu novamente:

— O dschinn ensinou algumas coisas a ela.

Farodin fitou a garota.

— Pois bem, então ela pode ficar conosco — disse por fim. E sorrindo apontou o dedo indicador desafiadoramente para Nuramon: — Você é responsável por ela!

— De acordo. Agora contem-me o que os guardiões do saber disseram a vocês.

Farodin concordou e começou o seu relato. Haviam se referido a dois livros importantes sobre a arte do feitiço de busca. Ele estava confiante em aperfeiçoar seu conhecimento nessa esfera da magia. Também tinham falado sobre as pedras albas e de como talvez houvesse alguém que tivesse usado uma nos últimos séculos para criar novas trilhas na rede dos albos. Uma nova trilha como essa fora sentida por eles quando visitaram a biblioteca pela primeira vez. Pelo visto, outros viajantes também repararam nelas. Elas tinham algo de estranho, que certamente se devia ao fato de terem sido traçadas de forma totalmente nova e então integradas a uma rede de caminhos de milênios de idade. De qualquer forma, sua existência era a prova de que existiam mais pedras albas além da de Emerelle.

Quando Farodin terminou, Nuramon contou sobre o encontro com Reilif. O perigo de que o guardião do conhecimento falara provocou caretas preocupadas em seus companheiros. Por fim, relatou as informações do dschinn a respeito da opala de fogo desaparecida.

— Mas como iremos nos apoderar da coroa? O que você está descrevendo mal nos ajuda a encontrar uma pista segura até ela — ponderou Farodin.

— Olhe isto! — Nuramon abriu o livro que o dschinn lhe dera e procurou a página que antes examinara. — Esta aqui é a coroa do marajá de Berseinischi.

Farodin observou a imagem e balançou a cabeça em sinal de aprovação, absorto em pensamentos.

— Essa é uma boa pista, Nuramon.

Perto da mesa, a pequena Yulivee ficou nas pontas dos pés para conseguir enxergar o livro.

— Mas que caminho vamos tomar? Vamos seguir a trilha alba mais nova e procurar quem criou esses caminhos ou vamos encontrar a opala de fogo? — perguntou ela.

— Você prestou bastante atenção. É justamente essa a pergunta — respondeu Nuramon.

— Acho que devemos procurar a opala de fogo — sugeriu Mandred. — É mais fácil encontrar uma coroa desaparecida e trazê-la conosco do que tentar tirar uma pedra alba de alguém.

Farodin fechou o livro.

— Mandred tem razão. Tenho certeza de que conseguirei encontrar essa coroa com o meu feitiço. Nós sabemos mais ou menos onde está e sabemos como é. Isso deve bastar! Podemos ficar com o livro?

— Sim — respondeu Nuramon.

— Então vamos partir em busca da pedra dos albos! — Era a primeira vez desde que deixaram a ilha de Noroelle que Farodin parecia estar novamente cheio de iniciativa.

Nuramon ficou aliviado. Lembrou-se da última vez que se despediram de Iskendria. Naquela ocasião, uma briga os separou. Agora, tudo era diferente. Eles partiriam como um grupo, unidos outra vez, e com uma pequena companheira ao seu lado.

Carta ao grande sacerdote

Estimado Pai Therdavan, rei da fé sobre a Terra, feito instrumento de Tjured tão sabiamente.


Atendendo ao vosso desejo, mando-vos notícias sobre os distúrbios em Angnos e no Mar Aegílico. Como em toda parte à qual chegastes com o propósito da missão, houve duas dificuldades.

A primeira é que as terras que são sagradas para nós foram profanadas por filhos de albos. Muitos deles lutam com unhas e dentes como aqueles que lutam por seu lar ou sua corte. Todavia, com nossa estratégia refletida e a abnegação de nossos cavaleiros, nunca perdemos uma luta. Só há poucos lugares que precisamos sitiar por mais tempo até irrompermos para o outro lado e libertarmos dos demoníacos filhos de albos o chão por nosso Deus a nós destinado. Que Tjured derrame maldições sobre os albos!

O segundo risco para os nossos propósitos são os pagãos — todos aqueles que louvam outros deuses. Graças a Tjured, o terrível culto a Balbar foi exterminado. Vossas visões correspondiam à realidade. Nas catacumbas de Iskendria encontramos o coração de pedra do culto. Balbar não era mais que um espírito de pedra despertado para a vida pelos filhos de albos.

O culto a Arkassa perdeu sua importância quando as pessoas tomaram conhecimento dos milagres de Tjured. Vossa decisão de fazer o alto escalão dos sacerdotes evacuar o sítio às estrelas dos albos, e em lugar disso mostrar ao povo de Angnos o poder de Tjured, varreu da posteridade o culto a Arkassa.

Só há um ponto que desperta a minha preocupação. Embora no momento não seja visto como um grande perigo, ele porventura pode tomar proporções até tornar-se um problema real. Recebi de muitos lugares ao redor do Mar Aegílico a notícia de que cavaleiros elfos estão desonrando as nossas casas de Deus. Somente ontem fui assolado pelo relato de que o templo em Zeilidos teria sido incendiado. Além disso, demos por falta de alguns dos navios que deveriam atravessar para Iskendria. Os sobreviventes narraram que elfos os teriam atacado. Por enquanto, são somente pequenas investidas, mas tal resistência, atualmente avaliada somente como diminuta, porventura pode resultar em uma grande rebelião.

Minha intenção com isso não é sustentar a afirmação de que as tropas da Terra dos Albos estão lentamente entrando em ação. Mas temo que os filhos de albos que vivem nas terras sagradas tenham descoberto que, cedo ou tarde, tencionamos avançar contra eles. Também não se pode excluir a possibilidade de que os grupos saqueadores de cavaleiros elfos sejam compostos de fugitivos de santuários libertos.

Por fim, gostaria de chamar vossa atenção para uma notícia de nossos espiões. Eles descobriram que os drusnenses estão de fato se preparando novamente para uma guerra, por presumirem que vós poderíeis fazer deles vosso próximo alvo. Vossa tentativa de engendrar uma nova rebelião em Angnos fracassou. Realmente há relatos sobre elfos que partiram de Angnos para Drusna, mas esses relatos não são confiáveis o bastante. Vós solicitáreis o meu aconselhamento, e eis o que proponho: deixemos os drusnenses prepararem sua guerra. Entrementes, fortaleceremos nossas posições nas montanhas de Angnos. Até agora, nós sempre atacamos e jamais perdemos. Foi uma resolução de grande sabedoria não nos aventurarmos nos bosques de Drusna, e em vez disso ordenar a retirada no tempo certo. Do contrário, teria ocorrido a nosso exército o mesmo que sucedeu um dia a São Romuald. Só poderemos derrotar os drusnenses destruindo o poder deles em nosso território. Então teremos todas as portas abertas. Deixemos que ataquem, e que nós sejamos os defensores. Eles caminharão pelas encostas rochosas até deitarem sangue. No que diz respeito aos nortistas da terra dos fiordes, não vejo nenhum perigo neles. São bárbaros sem juízo e não possuem aliados. Quando chegar a hora, a Terra dos Fiordes tombará diante de nós como frutos maduros caem de uma árvore…

Excerto de uma carta de Gilom von Selescar, principal da ordem, a Therdavan, Rei da Ordem e Sumo Sacerdote de Tjured

O pântano de drusna

Partindo de Iskendria, Nuramon e seus companheiros seguiram uma trilha alba conhecida até o oeste de Angnos, para dali viajar a Drusna por via terrestre. Durante o percurso, evitaram os humanos passando longe de aldeias, cidades e estradas ao atravessarem a serra. Por fim, avançaram até penetrar nos bosques de Drusna.

A floresta parecia se estender até o infinito. Raramente deparavam-se com clareiras. A região lembrava Nuramon dos bosques de Galvelun, por onde certa vez viajou, e de que ali também precisavam temer os lobos. Do dragão marrom que havia em Galvelun felizmente ainda não tinham visto nada. Mandred até afirmava que havia dragões no mundo dos humanos, mas Nuramon duvidava disso, principalmente porque as histórias do jarl soavam duvidosas demais.

Havia dias que estavam atravessando uma área do bosque que, pelo visto, um dia fora cenário de uma grande batalha. Encontraram elmos enferrujados e guarnições de escudos, assim como espadas e lanças. Junto a algumas rochas havia armaduras destroçadas e ossos humanos empilhados para formar horripilantes altares sacrificiais.

Farodin os guiava como de hábito, Yulivee era a única que seguia montada. Ela gostava de Felbion e parecia também ter caído nas graças do cavalo. Para ela, a viagem era uma aventura única. Fitava cada animal e cada planta com uma curiosidade que espantava até mesmo Nuramon.

— Quando vamos chegar? — repetiu a pergunta que com certeza já havia feito mais de cinquenta vezes naquele mesmo dia.

Mandred sorriu. Provavelmente se fazia a mesma pergunta. Afinal, Farodin dissera na tarde anterior que antes mesmo do pôr do sol chegariam ao lugar para onde seu feitiço o atraía. No entanto, quando o novo dia raiou, eles alcançaram uma área úmida da floresta que ficava entre dois grandes trechos de pântano.

Farodin ignorou a pergunta da criança. Foi Nuramon quem se dirigiu a ela, amável, porém firme:

— Vamos precisar de um dia a mais para cada vez que você perguntar.

A pequena calou-se.

— Pouco a pouco, esse lugar está ficando sinistro — resmungou Mandred. — Lobos, até aí tudo bem! Deles nós arrancamos o couro. Mas esse pântano desgraçado! Aqui vamos desaparecer todos em um buraco lamacento sem fim!

Farodin deu um suspiro. Deixava evidente que aos poucos estava perdendo a paciência. Apertou o passo para aumentar um pouco a distância entre ele e os demais.

— Se está preocupado, você deveria montar sua égua — disse Nuramon a Mandred em voz baixa. — Ela com certeza vai guiá-lo.

O jarl não o esperou repetir e subiu no animal.

Nuramon, por sua vez, correu até Farodin; queria perguntar-lhe o que havia de errado, pois até então o elfo jamais os conduzira por um caminho equivocado. Mas havia dias que algo parecia perturbá-lo. Talvez estivesse sentindo mais algum grão de areia nos arredores. Ou algo estivesse atrapalhando o feitiço de busca que usava para rastrear a coroa.

— O que está acontecendo, Farodin? — perguntou Nuramon.

— Eu não estava contando com o pântano. Além disso... — Olhou para trás de repente.

— O que foi?

O elfo acalmou-se. Então massageou a testa.

— Alguma coisa brilhou ali e atrapalhou o meu feitiço — disse, apontando para o pântano à direita. — Estou vendo o rastro ali atrás; ele segue adiante como a pista de um animal. Mas há algo de errado com ele. Não é claro o suficiente. E a todo momento tenho a sensação de que há um grão de areia em algum lugar daqui.

— Talvez ele esteja em algum buraco no pântano.

— Não, é quase como se o vento o estivesse carregando há dias pela floresta. Se eu não conhecesse bem isso tudo, diria que estamos sendo seguidos.

— Vou cuidar disso — respondeu Nuramon, retornando até Mandred e Yulivee.

Mandred fez um sinal com a cabeça, mas Yulivee mal reparou nele. Estava ocupada mantendo o punho perto dos olhos.

Nuramon foi tomado por uma suspeita. Caminhou até chegar ao lado de Felbion.

— O que você tem aí? — perguntou a Yulivee.

A menina baixou a mão, mas a manteve fechada.

— Nada — respondeu ela.

— Você tem sim alguma coisa na mão — disse Nuramon.

— É só um vaga-lume.

Nuramon não conseguiu fazer nada além de sorrir.

— Já tenho ideia de que vaga-lume é esse... — Voltou-se para o outro lado e chamou: — Farodin!

A pequena elfa fez um bico, como se estivesse pensando no que fazer quando Farodin se aproximasse deles.

— Abra a mão! — disse Nuramon a Yulivee.

A garota abriu a mão.

— Nada! — disse Mandred, sem pensar.

Nuramon, contudo, viu que lá havia um único grão de areia.

— Um vaga-lume bem pequeno — opinou ele.

Farodin pareceu ficar mais atônito que aborrecido.

— Você? Aquilo era você? — perguntou, quase sem acreditar no que via. — Você pegou algum grão de areia da minha garrafinha?

— Não, não — disse Yulivee rapidamente. — Eu não roubei nada.

— E de que outro jeito você o teria conseguido? — inquiriu Farodin seriamente.

— Você se lembra da noite em que se afastou porque sentiu um grão de areia? Eu também saí, e fui mais rápida que você.

— Ela é muito esperta — observou Farodin. — Ela nos conta uma história da qual só precisa se desculpar para esconder que fez algo pior.

— Eu não roubei nada — repetiu Yulivee. — Se você quiser pode contar de novo os seus grãos de areia.

— E como eu posso acreditar que você encontrou o grão de areia? Como você teria feito isso?

Yulivee deu um sorriso atrevido.

— Eu sei fazer mágica, você já se esqueceu?

Nuramon se intrometeu:

— Mas quem ensinou o feitiço de busca a você?

— Farodin! — respondeu Yulivee.

— Eu não fiz isso! — retrucou Farodin, agora enfurecido.

Nuramon repreendeu a pequena elfa com o olhar.

— Diga a verdade, Yulivee!

Mandred deu um tapinha carinhoso no ombro da menina.

— Eu acredito na pequena feiticeira.

Os olhos de Yulivee encheram-se de lágrimas.

— Desculpe. Aqui... — estendeu o grão de areia para Farodin, deixando-o rolar para a mão do elfo. Ele então apanhou a garrafinha e o deixou cair para dentro dela.

Lágrimas corriam pelas bochechas de Yulivee.

— Eu também queria encontrar alguma coisa. Foi só por isso que eu imitei o seu feitiço.

— Você consegue imitar feitiços? — perguntou Nuramon.

— Sim, e aí eu protegi o grão de areia do olhar de Farodin. Sinto muito mesmo!

— Pare de chorar, Yulivee — disse Farodin com voz mansa. — Sou eu quem precisa se desculpar. Foi uma injustiça ter te chamado de ladra.

— A pequena os faz parecer dois bobalhões! — Mandred caçoou dos amigos e virou-se novamente para Yulivee: — Só por isso vou deixá-la ir caçar comigo depois.

Logo a pequena elfa estava sorrindo de novo.

— Mesmo?

— Claro que só se Nuramon deixar.

— Posso? — perguntou ela. — Por favor, deixa!

— Tudo bem, mas você vai ficar sempre perto de Mandred — consentiu Nuramon.

Yulivee explodiu numa alegria efusiva.

Farodin e Nuramon seguiram caminhando, abanando a cabeça. Quando já não podiam mais ser ouvidos pelos outros dois, Farodin disse:

— A pequena leva jeito. Por todos os albos! Como é que ela consegue copiar um feitiço assim tão facilmente?

— Yulivee é filha de uma feiticeira. Seu nome era Hildachi, e ela descendia da linhagem de Diliskar; por isso ela é descendente direta da primeira Yulivee. A magia é forte no seu clã. Além disso, o dschinn a ensinou. Ele me alertou para não a subestimar.

— Ela seria uma boa aluna para Noroelle — disse Farodin, um pouco melancólico. — Se conseguirmos a coroa e pularmos para o portal que nos levará até ela, as pequenas mãos de Yulivee poderão ser de grande ajuda para nós.

— Você se esqueceu das dores? Eu não gostaria que uma criança passasse por um sofrimento como aquele. Quando tivermos a pedra alba, aí com prazer estarei pronto para esperar e deixar Yulivee decidir por ela mesma se vai ficar ao nosso lado nesse feitiço.

Farodin não respondeu; em vez disso, olhou adiante:

— Chegamos! Lá na frente! Deve ser do lado daquela faia.

Enquanto se aproximavam da árvore, Nuramon pensou como tudo poderia terminar rápido se encontrassem a coroa e se a opala de fogo ainda existisse. Eles aprenderiam a dominar a pedra e, finalmente, poderiam libertar Noroelle.

Eles chegaram à árvore, que ficava cercada de grama pálida, à margem de uma abertura no pântano.

— É aqui! — explicou Farodin, olhando para a água lamacenta. — Mas há algo de errado.

— Ela está aí dentro? — perguntou Mandred, apontando para o pântano. — Vamos pegar a minha corda! Só vamos precisar sortear quem é que vai se sujar.

— Eu! — gritou Yulivee.

— É o que você pensa! — Nuramon a repreendeu.

— Mas tanto faz, porque aí embaixo vocês não vão encontrar a opala de fogo — emendou a pequena elfa.

Nuramon sorriu.

— E como é que a nossa feiticeirinha precoce sabe disso?

Farodin tocou o braço de Nuramon.

— A menina tem razão. A coroa não está aqui.

— Como é? — perguntou Nuramon. — E que pista nós seguimos então?

— Mas que idiota eu fui!

Mandred se intrometeu:

— Alguém vai me explicar que merda é essa?

— Não sou capaz de explicar em palavras tão graciosas quanto as que encontrou para perguntar — começou Farodin. — Mas a coroa não está aqui! Aqui é... — Ergueu as mãos em um gesto de desespero. — Imagine que você coloque o seu machado na lama e tire-o de volta. Ficará uma marca nela. É parecido. A coroa ficou muito tempo neste pântano, e deixou uma marca indelével na estrutura mágica do mundo. Essa marca é tão forte que surgiu para mim quando fiz o feitiço de busca. — Farodin fechou rapidamente os olhos. — Há dois caminhos mágicos partindo deste lugar. Nós viemos por um deles, que está quase desvanecendo. Mas o outro ainda está fresco. — Apontou mais adiante: — Teremos de continuar seguindo essa pista para chegar à coroa.

— E por que os dschinns já não encontraram essa coroa há muito tempo, se ela deixa um rastro? — perguntou Yulivee.

Farodin sorriu.

— Talvez olhos de elfo consigam ver algumas coisas que permanecem ocultas até mesmo para os dschinns. Eles deveriam ter procurado ajuda para a sua busca.

Ele avançou um pouco e fez um sinal para que os outros o seguissem.

Nuramon pôs-se em marcha, certo de que ninguém mais além de Farodin teria sido capaz de guiá-los até ali, mesmo que o amigo não fizesse muito alarde sobre suas habilidades. Ele daria muito para ter a aptidão de Farodin. Tentara fazer esse feitiço por muito tempo, mas não tinha conseguido dominar nem mesmo os fundamentos. E surpreendia-o ainda mais a facilidade que Yulivee tinha para isso.

De repente, Farodin parou e apontou para uma rocha grande e coberta de hera que surgiu diante deles em uma clareira.

Foi preciso ainda um certo tempo para que Nuramon percebesse o que o lugar tinha de especial. Estava tão absorto em pensamentos que estivera cego para a magia alterada da floresta. Na clareira, cruzavam-se seis trilhas albas. Começou então o feitiço dos portais, mas sem querer criar um portal. Para ele, tratava-se apenas de observar as trilhas da estrela alba mais de perto. Logo estava totalmente em sintonia com o feitiço e espantou-se com o que viu. Todas as trilhas brilhavam em uma luz clara. Eram trilhas albas recém-criadas.

— O rastro da coroa termina aqui — disse Farodin, hesitante.

— Não! — gritou Nuramon, deixando a estrela desvanecer diante de seus olhos. Não podia ser verdade! Estiveram tão perto de encontrar a opala de fogo e agora a perderam? — Alguém deve ter apanhado a coroa, trazido-a até aqui e então usado a pedra para criar uma nova estrela.

— Tem mais uma coisa — respondeu Farodin, aflito. — A coroa, ou, para ser mais preciso, a opala de fogo deixou para trás um padrão mágico, criando um rastro que nós seguimos até aqui. Mas eu não encontro esse padrão nestas trilhas. Elas são diferentes.

— O que você quer dizer? — perguntou Nuramon.

— Essas trilhas albas não têm nada em comum com a opala da coroa. Eu consigo reconhecer com qual pedra alba uma trilha é traçada. Estas aqui são diferentes do padrão mágico da coroa como o fogo é diferente da água.

— Você tem certeza de que esta estrela não foi criada com a ajuda da coroa? — perguntou Nuramon.

— Sim — respondeu rapidamente Farodin.

— Então alguém veio até aqui com uma pedra alba, apanhou a coroa e desapareceu novamente. Pelo visto alguém coleciona pedras albas. Qual será o tamanho do poder que se encontra nessas mãos? Se essa pessoa tem consigo a opala de fogo, e com ela a biblioteca dos dschinns, então possui o saber do passado, do presente e do futuro. É isso? Será por isso que os sacerdotes de Tjured, do reino de Fargon, conseguem fazer mágica?

Mandred e Yulivee continuaram em silêncio à pergunta de Nuramon. Foi Farodin quem respondeu:

— Isso explicaria o motivo de eles saberem alguma coisa sobre as estrelas dos albos. Acho que não temos outra escolha além de seguir uma das trilhas.

— Posso escolher? — perguntou Yulivee mansamente.

— Qual delas você tomaria? — indagou Farodin.

A menina pensou um pouco e apontou para o leste.

— Fargon fica para lá, não é?

A face do inimigo

Nuramon deu um grito e desapareceu na escuridão. Antes que Farodin pudesse pular de volta, o chão sob ele partiu-se em espirais de luzes rodopiantes. Tinha a sensação de estar caindo. Os cavalos relinchavam em pânico. Yulivee também gritou. De repente, a escuridão recolheu-se de volta como uma cortina, abrindo a visão para um novo cenário.

Farodin agora estava de pé em uma sala alta, com seus companheiros reunidos ao redor dele. Soaram resmungos e gritos. O elfo olhou para cima. Estavam no interior de uma grande torre. Das paredes saíam galerias onde humanos se espremiam.

Um homem gordo de trajes brancos e esvoaçantes aproximou-se cuidadosamente de Farodin. Segurava no ar um pêndulo com uma esfera dourada. O suor aflorava em sua testa.

— Afaste-se de nós, cria do demônio! — gritou com voz trêmula. — Esta é a casa de Tjured e ele os queimará com sua ira!

Farodin segurou seu cavalo pelas rédeas. O grande animal dava coices e tentava morder o sacerdote.

— Calma, meu formoso — sussurrou o elfo. — Calma.

Farodin não fazia ideia do que os desviara da trilha dos albos e os arrastara até ali. Não queria aborrecimentos: só queria sair dali. Olhou rapidamente ao seu redor. O templo era rebocado de branco por dentro. Sobre uma pedra no altar, pendia um estandarte com uma árvore negra e morta num fundo branco. Farodin lembrou-se de já ter visto esse brasão com os cavaleiros da ordem que tomou Iskendria.

— Como é que esse saco de banha miserável conseguiu arrancar a gente da trilha dos albos? — perguntou Mandred em fiordlandês. — Ele é feiticeiro?

Agora o homem falava no idioma de Fargon e parecia que todos no templo conseguiam entendê-lo.

— Saia do meu caminho, seu balofo, ou sua cabeça vai beijar seus pés!

O sacerdote recuou assustado.

— Ajudem-me, irmãos e irmãs! Aniquilem esses rebentos do demônio! — Fez um sinal sobre o peito e começou a cantar: — Nenhum mal me atinge, pois eu sou filho de Tjured. Nenhuma agonia me aflige...

Os outros fiéis também se juntaram ao cântico. Um movimento começou nas galerias. Farodin ouviu passos próximos.

— Vamos embora daqui! — gritou o elfo.

Empurrou o sacerdote de lado e dirigiu-se ao portão que, aparentemente, era a saída do templo. Sobre as duas folhas da porta estava pendurada a imagem de um santo, pintada sobre madeira. Era grosseiramente executada, como a maioria dos trabalhos dos humanos. Os olhos eram grandes demais e o nariz parecia artificial, mas, ainda assim, a imagem tinha algo de familiar.

Uma faca atingiu com um ruído o chão ao lado de Farodin.

— Vamos matá-los! — gritou uma voz esganiçada de homem. — São filhos de demônios, que mataram São Guillaume, que veio para salvar todos nós!

Uma verdadeira chuva de objetos agora era lançada das galerias: gorros, bolsas pesadas de dinheiro, facas, sapatos. Um banco de madeira errou Yulivee por pouco. Farodin levava as mãos sobre a cabeça para se proteger, correndo em direção à entrada. Mandred mantinha-se a seu lado. Na frente da porta do templo, abriram-se duas pequenas portas à direita e à esquerda. Ali devia haver escadas que subiam para as galerias. Um homem imponente veio da porta esquerda. Mandred o derrubou com um único soco.

Farodin empurrou a porta do templo. Uma escada larga descia para uma praça pavimentada onde havia um mercado. Nuramon tinha tomado Yulivee nos braços e agora também chegava ao ar livre. Bem alto sobre eles soaram os sinos. Mandred segurava seu machado erguido de forma ameaçadora. Desceu a escada de costas ao lado de Farodin, que conduzia os cavalos, até chegar à praça. Ninguém ousava chegar perto do gigante de cabelos ruivos. Do templo, vinha uma gritaria de muitas vozes.

Os companheiros pularam sobre os cavalos. Nuramon apontou para a rua mais larga que partia da praça.

— Por ali!

Em um ritmo de quebrar o pescoço, os cavalos avançaram sobre o pavimento. Casas altas de madeira pintada ladeavam seu caminho. Havia poucos humanos nas ruas. Pelo visto, a cidade toda se reunira no templo.

Farodin olhou para trás. Os primeiros perseguidores já se arriscavam na praça. Com os punhos ameaçadoramente erguidos, rogavam pragas atrás deles. Na frente do gigantesco templo de Tjured, pareciam ridiculamente pequenos. Como uma torre redonda e cilíndrica, ele subia alto no céu atrás deles. Por fora também era caiado de branco. Seu telhado em cúpula brilhava claro na luz do sol, como se fosse guarnecido do mais puro ouro.

— Para lá! — gritou Mandred.

Havia refreado a égua e agora apontava para uma rua lateral, no fim da qual se via a entrada da cidade.

— Devagar — ordenou Nuramon. — Se corrermos até o portão, eles vão acabar fechando-o.

Farodin esforçava-se para manter seu cavalo agitado sob controle. Nuramon, que trazia Yulivee diante de si na sela, seguia cavalgando. De trás deles vinham os gritos dos furiosos visitantes do templo, aproximando-se lentamente. Nenhum dos cidadãos desarmados parecia querer mesmo alcançá-los.

À frente do portão, com as pernas afastadas, havia um homem de sobreveste branca.

— Quem são vocês? — gritou ainda a distância.

Farodin percebeu um movimento por trás dos balestreiros da torre do portão. deviam ser atiradores com suas bestas. Mais alguns passos e estariam a salvo, mas, assim que deixassem o portão para trás, poderiam ser alvejados pelas costas. Não podiam simplesmente atravessar, mesmo que fosse fácil desviar do único guarda. Eles teriam de enganar os sentinelas.

— Ali no templo, do outro lado, houve um tumulto — Farodin gritou para o guarda. — Estão precisando de todos os guerreiros!

— Um tumulto? — perguntou o homem, desconfiado. — Isso nunca aconteceu até hoje.

— Acredite em mim! Filhos de demônios infiltraram-se repentinamente no templo. Eu vi com meus próprios olhos. Não está ouvindo os gritos? Eles estão perseguindo os fiéis, empurrando-os para as ruas como se fossem gado!

O guerreiro encarou-o apertando os olhos e preparava-se para responder, quando uma tropa de fiéis surgiu no fim da viela. Estavam armados com clavas e garfos para feno.

— Lá vêm eles — disse Farodin. — Veja, estão possessos!

O guarda agarrou sua alabarda, que estava encostada ao lado do portão.

— Alarme! — gritou com toda a força, acenando para os homens escondidos atrás dos balestreiros. — Um tumulto!

— Salve a sua alma! — gritou Farodin.

Deu em seguida um sinal para seus companheiros, que avançaram e atravessaram o portão sem ninguém atirar nenhuma flecha por trás.

Fugiram por uma rua poeirenta que passava entre campos dourados de trigo. A oeste, a terra subia formando colinas suaves. Lá havia faixas largas de mata passando entre os campos verdes.

Depois de percorrer quase dois quilômetros, saíram da rua e cavalgaram cortando a mata. Um rebanho de ovelhas dispersou-se, balindo, para dar passagem aos cascos trovejantes dos cavalos. Por fim, chegaram a uma floresta. Só então pararam, sob a proteção da mata espessa.

Farodin olhou de volta para a cidade. Nas ruas via-se uma pequena tropa de cavaleiros. Eles cavalgaram juntos até o primeiro cruzamento e então se separaram, dissipando-se em todas as direções.

— Mensageiros — resmungou Mandred. — Logo todos os cavaleiros da ordem em um raio de cem milhas saberão que naquele maldito templo apareceram filhos de demônios. — E voltando-se para Nuramon: — Pelo machado de batalha de Norgrimm, o que foi que aconteceu? Por que de repente fomos parar naquele templo?

O elfo abriu os braços em um gesto de desamparo.

— Não sou capaz de explicar. Nós devíamos ter entrado em uma estrela alba para dali tomar outra trilha. Foi como se tivessem tirado o chão sob nossos pés. Eu pude sentir como se todas as trilhas da estrela dos albos tivessem morrido.

— Trilhas mortas? — perguntou Mandred. — Que loucura é essa?

— A magia é viva, filho de humanos — disse Farodin, entrando na conversa. — Você sente as trilhas pulsarem como se fossem as veias do mundo.

— Será que foi aquela casa estranha dos humanos? — perguntou Yulivee timidamente. — Ela era sinistra, mesmo sendo toda branca. Eu senti que tinha alguma coisa que me puxava, parecia querer roubar toda a minha magia. Talvez tenha sido aquela árvore morta, ou aquela pintura do homem de olhos grandes... Não sei direito.

— Sim, o homem da pintura. — Nuramon virou-se na sela e olhou para Farodin. — Algo na imagem chamou a sua atenção?

— Não. A não ser o fato de não ser uma obra de arte.

— Eu achei que o homem se parecia com Guillaume — disse Nuramon decididamente.

Farodin fez uma careta.

— Ridículo. Por que alguém manteria um quadro de Guillaume em um templo?

Mandred, no entanto, concordou com Nuramon.

— Você tem razão. Agora que você disse, pude ver que o sujeito se parecia mesmo com Guillaume.

— Quem é Guillaume? — perguntou Yulivee.

Nuramon contou-lhe sobre o devanthar enquanto cavalgavam lentamente mais para dentro da floresta.

— Então Guillaume era um humano que conseguia tirar a magia dos outros quando fazia feitiços? — perguntou Yulivee.

— Não era humano — corrigiu Farodin. — Ele era um ser híbrido de elfo e devanthar. Os humanos não dominam...

Ele se interrompeu. Isso já não era mais verdade! Os acontecimentos em Iskendria comprovavam que ao menos os monges do culto a Tjured já eram capazes de fazer feitiços.

— Sem mágica, os cavaleiros malignos não teriam chegado a Valemas — disse Yulivee. — No templo, senti como se alguém quisesse roubar a minha magia. Será que o espírito de Guillaume vive na pintura?

— Guillaume não era mau — Nuramon acalmou-a. — Lá com certeza não havia nenhum espírito.

— Mas alguma coisa queria roubar a minha magia — insistiu a pequena.

— Talvez tenha sido o lugar — retorquiu Mandred. — O próprio templo. Ele fica precisamente sobre a estrela dos albos, se é que eu entendi certo, Nuramon.

— Isso também pode ser por acaso. Os humanos gostam de construir seus templos onde as trilhas albas se cruzam.

Um arrepio gelado percorreu as costas de Farodin.

— E se eles destruírem as estrelas albas intencionalmente? Assim eles separariam este mundo da Terra dos Albos. Eles nos odeiam, e nos chamam de filhos de demônios. Não seria lógico que eles aspirassem fechar todos os portais para a Terra dos Albos? Pense bem... Eles avançaram para o Mundo Partido pelos portais, e estão aniquilando tudo por lá. E fecharam os portais para a Terra dos Albos. Vocês não perceberam ainda o plano que há por trás disso? Eles estão separando os mundos. E exterminando todos os que não seguem Tjured.

Nuramon ergueu as sobrancelhas e sorriu.

— Não consigo não me admirar com você, Farodin. Como é que justamente você de repente julga que os humanos são tão capazes assim? Você sempre desdenhou deles.

Mandred pigarreou.

— Nem todos, é verdade — retificou Nuramon. — Mas ainda há algo que se opõe a isso, Farodin. Alguém está tecendo novas trilhas albas e criando novas estrelas. Isso não condiz com o seu raciocínio.

As palavras soaram óbvias. Mas Farodin queria tanto que Nuramon tivesse razão! Contudo, também não queria ignorar aquela dúvida.

— Você conhece esta região?

Nuramon fez que sim com a cabeça.

— Então leve-nos à maior estrela alba próxima daqui. Vamos ver se lá também há um templo.

Perdidos para sempre?

Pela vidraça quebrada das ruínas do templo, Farodin mirou o fim da floresta. Ainda ontem estivera convencido de que tinha razão. No caminho pela terra das colinas, haviam encontrado uma pequena capela erguida sobre uma estrela dos albos menor. Somente três trilhas cruzavam-se ali, ou, melhor dizendo, haviam se cruzado um dia, pois o lugar perdera toda a sua magia.

Mandred chutou uma viga enegrecida de ferrugem, que caiu para o lado com um rangido:

— Já faz tempo. Este templo foi destruído pelo fogo faz pelo menos meio ano. Acho estranho que não o tenham erguido novamente.

— E por que deveriam? — retrucou Farodin, irritado. — No fim ele cumpriu a sua finalidade, ou não?

Ele olhou para Yulivee, que apertava os olhos.

— Está aqui de novo — disse ela, em voz baixa. — Exatamente como na outra casa branca. Alguma coisa quer roubar a minha magia. Está me puxando. Isso dói! — Arregalou os olhos e correu até o portal.

Mandred seguiu-a ao receber um sinal. Farodin não tinha sossego quando a pequena dava voltas sozinha por aí.

— Eu não sinto esses puxões — disse Nuramon, desconfiado.

— Mas você acredita nela?

Ele fez que sim com a cabeça.

— O instinto dela para a magia é mais refinado que o nosso. Disso não há dúvidas. Da mesma forma como não há dúvidas de que não há mais nenhum portal que leva à Terra dos Albos. Toda a magia deste lugar se acabou.

— E também não ajuda nada destruirmos este templo — constatou Farodin sobriamente. — Se a magia de um lugar um dia é tirada, não retorna mais. Ou estou enganado?

Nuramon ergueu as mãos, desamparado.

— Como podemos saber? Eu não compreendo o que está acontecendo aqui. Por que esses templos são construídos? E quem esteve aqui para destruir o templo? Por que o templo foi abandonado depois disso e não foi reerguido?

— Ao menos a última pergunta eu posso responder — retrucou Farodin friamente. — Este lugar fica no meio de uma região erma. Aqui não há nenhuma cidade, sequer uma aldeia. O templo foi construído simplesmente para destruir a estrela alba. E por isso não é necessário reerguê-lo. Cumpriu o seu objetivo.

— Talvez alguns sacerdotes procurem a solidão — objetou Nuramon. — Este lugar é maravilhoso.

Ele apontou através da janela estilhaçada para o pequeno lago lá embaixo.

— Não! Você não ouviu o que o sacerdote gordo disse? Nós somos filhos de demônios! Nós assassinamos São Guillaume, e assim privamos a humanidade inteira de sua redenção! — Farodin deu um riso amargo. — Distorcer a verdade mais que isso é impossível. Mas está claro para você o que isso significa para nós? Os sacerdotes já subjugaram vários reinos. Estão avançando até para dentro do Mundo Partido, caçando elfos e outros filhos de albos. Faz parte da crença deles querer nos ver mortos. E, se não conseguirem chegar até a Terra dos Albos, então eles destruirão cada um dos portais que encontrarem.

— Nós sabemos muito pouco para tirar conclusões como essas — retorquiu Nuramon. — Justamente você agora está seguindo o seu coração e não a razão! O que está acontecendo contigo, Farodin?

Era inacreditável! Pelo visto, Nuramon simplesmente não queria entender o que tudo aquilo significava.

— Nós somos imortais, Nuramon. Estamos acostumados a durar para sempre. Agora, porém, de repente o tempo está correndo de nós. Será que você está cego, já que não vê todo esse perigo? Eles destroem estrelas albas! O que vai acontecer se eles aniquilarem a estrela que leva até Noroelle? Ou, pior ainda, se eles passarem para o Mundo Partido e matarem Noroelle?

Nuramon franziu a testa. Então sacudiu a cabeça de forma decidida.

— Isso é loucura. Essa estrela alba fica quase no fim do mundo. Lá não há reinos para conquistar. Provavelmente, lá sequer vivem humanos. Por que os sacerdotes de Tjured se deslocariam até ela?

— Porque eles querem destruir todas as estrelas! Eles estão em guerra contra a Terra dos Albos, mesmo que não ponham o pé na nossa terra natal. No futuro, não poderemos mais nos dar ao luxo de usar portais inseguros. Olhe ao seu redor, Nuramon. Veja o que está acontecendo neste mundo! Há algumas centenas de anos um sacerdote foi assassinado e agora os seus seguidores loucos dominaram meio continente. Imagine se dermos um outro salto no tempo! O poder dos religiosos está crescendo cada vez mais rápido. Você pode realmente ter certeza de que a estrela que nos levará a Noroelle ainda existirá daqui a cem anos?

— Talvez você tenha razão — reconheceu Nuramon.

Farodin ficou profundamente aliviado por seu companheiro finalmente conseguir compreender sua preocupação.

— Nós devemos continuar em movimento. Tenho certeza de que os cavaleiros da ordem ainda não desistiram da busca por nós. Vamos espioná-los e então apanharemos a pedra alba e a coroa dos dschinns.

Nuramon empalideceu.

— A coroa! Eles saberão o que estamos planejando! A biblioteca dos dschinns abriga todo o saber, também sobre o futuro!

— Pode até ser — concordou Farodin serenamente. — Mas, pelo visto, os sacerdotes de Tjured são burros demais para desbravar esse conhecimento. Nós sequer teríamos sobrevivido ao salto para dentro do templo se eles soubessem que nós viríamos. Se fosse esse o caso, nas galerias haveria besteiros em vez de fiéis. Eles não fazem ideia do que vamos fazer. E ninguém que pensa de forma razoável imaginará que um grupinho ridículo como o nosso tentará roubar os maiores tesouros deles.

— Atacar uma montanha de trolls só com um companheiro não bastou para você? — Mandred o desafiou.

Farodin sorriu.

— Sempre é possível se superar.

Uma manhã em Fargon

A alvorada havia chegado, e os pássaros entoavam sua canção matinal. Nuramon e Farodin já estavam de pé, nos limites da mata onde acamparam para passar a noite. Dali tinham um bom panorama das terras vizinhas. Ao norte viam ao longe uma grande floresta, para o sul estendia-se a terra das colinas, esticando-se até um pouco antes de Felgeres, junto à costa. Mandred continuava roncando; Yulivee havia puxado a coberta sobre a cabeça. Aparentemente seria difícil acordá-la.

— Vamos deixar os dois dormirem mais um pouco — opinou Farodin. — Ontem foi um dia difícil. Eu já selei os cavalos. Não perderemos tempo.

A fuga dos cavaleiros da ordem os levara até o limite de suas forças. Tinham estado tão exaustos que Nuramon até cochilou um pouco durante o seu turno de guarda. Por sorte nada aconteceu, assim nenhum de seus companheiros percebeu.

Em Fargon não havia mais sossego para eles. Desde que viram o quadro de Guillaume na igreja, estava claro o porquê de os humanos detestarem tanto os filhos de albos. Tudo começara em Aniscans. Era culpa deles. Nuramon não conseguia se conformar que das suas boas intenções tivesse nascido todo aquele ódio. Já tinham ouvido histórias mentirosas naquela época, mas Nuramon nunca pensou ser possível que algo com consequências tão sérias resultasse delas. A rainha tinha razão: a falha deles em Aniscans foi a semente da qual brotou todo esse mal.

— O que faremos agora, Farodin? — perguntou Nuramon.

— Não podemos circular por aqui da forma como fazíamos antes. Por toda parte há guerreiros e toda essa hostilidade!

— Vamos nos arranjar — respondeu Farodin friamente, olhando para o sol que nascia. Você sabe que há pouquíssimas coisas que considero impossíveis. Mas, depois do que vimos ontem, já não tenho mais certeza.

— Você se refere às rondas?

— Sim.

De um esconderijo, os amigos haviam observado que os cavaleiros da ordem estavam parando os viajantes para verificar suas orelhas. E um homem foi preso por tê-las um pouco pontudas, mesmo sem qualquer semelhança com orelhas de elfos. O que tinha se tornado a fé a que um dia Guillaume se dedicara? Os sacerdotes de Tjured não curavam mais os humanos. Em vez disso, eles os torturavam.

— Você está preocupado com Yulivee — disse Farodin em voz baixa.

— Sim, mas também conosco —, Nuramon advertiu-o. —Todas essas novas trilhas dos albos me causam muito medo. Certamente não deve ser por acaso que todas interliguem as grandes cidades de Fargon.

— Você tem razão. Pelo visto, um humano está de posse de uma pedra alba e da coroa dos dschinns. Mesmo assim, por mais assustador que isso tudo seja para nós, é mais fácil tirar uma pedra alba de um humano que de um filho de albos. Eu estou confiante de que conseguiremos descobrir a pista da pedra.

— Mas você não se admira por não estar conseguindo encontrar o rastro da coroa?

Farodin sorriu, seguro de si.

— Se tivesse de adivinhar, diria que a coroa está na capital.

Nuramon sacudiu a cabeça.

— Algaunis é uma fortaleza. Você viu com seus próprios olhos.

— E que outra escolha nós temos? O que acha que devemos fazer?

— Podemos buscar aliados para nós. Você se lembra das histórias sobre os guerreiros elfos que lutaram em Angnos e nas Ilhas Aegílicas contra os devotos de Tjured?

— Sim, no fim das contas são só humanos. E como eles poderiam nos ajudar?

Nuramon deixou o olhar vaguear sobre a terra das colinas.

— Aqui também deve haver inimigos dos devotos de Tjured. Ninguém aceitará essa opressão para sempre. E a vida dos humanos é curta.

— Mas os humanos são fracos.

— Aí você se engana — retrucou Nuramon. — Eu estive em Firnstayn e os vi ansiando pela liberdade. Sempre haverá uma nova revolta para eles.

— Talvez seja assim em lugares como Firnstayn. Mas ficam tão longe de tudo isso aqui… Lembre-se de Iskendria e desse tal Balbar. Os moradores sacrificavam as suas próprias crianças. Tolos!

Nuramon lembrou com horror da primeira passagem deles por Iskendria.

— E lembre-se também de Aniscans! O que fizemos na época para ajudar Guillaume contra os guerreiros? E, por fim, eles até nos proclamaram os assassinos dele.

— Você está totalmente certo. Mas se alguém conseguisse acender uma pequena faísca dentro deles, então... — Ele parou. Ouvia um ruído que parecia um trovão distante.

— Eu também estou ouvindo — murmurou seu companheiro, olhando para as colinas do outro lado da campina.

Cavaleiros da ordem vestidos de branco avançaram sobre o cume de uma colina distante e desapareceram novamente do campo de visão. Deslocavam-se na direção deles.

Farodin não hesitou mais.

— Acorde os outros!

Em um piscar de olhos Nuramon estava ao lado de Mandred, sacudindo-o para que acordasse. O jarl despertou num pulo, e agarrou seu machado.

— Cavaleiros! Nós precisamos ir! — explicou Nuramon.

O firnstaynense levantou-se com um salto e, com toda a pressa, enfiou os restos do jantar nos alforjes da sela.

Nuramon cutucou Yulivee e levou um susto. O que seus dedos tocaram era duro demais para serem as costas da pequena elfa. Ele puxou a coberta. Ali havia somente os livros de Yulivee e sua bolsa.

— Olhe só, Nuramon! — gritou Farodin.

Nuramon ergueu-se rápido e caminhou até seu companheiro, enquanto Mandred se esforçava para erguer os alforjes sobre sua égua. Farodin apontou adiante.

Lá estava Yulivee, que havia percorrido a descida até chegar à campina. Dois vales de colinas ainda a separavam dos cavaleiros que se aproximavam rapidamente. Nuramon viu nitidamente a luz da manhã se refletir nas lanças deles. Voltou-se para Farodin:

— Vocês, fujam daqui agora! Esperem por nós no fim da floresta!

Nuramon pulou sobre a sela e saiu a galope.

Yulivee corria rápido, mas ainda estava a um bom trecho de distância da mata. Os cavaleiros seguiam em algum lugar entre as colinas. Só restava-lhe esperar que fosse ele o mais ligeiro. Nunca se perdoaria se algo ruim acontecesse à elfa.

Yulivee era consideravelmente veloz, mas quando os cavaleiros desceram galopando a vegetação da última colina, Nuramon soube que tinha poucas chances.

— Mais rápido, Felbion! — gritou ele.

Cerca de metade dos cavaleiros da ordem estavam armados com lanças, que agora apontavam de forma ameaçadora. Os outros seguravam espadas nas mãos. Como os cavaleiros que viram no dia anterior, esses vestiam longos trajes de malha de ferro e, sobre eles, sobrevestes brancas. Nos seus escudos destacava-se a árvore negra de Tjured, o carvalho em que Guillaume fora queimado. Esse símbolo não poderia marcar também o fim de Yulivee.

Felbion corria o mais rápido que podia. Estaria junto de Yulivee ainda antes dos cavaleiros. Ela mantinha-se corajosa e corria sem olhar para trás. Foi então que aconteceu! Yulivee caiu…

Nuramon sentiu Felbion correr ainda mais rápido, mesmo sem receber nenhum comando.

As pontas das lanças dos cavaleiros baixaram-se ainda mais.

“Levante”, pensou Nuramon, desesperado. E como se tivesse ouvido suas palavras, a pequena elfa ergueu-se num pulo. Mas cometeu o erro de olhar para trás e correr ao mesmo tempo, tropeçando novamente.

Felizmente, Nuramon já estava ao lado dela e estendeu a mão em sua direção. Yulivee pulou bem alto e agarrou o braço do elfo. Nuramon puxou-a para si na sela, mas ao olhar na direção dos inimigos, soube que não conseguiria mais virar Felbion a tempo. As lanças dos guerreiros apontavam para ele, e os espadachins mantinham suas lâminas em riste.

Precisava ao menos tentar. Queria dar a volta com Felbion, mas o cavalo simplesmente continuou correndo em linha reta, avançando contra os guerreiros. No primeiro instante, Nuramon não soube como aconteceu. Yulivee gritava de medo, agarrando com todas as forças a crina do equino.

O elfo ainda teve tempo de puxar a espada de Gaomee. Felbion relinchou, e os cavalos do inimigo deram uma guinada. Um golpe de lança partiu pela lateral. Nuramon abaixou-se, esquivando-se e, ao mesmo tempo, protegendo o corpo de Yulivee. A ponta da arma passou zunindo perto de sua cabeça, mas o cabo acertou-lhe um golpe duro na têmpora. Em seguida, uma investida de espada veio pela direita. Nuramon ainda conseguiu parar a lâmina. E então, conseguiu passar através do grupo de cavaleiros.

Enfiou sua arma de volta na bainha. Ali descobriu uma lâmina partida de espada, trespassada na sela.

— Yulivee! — gritou, tomado pelo medo.

A pequena não respondeu. Nuramon curvou-se. A menina tinha o rosto enterrado nas mãos; tremia de pavor.

Nuramon sacudiu-a pelos ombros.

Ela levantou os olhos e encarou-o.

— Ainda estamos vivos? — perguntou, com os olhos arregalados.

— Você está bem?

— Eu estou, mas você está com um galo horrível!

Nuramon respirou aliviado e tateou rapidamente a têmpora. Pelo visto, o cabo da lança causara-lhe alguns arranhões.

— Posso curá-lo?

Nuramon não chegou a se perguntar como ela aprendera esse feitiço; já sabia a resposta.

— Você pode fazer isso mais tarde — disse, olhando por cima dos ombros e vendo que os cavaleiros tinham dado meia-volta e agora os perseguiam.

Nuramon conduziu Felbion sobre a cadeia de colinas. O cavalo élfico subiu pela encosta com facilidade. Antes de descerem pelo outro lado, Nuramon olhou para trás e viu que os guerreiros humanos haviam perdido um pouco de terreno. Mal alcançou a depressão entre as colinas, guiou Felbion para oeste e começou a cavalgar nas sombras da serra comprida. Tornou a olhar para trás várias vezes por cima dos ombros, esperando ter despistado os cavaleiros.

Qual nada! Lá estavam eles. Nuramon imediatamente guiou Felbion para subir a colina de novo, e de lá retornar mais uma vez à campina. Ainda conseguiu ver os guerreiros repararem nele e cavalgarem sobre o cume para cortar seu caminho pelo meio. Mas Felbion novamente foi mais rápido. Logo Nuramon deixou o monte para trás, avançando na direção do bosque onde tinham montado seu acampamento noturno.

Os humanos perderam muito tempo na descida para a mata. Seus cavalos estavam esgotados da caçada a Yulivee e, no declive, não tinham tanta segurança nas passadas quanto Felbion. Quando os perseguidores finalmente chegaram ao prado, certamente já havia cerca de cem passos entre os elfos e eles.

Yulivee esticou-se e olhou por trás de Nuramon.

— Nós conseguimos!

Nuramon puxou a pequena elfa de volta para a sela.

— Não comemore cedo demais! — advertiu ele.

Estava certo de que os humanos jamais alcançariam Felbion, mas quem sabia quais perigos ainda teriam diante deles?

Passaram pela mata e continuaram na direção da grande floresta.

— Ali! — gritou Yulivee, apontando mais adiante.

No começo do bosque, Farodin e Mandred esperavam a cavalo, olhando na direção deles. Eles tinham esperado! Isso não parecia coisa de Farodin.

Por fim, os dois se puseram lentamente em movimento e desapareceram no bosque. Então deixaram Nuramon e Yulivee os alcançarem.

— Vocês estão feridos? — gritou Mandred.

— Não, não estamos! — respondeu Yulivee, antes de Nuramon poder dizer qualquer coisa.

— Bom trabalho, Nuramon! — reconheceu Farodin.

Nuramon ficou surpreso. Não estava acostumado a elogios vindos da boca do guerreiro elfo.

Cavalgaram em silêncio pela floresta. Embora seus cavalos mal deixassem marcas visíveis para olhos humanos, eles percorreram um trecho por um rio e até se arriscaram por uma pequena região pantanosa. Os cavalos encontravam por instinto o chão firme e os conduziam em segurança até a margem da floresta.

Ali pararam para descansar sob a proteção das árvores.

Mal Nuramon ergueu Yulivee do cavalo, a pequena já quis sair correndo para fazer reconhecimento dos arredores.

Nuramon agarrou sua mão e segurou-a firme:

— Pare! Não tão rápido! Nós ainda não terminamos.

Yulivee parou e fez uma expressão pesarosa.

— Eu sinto muito!

O elfo agachou-se diante dela e olhou-a nos olhos:

— Isso você diz sempre, Yulivee. E aí você faz de novo o que não deve. Quantas vezes nós já dissemos que você não pode sair do acampamento à noite? E você ainda me fez acreditar que estava ali deitada dormindo.

— Vou consertar isso — disse Yulivee, pondo a mão sobre a ferida na testa dele.

Fez uma careta por um instante e puxou a mão de volta.

Quando Nuramon tateou o ferimento, a pele estava lisa e o inchaço havia desaparecido. Não pôde conter um sorriso.

— Obrigado, Yulivee. Mas, por favor, fique no acampamento à noite!

Farodin intrometeu-se:

— Como você conseguiu escapar sem percebermos? — perguntou, curioso.

Para Nuramon, foi como ser pego em flagrante. Ele cochilara durante a noite, e a pequena devia ter se aproveitado.

— Fiquei invisível e, quando ele estava de pé na beira da floresta, escapei.

Foi uma boa desculpa, mas o olhar de cumplicidade que Yulivee lançara a Nuramon a estragou.

Farodin não disse nada; sua expressão de quem sabia de tudo disse mais que palavras.

— E por que você se arriscou daquele jeito? — Nuramon quis saber.

— Vocês perguntaram o que os fargonenses estavam planejando. Aí eu pensei que ficariam felizes se eu descobrisse. Por isso fiquei invisível. Mas com toda a mágica que foi necessária para fazer isso, logo fiquei cansada. Eu vi, porém, através de paredes, e também ouvi coisas que foram ditas em segredo. Li pensamentos e muitas coisas mais. Mas eu ainda sou pequena, e não tenho tanta força — terminou ela, fazendo uma cara séria.

Parecia não fazer ideia de quanto poder de fato possuía. Para ela, seus poderes mágicos eram apenas um jogo.

— Isso foi muito tolo da sua parte, Yulivee — disse Farodin.

— Mas o que vocês querem? Eu ainda estou viva!

Mandred riu, mas um olhar de Farodin o fez emudecer.

— Vocês querem saber o que eu descobri ou não?

— Por favor, conte-nos — pediu Nuramon.

Yulivee sentou-se sobre uma árvore tombada e esperou os companheiros se reunirem. Então contou suas aventuras:

— A lua brilhava clara quando desci as colinas devagar e andei até Felgeres. Passei invisível pelos guardas e segui meu instinto. Quando cheguei ao porto, vi que havia navios na frente da cidade. Eram muitos, com certeza uns cem.

— Por todos os albos! Agora eles definitivamente dominarão o Mar Aegílico! — praguejou Farodin. — Os navios de Reilimee não poderão mais fazer comércio.

— Obrigado por ter descoberto isso, Yulivee — disse Nuramon.

— Mas isso não é tudo! Eu também fiquei escutando alguns comandantes. Capitães e cavaleiros da ordem e até o príncipe da ordem de Felgeres. Os navios não controlarão as Ilhas Aegílicas; em vez disso, irão para o norte. Eles querem chegar às terras do fiorde antes das tempestades de outono. No caminho para lá, eles ainda querem se unir a uma outra frota.

Mandred levantou-se num salto.

— O quê?

— Eles receberam ordens para quebrar a resistência no norte — explicou Yulivee. — Também não estavam entusiasmados com isso. Mas também disseram que o Grande Sacerdote quer assim. Os homens disseram que ele quer ensinar humildade aos amigos dos elfos.

— Nós precisamos partir para avisá-los! — gritou Mandred. Caminhou até seu cavalo, mas depois retornou. — Precisamos arriscar pular de novo de uma estrela dos albos para outra.

— De jeito nenhum! — retrucou Farodin. — Primeiro precisamos pegar a pedra alba e a coroa dos dschinns. Provavelmente isso vai detê-los antes do ataque.

Provavelmente não basta para mim! — replicou o guerreiro a plenos pulmões. — Trata-se de Firnstayn, droga! Eles querem queimá-la como Iskendria! Não vou assistir a isso sem fazer nada!

Nuramon trocou um olhar com Farodin.

— Mandred tem razão. Precisamos interromper a busca pela pedra. Pense no portal sobre o penhasco. Ele leva até a fronteira para o coração da Terra dos Albos. Os sacerdotes de Tjured não podem destruí-lo! Ou, pior ainda, imagine que eles consigam avançar até a Terra dos Albos. Pense nos amigos que ainda temos lá! Temos a obrigação de alertar a rainha. Você seria capaz de encarar Noroelle de frente e dizer que por causa dela você não fez nada, só para ganhar algumas luas para a nossa busca?

— Eles nunca conseguiram abrir um portal para a Terra dos Albos — insistiu Farodin. — Só conseguem destruir os portais. Mas você tem razão em outra coisa: é uma questão de amizade. — E, voltando-se para Mandred: — Desculpe. — Estendeu a mão ao jarl e prosseguiu: — Há muito tempo você é um amigo fiel para nós. Agora é hora de mostrarmos a você a nossa lealdade. Firnstayn pode contar com as nossas espadas! Faremos de tudo para proteger os seus.

Mandred segurou a mão estendida a ele.

— Vocês carregam duas espadas que contam mais que cem machados. Estou orgulhoso de saber que estão ao meu lado.

Farodin pousou a mão sobre o ombro do jarl.

— Mas não podemos pegar as trilhas albas de Fargon. Elas não são seguras. — E virando-se para Yulivee: — Você disse que os cavaleiros da ordem partirão antes do início das tempestades de outono?

A garota fez que sim com a cabeça.

— Então vamos deixar Fargon por terra. Logo que tivermos deixado este reino para trás, poderemos arriscar viajar pelas trilhas albas.

— Farodin tem razão — completou Nuramon.

Mandred concordou e então olhou para o chão.

— Por Luth! Nunca pensaria que o que fizemos em Aniscans poderia se tornar um perigo até mesmo para Firnstayn. — Virou-se para Yulivee, sem conter um sorriso: — Obrigado, elfinha! Você é uma verdadeira companheira! — O guerreiro do norte então concluiu: — Vamos partir.

Farodin seguiu Mandred até os cavalos.

Nuramon pegou Yulivee nos braços e carregou-a até Felbion.

— Você fez um bom trabalho — disse à pequena feiticeira, erguendo-a sobre o cavalo. Ela sorriu satisfeita. — Mas... — prosseguiu ele.

— Mas? — repetiu a menina.

— Nunca mais me deixe com medo daquele jeito.

— Você se importa um pouquinho comigo, não é?

— Sim. Você já é como uma irmã para mim.

A admiração tomou conta do rosto da pequena elfa.

— Mesmo? — perguntou ela.

Nuramon sentou-se. Yulivee virou a cabeça e olhou para ele. Pelo visto, esperava uma confirmação.

— Sim, Yulivee.

— Então você me escolheu para a sua família, como a rainha disse?

Nuramon concordou.

— Exatamente assim. E, aconteça o que acontecer, eu cavalgaria contra mil cavaleiros para pôr você em segurança.

Os olhos de Yulivee encheram-se de lágrimas. Nuramon conseguia compreender o que devia estar se passando dentro dela. Dissera a verdade: a pequena elfa era para ele como uma irmã menor, não como uma filha. Ela era poderosa demais para isso. Nuramon não sabia dizer o que o destino reservava para ele e seus companheiros. Era certo, porém, que queria poupar a pequena de batalhas de qualquer maneira. Essa era a hora de levá-la para a Terra dos Albos, para que ficasse em segurança. Talvez Obilee cuidasse dela, se é que ainda não havia partido para o luar.

Tempo de heróis

— Cem navios virão! — gritou o rei. Um silêncio mortal tomou conta do salão de cerimônias. — E uma segunda frota virá para se unir aos cem navios, de tanto que eles temem os homens das terras do fiorde.

Mandred viu quantos guerreiros e nobres sorriram furiosos no salão. Seu descendente Liodred sabia usar o tom certo para inflamar corações de combatentes. Estava orgulhoso dele. Alto e musculoso, cada pedaço seu era o de um grande guerreiro. Seus cabelos longos, vermelhos e cacheados desciam pelos ombros e seus olhos azuis brilhavam como o céu em uma tarde de verão. Só não agradava Mandred o fato de usar a barba aparada, bem curta.

Após a chegada dos companheiros, Liodred reagira rápido. Tinham alcançado Firnstayn no fim da tarde e, ainda na mesma noite, ele reuniu na grande sala real os mândridos e os nobres das redondezas próximas. Mais de trezentos guerreiros estavam sentados junto às longas mesas, muitos com os olhos erguidos de forma respeitosa para a mesa de banquetes à qual, ao lado do rei, estavam acomodados dois guerreiros elfos, uma menina e o lendário antepassado Mandred Torgridson.

— Vocês todos já os conhecem há muito tempo, os sacerdotes de Tjured com suas línguas de serpente. Vocês sabem como eles insultam os nossos deuses e espalham mentiras sobre o nosso povo. E eu pergunto a vocês: temos medo deles por isso?

— Nããão! — ressoaram as vozes de centenas de gargantas.

— Então eles convocaram mais de cem navios e milhares de guerreiros para atacar Firnstayn de surpresa, já que guerra até hoje ninguém nos declarou!

Liodred curvou-se para a frente e apontou para um combatente de cabelos brancos, com uma pele de lobo sobre os ombros.

— Vejo medo nos seus olhos, Skarbern?

O velho ficou vermelho e quis levantar-se, mas acalmara-se. Liodred prosseguiu:

— Eu compartilho sua preocupação, Skarbern. Temo que nossos mândridos, com suas cabeças quentes, os mandarão para o fundo do fiorde antes de nós, velhos, termos chance de puxar nossos machados do cinto.

Gargalhadas ensurdecedoras soaram. O coração de Mandred se alegrou. Seu descendente era realmente um rei guerreiro. Cada um dos homens ali embaixo caminharia até sobre as chamas por Liodred. As palavras do rei despertavam até nele a sede de luta.

— Homens de Firnstayn, meus amigos. A maioria de vocês eu conheço de quando ainda éramos crianças. Conheço os seus corações valentes, o seu orgulho e obstinação. Em nenhum lugar fora das terras do fiorde há homens como vocês! Os melhores beberrões e mulherengos, e quando chega a hora do vamos ver, os melhores camaradas que se pode imaginar. Homens como vocês só podem existir em uma terra livre. Vocês acham que os cavaleiros da ordem estão vindo porque querem o nosso ouro? Eles já têm tanto que enfeitam os telhados das torres de seus templos com ele! Vocês acham que eles vêm para saquear, pilhar e para violar suas mulheres?

Liodred fez uma pausa curta e deixou o olhar vaguear pela grande sala.

— Não, meus amigos. Os cavaleiros da ordem estão cingidos de grandes espadas, mas entre as pernas eles não têm nada. De que outra forma é possível explicar que cada um desses guerreiros tenha abnegado as mulheres?

Mandred tentou segurar, mas esguichou o hidromel que tinha na boca de volta para o chifre, espirrando em Farodin, que estava sentado a seu lado. O elfo permanecia totalmente calmo. Talvez devesse explicar a piada de novo para ele, pensou Mandred.

— Saibam, meus amigos, que esses não são os motivos para que os cavaleiros da ordem estejam vindo. Eles estão nos atacando porque possuímos algo infinitamente mais precioso. Liberdade! Eles representam um povo que se resume a nada mais que sacerdotes e servos, e que não consegue tolerar liberdade por perto. Então, se eu os chamo às armas, saibam o que os espera. É mais que uma batalha marítima. Se os cavaleiros da ordem vencerem, vai nos acontecer o mesmo que ocorreu aos homens de Angnos ou Gornamdur. Eles matarão todos que não queiram ser padres ou servos. Eles queimarão os homens de ferro, as matas sagradas e o nosso templo. Nada que nos lembre dos nossos soberbos antepassados, da nossa forma de viver e da nossa tradição será poupado do fogo.

Liodred fez uma pausa para deixar as palavras fazerem efeito. Ergueu o chifre de hidromel e verteu um pouco para dedicar aos deuses. Então pousou-o sobre os lábios e bebeu em longos goles. Alguns dos homens na parte de baixo da sala levantaram-se e fizeram o mesmo.

Mandred também se levantou e passou o braço ao redor dos ombros de seu bravo descendente.

— É fácil esculpir belas palavras aqui na nossa sala, entre amigos — Liodred finalmente continuou. — Eu sei que os sacerdotes de Tjured só fazem guerra quando estão seguros de ganhar. No peito deles não há o coração de leão de um guerreiro, mas uma alma mesquinha de mercador. Eles contam, calculam e só atacam quando sabem que contra cada guerreiro de seu inimigo podem convocar cinco cavaleiros da ordem. O fiorde ficará vermelho de sangue quando os enfrentarmos. E muito do nosso sangue será derramado.

Voltou-se para Mandred:

— Aqui ao meu lado está Mandred Torgridson. O antepassado vivo! Fundador do clã real de Firnstayn. Todos vocês conhecem as histórias a seu respeito. Dizem que ele retorna quando seu povo corre os mais extremos perigos. Foi ele que hoje me trouxe as notícias sobre o ataque que virá.

Murmúrios percorreram a sala real. Mandred sentiu-se desconfortável sob os olhares que agora o atingiam. Muitos viam nele não só o herói, mas também o mensageiro de desgraças vindouras.

— O meu antepassado renunciou à mulher e ao filho para salvar Firnstayn. Sua coragem está viva há séculos nas histórias dos nossos escaldos. Agora cabe a vocês provarem que não são menos corajosos que ele. Estão prontos para lutar?

Agora os últimos homens que ainda estavam sentados também erguiam-se aos saltos.

— Nós lutaremos! — gritaram centenas de vozes. — Nós lutaremos!

Liodred abriu os braços. Lentamente o silêncio foi retornando.

— Os sacerdotes de Tjured obrigam homens de todos os povos subjugados a lutar em seus exércitos. Conosco lutam somente homens livres. Mas nós também temos amigos poderosos. Existe um pacto de tempos antigos. Uma aliança que agora, na hora da urgência, deve se reafirmar. Séculos se passaram desde que a rainha dos elfos pediu a ajuda dos guerreiros de Firnstayn. Agora nós pediremos aos elfos que nos prestem auxílio. Aqui vocês veem dois homens do mito. Guerreiros elfos valentes e nobres, com espadas mortais como as de nenhum humano. Eles me prometeram ainda esta noite atravessar o círculo de pedras sobre o penhasco e cavalgar até a Terra dos Albos. Ao amanhecer, ecoará em toda a Terra dos Albos o chamado das cornetas que reunirá os guerreiros na corte da rainha.

Mandred engoliu em seco. Isso soava grandioso... Os homens na parte inferior da sala explodiram novamente em gritos de júbilo, mas ele sequer tinha certeza de que Emerelle receberia seus companheiros. E mesmo que ela estivesse disposta a ajudar, quanto tempo poderia levar para reunir as frotas de elfos e trazê-las até a terra dos fiordes?

Retorno à Terra dos Albos

O castelo da rainha brilhava na noite, da mesma forma que todas as casas sobre as colinas. Faltava-lhes ainda atravessar as campinas e então chegariam ao seu destino. Nuramon cavalgava em silêncio ao lado de Farodin, assim como Yulivee, sentada à sua frente na sela.

Haviam caminhado através do portão junto a Atta Aikhjarto e lá encontrado Xern. Quando contaram-lhe de seus planos, Xern lhes relatou, em nome de Atta Aikhjarto, sobre uma estrela alba que ficava mais perto do castelo da rainha. Então pularam do portão para essa outra estrela, contornando, assim, a Shalyn Falah.

Em seu caminho, os companheiros não passaram pelo Carvalho dos Faunos nem pelo Lago de Noroelle. Talvez fosse melhor assim — estavam com tanta pressa que a reverência que deveria ser atribuída a esses lugares não teria sido adequada.

— Brilho de fadas! — disse Yulivee baixinho. Ela parecia se referir a todas as pequenas luzes que irradiavam do castelo, visíveis também ao longe. — Mais rápido, Felbion! Mais rápido!

Para a surpresa de Nuramon, Felbion apertou um pouco o passo. Agora o cavalo já até escutava o que Yulivee dizia! Com certeza não demoraria muito para ter de ceder as rédeas à sua pequena irmã adotiva.

Quanto mais perto chegavam do castelo, mais Nuramon tinha medo de que pudesse ser um erro apresentar-se a Emerelle como mensageiros de Liodred. Sim, eles eram elfos, mas a rainha certamente não se esquecera de que um dia a haviam contrariado.

Subiram cavalgando até o portão. Estava aberto e sem a presença de guardas. O átrio principal estava vazio. Se não fosse pelas luzes, Nuramon teria acreditado que o castelo estava abandonado.

Não fizeram o esforço de levar os cavalos ao estábulo. Pararam ao pé da escada à frente do palácio, apearam e simplesmente deixaram os animais ali.

Nuramon pegou a mão de Yulivee.

— Bem, você conhece os contos. Ninguém pode ser abelhudo nos aposentos da rainha. Lembre-se disso!

— Eu sei, eu sei. Vamos logo!

Lado a lado, os três adentraram os claros salões de Emerelle. Yulivee olhava ao redor, boquiaberta. As estátuas foram o que mais despertou sua curiosidade. Nuramon quase tinha de arrastá-la atrás dele, tão encantada a pequena feiticeira estava com o esplendor ao seu redor. Chegaram à antessala do salão do trono. Ali encontraram guardas pela primeira vez. Havia dois guerreiros elfos armados com lanças esperando por eles, de pé à frente do portão fechado.

— Quem são vocês? — perguntou o mais forte dos dois.

— Somos mensageiros do rei de Firnstayn — respondeu Farodin. — Chegou a hora de retribuir na mesma moeda a ajuda de Alfadas.

Os dois homens trocaram olhares inseguros.

— Quem poderia imaginar? — uma voz atrás deles soou.

Ao se voltarem, viram Alvias entrar por uma porta lateral. O mestre estava mudado. Uma cicatriz atravessava a sua testa. Devia ter sido ferido por uma arma mágica.

— Quem imaginaria que os mensageiros seriam aqueles cujos nomes não são mais pronunciados há séculos nestes salões.

— Mestre Alvias! — disse Farodin, surpreso. — É bom ver um rosto conhecido.

O escudeiro da rainha aproximou-se e os examinou.

— Eu queria poder dizer que estou feliz em vê-los. A chegada de mensageiros significa guerra, e a chegada de vocês pode despertar a ira da rainha.

Nuramon lembrou-se da última vez que esteve ali. Na época, a rainha o enviara em busca de Guillaume e tudo tomara um rumo lamentável.

— A rainha nos receberá? — perguntou.

— Ela com certeza atenderá mensageiros de Firnstayn, mas pode ser que recuse os dois elfos que um dia acenderam a sua ira. — Ele os observou novamente, com ar superior. — Esperem aqui! Vou anunciá-los.

Alvias abriu um pouco o portão. Nuramon não conseguiu olhar para dentro, mas ouviu que ali estavam reunidos muitos filhos de albos. O mestre entrou e fechou o portão atrás de si.

— O que está acontecendo, Nuramon? — perguntou Farodin. — Você parece que viu um fantasma.

— Só estou com um medo monstruoso. A ira da rainha! Eu preferia não precisar conhecê-la.

Farodin deu um sorriso frio.

— Bem, agora já não tem mais volta.

Yulivee sacudiu o braço de Nuramon.

— Vocês fizeram alguma coisa de errado?

— Sim —, respondeu Nuramon, balançando a cabeça.

Só havia contado à pequena em linhas gerais como fora a busca por Noroelle até então, omitindo o mal com que Emerelle, que Yulivee tanto adorava, havia jogado com eles.

— Nós agimos contra o desejo dela. Como você faz conosco quando foge à noite.

— Ela com certeza vai perdoá-los. Ela é muito bondosa — explicou Yulivee.

A rainha os fez esperar muito tempo. Yulivee ficou especialmente inquieta e passou o tempo andando por perto dos guardas e lhes fazendo perguntas, que os homens respondiam de forma fria e distante. Perguntou sobre as armaduras e as armas. Além disso, quis saber como alguém se tornava guarda da rainha. Nuramon só escutava a conversa superficialmente; caminhava inquieto para lá e para cá.

Farodin ficou ali em pé, mantendo os olhos nele.

— Você esqueceu sua paciência em Firnstayn? — finalmente perguntou. — Ou aprendeu isso com Mandred?

Nuramon deteve-se.

— Se você soubesse o quanto eu temo por nós e nossa busca!

Quanto mais a rainha os deixava esperar, maior lhe parecia o risco. Como saber se Emerelle já não estaria determinando a sentença deles?

Um barulho veio da sala do trono. Yulivee retornou depressa até Nuramon e agarrou sua mão. Então o portão se abriu. Depois de deslizar os olhos por Alvias e pelas fileiras de elfos, Yulivee conseguiu olhar para Emerelle. Estava imóvel em seu trono.

— A rainha os receberá — disse mestre Alvias.

Os companheiros o seguiram. Nuramon admirou-se com o fato de o salão estar tão cheio quanto estivera daquela vez na partida da Caçada dos Elfos. Os filhos de albos à esquerda e à direita pareciam surpresos. Nuramon conhecia alguns rostos, mas a maioria era desconhecida. De repente alguém murmurou:

— Farodin e Nuramon!

E assim os dois nomes percorreram um caminho de sussurros pelo salão. Bem lá na frente começou um falatório alto. A rainha apenas ergueu a mão, fazendo com que o silêncio imediatamente retornasse.

— Bem-vindo, Nuramon! — cochichou-lhe alguém pelo seu lado esquerdo.

Era um jovem elfo, um guerreiro de armadura de tecido. Nuramon não o conhecia, mas atrás dele viu Elemon, seu tio, e outros da sua linhagem. Exceto por Elemon, a maioria dos outros rostos estampava alegria e até mesmo orgulho.

— Minhas saudações, primo — disse em voz baixa uma jovem que ele nunca vira, mas que se parecia com sua tia Ulema.

Nuramon saudou todos eles com gestos amigáveis, mas continuou dirigindo-se ao trono.

Alguns do clã de Farodin também tinham vindo. Cumprimentaram o parente com discrição, mas ao mesmo tempo com expressões de muito respeito.

Por fim, haviam chegado tão perto do trono que era possível ler os traços do rosto da rainha. Nuramon encontrou frieza neles.

Ao redor do trono, Nuramon viu muitos rostos conhecidos. Lá estavam Ollowain, Dijelon, Pelveric e também Obilee. Nuramon ficou feliz em avistar a confidente de Noroelle. Ela parecia mais decorosa que antes, mas não foi capaz de esconder sua alegria. Seus cabelos louros estavam presos em grandes tranças que caíam sobre seus ombros. Vestia uma armadura castanho-avermelhada, com runas pintadas. Parecia ser uma armadura de feiticeira lutadora.

Diante da rainha, Nuramon e Farodin baixaram a cabeça. A pequena Yulivee fez uma reverência. Antes que pudessem falar qualquer coisa, Emerelle disse:

— Então o dia chegou! O dia em que os filhos de Alfadas cobrarão a nossa dívida! O dia do retorno de Farodin e Nuramon! O que aconteceu para ousarem comparecer diante de mim?

Ela olhou para Farodin, e foi ele quem lhe respondeu:

— Foi por amizade a Mandred, pai de Alfadas, que nós viemos. Firnstayn corre grande perigo. Os devotos de Tjured estão subjugando um povo após o outro e agora preparam um ataque a Firnstayn. A frota dos cavaleiros da ordem logo vai partir.

Vozes soaram no salão, mas Farodin não se deixou abalar. Simplesmente continuou falando:

— Em nome de Liodred, da linhagem de Alfadas Mandredson, nós viemos para solicitar a ajuda dos filhos de albos.

— A rainha da Terra dos Albos cumprirá a sua promessa e fará os preparativos — respondeu Emerelle.

Farodin curvou-se.

— Nós agradecemos em nome de Liodred.

— Com isso, a tarefa de vocês está cumprida. O senhor de vocês ficará satisfeito. Agora vamos nos despedir dos mensageiros e ouvir Farodin e Nuramon, cujos nomes não são pronunciados nestas salas há muito tempo, mas lá fora, nos bosques, já tornaram-se uma lenda há muito. Farodin e Nuramon! Os elfos que se opuseram à rainha para buscar sua amada! Vocês não podem calcular o tamanho da minha cólera quando desobedeceram minha ordem. Tiveram muita coragem de surgir diante de mim depois de tudo isso. Vieram mesmo sabendo que este poderia ser o fim da busca de vocês. Você, Farodin, traz consigo até a areia que eu um dia espalhei no mundo dos humanos. E você, Nuramon, ousou permanecer em Firnstayn pelo tempo de uma vida humana, bem diante dos meus olhos.

Nuramon preparou-se para falar, mas, de soslaio, um olhar sério de Farodin o fez calar-se.

— Você queria dizer alguma coisa, Nuramon? — disse a rainha, com voz ironicamente gentil.

— Não queria aborrecê-la — começou hesitante. — Quando fiquei em Firnstayn, sabia que poderia mandar me buscar a qualquer momento, mas não fez isso. E certamente teve os seus motivos.

— Não pense que mudei minha opinião sobre Noroelle. Mas vejo que não posso detê-los. O amor de vocês é forte demais. Vocês podem tentar salvar Noroelle, mas saibam que fazem isso sem a minha aprovação. Muito tempo se passou desde que descumpriram a minha ordem. E vi vocês algumas vezes daqui. Algumas coisas que vi me agradaram, outras não. Você, Nuramon, esteve com os renegados. O fato de um dos seus buscar refúgio junto a renegados só pode desagradar a uma rainha. Mas ninguém o desprezará pelo fato de ter estado com os filhos de albos das trevas.

Os sussurros espalharam-se pelo salão. Certamente os presentes se perguntavam qual era o mistério que cercava os filhos de albos das trevas. E era certo que dariam muita coisa para descobrir o que Nuramon vivera junto deles.

A rainha olhou ao redor pela sala. Não fez nenhum gesto para restabelecer a calma; apenas continuou falando:

— A mesma coisa vale para o seu tempo em Firnstayn. Ninguém é mais próximo de Firnstayn do que você. E por isso lhe atribuirei uma obrigação. Partirá para a batalha no meu navio.

— Eu agradeço, Emerelle — respondeu Nuramon, sem saber se isso era uma punição ou uma honra.

— Agora vamos a você, Farodin! Você induziu Mandred a se passar por meu enviado junto aos trolls. Você avançou contra os trolls em tempos de paz e, por fim, acabou fazendo a coisa certa. Foi doloroso descobrir o que os trolls fizeram com Yilvina e os outros. Nossos corpos sem vida são efêmeros, mas nossas almas seguem vivendo. Você precisa entender uma coisa, Farodin, precisaremos dos trolls na luta contra nossos inimigos. E precisaremos ter certeza de que eles acreditarão em nossas boas intenções. — O rosto da rainha tornou-se o de uma amiga bondosa, sem combinar muito com as palavras que dizia: — O que o duque dos trolls Orgrim diria se você se dirigisse à batalha no navio dele?

Farodin engoliu em seco de forma quase imperceptível.

— Ele certamente consideraria isso uma honra... — foi tudo o que respondeu.

Nuramon não conseguia entender que a rainha realmente quisesse entregar Farodin como refém dos trolls. Era verdade que o ato de Farodin ocorrera havia mais de dois séculos, mas os trolls podiam ser tudo, menos esquecidos. Com certeza o matariam por algum engano suspeito. Será que a rainha queria separar Farodin dele, enviar seu súdito diretamente para a morte e com isso fazer com que a busca por Noroelle continuasse infrutífera? Ele teria de planejar alguma coisa. Então soltou-se de Yulivee e deu um passo à frente. Farodin ainda resvalou em sua mão; pelo visto, queria detê-lo. Mas agora o passo estava dado, o que a rainha observou com surpresa.

— Sim, Nuramon, o que você gostaria de dizer?

— Os trolls vão matar Farodin. Qualquer outro elfo, contudo, certamente sairia com vida. E é por isso que suplico que me mande para eles e mantenha Farodin ao seu lado.

Farodin pôs-se ao lado de Nuramon.

— Por favor, Emerelle, não o ouça. Eu me curvarei ao seu desejo.

Yulivee seguiu os dois companheiros e agarrou a mão de Nuramon.

— Estou impressionada com a obstinação com que defendem um ao outro. Mas nada mudará minha decisão. Farodin, eu o entregarei ao duque Orgrim como refém. Só assim conseguirei unir os trolls a nós. Não veja isso como uma vingança contra você, mas como prova da minha confiança. Eu já a declarei a você muitas vezes, a última foi na Caçada dos Elfos. Lembre-se das palavras com as quais o enviei. Eu não quero apenas que você seja um refém, mas um exemplo para todos os elfos. Deve proteger a vida do duque assim como devia ter protegido a vida de Mandred na Caçada dos Elfos. Você fará isso?

Farodin hesitou por um tempo. Por fim, os cantos de sua boca se abriram num sorriso amarelo, quase imperceptível.

— Eu o farei, minha rainha.

Alguma coisa acontecera entre Farodin e Emerelle. No salão, ninguém pareceu perceber. Pelo visto, acreditavam ter presenciado uma reconciliação, que num primeiro momento parecera uma punição. Mas o que Emerelle intencionara ao dizer que Farodin devia ter protegido Mandred? Falara como se seu súdito tivesse falhado e agora estivesse recebendo a chance de compensar essa falha. Depois de todos aqueles anos em comum, muitas coisas em Farodin ainda permaneciam ocultas para Nuramon.

De repente, a rainha sorriu.

— Só tenho mais uma pergunta. — E olhando para Yulivee: — Quem é a elfa que está agarrada à sua mão, Nuramon?

— Esta é a feiticeira Yulivee, filha de Hildachi, da linhagem de Diliskar. Talvez seja a última dos libertos de Valemas.

Uma onda de sussurros na sala revelou a Nuramon que Valemas e o clã de Diliskar ainda não haviam sido esquecidos.

— Yulivee! Mas que nome! — disse a rainha, fitando a garota como se ela fosse uma alba. — Venha até mim, Yulivee!

A pequena elfa não soltou a mão de Nuramon; em vez disso, encarou-o, desconfiada.

— Vá! Essa é Emerelle, de quem você tanto ouviu falar.

Yulivee soltou-se lentamente de Nuramon e apresentou-se à rainha com passos cuidadosos. Todos na sala estavam em silêncio. Só se ouvia o marulhar da água que escorria pelas paredes. Emerelle examinou Yulivee longamente, como se quisesse memorizar cada detalhe. Então disse:

— Yulivee, eu esperei muito tempo pelo retorno do clã de Diliskar e das outras linhagens de Valemas. Isso torna este dia ainda mais importante, pois você é predestinada a um grande futuro. Como você encontrou Nuramon e Farodin?

Yulivee contou em voz baixa sobre o dia em que viu Nuramon pela primeira vez, com todos os detalhes.

— Então ele me contou que você havia lhe dito que deveria escolher sua própria família. Vi que não estava sozinha.

— Foi sábio da parte de Nuramon dizer isso. Então vocês escolheram um ao outro como parentes?

— Sim, agora ele é meu irmão.

Embora Nuramon conseguisse observar que alguns na sala menosprezavam as palavras da pequena feiticeira com um sorriso de desdém, não se sentiu constrangido. Estava orgulhoso de Yulivee e da forma franca como se apresentava à rainha.

— Venha ao lado do meu trono. Você precisa se acostumar a este lugar.

Yulivee fez o que a rainha mandou. No rosto da pequena feiticeira, via-se o quanto a visão de todos aqueles filhos de albos a impressionava. Quando a rainha tomou sua mão, a pequena ficou admirada. Devia estar se sentindo como em um dos contos que lera sobre Emerelle.

A rainha voltou-se para Nuramon:

— Você fez bem de cuidar dessa criança. Ela é mais poderosa do que você imagina. Já que vocês se escolheram como irmãos, pergunto se tenho permissão para instruí-la na arte da magia.

— E quem negaria essa oferta? Mas não cabe a mim aceitá-la ou recusá-la. É a própria Yulivee quem deve decidir. Eu ficaria feliz se você a instruísse, pois tenho muito pouco a ensinar a ela.

— E então, Yulivee? Você gostaria de ser minha aluna?

— Sim, Emerelle. Eu gostaria. Mas também gostaria de continuar com Nuramon.

— Vou dar tempo para você pensar. Não é uma escolha fácil. Mas, qualquer que seja a sua decisão, saiba que não vai me desapontar. — Emerelle então se levantou: — E agora, filhos de albos, preparem-se para a guerra! Alvias!

O mestre aproximou-se dela. A rainha sussurrou-lhe algo ao ouvido; então pegou Yulivee pela mão e deixou a sala por uma porta lateral. Os guerreiros ao redor do trono a seguiram. Só Obilee permaneceu, olhando para Farodin e Nuramon como se fossem uma pintura que a lembrava de bons tempos.

Farodin iniciou uma conversa com seus parentes. Logo a linhagem de Nuramon se aproximou e o cobriu de perguntas. A maior parte de sua família era desconhecida para ele. Só o rosto de Elemon, que depois de todos esses anos ainda estampava desconfiança, era familiar para ele. A prima que falara com ele chamava-se Diama. Ela perguntou-lhe o que sucedera quando esteve com os filhos de albos das trevas. Nuramon deu uma resposta esquiva. A cada oportunidade, tentava fazer contato visual com Obilee. A elfa, por sua vez, não se moveu; parecia contente por vê-lo cercado por seu clã.

Quando Elemon aproximou-se de Nuramon, o guerreiro pensou que agora toda a alegria estaria terminada. Seu tio nunca encontrara sequer uma palavra amigável para ele. Os elfos restantes esperavam em silêncio pelo que o velho elfo diria.

— Nuramon, nós todos descendemos da linhagem de Weldaron — começou ele. — E você sabe que eu e os outros da minha idade sempre o desprezamos. No tempo em que você esteve aqui e não tinha permissão para deixar a Terra dos Albos, nós concebemos filhos. E eles nasceram depois que você foi embora, na certeza de que não carregariam a sua alma. Mas esses filhos e seus descendentes o viram com outros olhos. Eles ouviram as histórias de Nuramon, o guerreiro trovador, e de Nuramon, o eterno peregrino. Durante a Guerra dos Trolls, eles descobriram que você um dia foi companheiro de Alfadas. — O elfo parou e encarou Nuramon como se esperasse alguma emoção sua. Então continuou: — Nós, os velhos, você não precisa perdoar. Muitos de nós não mudaram de opinião, mas estes elfos o veneram como o maior do nosso clã. Não os deixe perceber o seu desprezo por nós.

Nuramon jamais gostara de Elemon, mas essas palavras foram de uma amabilidade que ele nunca, nunca mesmo, esperara. Ao observar as expressões dos jovens elfos que o cercavam, reconheceu que seu tio tinha razão.

— Se a rainha não me quiser ao seu lado, eu partirei para essa batalha ao lado da minha linhagem. Agradeço a você, Elemon.

— E espero que você possa me desculpar — disse Elemon, com os olhos brilhantes.

— Sim, eu posso. Em nome de Weldaron!

Nuramon lembrou-se de todos os anos em que fora obrigado a tolerar o escárnio de seu clã. Se não tivesse Elemon à sua frente e visse que o velho estava à beira das lágrimas, pensaria que seus parentes gostariam de tê-lo de volta em seu meio por motivos egoístas. Mas as palavras de Elemon demonstravam seriedade e disso Nuramon duvidava tão pouco quanto das intenções daqueles jovens homens e mulheres, dos quais alguns carregavam espadas curtas como ele, como se estivessem atentos à possibilidade de imitar seus atos. Sua prima Diama era um deles. Vestia até uma armadura semelhante à de Gaomee, embora fosse feita de placas de metal em vez de couro de dragão.

Nesse momento, Nuramon compreendeu quanto tempo esteve longe. Tornara-se vítima do tempo por duas vezes. Em cada uma delas, mais de duzentos anos haviam se passado. Durante esse período, o escárnio do clã se transformara em reconhecimento, talvez até admiração.

Alvias aproximou-se junto com Farodin. O mestre fez um movimento cordial com a cabeça.

— Nuramon, a rainha gostaria de vê-los na câmara lateral. Sigam-me, por favor!

— Obrigado por terem vindo — Nuramon cumprimentou a família, inseguro. Precisaria de tempo para se acostumar à mudança.

Mal deixaram a roda de parentes, Farodin sussurrou:

— Parece que a sua linhagem cresceu a valer... Pelo visto, agora eles veem em você mais que um renascido. — Soava como se Farodin, à sua maneira, compartilhasse a sua alegria.

Nuramon quis responder, mas nesse momento aproximaram-se de Obilee e pararam.

Alvias parecia impaciente.

— Eu vou na frente avisar a rainha que estão a caminho.

Nenhum deles falou. Nuramon lembrou-se da última vez que viu a confidente de Noroelle. Tinha sido no primeiro portal que abriu com sua magia. Ela lhe acenara de uma colina. Na época, parecia mais uma feiticeira que uma guerreira, mas agora ela vestia uma roupagem de combatente de couro macio de Gelgerok, com placas de madeira dura fixadas no torso, nas mangas e nas pernas. As runas pintadas sobre a madeira certamente auxiliavam Obilee na luta. No pescoço, trazia uma corrente em que pendurara a pedra preciosa de Noroelle, como Nuramon também havia feito. Era um diamante.

Finalmente Nuramon quebrou o silêncio.

— Xern me contou que você se tornou uma heroína na Guerra dos Trolls.

— Sim — Obilee respondeu como se lamentasse por isso.

— Noroelle ficará orgulhosa de você quando descobrir — disse Farodin.

— Eu nunca esqueci Noroelle. Nenhum dia se passa sem que eu pense nela ou em vocês. — Olhou Nuramon bem nos olhos: — Eu queria poder acompanhá-los.

Sua voz soava tão melancólica quanto suas palavras. Deu um sorriso sofrido.

— Não se deixem enganar pelo meu humor. Estou feliz em vê-los. — Com essas palavras abraçou Farodin e beijou-o na bochecha. — Queria poder fazer qualquer coisa por vocês.

Também abraçou Nuramon, mas não o beijou.

— Estou muito feliz por você! Noroelle tinha razão. O seu clã reconheceu a sua essência.

Antes que Nuramon pudesse dizer qualquer coisa, Obilee acrescentou:

— Venham! Não vamos fazer a rainha esperar mais! Ela com certeza quer saber o que vocês vivenciaram. Eu também estou curiosa.

Eles seguiram Obilee até a câmara lateral. Nuramon mal conseguia se desvencilhar do olhar da guerreira. Nele havia tanta dor e saudade...

Quando adentraram a câmara, Nuramon mal acreditou no que ouviu. A pequena Yulivee estava de pé ao lado da rainha, cercada de guerreiros, e contava a história da sua viagem por Fargon.

— E quando eu já achava que minha vida estava acabada, Nuramon me alcançou e me puxou para junto dele sobre a sela. Mas ouçam o que aconteceu depois! E, então, o que você teria feito nessa situação? — perguntou a Ollowain.

— Eu teria dado meia-volta para colocá-la em segurança — respondeu o guerreiro. — Então cavalgaria de volta e me encarregaria dos humanos.

Yulivee deu um sorriso atrevido.

— Sábia resposta. Mas Nuramon não fez nada disso, pois teria significado a nossa morte. Ele não fez o cavalo dar a volta, pois os adversários estavam perto demais.

Yulivee deu esta última informação a Ollowain bastante tarde, mas o guerreiro da Shalyn Falah riu de suas palavras.

— Em vez disso, ele avançou para o meio deles, desviou de golpes e pontadas e... — a pequena feiticeira viu Nuramon e interrompeu a narrativa por instante, para depois rapidamente continuar: — ... e salvou a pequena Yulivee dos humanos malvados. E se a pequena Yulivee tiver cuidado, amanhã ela ainda estará viva.

Todos os guerreiros riram. Até a rainha tinha um sorriso nos lábios.

— Cheguem mais perto! — disse ela, voltando-se para Nuramon e Farodin.

Quando os elfos estavam à sua frente, explicou:

— Quero agradecer a vocês dois mais uma vez por terem protegido Yulivee.

Segurou, então, a mão da pequena elfa.

— Vocês não têm ideia do quanto ajudaram a mim e a toda a Terra dos Albos cuidando desta elfa.

Uma muralha de madeira

Uma brisa fresca brincava com as tranças finas de Mandred. Junto com Liodred e um guarda dos mândridos, estava de pé no penhasco sobre a entrada para o fiorde. Dali era possível olhar o mar até bem longe. Era uma bela manhã de fim de verão. O vento levava consigo pequenas nuvens brancas. O sol surgiu radiante sobre a água e o contorno dos navios delineou-se nitidamente na frente do céu. Deviam ser bem mais de duzentos. Todos traziam em suas velas o símbolo do carvalho queimado.

— Mais meia hora e os primeiros deles chegarão à entrada do fiorde — disse Liodred calmamente.

Mandred baixou os olhos para a pequena frota que faria frente ao ataque dos cavaleiros da ordem. Eles tinham menos de sessenta navios. Quinze deles eram tão pequenos que só comportavam vinte homens por vez. Nos trinta navios mais fortes haviam sido puxadas correntes pelas escotilhas dos remos, prendendo-os uns aos outros de forma inseparável. Assim, eles formavam uma barreira que bloqueava as águas navegáveis no meio do fiorde. Ali a batalha seria brava e se decidiria a luta contra os sacerdotes. Os navios menores mantinham-se um pouco atrás da barreira. Deviam servir de reforço se a linha de frente da batalha ameaçasse separar os navios que estavam acorrentados juntos.

Cheio de preocupação, Mandred observou os largos vãos à direita e à esquerda da muralha de navios.

— Liodred, tem certeza de que eles não passarão por ali?

— Certeza absoluta. A frota dos nossos inimigos é composta em sua maioria de navios de grande calado. Para ser franco, minha intenção é induzi-los a nos atacarem pelas laterais. Ali escondem-se recifes traiçoeiros. Quando a maré estiver no seu ponto mais alto, um capitão hábil talvez consiga fazer seu navio passar; mas quando a água baixar, eles estarão fadados a afundar. Se nós tivermos um pouco de sorte, eles perderão uma dezena ou mais de navios dessa maneira. Assim que a frota deles se espalhar e preencher o fiorde, nós os atacaremos com navios de fogo. — O rei apontou para baixo, para vários pequenos barcos pesqueiros carregados até o alto com acendalhas. — Se o vento estiver a nosso favor, eles lhes causarão danos graves. — Liodred indicou com um gesto amplo os rochedos à direita e à esquerda do fiorde. — Lá em cima ficarão os velhos que não podem mais lutar e os que ainda são muito jovens para a batalha. Nós mandamos trazer do reino dez carregamentos de flechas. Eles cobrirão os navios de nossos inimigos com uma saraivada delas quando se aproximarem da costa. — Liodred falava tão alto que todos os guardas ao seu redor podiam entendê-lo bem. — No fundo, esses sacerdotes estão nos fazendo um favor ao querer atacar Firnstayn. Aqui no fiorde haverá uma batalha marítima sob as nossas condições. Nas águas estreitas eles não poderão tirar proveito de sua superioridade. Os que conseguirem adentrar a barreira de navios, terão de lutar corpo a corpo.

O rei fez um sinal para Mandred segui-lo até os cavalos. Ao lançar-se sobre a sela, Liodred disse em voz baixa:

— Espero que os elfos venham a tempo. O inimigo está em número cinco ou mais vezes maior que nós.

— Se houver como, eles estarão aqui — respondeu Mandred, decidido.

Mas sabia muito bem quantos fatores podiam evitar isso. Será que Emerelle chegaria a receber seus companheiros? E quanto tempo poderia levar para equipar uma frota e trazê-la por uma estrela alba?

Cavalgaram por uma trilha rochedo abaixo. No meio do caminho, guerreiros mais velhos vieram em sua direção, carregando nas costas cestas de vime com feixes de flechas. Liodred refreou seu cavalo negro e acenou para um homem que usava um tapa-olho.

— Ei, Gombart, o que o fez deixar sua linda mulher?

— Ouvi por aí que hoje você convocou todos os esqueletos velhos para dar uns tiros em cavaleiros. — Ele contemplou o rei com um sorriso banguela e deu um tapinha na venda de tecido sobre seu olho esquerdo. — Além disso, dizem que eles vão estar tão juntos no convés que nem eu vou conseguir errar o alvo. E que para cada um que abatermos haverá um chifre cheio de hidromel nos seus salões dourados.

Liodred explodiu numa gargalhada sonora.

— Bem, é pouco provável que tenha sido o meu copeiro quem espalhou essa notícia. Mas eu vou cumprir essa palavra, homens. Um chifre cheio de hidromel para cada cavaleiro da ordem! — Deu um sorriso largo. — Mas não pensem que não conheço vocês, seu bando de vigaristas. Vou estar contando lá embaixo do Estrela dos Albos!

Os homens riram, e fizeram outras piadas. O rei acenou mais uma vez para eles, e então fez seu grande cavalo descer a trilha do rochedo.

— Às vezes, penso que é melhor para um homem morrer jovem e no auge de suas forças — disse o rei logo que estavam longe o suficiente dos outros.

— Não — discordou Mandred. — O melhor presente é ver os filhos crescerem. Acredite em mim, eu sei do que estou falando. — Pensou amargamente no pouco tempo que tivera com Alfadas.

No último trecho do caminho até a enseada, onde um barco a remo os aguardava, os dois entregaram-se em silêncio a seus pensamentos. “Onde raios estão os elfos?”, pensou Mandred. Será que deixariam Firnstayn na mão?

Na praia estava Valgerd, esposa de Liodred. Trajava um vestido da cor dos girassóis, preso na altura dos ombros por dois broches dourados. Trazia nos braços uma criança de menos de cinco luas. Era Aslak, filho de Liodred.

O rei caminhou até os dois e beijou o menino ternamente na testa. Então soltou de seu cinto uma faca em uma bainha guarnecida de fios de ouro e estendeu-a a Valgerd. A mulher loura e alta fez um sinal positivo com a cabeça.

Liodred acariciou seus cabelos, e então foi até o barco, onde Mandred já esperava. O jarl sentia-se péssimo. Será que o rei tinha medo de morrer? Aquele teria sido um presente para seu filho, que talvez nunca conhecesse seu pai? Liodred era muito ligado a todas as pessoas dali. Ele era querido! Nada aconteceria a ele, jurou Mandred para si mesmo.

Os dois subiram no barco. Os remadores cumprimentaram o rei, que bagunçou o cabelo do mais jovem deles ao passar. Então afastaram o barco da costa e, com remadas vigorosas, conduziram-no apressadamente até o navio-chefe.

— Uma relíquia de família?

Liodred despertou de seus pensamentos.

— O quê?

— A faca.

— Sim... uma relíquia de família.

— E o que mais? — continuou Mandred.

Liodred baixou a voz.

— Eu sei como eles são, esses sacerdotes... É que, se eles vencerem, Valgerd tentará fugir. Mas, caso...

— Ela deve matar o seu garoto?

— E a si mesma — confirmou o soberano. — Será melhor. — Olhou para as águas escuras do fiorde: — Eles virão, os elfos? — perguntou em voz baixa.

— É claro — disse Mandred, mas sem coragem para olhar nos olhos do rei.

À bordo do Estrela dos Albos Liodred parecia outro. Brincava com os homens e dava instruções a respeito de quem deveria ficar na linha de frente. O Estrela dos Albos tinha pouco em comum com o navio que um dia levara Mandred e os elfos à ilha de Noroelle. Era muito maior e comportava cem remadores.

Todos os trinta navios da linha de bloqueio tinham os mastros recolhidos para não atrapalhar o combate iminente. Os remos também estavam retraídos e estivados. Na popa do navio drácar estava afixada uma estaca onde tremulava o velho estandarte do Estrela dos Albos: uma estrela azul em fundo prateado.

Dois guerreiros ajudaram Liodred a vestir sua proteção: a armadura élfica maravilhosamente trabalhada de Alfadas ainda não tinha sucessora. Todos os outros guerreiros vestiam trajes de malha de ferro e elmos redondos com proteção para o nariz.

Mandred também aceitou ajuda para vestir uma cota de malha na altura dos joelhos. Quando acabava de colocar seu elmo, o rei se aproximou.

— Eu sempre quis perguntar-lhe se é verdade que cada uma das suas tranças corresponde a um inimigo que você abateu. É isso o que os nossos escaldos contam.

— Sim, é verdade — respondeu rapidamente o jarl.

— Você é um homem perigoso.

— Hoje você vai precisar de homens assim.

Cornetas soaram nos rochedos. O primeiro navio dos cavaleiros da ordem estava em rota para o fiorde. Era um imponente navio de três mastros, de popa alta. Instantes depois, quatro outros navios também já viravam para dentro do fiorde.

Angustiado, Mandred observou o castelo de proa. Os agressores ficariam vários metros acima deles. Os cestos da gávea dos navios pareciam enormes. Cada um deles comportava cinco besteiros. De lá de cima eles poderiam escolher seus alvos num raio amplo.

Do rochedo a oeste, uma salva de flechas foi disparada. Por mais de cinquenta passos ela errou os navios inimigos, que mantinham-se no centro do corredor marítimo.

Liodred estendeu a Mandred um grande escudo redondo e vermelho.

— Você vai precisar dele, parente!

O jarl escorregou o braço esquerdo para dentro dos largos laços de couro e prendeu-os até que o escudo ficasse firme em seu antebraço.

— Vamos dar as boas-vindas aos sacerdotes brancos! — gritou Liodred, erguendo seu escudo na frente do peito. Então bateu com o lado chato do machado no costado do navio. Em toda a linha de batalha, os guerreiros seguiram o seu exemplo. Um barulho ensurdecedor ecoou nas paredes do fiorde.

O balanço e os gritos dos guerreiros fizeram o sangue de Mandred ferver. Que viessem os malditos sacerdotes de Tjured. Os homens da terra dos fiordes iriam enviá-los ao encontro de seu mestre.

Cada vez mais navios surgiam na entrada do fiorde. Espalharam-se, formando uma larga fileira. Os adversários ainda estavam havia cerca de quatrocentos passos de distância. Mandred pôde ver os elmos dos cavaleiros da ordem brilharem por trás do bastião do castelo de proa.

— Olhe por nós aqui, Norgrimm! — gritou Liodred a plenos pulmões. — Permita que nossa muralha de madeira seja forte e que a coragem de nossos oponentes se despedace nela!

No navio-chefe soaram cornetas de alerta. Um movimento começou na frente do navio.

— Erguer escudos! — gritou Mandred. Uma chuva de flechas baixou sobre os navios drácares.

Os grandes escudos redondos formaram depressa uma cobertura protetora. Flechas cravaram-se na madeira. Alguns homens caíram no chão aos gritos, mas a linha de combate nos navios drácares não vacilou.

Então houve saraivada atrás de saraivada. Abaixados sob os escudos, era impossível ver os navios inimigos se aproximarem. Para Mandred, aquilo pareceu durar uma eternidade. Suor quente escorria-lhe pela nuca.

Uma ponta de flecha perfurou seu escudo, errando seu braço por pouco. Em alguns lugares, a areia polvilhada sobre o convés dos barcos tingiu-se do vermelho de sangue. A todo momento, as flechas encontravam brechas na parede de escudos.

De repente, a barreira de navios estremeceu. Alguns homens foram arrancados das pernas e fendas se abriram no muro de escudos. Os navios inimigos haviam atingido a barreira. Agora as embarcações dos guerreiros do norte e dos cavaleiros da ordem estavam frente a frente, casco contra casco, como cervos furiosos enganchando suas galhadas em um duelo.

— De pé! — berrou Liodred. — Arqueiros, dez passos para trás! Besteiros nos cestos da gávea!

Os besteiros, cujo equipamento era leve, tinham buscado proteção contra a chuva de flechas sob o telhado de escudos. Agora retornavam para também importunarem o inimigo.

Uma lança acertou o convés bem ao lado de Mandred e ficou presa nele, tremendo na tábua borrada de sangue. Agora que a fileira de escudos estava dissolvida, o jarl podia ver o inimigo novamente. Pranchas largas, onde ficavam os espigões dianteiros de ferro, avançaram rápido. Como presas de um animal, os espigões fincaram-se no convés.

Por toda parte da barreira de navios baixaram pontes de embarque. Acima de Mandred surgiram guerreiros de sobrevestes brancas, curvados atrás de escudos compridos em formato de gota. Cada um deles estampava o brasão do carvalho queimado.

— Por Tjured! — ressoou mil vezes.

Então os cavaleiros da ordem avançaram, descendo pelas pontes.

Escudo por escudo, eles combateram em uma fúria selvagem contra a linha de batalha dos defensores. O machado de Mandred baixou como um raio fulminante e atravessou o escudo e o elmo do primeiro agressor. O jarl desvencilhou a arma do corpo do oponente com um solavanco e, com um golpe de revés, acertou o cavaleiro seguinte sobre a borda do escudo. O aço dos elfos penetrou com um ruído forte na proteção nasal do adversário. Ao seu lado, Liodred lutava como um urso selvagem. Logo o chão estava coberto de guerreiros mortos e agonizantes.

Um golpe de espada fendeu o escudo de Mandred, que com um salto arrancou a lâmina do agressor que ficara presa nele. O machado acertou o cavaleiro pelo lado desprotegido, acertando-o sob o arco costal.

Com outro salto, Mandred subiu em uma das pontes de embarque. Jogou de lado o escudo destroçado e então agarrou o machado com ambas as mãos. Lutava como um louco, avançando passo a passo contra a dianteira do inimigo. Três mândridos o seguiam bem de perto, tentando resguardá-lo de flechas inimigas com seus escudos.

Ao chegarem ao fim da ponte de embarque, os cavaleiros da ordem aglomeraram-se tão perto deles que mal conseguiam erguer seus escudos para se proteger. Numa fúria cega, Mandred avançou sobre eles. Espadas e lanças despedaçaram-se sob o aço dos elfos. Então saltou no meio dos inimigos. Abalroou um cavaleiro enorme com o espigão da ponta do cabo do machado, que entrou pelo seu maxilar e afundou até o cérebro sob a borda do elmo. Ao cair, o gigantesco guerreiro levou consigo dois outros combatentes. O pânico irrompeu no castelo de proa. Aos gritos, os cavaleiros tentavam se pôr em segurança. Alguns até pularam na água por cima do bastião, mesmo que, por estarem vestindo cotas de malha, aquilo fosse morte certa.

Instantes depois, o castelo de proa estava tomado de guerreiros do norte. Ofegante, Mandred ergueu os olhos para o convés principal. Os cavaleiros sobreviventes haviam recuado. Encaravam-no com os olhos arregalados de medo. Outros navios inimigos avançaram por trás para dentro do amontoado de navios presos. Traziam novas tropas.

— Nós precisamos voltar! — soou uma voz rouca ao seu lado. Liodred também tinha aberto caminho até o navio. O rei apontava para o leste. — Eles conseguiram vir por cima dos recifes. A maré não quer lutar! Perderam somente um único navio neles.

Do castelo de proa, Mandred tinha uma boa visão dos combates. A linha de batalha dos guerreiros do norte estava se mantendo. Mas entre eles, a morte fizera muitas vítimas.

Um único navio inimigo havia conseguido passar pelos recifes por um dos lados da barreira de embarcações. Outro navio dos sacerdotes fora incendiado por um barco de fogo. Uma coluna negra de fumaça subia para o céu claro de verão. Ao ataque, outros três dos pequenos barcos de fogo avançavam corajosamente para a morte, mas os cavaleiros tentavam mantê-los a distância com longas varas, enquanto os besteiros atiravam dos cestos da gávea sobre suas tripulações.

Dois navios inimigos haviam sido detidos pelos navios drácares que ficaram para trás como reserva. Mas sete embarcações logo fariam a curva para atacar a barreira pela parte traseira.

— De volta para os drácares! — gritou Liodred com toda a força. — Vamos formar uma linha dupla!

Com o coração apertado, Mandred desceu a ponte de embarque. Atrás deles ressoaram os gritos irônicos dos cavaleiros da ordem. O jarl lembrou-se do punhal guarnecido de ouro que Liodred entregara à esposa.

— Faça os elfos virem, Luth! — murmurou desesperado. — Se mandar nossos aliados eu nunca mais vou pôr as mãos em um chifre de hidromel novamente.

No navio da rainha

Nuramon estava reclinado na balaustrada do Brilho Élfico, o navio-chefe da rainha. Dali, a estibordo, conseguia ver os navios firnstaynenses que estavam presos uns aos outros e impediam, como uma muralha, o acesso seguro ao fiorde. Do outro lado, arqueavam-se as imponentes velas das frotas inimigas, cada uma delas exibindo o símbolo de Tjured, a árvore negra. Nem mesmo a metade deles havia atracado nos navios dos firnstaynenses e se engalfinhado na luta. Na estreiteza do fiorde, os cavaleiros da ordem não podiam tirar vantagem da sua superioridade. Liodred e Mandred tinham obrigado os inimigos a encarar uma sangrenta luta corpo a corpo e, para Nuramon, era impossível avaliar se os fiordlandeses estavam resistindo bem. Só conseguia ver que algo se movia dentro dos navios e que, pelo visto, havia uma grande multidão sem possibilidade de escapar.

Uma parte dos navios oponentes tentava dar a volta na barreira dos fiordlandeses e encontrar uma fresta de passagem pelos recifes, entre os navios drácares e os rochedos. Já havia um navio inimigo parado sobre os escolhos, com o casco dilacerado. Sua tripulação parecia ter se lançado ao mar. Mas o destino daquela embarcação não intimidara os inimigos. Os navios continuavam tentando achar um caminho pelos recifes para cercar os fiordlandeses ou então para atacar o navio da rainha.

Nuramon esperava que nada tivesse acontecido a Mandred e Liodred. As leis da batalha eram diferentes das leis do duelo. O acaso podia decidir entre a vida e a morte. Se ao menos o Brilho Élfico fosse mais rápido! Nuramon percorreu com os olhos os remos do navio, que desapareciam sob ele para dentro do costado. Deviam ser cerca de quarenta. Ele vira uns duzentos remadores entrarem por baixo do convés. Certamente estavam dando o seu melhor em seus bancos lá embaixo, mas o enorme navio da rainha avançava lentamente. As pequenas galeras de Reilimee estavam muito na frente deles e logo chegariam aos fiordlandeses. Nuramon ouvira que a feiticeira do mar, cujo nome ninguém conhecia, equipara aqueles navios. Atrás deles iam os navios trirremes de Alvemer. Nuramon ficou surpreso com a rapidez com que as frotas da Terra dos Albos haviam conseguido se lançar ao mar. Levou apenas doze dias para equipar e reunir todos os navios.

O portal por onde tinham vindo já se fechara novamente havia muito. Ele jamais se esqueceria do maravilhoso jogo de cores sobre o mar da Terra dos Albos que Emerelle produzira com seu feitiço. O portal foi tão largo que a frota inteira o atravessou em fila ao raiar do dia.

Entre os guerreiros, circulava todo o tipo de rumores sobre Emerelle. Alguns explicavam o fato de as galeras da rainha estarem viajando sem navios de escolta, dizendo que era para atrair os inimigos para si. Ao olhar ao redor, Nuramon imaginava que esse rumor estivesse certo. O Brilho Élfico era como um campo de batalha ambulante: os remadores no casco, sentados junto aos remos, e os guerreiros reunidos no convés. Eram mais de trezentos elfos esperando pela luta no espaço de sessenta passos entre a popa e a proa. A rainha até abrira mão dos marinheiros responsáveis pela vela, de forma a poder ter mais guerreiros a bordo. Diziam que a vela não seria usada nessa batalha, e por isso os mastros da galera haviam sido baixados.

O navio dirigia-se ao flanco esquerdo dos fiordlandeses para apoiá-los ali. Obilee explicara a estratégia a Nuramon: ela e os guerreiros das outras galeras se lançariam aos navios drácares dos fiordlandeses, aliviando a linha de batalha dos aliados. Estes deveriam então retornar às galeras, descansar e mais tarde voltar a intervir na batalha.

Alguém tocou o ombro de Nuramon. Ao virar-se, ele viu mestre Alvias.

— A rainha gostaria de vê-lo — disse ele.

Nuramon apanhou seu arco e seguiu o escudeiro de Emerelle. Alvias estava com uma aparência fora do comum: com sua armadura de couro e a espada presa junto ao quadril, parecia um guerreiro. Diziam que tinha lutado ao lado da rainha já na primeira Guerra dos Trolls.

Alvias o levou para a frente do castelo de popa, onde Emerelle e Yulivee estavam cercadas de guardas. A rainha dava instruções aos comandantes. Vestia uma túnica cinzenta de feiticeira, como na noite que antecedera a Caçada dos Elfos.

Nuramon também viu Obilee, que parecia esperar pelas últimas ordens antes da batalha. Estava com a mesma armadura que vestia naquela ocasião na sala do trono.

A pequena Yulivee saudou Nuramon com um gesto brincalhão. Como a rainha, também usava uma túnica cinza. O elfo ainda estava incomodado com o fato de Emerelle ter trazido a pequena feiticeira consigo. Ele se preocupava com ela. Aquilo não era lugar para uma pequena elfa, por mais poderosa que pudesse ser.

Depois de falar com Obilee, a rainha acenou para que Nuramon se aproximasse. Cumprimentou-o com simpatia e disse:

— Vejo que você está preocupado com Yulivee. Mas digo que não há lugar em que estaria mais segura do que ao meu lado.

Ele concordou com um movimento rápido de cabeça. A rainha tinha razão. Mesmo assim, ele preferiria que Yulivee tivesse ficado no castelo da Terra dos Albos.

— Nuramon, eu gostaria que fosse junto com Obilee. — A rainha apontou para a guerreira. — Ela assumirá o comando no castelo de proa assim que Dijelon e Pelveric tiverem se juntado aos fiordlandeses.

— Sim, minha rainha.

— Vá!

Yulivee soltou-se de Emerelle e aproximou-se de Nuramon.

— Mas você vai voltar, não é? — perguntou ela.

Nuramon pôs-se de joelhos.

— Isso no seu rosto é preocupação?

Ela desviou o olhar do dele e fez que sim com a cabeça.

— Não tenha medo. Fique com a rainha. Você ouviu as palavras dela. — Beijou-a na testa: — E agora vá.

Sem dizer nada, Yulivee voltou para perto de Emerelle. Lá ergueu um coldre e sorriu. Dentro dele estavam as flechas que Nuramon encontrara junto com o arco no reino dos anões. Primeiro quisera levá-las consigo para a luta. Todavia, a rainha o aconselhara a usar flechas comuns em vez delas, e guardá-las para lutas especiais.

— Precisamos ir, Nuramon! — disse Obilee.

Nuramon olhou para Yulivee uma última vez e então caminhou junto com Obilee em direção à proa. A guerreira tinha a expressão aflita.

— O que você tem, Obilee? — perguntou ele.

— É que... — ensaiou ela, interrompendo-se como se não se atrevesse a continuar. Mas então encarou-o diretamente e disse: — Eu não deveria estar comandando a você, Nuramon.

— Você já não é mais a garota daquela época — respondeu ele. — É uma grande guerreira, muito mais importante do que jamais serei. Você já teve sucesso em tantas batalhas. Eu a admiro.

Os lábios de Obilee tremiam.

— Não fique triste por mim ou por Noroelle. A morte não é o fim. Nada pode me impedir de encontrar Noroelle, nesta vida ou na próxima. E o que você acha que ela dirá quando a rever? Ela vai ficar tão orgulhosa quanto eu.

Obilee sorriu, e finalmente lembrou Nuramon do ser alegre de antes.

— Obrigada, Nuramon.

O elfo não tinha medo de morrer. A morte não significaria o fim de sua busca; se muito, somente o deteria por algum tempo. Na noite anterior, ele contara à sua linhagem sobre sua viagem e pedira a eles para conservar esse conhecimento no caso de ele morrer. Para isso, havia começado a escrever um diário, bem à moda de seus amigos anões. Devia tê-lo começado muito antes, mas nunca se sentira tão frente a frente com a morte quanto antes desta batalha.

Então chegaram aos guerreiros de Obilee — os únicos de Alvemer naquele navio. Eram reconhecíveis pelo brasão na sobreveste, uma ninfa prateada em fundo azul. Eram cerca de cinquenta homens e mulheres, metade deles armados com espadas longas e metade também com arcos. Enquanto Obilee destinava algumas palavras a seus guerreiros, Nuramon tentou olhar mais adiante. Mas os combatentes estavam tão próximos uns dos outros que sua visão estava bloqueada para qualquer lado.

Quando iria começar finalmente? Em algum lugar à sua frente, Mandred estava em dificuldades, e aquela galera sequer se movia! Só restava-lhe esperar que os navios de Reilimee já tivessem chegado aos fiordlandeses.

Nuramon lembrou-se de Farodin. Ficava aflito só de imaginar que ele agora estava junto do duque dos trolls, mesmo que o amigo tivesse dito que não precisava se preocupar.

Uma guerreira espremeu-se no meio da multidão.

— Você é Nuramon? — perguntou ela.

Ele a encarou admirado.

— Sim.

— Meu nome é Nomja.

Aquele era o nome da jovem companheira que estivera com ele na viagem de busca por Guillaume.

— Nomja! É você...?

Ela balançou a cabeça num gesto afirmativo.

— Sim, a sua companheira de Aniscans. Eu renasci.

Ela não tinha qualquer semelhança com a guerreira daquela época. Era baixa, tinha os cabelos negros e curtos e parecia muito mais madura que a jovem combatente que o acompanhara na procura por Guillaume. Mas em seus olhos havia a mesma alegria que na época via nos da companheira. A morte de Nomja durante a fuga de Aniscans afetara muito todos eles, principalmente Mandred.

Nuramon abraçou-a como uma amiga que há muito tempo não via.

— Estou feliz por você estar aqui.

Ao soltar-se dela, percebeu o quanto seu abraço surpreendera a guerreira.

Nuramon olhou para o arco em suas mãos.

— Você é atiradora?

— Sim.

— Na época você já era muito boa nisso.

Ela sorriu, mas ficou em silêncio. Com certeza Nuramon era estranho para ela. Era óbvio que não conseguia se lembrar da vida anterior, e ele a tratava como um anão faria com alguém renascido.

De repente, Nuramon ouviu gritos. Vinham de mais adiante.

— Preparem-se! — gritou Obilee.

Nuramon esticou o pescoço, mas sua visão ainda estava bloqueada. A seguir, escutou o tinir de aço e os gritos dos feridos.

À bombordo ouviam-se os brados dos guerreiros:

— Mais rápido!

Nuramon empurrou dois guerreiros de lado e avançou com esforço para a balaustrada a bombordo. O que viu dali atingiu-o como um raio fulminante. Um imenso navio de três mastros, ostentando a árvore negra de Tjured na grande vela, vinha na direção deles. Os inimigos tinham conseguido passar pelo recife daquele lado e agora se aproximavam rapidamente, tentando interceptar o caminho do navio da rainha. Quando gritos soaram no meio do navio e flechas passaram voando sobre suas cabeças, ficou claro que a batalha já tinha começado para eles.

De repente, um solavanco sacudiu o navio. Uma segunda pancada foi sentida no navio da rainha, e quase derrubou Nuramon. O navio inimigo os acertara bem no meio! Então começou o caos. Gritos de guerra atingiam as orelhas de Nuramon vindos por todos os lados.

Os guerreiros ao seu redor começaram a ficar inquietos. Nomja também parecia nervosa. Só Obilee parecia não saber o que era medo.

— Arqueiros, à direita! — ordenou ela.

Nuramon obedeceu sem hesitar. Avançou para o outro lado do castelo de proa, onde a unidade assumia formação ao longo da balaustrada.

Um trecho mais adiante, ele viu uma fila inteira de navios fiordlandeses. Vários navios inimigos haviam parado ali, assim como as galeras de Reilimee, e já estavam na luta. Os navios inimigos de Fargon formavam uma aglomeração densa; estavam bem amarrados uns aos outros e os reforços dos cavaleiros da ordem que chegavam precisavam passar por vários navios, saltando de um para o outro, para chegar à linha de combate. O campo de batalha crescia e crescia, e o Brilho Élfico, onde Nuramon estava, tornou-se igualmente parte dele. Ele tentou descobrir Mandred no meio dos firnstaynenses, mas seu companheiro estava oculto no meio da multidão em combate.

Obilee os conduziu até uma abertura na balaustrada. Ali havia sido enganchada uma escada de madeira, que terminava bem em cima do primeiro navio dos firnstaynenses.

— Guerreiros, venham até mim aqui na frente! — gritou Obilee. — Vocês, atiradores, continuem na balaustrada! E disparem somente tiros seguros!

Outros atiradores vieram de trás e preencheram as aberturas até o fim da balaustrada. Os demais tomaram posição na segunda fila e assumiriam caso algum dos atiradores caísse.

Assim como os atiradores à esquerda e à direita, Nuramon puxou uma flecha do coldre, posicionou-a sobre a corda e procurou um alvo certo. Ali! Bem na frente deles encontrou um cavaleiro que estava descendo para o navio por uma escada de portaló. Nuramon estava prestes a soltar a corda quando percebeu Nomja atirar uma flecha ao seu lado e acertar o alvo.

Os guerreiros moviam-se de forma imprevisível e rápida demais para Nuramon. Finalmente descobriu um grupo de guerreiros inimigos reunidos a uma certa distância, claramente preparando um ataque coletivo. Estavam distantes ao menos cem passos, mas por serem tão numerosos e naquele momento não estarem sendo acossados por oponentes, Nuramon atirou neles. Sequer esperou a flecha chegar e imediatamente puxou uma nova do coldre.

Um dos guerreiros caiu de joelhos com um ferimento na barriga, o que fez seus companheiros buscarem abrigo atrás da balaustrada mais baixa. Outras flechas os obrigaram a recuar até ficarem fora do alcance dos elfos.

Buscando um novo alvo, Nuramon viu um estandarte com uma estrela azul em fundo prateado. Aquela era a bandeira do Estrela dos Albos, que o rei Njauldred um dia lhe dera de presente! Não era o mesmo navio em que, na ocasião, velejara com Farodin e Mandred para o leste. Era muito maior, mas a bandeira havia sido mantida, talvez em memória às glórias passadas.

Finalmente Nuramon avistou Mandred. O jarl mantinha-se na beirada do Estrela dos Albos, onde encontrara espaço para golpear com seu machado. Seus homens e ele tinham se metido em dificuldades. Os oponentes estavam em número muito maior. Além disso, um navio da ordem acabara de avançar por entre as galeras dos elfos e atacava o drácar à esquerda do Estrela dos Albos. Os cavaleiros lançaram-se de sua embarcação e ameaçavam romper a linha de batalha dos fiordlandeses, acossando-os por todos os lados. Estavam criando uma barreira entre Mandred e os elfos.

Nuramon apontou para o navio da ordem, mirando na prancha curta que o ligava ao navio vizinho. Um guerreiro de Tjured tentava chegar ao Estrela dos Albos. Nuramon atirou uma flecha; o tiro fez um grande arco no ar antes de acertar o ventre do homem.

O elfo ficou insatisfeito. Tinha mirado na cabeça! Simplesmente demorou demais para que sua flecha acertasse o alvo. No fim, ainda poderia ter acertado um amigo em vez de um inimigo.

Colocou uma nova flecha na corda. Então aconteceu o que Nuramon temia: um guerreiro aproximou-se furtivamente por trás de Mandred enquanto o humano estava ocupado com dois oponentes à sua frente! Nuramon apontou rápido a arma. Precisava ter certeza de realmente acertar o homem. Um erro e Mandred poderia estar morto. No momento em que o guerreiro inimigo ergueu a espada, Nuramon esqueceu todo o cuidado e soltou a corda. Prendeu a respiração enquanto o tiro voava num grande arco em direção ao alvo.

A flecha atingiu o homem no peito.

Mandred, que percebera o guerreiro em queda, deu meia-volta e aplicou-lhe um golpe de machado que o lançou ao mar. Então olhou admirado ao redor e chamou alguns guerreiros para perto com um sinal. Entre eles, Nuramon reconheceu Liodred, vestindo a armadura de Alfadas. Mandred apontou para cima na direção de Nuramon, mas não pareceu reconhecê-lo. Então indicou os cavaleiros da ordem que os separavam dos guerreiros elfos. Os fiordlandeses no Estrela dos Albos reuniram-se ao redor de Mandred e Liodred. Queriam avançar, mas isso significava ter de lutar entre duas fileiras de inimigos.

— Lá estão Mandred e o rei Liodred! — gritou Nuramon para os arqueiros próximos. — Eles estão cercados e querem avançar para abrir caminho até nós!

Obilee aproximou-se de Nuramon e olhou para baixo, para o Estrela dos Albos. Então gritou:

— Todos à esquerda de Nuramon atirem sua primeira flecha sobre os guerreiros que estão à frente de Liodred; todos à direita atirem sobre os perseguidores! A partir da segunda flecha vocês continuam atirando somente nos perseguidores. Nenhum deve conseguir passar! — Com essas palavras, ela afastou-se da balaustrada, deixando os atiradores com seu trabalho.

Eles esperaram Mandred dar a ordem de avanço.

— Agora!

O jarl ergueu o machado, e no meio de uma enorme gritaria de luta, os guerreiros ao seu redor pularam para o quarto navio.

Nuramon e seus companheiros de batalha soltaram suas flechas. Numa chuva densa como granizo, elas voaram sobre o inimigo. Aqueles que permaneceram ilesos não sabiam o que estava acontecendo e encolheram a cabeça.

Mandred e alguns dos firnstaynenses pareceram ficar surpresos, mas logo se apressaram a avançar. A segunda salva de tiros acertou os perseguidores e os fez parar. Logo os escudeiros seguiram adiante. Mas esse tempo precioso devia bastar para tornar segura a travessia de Mandred. Os cavaleiros da ordem que seguiam os fiordlandeses agora estavam quase cercados. Ao perceberem que estavam em posição perdida, retornaram para seu navio de dois mastros. Mandred e os elfos de Pelveric se encontraram. Nuramon conseguiu ver Pelveric apontando para ele.

Mandred levantou o machado nas alturas e gritou:

— Nuramon!

Então correu em sua direção seguido pelos mândridos, atravessando as fileiras de guerreiros elfos.

Nuramon respirou aliviado e olhou para baixo, para o campo de batalha. Parecia que o plano da rainha estava dando certo. Por todos os lados, ao longo da barreira de navios, guerreiros elfos substituíam na luta os fiordlandeses esgotados, e a linha de batalha transversal sobre os navios possibilitava deter o inimigo novamente. Mas eles ainda estavam em desvantagem, já que os cavaleiros da ordem tinham ainda muitos navios e guerreiros. Todavia, as coisas ainda mudariam de figura.

Principalmente quando os trolls chegassem.

Magia poderosa

— Recolher vela de proa!

Os dedos de Farodin agarraram-se na balaustrada. Era inacreditável! Já era uma tortura o quanto os navios dos trolls eram lentos, e agora ainda iam recolher a vela! O elfo estava de pé sobre o castelo de proa, alto como uma torre, do Triturador, o navio-chefe do duque Orgrim. A armada era composta de vinte navios que Boldor, rei dos Trolls, convocara. Cada um desses pesados veleiros lembrava um castelo ambulante; os maiores deles tinham mais de trezentos guerreiros trolls a bordo. Essa força-tarefa seria decisiva, se é que conseguiria se mover para dentro da batalha.

O duque Orgrim estava em pé ao lado do timoneiro e aconselhava-se com Skanga, sua xamã. Aquilo era de perder as estribeiras, pensou Farodin. Já iam muito tarde. No horizonte, ele conseguia ver uma linha branca e fina diante das montanhas cinzentas da costa, formada pelas velas da frota inimiga. Algumas colunas de fumaça evidenciavam que a batalha já havia começado. O ataque dos trolls decidiria a luta. E o que esses traiçoeiros comedores de elfos faziam? Recolhiam a vela!

— Você está com uma cara tão tensa, mensageiro. — Orgrim e a xamã tinham vindo até ele. O duque dos trolls estava armado para a luta. Vestia uma armadura de peito de couro escuro. Uma pele de urso dava a volta em seus ombros. Estava apoiado sobre um martelo de guerra com cabeça de granito cinza.

— Deve ser por causa da minha ingenuidade, mas não cabe a mim deduzir a estratégia que vocês usarão para dar suporte nessa batalha — respondeu Farodin, esforçando-se para não dizer com tanta clareza o que achava de seus aliados.

A xamã encarou-o de forma sinistra. Farodin sentia o poder da sua feitiçaria.

— Ele acha que vamos esperar com calma enquanto os cavaleiros da ordem massacram os fiordlandeses e os elfos. Ele tem dúvidas de que realmente queremos nos apressar para ajudar nossos antigos inimigos — disse a velha.

— Farodin é sábio de guardar esses pensamentos para si próprio. Ele ofenderia o meu povo se dissesse isso abertamente, eu teria de enfiá-lo num saco com pedras e mandar jogá-lo ao mar.

O duque dos trolls lançou-lhe um olhar penetrante. Farodin desejou também poder conhecer os pensamentos do seu velho inimigo. Ele havia revisto Orgrim na corte de Boldor, rei dos Trolls. Como enviado de Emerelle, fora recebido com todas as honras e, para a enorme surpresa de Farodin, Boldor concordara com o pedido de ajuda, depois de se aconselhar com seu duque por uma noite inteira.

Por fim, Orgrim expressou seu desejo de que o enviado fosse alojado a bordo de seu navio. Desde o primeiro momento em que circulara por entre os trolls do Pico da Noite, Farodin sentira a sua inimizade. Estivera até convencido de que não sobreviveria à primeira noite a bordo do Triturador. O duque, porém, esforçava-se no trato com ele, tentando a todo momento engatar conversa.

— Quando nós vamos atacar? — perguntou Farodin, impaciente.

O navio estava pronto para o combate. No convés principal e no castelo de proa, aglomeravam-se trolls com escudos imensos. Pedras que pelo visto serviriam para serem arremessadas estavam prontas ao longo da balaustrada. As menores delas eram do tamanho de uma cabeça de criança. Farodin perguntava-se como alguém conseguia erguer pedras como aquelas, mesmo sendo troll.

— Você não está sentindo? — perguntou Skanga.

A cada movimento que fazia ouvia-se o ruído das penas, ossos e pedras costurados em seu vestido grosseiro de couro, que também pendiam de seu pescoço em inúmeros cordões.

— O que eu não estou sentindo?

— O poder da magia, elfinho. O poder da magia. — A xamã riu disfarçadamente. — O nível da maré mudou. A maré baixa não acontecerá. Você consegue mensurar o tamanho do poder que é preciso ter para alterar o ciclo das marés? Essa é uma magia realmente poderosa.

— Recolher vela principal! — ordenou Orgrim. — Lançar âncora.

Farodin sentiu seu estômago encolher. Aquilo tudo não podia ser verdade!

— Você teria a bondade de me dizer o que isso significa, Orgrim?

O duque apontou para o navio do rei. No mastro principal, havia sido hasteada uma grande bandeira vermelha.

— Boldor convocou todos os duques e xamãs para o conselho de guerra. Ele vai querer que você também venha. — Orgrim virou-se rapidamente e acenou para alguns guerreiros. — Aprontem o bote!

— Você não está falando sério — gritou Farodin, indignado.

— Elfo, eu sei o que você e os seus iguais pensam do meu povo! Mas, de maneira nenhuma, somos os imbecis impulsivos que vocês acham que somos. Nós planejamos as nossas batalhas. E dessa vez também será assim. Não havíamos contado com um mágico entre os humanos, e ainda por cima tão poderoso. Nós vamos adaptar nossos planos à nova situação.

— Ele está com medo de que desertemos dos sacerdotes brancos — disse a xamã.

Farodin ficaria feliz de torcer o pescoço daquela velha bruaca.

Orgrim soltou um som de resmungo. Então pôs-se de joelhos, de forma a ficar com os olhos na mesma altura dos de Farodin.

— Eu sei que você preferiria ver a mim e a todos os trolls mortos. E que sua confiança em nós chega tão longe quanto você consegue cuspir. Apesar disso, eu espero que no deserto dos seus pensamentos de vingança ainda brilhe uma última fagulha de juízo. Os sacerdotes de Tjured querem eliminar todos os filhos de albos. Tanto faz se centauros, elfos, fadas das flores... ou trolls. Estamos lutando com vocês porque sabemos que do lado dos fiordlandeses e elfos nós somos os mais fortes. E porque sabemos que é só questão de tempo até que os sacerdotes brancos também ataquem o Pico da Noite e todos os nossos outros castelos. Você é um sobrevivente das Guerras dos Trolls, Farodin. Você sabe que nós não esperamos a guerra chegar até nós. Nós a levamos para o território dos nossos inimigos. É por isso que estamos aqui!

— E o que os impediria de assistir com toda a calma aos seus inimigos se matarem uns aos outros para vocês então acabarem com os sobreviventes?

Orgrim ergueu-se abruptamente.

— Talvez seja assim que um elfo pense, mas não um troll! Seja cuidadoso, Farodin. Mesmo os maiores copos uma hora se enchem.

Diante da rainha

Mandred tirou o elmo e passou os dedos pelo cabelo úmido de suor. Nuramon conduzira Liodred e ele até a popa da galera. O jarl estava orgulhoso por ter amigos como Nuramon. O elfo salvara a sua pele. E uma guerreira que tinha a alma de uma antiga companheira o ajudara nisso. Nuramon a apresentara como Nomja... Nomja, a única! Pela primeira vez, ele vivenciou o que o renascimento significava. Tinha presenciado a morte da elfa e agora via sua alma em uma nova roupagem. Ela estava de pé na proa do navio, abrigada por um escudeiro, fazendo o que sabia de melhor também na sua vida anterior: atirando com um arco!

Os guerreiros elfos estavam tomando de assalto um grande navio, cuja proa acertara em cheio a balaustrada do Brilho Élfico. Parecia que os elfos tomariam o navio em breve.

Sem se atentar ao que acontecia na batalha, Nuramon continuou levando-os até o castelo de popa. A rainha os aguardava na frente dele.

— Mandred! — gritou Yulivee, correndo em sua direção.

O jarl ficou surpreso de ver a pequena feiticeira ali, mas certamente Emerelle sabia o que estava fazendo. Mandred pegou a menina nos braços e a pequena pregou-lhe um beijo na bochecha.

— Que bom que você está aqui! — disse ela, brincando com suas tranças.

Nuramon voltou-se para a rainha:

— Este é Liodred de Firnstayn, e de Mandred você com certeza ainda se lembra.

— Claro — disse Emerelle. — Mas primeiro me informem: como está a batalha?

— No momento estamos ganhando terreno — respondeu Nuramon.

— O inimigo está em maioria esmagadora — completou Mandred, entrando na conversa. — Não conseguimos proteger nossos flancos. Eles tentarão nos cercar. Quantos navios e guerreiros trouxe, soberana? — disse o jarl, pondo Yulivee no chão.

— Mandred Aikhjarto! Como sempre, você fala sem se importar com o fardo do protocolo cortesão! — disse a rainha, sorrindo. — Meu coração se alegra em vê-lo. E me alegro da mesma forma por conhecê-lo, Liodred, rei de Firnstayn. Nós viemos com todos os navios e guerreiros que os elfos da Terra dos Albos puderam convocar. Nós protegeremos as laterais de vocês, e os meus combatentes substituirão os guerreiros esgotados na linha de batalha da barreira de navios. Faça seus homens recuarem, Liodred, e deixe-os recuperar as forças. Nós, filhos de albos, estamos aqui para pagar com nosso sangue a nossa velha dívida.

Liodred curvou-se.

— Nosso descanso será o mais breve possível, logo retornaremos à batalha. O rei deve ficar perto de seus guerreiros, senão eles perdem sua... — foi interrompido por gritos altos de horror.

No meio do navio, um grupo de elfos veio abaixo como se tivesse sido atingido por flechas invisíveis. Alguns se retorciam em agonia, soltando gritos estridentes. Mas a maioria deles já estava deitada e inerte.

Mandred olhou para o navio inimigo do outro lado, e mal acreditou no que seus olhos viram. Havia pouco vislumbrara que os elfos estavam ganhando território, mas agora só havia inimigos de pé ao longo do bastião. Não havia mais lutas em lugar algum do grande navio!

De repente, três guardas caíram no chão bem ao lado da rainha, como se uma forte lufada de vento os tivesse atingido para arrancar a vida de seus corpos.

Apavorados, todos recuaram para estibordo.

— Pelos deuses, o que está acontecendo aqui? — gritou Liodred. Em seu rosto, estava estampado puro horror. — Mas que forma pérfida de matar é essa?

Nuramon arrastou Yulivee consigo. Só a rainha estava como se sob o efeito de um encanto. Continuou imóvel, olhou para o navio do outro lado e sussurrou:

— Então...

Mandred conseguiu ver o que o olhar dela mirou. No castelo de popa do grande navio coca havia um homem de pé, com vestes azul-marinho tremulantes e as mãos levantadas. Parecia um dos monges que tinham visto em Iskendria.

— Emerelle! — gritou Nuramon.

Mestre Alvias pulou na frente da rainha e empurrou-a para trás. Algo pareceu agarrá-lo. Ele cambaleou e pôs a mão sobre o coração. Então caiu aos pés de Emerelle.

— Alvias? — espantou-se a soberana, incrédula, ajoelhando-se ao lado do velho mestre da corte.

Agonizante, Alvias agarrou sua mão. Lutava desesperadamente para dizer algo.

— Perdoe-me a grosseria, minha rainha! — resfolegou ele, com a voz trêmula. — É meu destino fazer... — Seus olhos então ficaram vidrados, e sua respiração parou.

No rosto da rainha primeiro viu-se o choque, mas logo a seguir um sorriso brotou.

Mandred ficou abalado de vê-la sorrir num momento como esse. Será que Emerelle não conhecia mesmo a compaixão? Nem mesmo por seus confidentes mais próximos? O velho mestre dera sua vida por ela e ela agora sorria!

De repente, uma luz começou a brilhar ao redor da rainha. Saiu do corpo de Alvias, rodeou-o e envolveu-o como um pano de seda cintilante. Então a silhueta do mestre começou a desvanecer no brilho prateado. A rainha dos elfos continuava segurando sua mão, mas enquanto os dedos delgados dela continuavam visíveis, os dele foram ficando transparentes. A armadura e a espada do mestre também desbotavam. Por fim, Alvias e o brilho prateado que o cercava tornaram-se um só e a luz se perdeu como fumaça dissipada pelo vento. Nada restou além de um aroma de flores que parecia familiar a Mandred. Ele já o sentira uma vez em Firnstayn, no quarto onde a elfa Shalawyn morreu.

O brilho cintilante ao redor de Alvias devia ter sido o luar. Nuramon e Farodin já haviam falado muitas vezes sobre isso, mas todas as palavras deles não tinham conseguido descrever a Mandred como realmente era. O jarl tinha a sensação de ter sido testemunha de algo divino, de um milagre.

Os outros também estavam profundamente comovidos e até se esqueceram da batalha por um instante. Yulivee olhava de boca aberta para o lugar onde Alvias desaparecera.

A rainha aceitou a ajuda de Nuramon para se levantar.

— Ele me salvou — disse ela. — Então era esse o seu destino.

— O que o matou? — perguntou Yulivee a Nuramon.

Parecia estar com tanto medo que só murmurava.

— Eu não sei — respondeu o elfo.

Mandred olhou para o homem na túnica azul-marinho de monge. A morte de Alvias e sua partida para o luar, tudo isso durara somente poucos momentos. O sacerdote de Tjured agora parecia totalmente esgotado. Estava curvado junto à balaustrada, tendo de se segurar nela com ambas as mãos. Cavaleiros da ordem se apressaram para perto dele para protegê-lo com seus escudos.

“Padres malditos”, pensou Mandred. Esses bastardos já não tinham mais nada em comum com aquele que chamavam de santo, o curandeiro Guillaume. Não era possível se distanciarem mais dos ideais de Guillaume do que... O jarl lembrou-se do incidente em Aniscans. “Por Luth! Não pode ser verdade!”, pensou.

— Você se lembra de Aniscans, Nuramon? — perguntou com a voz meio sufocada. — Do que aconteceu quando chegamos à praça do mercado?

— Por todos os albos! — Com os olhos arregalados de horror, o elfo olhou para o navio coca de lateral alta. — Eles vão simplesmente nos matar, e nem precisarão de espadas para isso.

Com um ruído, uma ponte de abordagem caiu sobre o navio-chefe dos elfos. Já estava formada uma unidade de cavaleiros da ordem para descer por ela. Os sacerdotes e seus guardas deixaram o castelo de popa e juntaram-se a seus guerreiros.

Nuramon dirigiu-se a Emerelle:

— Rainha, precisamos sair daqui, senão tudo estará perdido.

Liodred apontou a estibordo.

— A parede de escudos na barreira de navios continua de pé, soberana. Nós podemos atravessar por cima dos drácares para chegar a outra galera élfica.

Os poucos elfos sobreviventes a bordo avançaram contra a ponte de embarque para deter os cavaleiros antes que muitos deles conseguissem pôr os pés no navio.

— Mândridos comigo! — gritou Liodred, indicando aos guerreiros o drácar próximo. — O rei exige o seu sangue!

— Rainha? — perguntou Nuramon.

Emerelle somente sacudiu a cabeça. Pegou a mão de Yulivee e observou a pequena elfa, perdida em seus pensamentos. Mandred viu uma única lágrima descer por sua face, como se já chorasse pelo fim de tudo.

Jogo de ossos

Os ossos saltaram sobre a grande mesa com cartas, montada no meio do Marreta dos albos, o navio-chefe do rei dos trolls. Farodin enganchara os polegares no seu cinto de espada e esforçava-se para manter a calma. A maneira como os trolls faziam guerra era estranha para ele, para não dizer pior. Olhou de soslaio para as nuvens de fumaça que subiam do outro lado dos rochedos. Como será que estaria a batalha?

A velha xamã olhou para os ossinhos sobre a mesa.

— A sombra da morte recai sobre Emerelle — disse com voz inexpressiva. — É um humano que a está agarrando com seu poder. Um único homem já matou mais de cem elfos.

Todos os olhos voltaram-se para Farodin.

— Isso... isso é impossível — disse ele. — Nenhum humano jamais superou um elfo na luta. Você deve estar enganada.

— Você diz isso porque é pimenta nos seus próprios olhos, não é? — perguntou Boldor.

O rei dos trolls tinha quase três metros de altura. Grandes cicatrizes cobriam seu torso nu. Suas longas orelhas pontudas haviam sido rasgadas e remendadas. Olhos claros espiavam por baixo de sua testa grossa, encarando Farodin com ar de crítica.

— Jogue os ossos mais uma vez, Skanga!

A xamã obedeceu, com um olhar aborrecido de relance para Farodin. Os ossinhos amarelados e gastos pularam e rolaram sobre a mesa. Skanga entrelaçou os braços na frente do peito.

— É como eu disse: a sombra da morte recai sobre Emerelle. Estou sentindo nitidamente o poder maligno do humano. É o seu tipo de magia que o faz tão mortal. Ele age de forma totalmente diferente dos nossos feitiços. Tira a força do mundo e dos corações dos elfos. É isso o que os mata. Tanto faz que feitiço seja: não se deve ficar perto desse humano.

— Essa magia também mataria trolls? — perguntou duque Orgrim.

— Ela mata qualquer filho de albos!

— E é possível se proteger contra ela com outro feitiço? — acrescentou o duque.

— Não. Essa magia é diferente. Nada oferece proteção contra ela. Contudo, esse feitiço não é capaz de ferir humanos.

Farodin lembrou-se então dos acontecimentos em Aniscans. Haveria um segundo homem como Guillaume? Será que um humano conseguiria se tornar tão poderoso quanto um bastardo meio elfo, meio devanthar?

— E o que você nos aconselha a fazer então, Skanga? — perguntou seriamente o rei dos trolls.

— Quem quer que se atreva a chegar perto do feiticeiro estará cuspindo na cara da morte. No momento, ele está enfraquecido. Mas seu poder cresce novamente a cada batida de coração.

O rei esfregou o punho na testa.

— Deem-me um barco — disse Farodin, decidido. — Eu vou lutar ao lado do meu povo.

Boldor o ignorou.

— O que vai acontecer se intervirmos na batalha?

A xamã lançou os ossos novamente. Dessa vez olhou por um bom tempo para o padrão intrincado.

— Se nós lutarmos, sangue real será derramado — disse.

O rei passou o dedo indicador sobre seu grosso lábio de cima, desconfiado.

— Emerelle e o rei da terra dos fiordes também estão lutando, não é?

— Ambos estão face a face com o feiticeiro terrível.

Boldor golpeou a mesa de cartas com o punho.

— Mas que merda duêndica! — berrou impulsivamente. — Não vamos ficar aqui esperando, assistindo Emerelle e esse rei humano colherem todos os louros sozinhos. Recolham a vela e tripulem os remos! Nós vamos para a batalha. — E apontando para as colunas de fumaça atrás dos rochedos: — Derramem água sobre os conveses. Não quero ver nenhum dos meus navios queimar.

— De que maneira devemos atacar? — perguntou Orgrim.

— À maneira dos trolls! Vamos mandar para o fundo do mar todos os navios que se puserem no nosso caminho.

Mais uma vez os ossos pularam.

— A ala oeste corre perigo. Há algo... — A xamã afastou alguns ossos uns dos outros. — Há algo escondido ali.

O rei ergueu os olhos e apontou para as colunas de fumaça:

— Não preciso da sua ajuda para reconhecer esse perigo, Skanga. Lá, a maioria dos navios está em chamas. Nós vamos ter cuidado e prestar atenção em faíscas que venham pelo ar.

Emerelle em perigo

Estavam em uma luta desesperada. Somente Mandred, o rei Liodred e os mândridos protegiam os elfos de serem cercados pelos inimigos. Os firnstaynenses tentavam abrir caminho no convés para que a rainha pudesse escapar pelo castelo de proa e chegar aos drácares. Uma pequena tropa de cavaleiros da ordem havia atravessado e agora ocupava a plataforma de luta na proa, mas os mândridos tinham conseguido isolá-la do restante de suas tropas. Obilee tentava reconquistar o bastião sobre a proa junto com um punhado de guerreiros elfos. Enquanto isso, os mândridos lutavam para evitar uma segunda invasão dos inimigos e empurrar os cavaleiros da ordem de volta para o seu navio coca.

Emerelle estava cercada por sua guarda. Segurava-se forte na balaustrada, apertando Yulivee contra si. Continuava parecendo distante, absorta em pensamentos.

A contagem de feridos subia, e agora só parecia uma questão de tempo até que a superioridade dos oponentes destruísse as suas fileiras de combatentes.

Nuramon mantinha os olhos no navio coca, mas não conseguia ver o sacerdote. Temia que ele, escondido pelo seu séquito, avançasse lentamente. Assim tão perto quanto a rainha estava, ele poderia extinguir suas tropas e ela com um único feitiço.

Um guerreiro tinha dado a volta em Mandred e agora se aproximava. Nuramon preparou-se e atirou rápido. O inimigo caiu no chão, mas dois outros assumiram o seu lugar. Nuramon reconheceu que os mândridos não seriam capazes por muito mais tempo de empurrar os oponentes de volta até o navio coca; agora faziam tudo o que era possível para deixar passar a menor quantidade deles. A luta pelo castelo de proa da galera também não queria progredir. Cavaleiros da ordem ainda se mantinham lá, bloqueando o caminho para os drácares.

Nuramon atirou, atirou e atirou. Quando um guerreiro desviou de uma de suas flechas e já levantava a espada, o elfo soube que jamais conseguiria pôr outra flecha na corda a tempo. Ergueu o arco para acertar o homem com ele, mas um guarda da rainha veio em seu socorro e brandiu sua lança. A marcha do inimigo terminou na ponta dela. O devoto de Tjured arrancou o cabo da mão do guarda, recuou vacilante e caiu sem vida no chão.

De repente, os arqueiros de Alvemer estavam lá, oferecendo-lhes apoio. Nomja aproximou-se de Nuramon.

— O que foi aquilo há pouco? — perguntou ela.

Nuramon teria preferido se calar. Ele próprio não entendia todo o contexto. Lembrava-se o tempo todo das palavras de Mandred. O jarl lhe perguntara se recordava de Aniscans. É claro que Nuramon não tinha se esquecido de como Gelvuun encontrou a morte nos poderes mágicos de Guillaume.

— Lá há um sacerdote de Tjured! — foi tudo que respondeu a Nomja.

Nuramon olhou ao redor em busca de Yulivee. Estava grudada no braço de Emerelle. O som das armas e os gritos dos feridos faziam a pequena elfa se sobressaltar o tempo todo. Seu rosto estava enterrado no traje da rainha. Obilee estava próxima, e dava apoio à luta dos mândridos com seus homens.

— Não avancem muito! — gritou a guerreira elfa.

Conduzia a espada com muita força; ao longo da lâmina tremulavam pequenos raios azuis. Sempre que a baixava sobre um oponente, ele se contraía e gritava como se o feitiço dos raios fosse pior que o aço que penetrava em seu corpo. Atrás de Obilee e seus guerreiros havia elfos desarmados. Eram os remadores!

Mandred e Liodred abaixaram-se com os firnstaynenses, bem como Obilee e seus guerreiros. Assim os arqueiros de Alvemer tinham uma linha de tiro livre sobre os inimigos. Atiravam flecha após flecha, de forma que somente poucos oponentes ousavam avançar. Aqueles que o faziam eram abatidos pelos mândridos nos dois lados dos atiradores. A maioria dos guerreiros recuou até quase a balaustrada, formando ali uma parede de escudos.

Nuramon já havia atirado todas as suas flechas e deu seu lugar na fila para um lanceiro. Dirigiu-se à rainha:

— Emerelle!

Ela olhou para ele, mas não disse nada.

— Nós vamos conseguir — disse ele, mesmo sabendo o quão ruim a situação estava para todos e para a Terra dos Albos.

Olhou para a água por cima da balaustrada e viu que dúzias de elfos nadavam. Seriam os remadores? Ou até mesmo os guerreiros estavam se arriscando a fugir?

Os guardas de Emerelle abriram espaço para Obilee dirigir-se à rainha junto com Mandred e Liodred.

— Nós a levaremos até Ollowain. Ele está lutando não muito longe daqui, em um barco drácar. Mais um ataque e teremos conquistado nosso castelo de proa de volta. Então o caminho estará livre. — Ela respirava com dificuldade.

Emerelle calou-se.

— Rainha? — perguntou Obilee.

— Estou em suas mãos, Obilee — respondeu Emerelle por fim, parecendo olhar através da guerreira.

Nuramon observou o campo de batalha dos fiordlandeses. Outros navios inimigos haviam chegado. O caminho da galera da rainha até o navio de Ollowain seria disputado a cada passo.

— Não vamos conseguir a tempo — gritou Nuramon. E apontando para o navio coca próximo: — O sacerdote está em algum lugar dali. Enquanto estamos aqui, ele reúne forças para seu próximo feitiço. Não podemos mais esperar até que o castelo de proa esteja livre! A cada instante, uma fatalidade pode nos acometer!

— Talvez também devêssemos nadar — sugeriu Yulivee.

Emerelle acariciou a cabeça da pequena.

— Não, a rainha não vai fugir a nado. Eu vou pelos navios! — Finalmente não parecia mais estar desatenta em seus pensamentos. — Obilee! Eu gostaria que você abrisse caminho para nós com seu feitiço.

A guerreira concordou.

— Sim — disse em voz baixa. — Mas isso não será suficiente. Mesmo que eu as salve, o sacerdote pode decidir a batalha a seu favor.

Mandred intrometeu-se:

— Então nós, humanos, precisamos matar o sacerdote agora mesmo. Meus mândridos e eu vamos abrir caminho para chegar até ele!

Nuramon abanou a cabeça.

— Mandred, isso é perigoso demais!

— Se vocês, elfos, morrerem ou fugirem, nós estaremos perdidos. Essa corja de sacerdotes vai aniquilar Firnstayn! Deixe que eu faça o que precisa ser feito! Deseje-me sorte!

Nuramon trocou olhares com Obilee e a rainha. Ambas incentivaram a atitude do humano.

— Mandred! — disse ele. — Eu não conheço ninguém mais corajoso que você, nem filho de humanos, nem filho de albos.

Mandred abraçou Nuramon, e então voltou-se para Liodred:

— Nós vamos penetrar em suas fileiras como uma espada e socá-los de volta para o seu navio!

O jarl olhou para trás mais uma vez. Nuramon teve medo de nunca mais ver seu amigo novamente.

Os firnstaynenses reuniram-se no meio dos arqueiros. Mandred trocou algumas palavras com Nomja.

— Por Firnstayn! — gritou ele.

Os humanos arrancaram, cobertos por flechas à esquerda e à direita. Com tinidos de armas e gritos selvagens, lançaram-se sobre a parede de escudos dos cavaleiros.

— Nós precisamos ir! — orientou Obilee.

O olhar de Nuramon recaiu sobre a escotilha para o convés inferior. Então olhou de volta para o castelo de proa e voltou-se para Yulivee:

— Você está com as minhas flechas?

A pequena estendeu-lhe o coldre com as mãos trêmulas.Recebeu-o agradecido. Então puxou as flechas dos anões para fora, enfiou-as no coldre que estava usando e gritou:

— Obilee! Emerelle! Eu tenho um plano! — disse, apontando para a escotilha que levava até lá embaixo, para o convés dos remadores.

Os quebra-conveses

Sob o convés do Triturador, retumbavam as batidas surdas dos timbales. Os remos afundavam na água nesse ritmo e a revolviam, formando uma espuma branca. Farodin estava surpreso com a disciplina com que os trolls se mantinham no compasso e com a rapidez com que o pesado navio avançava a remo.

Menos de quinhentos metros os separava do grande navio coca que se dirigia até eles. Apenas poucos navios da frota dos sacerdotes haviam conseguido virar e mudar o curso para o novo inimigo, que surgira às suas costas. A maioria esmagadora dos cocas espremia-se no fiorde estreito para oferecer suporte na luta contra a barreira de navios dos firnstaynenses. Seria impossível desvencilhar-se rápido do combate para enfrentar os trolls.

Farodin apertou a tira do elmo em seu queixo e checou a posição de seu cinto de armas. Seu escudo pesado ainda descansava encostado na balaustrada. Ele o pegaria assim que o combate começasse.

O duque Orgrim estava apoiado de forma relaxada em seu martelo de guerra.

— Só vamos lutar quando avançarmos sobre a multidão — disse calmamente. — Aqueles lá na frente não vão nos deter.

Farodin olhou na direção do navio inimigo de três mastros. Era muito menor que a galeaça dos trolls. Por um piscar de olhos, o elfo sentiu respeito pelos cavaleiros da ordem, que atacavam destemidos um inimigo tão mais poderoso. A vela principal com o brasão do carvalho queimado encobria a visão sobre o castelo de popa do navio. Farodin perguntou-se de que maneira os humanos deviam ter se preparado para essa luta tão desigual. Até então o navio coca continuava diretamente na direção deles, como se quisesse abalroar o navio dos trolls.

— Ele vai dar uma guinada no último instante e tentar destruir nossos remos a bombordo ou a estibordo — disse Farodin.

— Eu sei — respondeu Orgrim calmamente.

Acenou para um dos comandantes no meio do navio:

— Preparem os quebra-conveses!

Ao longo da balaustrada, os trolls começaram a se mover.

Agora menos de cem passos separavam os dois navios. Farodin agarrou-se à balaustrada do castelo de popa e preparou-se para o choque. Não tinha dúvidas de que os trolls venceriam o combate. Mas eles perderiam tempo. Um tempo que eles não tinham mais, se quisessem ajudar Emerelle e os fiordlandeses em sua luta desesperada.

Os besteiros no castelo de proa do navio coca abriram fogo. Um troll caiu com um tiro na testa. Outro grunhiu e arrancou um projétil do ombro, que sangrava. Os guerreiros trolls sequer erguiam seus escudos para se proteger dos tiros; em vez disso, permaneciam como estavam, com um desprezo estoico pela morte.

De repente, o navio coca deu uma guinada a estibordo.

— Remadores, a estibordo! — o grito de Orgrim foi tão alto quanto um toque de fanfarra.

Os timbales emudeceram. As folhas dos remos ergueram-se da água. Por um instante, eles mantiveram-se imóveis no ar, horizontalmente ao casco. Agora o coca estava somente a poucos passos de distância.

Então os longos remos foram recolhidos pelas fendas. Os primeiros despedaçaram-se com um estalo quando o coca passou a dois passos de distância do navio dos trolls. Mas a maioria dos remos agora estava escondida.

— Os quebra-conveses! — gritou Orgrim.

A estibordo, mais de uma dúzia de trolls estavam abaixados ao longo da balaustrada. Dois a dois, eles ergueram as enormes rochas em que Farodin já havia reparado antes. Como os rapazes dos moinhos faziam no mundo dos humanos, pegando impulso para lançar sacos de farinha sobre carroças altas de carga, os trolls balançavam as rochas de forma divertida para a frente e para trás, e então as soltavam, fazendo-as voar em direção ao coca, desenhando altos arcos no ar.

O navio dos humanos era bem mais baixo. Farodin conseguia ver os cavaleiros no meio dele erguendo os escudos acima da cabeça. Engatados bem juntos uns dos outros, eles formavam o brasão de uma floresta de árvores mortas. Mas isso não os protegia contra as rochas. Elas batiam sobre os escudos quase na vertical, esmagavam os homens e destroçavam as tábuas do convés. Estalando e se estilhaçando, as rochas desapareciam para dentro do casco do navio.

Ao lado de Farodin, um tiro de besta atingiu a balaustrada. O elfo olhou para cima. Os cestos da gávea do navio coca estavam tomados de besteiros. Uma chuva de projéteis atingiu o castelo de popa. Um tiro acertou a perna do timoneiro, que desempenhava sua função junto ao timão. Ele praguejou. Mesmo assim, ninguém ali fez menção de procurar abrigo. Farodin sabia que para matar um troll com um único tiro era necessária muita sorte. Com ele, contudo, era diferente.

Seu escudo ainda descansava ao seu lado, encostado na balaustrada. O elfo olhou para o duque, calmamente apoiado em seu martelo de guerra. Não, pensou Farodin, não concederia esse triunfo a esses bastardos! Com certeza, todos esperavam que ele se escondesse covardemente atrás de seu escudo enquanto os trolls deixavam os tiros passarem por cima deles. Então apenas se posicionou um pouco de lado, para oferecer aos atiradores uma superfície menor de alvo.

— Nós aprimoramos por muito tempo a tática de ataque com as rochas — disse Orgrim, tão relaxado como se estivesse sentado no Pico da Noite diante de um banquete e não de pé em um convés sob ataque. — Eu gostaria de ver que resultado esse tipo de ataque teria contra elfos. Que eu saiba, os navios de vocês são de constituição leve e têm poucos conveses. Com certeza as pedras atravessariam até a quilha.

— Na verdade, eu acho que não os teríamos deixado se aproximarem de nós o suficiente para o alcance das pedras — retrucou Farodin friamente.

No fundo, contudo, estava contente por nunca ter participado de uma batalha marítima com os trolls.

— Você não quer se proteger? — perguntou o duque, apontando para o escudo na balaustrada. — Só de muito mau grado eu informaria sua morte ao rei Boldor. — O troll sangrava por uma esfolada profunda que se estendia sobre seu crânio calvo. — Ou você acha que é um cabeça-dura como eu?

— Eu acho que nenhum humano vai atirar num elfo cercado de trolls, que são muito mais fáceis de acertar.

Orgrim riu.

— Para um elfo, você até que tem a cabeça no lugar. Uma pena que meu antepassado tenha acabado com a sua mulher e que você tenha jurado vingança eterna contra ele. Só o matarei se, quando a batalha chegar ao fim, nosso pacto de paz terminar.

— E como você pode ter tanta certeza de sobreviver à batalha?

O duque deu um sorriso largo.

— Poucas coisas podem matar um troll. Temos essa vantagem sobre o seu povo.

Farodin preparava-se para uma resposta cínica, mas no mesmo momento uma nova salva dos quebra-conveses atingiu o coca. O estrondo e os gritos dos feridos foram indescritíveis. Riachos escuros de sangue desciam pelo casco do navio.

O mastro principal se inclinou. Fora atingido em cheio por um naco de rocha, bem acima do convés, e agora estava seguro apenas pelos cabos.

O navio dos sacerdotes já estava quase passando pela galeaça. Agora os trolls erguiam as rochas menores ao longo da balaustrada. Como crianças que jogam pedras em um lago, eles arremessaram as rochas para dentro da multidão de humanos. Farodin viu o timoneiro do coca ser atingido no peito e ser lançado contra a parede traseira do castelo de popa. Enojado, o elfo virou-se para não precisar ver mais daquele massacre.

Dez passos

Mandred conseguira subir a ponte de embarque com esforço. Ele e os mândridos tinham avançado até o castelo de proa do navio inimigo. Como uma torre, ele dominava a parte dianteira da embarcação. Somente duas escadas levavam até lá em cima a partir do convés principal. A posição era fácil de manter. Mas os inimigos haviam formado uma parede de escudos e repelido dois de seus ataques.

Furioso, Mandred avançou uma terceira vez. Seu machado chocou-se contra os escudos e cortou cotas de malha. Os mândridos mantinham uma distância respeitosa quando ele brandia sua arma. Mas tanto fazia com que ímpeto ele atacava: imediatamente, as fileiras voltavam a se fechar. Espadas se agitavam nos vãos ou sobre as bordas dos escudos. Rápidas como víboras, elas faziam suas investidas. Os cavaleiros da ordem eram experientes em lutar dessa maneira e não cediam de bandeja nem um centímetro de território. Uma pontada acertou Mandred sobre os quadris. Sangue morno escorreu por sua perna. Coberto pelos escudos dos mândridos, retirou-se de volta para o castelo de proa.

Abatido, olhou por cima do bastião. Entre o navio-chefe da rainha e o grande navio coca inimigo estava passando uma pequena galera. Pelo visto, sua intenção era de vir para acudi-los, para fortalecer as tropas de Emerelle. Mas não havia mais ninguém vivo a bordo. Guerreiros e remadores estavam juntos, jogados sobre o convés, todos vítimas do maldito sacerdote de Tjured!

Era desesperador. A batalha ao redor dos drácares acorrentados também não parecia ir bem. Fiordlandeses e elfos já haviam jogado quase todas as suas últimas reservas na luta. Mas os reforços dos cavaleiros da ordem, por sua vez, pareciam inesgotáveis. Tanto fazia quantos guerreiros eles perdiam; os vazios em suas fileiras logo eram preenchidos novamente.

Liodred achegou-se a Mandred:

— Você está ferido?

— Só um arranhão! — resmungou o jarl, mentindo para seu descendente. A ferida queimava como se não tivesse sido atingido por uma espada, mas um atiçador de lareira em brasa. — São oponentes demais! Nós precisamos nos limitar a manter o castelo de proa. — Olhou de volta para um mândrido jovem e esgotado, que estava encostado no bastião e acompanhava os acontecimentos nos navios drácares olhando por cima do navio da rainha.

— Você conseguirá trazer reforços para nós? — perguntou Mandred.

— Não! Eles estão metidos em lutas difíceis de defesa. Os cavaleiros da ordem estão atacando toda a linha de frente!

— Maldição!

Mandred observou o convés principal do coca. Os inimigos haviam assumido nova formação e agora atacavam novamente. Desafiando a morte, avançaram sobre as duas escadas para o castelo de proa. Um cavaleiro gigantesco os conduziu pelo lado esquerdo, lançando ao chão o mândrido que se pôs em seu caminho. Sua espada rasgou a garganta do jovem guerreiro. Com golpes de escudo, conseguiu encontrar lugar e pôs os pés no castelo de proa. Imediatamente, outros guerreiros o seguiram.

Mandred lançou-se para a frente. Detestava esse tipo de luta. Muito apertado no meio da multidão, não lhe restava lugar para levantar os braços com seu machado. Somente se conseguisse erguê-lo sobre a cabeça conseguiria tirar proveito de sua força total. Mas ele não se atreveria a fazer isso, pois assim seu peito e abdome ficariam desprotegidos e fariam-no descobrir de forma dolorosa qual era a habilidade dos cavaleiros com suas espadas curtas. Carrancudo, limitava-se a atacar com o espigão curto e pontiagudo da arma. Cravou-o no escudo do guerreiro à frente, que gritou. Mandred atingira seu alvo: o braço a que a madeira estava presa por tiras de couro. O cavaleiro da ordem deixou o escudo baixar por um instante. Foi só por um momento, mas o suficiente para atingi-lo mais uma vez com o machado. Com um rangido, o espigão penetrou na abertura dos olhos do elmo inteiriço.

Aproveitando-se da lacuna, o jarl atacou o homem à esquerda, que não estava mais oculto pelo escudo de seu companheiro. O guerreiro ergueu sua espada para defender o golpe, mas a violência do ataque tornou isso impossível. O machado de Mandred cravou-se em seu peito.

O jarl já conseguira avançar quase até o bastião. No convés principal, entre as fileiras de inimigos, viu o sacerdote. Estava a cerca de dez passos de distância. Seu hábito azul-marinho tremulava ao vento.

— Avante! — gritou ele na língua de Fargon. — Precisamos continuar, senão a rainha dos demônios fugirá!

Os cavaleiros da ordem arremessaram-se decididos sobre as duas escadas para o castelo de proa. O guerreiro gigante ainda mantinha-se ao lado do acesso para a escada. Dois mândridos mortos jaziam a seus pés.

Mandred olhou mais uma vez para baixo, para o convés principal. Era impossível se aproximar do maldito sacerdote. Dez passos! Dez passos e tudo estaria acabado! Mas, para dar esses dez passos, precisaria subir no bastião e pular lá para baixo, no meio dos inimigos.

O jarl abaixou-se para desviar de um golpe de espada e acertou o machado no joelho do oponente, atravessando o escudo. O homem caiu no chão aos gritos, tentando cravar a espada na virilha de Mandred. O humano esquivou-se e avançou com o escudo, de forma que sua borda reforçada de ferro bateu contra o elmo do cavaleiro. Sua cabeça foi empurrada para trás, abrindo caminho para o espigão do machado cravar-se na garganta.

Imediatamente, o jarl tornou a olhar para cima. Pular sobre o bastião seria a morte. Talvez conseguisse pagar com sua vida pela fuga da rainha, salvar a Terra dos Albos e as terras do fiorde.

O sacerdote erguera as mãos. Começara novamente a fazer seu feitiço! Mandred olhou às suas costas. Da última vez, o padre estivera pelo menos dez passos para trás. Agora Emerelle estava dentro de seu raio mortal!

De canto de olho percebeu um movimento. O gigantesco cavaleiro da ordem conseguira avançar até ele. Mandred recuou. A espada do cavaleiro tocou seu traje de malha de ferro. A pancada penetrou fundo e atingiu sua canela. Um golpe de escudo arremessou-o para trás. Mãos o agarraram e o arrastaram para a proteção da muralha de escudos dos mândridos. Agora o bastião estava fora de alcance. Devia ter pulado antes!

O hálito da morte

Nuramon caminhava com Nomja sob o convés da galera, em direção à popa. A visão de todos os remadores mortos a estibordo o horrorizou. Os homens e mulheres estavam simplesmente deitados ali, alguns caídos para a frente sobre os remos, outros estavam para trás nos bancos. Não se viam ferimentos; em seus rostos não havia o menor sinal de susto. Não deviam ter sentido nenhuma dor, sequer viram o fim chegar.

Uma pergunta inquietava Nuramon: será que os mortos renasceriam? Por causa de Nomja, sabia que os elfos que morrem no mundo dos humanos são capazes de renascer na Terra dos Albos. E os anões também eram um exemplo de que uma nova vida era iminente para os filhos de albos até mesmo no mundo dos humanos. Mas o feitiço do sacerdote poderia impedir o renascimento? Não tinha pensado nisso quando apresentou seu plano a Emerelle e Obilee. Se não haveria renascimento, sua busca poderia estar terminada com um simples sopro do feiticeiro da morte. Então lembrou-se de mestre Alvias. Ele não havia partido para o luar bem diante de seus olhos? Essa não era a prova de que os sacerdotes não conseguiam exterminar as almas? Só restava ainda a pergunta: quem conceberia ou daria à luz as crianças se tudo estivesse perdido...

Chegaram à escotilha da popa e subiram cuidadosamente a larga escada. Nuramon ergueu a cabeça um pouco para fora do vão para ver como estava tudo no castelo de proa da galera. Para sua surpresa, não havia mais ninguém ali. Os elfos deviam ter vencido os cavaleiros da ordem! Obilee e a rainha certamente já estavam em segurança nos navios drácares. Ele saiu pela escotilha e manteve-se abaixado. Por cima da balaustrada, viu que os fiordlandeses ainda mantinham o castelo de proa do coca ocupado, evitando dessa forma que os cavaleiros da ordem perseguissem a rainha em fuga.

Logo que Nomja saiu pelo vão, ambos caminharam furtivamente até a balaustrada. Mantinham-se abaixados, erguendo suas cabeças só um pouco para observar a luta entre os cavaleiros da ordem e os mândridos.

A coisa não ia bem para os fiordlandeses. De fato, tinham conseguido avançar até o navio inimigo, mas seu caminho terminara ali.

Lá estava Mandred! Lutava na primeira fila do combate. Sempre precisava se arriscar tanto assim! Sua tropa estava enfrentando ao menos cinquenta cavaleiros da ordem. Era só uma questão de tempo até que os mândridos fossem vencidos.

— Ali está o sacerdote! — sussurrou Nomja. — Cercado de guardas com elmos de viseiras.

Nuramon viu o homem. Estava somente a poucos passos de distância de Mandred, próximo à balaustrada do convés principal, e ainda assim fora do alcance do jarl. Nenhum de todos aqueles escudeiros permitiria a sua passagem. E os espadachins deles, que lutavam com espadas curtas, em um espaço menor como aquele tinham vantagem em relação aos grandes machados e às longas lâminas dos mândridos.

Nuramon tomou fôlego e seguiu a balaustrada com os olhos até a proa. Ali estavam deitados inúmeros elfos que o feitiço do sacerdote matara. Nomja e ele agora encontravam-se no círculo que poderia significar a morte. Nuramon estendeu a Nomja quatro flechas dos anões:

— Aqui! Pegue-as!

A guerreira observou as pontas cintilantes das flechas com olhos arregalados.

— Obrigada, Nuramon — disse baixinho, pegando somente duas delas.

Ela estava certa. Não precisariam de mais do que duas flechas. Se o sacerdote continuasse vivo depois de dois tiros, isso certamente seria a morte.

Nuramon colocou uma flecha sobre a corda e esperou que Nomja fizesse o mesmo. Respirou profundamente.

— Agora! — murmurou ele, e os dois se levantaram.

Nuramon mirou no sacerdote do hábito azul-marinho, soltou a corda e pôs a flecha a caminho. O tiro de Nomja seguiu um átimo depois.

Nuramon atingiu o ombro de um dos guardas, que se pusera no caminho por acaso, e Nomja errou o sacerdote por um fio de cabelo. Rapidamente puseram novas flechas nas cordas. Nuramon viu que os guerreiros agora erguiam seus escudos ao redor do sacerdote e que queriam arrastá-lo para um abrigo. Precisava ser rápido, pois caso contrário o sacerdote de Tjured faria o seu feitiço.

Nomja atirou primeiro, mas sua flecha foi desviada pela curva de um escudo. O tiro de Nuramon acertou um escudo em cheio, atravessando-o. O guerreiro por trás dele gritou, caiu para a frente e deixou a visão livre para o sacerdote, que se mantinha um pouco curvado para a frente, mas com as mãos erguidas. Estava fazendo sua mágica. Só mais um tiro! Um tiro! Assim que a abertura deixada pelo guerreiro tombado fosse fechada, tudo seria em vão.

Com muita pressa, Nuramon pôs mais uma flecha na corda. Nomja também puxou outra de seu coldre. O elfo mirou e atirou. A flecha passou grudada na cabeça do sacerdote. Os cavaleiros da ordem e os sacerdotes de Tjured juntaram-se mais e estavam prestes a fechar o vão. Um deles apontou com o braço estendido na direção dos elfos e gritou alguma coisa.

A flecha de Nomja! Chegaria em um instante. Só restava uma fenda estreita na parede de escudos. Nuramon já contava que a flecha se cravaria em um deles, mas aí o inconcebível aconteceu: o tiro desapareceu entre os dois escudos. Nuramon pôde ver o sacerdote lançar os braços ao ar e, em seguida, despencar entre os cavaleiros.

A travessia

De repente, o pânico se alastrou entre os cavaleiros da ordem. Sem que Mandred entendesse o porquê, eles recuaram do castelo de popa de volta para o convés principal. Mesmo o enorme cavaleiro que o importunara terrivelmente havia pouco agora cobria a retirada de seus companheiros em vez de atacar.

— Mândridos! Avante! — bramiu o jarl, avançando contra o escudo do gigante.

Este último perdeu o equilíbrio na escada íngreme e suja de sangue, e então caiu, arrastando vários guerreiros consigo. Mandred os seguiu com um pulo, e pousou sobre o escudo de seu oponente. A travessia estava completa!

O humano enfiou o espigão do machado na garganta do cavaleiro da ordem e ainda conseguiu ver o horror nos olhos dele.

Por ali, a luta praticamente chegara ao fim. Quase mais ninguém prestava resistência. A maioria dos homens estava abaixada atrás de seus escudos.

— Não pedirei sua clemência — cuspiu o gigante agonizante.

— E eu não ofereço clemência!

O machado de Mandred veio abaixo, mas acertou o homem com o lado mais largo da lâmina, para somente atordoá-lo. O cavaleiro havia lutado bem, abatê-lo seria desonroso.

Mais uma vez, os cavaleiros tentaram formar uma parede de escudos ao recuar. Decidido, Mandred avançou. Eles não conseguiriam organizar uma linha de batalha novamente. Afastou escudos de lado e empurrou guerreiros para trás com o machado de lado para conseguir avançar o mais rápido possível e abrir uma brecha na linha de combate que se formava. Liodred e os mândridos cuidariam do resto.

Assim chegou até os guardas do sacerdote feiticeiro. Só ao vê-los, sua cólera despertou novamente. Como um urso raivoso, lançou-se em sua direção, abaixou-se para desviar das espadas e acertou as costelas de um inimigo com o machado. Em toda a sua ira, Mandred mal sentiu quando uma lâmina penetrou na proteção de sua nuca. Felizmente, os anéis da malha de ferro pararam o ímpeto do golpe e o resultado foi somente um corte superficial. Ele afundou o espigão do machado na virilha de um combatente, desvencilhou a arma e defendeu um golpe de revés que mirava a sua garganta. Impiedoso, o aço dos elfos entoava a sua canção mortal. Os guardas do sacerdote lutaram até o último homem.

Quando, esgotado, Mandred finalmente deixou o machado baixar, constatou surpreso que os cavaleiros restantes haviam deposto as armas.

Respirando com dificuldade, o jarl olhou ao redor. Finalmente encontrou o seu tão procurado inimigo! O sacerdote feiticeiro estava deitado no meio dos mortos. Mandred aproximou-se dele. Ficou surpreso ao ver como era jovem. Uma flecha tinha posto fim em sua vida.

Liodred acercou-se de Mandred.

— Eles estão se entregando! — explicou cansado. — Nos conveses inferiores também não estão mais lutando.

Mandred ouvia o que o rei dizia, mas só tinha olhos para o sacerdote. Com um solavanco, arrancou a flecha de seu corpo. Já vira aquela rabeira prateada uma vez. Quando limpou o sangue da ponta do projétil com o polegar e viu o aço cintilante, então soube a quem aquela flecha pertencia. Mandred olhou em volta e avistou Nuramon e Nomja na popa da galera élfica. Ambos acenaram para ele.

O jarl sacudiu a cabeça e sorriu para Liodred.

— Esse diabo de elfo salvou o meu traseiro mais uma vez. E a família dele é tão estúpida que acha que ele não presta para nada.

Uma dádiva divina

Só mais poucas centenas de passos ainda separavam o Triturador dos drácares dos fiordlandeses. Oito navios seguiam a galeaça do duque. Os demais dirigiam-se junto ao navio-chefe do rei à extremidade oeste da barreira de navios, onde os cavaleiros da ordem haviam conquistado a superioridade. Se não fossem detidos, espalhariam-se da lateral para toda a linha de defesa dos fiordlandeses.

A fumaça que tinham visto ao longe nessa parte do fiorde se dissipara. Farodin descobriu à deriva os destroços de três navios queimados, um pouco abaixo da costa. As chamas haviam se apagado.

O elfo achou que era de se estranhar o fato de o rei ter escolhido justamente a parte do campo de batalha sobre a qual Skanga alertara expressamente.

— É privilégio do rei lutar onde é possível conquistar mais glórias — disse a xamã sem ter sido questionada.

Furioso, Farodin andava em círculos.

— Não, eu não vou parar de ler os seus pensamentos. — Os olhos dela brilhavam. — Não enquanto o seu desejo de ver o duque morto não se apagar.

Orgrim ignorava os dois. Acenou para os guerreiros no meio do navio.

— Tragam mais quebra-conveses!

Farodin curvou-se de lado sobre o bastião para ver qual seria o efeito da ordem de Orgrim. Três pequenos navios cocas haviam se separado da armada da ordem e velejavam na direção deles com a coragem que o desespero provoca. “Eles são malucos”, pensou o elfo. Malucos desesperados! Na verdade, podiam cortar a garganta com as próprias mãos agora mesmo. Os cavaleiros e marinheiros das três embarcações dificilmente conseguiriam escapar do destino que os outros navios que atacaram a frota dos trolls tiveram. Ainda assim, eles se atreviam a um ataque absurdo!

Novas pedras foram retiradas de um compartimento de carga no convés e empilhadas ao longo da balaustrada do Triturador. Farodin conseguiu ouvir os trolls gracejando uns com os outros e apostando sobre quem conseguiria destroçar o mastro principal.

Ao lado das pedras estavam os cadáveres de alguns marinheiros. Os trolls os haviam puxado do mar após o curto combate contra o navio de três mastros. Farodin já tinha ideia por que haviam trazido essa carne a bordo. Os costumes de seus aliados o enojavam.

— No meu povo, é preciso ter comido o coração de um inimigo morto para ser reconhecido como guerreiro — disse a xamã com voz rouca. — Hoje à noite, muitos trolls jovens serão recebidos pelos seus líderes na congregação dos guerreiros. Assim, nós honramos nossos inimigos. Jamais passaria pela cabeça de um troll comer a carne de um covarde.

— Não quero ouvir isso!

As mãos de Farodin fecharam-se com mais força na balaustrada. Curvou-se um pouco mais para a frente para poder ver melhor o navio coca que vinha em direção ao Triturador.

— Para você existe uma única maneira de viver, não é verdade, elfo? Tudo o que desviar disso um centímetro que seja é errado.

Farodin fechou-se para as palavras da velha. Não havia nada que justificasse os costumes repugnantes dos trolls.

A bordo do pequeno coca, finalmente o pânico parecia ter irrompido. Com seus machados, os marinheiros golpeavam barris amarrados ao convés. Um líquido oleoso espalhou-se sobre as tábuas até a altura de seus tornozelos e correu para fora dos embornais em veios de brilho furta-cor.

Somente poucos passos separavam os navios um do outro.

— Remos ao alto! — gritou Orgrim.

Imediatamente os timbales sob o convés emudeceram.

O coca desapareceu no ponto cego à frente do casco da galeaça. Farodin conseguiu ver alguns marinheiros se salvarem pulando na água. Então houve uma pancada violenta. Com a força do choque, o elfo foi duramente lançado contra a balaustrada.

Dos castelos de popa dos navios dos sacerdotes que estavam mais à frente, presos no meio da aglomeração, fios escuros de fumaça começaram a subir a pique para o céu. Flechas de fogo!

Com um rangido, o coca desgovernado passou roçando na galeaça dos trolls. A pouca distância, as flechas de fogo atingiram o mar. Os tiros dos sacerdotes foram demasiado curtos.

— Tragam barris de água para o convés! — gritou o duque.

Farodin surpreendeu-se com aquele ataque sem sentido. Centenas de riscas escuras desenhavam-se no azul do céu. Os navios trolls estavam praticamente fora do alcance dos arqueiros. A maioria das flechas caiu novamente na água.

Farodin observou o navio abandonado. O coca deixava largos rastros brilhantes atrás de si. Agora também havia veios furta-cor no costado da galeaça. Usando varas, alguns trolls esforçavam-se para empurrar o pequeno barco para longe.

Farodin tentava descobrir qual podia ser o plano por trás desse ataque. Nada fazia sentido naquilo tudo... Dois outros navios da frota foram abalroados por pequenos cocas. Mas, até onde conseguia observar, as galeaças não haviam sofrido danos.

Outra chuva de flechas caiu no mar diante deles. As chamas dos projéteis se apagaram. Um deles, contudo, provocou uma pequena chama, que começou a avançar sobre a água.

Fogo que queima sobre a água! Farodin lembrou-se da frota dos cavaleiros da ordem no porto de Iskendria. As imagens do horror ainda estavam frescas em sua memória. Mesmo que no mundo dos humanos a tomada da cidade portuária já tivesse acontecido havia muitas gerações, para ele era como se poucas luas tivessem passado.

O elfo virou-se. Agora todas as peças se encaixavam e começavam a formar uma imagem clara. Os humanos queriam acender o fogo o mais longe possível da sua própria frota. Fazia parte do plano que os cocas fizessem suas manobras quase fora do raio de alcance dos tiros. Mas por que um dos fanáticos do navio não acendeu ele mesmo a chama com uma tocha? Será que tinham medo de pegarem fogo cedo demais?

— Precisamos nos afastar do barco! — gritou Farodin, correndo em direção ao timoneiro e apontando para os veios furta-cor que boiavam por todos os lados na água. — Não podemos ir parar lá dentro! Faça os remos baixarem de novo. Precisamos seguir viagem imediatamente.

— O que há de errado com você, elfo? — perguntou o duque, surpreso. — Ainda não estamos indo para a batalha rápido o suficiente para você?

— Nunca vamos chegar à batalha se não agirmos rápido!

Orgrim franziu a testa. O corte na pele de sua cabeça abriu novamente. Uma gota de sangue escorreu ao lado de seu nariz largo.

— Vamos baixá-los assim que tivermos passado pelo inimigo. Não podemos nos dar ao luxo de perder mais remos — decidiu o duque, dando meia-volta.

— Pelos albos, Orgrim! Eles roubaram o fogo de Balbar! A arma milagrosa que garantiu às frotas de Iskendria o domínio sobre o Mar Aegílico por séculos! Estaremos mortos se não fugirmos dessa mancha de óleo flutuando na água. Nada consegue apagar essas chamas uma vez que sejam acendidas!

— Eu não vou... — começou o duque, quando uma língua de fogo veio do mar a estibordo.

No mesmo instante, um daqueles dois cocas que haviam atacado mais a oeste abriu fogo. As chamas lamberam de baixo para cima o alto costado do Quebra-ossos. Ao redor do navio, o mar ficou em chamas. Embora o incêndio estivesse a uma distância maior que trinta mastros, Farodin sentiu seu hálito de brasa nas faces. Silhuetas envoltas em chamas lançaram-se do Quebra-ossos para o mar. Gritos estridentes ressoaram sobre a água, que não era capaz de salvá-los do fogo.

A estibordo soou uma batida surda. O mastro do coca que os abalroara enroscou-se na estrutura saliente do castelo de popa do Triturador. Fazendo estalos, os cascos dos navios começaram a se atritar, e a pesada galeaça, que ainda estava em movimento, começou a puxar o navio menor consigo.

— Carpinteiro! — gritou Orgrim. — No convés traseiro. Cortar as vergas! Remos para fora! — Sob o convés ecoou o som ameaçador dos timbales. — Recuar! Remem para recuar!

Orgrim agarrou seu martelo de guerra e caminhou até o bastião para golpear as vergas e cordames que haviam enroscado.

Farodin superou o primeiro susto e correu para acompanhar o duque. Desesperado, começou a bater no cordame. Orgrim tinha amarrado um cabo grosso ao redor do corpo e deixou-se descer junto ao costado para alcançar melhor as vergas do navio coca. A vela abaixada ainda estava mantendo juntos os pedaços da madeira despedaçada. O pano e as cordas haviam enroscado em uma escora de sustentação do Triturador, sob a estrutura do castelo de popa.

Orgrim jogou o pesado martelo de guerra de volta para o convés e agora tentava romper as cordas com as mãos nuas. Seu rosto estava banhado em suor. Ergueu os olhos para Farodin:

— E, então, é a primeira vez que você não quer que eu morra?

O elfo empurrou a espada de volta na bainha e subiu no bastião.

— Eu quero que você pare com esse papo idiota e faça o seu trabalho.

Ele deu um grande salto e começou a bater nas vergas. Suas mãos agarravam-se com força às cordas. Jogou uma das pernas para cima e encontrou uma posição segura. Então puxou um punhal e começou a cortar o tecido da vela com uma determinação incomum.

De repente, Orgrim escorregou para o lado, balançou no ar em sua amarra e bateu com força contra o costado do Triturador. Gritos de alegria soaram na popa. A galeaça tinha conseguido se soltar. Mas Farodin continuava sentado na metade intacta da verga do coca e, a cada batida de coração, aumentava a distância entre ele e o navio dos trolls.

Orgrim jogou-se do costado e balançou-se na direção do coca. Mas a corda era curta demais.

— Pule, elfo maldito! — gritou-lhe o troll, estendendo a enorme mão em sua direção.

Sobre a aglomeração de navios acorrentados, fios escuros de fumaça subiram novamente para o céu. Dessa vez todos os arqueiros pareciam ter mirado ao Triturador.

A revelação

Nuramon havia conseguido prestar apenas os cuidados mais urgentes aos ferimentos de Mandred e Liodred, quando Emerelle retornou à sua galera com Obilee e cerca de cinquenta guerreiros. A nova guarda cuidava da segurança do navio, enquanto os combatentes cercavam a rainha na parte traseira. Yulivee e uma outra jovem elfa foram buscar uma tigela de água na cabine da soberana.

Obilee sussurrou para Nuramon que a rainha havia retornado contrariando os conselhos deles, ainda antes que a notícia da morte do sacerdote tivesse se alastrado. Nuramon não se surpreendeu que Emerelle houvesse descoberto as novidades antes de todos os outros. O olhar dela alcançava longe, mesmo sem o espelho-d’água.

Mandred e Liodred olharam curiosos para dentro do espelho-d’água. Uma imagem vaga surgiu, que parecia nadar sob a superfície. Yulivee teve de ficar na ponta dos pés para conseguir ver alguma coisa. Obilee parecia já conhecer o poder do espelho. Ficou calmamente ali em pé e parecia ter mais olhos para os que estavam presentes do que para o que tomava contornos na água. Nomja, por sua vez, tinha os olhos arregalados. Com certeza era a primeira vez que lhe concediam a honra de olhar no espelho da rainha. O mesmo ocorria a Nuramon.

Através da água, Emerelle conseguia ver todos os lugares do campo de batalha. Do lado de cá da barreira de navios drácares, os combates haviam se acalmado. O espelho mostrou rapidamente a imagem de Pelveric, ajoelhado junto ao cadáver de Dijelon. Nuramon não tinha boas lembranças do morto. Havia sido ele quem a rainha mandara para arrancar Guillaume dos braços de Noroelle e executá-lo. A morte do guerreiro pouco o comoveu.

Emerelle passou as pontas dos dedos na água. A imagem desapareceu, e deu lugar a uma nova. Era Ollowain! No meio da barreira de navios, ele lutava com obstinação para conseguir acesso a um coca inimigo. Muitos fiordlandeses haviam se lançado novamente à batalha e estavam ao seu lado. Era bom que os humanos estivessem participando da luta, pois nos rostos de muitos elfos via-se o medo. O relato do que acontecera no Brilho Élfico estava se espalhando. De fato, a rainha deixara que se alastrasse a notícia de que ainda estava viva e de que o sacerdote tinha morrido, mas era necessário temer a possibilidade de haver entre os inimigos outros sacerdotes com o mesmo poder.

Sob os dedos tateantes da rainha a imagem do espelho se desfez e uma nova cena surgiu. Era um grande navio tomado por chamas claras. Trolls pulavam por cima da balaustrada tentando se salvar, mas até na água havia fogo. A imagem era tão cruel que Emerelle afastou Yulivee de lado, para que não precisasse ver aquele horror.

Nuramon olhou para cima e viu duas colunas de fogo no horizonte. Sentiu-se enjoado. Que tipo de arma era aquela? Estariam os sacerdotes de Tjured queimando a armada troll inteira? Uma terceira coluna de fogo lançou-se para o céu. “Tomara que Farodin não esteja em nenhum desses navios!”, pensou Nuramon. Naquele inferno, a coragem e a habilidade não faziam diferença para escapar da morte.

O quadro no espelho desvaneceu e um novo se formou. Agora o que se via era o navio-chefe do rei dos trolls. Era reconhecível pela bandeira, com dois machados de guerra brancos cruzados em fundo negro. O navio dirigia-se diretamente a um navio de três mastros da frota inimiga.

— Eles não resistirão ao ataque dos trolls — disse Emerelle, com a voz firme.

Nuramon olhou para as chamas no horizonte. A vitória lhe parecera tão próxima!

De tempos em tempos, Emerelle deslizava a mão dentro d’água. Cada vez que fazia isso, um novo local de luta era mostrado dentro do espelho. A batalha ainda não estaria ganha por muito tempo. Os trolls de fato haviam mudado o cenário e o caminho de volta dos inimigos fora interrompido. Mas um único daqueles poderosos feiticeiros de Tjured bastaria para dar uma nova reviravolta nos combates.

— Vamos ver quem é o líder dos inimigos — disse a rainha, olhando para o oeste. — Qual será o navio?

Uma verdadeira floresta de mastros avançava rápido pelo fiorde. Na maioria dos navios dos sacerdotes, as velas haviam sido recolhidas, pois elas só atrapalhavam nas batalhas em que não era possível fazer manobras para desviar do oponente.

Mandred apontou para um dos poucos navios cuja vela não fora retraída.

— Ali, o navio de três mastros!

A rainha tocou a água e uma nova imagem se formou. Mostrava a ponte de um navio, sobre a qual havia um padre.

Assustada, a rainha puxou a mão de volta.

— Ele tem o mesmo poder que o outro? — perguntou Obilee.

— Não! É muito maior... — sua voz baixou até se tornar um sussurro. — Por todos os albos! Então você voltou.

— Quem é esse? — perguntou Yulivee.

Antes que Emerelle pudesse responder, Mandred disse:

— Eu conheço esses olhos azuis!

Também para Nuramon os olhos pareciam conhecidos. O homem era alto e forte, tinha longos cabelos louros e vestia um hábito azul-marinho, como os que os sacerdotes de Tjured já vestiam no tempo de Guillaume.

— É o devanthar — murmurou a rainha.

— Por Luth! — rosnou Mandred, agarrando o machado.

No rosto de Obilee estava estampado o ódio; no de Nomja, o medo. Parecia que a única a não saber o que as palavras da rainha significavam era Yulivee. Ela olhou ao seu redor.

Nesse instante, Nuramon compreendeu por que a fé de Tjured mudou tanto ao longo dos séculos. Como uma religião como a de antes, que pregava o amor e cujos sacerdotes eram curandeiros, tinha podido se tornar uma fé cujos cavaleiros da ordem subjugavam reino após reino e perseguiam tudo o que era desconhecido com um ódio indomável. Agora essa igreja havia mostrado a sua verdadeira face!

De repente, um homem aproximou-se do devanthar: parecia um sacerdote e usava uma máscara dourada, trazendo esculpido um rosto conhecido.

— Ali! — gritou Mandred.

Obilee se encolheu.

— Não é possível! Aquele é o rosto de Noroelle!

— Guillaume! — gritou Nuramon.

— Então é esse o adversário! — disse Emerelle. — Agora tudo começa a se encaixar! Os guerreiros em Aniscans, as mentiras a respeito da morte de Guillaume, o poder dos sacerdotes. Tudo isso está escrito nesses olhos azuis do devanthar, como se fossem uma runa dos albos.

De repente, Emerelle inclinou-se à frente, como se quisesse ver algo mais de perto. Nuramon viu que suas mãos tremiam.

— Vejam! Na mão dele! Uma pedra alba! Pelo esplendor dos albos! Ele está preparando algo grande.

Nuramon observou a pedra fixamente. Não era a opala de fogo da coroa dos dschinns, mas uma pedra preciosa dourada e transparente, com cinco sulcos: um crisoberilo do tamanho de um punho fechado.

Agora tudo fazia sentido. O devanthar era o líder dos sacerdotes de Tjured. Nuramon lembrou-se de todas as novas trilhas que atravessavam Fargon e de seu centro, que ficava na capital do reino, em Algaunis. O demônio estava abusando dos humanos para obter vingança contra os filhos de albos que, certa vez, exterminaram os devanthares. Ou quase. E os humanos em Fargon e em todos os outros reinos subjugados com certeza acreditavam que ele servia ao seu deus Tjured.

A rainha afastou o casaco para trás e soltou uma bolsa que levava presa aos quadris. De dentro dela apanhou uma pedra cinzenta.

O respeito que sentiu por ela sacudiu Nuramon. Pela primeira vez estava vendo a pedra dos albos da rainha, o artefato cujo poder era capaz de realizar o seu desejo mais profundo. Reilif tinha razão. Os sulcos da pedra de Emerelle passavam uns sobre os outros. Era rústica e havia um brilho vermelho como brasa dentro dela. Nuramon não conseguia sentir o seu poder. A magia da rainha o eclipsava e os sentidos dele não iam tão longe para conseguir diferenciar a força de Emerelle daquela que a pedra possuía.

A rainha voltou-se para Yulivee:

— Você precisa prestar muita atenção no que vou fazer, minha elfa! Veja e aprenda!

O velho inimigo

Uma mão forte agarrou Farodin e quase esmagou seu braço. O duque bateu contra o costado quando a corda balançou de volta. O ar saiu de seus pulmões com um assobio. Agora, segurava Farodin com força, quase como uma mãe segura o filho.

— Puxem-me logo para cima, seus imbecis! — gritou Orgrim, colérico.

Farodin viu que os remos sob ele revolviam a água. A galeaça deslocava-se para trás e, a cada batida de remos, distanciava-se mais da mancha de óleo que flutuava.

De repente, ouviu-se uma lufada como a de um dragão enfurecido. Uma forte claridade ofuscou a visão do elfo, que ergueu o braço na frente do rosto para se proteger do calor que o tocava. Orgrim soltou um gemido.

Mãos ásperas agarraram o elfo. Ainda ofuscado, ele sentiu ser colocado sobre o convés.

— Mais rápido! — resmungou Orgrim. — Eles precisam se lançar aos remos! E derramem água sobre o convés!

Piscando, Farodin abriu os olhos. Seu rosto queimava de dor. Tonto, levantou-se e olhou para a água. Flechas de fogo haviam atingido o terceiro navio coca e inflamado o fogo de Balbar. As chamas eram tão claras que não se podia olhar diretamente para elas. O calor atingia Farodin como a respiração de um dragão e, por isso, ele virou-se de costas.

Orgrim estava sentado apoiado na balaustrada, com a velha xamã curvada sobre ele, tateando o seu rosto. Seus lábios estavam arrebentados, e bolhas de queimaduras tinham surgido em sua testa. O duque sorriu, mostrando seus dentes enormes.

— Eu queria que elfos pudessem renascer na forma de trolls. Um guerreiro com a sua alma seria o orgulho do meu povo.

Farodin não respondeu. Orgrim podia pensar o que quisesse. O fato de o duque ter salvo a sua vida não mudava nada no passado. Sob a carne de Orgrim escondia-se a alma do assassino de Aileen. Tanto fazia o que pudesse acontecer: ele jamais veria no troll nada além do guerreiro que lhe arrancara sua amada.

Sob as mãos curadoras de Skanga, as queimaduras desapareceram. O duque se esticou e levantou para examinar o campo de batalha. Cinco navios trolls já haviam avançado até o grande aglomerado de cocas. Centenas de guerreiros atacavam sobre os conveses dos navios da ordem, e abririam caminho até os drácares dos fiordlandeses.

Skanga aproximou-se de Farodin e esticou os dedos ressecados na direção de seu rosto. O elfo recuou um pouco.

— Não parece bom — grasnou ela. — Não tem mais rosto bonito. — A xamã piscou. Pela primeira vez não havia ódio em seu olhar. — Eu sempre ofereço minha ajuda só uma vez.

Farodin então fez que sim com a cabeça e os dedos dela tatearam seu rosto. Deles emanava uma aura fria. A dor desapareceu. O elfo sentiu sua pele se esticar.

De repente, a velha apertou o peito com a mão. Seu corpo todo tremia.

— Ele está aqui — disse sem fôlego. — Ele está usando... — Ela cobriu o rosto com as mãos e soltou um grito estridente.

Farodin também sentia uma dor aguda por trás da testa. Uma ardência percorreu sua pele. Assustado, o elfo levantou os olhos. A cerca de meia milha de distância, o navio-chefe do rei dos trolls dirigia-se a um grande coca de três mastros. Entre os navios, porém, uma nuvem negra abriu-se sobre a água e começou a crescer rapidamente. A estranha aparição parecia engolir toda a luz ao seu redor. A nuvem continuou crescendo. Logo já estava do tamanho de metade do navio do rei.

— O que você está vendo? — perguntou Skanga.

O elfo descreveu a ela o que estava acontecendo. A água na frente da nuvem se remexia como se ali houvesse uma forte correnteza. O navio de Boldor tentava desviar do estranho fenômeno. Posicionou-se de lado, mas a correnteza o puxou para a escuridão. Uma coroa de luz surgiu ao redor de um dos braços de névoa. A escuridão não se espalhava mais, mas também não recuava.

— Dê-me os seus olhos! — grasnou a xamã, rouca. — Ninguém consegue ver melhor a distância do que os elfos.

Dedos ressecados fecharam-se ao redor da nuca de Farodin. O elfo se empinou, mas suas forças diluíram-se. Sentia os membros pesados e sem força. Seus olhos... Tudo desapareceu da sua frente! Agora conseguia ver somente uma sombra sobre a água ao longe.

Ele quis se debater, se soltar, mas suas forças não bastavam para fazer as ações obedecerem seus pensamentos. Desesperado, olhou para baixo, para si mesmo. Podia ver seus dedos de forma totalmente nítida, as linhas finas em sua pele. Mas, quando levantava os olhos, o timoneiro já se transformara numa sombra difusa, embora estivesse só a poucos passos de distância.

— O destruidor está aqui — sussurrou a xamã. Suas mãos em garra revolveram os amuletos que pendiam de seu pescoço. — O devanthar. Ele abriu um portal para o nada, para o vazio escuro entre os estilhaços do Mundo Partido. Emerelle está tentando detê-lo. Mas o poder dela não é suficiente. Ele... Mas que força! Ele possui uma pedra alba!

Skanga apanhou um pedaço alongado de jade e afastou para o lado as penas de corvo que mantinham a pedra escondida. Farodin reconheceu na pedra cinco linhas que se encontravam formando uma estrela. Será que essa velha bruaca tinha mesmo uma pedra alba? Seria ela a guardiã do maior tesouro de seu povo?

De dentro da pedra vinha um brilho. Skanga começou um canto oscilante, que ficava mais forte e mais fraco, e era formado só por sílabas isoladas.

Gritos amedrontados vieram do convés principal. Farodin piscou, desamparado. Não conseguia mais ver o que acontecia no mar diante dele!

— O que está acontecendo lá fora? — gritou, desesperado. — Diga-me, eu não consigo ver nada!

— O navio de Boldor foi puxado para dentro da escuridão — respondeu o duque em voz baixa. — Agora, um pequeno coca que caiu na correnteza está desaparecendo. É como se a água estivesse caindo em um abismo.

Farodin lembrou-se de como caminhou com seus companheiros pelo vazio, nas trilhas albas luminosas. Também lembrou-se do medo que sentiu ao fazer isso, e da pergunta inquietante: se alguém morresse ali, sua alma estaria perdida para sempre?

A cantoria da xamã transformou-se em guinchos estridentes. Ela afrouxou um pouco a mão no pescoço do elfo, mas Farodin não tinha mais energia para lutar contra ela.

— Mais uma galeaça troll desapareceu — disse Orgrim. — Até mesmo aqui a bordo já consigo sentir a correnteza puxando-nos para o abismo. Agora, a névoa negra está começando a se dissipar. Um círculo de luz está circundando a escuridão. O claro e o escuro estão lutando um contra o outro. Raios estão cortando as trevas. Estão arrancando pedaços da escuridão. Ela está se desfazendo...

A xamã respirou com dificuldade e então soltou o elfo totalmente. De repente, Farodin voltou a ver com clareza. A nuvem negra sobre a água havia desaparecido.

— O portal foi fechado.

As rugas no rosto de Skanga tinham se tornado mais profundas. Apoiava-se pesadamente na balaustrada.

Nos drácares, soaram gritos altos de alegria. Os trolls haviam avançado até os defensores e agora se juntavam aos humanos e elfos.

— Vitória! — gritou Orgrim entusiasmado, erguendo seu martelo de guerra para o céu. — Vitória!

Alguns cocas desvencilharam-se da aglomeração de navios acorrentados uns aos outros. Os cavaleiros da ordem tentavam escapar desesperadamente dos trolls, que agora eram maioria.

Na frente dos rochedos a oeste, uma esquadra inteira de navios inimigos mudou de curso e começou a rumar para a saída do fiorde. Entre os fugitivos, Farodin viu o navio-chefe. Mas os trolls da unidade da frota do rei já estavam próximos. Com uma chuva de pedras mortal, eles aniquilavam todos os navios que chegavam perto deles.

— Estou sentindo o medo dele — soou a voz rouca de Skanga. — A rainha iniciou um feitiço que pode matá-lo. É a mesma magia com que os albos prevaleceram sobre os devanthares na guerra. Ele está tentando criar uma nova estrela.

Flechas de fogo foram atiradas da esquadra de cocas em fuga. Uma parede de chamas cresceu na água e incendiou vários navios. Farodin ficou chocado. Para os humanos, agora parecia não fazer diferença se estavam entregando seus próprios companheiros às chamas. As galeaças dos trolls recuaram. Duas delas, contudo, tornaram-se vítimas do fogo. Uma brisa espalhou uma fumaça mordaz sobre o mar. Fedia a óleo, carne queimada e alguma outra coisa que, ao menos para os elfos, era estranha e familiar ao mesmo tempo.

— Está sentindo esse cheiro? — perguntou Skanga. — Enxofre! Esse é o cheiro do enganador.

Farodin lembrou-se de já ter sentido aquele cheiro uma vez, na ocasião na caverna de gelo. Mas lá tinha sido mais fraco.

O duque dos trolls praguejou efusivamente contra a fuga covarde dos inimigos e referiu-se ao devanthar com expressões que mesmo Farodin ainda nunca tinha ouvido.

— Fique feliz se nunca tiver de o encarar olho no olho, Orgrim. Não há inimigo mais assustador. Ele é o mestre da enganação. Estou sentindo que agora está abrindo o portal para se retirar. Nós vencemos esta batalha. Mas quem sabe? Talvez ele tenha estado aqui só para nos induzir a persegui-lo, atraindo-nos, assim, para a ruína.

Farodin apontou para a enorme armada ao seu redor.

— Ele está sacrificando tudo isso para nos atrair para uma perseguição? Não, isso é absurdo! Ele veio para destruir Firnstayn e conquistar o norte. Ele não contava com a nossa aliança. E... — O elfo hesitou por um instante. — Foram os trolls que por fim nos trouxeram a vitória. Perdoem-me se eu duvidei de vocês.

A velha ignorou suas desculpas.

— Se você acha que é capaz de entender os planos e artimanhas de um devanthar, então já caiu na sua trama. Navios e alguns milhares de vidas humanas não significam nada para ele! Agora nós vencemos, mas a luta apenas acaba de começar.

A crônica de Firnstayn

... E assim nossa cidade e o reino foram salvos. Humanos, elfos e trolls venceram a frota dos sacerdotes de Tjured e forçaram a fuga de seu líder demoníaco. Jamais a noite da vitória será esquecida. Firnstayn estava claramente iluminada; por todos os lados queimavam fogueiras, homens e elfos dançaram juntos. Os trolls festejaram a vitória em seus navios e trovões ecoaram até Firnstayn. Entre eles, porém, houve muitos que naquela noite choraram os mortos em combate. Eles rezaram pelos que perderam a vida e orgulharam-se por terem contribuído com sua parte para a grande vitória.

Até mesmo a rainha dos elfos Emerelle veio à nossa cidade. Nunca se vira tanta graça em uma elfa. Ela caminhou formosamente pelas ruas de Firnstayn e dirigiu a palavra a muitos dos humanos. O modesto escriba destas linhas pôde, ele mesmo, desfrutar as palavras dela: “É você a memória deste reino? Então guarde isto: o destino das terras do fiorde estará para sempre ligado ao da Terra dos Albos”. E, assim, isso agora é assentado nestas linhas.

Quando a manhã chegou, Mandred e o rei Liodred já não estavam mais lá. Os elfos disseram que haviam partido para matar o líder dos inimigos. Então todos tememos por nosso rei, pois seu filho ainda estava longe da idade correta para a sucessão do trono, caso o pior acontecesse. Mas também estávamos orgulhosos dele. Agora outro firnstaynense terá participado de jornadas ao lado dos elfos. Que Luth teça para todos eles uma boa trama!

Registrado por Tjelrik Aswidson, volume 67 da biblioteca do templo de Firnstayn, p. 45

Longe das celebrações

Era noite e Nuramon caminhava ao lado de Obilee ao longo da praia. Firnstayn, os navios e até mesmo os bosques do fiorde estavam iluminados pela fogueira dos acampamentos, lampiões e as pedras de barin dos elfos. Os homens celebravam com os elfos; somente os trolls permaneciam entre si, sem deixar seus navios. Seus timbales, contudo, podiam ser ouvidos a grande distância, e o cheiro de carne assada arrastava-se por toda a costa.

Haviam conseguido uma grande vitória. Alguns festejavam animadamente; outros tinham perdido parentes e amigos e choravam por eles. Os corpos dos humanos haviam sido amortalhados no templo de Luth e nos salões contíguos. Os elfos mortos já tinham sido cremados. Afastadas da cidade, as piras funerárias ainda ardiam.

— Você realmente quer arriscar fazer isso? — perguntou Obilee.

— Sim — disse Nuramon. — O devanthar causou a ruína de Noroelle. Tornou-se um perigo para os humanos e também para a Terra dos Albos. Além disso, ele tem uma pedra alba.

— Mas pense em como é arriscado!

— Você se arriscaria menos por Noroelle?

— Não. Mas um devanthar...! Como querem vencê-lo?

— Encontraremos um caminho. De toda maneira, ele certamente está contando com tudo, menos conosco.

— Talvez eu devesse acompanhá-los. O rei Liodred também se juntou a vocês.

— Quanto a Liodred, trata-se de gosto por aventura e admiração por Mandred. Um rei que parte com seu antecessor em suas viagens lendárias! Não, Obilee. Esse não é o seu destino. O seu lugar é junto da rainha. Não parta para seguir nosso triste caminho. Talvez você consiga com a fidelidade aquilo que estamos tentando alcançar com a desobediência. Talvez um dia a rainha liberte Noroelle por amor a você.

— Está bem, Nuramon. Eu vou ficar. — Ela sorriu. — E direi a Yulivee que teremos de esperar por você juntas. Ela sentirá muito a sua falta.

— Temo que ela possa fazer uma besteira.

— A rainha não permitirá isso. Ela ama a pequena tanto quanto você.

Nuramon sabia que as habilidades de Obilee poderiam ser de proveito inestimável para eles durante a busca pelo devanthar, mas o simples fato de pensar que todos que se mantinham leais a Noroelle poderiam morrer de uma só vez era insuportável para ele. Talvez fosse egoísta manter Obilee afastada do seu caminho, mas a certeza de que ela permaneceria ao lado da rainha como a grande guerreira que era poderia dar-lhe forças.

Agora aproximavam-se da fogueira onde antes haviam estado sentados com Farodin e Mandred. Nomja, Yulivee e Emerelle tinham vindo com seus guardas. Para a surpresa de Nuramon, Ollowain também se juntara a elas. Hoje ele tinha visto os guerreiros elfos somente a distância. Havia cumprido sua convocação com toda a honra e lutado como um dragão.

Yulivee veio andando na direção de Nuramon. Ele agachou-se e enlaçou a elfa com os braços.

— Eu também quero ir — disse ela.

— Isso não é possível. A rainha precisa de você aqui — respondeu ele.

— Ela vai dar conta sem mim.

— Não, Yulivee. Ela com certeza ficaria muito desapontada.

— Eu pensei que fôssemos irmãos.

— A minha casa já está vazia há muito tempo e Felbion com certeza vai se sentir solitário. Alguém precisa cuidar dele e também dos cavalos de Mandred e Farodin. E eu gostaria de saber que a casa e os cavalos estão nas melhores mãos. Eu contei-lhe sobre Alaen Aikhwitan, lembra-se? Ele se sente sozinho.

— Mas assim eu também vou ficar sozinha.

Obilee acariciou a cabeça de Yulivee.

— Não, eu vou estar lá para fazer-lhe companhia. E não se esqueça de Emerelle.

A pequena feiticeira parecia preocupada. Encarou Nuramon com grandes olhos.

— E se você não voltar? O que vai acontecer comigo se você morrer?

— Então, em algum momento vai nascer um irmãozinho chamado Nuramon. E você vai ter de cuidar dele.

Yulivee sorriu e beijou Nuramon na testa.

— Então eu vou ficar... e vou aprender alguns feitiços com Obilee e com a rainha. — E voltando-se para a guerreira: — A gente podia viver grandes aventuras. Yulivee e Obilee! Isso soa bonito. Nós podemos ser amigas. Eu nunca tive uma melhor amiga. Já li sobre isso e sempre quis uma para mim.

Obilee apertou a pequena contra o corpo e sussurrou algo em seu ouvido. Yulivee fez que sim com a cabeça. Juntas as duas se reuniram aos demais.

Farodin, de pé ali ao lado, parecia decidido. Mandred tinha as mãos nos ombros de Nomja. Pelo visto, acabara de se despedir dela. Liodred ergueu-se e vestiu seu cinto de armas.

A rainha concedera a todos eles a honra de curá-los. Certamente Emerelle não sentia dores ao fazer isso. Agora estava em pé junto à água, olhando para os navios no fiorde lá fora. Parecia estar mergulhada em pensamentos. O vento tremulava seu vestido cinzento e agitava seus cabelos.

— Você está pronto, Nuramon? — perguntou Mandred, aproximando-se dele. — Você está com suas armas?

— Sim.

Ele apanhou seu arco e a aljava com as flechas que restaram. A espada longa, assim como a bainha e o cinto de armas, ele desenrolou de dentro de um tecido. Eram as armas que recebera dos anões. Na sua vida anterior, matara um dragão com elas. Talvez também pudessem dar resultado contra o devanthar.

A rainha virou-se e se aproximou do fogo.

— Meus filhos de albos, a hora chegou. O devanthar está esperando por mim, pela xamã Skanga ou por outro portador de uma pedra alba. Todos os seus sentidos estão direcionados para isso. Se eu me juntasse a vocês, ele tomaria conhecimento de mim cedo demais. Então vão sem mim, porque assim talvez consigam surpreendê-lo. Agora tudo está preparado. Alguns voluntários da minha guarda irão acompanhá-los, para manter os cavaleiros da ordem longe de vocês. Mas o devanthar vocês terão de enfrentar sozinhos.

— Onde poderemos encontrá-lo? — perguntou Farodin. — Devemos seguir o caminho por onde ele escapou?

— Não, é uma armadilha. A trilha simplesmente termina no meio. Vocês surgiriam no meio de uma montanha e imediatamente estariam mortos. Eu observei no espelho-d’água os diferentes caminhos que estão abertos. Tanto faz qual vocês escolham, a sombra da morte está sobre vocês. Eu também estudei a rede de novas trilhas albas aqui no mundo dos humanos. Vocês devem chegar a um mosteiro nas montanhas próximas a Aniscans. Eu abrirei um caminho até lá para vocês. Fiquem atentos, pois não há muito tempo. Chegarão por uma estrela na qual imediatamente devem abrir um portal para o Mundo Partido. Lá vocês encontrarão o devanthar.

— Mas seremos capazes de vencê-lo com nossas armas? — perguntou Liodred.

— Segurem suas armas dentro do fogo! — respondeu a rainha.

Farodin pôs sua espada e seu punhal nas chamas e Liodred fez o mesmo com seu machado. Quando Mandred e Nuramon ergueram suas armas, a rainha os deteve:

— Nuramon, Mandred! Vocês não!

O elfo guardou a arma. Ele sabia que sua velha espada longa era mágica, conforme percebera quando ainda estava junto dos anões. No arco e nas flechas também havia magia. Ele se perguntava se a arma de Gaomee também estava tomada com ela.

Nuramon trocou um olhar com Mandred. O jarl fez uma cara admirada e olhou para Ollowain. No rosto do guerreiro estava estampado um grande sorriso. Ele certamente soubera o tempo todo que o machado de Mandred também era mágico. Nuramon não havia sentido nada disso. Pelo visto, o feitiço estava bem oculto, o que poderia ser uma vantagem na luta contra o devanthar.

A rainha fez um sinal para Obilee se aproximar.

— Você deve pôr o feitiço nas armas. Sua magia é desconhecida dele.

A guerreira aproximou-se do fogo e puxou sua espada. A arma impressionava Nuramon. A lâmina era totalmente adornada com runas e o arco do guarda-mão parecia formar um intrincado símbolo mágico. Obilee segurou a espada sobre o fogo, junto com as armas de Farodin e Liodred. Ouviu-se um sibilar baixo e as chamas brilharam mais claras. Então se tornaram azul-claras, lambendo avidamente as lâminas. Obilee fitava sua espada com concentração. Houve um estalo e fios relampejantes de luz estenderam-se de sua lâmina para as armas dos dois guerreiros. As runas na arma de Obilee começaram a brilhar em brasa. A guarda que rodeava sua mão também reluzia. A cada batida de coração, a força da lâmina de Obilee saía através dos fios de luz, que agora estavam inchados como cordões, e entrava pelas espadas dos companheiros. O poder era tão grande que Nuramon conseguia senti-lo como uma lufada de ar. Finalmente, Obilee puxou sua espada de volta e, assim que o brilho desvaneceu, deixou-a deslizar para dentro da bainha. A feiticeira espadachim afastou-se e deu espaço à rainha.

O brilho nas armas de Farodin e Liodred se esvaiu à medida que as chamas azuis da fogueira voltavam a ficar vermelhas.

— Peguem suas armas! — disse Emerelle.

Os guerreiros ergueram as espadas cuidadosamente e as examinaram como se tivessem acabado de ganhá-las de presente. Se antes Nuramon sentira tanta força durante o feitiço, nelas agora mal se percebia qualquer traço de magia. Era esse o segredo de um bom feitiço de armas. Assim, o oponente só percebia tarde demais o poder de dentro da espada.

— Agora todos vocês têm armas que contêm magia — avisou a soberana. — Vocês irão levá-las em meu nome, mas também em nome dos humanos das terras do fiorde, além da sua própria causa. Apresentem-se a mim!

Mandred, Liodred, Farodin e Nuramon obedeceram. Então ela prosseguiu:

— Vocês enfrentarão um inimigo que é digno de um albo. E terão somente uma oportunidade de vencê-lo.

— Mas isso poderá dar certo? — perguntou Nuramon.

— Sim, Nuramon. Vocês todos têm seus motivos para participar dessa luta. E serão fortes quando estiverem diante do inimigo. Pois somente uma arma mágica é capaz de matá-lo e impedir o seu renascimento. — Emerelle deu um passo adiante. Beijou Liodred na testa. — Não tema pelo destino do seu reino! Antes de meu povo retornar para a Terra dos Albos, apadrinharei o seu filho, com a sua permissão. Assim ninguém ousará negar o trono a seu sangue enquanto você não estiver em Firnstayn. — E aproximando-se de Mandred, depois de também beijá-lo: — Mandred Aikhjarto! Lembre-se do homem-javali e do que ele tirou de você. Chegou o dia da vingança. — Ela achegou-se a Farodin e Nuramon, e examinou os dois. Então beijou ambos na testa e disse: — Pensem em Noroelle! Nada dará mais força a vocês.

Então os outros se aproximaram e se despediram deles. Como de costume, Ollowain tratou-os de forma fria e distante. Nomja, por sua vez, acariciou a face de Nuramon e sussurrou:

— Para mim é como se já nos conhecêssemos há uma eternidade.

Nuramon lembrou-se dos anões e do seu culto à memória. Talvez devesse ter contado a Nomja sobre ele. Mas agora era tarde demais para isso. Obilee beijou-o na testa como a rainha fizera antes. Não disse nem uma palavra, mas em seu rosto estavam estampadas a tristeza e a dor. Ficaria aflita por ele, isso era certo. Mas ela seria uma confidente preciosa para a rainha. E se ele e seus companheiros fracassassem, talvez ela conseguisse realizar ao lado de Emerelle o que havia sido impossível para eles.

Por fim, Nuramon pegou Yulivee nos braços.

— Faça o que a rainha disse. Pense em Noroelle quando estiver frente a frente com o devanthar! — disse ela.

Ele a pôs de volta no chão e a contemplou demoradamente.

— Vá, irmão! — exortou ela, parecendo tão séria ao fazer isso como ele jamais a vira antes.

Será que sabia de alguma coisa? Teria a rainha se aberto com ela? Ou será que a pequena feiticeira tinha até ousado olhar no espelho-d’água da rainha por conta própria?

— Mantenham-se a postos! — disse Emerelle.

Os doze voluntários juntaram-se a Nuramon e seus companheiros. Estavam armados com alabardas e espadas e levavam ainda um equipamento de proteção mais pesado do que era de costume para guerreiros elfos. Todos eles vestiam balaclavas guarnecidas de ouro e armaduras maciças de peito. Não restavam dúvidas: ninguém seria capaz de protegê-los melhor do que os guardas da rainha. Só um número muito maior de cavaleiros da ordem conseguiria subjugar esses guerreiros.

Emerelle tirou a pedra alba de uma bolsa simples de couro presa a seu cinto. Os olhos de Farodin brilharam ao vê-la. E Nuramon também ficou profundamente tocado por ter novamente aquela visão.

A rainha fechou os olhos e disse palavras inaudíveis. Nuramon sentiu uma magia poderosa o cercando. Trilhas albas soltaram-se no ar. De repente, estavam simplesmente ali, como se o feitiço da rainha fosse um simples estalar de dedos. Na maioria das vezes, as grandes magias pareciam simples — foi isso o que a mãe dele um dia lhe ensinou.

Ao lado de Emerelle agora se cruzavam cinco trilhas, e subitamente uma luz radiante cresceu da estrela alba. Era o portal por onde passariam.

— Guardas, protejam a trilha! — gritou a rainha. — Rápido! Cada instante é valioso!

Os voluntários avançaram e desapareceram na luz.

Nuramon trocou olhares rápidos com Mandred, Farodin e Liodred. Nas feições deles estava estampada a determinação. Seus companheiros estavam prontos para correr o último grande risco. E ele também estava. Se vencessem o devanthar, tudo poderia estar ganho.

— Agora vão! — disse a rainha.

Nuramon pisou para dentro da luz ao lado de seus companheiros. Olhou mais uma vez para trás e viu Yulivee, Obilee e Nomja sumirem devagar. A rainha, contudo, ainda se dirigiu a eles, com a voz cada vez mais baixa:

— Estamos no despertar de uma nova era.

O portal

— Ocupem todas as saídas! — ordenou Farodin aos guardas.

Encontravam-se em uma sala alta de pedra cinzenta, parcamente iluminada à luz de velas. Sobre eles, estendia-se uma engenhosa abóbada cruzada. Um leve aroma pairava no ar e ouvia-se um canto solene em algum lugar ao longe. Estavam de pé no meio de uma estrela dourada, rodeada por quatro discos de prata.

Mandred olhou preocupado para Liodred. O rei estava lívido como um morto. Pelo visto, os poucos passos que deram no vazio sobre a trilha dos albos haviam-no horrorizado profundamente. Mandred deu-lhe um cutucão amigável com o cotovelo.

— Tudo em ordem?

Liodred engoliu em seco, esforçando-se para se recompor.

— É claro!

Ele mentia muito mal, pensou Mandred. Era um homem valente! Ainda à noite tentara dissuadi-lo de acompanhá-los na luta contra o devanthar. Mas o rei não quisera ouvir.

— Você quer assumir o comando sobre os guardas? — perguntou Mandred, agora em voz baixa. — Para mim seria bom saber que você está garantindo a nossa retirada.

O rei deu um sorriso forçado.

— Acho que os elfos não ficariam muito contentes que um humano lhes dê ordens. Desista de me desviar do meu caminho.

Mandred pensou no filho pequeno de Liodred e lembrou-se de Alfadas. Um pai que só conhecera seu filho quando adulto. Algo assim não poderia acontecer mais uma vez! O rei merecia um destino piedoso.

— Talvez você devesse...

— Não, com certeza, não — interrompeu o rei. — Você hesitou ao partir para caçar naquela noite de inverno, quando lhe contaram que um monstro estava causando o terror nas florestas próximas a Firnstayn? Você não teve a sensação de que, na posição de jarl, era obrigação sua proteger o vilarejo? Você algum dia teria transmitido essa obrigação a outro homem?

— Eu era só um jarl. Você é rei. O seu povo precisa de você!

— Sendo rei ou jarl, as obrigações são as mesmas. Assim como você protegeu o seu vilarejo, tenho um reino para proteger. Se o devanthar sobreviver, ele nos atacará novamente. Estou aqui para manter a desgraça longe de todos os fiordlandeses. Não posso me esquivar desse dever. Nas batalhas, os seus herdeiros sempre lutaram na primeira fileira, Mandred. Eu não serei o primeiro a quebrar essa tradição.

Um portal de luz dourada se abriu. Mandred desistiu de tentar convencer o rei. E, no fundo, concordava que não agiria de forma diferente se estivesse no lugar de Liodred. Iria manter-se ao seu lado durante a luta e tentaria protegê-lo da melhor forma que conseguisse.

Juntos eles atravessaram o portal, e foram parar em... Uma abóbada cruzada de pedra cinzenta. Mandred olhou em volta, atônito. Ainda estavam na mesma sala! Velas ardiam em grandes suportes de ferro, provocando sombras que deslizavam, bruxuleantes, pelas paredes. Eles estavam de pé sobre uma estrela dourada rodeada por quatro discos prateados.

— O feitiço falhou? — perguntou Mandred admirado.

Nuramon parecia inseguro.

— Não, não pode ser. Eu senti que atravessamos o vazio para dentro do Mundo Partido.

— Nossos guardas desapareceram — disse Farodin calmamente. Sua mão repousava sobre a espada. Desconfiado, espiou para dentro das sombras.

— Vocês chamam essa criatura de enganador, não é? — disse Liodred. Sua voz soava rouca, e em cada um de seus gestos se percebia o esforço com que escondia seu medo. — Talvez isso seja um truque que ele está usando para confundir o inimigo...

— Isso combinaria com ele — murmurou Mandred. — Bastardo maldito! — disse, acariciando a folha do machado. — Espero que ele esteja aqui, e que desta vez o mandemos mesmo para o espaço.

O portal desvaneceu devagar. Depois de poucos instantes, já tinha desaparecido totalmente. Farodin sinalizou que o seguissem. Adentraram um corredor ladeado por nichos profundos. Lá havia insígnias, armas suntuosas e escudos ricamente adornados. Sobre alguns suportes havia armaduras com marcas visíveis de luta. Mandred descobriu uma estátua que se parecia com o gallabaal de Iskendria, mas feita de pedra mais escura. A estátua estava presa por correntes pesadas, com as pontas enganchadas em argolas de ferro na parede. Mandred tateou as grossas correntes. Esperava que aquele gallabaal tivesse partido o crânio de muitos cavaleiros da ordem.

— Largue isso — sussurrou Farodin, puxando-o um pouco para trás. — A magia dele ainda não está totalmente apagada.

Uma das correntes tilintou. O ruído pareceu desproporcionalmente alto devido ao silêncio em que estavam.

— O que é isso? — perguntou Liodred com um murmúrio.

Mandred começou a explicar ao rei o que era aquele guarda de pedra, mas um grito o interrompeu. Nuramon, por sua vez, ajoelhou-se na frente de um dos nichos, como se uma flecha o tivesse atingido.

— É ela! — gritou, arrebatado. — Ela está aqui!

Com o machado erguido, Mandred correu para perto do companheiro, pronto para enfrentar o que quer que fosse que estivesse escondido no nicho.

Therdavan, o escolhido

Farodin teria sido capaz de dar uma bofetada em Nuramon. Se havia guardas ali, com certeza tinham sido alertados pelo impensado grito de alegria do companheiro.

Virou-se irritado. Poucas semanas antes, teria arriscado sua vida pelo tesouro que havia no nicho. Agora mal tinha olhos para ele. Desconfiado, observou o corredor acima. A luz inconstante das velas fazia sombras dançarem no alto das paredes. O devanthar poderia estar escondido em qualquer um dos muitos nichos diante deles. Também poderia estar à espreita atrás do alto portão de bronze no fim do corredor. Ou atrás deles!

Um suor gelado correu pelas costas de Farodin. Ele arriscou um segundo olhar para dentro do nicho na frente do qual Nuramon estava ajoelhado. A coroa que descansava ali era a joia mais magnífica que já vira. Lembrava um pouco uma fortaleza dourada, cujas sacadas e janelas eram preenchidas por grandes pedras preciosas. E o portão da fortaleza era uma opala de fogo do tamanho de um punho.

— Essa é a coroa dos dschinns? — perguntou Mandred respeitosamente. — Com esse monte de pedras enormes daria para comprar um principado inteiro nas terras do norte.

Nuramon agora estava de pé, bem próximo da coroa. Seus dedos tocaram a opala de fogo.

— Volte para cá! — sussurrou Farodin. — Isso tudo está cheirando a armadilha.

Nuramon virou-se.

— Esta pedra alba não tem mais valor. Agora eu sei por que o dschinn não conseguiu encontrá-la. A opala de fogo se quebrou. Ela perdeu todo o seu poder. — No rosto do companheiro via-se um sorriso forçado. — Isso só tem uma coisa de bom. Agora podemos ter certeza de que o devanthar jamais esteve na biblioteca dos dschinns. Portanto, não conhece os segredos do futuro.

Um riso efusivo fez Farodin se sobressaltar. Cheiro de enxofre pairava no ar. Com a mão na espada, ele andava para lá e para cá. O alto portão de bronze abriu-se silenciosamente. Junto a ele havia um homem de meia-idade vestindo a túnica azul-escura dos sacerdotes de Tjured. A expressão de seu rosto era franca e amigável. Os cabelos longos e louros desciam-lhe até os ombros. Seus olhos azul-claros brilhavam como o céu em uma manhã de verão.

— Não preciso de nenhuma biblioteca de dschinns para saber sobre o futuro de vocês. Na verdade, eu deveria estar ofendido. Estava esperando Emerelle ou, pelo menos, Skanga. Por outro lado, com o nosso novo encontro o círculo se fecha, e isso dá à nossa história a harmonia dos poemas épicos. — Apontou para Liodred: — Eu proporia que mantivéssemos o homenzinho fora de tudo isso. Assim sobrará alguém para retornar e contar sobre o destino de vocês. Ele não esteve na caverna de gelo. Acho que atrapalha o encaixe das peças deste reencontro.

Farodin puxou o cabelo para trás e prendeu-o com uma tira fina de couro para que não caísse em sua testa. Ignorando as palavras do homem, alertou a si mesmo em pensamento. Antes da luta de espadas havia a luta no coração. Se ele aniquilasse a esperança deles na vitória, o duelo estaria decidido antes que as armas fossem sacadas.

— Quem é esse padre presunçoso? — perguntou Liodred bruscamente. Suas bochechas estavam coradas de raiva. — Me deem licença de fazê-lo calar esse bico.

Mandred deteve o rei, sussurrando-lhe alguma coisa ao ouvido.

— Oh, por favor, perdoe-me. — O devanthar esboçou uma reverência. — Entre os humanos eu sou Therdavan Scallopius, o escolhido! O primeiro dos sacerdotes de Tjured. Os elfos, em contrapartida, temem a mim como o último do meu povo. Eu sou um devanthar, Liodred. Eles também me chamam de mestre da enganação, e têm ainda uma centena de outros nomes difamadores para mim. Como você está vendo, a luta que será decidida aqui não é sua, humano. Então recue agora e continue vivo.

Farodin se alongou para soltar os músculos dos ombros.

Liodred parecia desnorteado. Sua mão repousava no cinto, sobre o machado.

— Eu compreendo. — O devanthar sacudiu a cabeça casualmente. — Eles contaram a meu respeito e você estava esperando um monstro. Uma criatura metade homem e metade javali, talvez? Não lhe explicaram que eu troco de feição quando e como quiser? — Fez um breve silêncio, como se realmente esperasse resposta. — Ah, então eles esconderam isso de você — prosseguiu finalmente o devanthar. — Isso é mesmo embaraçoso demais. — E apontando para Nuramon: — Certa vez fiquei tão parecido com esse aí que nem mesmo a donzela dele percebeu qualquer diferença. Dividiu o leito comigo com prazer. — E, com um sorriso malicioso: — A história fica ainda mais picante se levarmos em conta que, ao Nuramon de verdade, ela jamais proporcionara essa graça. Nele falta alguma coisa que eu tenho por natureza. Não se pode explicar de outra forma que essa mulher tenha aberto os braços para mim com tanta boa vontade. Ela foi a primeira de muitas que usei para que dessem à luz um bastardo que, apesar de mestiço, acabasse me servindo de alguma maneira...

Nuramon puxou a espada:

— Chega!

— Você quer arriscar a sua vida por um amante chifrudo, Liodred? — escarneceu o devanthar. — Será que a vaidade ferida dele vale o seu sangue?

— Eles o chamam de enganador... — começou o rei.

O devanthar riu. Pequenas rugas circundaram seus olhos.

— Olhe você mesmo para eles! Será que os dois elfos aqui fariam caras tão carrancudas se essa história não fosse verdade?

— Também é verdade que você quer trazer a morte e a ruína para o meu povo, e por isso você vai morrer.

Com um movimento fluido, o devanthar deixou o hábito de sacerdote escorregar de seus ombros. Por baixo dele, vestia uma calça azul-escura muito justa e um cinturão de armas guarnecido de prata. O largo hábito de sacerdote escondia duas espadas curtas. Seu tronco estava nu e seus músculos brilhavam à luz das velas. O devanthar puxou as duas espadas estreitas, cruzou as lâminas na frente do peito e inclinou-se rapidamente em uma saudação.

— Você acaba de se decidir por nunca mais rever o seu filho, rei.

— Chega de falatório! — Como um touro furioso, Mandred avançou.

O devanthar desviou de lado como um dançarino. Uma das espadas adiantou-se e resvalou tilintando no traje de malha de ferro de Mandred.

— Cerquem-no! — gritou Farodin para seus companheiros.

Tanto fazia a agilidade que o devanthar pudesse ter: nenhum lutador conseguia manter os olhos em toda parte.

Farodin puxou a espada e o punhal e atacou ao mesmo tempo que Nuramon. Mais rápido que o olhar conseguia acompanhar, as lâminas agitaram-se no ar. O devanthar as bloqueou e curvou-se por baixo de um golpe de machado de Liodred. A luz azul brilhava como fogo ao redor das armas enfeitiçadas. Enquanto bloqueava uma das lâminas com a espada, Farodin conseguiu penetrar na guarda do devanthar, cravando seu punhal nos músculos do peito, na altura do coração, riscando-o com um corte escuro. O ferimento não foi profundo. Surpreendentemente, mal sangrava.

Farodin recuou com um salto para escapar de um contra-ataque. O devanthar não o perseguiu; em vez disso, deu uma investida na direção de Liodred. Com a espada, ensaiou um golpe na cabeça, mudou a direção da estocada no último instante e passou por baixo do machado do rei. Arranhou o peitoral da armadura de Liodred, fazendo o ruído que Alfadas um dia também ouvira.

— Um belo trabalho — elogiou o devanthar, recuando para ficar fora do alcance do machado. — Se fosse aço humano, minha lâmina teria atravessado.

Quase como se estivesse brincando, bloqueou um golpe de machado que Mandred desferira contra suas costas. A segunda espada golpeou a arma de Liodred de lado.

— Morra, demônio. Eu... — gritou encolerizado o soberano da terra dos fiordes.

A lâmina do devanthar cortou suas palavras no meio. Tinha atingido a boca do rei.

— Não! — gritou Mandred, lançando-se para a frente com a coragem do desespero.

Saltou para um ataque ao devanthar. Uma espada resvalou acima de sua sobrancelha, deixando um corte aberto, mas o ímpeto do ataque tirou o equilíbrio do falso sacerdote. Ambos caíram no chão. Imediatamente Nuramon já estava sobre eles. Conseguiu deter um golpe que mirava a garganta de Mandred.

O devanthar rolou de lado e ergueu-se novamente com a agilidade de um gato. Lançou um olhar zombeteiro a Liodred. O rei estava no chão. Sangue escuro saía por sua boca.

— De que serve a melhor armadura quando não se usa um elmo? — debochou.

Mandred estava novamente em pé e avançou mais uma vez. O jarl agitou seu machado como uma foice, obrigando o devanthar a recuar. Farodin apressou-se em seu auxílio. E Nuramon também atacou novamente. Finalmente conseguiram deixar o devanthar na defensiva. Farodin descobriu uma brecha na defesa do oponente. Abaixou-se e deu uma estocada firme, atravessando sua espada por baixo da axila do sacerdote impostor. A lâmina passou junto à omoplata e saiu novamente pelas costas. Com um solavanco, o elfo soltou sua arma do inimigo.

Um tremor percorreu o devanthar, mas ele não emitiu nenhum ruído de dor. Apesar do ferimento mortal, defendeu um golpe de Mandred, desviou do machado com um giro e martelou o punho de sua espada contra a testa do firnstaynense. Mandred caiu como se tivesse sido atingido por um raio.

Nuramon aplicou um ataque profundo mirando a virilha do impostor. Sua espada foi bloqueada. Com uma rotação sobre os tornozelos, o oponente jogou a arma do elfo de lado. Um contra-ataque rápido retalhou a armadura de couro de Nuramon bem abaixo da garganta.

O braço direito do devanthar agora pendia, inútil. Mas ele não deixara cair a segunda espada. Farodin estava admirado que a ferida sob a axila mal estivesse sangrando.

— Acharam realmente que eu não estaria preparado? — zombou o devanthar. — Contava com Emerelle e seus melhores guerreiros. — Ele fez uma cara ofendida. — Se ela não vem até mim, logo a visitarei na Terra dos Albos com meus cavaleiros da ordem. — Com a espada, desenhou uma runa no ar e emitiu um som gutural. Então apontou para a abóbada com a estrela alba. — Tanto faz como a luta vai terminar: eu já os prendi em meu feitiço.

O devanthar ergueu a mão direita e passou-a na testa com um gesto exagerado.

Farodin viu nitidamente que o ferimento sob a axila havia se fechado. Devia ter sido o poder da maldita pedra dos albos!

Gemendo, Mandred tateou a própria testa.

— Ora, humanozinho! — zombou o sacerdote. — Para você eu pensei em algo especial. Vou cortar o seu fígado fora para que seja devorado. Você vai se surpreender com quanto tempo a magia vai conservar sua vida sem aliviar qualquer dor!

Enquanto o devanthar ainda falava, Farodin atacou novamente. Uma verdadeira chuva de golpes baixou sobre o enganador. Passo a passo, o elfo o empurrava em direção ao portão de bronze. Nuramon também voltou a atacar. Sua espada resvalou no braço do devanthar, deixando um corte bem aberto. Novamente não houve qualquer gemido que esboçasse dor.

Com um golpe de revés, Farodin fez uma longa e rasa escoriação na barriga do inimigo. No mesmo instante, um golpe penetrou na guarda do elfo. Ele jogou a cabeça para o lado, mas ainda assim levou um corte na bochecha.

Nuramon também sangrava por vários ferimentos leves. A impressão era de que o devanthar estava brincando com eles, com a intenção de prolongar a luta por puro prazer zombeteiro. Os pequenos cortes e contusões estavam consumindo aos poucos as forças dos companheiros.

De súbito, uma investida dilacerou de vez a armadura de couro de Nuramon. O sangue escuro ensopou a camisa que vestia por baixo e molhou a almandina castanho-avermelhada que pendia de seu pescoço em uma corrente fina. Um brilho profundo irradiou do interior da pedra.

Inesperadamente, o devanthar deu um grito surpreso e recuou. Sangue escorreu do seu olho esquerdo. Com golpes rodopiantes, ele investiu contra Nuramon. Farodin pulou entre eles e tentou apartar o demônio, que agora lutava como louco. O devanthar tentou afastar o elfo com um pontapé, fazendo-o tropeçar, e investiu contra ele com as duas espadas. Farodin conseguiu bloquear o golpe da mão direita, mas não evitou o golpe da esquerda, que acertou de lado a cabeça de Nuramon. O elfo foi lançado contra um dos nichos da parede, bateu com força contra a pedra e não se levantou mais.

— Agora você, Farodin — bufou o devanthar.

A zombaria havia terminado. Tinha uma cavidade escura onde antes houvera um olho. Sua carne esfolada estava queimada como se o tivessem torturado com um ferro em brasa. Investiu contra o elfo com uma fúria desenfreada. A mira de seus golpes estava pior que antes, mas a violência dos ataques obrigava Farodin a apenas se defender. Ele recuava, abaixava-se ou desviava com giros, sem encontrar espaço para aplicar um golpe. O devanthar o empurrou pelo portão de bronze até uma sala dominada por um grande trono de pedra. Ao longo das paredes havia grandes estátuas de deuses, presas como o gallabaal por pesados grilhões de ferro. Tochas e uma grande bacia com pedaços de carvão em brasa iluminavam o cômodo.

Farodin sentiu suas energias esmorecerem. Pensem em Noroelle! Nada dará mais força a vocês. Essas tinham sido as palavras de despedida da rainha. Farodin bloqueou um golpe com o punhal e curvou-se por baixo de um golpe de revés. Se ao menos conseguisse alcançar a esmeralda de Noroelle! Carregara a pedra preciosa havia tantos anos na bolsa de couro em seu cinto. Sempre sentira nitidamente a magia que morava no interior da gema, mas sem entender para que serviria. Era provável que Noroelle suspeitasse que eles um dia encontrassem o devanthar. Ela dera as pedras a eles não somente como uma lembrança, mas também como proteção.

Ouvia-se o tilintar de aço contra aço. Cada defesa esgotava um pouco mais as forças de Farodin. Com um giro lateral, ele desvencilhou-se da luta. Mas o devanthar o perseguiu imediatamente. O demônio parecia suspeitar que ainda pudesse haver uma segunda pedra e não permitia que a luta cessasse nem por um instante. Empurrava o elfo impiedosamente para a frente. Não restava tempo para que Farodin agarrasse o cinto e soltasse o cordão da bolsa de couro. Precisava recuperar a iniciativa na luta, caso contrário a derrota seria inevitável!

Um golpe pesado varreu o punhal de Farodin para o lado. Imediatamente veio uma investida pela fenda que agora havia em sua guarda. Ele se jogou para o lado, e ainda assim o aço do devanthar cortou sua cota de malha e o gibão. O sangue escuro atravessou os anéis da armadura do elfo. Sem equilíbrio, caiu ao desviar de um segundo golpe do demônio.

O devanthar errara por tão pouco que Farodin sentiu na bochecha ferida o vento provocado pela lâmina. O elfo lançou-se para a frente e, com um golpe de cima para baixo, cravou seu punhal na articulação posterior do joelho do inimigo.

O devanthar curvou-se de lado. Tentou um golpe mal mirado na cabeça de Farodin ainda durante a queda. O elfo se encolheu e rolou lateralmente no chão, enquanto o devanthar tentava arrancar o punhal do joelho.

Farodin tateou o cinto apressadamente em busca da bolsa de couro. Seus dedos sentiram o nó, mas não conseguiam abrir a bolsa molhada de sangue.

Enquanto isso, o devanthar conseguira arrancar o punhal. Com um grunhido furioso, atirou-o longe.

— Você vai morrer lentamente — bradou.

Farodin conseguiu ver a fenda estreita no joelho do devanthar se fechar. O enganador cuidadosamente transferiu o peso para a perna ferida, e então sorriu satisfeito.

Farodin desistiu de tentar desatar o nó da bolsa de couro. Em um ato de desespero, cortou-a com a espada. Fazendo barulho, o anel de Aileen caiu no chão. Os dedos de Farodin fecharam-se ao redor da esmeralda fria. A luz das tochas refletiu-se com um brilho nas faces da pedra. Em seu interior, brilhava uma luz tênue.

O devanhar atirou uma de suas espadas no elfo, errando pela distância de um braço. Agora também escorria sangue escuro do olho que ainda lhe restava. A luz da esmeralda foi se tornando cada vez mais clara.

— Você sente a força de Noroelle? — perguntou Farodin. — Isso é o seu troco pela noite de amor que roubou.

O devanthar revirava-se de dor. Tinha levado as mãos à frente do rosto.

— Ela amava o fruto daquela noite, elfo — gritou ele com voz sofrida. — E eu também gostava de Guillaume como gosto de todos os meus filhos. Vários deles são maravilhosamente hábeis em transformações pelas trilhas da magia. Assim como Padre Marcus, que por pouco não matou Emerelle.

Farodin se levantou. Sobre o largo espaldar do trono havia uma pedra dourada cintilante. Era ela? A chave para Noroelle? A pedra alba com a qual o devanthar traçara todas as novas trilhas?

O sacerdote impostor tirou as mãos do rosto. Agora havia apenas buracos esgarçados no lugar de olhos. Ele se abaixou e tateou em busca da espada que caíra à sua frente no chão. Quando a encontrou, ergueu-a apressadamente e apontou sua lâmina para o lugar onde Farodin estivera sentado há pouco.

— Você acha que venceu, seu elfinho de nada?

Vacilante, o devanthar ergueu-se sobre as pernas.

Sem fazer qualquer ruído, Farodin aproximou-se do trono e apanhou a pedra dos albos. Era um crisoberilo transparente e dourado, atravessado por cinco veios castanho-claros. Agora tudo ficaria bem! Com o poder da pedra, eles poderiam libertar Noroelle.

O devanthar andou com mãos tateantes em direção ao trono. Farodin recuou cuidadosamente.

— Você também cortejava essa elfa que eu seduzi, não é? Como foi isso para você, ela se entregar tão prontamente a mim na forma desse Nuramon?

A mão do devanthar tateou o encosto do trono. Ele parou e, mais uma vez, deixou-a deslizar aberta sobre o espaldar.

— Você se move muito silenciosamente, Farodin... Já mencionei como essa elfa gritou de prazer quando estava deitada embaixo de mim? Acho que estava só esperando para finalmente ser possuída como se deve.

O devanthar tinha recuado um pouco do trono. Segurava a espada levemente inclinada, pronto para se proteger, mesmo que não pudesse mais ver nenhum ataque se aproximar.

“Lastimável”, pensou Farodin, dando a volta no devanthar em silêncio. Então agarrou-o pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás. Com sangue-frio, acertou a mão do demônio que segurava a espada, cortando nervos e ossos. A arma tiintou no chão. Seus dedos se contraíram rapidamente; logo a mão ficou imóvel.

Farodin encostou a espada na garganta do devanthar.

— Você ainda se lembra do que aconteceu quando eu morri na caverna de gelo, elfo? — a voz do devanthar soou dentro da cabeça de Farodin. — Talvez eu tenha prazer em visitar sua amada novamente quando você me tirar deste corpo.

A mão restante do enganador tocou a perna de Farodin. O elfo se encolheu. Algo gelado parecia agarrá-lo por dentro.

— Que ilha bonita — continuou a voz. — Você realmente quer me mandar para lá? Devo aparecer com a sua forma desta vez?

A luz azul-clara dançava ao redor da espada de Farodin.

— Você está enganado, impostor. Ninguém consegue chegar até ela. Nem você.

O aço enterrou-se fundo na carne. Com um tranco, o elfo cortou as vértebras do pescoço do demônio, e então ergueu sua cabeça nas alturas pelos cabelos longos e louros. Tomado por uma fúria gelada, olhou dentro dos olhos queimados. Então colocou a cabeça na bacia com carvão em brasa.

De repente a espada começou a emanar uma luz clara. Será que estava vendo um vulto junto ao corpo do sacerdote falso?

Farodin deu um pulo para a frente. Agora não via mais nada ali. Teria sido somente uma ilusão dos sentidos? Uma miragem causada pela luz vacilante das velas? Farodin deu meia-volta agitando a espada. Saltou para a frente e para trás golpeando o ar, como se estivesse ficando louco. A cada batida de seu coração, sentia o medo crescer. Teriam sido as últimas palavras do devanthar mais do que uma ameaça desesperada?

De repente o brilho da espada desvaneceu. Veios finos e negros subiram pelo aço. Um frio congelante atravessou a cobertura de couro do punho da arma e tocou os dedos de Farodin. Aterrorizado, o elfo deixou a arma cair. O aço havia se tornado negro como a noite. E, ao bater contra o chão de pedra, despedaçou-se em incontáveis pedaços.

A vingança

Todos os ossos do corpo de Nuramon doíam. Era estranho, mas não sentia qualquer contentamento ao observar o cadáver do devanthar.

Ali tudo estava terminado. O inimigo estava morto, os ferimentos, um pouco curados. Agora só restava-lhes desaparecer daquele lugar terrível.

Cansado, retornou com seus companheiros para a sala da estrela alba. Mandred e Farodin carregavam o corpo de Liodred. A tristeza era visível no rosto do jarl. Cuidadosamente, os dois colocaram o cadáver do rei ao lado da estrela dourada.

— Nós não devíamos tê-lo trazido — disse Mandred, passando a mão ternamente sobre o rosto de Liodred e fechando seus olhos.

Farodin estampava preocupação em seus traços. Nuramon compartilhava do sentimento. O companheiro lhe contara sobre as últimas palavras do devanthar. Será que Noroelle estava em perigo? Ou será que aquela ameaça havia sido uma última e desesperada tentativa de intimidá-los? Não, eles tinham vencido! Não podia haver dúvidas. O fato de Farodin estar com a pedra dos albos nas mãos era a prova do seu triunfo. Mas só poderiam desfrutá-lo quando estivessem novamente no mundo dos humanos. Em último caso, seria necessário abrir caminho lutando; teria ainda de explicar a Mandred que não poderia levar o corpo do rei consigo.

Nuramon posicionou-se sobre a superfície dourada. Abriria o portal que os levasse imediatamente do mosteiro de Tjured para Firnstayn. Concentrou-se no feitiço. Ao seu redor, surgiram as trilhas albas, mas havia algo errado com elas: pareciam cercadas de chamas bruxuleantes. Ele tentou fazer o feitiço, mas logo no começo uma dor percorreu seu espírito, como se mãos em brasa agarrassem sua cabeça e quisessem derretê-la para penetrar nela com seus dedos.

Esgotado, interrompeu o feitiço e caiu de joelhos. Quando se recompôs, viu os rostos espantados de seus companheiros.

— O que aconteceu? — perguntou Mandred.

— Não, isso não! — gritou Farodin.

Seu olhar pareceu se perder no vazio, mas Nuramon sabia o que seu companheiro estava vendo. As chamas ao redor das trilhas dos albos também eram visíveis para ele.

— É essa a vingança do devanthar!

Eles estavam presos. Assim como a barreira da rainha bloqueava o caminho até Noroelle, a barreira do devanthar os impedia de deixar o Mundo Partido. O olhar de Nuramon pousou sobre a pedra alba nas mãos de Farodin. Era a única esperança. Mas eles não sabiam nada sobre ela. Precisariam aprender a utilizar o seu poder. Poderia levar anos até que decifrassem os segredos da pedra dourada, e eles não tinham esse tempo, pois ali não havia água nem alimento. Morreriam de sede antes de sequer começarem a explorar a pedra.

— Ali! — gritou Mandred de repente, apontando para um dos grandes discos prateados que cercavam a estrela dos albos.

O jarl agachou-se.

Nuramon e Farodin olharam por cima do ombro em sua direção. Na superfície do disco de prata surgiu uma imagem, quase como as do espelho-d’água da rainha. Mostrava o fiorde de Firnstayn. Conseguiam ver o círculo de pedras a partir do oeste e, atrás dele, lá embaixo, a cidade. Já era de manhã, e as fogueiras da vitória pareciam apagadas. O braço do fiorde esticava-se para o sul. As galeras dos elfos e as fortalezas ambulantes dos trolls haviam desaparecido. Ao longo da margem, ainda se viam os montes de cinzas das piras funerárias. Não restava dúvida: o disco prateado mostrava Firnstayn após a batalha marítima.

De repente, algo se moveu. Eram as ondas! Elas se moviam como se um vento violento estivesse soprando no fiorde. Mas havia algo de errado com a imagem. As ondas eram pequenas demais para que fosse um vento forte. Surgiram nuvens no campo de visão, que voavam depressa no céu azul. Quando o sol surgiu e avançou rápido, ficou claro que não era vento o que movia as nuvens e as ondas. O sol arrastou-se velozmente até o horizonte e então veio a noite com suas estrelas, para poucos instantes depois dar lugar a um novo dia.

O tempo passava diante dos olhos deles. Nuramon lembrou-se da Gruta de Luth, em que ficaram presos no tempo. Na frente da parede de gelo que bloqueara a passagem, eles haviam observado um jogo de luzes semelhante. Daquela vez, só conseguiram sair da caverna trinta anos mais tarde.

Mandred exprimiu em palavras o que Nuramon estava pensando:

— Por Luth! Esse maldito devanthar nos prendeu na mesma armadilha! — O jarl sacudiu a cabeça, infeliz, e olhou fixamente para a sua cidade.

— Só que desta vez não há ninguém para nos libertar — disse a voz baixa de Farodin. — Que idiotas nós fomos!

— Talvez a rainha venha em nosso socorro — retorquiu Nuramon.

— Você se lembra do que Emerelle disse? — Farodin perguntou ao companheiro. — O devanthar estava contando com ela ou com a xamã dos trolls. Ele mesmo nos confirmou isso durante a luta.

Nuramon lembrava-se disso. Mas a rainha também falara de outras pessoas poderosas. Naquele momento, contudo, isso podia não significar nada.

— Você quer dizer que caímos nesta armadilha pela rainha?

— Sim. E ela faria tudo menos se arriscar a vir até o mosteiro, onde o feitiço de um sacerdote com sangue de demônio nas veias poderia lhe custar a vida.

Nuramon balançou a cabeça afirmativamente. Farodin tinha razão. Estavam abandonados à própria sorte.

— Então teremos de tentar nos impor contra o poder do devanthar. Não temos outra escolha. Só nos resta esperar que consigamos, de alguma forma, aprender a usar a pedra dos albos.

— E como seria possível? — gritou Mandred.

Nuramon observou o disco de prata. O dia e a noite já não se distinguiam mais. Só havia a luz turva do crepúsculo. A neve e a grama se revezavam, mostrando a rapidez com que os anos passavam. Mas não era isso o que mexia com Mandred. Ele apontou para o círculo de pedras. Lá se via um portal — mas não o portal de névoa que lhes era familiar. Nada o cobria: eles podiam olhar diretamente para a Terra dos Albos, deslizar os olhos pelas colinas e ver as ruínas da torre. Era possível reconhecer até o carvalho Atta Aikhjarto, com toda a sua ramada.

— Por que o portal está aberto?

Nuramon ficou horrorizado. Se o tempo se esvaía tão rápido diante de seus olhos, só permanecia visível o que continuava existindo. Eram as montanhas, a cidade, a vaga superfície da água, o círculo de pedras e a vista para a Terra dos Albos. Se um elfo ou um humano passassem ali na frente, eles sequer perceberiam, a não ser que ele permanecesse imóvel por uma estação inteira do ano. O portal para a Terra dos Albos continuava aberto, enquanto as estações se alternavam cada vez mais rápido diante de seus olhos. A cidade também crescia, e o porto ia ficando cada vez maior. Como os anéis que se formam no tronco de uma árvore com o passar dos anos, fileiras de casas cresceram para além dos muros, até que foi construída uma segunda muralha na cidade, mais forte e com altas torres.

Então aconteceu algo que eles jamais esperariam. O portal para a Terra dos Albos cresceu como uma rachadura que atravessava o mundo; desceu pelo rochedo íngreme e alcançou o fiorde; e estendeu-se sobre a água até a praia onde Emerelle criara para eles o portal até o mosteiro. O que estaria acontecendo? Seria esse o fim da Terra dos Albos? Não poderiam fazer nada além de assistir à tragédia? A raiva nasceu e agora crescia dentro de Nuramon.

— Isso não pode ser verdade — disse Farodin. — Tem de ser uma enganação, uma ilusão do devanthar! Essa não é a realidade!

Nuramon sacudiu a cabeça. Não acreditava que fosse isso.

— Dê-me a pedra dos albos, Farodin! — e sequer esperando que fizesse o que pedira, simplesmente a apanhou.

Farodin o encarou, mal-humorado, mas então percebeu a expressão resoluta de Nuramon.

— Você vai conseguir — disse, por fim.

Mandred, por sua vez, estava totalmente ausente. Só tinha olhos para a imagem no chão.

Nuramon recuou de volta para a parte dourada do chão e preparou-se para o feitiço. Qualquer coisa que acontecesse, não desistiria até quebrar a barreira.

Mal começara e o fogo ao redor das trilhas dos albos se inflamou, acertando-lhe em cheio. Línguas em brasa penetraram em seu crânio. Mas ele não parou: em vez disso, tentou resistir. Rapidamente reconheceu que era muito inferior à magia do devanthar. Então tentou desesperadamente encontrar uma maneira de se apoderar da magia da pedra dos albos. Imaginou que estava sendo preenchido pela força dela, mas nada aconteceu. Ele apertou forte a pedra preciosa na mão, como se pudesse espremer para fora dela o poder que continha. Tentou até recitar um feitiço de cura para ela. Em vão! A pedra dos albos, cujo poder oculto ele de fato conseguia sentir, esquivava-se de sua magia quando o calor das chamas parecia queimá-la. A única coisa que a pedra conseguia lhe dar era o frio. Suas mãos ficavam livres do calor.

Então era isso! Não tinha de tentar avançar sobre o fogo com toda força, mas tentar suportar as chamas. O frio da pedra dos albos contra o calor do fogo! Ele deslizou a mão suavemente sobre a superfície do crisoberilo, e então sentiu o frio que seu interior guardava. Teve a sensação de que um rio gelado subia pelos seus braços, espalhando-se lentamente por seu corpo como o sangue que fluía em suas veias. A pedra era uma nascente. Ele pensou na nascente do Lago de Noroelle sob as duas tílias e nas pedras preciosas que descansavam dentro dele. As chamas ainda lambiam Nuramon, mas ele podia ver que, ao tocar seu corpo, elas se recolhiam. Agora ele só precisava direcionar a força da pedra para romper a barreira, e então teriam conseguido. Mas quando aproximava a pedra do fogo, as costas de sua mão queimavam, enquanto as palmas pareciam congeladas.

— Você precisa ser rápido! — gritou Mandred, com a voz retumbante. — Está ouvindo? Você precisa ser rápido, senão tudo estará perdido!

Nuramon quase interrompeu o feitiço para ver o que levara o jarl a dizer essas palavras. Mas se manteve firme, apertando os dentes.

Suas mãos estavam presas entre a brasa e o gelo. Não podia parar. Então aproximou mais a pedra da estrela dos albos.

— Está indo bem! — gritou Mandred. — Está ficando mais lento! Está indo bem!

Ao ouvir essas palavras, Nuramon entendeu que estava combatendo não só uma barreira, mas também o feitiço que criava a imagem de Firnstayn. As chamas que cercavam a trilha até o disco de prata brilhavam mais claras que as que rodeavam as demais.

Ao segurar a pedra dos albos diretamente sobre as chamas, Nuramon começou a tremer. Perdeu o domínio sobre a magia.

— Por todos os albos! — ouviu Farodin gritar. — Rápido, Nuramon! Rápido!

Nuramon sentiu tudo ficar cada vez mais frio. Suas mãos pareciam congelar. Para ele, era como se gelo corroesse suas veias. Há muito a pedra já não era mais uma fonte de frio, mas um mar onde Nuramon ameaçava se afogar. O poder da pedra ameaçava vencê-lo.

— Você precisa conseguir, Nuramon! — gritou Farodin. — É agora ou nunca!

A dor de mil agulhas cravou-se nele. Ele se ouviu gritar, e então perdeu o equilíbrio. Pôde apenas sentir algo quente o agarrar e arrastar.

Ruínas

A garoa gelada afagava o rosto de Mandred. Estava com tontura e apoiou-se na muralha desgastada. Ali, onde deveria estar a bela abóboda cruzada, não havia mais nada além do céu cinzento. O mosteiro por onde atravessaram para o Mundo Partido jazia em ruínas. Os dedos de Mandred enterraram-se em uma fenda no muro. A argamassa marrom-clara esmigalhava-se ao mais leve toque. Aquele mosteiro já estava abandonado havia muito tempo, tanto fazia o que Farodin dissesse.

O jarl olhou para Nuramon. Seu companheiro estava de cócoras na frente do nicho onde o cadáver de Liodred jazia amortalhado. O elfo estava diferente. De um instante para outro, ganhara uma mecha de cabelos brancos. Era como se tivesse envelhecido vários anos. Os traços de seu rosto pareciam menos suaves que antes. Mas essa mudança não era o pior. Nuramon balançava-se sobre os artelhos, fazendo um zumbido baixo e encarando com olhar vazio um monte de entulho perto da parede à sua frente. Suas mãos ainda seguravam com força a pedra alba dourada. A pedido de Farodin, Mandred já havia tentado pegá-la duas vezes. Mas Nuramon a segurava tão forte que teria sido necessário quebrar os dedos do elfo para arrancá-la dele. Desde que fizera o feitiço, Nuramon já não estava mais no domínio de si. Às vezes parecia não reconhecê-los. Mandred se perguntava se o elfo talvez pudesse estar possuído.

Um arco dourado de luz cresceu entre as ruínas. Farodin deu um riso esgotado.

— Eles não destruíram os portais daqui. Não é como nos templos das torres.

Mandred lutou contra um novo acesso de náuseas. Uma dor surda latejava em sua testa. Lembrou-se das imagens que vira no espelho de prata.

— O portal é seguro? — perguntou desconfiado. — Não podemos dar nenhum salto no tempo. Você sabe que...

Farodin interrompeu-o com um gesto brusco.

— Certeza nunca se pode ter. Esqueça o que você viu no espelho. Foi o enganador! Ele queria semear o medo em seu coração, e parece que conseguiu.

— Mas parecia tão verdadeiro — retorquiu Mandred.

Farodin não respondeu. Andou até Nuramon, tentou convencê-lo em voz baixa e ajudou-o a se levantar.

— Nós vamos para casa? — Mandred ouviu a voz trêmula do elfo perguntar.

Os longos cabelos de Farodin estavam desgrenhados por causa da chuva. Tirou-os do rosto e amparou Nuramon.

— Sim, nós estamos voltando. Só falta mais um pequeno trecho de caminho. Emerelle está esperando por nós.

Mandred seria capaz de dar uivos de raiva. O que raios havia acontecido com seu amigo? O que o feitiço tinha feito com ele? Lembrou-se mais uma vez das imagens no espelho. Tomara que Farodin tivesse mesmo razão, que tudo aquilo tivesse sido só uma ilusão!

— Apresse-se! — gritou o elfo.

Mandred apanhou o rei morto e pousou a cabeça dele sobre seu ombro, como se carregasse uma criança adormecida. Com todo aquele peso, quase caiu de joelhos. Só mais alguns passos, Mandred encorajou a si próprio. Aos tropeços, aproximou-se do portal. Olhou desconfiado ao redor uma última vez. O que tinha acontecido ali? Por que aquele mosteiro estava destruído? Não deveria ser o mais importante de todos os mosteiros dos sacerdotes de Tjured?

Farodin e Nuramon desapareceram para dentro da luz dourada, e Mandred se apressou em segui-los. O caminho pelo vazio não havia mudado. Seguiram uma trilha dourada totalmente em silêncio, só perturbado pelo sibilar da sua respiração.

Uma borda do peitoral da armadura de Liodred cortou dolorosamente o ombro de Mandred. Quase tropeçou e caiu. O jarl mantinha os olhos fixos na trilha luminosa. Sem desviar!

A passagem aconteceu de repente. Um vento gelado agarrou as finas tranças de Mandred. Perplexo, observou as mudanças. A imagem no espelho de prata não havia sido uma ilusão.

— Abaixe-se! — sussurrou Farodin, puxando a capa do fiordlandês. Esgotado, Mandred caiu de joelhos.

Pelos deuses! O que acontecera ali? Onde estava a sua pátria? Ventos violentos sopravam. Eles se agacharam atrás de um monte de neve, perto da margem do fiorde. Uma grande couraça de gelo cobria a água.

Diante deles estava Firnstayn. O tamanho da cidade se multiplicara muitas vezes, da forma como tinham visto no refúgio do devanthar. Muros de fortificação de pedra escura chegavam até bem perto da estrela alba que Emerelle certo dia criara a pouco mais de um quilômetro da cidade. Brechas largas haviam sido esculpidas nas paredes.

Mais monstruosa era a mudança bem na frente de seus olhos. Alguma coisa crescia da estrela que haviam atravessado. Mandred não encontrava palavras adequadas para descrever. Era algo que não podia existir! Atravessado por cima do fiorde, até lá em cima, no círculo de pedras, algo crescia... Uma transformação. A visão o lembrava do que vira na biblioteca de Iskendria. Ali, certa vez chegara a uma sala cujas paredes eram adornadas com quadros maravilhosos. Uma das paredes, contudo, estava danificada: o reboco estava fendido e descascado em alguns lugares. Assim era possível reconhecer um segundo quadro sob o primeiro, pintado com cores brilhantes, e que não era menos bonito que a nova pintura na parede. Mandred não conseguira entender por que o haviam escondido sob o reboco.

Ali era parecido. Alguma coisa estava descascada ou fendida. Atrás do fiorde que Mandred conhecia desde a infância, algo diferente aparecia. O ar entre as duas imagens que se sobrepunham brilhava, parecendo derreter — como às vezes ocorria em dias muito quentes de verão. Todavia, o quadro que viam do outro lado da rachadura não era nítido. Ainda assim, Mandred reconheceu à primeira vista o que viu. Era a paisagem onde despertara após sua fuga do homem-javali. Via as campinas floridas de primavera da Terra dos Albos. Ali, na outra margem do fiorde, agora parecia estar a torre de observação caída. E, não muito longe dali, os imensos galhos de Atta Aikhjarto esticavam-se em direção ao céu. Mas havia algo de errado com o velho carvalho. Ao contrário das outras árvores que estavam mais distantes, ele não tinha nenhuma folha! Mandred espremeu os olhos para enxergar melhor. A silhueta do enorme carvalho sobressaía escura na frente do céu. Havia algo pequeno e branco ao seu lado, mas não conseguia reconhecer. Por fim, voltou-se para Farodin, que não parecia menos perturbado, enquanto Nuramon simplesmente olhava naquela direção, sentado sobre a neve.

— O que há com Atta Aikhjarto? — perguntou. — Por que não tem nada verde?

— Árvores mortas não têm folhas.

A resposta o atingiu como um soco no estômago. Não podia ser verdade! Como era possível matar uma árvore dotada de alma? Ele era mágico e inimaginavelmente velho.

— Você está enganado!

— Eu queria estar — respondeu Farodin, aflito. — Devem ter acendido fogo ao redor dele. Talvez tenham até usado o fogo de Balbar de Iskendria. O tronco de Aikhjarto está carbonizado. Todos os ramos menores estão totalmente queimados. Eles devem tê-lo tornado um símbolo da guerra contra a Terra dos Albos. Uma bandeira deles está fincada a seu lado. Você a conhece. A que mostra o carvalho queimado!

— Mas como ele pôde…

— Como uma árvore poderia sair correndo? — interrompeu Farodin irritado. Então acrescentou em tom conciliador: — E mesmo que Atta Aikhjarto tivesse pernas, seu velho coração de carvalho jamais fugiria de um inimigo.

Mandred não disse mais nada. Foi inevitável lembrar-se do juramento que fizera a Aikhjarto no dia em que despertou na Terra dos Albos. Ele jurara que o seu machado se colocaria entre o carvalho e seus inimigos. O fato de não ter podido ajudar seu amigo tornava o seu luto ainda mais desesperador.

Ele desviou o olhar e observou Firnstayn. Em algumas das torres, tremulavam bandeiras da igreja de Tjured. Bairros inteiros da cidade estavam destruídos pelo fogo. Ao longo dos cais, havia navios semiafundados no gelo. No próprio fiorde, mastros também se erguiam em alguns lugares, atravessando a grossa camada de gelo. Quantas pessoas deviam ter vivido na cidade? E onde elas estavam agora? Teriam os cavaleiros da ordem matado todas? Mandred lembrou-se da noite na Iskendria sitiada. Será que ali também teriam havido batalhas igualmente atrozes?

— Abaixe-se mais! — murmurou Farodin.

Do sul, três cavaleiros percorriam o gelo. Eram a guarda avançada de uma grande coluna de trenós puxados por cavalos. Os cavaleiros galopavam em direção à cidade. De uma das torres soou uma corneta de alerta.

Os três passaram trotando a menos de vinte passos de distância da margem. Suas armaduras pareciam estranhas para Mandred. Eram negras e as placas de metal, presas umas às outras, eram como as da armadura de Liodred. Pesadas luvas revestidas protegiam suas mãos do frio. Os cavaleiros usavam botas até o joelho e longas capas brancas com o brasão da árvore negra. Elmos com longos protetores de face verticais e uma crista metálica de atravessado coroavam suas cabeças. Um largo cinto de armas cruzava transversalmente o peitoral de suas armaduras, onde ficava pendurada uma espada extraordinariamente fina. Na frente da sela ficavam presas duas estranhas bolsas de couro. Dentro delas pareciam se esconder clavas curtas.

Diante das narinas dos cavalos formavam-se nuvens brancas de respiração; pareciam esgotados. Os rostos dos cavaleiros estavam vermelhos de frio. Mandred perguntou-se quanto tempo ele e seus companheiros teriam passado na sala do tesouro do devanthar. Esses cavaleiros... Eles pareciam muito diferentes dos cavaleiros da ordem que ele enfrentara na batalha marítima. Também não levavam escudos consigo. Olhou para Firnstayn destruída. Quantos séculos teriam sido necessários para que a cidade crescesse tanto assim? Para essa pergunta ele não encontrou resposta.

Um dos três cavaleiros deu uma guinada e afastou-se da tropa, dirigindo-se diretamente para a fenda. Tenso, Mandred prendeu a respiração. Então montaria e cavaleiro simplesmente passaram para o outro lado. Ficaram desaparecidos pelo tempo de duas ou três batidas de coração. Em seguida, o cavaleiro surgiu no amplo campo verde, passou pela torre de observação tombada e seguiu pelo caminho da floresta. Pouco depois, os outros dois cavaleiros subiram uma rampa para um píer do porto e desapareceram nas vielas da cidade.

Mandred virou-se e olhou para trás. Os trenós agora já estavam bem mais perto. Cavaleiros equipados como os três homens da frente protegiam as laterais da coluna. Os trenós estavam carregados até o alto com provisões. O posto de observação dos três companheiros na praia ficava em uma altura baixa demais para que tivessem um bom panorama. Mandred não conseguia estimar quantos trenós compunham a caravana. Certamente não eram menos de cem. Ele olhou de volta para a cidade. Apesar da tarde escura de inverno, a luz só brilhava em algumas poucas janelas. Quem construía casas de pedra como aquelas não passava necessidades. Será que só brilhavam luzes nas casas que sacerdotes, oficiais e soldados haviam ocupado, por isso mesmo poupadas das chamas?

— Precisamos sair daqui — sussurrou Farodin, apontando para o tronco despedaçado de um pinheiro que subia pela neve até um pouco acima da inclinação da margem. As últimas tempestades de outono deviam ter arrancado a árvore e a levado até lá. Rastejaram cuidadosamente até ela. Mandred estava fraco demais para puxar o corpo de Liodred consigo. De coração pesado, deixou-o para trás. E eram só alguns passos, afinal.

— Você está sentindo esse cheiro? — perguntou Farodin ao se agacharem atrás do tronco.

Mandred sentia o cheiro da neve. No ar também pairava o aroma de lareira e de sopa de couve. Não conseguia ver nada de especial nisso. Baixou os olhos para o gelo e perguntou-se o que estaria sendo transportado nos trenós. O que ele daria agora por alguns ovos e tiras de toucinho frito! Embaixo, nos barris, com certeza eles também tinham hidromel. Mandred suspirou baixo. Um chifre de hidromel... Então lembrou-se da promessa que fizera a Luth durante a batalha marítima. Sorriu. Não quebraria a jura, mas gostaria de beber mesmo assim!

— Está cheirando a enxofre — disse Farodin por fim, já que não obtivera resposta. — Era esse o cheiro do devanthar. Agora, o mundo inteiro tem o cheiro dele.

— Mas você me contou como o derrotou, Farodin. Depois do golpe fatal, a lâmina da espada enegreceu e se quebrou. — Mandred apontou para a bainha vazia no cinto do elfo. — Isso matou mesmo o devanthar, não é?

— É o que esperamos.

— Estou com frio — disse Nuramon em voz baixa. Seus lábios estavam azuis e tremiam. — Por que não vamos para o gramado ali do outro lado? Lá é primavera.

— Não há abrigo no gelo — Farodin falava com ele como falaria com uma criança. — Aqueles humanos lá atrás nos querem mal. E eles encontraram um caminho para a Terra dos Albos. Nós vamos chegar à nossa casa de outra maneira. Vamos usar a estrela alba pela qual viemos para cá. Ela está diferente. Nela agora há uma nova trilha que foi criada há não muito tempo, e tem o mesmo padrão mágico das outras. Emerelle deve tê-la traçado com sua pedra alba. Acho que estava nos esperando. Ela sabia que viríamos para cá. O caminho é um sinal para nós. Ele vai nos colocar em segurança!

Ficou escuro sobre o fiorde. Do oeste, nuvens de tempestade arrastavam-se sobre as montanhas. O céu da Terra dos Albos, por sua vez, ainda brilhava azul-claro.

Vindo do porto, soou o toque de flautas e tambores. Enquanto os trenós subiam por uma rampa junto às pontes de desembarque, surgiu uma coluna de soldados em marcha entre os navios. Todos vestiam armaduras de peito e elmos altos. Suas calças e as mangas de seus casacos eram estranhamente afofadas. Ainda mais esquisitas eram as suas armas. Todos eles carregavam lanças que deviam ter mais de seis passos de comprimento.

Os guerreiros marchavam em uma coluna fechada. Oito flautistas formavam a primeira fila. Oito tamboreiros os seguiam. Oficiais a cavalo acompanhavam a unidade. Conduziam-na diretamente para a fenda entre os mundos.

Mandred contou em silêncio as fileiras de soldados em marcha. Quase mil homens estavam indo para a Terra dos Albos, seguidos de carroças de rodas altas e de animais de carga.

— Eles ficaram loucos — disse Mandred, enquanto a fileira em marcha fazia a curva no caminho ao lado da ruína da torre. — Com essas lanças longas eles vão atrapalhar a si mesmos durante a luta.

— Se você está dizendo — murmurou Farodin, curvando-se um pouco mais atrás do tronco da árvore.

Um vento fresco soprava sobre o fiorde, e junto com as nuvens do oeste veio a neve. Eles se agacharam em seu abrigo e esperaram até anoitecer.

Totalmente congelados de frio, eles retornaram para a estrela alba junto à praia. Liodred havia desaparecido sob uma fina mortalha de neve. Mandred ajoelhou-se perto do rei morto. Ao menos ele tinha sido poupado de ver Firnstayn queimada e ocupada por inimigos.

O jarl olhou para Farodin. Torcia para que não dessem nenhum salto no tempo. Esses malditos portais! Tudo tinha ficado fora de equilíbrio! Um exército que invadia a Terra dos Albos. Monstruoso! Até onde eles já teriam avançado? Quem venceria essa luta?

Um arco de luz vermelha e dourada cresceu por cima da neve.

— Rápido! — gritou Farodin, empurrando Nuramon à sua frente para dentro do portal.

Na muralha da cidade soou uma corneta de alerta. Mandred agarrou o rei morto pelo cinto e puxou-o pela neve. Liodred deveria ter encontrado sua última morada no túmulo sob o carvalho de sua própria cidade, pensou amargamente o jarl. Lá eram sepultados, havia séculos, os mortos da família real. Assim, ao menos na sepultura, Liodred teria voltado para o lado de sua esposa e de seu filho.

Mandred mergulhou na luz. Dessa vez só seria necessário um único passo para ser recebido na Terra dos Albos por um aroma fresco de verde. Eles saíram do portal em uma clareira úmida de orvalho. Sombras erguiam-se ao longo da borda da floresta. O ar estava tomado pelo aroma de flores que, por sua vez, incentivava o coro do gorjeio de pássaros.

Sob um pinheiro, um jovem elfo surgiu. Também carregava no quadril uma daquelas estranhas espadas finas que chamaram a atenção de Mandred nos cavaleiros junto ao fiorde. O jarl olhou para trás. O portal atrás deles tinha se fechado. Há pouco era noite, e agora estavam em plena manhã! Mandred praguejou em pensamento. Havia acontecido de novo! Tinham dado novamente um salto no tempo!

— Quem adentra o coração da Terra dos Albos? — gritou o elfo para eles.

— Farodin, Nuramon e Mandred Aikhjarto. Na corte da rainha nossos nomes são conhecidos, e também é para onde queremos ir — respondeu Farodin seguro de si.

A grande aliança

Eles caminhavam pela grama e aproximavam-se lentamente do acampamento militar na frente da colina do castelo da rainha. Lá estavam montadas centenas de barracas. Ao lado de cada uma delas tremulava uma bandeira de seda no vento da manhã. Cavaleiros e soldados estavam agrupados ali próximo e, entre as barracas, inúmeros filhos de albos ocupavam-se de suas tarefas.

Tudo o que Nuramon via nesse lugar o confundia da mesma maneira que tudo o que ele vira no caminho até ali. Seus companheiros tinham muita paciência com ele. Ainda assim, as palavras deles eram tão distantes...

Algo acontecera com ele durante o feitiço no átrio do devanthar; algo que se notava só de olhar. Ele observou seu reflexo em um lago e viu que uma mecha de seu cabelo havia se tornado branca. Ele parecia mais velho, mas esse era um preço baixo a pagar pela liberdade.

Logo eles chegaram ao início do acampamento. Nuramon sentia-se estranho ali, como se não fosse um guerreiro e nunca tivesse participado de uma batalha. Mas a batalha marítima, as inúmeras lutas ao lado dos firnstaynenses e outros combates muito anteriores haviam acontecido, ou teriam sido somente um sonho?

Nuramon olhou em volta e esperou reconhecer algum dos guerreiros ali. A maioria era desconhecida dele. De fato, tinha a sensação de já ter visto alguns dos rostos antes, mas eles lembravam-lhe mais personagens de sonhos do que filhos de albos.

Passaram por centauros e, para Nuramon, foi como se um dia tivesse salvo a vida de um como eles. Ou havia tentado e fracassado? Não tinha certeza. Os centauros saudaram Mandred com reconhecimento, curvando-se diante dele.

Quanto mais penetravam no acampamento, mais insistentes eram os olhares dos guerreiros. Eles os encaravam como se Nuramon e os companheiros fossem albos em carne e osso. Seus nomes eram sussurrados, alguns até os gritavam. Espalhava-se a perplexidade nos rostos dos guerreiros.

Nuramon sentia-se no lugar errado. Ainda não vira ninguém que conhecia. Ou simplesmente não se lembrava de ninguém? Talvez o feitiço nas salas do devanthar tivesse lhe roubado parte da memória. Ou será que haviam estado longe tanto tempo que muitos dos elfos que ele conhecia já tinham partido para o luar há tempos?

Os guerreiros os cercavam e falavam com eles, mas Nuramon não os escutava. Não sabia se aquilo ao seu redor era sonho ou realidade. Agora, contudo, sua mente começava a clarear. De repente, lembrou-se da busca por Noroelle. Os pensamentos em sua amada o ajudavam a ordenar um pouco a memória.

Ao avistar uma galhada de cervos sobre as cabeças dos guerreiros, Nuramon ficou mais atento ao que o cercava. O dono dela podia ser alguém que ele conhecia. Quando ele saiu da multidão e se aproximou deles, soube que não estava enganado.

— Xern! — gritou Mandred.

— Sim, senhor Mandred Aikhjarto! Diante de você está mestre Xern, que sempre acreditou que você voltaria.

A lembrança de Nuramon retornou. Mestre Xern! Então Xern havia sucedido Alvias, o mestre da corte. Sua galhada parecia uma coroa e concedia a ele a nobreza de um escudeiro da rainha.

Assim como Mandred, Farodin pareceu contente em rever o amigo.

— Então você é escudeiro da rainha!

— Sim, e não ficarão surpresos de saber que ela está aguardando vocês. Por isso ela convocou o conselho de guerra. Sigam-me!

As palavras de Xern confundiram Nuramon. Então recordou-se do espelho-d’água. Certamente ela conseguira ver nele o elfo e seus companheiros.

Eles seguiram Xern pelas fileiras de guerreiros. Nuramon tentava evitar o olhar daqueles que o recebiam com curiosidade. Eram sinistros para ele. O que será que viam nele e em seus companheiros? Que histórias deviam contar sobre eles? Não conseguia suportar tanta atenção, estava quase desejando voltar para aquele tempo em que todos o desprezavam. Os olhares mostravam grandes expectativas, que talvez não conseguiria satisfazer... Ao menos por enquanto.

Chegaram à barraca cor de açafrão da rainha, em cuja entrada havia dois guardas. Diante dela havia rochas brancas fincadas na grama, formando um grande círculo. Aquele certamente era o lugar em que se reunia o conselho de guerra. Atrás de cada pedra estava fincada uma estaca com cada uma das bandeiras da Terra dos Albos. Junto à entrada para a barraca da rainha estava a bandeira dos elfos: um cavalo dourado em fundo verde. Ao lado dela tremulava o estandarte de Alvemer, uma ninfa prateada em fundo azul.

Xern conduziu-os para o centro do círculo de pedras. Os demais guerreiros que os acompanhavam com curiosidade não ousaram adentrá-lo.

— Vou buscar a rainha — disse Xern, desaparecendo para dentro da barraca.

Nuramon observou os brasões. Conhecia todos eles, mesmo que não tivesse certeza de onde. A bandeira azul-clara de Valemas chamara sua atenção no oásis e o estandarte negro dos trolls, com os dois machados brancos de guerra cruzados, ele conhecia da batalha marítima. Talvez lá também tivesse visto todos os outros brasões. Reparou que junto à pedra em frente à rainha não havia nenhuma bandeira.

Os primeiros líderes começaram a chegar ao lugar. O que mais chamou a atenção foi o rei dos Trolls, acompanhado por uma velha troll. Ele se sentou, com a velha de pé atrás dele. Com um olhar imperioso, ele observava os elfos ao seu redor; mesmo agora estando sentado, eles não chegavam sequer à altura de seus ombros.

— Aquele é Orgrim — cochichou Farodin, com uma voz que expressava todo o seu desprezo.

Mandred cerrou os punhos e manteve os olhos no troll.

— Com ele eu ainda não acertei as contas — disse baixinho.

— Isso nunca vai chegar a acontecer — retrucou Farodin, olhando na direção do rei dos trolls com a expressão petrificada.

Nuramon fitou a rocha onde não havia nenhuma bandeira. Enquanto os líderes tomavam seus lugares ao seu redor, aquela pedra continuava vazia. Ele observou todos que estavam ali e finalmente avistou um rosto conhecido. Logo à esquerda do assento da rainha, estava de pé uma guerreira elfa, junto ao estandarte de Valemas. Vestia uma armadura clara de tecido e um grande casaco cor de areia. Seu olho esquerdo estava coberto por uma venda escura. Apesar disso, Nuramon reconheceu-a imediatamente. Era Giliath, a guerreira que um dia desafiara Farodin para um duelo na nova Valemas, e que seu companheiro só conseguira vencer com um ato de astúcia.

Ela veio em direção a eles.

— Farodin! — disse ela. — Já faz muito tempo que nos encontramos.

— Giliath. Eu pensei que todos os libertos de Valemas estavam…

— Mortos? Não. Um punhado de nós sobreviveu. E complicou a vida dos sacerdotes de Tjured.

— E vocês voltaram para cá? A rainha se desculpou pela injustiça que cometeu com vocês ou algo parecido?

Ela sorriu em silêncio, mas não respondeu a Farodin. Em vez disso, dirigiu-se a Nuramon:

— Nós devemos a uma grande feiticeira o fato de termos encontrado o caminho de volta para a Terra dos Albos, e de agora estarmos habitando novamente a nossa velha cidade. E essa gratidão também diz respeito a você, Nuramon. Você reconheceu algo de especial na filha de Hildachi e deu a ela o nome de Yulivee. Uma Yulivee nos levou embora da Terra dos Albos, outra Yulivee nos trouxe de volta. — Ela segurou a mão de Nuramon e ele pôde sentir que os dedos dela tremiam. — Ela nos contou tudo.

— Yulivee está aqui? — perguntou Nuramon.

Antes que Giliath pudesse responder, Xern tornou a sair da barraca e gritou:

— A rainha da Terra dos Albos!

Giliath apertou a mão de Nuramon mais uma vez; então saudou Farodin com a cabeça e retornou para baixo do estandarte de Valemas.

Os guardas junto à barraca da rainha abriram as lonas que cobriam a entrada. Emerelle então saiu. Nuramon jamais se esqueceria dela. Tudo passava, só a rainha permanecia. Estava bela como sempre. Como um dia desejara que ela pudesse vê-lo como um amante! Quando havia desejado isso? Não sabia dizer. Só sabia que esse sentimento não existia mais. Seus próprios pensamentos o confundiam.

Quando Obilee saiu, Nuramon se admirou. A melhor guerreira da rainha não tinha mudado nada. Vestia a mesma armadura do dia da batalha marítima. Era quase como se ela tivesse saltado os séculos junto com ele e seus companheiros, mas, diferentemente do que acontecia naquela época, Nuramon agora via alegria em seu rosto. Alegria que ela irradiava na direção dele, e só dele, não na de Farodin, nem na de Mandred.

Por fim, saiu da barraca uma elfa com um traje cinzento de feiticeira. Seria Yulivee? Aquela mulher mal lembrava a criança que, de acordo com sua noção de tempo, vira pela última vez só há poucos dias. Seu cabelo castanho-escuro ondeava-se até os ombros e duas tranças longas e grossas desciam-lhe até os cotovelos. Ela caminhou ao lado da rainha e seguiu-a até sua pedra. Por seu sorriso divertido, Nuramon finalmente a reconheceu. Tinha mudado muito, mas o sorriso ainda era o mesmo.

A rainha tomou lugar em sua pedra, com Obilee à direita e Yulivee à esquerda. Nuramon não se surpreendeu quando Yulivee se sentou como líder sob a bandeira de Valemas.

Emerelle examinou seus dois companheiros e ele por um bom tempo, causando inquietação e provocando comentários entre os guerreiros. O silêncio retornou quando ela ergueu a mão.

— Bem-vindos, meus fiéis heróis! A Terra dos Albos nunca ficou tão feliz em vê-los! — O rosto da rainha era o de uma soberana bondosa. — Eu não tive dúvidas de que este dia chegaria. Então vocês aniquilaram o devanthar.

Farodin concordou elegantemente com a cabeça.

— Nós o matamos e capturamos sua pedra alba — disse, mostrando a pedra. — Se ela puder ajudá-la na luta contra o inimigo, então nós a confiaremos a você. Mas já sabe para que usaríamos uma pedra como essa.

A rainha desviou o olhar brevemente.

— Não esqueci que vocês querem libertar Noroelle. E só vocês podem decidir o que devemos fazer com essa pedra alba. Ninguém os privará dessa escolha. Desde a batalha marítima reina a guerra entre nós e os sacerdotes de Tjured. O poder deles cresceu e eles ocuparam as terras do outro lado da Shalyn Falah. Eles até já penetraram no coração de nossas terras.

— Eles atravessaram a Shalyn Falah? — perguntou Mandred, indignado.

Em vez de responder, Emerelle olhou em volta, como que procurando algo. Finalmente Ollowain deu um passo à frente das fileiras de guerreiros.

— Não, Mandred!

O guardião da Shalyn Falah não parecia nem de longe ser tão bélico quanto antes. Mas era provável que tivesse acabado de lutar em uma batalha. Aproximou-se da rainha:

— Nenhum inimigo cruzou a Shalyn Falah. Eles invadiram por outro lugar.

— Pelo caminho que Aigilaos tomou naquela época?

Ollowain baixou os olhos para o chão.

— Isso realmente já faz muito tempo. Mas você tem razão.

Então a rainha disse:

— Quando a chegada de vocês se aproximou, dei a ordem para fazerem o inimigo recuar com toda força das terras centrais.

Nuramon lembrou-se da região. A Shalyn Falah passava por cima de um desfiladeiro profundo e era necessário um caminho de muitas horas para contorná-lo. Isso oferecia aos defensores tempo suficiente para que se organizassem.

Emerelle prosseguiu:

— Fiz isso para que pudéssemos ganhar esta guerra à nossa maneira. Se vocês três me confiarem sua pedra alba, assumiremos a nossa herança. Nós faremos o que os albos um dia fizeram. A Terra dos Albos ficará para sempre separada do Outro Mundo!

O silêncio se instaurou. Nuramon viu os guerreiros se entreolharem, perplexos. A rainha havia sugerido fazer como os albos! Ela ergueu-se de seu lugar:

— Nós empurramos o inimigo de volta para a terra entre a Shalyn Falah e o portal de Atta Aikhjarto. Mas eles já estão reunindo novas forças para contra-atacar. Nossa previsão é de que tentarão uma nova invasão das terras centrais com um exército imenso. Por isso, precisamos pôr nosso plano em ação o quanto antes.

— E como é exatamente o plano? — perguntou Farodin. — Como podemos nos separar do Outro Mundo?

— Enquanto nossos guerreiros defendem as terras centrais, nós ganhamos tempo. Sem serem incomodados pelos sacerdotes de Tjured, os poderosos da Terra dos Albos declamarão dois feitiços com as pedras dos albos. O primeiro separará todas as terras do outro lado da Shalyn Falah para sempre da Terra dos Albos. O segundo feitiço cortará todas as trilhas entre a Terra dos Albos e o Outro Mundo. Então estaremos livres de Tjured e seus criados. — E olhando para Mandred: — E os fiordlandeses criarão novo ânimo para erguer suas espadas se o seu antecessor retornar como rei para lutar com eles por um lugar eterno na Terra dos Albos.

Mandred pareceu contente, mas muito mais transtornado. Estava claramente consciente da proporção dessa honra. Nunca os humanos haviam obtido um lugar fixo na Terra dos Albos, e agora a rainha oferecia um presente como esse para um povo inteiro.

Emerelle dirigiu-se a Farodin:

— Mas isso tudo só poderá acontecer se nos entregarem a pedra dos albos de vocês.

— Então teremos de desistir de Noroelle? — perguntou Farodin.

— Não, vocês deverão escolher. Podem pegar a pedra, ir até Noroelle e libertá-la. Ou então salvar a Terra dos Albos com ela. Mas alerto: às vezes a prisão é melhor do que a consciência de que tudo que já foi um dia está perdido.

Nuramon não conseguia acreditar no que a rainha lhes propunha. Decidir entre Noroelle e a Terra do Albos! Essa era realmente uma escolha? Eles estavam cercados de guerreiros. A rainha poderia simplesmente tomar a pedra deles a qualquer momento. Não, eles não tinham escolha. Não podiam fazer nada além de dar a pedra a Emerelle. Trocou um olhar com Farodin e no rosto do companheiro viu o desespero. Por fim, balançou a cabeça afirmativamente.

Farodin concordou:

— Nós entregaremos a pedra a você, pois, caso contrário, a liberdade seria mais cruel para Noroelle do que a prisão. Mas ainda haveria outra forma de salvar Noroelle antes?

A rainha respondeu com voz de lamento:

— Não, pois a minha sentença anterior ainda está em vigor.

Farodin baixou a cabeça. Parecia ter perdido toda e qualquer esperança.

Nuramon sentiu-se frustrado. O presente que traziam a Emerelle e à Terra dos Albos não poderia ser maior; ainda assim, a rainha não podia revogar sua sentença.

— Nós só temos um pedido — disse Nuramon, percebendo como sua voz estava fraca. — Abra-nos uma trilha para o Outro Mundo antes que os mundos se separem. Nós encontraremos outra maneira de libertar Noroelle.

— Se partirem, não haverá mais volta — advertiu Emerelle.

— Você sabe até onde iríamos por Noroelle — retrucou Farodin.

A rainha os observou longamente.

— Realmente, jamais houve um amor como esse — disse então. — Pois bem. As pedras dos albos precisam descansar uma noite na Grande Floresta, junto à agulha rochosa. Pela manhã, nós começaremos a tecer os dois feitiços com elas. Vai levar muitas horas até que nosso trabalho esteja concluído. A separação das terras do outro lado da Shalyn Falah então ocorrerá com um piscar de olhos. Assim poderemos decidir a batalha a nosso favor. A separação do Outro Mundo só acontecerá um dia depois do feitiço. Durante esse tempo, as pedras farão seu trabalho sozinhas. Eu lhes abrirei um portal que leva ao Outro Mundo, diretamente ao portal da amada de vocês.

— Nós agradecemos, rainha — disse Farodin, curvando a cabeça diante de Emerelle.

Então adiantou-se e depositou a pedra nas mãos dela.

Emerelle ergueu a pedra preciosa dourada nas alturas e mostrou-a aos guerreiros.

— Esta é a pedra alba do sábio Rajeemil, que um dia foi ao Outro Mundo para investigar os seus segredos. Lá ele encontrou o luar e a sua pedra caiu nas mãos do devanthar. Agora, ela é confiada às mãos de Valemas — disse, entregando-a para Yulivee.

A feiticeira recebeu o crisoberilo, mas não voltou os olhos para ele. Disse à rainha:

— Emerelle! Você sabe a minha opinião a respeito. Eu não acredito que vamos conseguir. Você possui uma pedra. — E apontando com um gesto rápido para a xamã atrás de Orgrim: — Skanga possui outra e agora estou segurando uma terceira nas mãos. Com elas podemos afastar as terras do outro lado da ponte, mas apenas com três pedras jamais conseguiremos separar a Terra dos Albos do mundo dos humanos. Nós precisaríamos de pelo menos mais uma, e de alguém capaz de dominá-la.

— Você tem razão — disse Emerelle sorrindo. — Mas haverá ainda uma outra pedra. — E apontando adiante: — Quando aquele lugar estiver ocupado, nós teremos uma outra pedra dos albos. A pergunta é se conseguiremos que o seu portador se instale ali.

— Rainha, o nosso tempo está se esgotando — disse Obilee.

Emerelle sacudiu a cabeça.

— Não, pois os sábios sentirão quando a hora certa tiver chegado. Por enquanto, só se trata de nos encontrarmos.

De repente ouviu-se um sinal de corneta, acompanhado de gritos.

— Um exército inimigo às nossas costas! — alguém gritou próximo ao acampamento.

Enquanto a agitação se espalhava em torno deles, Nuramon olhou a rainha nos olhos. Ela retribuiu seu olhar serenamente e sorriu. Não havia dúvidas: quem quer que fosse que estivesse vindo, não surpreendia a rainha. Emerelle ergueu a mão:

— Recuem e deixem a visão das colinas livre para mim! — ordenou.

As fileiras de guerreiros abriram caminho se afastando. Nuramon e seus companheiros também abriram espaço para a rainha. Uma imensa tropa cinzenta avançou sobre as colinas e campinas em direção ao castelo. As fileiras de guerreiros carregavam estandartes; eram vermelhos e mostravam um dragão prateado.

— São os filhos de albos das trevas! — gritou Nuramon.

Suas palavras espalharam-se entre os guerreiros, instaurando puro espanto.

— Os velhos inimigos retornaram! — ouviu-se alguém gritar.

— A noite se aliou ao inimigo! — disse um outro.

Mandred e Farodin, por sua vez, mantinham a calma, pois Nuramon lhes contara sobre os filhos de albos das trevas.

Obilee sacudiu a cabeça; pelo visto conhecia o segredo dos anões.

— Como eles conseguiram se aproximar de nós assim despercebidos?

A rainha não respondeu. Em vez disso, gritou:

— Nuramon! Aqui está um cavalo. Você cavalgará em direção a eles e os receberá em nome da Terra dos Albos.

Xern trouxe um garanhão para perto. Era Felbion. Seu fiel cavalo tinha esperado todos aqueles anos! O bucéfalo relinchou, satisfeito.

— Há algo que devo dizer em seu nome? — perguntou, fazendo esforço para desviar o olhar de Felbion.

— Faça o rei vir até aqui! Como conseguir é com você.

— Deveríamos mandar um grupo da guardas junto com ele — sugeriu Ollowain.

— Ele não precisará deles — respondeu Yulivee, olhando com orgulho para Nuramon.

Durante a viagem, ele lhe contara sobre os filhos de albos das trevas e lhe descrevera os átrios dos anões em detalhes.

Nuramon subiu na sela.

— Ei, Felbion! — sussurrou no ouvido do cavalo. — Vamos ver se todo esse tempo o fez se esquecer de mim.

O cavalo saiu trotando, e Nuramon sentiu sua força quase indomável. Mal havia deixado para trás o acampamento do exército, um sentimento de humildade se apoderou dele. Cavalgava sozinho em direção a uma imensa tropa! Certamente mais de dez mil guerreiros vinham ao seu encontro. Marchavam em formação, como costumavam fazer para combater dragões, com escudos os protegendo por todos os lados. No centro do exército havia lanceiros, cujas armas despontavam das fileiras como árvores. Lá com certeza estava o rei, seu amigo Wengalf, com quem um dia vivera tantas aventuras. Ele nunca se esqueceria da luta contra o dragão Balon, de toda a dor que sofrera, e... do momento da sua morte.

De um golpe, Nuramon compreendeu o que o estava deixando tão perturbado. O que havia acontecido com ele. O feitiço no átrio do devanthar não tinha apagado nada — havia aberto as portas para a sua memória. Era isso! Mas tudo estava ainda muito desordenado. Para ele, era quase como se a luta contra o dragão tivesse acontecido no caminho para o oráculo Dareen. Embora fosse impossível, sua impressão era a de ter passado várias centenas de anos no vale dos anões antes de partir com Alwerich para viajar até o oráculo. O resultado era que nada fazia sentido.

A barragem que detinha o saber sobre o passado havia se rompido e, agora, todas as suas lembranças da vida passada desaguavam para junto daquelas que ele acumulara ao longo da vida atual.

Como tinha sido antes? Quando ele partira com os anões? Ao se fazer essas perguntas, Nuramon recordou-se do dia em que conhecera Alwerich. Na época, ele era um jovem anão que caiu em um desfiladeiro nos Iolídens e quebrou a perna. Nuramon o encontrou e o salvou. A partir de então, tornaram-se amigos, e juntos viveram muitas coisas. Alwerich o conduziu para junto dos anões, onde encontrou o rei Wengalf. Tinha sido há muito tempo, muito antes de ele deixar a Terra dos Albos com os anões.

Nuramon lembrou-se de uma vista sobre os cumes dos Iolídens que dava para Alaen Aikhwitan; de lutas contra bestas, bem fundo nas cavernas da velha Aelburin; de gigantes ferreiros nas salas claras dos anões; de expedições de caça nos vales e de muito mais. As lembranças o mergulhavam em um turbilhão de sentimentos, sem que fosse capaz de colocá-las em ordem. Antes que ele agisse, Felbion reduziu o passo. A tropa de anões havia parado. Um pequeno grupo cercado de guardas e porta-estandartes avançou do meio das primeiras fileiras da marcha e veio em sua direção.

Nuramon apeou e caminhou na frente do cavalo em direção aos anões. Reconheceu Wengalf, Alwerich e Thorwis imediatamente, mesmo que tivessem envelhecido.

O rei Wengalf oferecia uma visão magnífica. Vestia um traje dourado de cota de malha e um elmo também dourado, no qual runas serpenteavam para formar uma coroa. Alwerich usava uma couraça reluzente de ferro e carregava no ombro um machado de que Nuramon ainda tinha lembrança. Uma imagem totalmente diferente era a de Thorwis, inteiramente coberto por uma toga negra com caracteres bordadas com fios cinza-escuros. Seus cabelos brancos e a longa barba faziam um forte contraste com a cor de seu traje. Os três anões pareciam vultos das grandes epopeias de heróis, e os guardas também estavam equipados com o que havia de melhor. Não restavam dúvidas: os anões haviam se preparado muito tempo para este dia.

O rei deu um sinal a seus guardas, que prontamente se detiveram. Só Alwerich e Thorwis aproximaram-se também.

— Nuramon! Vê-lo no final de uma era... Isso comove um velho coração de anão — disse Wengalf.

— Também estou contente de rever todos vocês — respondeu Nuramon.

— E então? Encontrou a sua memória?

— Eu me lembro da nossa luta contra o dragão.

Wengalf balançou a cabeça orgulhoso.

— Emerelle fez bem de nos enviar você.

— Você é bem-vindo, meu amigo — disse Nuramon.

— Bem-vindo? — perguntou, olhando por trás do amigo. — Bom, se estou vendo bem a tropa reunida ali, parece que não somos tão bem-vindos como você está dizendo.

Nuramon olhou por cima do ombro. De fato a cavalaria tinha avançado do acampamento.

— Não se preocupe. Eles simplesmente têm medo dos filhos de albos das trevas. Somente poucos conhecem a verdadeira história de vocês.

— E, pelo visto, eles acham que temos medo de cavalos — retorquiu Thorwis. — Ficarão admirados com o que os tempos podem mudar!

Nuramon lembrou-se de sua última visita aos anões. Alwerich e seus companheiros já tinham mostrado um certo respeito por Felbion.

— Eles não estão lá para atacá-los, Wengalf.

— Se eles querem a nossa ajuda, então deveriam nos dar salvo-conduto até o inimigo.

Thorwis intrometeu-se:

— O oráculo de Dareen nos mandou para cá. Aqui deverá ser travada a última batalha desta era e nenhum anão deve ficar para trás no Outro Mundo ou no Mundo Partido.

— Nós não viemos para nos submetermos à rainha — completou Wengalf.

— Eu não sei nada a respeito das eras — respondeu Nuramon amigavelmente. — Eu só sei que a nossa única esperança é nos tornarmos aliados. A rainha reuniu os portadores de três pedras albas ao seu redor. Ela gostaria que vocês também se juntassem a nós.

Wengalf trocou um olhar demorado com Thorwis. Então disse:

— Nuramon, nós somos amigos. Preciso perguntar uma coisa: podemos confiar em Emerelle?

Essa era uma pergunta difícil.

— Isso eu não posso responder a vocês. Mas posso contar que meus companheiros e eu tínhamos uma pedra alba. Com ela, poderíamos ter libertado a minha amada. No entanto, nós a entregamos a Emerelle.

Wengalf puxou Thorwis de lado.

— Desculpe-nos! — disse ele, deixando Nuramon junto com Alwerich.

O elfo gostaria de saber o que falavam entre si, mas dirigiu-se a Alwerich:

— Como tem passado, amigo? — perguntou ele. — Você também encontrou sua memória?

O anão sorriu.

— Sim. E o que eu encontrei era bem mais do que consegui descobrir nos meus livros. Agora que você também se lembra, gostaria de agradecer por todas as vezes que salvou minha vida.

Nuramon agachou-se e pôs a mão no ombro de Alwerich.

— Desculpe, mas eu ainda estou muito confuso. No entanto, consigo ver à minha frente com bastante clareza aquele dia em que o encontrei no desfiladeiro. Eu o curei. E me lembro de Solstane e de como ela ficou feliz de vê-lo a salvo. Onde está Solstane?

— Ela e as outras estão nas velhas salas, esperando pelo nosso retorno. De uma maneira ou de outra.

— Com certeza, prefere que seja vivo.

— Você nos conhece. Para nós, a morte significa ainda menos que para os elfos. Principalmente quando já conseguimos conquistar a grande memória.

Wengalf e Thorwis retornaram.

— Se você e os seus companheiros são altruístas a ponto de oferecer a pedra dos albos por algo maior — começou o rei —, então nós, anões, não vamos ficar atrás. Isso não pode fracassar por nossa causa. Leve-nos a Emerelle! Seja um bom amigo para nós e um criado leal à sua rainha!

— Sigam-me! — disse Nuramon, dando meia-volta. Para Felbion, contudo, sussurrou: — Vá na frente!

O cavalo imediatamente saiu a galope.

Wengalf deu a seu exército a ordem de esperar e fez o mesmo com a guarda pessoal do rei. O líder da guarda se opôs, mas Wengalf permaneceu irredutível.

— Sem guardas! Só Thorwis e Alwerich devem me acompanhar. Três anões conduzidos por um elfo! — E fazendo um sinal a Alwerich: — Pegue a bandeira!

Um dos porta-estandartes estendeu-a a Alwerich.

— Eles devem ver exatamente com quem estão lidando — explicou Wengalf.

Lado a lado, puseram-se a caminho. Novamente uma sensação esquisita acometeu Nuramon. Dessa vez ele caminhava a pé até a cavalaria dos elfos. Embora da sua parte não esperasse nenhum ataque, era impressionante fazer frente a um poder como aquele. Seus acompanhantes pareciam não conhecer o medo. Como se estivessem dando um passeio, Wengalf perguntou-lhe:

— Como tem passado, meu amigo?

Nuramon contou brevemente o que acontecera desde a despedida de Alwerich. Discorreu sobre seus anos em Firnstayn, a busca pela pedra dos albos, sobre Iskendria e Yulivee e, por fim, a respeito da batalha marítima e a luta contra o devanthar.

— Por todos os átrios dos albos! — gritou Wengalf. — Que aventura! Teria gostado de participar dela. — E dando um tapinha no braço de Nuramon: — Na batalha que temos diante de nós, certamente teremos oportunidades suficientes de lutar lado a lado.

— Contanto que não termine como a luta contra o dragão!

Já se aproximavam da cavalaria e Nuramon pôde ver com quanto respeito os soldados contemplavam os anões. Quando se detiveram, poucos passos à frente dos cavalos, os militares ficaram inquietos.

Nuramon gritou:

— Este é Wengalf de Aelburin, rei dos anões, que fundou no Outro Mundo seu novo reino para hoje regressar à velha Aelburin. Ao seu lado está Alwerich, que venceu o Drago da Caverna! E este é Thorwis, o primeiro filho de albos das trevas!

Nuramon surpreendeu-se com suas próprias palavras. Estava certo. Alwerich um dia abatera o Drago da Caverna. O próprio Nuramon estivera presente. E também era verdade que Thorwis era o anão mais velho, de um tempo em que a maioria dos anões tinha partido para o luar.

As fileiras de cavaleiros se afastaram, abrindo caminho até os guerreiros do acampamento, que, por sua vez, criaram uma larga passagem até a frente da barraca da rainha. Resoluto, Nuramon deixou os anões irem na frente e alegrou-se com todos os olhares admirados que seus amigos receberam.

Por fim, pararam a cerca de dez passos diante da rainha. Nuramon avançou e fez uma reverência:

— Minha rainha, trago-lhe um visitante e talvez aliado.

— Obrigada — disse Emerelle com voz branda.

Nuramon deu lugar para os anões.

Wengalf caminhou à frente, seguido de seus dois companheiros.

A rainha baixou o olhar para reparar na bandeira no mastro que Alwerich carregava.

— Wengalf de Aelburin! Já faz muito tempo que nos vimos pela última vez.

— E não foi amigavelmente que nos despedimos — disse o anão, sem a menor manifestação de deferência pela rainha.

Mostrava a todos que era um rei e que, por isso, Emerelle e ele eram pares.

A rainha sentou-se sobre sua pedra, assim ficando com os olhos quase na altura dos de Wengalf.

— Então temos de encontrar as palavras certas para nos reunirmos novamente.

— Só existe um caminho para isso.

— Eu sei, e só posso dizer-lhe o mesmo que disse ao rei Orgrim: uma nova Terra dos Albos nascerá quando esse último perigo tiver sido eliminado. Nessa Terra dos Albos haverá lugar suficiente para reis trolls, rainhas elfas e também para o rei dos anões.

— Se o futuro é esse, então veja-nos como seus aliados. — Wengalf olhou para Thorwis e o feiticeiro pôs-se ao seu lado. — Nós a apoiaremos em seu feitiço.

Thorwis tirou uma pedra do meio das pregas de sua túnica. Era um cristal de rocha, trespassado por cinco linhas negras. A pedra alba dos anões!

— Nós agradecemos por ter cumprido o seu juramento — disse o feiticeiro.

— Eu não disse a ninguém que vocês possuem uma pedra. Mesmo tendo de confessar que insinuei saber que vocês viriam.

— Qual é o seu plano, Emerelle? — Wengalf quis saber.

A rainha repetiu mais uma vez o que dissera antes: que um feitiço deveria separar as terras do outro lado da Shalyn Falah e o Outro Mundo de toda a Terra dos Albos. Thorwis e Wengalf ouviram as palavras da rainha atentamente.

— Então que assim seja! — gritou Wengalf. — Meu exército ficará na ala direita, entre o fim do desfiladeiro e a floresta, a não ser que as terras tenham mudado.

— Ainda é assim como você se lembra. Mas os humanos vêm em massa. É claro que vocês não terão de lutar sozinhos. — A rainha olhou por cima dos anões. — Mandred! — chamou ela.

O jarl se apresentou, sendo observado com curiosidade pelos anões. Nuramon lhes contara a respeito de Mandred.

— Precisaremos dos mândridos nesta luta. Você precisa ir até os seus e convencê-los a participar da batalha amanhã.

Mandred concordou com seriedade:

— Farei isso, Emerelle!

— Farodin! — disse a rainha. O companheiro de Nuramon deu um passo à frente e se curvou. — Você defenderá Shalyn Falah ao lado de Ollowain e Giliath. Eu atribuirei minha guarda pessoal como reforço, e você deve comandá-la. — E olhando para cima, para Orgrim: — E os trolls os ajudarão, pois eles próprios um dia avançaram contra a ponte. Se defensores e antigos agressores estiverem unidos, Shalyn Falah resistirá.

— Agradeço a você, rainha — disse Farodin sem emoção.

Emerelle voltou seu olhar para Nuramon.

— E agora você! Gostaria que liderasse os elfos que lutarão ao lado dos anões.

— Liderar? — perguntou Nuramon.

— Espadachins, cavaleiros de Alvemer e arqueiros de Nomja estarão à sua disposição, assim como os guerreiros do seu clã.

— Obrigado, Emerelle — Nuramon ouviu-se dizer.

Mas não se via como comandante. Farodin era feito para isso, ou então Obilee, Ollowain e Giliath. Com certeza ele não era a pessoa certa para assumir uma responsabilidade como essa.

A rainha voltou-se novamente para Wengalf:

— Peço a você, Wengalf... rei de Aelburin. Tome o lugar nesta roda que cabe a você. Com isso o círculo do destino estará fechado e estaremos preparados para a tempestade que colocará fim nesta era.

O silêncio se instaurou, enquanto o rei dos anões caminhou com Thorwis e Alwerich em direção à pedra de frente para a rainha. Chegando lá, parou e olhou em volta. Deu um sinal a Alwerich, que fincou com toda a força o mastro do estandarte no chão enquanto o rei se sentava.

Uma alegria que Nuramon raramente presenciara entre os filhos de albos irrompeu no acampamento. Os elfos exultaram, os centauros relincharam, os trolls urraram e Mandred...

Mandred também urrou.

O ancestral vivo

O corpo de Liodred havia sido amortalhado em um coche coberto de tecidos brancos. Cinquenta centauros fizeram o cortejo para o rei tombado de Firnstayn. Ao lado dos rústicos homens-cavalo, Mandred sentia-se bem, embora as notícias sobre seu povo tivessem-no assolado com a tristeza mais profunda. Somente poucos haviam abjurado voluntariamente os antigos deuses para abraçar a fé em Tjured. Então os cavaleiros da ordem massacraram aldeias inteiras. Emerelle prometera asilo na Terra dos Albos a todos os habitantes da terra dos fiordes. Cavaleiros elfos e trolls haviam sido destacados para escoltar os refugiados, mas milhares deles perderam a vida em tempestades de neve ou em avalanches junto às passagens. Aqueles que saíram ilesos da fuga foram conduzidos ao Vale do Lamiyal, a cerca de quinze quilômetros de distância do castelo de Emerelle. A rainha e também Ollowain haviam alertado Mandred. O moral dos humanos estava destroçado; todo o sofrimento do passado tinha deixado marcas profundas. Contavam que talvez não mais de duzentos participassem da batalha que estava por vir.

Ao chegar ao outeiro sobre o vale, o coração do jarl pesou. Uma quantidade imensa de fugitivos estava acampada ali. Mal havia barracas suficientes; os humanos precisavam dormir ao ar livre sobre o chão de terra. A fumaça da lenha de centenas de fogueiras pairava como uma redoma escura sobre as campinas.

Os humanos observavam Mandred descer a encosta e cravaram os olhos nele. Não o reconheciam. Mas, também, de onde? Ninguém no acampamento dos elfos conseguira ou quisera lhe dizer quantos séculos havia perdido na armadilha do devanthar. Também, não fazia diferença. A única coisa que contava era que no dia seguinte eles revidariam o ataque.

Ao observar aquela multidão de desesperados, Mandred não sabia se os humanos ainda deveriam participar dos combates. O que mais lhe doía era ver as crianças. Com rostos encovados e olhos fundos, consumidas pela fuga, elas ladearam os caminhos, observando os centauros e a suntuosa carroça branca passar. Algumas até sorriam e acenavam, embora mal conseguissem se manter sobre as pernas tamanha era a fraqueza. Que espécie de monstros eram os sacerdotes de Tjured, que caçavam até a morte mesmo as crianças?

No meio do acampamento de refugiados havia uma barraca de linho verde desbotado. De pernas afastadas na frente da entrada estava um guerreiro gigantesco. Vestia uma armadura enegrecida e apoiava-se em um grande machado. Seus olhos azuis e gelados emprestavam-lhe uma expressão de poucos amigos; assim ele encarou Mandred:

— Então os elfos o mandaram para dar uma de antepassado conosco.

O jarl lançou-se da sela e conteve o impulso de enfiar o punho na goela do sentinela.

— Onde eu encontro o rei? Trago a armadura dele.

— Seus amigos o instruíram mal. O rei morreu no Desfiladeiro da Rapina. Lá ele resistiu com cem homens contra o exército dos cavaleiros da ordem, em troca de algumas horas a mais para a fuga de nossas mulheres e crianças.

A ira de Mandred contra o guerreiro se dissipou.

— E quem está no comando em seu lugar?

— A rainha Gishild.

— Posso vê-la? A rainha Emerelle me enviou. Eu... Eu estou vindo agora mesmo de Firnstayn. Vi tudo.

O guarda alisou o bigode e franziu a testa.

— Há dias ninguém mais atravessa as filas dos cavaleiros da ordem. Como conseguiu?

— Um de meus companheiros abriu uma trilha alba.

Uma ruga profunda dividiu a testa do guerreiro. Ele olhou para a carroça branca.

— Para que você está trazendo esse coche?

— O rei Liodred está amortalhado nele. Ele morreu lutando ao meu lado.

O guarda arregalou os olhos, assustado. Então pôs-se de joelhos.

— Perdão, antepassado! Eu... Ninguém acreditava mais que a velha profecia ainda se realizaria. Nós tivemos tantos...

Mandred agarrou o guerreiro pelos braços e puxou-o de volta para cima.

— Eu não gosto de homens ajoelhados à minha frente. Você tem razão para desconfiança. E eu estou orgulhoso por ainda haver homens como você na terra dos fiordes. Como você se chama?

— Eu sou Beorn Torbaldson, antepassado.

— Ficarei satisfeito em saber que amanhã estará ao meu lado na batalha, Beorn. — Mandred percebeu que o guerreiro apertava os lábios como se quisesse reprimir uma dor repentina. — O rei despachou-o do Desfiladeiro da Rapina, não é?

Um músculo na face do guarda tremeu levemente.

— Sim — soltou ele, sufocado.

— Não sei que tipo de homem foi o meu descendente. Só posso dizer o que teria feito no lugar dele. Eu teria escolhido meus guerreiros mais valentes e leais para pôr minha mulher em segurança. E, se um dia eu presenciar alguém chamá-lo de covarde porque não virou comida de corvo jazendo ao lado do rei no Desfiladeiro da Rapina, vou encher essa pessoa de pancada até ela reconhecer a verdade. Cavalgue amanhã ao meu lado esquerdo. Você precisa saber o quanto eu odeio carregar escudos. Seja o meu escudo!

Os olhos do guerreiro brilharam.

— Nenhum escudo será capaz de protegê-lo como eu farei.

— Eu sei — sorriu Mandred. — Agora já posso ir até a rainha?

Beorn desapareceu rapidamente para dentro da barraca. Mandred então ouviu uma voz aguda de mulher.

— Entre, Mandred Torgridson, antepassado do meu clã.

A cobertura da barraca esmaecia a luz do sol em uma meia-luz esverdeada. Era parcamente mobiliada. Havia um leito estreito, uma mesa pequena, duas arcas guarnecidas de ferro e, como único luxo, uma poltrona lindamente entalhada com um banquinho alto para os pés. Gishild era uma mulher jovem. Mandred estimava que não tivesse mais que 25 anos. Seu rosto tinha traços elegantes, mas era atipicamente pálido. Cabelos de um louro-avermelhado desciam-lhe volumosos até os ombros. Ela vestia um espartilho verde-escuro amarrado bem justo e, por baixo, uma camisa branca. Gishild estava sentada na poltrona com os pés apoiados no banco. Tinha uma coberta fina envolvendo suas pernas. Sobre a mesa ao seu lado, um punhal delgado estava à mão.

A rainha não fez menção de se levantar quando Mandred entrou. Dispensou Beorn com um gesto fugaz.

— E agora ainda vem você, antepassado — disse amargamente. — Nós o esperamos com ansiedade quando as primeiras brechas na muralha de Firnstayn foram abertas. Também naquela noite, quando meu marido liderou uma incursão na tempestade de neve contra o acampamento dos cavaleiros da ordem, para que os sobreviventes da cidade pudessem fugir para as montanhas. Mesmo no Desfiladeiro da Rapina eu ainda orei a Luth para que você finalmente chegasse. Agora é tarde demais, antepassado. Não há mais terras pelas quais o seu povo possa lutar. Nós somos refugiados, mendigos no estrangeiro, dependentes das esmolas de Emerelle. Pelo que parece, nem mesmo os elfos são capazes de vencer o poder dos sacerdotes. O carvalho queimado está projetando sua sombra até mesmo sobre o coração da Terra dos Albos.

Mandred respirou fundo. O que podia dizer a ela? Quão cruel foi estar ali em pé no refúgio do devanthar tendo de assistir impotente ao seu próprio povo lutando em uma guerra desesperada?

— Eu não posso reverter nada do que aconteceu. E para nós também não haverá caminho de volta para a pátria. Mas Emerelle me prometeu conceder um reino próprio para nós na Terra dos Albos. Só teremos de lutar mais uma vez e, então, os sacerdotes de Tjured serão afastados para sempre. Emerelle fechará os portais da Terra dos Albos e nunca mais um sacerdote virá para torturar e matar um fiordlandês porque ele se mantém leal aos seus antigos deuses.

A rainha encarou-o cansada.

— Eu ouvi falar demais de últimas batalhas, antepassado. — E apontando para a entrada da barraca: — Você está vendo o que o seu povo se tornou. As pessoas perderam todas as esperanças. As derrotas seguidas destruíram o seu orgulho.

— Nós os faremos recobrar o ânimo! Hoje à tarde quero sepultar Liodred. Então gostaria de falar com eles. Por favor, fique de pé ao meu lado. Tenho certeza de que eles a continuam honrando-na, Gishild.

— Nunca mais vou ficar de pé ao lado de quem quer que seja!

A rainha afastou a coberta com um golpe e Mandred pôde ver dois cotos vermelhos e inflamados, manchados de negro. Seus pés haviam sido amputados logo acima dos tornozelos.

— Não quero nem uma palavra de compaixão. Isto não é nada! No Desfiladeiro da Rapina, o meu filho pequeno congelou nos meus braços. Eu não pude dar calor suficiente a ele... — Ela parou. — Um par de pés congelados não é nada perto dessa dor. Eu... Eu não quero ter de olhar para mais nenhuma cova aberta, Mandred. Eu mesma sou uma. Sou um parco reflexo do seu povo.

Desolado, Mandred olhou para as pernas mutiladas.

— Você poderia ter pedido a ajuda dos elfos. Seus feitiços são poderosos. Eles teriam...

— Eu devia ter mandado arrancarem um de seus curandeiros do leito de uma criança doente? Nós trouxemos mais desgraças para a Terra dos Albos do que os poderes mágicos deles seriam capazes de sanar.

Mandred sentia-se impotente. O que mais poderia dizer a essa mulher amargurada? Palavras de esperança deviam soar como escárnio a seus ouvidos. Se ele ao menos tivesse retornado antes! Então se curvou:

— Retiro-me com sua permissão. Prepararei o funeral do rei Liodred.

— Espere, antepassado! — Ela sinalizou que se aproximasse. — Ajoelhe-se ao meu lado.

Admirado, o guerreiro obedeceu.

Gishild baixou a voz até se tornar um sussurro.

— Ouvi como falou com Beorn. Desde o dia no Desfiladeiro da Rapina ele é um homem destruído. Você lhe deu de volta a coragem. Leve a armadura de Alfadas e vista-a quando falar com o seu povo junto à cova de Liodred. Talvez você ainda consiga inflamar mais uma vez uma fagulha de esperança nas cinzas do luto. Eu não tenho mais essa força, Mandred Torgridson. Mas eu sei que muitos esperam até agora pelo retorno do antepassado vivo. Fale com eles. Você tem razão. Não pode ser que, depois de todos esses séculos de amizade, na última batalha, a bandeira de Firnstayn não tremule mais ao lado da dos elfos. Livre o nosso povo dessa vergonha.

Duas espadas e lembranças

Nuramon estava no quarto que fora de Gaomee. A rainha o pusera à sua disposição uma outra vez. O fato de encontrar um retrato dele próprio na parede surpreendera-o profundamente. Era verdade que haviam dedicado a todos que passaram a noite anterior a uma Caçada dos Elfos naquele quarto uma cena no friso que o circundava, mas Nuramon não estava pronto para avistar o seu próprio semblante na parede. O que mais o admirava era a maneira como estava retratado: em pé, segurando suas duas espadas nas mãos, ameaçando uma sombra que envolvia uma pedra preciosa dourada — o devanthar com sua pedra alba. Ou essa pintura fora feita em algum momento após a batalha marítima, ou então o olhar da rainha tinha alcançado bem longe no tempo.

Nuramon examinou os traços do rosto do seu retrato. Eram de um elfo corajoso que parecia superior a qualquer perigo, mas sem parecer feroz. Esse elfo certamente seria um bom líder. A pergunta era só se Nuramon conseguiria fazer justiça a esse retrato na manhã seguinte. Hoje ele não correspondia tanto assim. Tinha sido cansativo, principalmente porque sua memória ainda estava muito confusa.

Ele havia transferido muitas responsabilidades a Nomja e, para isso, sequer chegara a ver a arqueira, só havia trocado mensageiros com ela. Ela encontrava-se na ala direita do acampamento do exército, a umas boas cinco horas de distância do castelo de Emerelle. Wengalf e ela haviam falado sobre o posicionamento dos guerreiros e Nuramon deixara tudo em suas mãos.

Em vez de comandar, estava ali sentado naquele quarto, refletindo. Seu clã o visitara para equipá-lo; por desejo seu haviam lhe dado uma armadura de placas, para a qual a armadura de dragão de Gaomee servira de molde. Despediu-se logo depois, até porque ali não havia mais ninguém que conhecesse de tempos anteriores. O velho Elemon partira havia muito tempo para o luar; mesmo os mais jovens como Diama não estavam mais ali há tempos. Entre seus descendentes, Nuramon tornara-se uma lenda. Que decepção eles viveriam no dia seguinte, quando o grande Nuramon, que vencera um devanthar com seus companheiros, cavalgaria na batalha como um elfo absolutamente comum, e nada o distinguiria dos demais!

Foi inevitável sorrir. Na época em que esteve naquele quarto pela primeira vez, a aversão de sua linhagem o atormentava. E agora era desconfortável para ele que o tratassem com respeito e reconhecimento! Isso não podia ser verdade! Sua memória lhe dizia que o reconhecimento de modo algum era desconhecido para ele. Já o experimentara antes, principalmente junto aos anões. Mas isso tinha sido em uma outra vida...

Gradativamente suas lembranças se ordenavam; não demoraria muito mais para que conseguisse encaixar as pedrinhas do mosaico. Naquele momento, simplesmente havia coisas demais para entender. Então ele se lembrou de um dia ter amado uma elfa de nome Ulema. Desse amor resultou uma criança, que chamaram de Weldaron. Esse era o nome do fundador do seu clã. Será que ele, Nuramon, porventura teria sido o pai de Weldaron? Nisso ele não seria capaz de acreditar.

Também o confundiam todos os sentimentos que um dia nutrira por Emerelle, mas que ela nunca pudera retribuir. Muitos elfos viam Emerelle e sonhavam secretamente com o seu amor. Não havia mulher sobre a qual houvesse mais histórias apaixonadas e canções de trovador que a rainha dos Elfos...

O som de passos diante da porta despertou nele a lembrança da noite anterior à partida da Caçada dos Elfos. Virou-se; tinha ideia de quem vinha vê-lo. Quando a porta se abriu, exibindo Emerelle, soube que não havia se enganado. A rainha viera como na noite em que tudo começou para ele. Como daquela vez, ela vestia uma túnica cinzenta de feiticeira e seus cabelos louro-escuros caíam em ondas suaves sobre seus ombros. Ele olhou dentro de seus olhos castanho-claros e neles também encontrou o brilho daquela noite tão distante.

Ela fechou a porta atrás de si e sorriu para ele como se esperasse alguma reação dele.

— Emerelle — disse ele, olhando-a demoradamente. — Não é por acaso que você veio até mim, não é?

— Não. Nada que dizemos ou fazemos é por acaso. Aqui o círculo se fecha, Nuramon, pai de Weldaron e filho de Valimee e Deramon.

Quando a rainha pronunciou os nomes de seus primeiros pais, retornou-lhe a lembrança deles. Seu pai fora um guerreiro e sua mãe, uma feiticeira. Haviam partido cedo para o luar, mas o amaram da forma como só os primeiros filhos dos albos amavam seus filhos e filhas.

— Eu sou assim tão velho? — perguntou ele.

A rainha fez que sim com a cabeça.

— Eu já sabia há muito tempo que o seu destino era grande, e um dia chegaria a hora de enfrentá-lo. Na época, você era um dos meus companheiros de luta. Nós nos conhecemos em Ischemon, na luta contra os dragões do sol. Ainda não havia rainha. Eu estava em busca do meu destino e nós fomos juntos até o oráculo Telmareen. O que ele disse você já sabe.

Nuramon se lembrava de tudo o que a rainha falava. Suas palavras eram como fórmulas de feitiços que ordenavam sua memória verso a verso e traziam de volta todas as sensações de antes. Até a silhueta de luz do oráculo ele reviu de repente diante dos olhos e, depois de tanto tempo, sua voz ainda ressoou em seus ouvidos: Escolha a sua própria família! Não se preocupe com a sua aparência! Pois tudo o que é está dentro de você mesmo.

Agora a rainha estava bem à sua frente e o olhar dela passeava encontrando e desviando do seu.

— Naqueles dias havia poucas regras. Nós próprios tínhamos de criá-las e, por isso, em todas as suas vidas você sempre teve dificuldades para viver sob as regras dos outros. Você se lembra do que eu lhe disse antes de dar o seu último suspiro?

Na época ele havia sido ferido pela luz ardente de um dragão do sol. Agora recordava-se das palavras de Emerelle, e pronunciou-as:

O oráculo me mostrou você e a criança poderosa. Yulivee! Você já tinha visto Yulivee naquele tempo?

— Sim. Eu sabia desde aquela época que você um dia a conduziria até mim. Mas não sabia quando. Então exercitei a minha paciência. Tive de esperar muito e dizer e fazer coisas que não vinham do coração. Mas tudo o que disse naquela noite antes da Caçada dos Elfos é verdade. Tive, contudo, de omitir algumas coisas de você, como os oráculos costumavam fazer. No entanto, agora você deve descobrir o que ainda não sabe. Venha!

Emerelle segurou a mão de Nuramon e conduziu-o até o banco de pedra. Eles se sentaram. A rainha, então, começou:

— Eu não compreendo o que você sente agora, pois eu nunca morri. Minhas lembranças são as de uma única e longa vida. Mas sei que não é fácil lidar com todas as experiências. Você precisa crescer para compreender isso. E esse é um dos seus fortes. — Ela soltou sua mão e apontou para o teto, para o retrato de Gaomee. — Naquela época, designei este quarto a você propositalmente. Sabia que você estava diante de uma grande viagem. Era o momento certo de entregar-lhe a espada dela. Mas eu não disse o que aquela arma tem de mais. — Emerelle ergueu-se, caminhou até a cama de Nuramon e apanhou as duas espadas. Então retornou e sacou a espada curta de Gaomee. — Os anões certamente contaram alguma coisa sobre a arma.

— Eles me disseram que foi forjada para um elfo por um anão chamado Teludem. — Nuramon teve uma suspeita, e perguntou: — Esta arma um dia já foi uma espécie de presente para mim?

— Não, os anões a deram de presente para mim. Eles disseram que iriam ao Outro Mundo procurar um reino onde Wengalf pudesse continuar sendo rei. Eram tempos em que eu não podia tolerar ninguém ao meu lado para que pudesse acontecer o que tinha de acontecer. Nós nos separamos em cólera. Mas Wengalf não é tolo. Ele me deu a arma de presente e disse que deveria mandá-la a ele quando estivesse pronta para respeitá-lo como rei.

— Sobre isso os anões nunca me disseram nada.

— Eu dei a arma a Gaomee, porque ela descendia da estirpe que estava destinada a se aproximar dos anões.

A rainha pareceu esperar alguma reação da sua parte.

De repente Nuramon compreendeu o que ela queria dizer.

— Gaomee descendia da minha linhagem?

— Ela não só descendia da sua linhagem. Ela era sua filha.

A notícia atingiu Nuramon como um soco. Gaomee era filha dele!

— Eu não me lembro dela.

— Você já havia morrido há muito tempo quando Diyomee a teve.

— Diyomee! — explodiu Nuramon.

Aquele tinha sido um amor infeliz. O pai dela o odiava, e o rival de Nuramon o matara em um duelo.

— A família renegou Diyomee. Então eu decidi tomá-la sob meus cuidados. Ela teve a criança, chamou-a Gaomee e partiu para o luar. Então eu adotei a recém-nascida. Mais tarde, quando a convoquei para aquela Caçada dos Elfos, senti que era certo confiar a espada a ela. Contei-lhe tudo sobre seu pai e ela o admirou por seus feitos em Ischemon. Só assim ela pôde vencer o dragão Duanoc.

— Mas eu renasci. Por que ela não veio a mim?

— Ela não ousou fazer isso. Temia que você pudesse rejeitá-la. Antes de encontrar seu amor e partir para o luar, no entanto, ela me confiou a espada e disse que deveria guardá-la e entregá-la a você quando o tempo chegasse. E foi o que fiz. — Ela guardou a arma de Gaomee. — Você levou a espada para os anões e logo eles souberam qual seria o fim desta era. Eles descobriram pelo oráculo Dareen quando retornariam para suas velhas salas. — Emerelle então puxou a espada longa, a antiga arma de Nuramon. — Thorwis e Wengalf foram sábios. Eles deram-lhe sua velha espada. Quando eu a vi com você, soube que esteve com os anões. Assim você se tornou mensageiro do destino. Lembrou-me de onde essa arma vinha. Tive então certeza de que os anões viriam.

— Você sabe? — perguntou Nuramon surpreso.

— Você não se lembra de nada a respeito?

Nuramon refletiu. A espada o acompanhara ao longo de algumas vidas. Seus companheiros de luta a haviam levado para o seu clã, onde ela esperou por ele. Mas de onde ela vinha?

— Não fique quebrando a cabeça — disse Emerelle, empurrando a espada de volta na bainha. — Ela foi um presente meu. Na época eu presenteei cada um dos meus companheiros de luta com uma arma.

Nuramon não conseguia se lembrar e isso o aborrecia.

A rainha pousou a mão em seu ombro.

— Sua memória retornará. Você precisará de tempo para descobrir tudo. É uma viagem muito particular, diferente da que você viveu até agora. Cumpra-a como os anões. Guarde as minhas palavras na memória até você se lembrar por si próprio.

Nuramon fitou a arma ao lado da rainha.

— Então a magia nesta espada é a sua magia.

Emerelle riu.

— Na época eu era outra, assim como Yulivee antes também era diferente. Nem o devanthar reconheceu o feitiço da sua espada.

Nuramon olhou para o chão. O que a rainha lhe revelava abria milhares de portas, e ele não sabia em que mundo deveria entrar primeiro. Emerelle tinha razão: era uma viagem. Ela o conduzia por campinas abandonadas.

— E agora, como deve continuar? — perguntou ele. — Eu me sinto sem rumo, como se tivesse me perdido em meu longo caminho.

— Minhas palavras devem apoiá-lo — respondeu ela. — Elas devem mostrar-lhe que você é mais do que acredita, e que pode ser muito mais do que já sonhou.

A rainha falava como se nenhum perigo o ameaçasse; como se dali em diante não fosse haver qualquer obstáculo em seu caminho.

— Eu vou morrer amanhã?

Percebeu Emerelle erguer as sobrancelhas surpresa.

— Nuramon, você sabe que eu não revelaria isso mesmo que soubesse. Nem a minha visão alcança o desfecho das batalhas, já que, em seu curso, o destino se altera muito. Espadas demais, flechas demais e movimentos demais me impossibilitam de ver o fim de tudo. Sequer consigo saber se conseguiremos salvar a Terra dos Albos. Só sei o que tem de ser e devo guardar isso para mim, caso contrário pode não se realizar. Sei o que o move. Tem medo que você e Farodin possam morrer.

— Sim. Noroelle então estaria perdida. Eu renasceria em uma nova vida, e me lembraria do seu destino amargo sem jamais poder fazer algo por ela. Por que você não pode revogar a sua sentença? Por que o feitiço que separará a Terra dos Albos do Outro Mundo precisa ser pronunciado logo após o primeiro?

— Porque eu vi a minha morte no caso de separarmos somente a terra do outro lado da Shalyn Falah. — O olhar de Emerelle mergulhou no vazio. — Uma flecha me atingiria e, assim, o feitiço nunca mais poderia ser pronunciado. Os sacerdotes de Tjured, por sua vez, abrirão outros portais para a Terra dos Albos se não separarmos o nosso mundo do deles. — Piscando, olhou novamente para Nuramon: — Noroelle precisa permanecer onde está para que eu possa viver. Mas não pense que estou agindo assim por egoísmo. Para mim, trata-se somente da Terra dos Albos. A rainha também conhece a compaixão e sofre quando precisa dizer e fazer coisas que contrariam os desejos de seu coração. — Emerelle pousou a mão sobre o ombro dele. — E o meu coração me diz que precisa haver esperança por Noroelle. Por isso, faço agora uma promessa. — Seus olhos brilharam. — Se Farodin e você tiverem de morrer, então confiarei meu trono a Yulivee e darei as costas para a Terra dos Albos no lugar de vocês.

Nuramon contaria com qualquer coisa, menos isso.

— Você faria isso? — perguntou ele.

A rainha fez que sim com a cabeça.

— Por mais que por todos esses séculos eu tenha sido dependente do destino, seria insuportável demais viver no florescimento de uma nova era e vê-los, você e Farodin, renascidos. Também não conseguiria suportar a tristeza de Obilee. Seria uma culpa com a qual não poderia continuar vivendo. Como você pode ver, restam esperanças para Noroelle se nós vencermos amanhã.

Nuramon pegou a mão da rainha e a beijou.

— Obrigado, Emerelle. Isso me tira o medo da batalha. — E olhando para as duas espadas: — Eu gostaria de dar-lhe a espada de Gaomee, porque você tem razão: aqui o círculo se fecha.

— Não. Não por causa da espada. Você precisa ficar com a arma. Ela cumpriu a sua finalidade para a Terra dos Albos, mas para você ela é um símbolo da sua jornada, que ainda não chegou ao fim.

Emerelle deu-lhe um beijo de despedida na testa e, em seguida, se levantou.

— Sobreviva à batalha e encontre Noroelle! Depois disso, você poderá largar a espada, aliviado.

Com essas palavras, a rainha deixou o quarto.

O punhal da rainha

O barulho do acampamento militar chegava até o topo da torre. Os martelos dos ferreiros fabricando armas ecoavam alto. Cavalos relinchavam, inquietos. Junto a algumas das fogueiras ouviam-se cantos. Cada um lutava contra o medo à sua maneira. O dia seguinte decidiria a continuidade da existência da Terra dos Albos.

Farodin apoiou-se no parapeito da varanda e lembrou-se do dia que tinha originado tudo aquilo. Se Guillaume tivesse morrido calmamente em sua casinha perto da torre do templo de Aniscans, talvez sufocado com uma almofada, será que nada daquilo teria acontecido? Farodin teria conseguido fazer isso? Teria sido uma fraqueza sua que levou o inimigo a estar agora diante do coração da Terra dos Albos? Ou será que tudo já começara com a morte de Gelvuun?

Respirou fundo. O ar frio da noite tinha uma mácula. Um hálito de um cheiro familiar demais. O fedor de enxofre. Seria só coisa da sua imaginação? Será que aos poucos estava ficando maluco? Ou será que não tinha vencido a sua luta mais importante? Estaria o devanthar à espreita, como quando o tomaram por morto na caverna de gelo? Estaria ele escondido e, mais uma vez, tecendo uma de suas tramas?

Esforçava-se para reprimir os pensamentos desesperados e simplesmente absorver a imagem do acampamento do exército. Havia barracas montadas até onde o olho alcançava e o fogo ardia até em cima das colinas distantes. Nunca todos os povos da Terra dos Albos haviam ficado lado a lado. Isso também era resultado da morte de Guillaume. Velhos conflitos tinham sido esquecidos... Farodin pensou em Orgrim. Passados cem anos após a batalha marítima sem que a alma do rei dos trolls Boldor ainda tivesse renascido, Skanga proclamou Orgrim soberano de seu povo. Os trolls, que já haviam trazido tantos infortúnios ao povo dos elfos, amanhã estariam perto de Welruun e de Shalyn Falah para lutar lado a lado com eles. Justamente naquele lugar, onde há séculos haviam conduzido uma batalha exasperada uns contra os outros! No lugar onde Aileen morrera! Tudo tinha se invertido no mundo. E tudo parecia possível. Se ele sobrevivesse ao dia seguinte, então conseguiriam chegar a Noroelle.

A mão de Farodin acariciou a pequena bolsa de couro onde guardava o anel de Aileen e a esmeralda de Noroelle. Sentiu a garganta apertar. O fim da busca estava tão próximo! Mas de que maneira os séculos de solidão poderiam ter mudado Noroelle? O que teria restado da elfa que ele um dia tanto amara? E o que havia restado do Farodin que ela um dia conhecera?

Um ruído fez o elfo se virar. A porta para os aposentos da rainha se abriu, e Emerelle saiu para junto dele na varanda. Estava totalmente vestida de branco. Nunca Farodin a vira com esses trajes. Eram simples e sem enfeites. Uma gola alta circundava o seu pescoço. O vestido longo era acinturado e tinha mangas largas.

— Estou contente de poder encontrá-lo aqui mais uma vez — disse, recebendo-o com voz calorosa. — Aqui em cima falamos tantas vezes sobre a morte. — A rainha aproximou-se dele junto ao parapeito de pedra e mirou a campina lá embaixo.

— Para você já passou muito tempo desde a última vez que estivemos aqui. Na época, eu não tinha dúvidas de que tudo o que você ordenava era pelo bem da Terra dos Albos — disse Farodin, pensativo.

No acampamento soaram risos animados de centauros.

— E hoje, o que você pensa a respeito?

— Estou feliz por não ter matado Guillaume. Ele era um homem bom. Se tivesse vivido mais... Talvez tudo isso não tivesse acontecido. — Ele afastou-se um pouco do parapeito e encarou a rainha. Ela parecia tão jovem. Tão bela e inocente. — O que há em mim que a fez escolher-me entre todos os filhos de albos para ser seu carrasco?

— Se uma única punhalada puder evitar centenas de outras mortes, é condenável desferi-la?

— Não — respondeu Farodin, decidido.

— É porque você pensa assim que o fiz meu punhal. Houve tempos em que uma única punhalada poderia ter evitado a partida dos anões ou o êxodo dos elfos de Valemas. Eu tinha medo de que nossos povos pudessem se dispersar aos quatro ventos ou, ainda pior, que nós tivéssemos de resolver conflitos sangrentos por meio das armas. A Terra dos Albos estava arriscada a perecer. Os nossos assassinatos nos livraram disso. Se amanhã nós vencermos, então a Terra dos Albos será forte como nunca, e uma nova era começará. O que significa sacrificar um corpo quando se sabe que a alma renascerá? O que acaba é somente a carne. Para a alma, está reservado um novo começo, que dessa vez talvez não a conduza por caminhos obscuros.

— Você nunca teve dúvidas sobre estar ou não fazendo o certo?

Emerelle deu-lhe as costas e apoiou-se no parapeito.

— Qual é a medida do certo e do errado, Farodin? Eu ordenei a você e a Nuramon que matassem Guillaume. Em vez disso vocês dois tentaram salvá-lo. Ainda assim, Guillaume morreu. O destino já havia fixado há muito tempo o dia de sua morte. E, embora não tenham sido vocês a cometerem seu assassinato, ele foi atribuído ao povo dos elfos. Como mãe, a decisão de Noroelle de não me entregar a criança foi certa. A decisão de vocês de não matarem o filho de Noroelle foi certa. Mesmo assim, estamos aqui, lutando pela Terra dos Albos. Eu sempre me esforcei para agir em prol de todos os filhos de albos. Talvez o ajude saber que nunca me decidi por uma morte sem pesar no coração.

Farodin não achou a resposta satisfatória. Antes era mais fácil para ele aceitar as palavras da rainha sem questioná-las.

Ficaram lado a lado em silêncio por muito tempo.

— Você está sentindo o cheiro de enxofre? — perguntou ele.

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

— É preciso ter sentidos muito apurados para conseguir perceber o cheiro daqui. Ele vem do outro lado da Shalyn Falah.

Farodin suspirou. Antes do último conselho de guerra, eles contaram sobre sua luta com o devanthar. Emerelle ficara em silêncio a esse respeito. Teria sido porque não queria revelar a verdade diante de todos os líderes militares?

— Então ele nos enganou de novo — disse Farodin desesperado. — Como da outra vez na caverna de gelo, quando pensamos que tinha sido vencido. Foi ele quem comandou os exércitos dos cavaleiros da ordem para criar a fenda entre os mundos?

Pensativa, a rainha afastou uma mecha de cabelo do rosto. Por fim, ergueu os olhos e buscou o olhar do elfo.

— O devanthar se foi para sempre. Vocês o mataram à maneira dos albos. Um dia, nossos antepassados aniquilaram os devanthares com suas armas mágicas, e as destruíram. Ele não vai voltar. No entanto, de certa forma ele é imortal. Suas sementes deram muitos frutos no Outro Mundo. Foram sacerdotes com o sangue dele nas veias que criaram a fenda durante o segundo cerco a Firnstayn. Isso aconteceu por engano. Eles queriam fechar a estrela alba no penhasco e a estrela da praia ao mesmo tempo, com um único ritual. Mas, em vez de separarem nossos mundos, eles derrubaram as fronteiras. Com os séculos, o sangue do devanthar foi ficando mais ralo. Hoje, já não há mais sacerdotes que consigam matar filhos de albos com seu feitiço. Fatos como os que ocorreram durante a batalha marítima, quando quase fui morta, não se sucederam mais. Nossos inimigos, contudo, não precisam mais de magia. Eles conseguem vencer com a força de suas armas. Tanto faz quantas baixas tenham durante as batalhas, eles substituem todos os mortos, enquanto os filhos de albos sangram lentamente. Por isso precisamos vencer! Temos de manter nosso mundo a salvo deles somente por mais um dia!

Subitamente, um pensamento ocorreu a Farodin: será que a rainha estaria mentindo apenas para não lhe tirar a coragem para a luta? Mas, naquele momento, não lhe era totalmente indiferente se ela estava mentindo ou não? A batalha pela Terra dos Albos precisava ser lutada e, ao menos em um ponto, ele acreditava nela: Emerelle faria tudo para salvar os povos dos filhos de albos.

Farodin fez uma reverência rápida.

— Cavalgarei ainda esta noite à Shalyn Falah.

A rainha aproximou-se e beijou-o suavemente na face.

— Cuide-se, meu amigo. Existe uma Emerelle que só nós dois conhecemos. Você guardou os segredos dela ao longo dos séculos. Gostaria de agradecê-lo por isso.

Farodin ficou surpreso.

— Pensei que Ollowain tinha ocupado o meu lugar.

A rainha encarou-o com um olhar penetrante.

— Não. Ele pode ser o melhor esgrimista da Terra dos Albos, mas falta-lhe o talento para ser o punhal da rainha. Ele falhou em Aniscans. Depois disso, você voltou a ser o único a executar os meus desejos. Você foi meu enviado entre os trolls, e os teria feito pagar com o próprio sangue se tivessem nos traído na batalha marítima. E, por fim, foi a sua espada que matou o devanthar, o inimigo mais poderoso que a Terra dos Albos já teve.

Nas pegadas de uma noite no passado

Nuramon passeava pelos pomares da rainha. Como antes, era inevitável lembrar da noite anterior à partida da Caçada dos Elfos. Na ocasião, as árvores tinham sussurrado para ele, mas agora estavam caladas. Nuramon tateou os galhos do pinheiro das fadas, mas o calor que ele sempre emanara havia se esvaído. Afastou as mãos de volta, desapontado.

O que havia acontecido ali? Teriam as almas das árvores partido para o luar ou algo assim? O feitiço que aquele lugar guardava parecia ainda agir, pois todas as árvores tinham frutos simultaneamente. Mas o tempo parecia ter trazido algumas mudanças.

Nuramon passou pela tília onde vira Noroelle pela primeira vez e se aproximou das duas amoreiras que, naquele tempo, o presentearam com seus frutos. Independentemente de como fosse a batalha do dia seguinte, Noroelle jamais veria tudo aquilo novamente. Só poderia reencontrar o seu lago, o Carvalho dos Faunos e a sua casa em suas memórias.

Nuramon achegou-se à tília e à oliveira no fim do jardim. Ali ele conversara com Noroelle como um espírito de árvore e ela se deixara levar por seu jogo. Naquela noite, ele jamais teria acreditado que o destino conduziria todos eles por um caminho tão difícil. Então levantou os olhos e lá em cima viu dois rostos olhando para ele.

— Ora, você está nos espionando? — perguntou Yulivee sorrindo.

Obilee pousou a mão no ombro da feiticeira.

— Deixe-o em paz!

— Venha aqui conosco — completou Yulivee.

Nuramon não respondeu; subiu pela escada estreita até o terraço. As elfas eram uma visão encantadora. Yulivee vestia uma túnica cinza de tecido leve. Tinha trançado fitas brancas em seu cabelo castanho-escuro. Obilee trajava um vestido azul esvoaçante e tinha o cabelo preso no alto. Ninguém acreditaria estar diante de uma guerreira.

— Yulivee e Obilee! — disse Nuramon. — Vocês se tornaram mesmo melhores amigas?

— Desde que você partiu — elas confirmaram.

Ele se aproximou de Yulivee. que o olhou nos olhos.

— É estranho não precisar mais olhar para cima para vê-lo. — Ela agora tinha exatamente a mesma altura de Nuramon. — Naquela época, você era um gigante para mim. Para você, eu com certeza era só uma menina boba.

— Não, você era uma pequena feiticeira de grande poder... e uma pestinha adorável.

Obilee sorriu.

— E continuou assim por um tempo depois que você partiu.

— Por isso eu queria me desculpar — disse Yulivee.

Nuramon abanou a cabeça.

— Mas você não precisa, irmã.

— Eu não me esqueci disso, irmão — disse Yulivee. — E eu fiz o que você me pediu. Cuidei de Felbion e moro na sua casa. Você ainda vai reconhecê-la, ainda que o Alaen Aikhwitan tenha partido.

— Ele não está mais lá? — perguntou Nuramon, lembrando-se do pinheiro das fadas.

— Em todas as terras centrais já não há mais nenhuma árvore com alma — respondeu Obilee.

Yulivee tirou uma bolota de uma pequena bolsa.

— Esta pertence a Alaen Aikhwitan. Se nós vencermos amanhã, as almas das árvores renascerão. Eu só ainda não sei onde devo plantar esta bolota.

— O que aconteceu com Atta Aikhjarto?

— Xern vai plantá-lo de novo. — A feiticeira apontou para o pomar lá embaixo. — A maioria das almas das árvores partiu para o luar. Só algumas das grandes fixaram suas almas aqui. Alaen Aikhwitan, Atta Aikhjarto, o pinheiro das fadas, o Carvalho dos Faunos e outras poucas. Elas serão os antepassados das novas árvores com alma. Emerelle disse que queria plantar o pinheiro das fadas perto das fadas das campinas.

Nuramon lembrou-se do Lago de Noroelle, que fazia fronteira com os campos das fadas das campinas. Tudo mudaria para se tornar algo novo. Na nova Terra dos Albos certamente o Lago de Noroelle também teria o seu lugar.

— Você vai mesmo? — perguntou Yulivee, arrancando Nuramon em seus pensamentos.

— Eu preciso ir — respondeu ele.

O sorriso de Yulivee desapareceu.

— Eu daria muita coisa para conhecer a mulher por quem você quer fazer um sacrifício como esse. Obilee me contou dela.

— Você está desapontada?

Yulivee balançou a cabeça.

— Não. Você sempre será meu irmão. Eu jamais esperaria que você desistisse do seu amor por Noroelle por minha causa. Estou tão contente por terem vencido o devanthar e por poder estar com você mais uma vez. Eu tive tanto medo por sua causa... — E caindo em seus braços: — Agora estou feliz.

— Vai doer muito em você se eu deixar a Terra dos Albos para trás? — perguntou mansamente a ela.

A feiticeira levantou a cabeça de seu ombro e encarou-o com grandes olhos. Ele acariciou-lhe a face e logo um sorriso desenhou-se em seu rosto, que o fez lembrar da criança que tomara sob seus cuidados em Iskendria.

— Não — respondeu ela. — Nós tivemos o nosso tempo juntos. Nossa viagem de Iskendria até aqui foi a coisa mais linda que já vivi. — Ela beijou-lhe a testa. — Seja grande amanhã! — Yulivee soltou-se suavemente de seu abraço. — Agora eu preciso voltar para a Grande Floresta — disse ela, e se foi.

Nuramon seguiu-a com os olhos. Tinha perdido tanta coisa! A garotinha de repente se tornara uma poderosa jovem feiticeira. Tinha pagado um preço alto pela vitória sobre o devanthar.

Obilee andou até o seu lado.

— Ela sentiu muito a sua falta.

— Para mim, isso tudo é difícil de entender. Na época aconteceu com você de forma parecida. Você era uma menina quando partimos para a Caçada dos Elfos. Já era uma mulher quando nos esperou aqui e nos transmitiu as palavras de Noroelle. E foi aqui que toquei Noroelle pela primeira vez.

— Ela me contou naquela noite. — Obilee fez uma cara triste. — Ela era louca por você e por Farodin.

— Você me olha de forma tão aflita. A rainha não disse que há esperanças se nós ganharmos a batalha de amanhã?

— Para quem há esperança, Nuramon?

— Para Noroelle, é claro.

Obilee fez que sim com a cabeça.

— A rainha me contou tudo, mas já sabia há anos. Ela me disse até onde seria capaz de ir para que essa esperança não se esgote.

— E por que você está tão triste?

— Você não sabe, Nuramon? Então nunca percebeu?

De início Nuramon não entendeu, mas a expressão sofrida, os olhos brilhantes e os lábios trêmulos denunciaram o que comovia Obilee. Ela o amava! Desviou o olhar, constrangido.

— Que idiota eu fui! — disse em voz baixa. — Perdoe-me!

— Pelo quê? Você caminha pelos séculos em grandes passos. Para você, eu ainda sou a menina levada por Noroelle diante da rainha.

— Não. Na batalha marítima eu reconheci que você é uma mulher. Mas desde quando...? — ele hesitou em completar a pergunta.

— Meu sentimento cresceu da afeição que eu já sentia quando Noroelle falava comigo sobre você e Farodin. Você era o meu preferido. Quanto mais tempo ficavam longe, maior foi se tornando minha afeição. Ainda se lembra daquela partida, quando acenei para você da colina?

— Sim.

— Na época eu já o amava. — Ela mordeu os lábios e pareceu esperar em segredo por uma reação de Nuramon. Então continuou: — Eu soube por Emerelle que você faria grandes realizações com seus companheiros. E eu não podia desviá-los do caminho. Afinal, eu também quero que vocês salvem Noroelle. E me acalma o fato de haver esperanças para ela, aconteça o que acontecer amanhã. Mas eu também sei que, para mim, não há uma esperança como essa. Mesmo a sua morte e renascimento não seriam capazes de mudar isso, pois Emerelle me disse que agora você se lembra das suas vidas anteriores. Que destino é esse, que primeiro tira Noroelle de mim e depois torna o nosso amor impossível? Terei sempre de ser aquela que fica para trás? Às vezes tenho até a sensação de ser prisioneira, mas não há ninguém para me salvar.

Ela começou a chorar, e isso doeu em Nuramon. De repente Obilee parecia tão frágil, tão diferente da guerreira forte que ele conhecia da batalha no mar.

Cauteloso, Nuramon tomou-a nos braços. Acariciou seu cabelo e em seu ouvido sussurrou:

— Obilee! Se amanhã nós vencermos, despontará para a Terra dos Albos uma era de ouro. E eu sei que você encontrará a felicidade e o seu destino. Mas ele não sou eu. Não é por sua causa... É por meu amor por Noroelle. Você é encantadora. Se não conhecesse Noroelle, sucumbiria ao seu brilho, aos seus cabelos dourados, aos seus olhos tão verdes quanto o mar de Alvemer e aos seus lábios tão lindos. Seria fácil dizer que você só é como uma irmã ou uma amiga para mim. Mas seria mentira, porque sinto por você mais que isso. Mas sinto ainda mais por Noroelle.

Ela soltou-se dele.

— Isso é tudo o que eu queria ouvir, Nuramon. Eu sei que não posso ganhar de Noroelle. Eu sei que não há esperança para o meu amor. Mas saber que sou mais que uma amiga é um presente que eu nem ousava desejar. É como um instante que pertence somente a mim.

Nuramon segurou as mãos de Obilee.

— Sim, este momento é seu.

Ele acariciou a face de Obilee e abraçou-a novamente. Então beijou seus lábios. Sentiu-a se abandonar totalmente em seus braços. Certamente nunca havia se entregado a um homem dessa maneira. Quando finalmente afastou seus lábios dos dela, a elfa permanecera tão próxima de seu rosto que ele ainda sentia o sabor do seu hálito suave. Um gesto dela, uma palavra sedutora, e ele não conseguiria resistir à tentação…

Ela sorriu e então mordeu os lábios.

— Obrigada, Nuramon — disse em voz baixa.

Por fim, afastou-se dele.

O começo da batalha

Montado em Felbion, Nuramon cavalgava em direção ao seu exército. Wengalf havia dividido seu poderoso contingente de anões em duas partes e posicionado os espadachins alvemerenses entre elas. Juntos, eles formavam o exército principal. Nas laterais estavam a postos os arqueiros de Nomja, enquanto os cavaleiros agrupavam-se um pouco afastados. Ele próprio teria de decidir onde a cavalaria seria empregada.

O elfo chegou ao pequeno círculo de comandantes, reunidos à frente das catapultas dos anões. Nos rostos dos presentes lia-se que havia notícias ruins.

— Que bom que está aqui — disse Nomja. — Os espiões nos relataram que o exército principal está vindo para cá. Mais de cinquenta mil guerreiros! — Ela apontou para a cadeia de colinas ao longe, de onde os inimigos viriam.

Nuramon não conseguia imaginar quantos humanos isso era. O exército dos filhos de albos não chegava a dez mil.

— Esse é o maior contingente que eles já convocaram a um único lugar — prosseguiu Nomja. — E as nossas terras fecundas ainda os alimentam.

Nuramon ouvira que os humanos haviam derrubado florestas inteiras do outro lado da Shalyn Falah para construir alojamentos para os guerreiros. E as terras nuas tinham sido transformadas em campos de colheita, que davam aos invasores tudo de que precisavam para sobreviver.

— Para cinquenta mil, o espaço entre o desfiladeiro e a floresta é estreito demais, e no bosque eles não vão querer lutar — explicou Nuramon.

— Os guerreiros de Yaldemee estão se encarregando de manter a floresta segura — objetou Lumnuon, que pertencia ao seu clã. Na noite anterior, havia visitado Nuramon em seus aposentos.

Nuramon olhou para a planície e concordou. Aquele era o lugar certo para que os cavaleiros da ordem irrompessem. Voltou-se para Nomja:

— Você me contou que em campo aberto eles sempre mandam a cavalaria avançar primeiro. Como vocês os combateram?

— Com arcos e flechas. Contra isso eles têm pouco a fazer. Mas são petulantes e não recuam assim tão facilmente. Se agora vêm numa superioridade numérica como essa, os arqueiros não serão capazes de nos salvar.

Nuramon voltou-se para o rei dos anões:

— Wengalf, eu presumo que vocês queiram avançar contra o inimigo em couraçado-dragão... — Sempre que uma tropa se protegia com escudos por todos os lados e por cima, os anões chamavam assim essa formação. — Vocês ainda têm as lanças que usaram naquela época contra os dragões?

— Mas é claro. O que devemos fazer?

— Detenham os cavaleiros como fizeram com Balon naquele tempo.

Wengalf sorriu.

A seguir, Nuramon dirigiu-se a Nomja:

— Os seus arqueiros vão tornar mais escassas as fileiras de cavaleiros e então Wengalf poderá se encarregar dos restantes.

— E o que nós, alvemerenses, fazemos no meio? — perguntou uma elfa chamada Daryll. Ela era a substituta de Obilee e só reconhecera Nuramon como líder com relutância.

— Os anões darão partasanas[6] a vocês — explicou Nuramon. — Providenciem que os cavaleiros inimigos as vejam. Eles evitarão vocês e se atracarão com os anões, cujas lanças só verão quando for tarde demais. — Nuramon dirigiu-se novamente a Nomja: — Vocês terão de atirar nos flancos dos cavaleiros. Nenhum deve conseguir passar.

— E o que nós faremos? — agora era Mandred que interferia. Conseguira reunir uma tropa para se juntar aos filhos dos albos.

— Você esperará escondido com os seus cavaleiros firnstaynenses na ala direita, na grande depressão. Assim que os inimigos estiverem perto o bastante, ataque pelos flancos. Conduzirei os cavaleiros alvemerenses contra a outra ala e farei o mesmo.

Nomja balançou a cabeça de forma elogiosa.

— Meus arqueiros montados o acompanharão.

Lumnuon pediu a palavra:

— Nós, da linhagem de Weldaron, defenderemos nossos parentes.

Nuramon deu um tapinha no ombro do jovem elfo.

— Nomja será um grande reforço para nós.

Wengalf voltou-se para Nuramon:

— O plano é excelente. Quando a luta irromper, avançarei passo a passo com meus guerreiros. O couraçado-dragão vai pôr os amigos para dentro, mas espetar o inimigo à frente. Vamos ao trabalho! Que o destino esteja do seu lado, Nuramon!

O rei seguiu com seus homens até o seu contingente. Só Alwerich ficou.

— Meu amigo! Não se arrisque demais na linha de frente! — advertiu ele. — Pense no que tem a perder! Aqui, um verdadeiro líder deve ter isto — disse, estendendo para Nuramon um objeto de couro, fechado com vidro nas duas pontas.

— O que é isso? — perguntou ao anão.

— Uma luneta — respondeu Alwerich. — Você precisa segurar na frente do olho. — O anão indicou o lado fechado com o vidro menor.

Nuramon fez o que o anão mandou e ficou admirado: com esse tubo ele podia ver bem de perto coisas muito distantes! Reconheceu nitidamente à sua frente o estandarte de dragão dos anões. Ao abaixar o tubo, Nuramon teve de piscar os olhos.

— Como é que, nós, elfos, ainda não chegamos a algo assim?

— É porque vocês não gostam de admitir que também há fronteiras para os sentidos de vocês — retrucou Alwerich com um sorriso. — Cuide-se!

— Obrigado, Alwerich. E você também se cuide!

Alwerich seguiu o seu rei. Estava estampada em seu rosto a preocupação que tinha com o amigo.

— Deixe-me ver! — exigiu Mandred, e Nuramon entregou o tubo a ele.

Enquanto o jarl dos firnstaynenses se ocupava da luneta, Nuramon mandou Lumnuon para o seu clã. Deviam se reunir no flanco esquerdo.

Além de Mandred, agora havia somente Nomja ao seu lado.

— Esse foi um bom conselho de guerra. As suas dúvidas são infundadas, Nuramon. Você é um bom líder. Antes de você chegar, muitos estavam com medo — Nomja confortou-o.

— Os anões com certeza não estavam com medo e os firnstaynenses não conhecem essa palavra — disse Nuramon.

— Acredite, os meus fiordlandeses conhecem o medo — reconheceu Mandred com amargor. — Mas nós vamos lutar. Os meus homens sabem que se perdermos hoje não haverá mais para onde fugir. Ou eles vencem, ou eles morrem. O plano é bom, Nuramon, e a sua fala destemida com certeza causou boa impressão nos outros líderes.

— A minha ignorância, você quer dizer.

Mandred sorriu, mas Nomja sacudiu a cabeça:

— Seja como for, os líderes transmitirão a sua confiança aos seus guerreiros.

— Você acha que podemos ganhar esta batalha? — perguntou a ela em voz baixa.

Nomja olhou para os anões.

— Wengalf me parece estar bem confiante. E eu tenho a sensação de que ele ainda esconde algumas surpresas no seu couraçado-dragão.

Mandred devolveu a luneta a Nuramon.

— Isso é mesmo uma maravilha! Será que você pode perguntar aos seus amigos anões se por acaso têm mais um desses? Com certeza dá para farejar boas caças com ele.

Nuramon riu.

— Quando a batalha terminar eu pergunto a Wengalf.

— Ótimo, meu amigo. — Mandred estendeu a mão a Nuramon para o cumprimento de guerreiros.

Nuramon agarrou o seu antebraço. A pegada de Mandred era forte.

— Mandred, eu sei que vocês, firnstaynenses, são cabeças-duras. Mas não se arrisque demais! Só precisamos detê-los por tempo suficiente. Então tudo estará ganho.

— Não vou fazer nenhuma burrice. É melhor cuidar de você mesmo! Desde a luta com o devanthar eu lhe devo a vida e, na ala direita, vou estar longe demais para ajudá-lo.

Nuramon sorriu.

— Se o seu Luth for bom para nós, vamos nos encontrar no meio dos inimigos. Lá você vai poder salvar o meu pescoço.

— Que assim seja! — disse Mandred, que montou em sua égua e saiu galopando.

Nuramon seguiu o amigo com o olhar. O jarl só tinha aquela vida. Pelo menos era o que diziam: os humanos não renasciam. Nuramon tinha medo por Mandred e temia a morte dele como a sua própria. Não sabia se ele os acompanharia até o Outro Mundo, mas não ficaria admirado se o jarl aceitasse a oferta da rainha e permanecesse com os seus ali, na Terra dos Albos.

— Venha, Nuramon! — disse Nomja. — Devemos cavalgar até os nossos homens.

Juntos caminharam até seus cavalos. Nuramon estava prestes a montar quando viu seu arco pendurado na sela de Felbion. Havia pouco, tinha observado os arqueiros estirando suas armas. Os guerreiros elfos haviam posto novas cordas em seus arcos, como se o fio fosse a vida e o arco, a própria alma imortal. Antes de cada batalha, eles costumavam repetir esse ritual, esticando uma nova corda como uma nova vida se forma ao redor da alma. Com Nuramon era diferente. Agora sua vida e sua alma eram uma só, pois ele se lembrava de tudo o que acontecera. E seu arco e sua respectiva corda haviam sido somente um sinal que lhe indicou o caminho. Então já tinham cumprido o seu papel. Nuramon refletiu um instante, e então tomou uma decisão. Apanhou o arco da sela e foi até Nomja. A elfa já estava montada.

— Aqui, Nomja, tenho um presente para você.

— O quê? — A guerreira encarou-o admirada. — Por quê?

— Pelo seu ato heroico durante a batalha marítima. E, além disso, porque a melhor atiradora é quem deve carregar este arco.

Ela aceitou a arma.

— Eu não seria tola de recusar esse presente. Obrigada.

Nuramon montou e cavalgou lado a lado com Nomja até o flanco esquerdo. Lá os guerreiros de seu clã o aguardavam. Cada um deles estava equipado com uma espada curta e outra longa. Os cavaleiros alvemerenses tinham assumido posição do lado direito deles. Carregavam lanças curtas e, além delas, estavam armados com espadas longas. Nomja aproximou-se de Nuramon pela esquerda, assim mantendo-se na borda de sua cavalaria. Nuramon pôde ver como os cavaleiros de Nomja ficaram admirados com seu novo arco. Eles tinham arcos curtos, mais fáceis de manejar sobre os cavalos, e espadas para a luta corpo a corpo.

A espera parecia não ter fim. De tempos em tempos, mensageiros vinham até Nuramon e relatavam que perto da Shalyn Falah e em outros lugares as lutas também ainda não haviam começado. Eis que, finalmente, anunciaram que o inimigo logo viria pelas colinas. O coração de Nuramon palpitou. Aquilo que sentia era medo? Será que temia que a massa de inimigos os esmagasse e que seu pequeno plano fracassasse de forma lastimável?

Então viu um estandarte branco se erguer por trás das colinas. Não precisou olhar na luneta de Alwerich para saber que a mancha negra no meio do brasão era a árvore negra de Tjured.

Os primeiros inimigos ficaram visíveis. Surgiram na grande extensão da cadeia de colinas e escorreram lentamente pelos outeiros. Fileiras e mais fileiras os seguiam.

Nuramon apanhou a luneta e espiou por ela. Primeiro viu somente prata e ouro, em seguida reconheceu os guerreiros. Diziam que a maioria dos oponentes vinha da selvagem Drusna. Suas armaduras eram inteiramente de metal e deixavam seus ombros largos. Os elmos brilhavam prateados sob a luz do sol. Dourados eram os seus rostos, pois usavam máscaras. Nuramon prendeu a respiração de susto. Elas representavam o rosto de Guillaume, que tanto lembrava Noroelle. O elfo mirou sua luneta para a esquerda e para a direita, e por todos os lados via o rosto da sua amada.

Cada vez mais guerreiros marchavam pela cadeia de colinas. As primeiras fileiras já haviam chegado ao pé delas. Cavaleiros se aproximaram pelo flanco esquerdo, posicionando-se diante da infantaria inimiga. Seus rostos também estavam cobertos por máscaras douradas. Nuramon sentia-se meio tonto. Cavaleiros ou soldados, todos os inimigos que enfrentaria teriam as feições de Noroelle. E agora tinha de assistir a esse contingente assumir formação na frente da colina e avançar contra ele pelos campos. Que exército! Sozinha, a cavalaria já seria um oponente digno de respeito.

Os inimigos avançavam lentamente. Nuramon percebeu que os elfos ao seu redor estavam ficando inquietos. Nomja curvou-se para perto dele:

— Até hoje nunca ficamos de frente a um exército tão grande.

— Nós temos uma vantagem decisiva — retrucou Nuramon em voz baixa. — Para nós, esta é a última batalha. Nós sacrificaremos tudo se tiver de ser assim. Para eles, contudo, essa é só uma luta entre muitas. Eles acreditam que, se não ganharem hoje, novas oportunidades os aguardarão no futuro. Eles vão se surpreender. E não subestime os anões!

Nomja balançou a cabeça afirmativamente.

Enquanto isso, os inimigos já tinham se aproximado e agora estavam imóveis a cerca de oitocentos passos. Entre o desfiladeiro e a floresta, agora esticava-se um mar de guerreiros. Era questão de instantes até que a onda viesse.

De fato, os cavaleiros inimigos puseram-se novamente em movimento. Primeiro trotaram lentamente, mas logo foram ficando mais e mais rápidos, até começarem a se aproximar a todo galope, compondo uma frente larga. Estavam distribuídos em mais de uma dúzia de filas, segurando as lanças no alto. A terra tremia sob os cascos de seus cavalos.

— Mantenham-se prontos! — gritou Nomja para os guerreiros. Seus arqueiros e cavaleiros puseram flechas em suas cordas. — Vamos atirar ao seu comando — disse a Nuramon erguendo a mão.

Os arqueiros miraram imediatamente.

Os cavaleiros ainda estavam a cerca de duzentos passos de distância quando Nuramon sentiu Nomja ficar inquieta, e encará-lo de canto de olho.

— Atirem! — Nuramon gritou, por fim.

Nomja baixou a mão e centenas de arcos estalaram, disparando suas flechas sibilantes. Uma chuva mortal despencou sobre a cavalaria inimiga.

Nuramon não conseguia ver como as coisas estavam do lado de Mandred, mas ali à frente deles o flanco de inimigos se dobrava. Montarias e cavaleiros caíam no chão e eram pisoteados ou abatidos por outras flechas. Os sobreviventes tentavam fugir o quanto podiam dos arqueiros e se amontoavam no meio, pois nenhum bombardeio os atingia vindo dos anões. Outros preferiam recuar.

Nomja adotara o velho arco de Nuramon e atirava muito. A todo momento, os arqueiros mandavam novas flechas na direção dos cavaleiros. Ainda assim, o fluxo de inimigos era tão grande que Nuramon temia pelos anões.

Um olhar por trás da cavalaria inimiga mostrou a Nuramon que a infantaria a seguia com alguma distância. Ele puxou sua espada e ergueu-a nas alturas:

— Sigam-me, filhos de albos! Pela Terra dos Albos!

Então saiu a galope, levando consigo seus homens.

Já não faltava muito para que a cavalaria encontrasse os anões. Nuramon esperava que os homens de Wengalf estivessem tramando alguma coisa. A impressão era de que ali não havia um exército, mas uma enorme coluna de escudos que inventara uma estratégia sábia para simular a presença de guerreiros onde não havia nenhum. A cinquenta passos dos anões, os cavaleiros da ordem baixaram suas lanças pesadas. A vinte passos, cavalgavam rápido como se nada pudesse bloquear seu caminho. Dez passos e aconteceu! Entre seus escudos, os anões puseram as partasanas para fora rápidos como raios; giraram-nas para que as lâminas ficassem perpendiculares, e as inclinaram para cima com um solavanco brusco. Toda a fileira de inimigos avançou sobre as lanças. Nuramon observou alguns deles conseguirem frear seus cavalos, mas os cavaleiros que vinham atrás os empurraram para dentro delas. Alguns cavalos pularam por cima da parede pontiaguda, e desapareceram para dentro das fileiras de anões. Mas a cavalaria como um todo foi detida, como se tivesse avançado contra o muro de uma fortaleza. Os inimigos se embolaram uns com os outros, e eram empurrados contra a vontade.

Antes que pudessem se reorientar, Nuramon aproximou-se com seus homens. Ergueu a espada. Mas quando quis golpear o primeiro inimigo, olhou para ele e encarou o rosto de sua amada. Quis poupar o oponente, mas o cavaleiro contra-atacou. Para Nuramon foi como se Noroelle levantasse a espada contra ele para puni-lo por sua falha. Por sorte, a lâmina resvalou na proteção de seu ombro e o inimigo afastou-se cavalgando.

Lentamente sua tropa viu-se no meio do tumulto da batalha. Nuramon era incapaz de desferir um golpe sequer. Ao seu redor, o matar e morrer característico da luta corpo a corpo já tinha começado há muito. Seus parentes o puseram no meio deles e protegiam-no por todos os lados, enquanto ele só conseguia encarar o rosto dos inimigos como se sob o efeito de um encanto.

Então Lumnuon foi atingido na perna por um golpe de espada e gritou. Perplexo, Nuramon olhou no rosto mascarado do guerreiro e vacilou. Mas, quando o inimigo ergueu a espada para desferi-la contra a cabeça de Lumnuon, sua hesitação deu lugar a cólera. Atacou com sua espada longa, conseguindo fazer a lâmina penetrar na armadura peitoral do cavaleiro. Quando o elfo puxou de volta a espada, o inimigo desmoronou-se sobre o cavalo.

De repente Nuramon foi arrancado da sela, caindo com força no chão. Mal teve tempo de ver um mascarado preparando um golpe e, agilmente, rolou de lado e pôs-se de pé. Defendeu duas investidas e então mirou um golpe na cabeça: puxou a espada de Gaomee com a mão esquerda e enfiou a lâmina no pescoço do oponente. Olhou rápido em volta, e percebeu que estava cercado por seu clã. Então voltou-se novamente para o guerreiro de Tjured, que estava deitado de barriga para cima, gargarejante, tentando tomar ar.

Nuramon curvou-se sobre o moribundo e arrancou sua máscara. Sob ela surgiu o rosto manchado de sangue de um jovem, olhando em sua direção cheio de desprezo. O humano deu uma cusparada de sangue em Nuramon e seu rosto paralisou-se em uma careta deformada pelo ódio.

A frente de Shalyn Falah

Com sua luva de ferro, Ollowain deu uma tapa no ombro de Farodin. O elfo ouviu o tilintar da luva ao bater contra a sua armadura e encarou o companheiro, que então disse:

— Essa foi a última fivela.

Farodin ergueu-se um pouco desajeitado. A armadura era mais leve que ele esperava, mas ainda assim limitaria consideravelmente a sua mobilidade.

Ollowain passou em revista a fileira de elfos com proteções reforçadas. Eram vinte, todos vestindo armaduras lisas: couraças fabricadas com maestria, cujas placas arredondadas eram moldadas para desviar qualquer estocada de lança.

— Não se esqueçam de baixar a cabeça assim que atacarmos! — Ollowain encorajou o bando de elfos. — Nossas partes mais vulneráveis são as fendas da viseira dos elmos. Os humanos sabem disso. Por isso, baixem a cabeça!

— Eles têm uma cavalaria? — perguntou um elfo à esquerda de Farodin. Sua voz soava metálica dentro da viseira fechada.

— Quero ser sincero com vocês. Desde ontem à tarde que nenhum dos nossos espiões retorna. Estamos lutando contra eles há muito tempo. Eles conhecem nossas manhas de guerra. — Estendeu o braço e apontou para o céu, onde se viam as silhuetas de três aves de rapina, voando em círculos com as asas bem abertas. — Eles adestraram falcões para caçar as fadas das flores. Nossas espiãs sabiam do risco; ainda assim não fugiram da sua missão. Tomem os corações corajosos de nossas pequenas irmãs como exemplo para vocês.

Farodin mal acreditava no que ouvia. Até que ponto a situação na Terra dos Albos tinha chegado, se até as fadas das flores estavam sendo mandadas para a guerra!

— Atentem-se para sempre manter ao menos dois passos de distância entre si — recomendou Ollowain. — Afinal, nós não queremos partir o crânio uns dos outros.

Orgrim veio pelo caminho em direção a eles.

— Eles estão avançando! — berrou ele. — Estão prontos?

Ollowain ergueu sua imensa espada de duas mãos.

— Sim! — gritou ele, voltando-se mais uma vez para os elfos com armaduras. — Esqueçam tudo que vocês já aprenderam sobre lutas honradas. Nosso inimigo não conhece a misericórdia. Eles não farão prisioneiros. Então matem tantos deles quanto forem capazes. E protejam-se dos alabardeiros.

Farodin apanhou a imponente espada de duas mãos, recostada diante dele no muro de pedra, e fechou a viseira de seu elmo. Não queria que o rei dos trolls o reconhecesse. Não podia trocar nenhuma palavra sequer com o assassino de Aileen renascido, ainda mais no lugar em que sua amada um dia morrera!

A pequena tropa de elfos marchou o último trecho da trilha de subida pelo penhasco, e passou pelos restos queimados de torres de observação de madeira. Havia só dois dias que os filhos dos albos haviam tomado de volta dos cavaleiros da ordem a posição à borda do penhasco. E tinham pago com rios de sangue por isso.

O grupo de defensores de que eles ainda dispunham para manter o sinuoso e íngreme declive até Shalyn Falah era ridiculamente pequeno. Setecentos trolls armados com clavas e escudos gigantescos, quatrocentos elfos arqueiros e cerca de trezentos gnomos com bestas. A fortaleza do outro lado da ponte estava ocupada somente por feridos e duendes pequenos demais para partir para um campo de batalha contra humanos. Aquele era o último contingente disponível!

— Os humanos ficarão surpresos a valer quando os atacarmos — disse Ollowain, bem-humorado.

Havia diminuído a marcha e agora caminhava ao lado de Farodin.

— Mas eu mesmo também estou surpreso que avançarei com um bando de vinte malucos contra uma linha de combate de milhares de humanos. Será que você colocou alguma coisa no meu vinho ontem à noite, quando fiquei totalmente entusiasmado com a sua ideia?

Ollowain ergueu a viseira do elmo e deu um sorriso largo para Farodin.

— Eu até que pensei sobre isso com o vinho, Farodin. Mas então disse para mim mesmo: alguém que é louco o suficiente para atacar um castelo de trolls somente com um humano ao seu lado vai se entusiasmar com o plano de batalha de hoje.

Nas fileiras de trolls, abriu-se uma brecha para os elfos com suas armaduras. Na frente dos gigantes, os arqueiros tinham assumido formação. O acesso à descida estava protegido por um amplo semicírculo com estacas pontudas, fincadas verticalmente no chão. Esse obstáculo oferecia uma boa proteção contra a cavalaria. Um ataque de soldados de infantaria, contudo, ele não seria capaz de conter.

Atrás da fraca linha de defesa havia uma encosta em declive, trespassada por saliências de pedra largas e cinzentas. A parede que um dia houvera ali desaparecera. Até mesmo os troncos de árvores já não estavam mais lá, onde agora crescia uma grama pálida. O círculo de pedras de Welruun ficava só a poucas centenas de passos de distância. Farodin engoliu em seco. Por um momento, viu novamente o rosto lívido de Aileen à sua frente e o sangue escuro que brotava de seus lábios.

— Abaixem-se! — ordenou Ollowain.

Farodin obedeceu. De joelhos, eles eram menos visíveis para os agressores. Era importante surpreender os humanos!

A pouco mais de um quarto de milha de distância, os cavaleiros da ordem vinham subindo a encosta. Como uma floresta densa, seus longos piques[7] erguiam-se sobre suas cabeças. O toque de tambores e o som de flautas ressoava de suas fileiras. Era uma melodia surpreendentemente alegre, que não lembrava em nada uma canção de batalha. Os piqueiros marchavam encosta acima em sincronia. Usavam elmos altos e armaduras peitorais brilhantes, exatamente como os soldados que tinham visto sobre o gelo na frente de Firnstayn.

— Distribuam-se! — gritou Ollowain.

Escondidos atrás dos arqueiros, agora os guerreiros de armaduras formavam uma linha ampla e atentavam-se cuidadosamente para manter distância uns dos outros.

Farodin tinha a boca totalmente seca. Ele observava hipnotizado os humanos avançarem. Como uma maré que subia, suas linhas de batalha afastavam-se para passar por cada um dos blocos de pedra da encosta, juntando-se novamente depois. Eram milhares! Só a massa que formavam já bastaria para empurrar os defensores da borda do penhasco.

Gritos de comando agudos soaram entre os piqueiros. Suas primeiras cinco filas se abaixaram. Os arqueiros dos elfos começaram o seu trabalho mortal. O ar se encheu dos zunidos das flechas e dos estalos cortantes das bestas dos gnomos. Dúzias de soldados da ordem da primeira fila sucumbiram. Imediatamente, as brechas foram preenchidas por guerreiros das linhas de trás.

Logo os inimigos estavam a apenas cem passos de distância. Farodin conseguiu observar os tiros de besta fazerem furos redondos e sangrentos nas placas de peito dos agressores.

Agora só mais oitenta passos. O compasso dos tambores mudou. As flautas emudeceram. A linha inteira de combate aumentou a marcha.

— Ao ataque! — ecoou a voz de Ollowain.

O elfo louro fechou a viseira de seu elmo. Farodin apanhou a grande espada. Os arqueiros deixaram os guerreiros de armaduras passarem. Os gnomos, que ainda estavam de joelhos formando uma linha de tiro na frente dos elfos, recuaram.

As mãos de Farodin tremiam. Ele ergueu a espada bem alto sobre a cabeça e curvou-se para a frente como um touro em posição de ataque. Era loucura completa! Diante deles havia milhares de soldados da ordem, e eles atacando com vinte homens!

Mais quarenta passos!

Farodin começou a correr. Os piques da primeira fila projetavam-se cerca de seis passos. Escalonadas atrás deles ainda havia mais quatro outras fileiras de guerreiros com guardas de ferro. O elfo viu a agitação começar nas linhas de batalha. Os piqueiros concentraram-se em alguns pontos, esperando que os agressores embateriam contra suas filas.

O choque ocorreu com muito menos força que Farodin esperava. O aço das armas começou a se atritar com rangidos. Farodin continuava mantendo a cabeça baixa. Houve um novo tranco. A segunda fileira de piqueiros terminara. Gritos agudos soaram. Farodin fazia sua pesada espada girar. Cabos de madeira de freixo quebraram-se com estalos.

Farodin sentiu algo atingi-lo no gorjal[8] e escorregar. Então o elfo arriscou erguer a cabeça. Olhou diretamente nos rostos horrorizados dos homens à sua frente. Mais três passos e chegaria. Uma lâmina pontuda resvalou lateralmente em seu elmo e escorregou. O mundo parecia-lhe minúsculo. As fendas estreitas da viseira só lhe permitiam ver o que estava bem à sua frente.

Alguns soldados da ordem tinham deixado cair seus piques e tentavam puxar seus punhais e espadas curtas. Um homem com um chapéu de abas largas agitava ao seu redor uma haste estranha. De repente, houve um estampido e uma fumaça branca começou a brotar da haste de madeira. A arma pesada de Farodin cortou armaduras, carne e ossos. A lâmina da espada de duas mãos media um passo e meio e nada era capaz de oferecer resistência ao aço dos elfos. E, à medida que uma unidade de piqueiros avançava de forma terrível, ficava vulnerável após passar por suas espadas. Os oficiais nas fileiras de trás atentavam-se para que nenhum de seus homens deixasse cair seu pique. Mas era necessário usar as duas mãos para segurar as armas pesadas e difíceis de manejar. Quem deixava cair o pique e puxava a espada curta não encontrava espaço para levantar o braço naquela formação tão densa. E as investidas escorregavam pela armadura de Farodin, sem qualquer efeito. Como um trabalhador na lavoura, o elfo golpeava contra as fileiras amontoadas de piqueiros. O sangue espirrava nele pela fenda da viseira e corria por suas bochechas. Estava preso no meio de gritos desesperados, metais ferozes e ossos que se despedaçavam com ruídos surdos.

À sua frente, Farodin via as lâminas reluzentes das alabardas. Com seus longos espigões de três pontas, sua folha de golpear e ainda a parte de trás em gancho, essas armas eram feitas para espalhar o terror entre inimigos bem protegidos. O espigão de três pontas conseguia penetrar mesmo nas melhores armaduras se o seu canto direito atingisse uma superfície plana. A lâmina era pesada o bastante para fender qualquer elmo ou a proteção de ombros de qualquer armadura e, com o gancho, era possível mirar os pés dos inimigos para derrubá-los com um solavanco, permitindo então enfiar o espigão de três pontas por sua viseira.

A espada de Farodin atingiu um homem à sua frente e arrancou sua cabeça dos ombros. O elfo não atacava mirando em um único guerreiro: fazia a arma girar violentamente no meio da multidão; era difícil desviar daquele círculo mortal.

Alguém agora agarrava-se à sua perna, tentando derrubá-lo. O elfo olhou rapidamente para baixo, mas sem cessar o ataque. Um soldado ferido da ordem abraçava sua perna esquerda. Farodin então cravou-lhe o pé da armadura no rosto. Sentiu os dentes do guerreiro se estilhaçarem. O homem soltou-se e rolou para o lado.

Algo brilhante precipitou-se sobre Farodin. A lâmina de uma alabarda o errou por pouco. Um grupo de alabardeiros tinha avançado até ele entre a formação dos piqueiros. Metade dos guerreiros mantinha a arma baixa, mirando com os espigões e ganchos em suas pernas.

Farodin baixou a cabeça. Algo atingiu-o no ombro. Seu braço esquerdo ficou entorpecido de dor. O elfo, então, deu um salto para a frente. A grande espada agitou-se. Destroçou um elmo e enterrou-se fundo no peito de outro guerreiro. Sentiu então um gancho posicionar-se por trás de seu calcanhar esquerdo. Tentava erguer o pé quando vários espigões atingiram seu peito. As lâminas escorregavam na armadura, mas a força do impacto tirou-lhe completamente o equilíbrio. Caiu para trás, e a espada foi arrancada de suas mãos. Tentou ainda desviar-se, rolando para o lado, mas um pé baixou sobre o peitoral de sua armadura e pressionou-o contra o chão.

Sobre Farodin, a sombra de um falcão pairava no céu azul-turquesa e sem nuvens da Terra dos Albos. Então a lâmina de uma alabarda cintilou prateada à luz do sol, precipitando-se a seguir.

Perplexidade

A batalha não dava sequer um instante de sossego para Nuramon. No meio do tumulto, perdera Felbion de vista. Depois de ter sido arrancado três vezes da sela, agora sentia-se mais seguro no chão. Dois ferimentos no braço e outro no ombro o atormentavam. Só conseguia erguer o braço direito às custas de muita dor; sentia sangue quente correr por sua pele.

Seu plano não tinha dado totalmente certo. A cavalaria se complicara em uma luta mais longa e não havia conseguido quebrar totalmente a superioridade do inimigo. De fato, Nuramon ouvia a todo instante os gritos roucos dos humanos atingidos por flechas. Mas não sabia dizer exatamente de onde vinham aqueles gritos. Perdera a orientação no calor da batalha, seus sentidos agora buscavam somente a sobrevivência.

Viu um pedaço de pedra passar voando bem no alto. Isso só podia significar uma coisa: a infantaria tinha se aproximado tanto que as catapultas dos anões conseguiam atingi-la. Olhou ao redor e viu que seus parentes e os alvemerenses lutavam corajosamente, provando mais uma vez que um guerreiro elfo era tão bom quanto no mínimo dois humanos.

Uma vertigem seguida de muita dor acometeu Nuramon. Cambaleante, tentava encontrar apoio, mas seus sentidos desvaneciam. Foi apanhado de repente e vislumbrou vagamente um rosto. Se fosse a máscara de Guillaume, estaria perdido!

— Nuramon! — gritou alguém, fazendo-o se assustar. Ele apertou os olhos e reconheceu Lumnuon. — Guerreiros do clã de Weldaron! Aqui comigo! — chamou o elfo. — Mantenha-se firme! Nós vamos protegê-lo!

Nuramon não ouviu mais nada depois disso. Estava tomado pela preocupação de que não podia morrer. Ocorreu-lhe somente uma coisa: começou o seu feitiço de cura, pronunciando-o para si mesmo. Imediatamente seu braço ferido se contraiu: sentia como se alguém estivesse lhe arrancando a pele. Então essa dor se apoderou de seu corpo todo. O elfo cerrou tanto os dentes que sua mandíbula doía. Por fim, algo frio tocou-lhe o rosto. Assustou-se. Sobre si viu Lumnuon; os guerreiros de sua linhagem haviam formado um círculo protetor ao seu redor. O jovem tateou seu braço.

— Você curou a si mesmo? — perguntou.

Com esforço, Nuramon confirmou com a cabeça, tentando tomar ar. Lumnuon ajudou-o a se erguer. De repente, um de seus guerreiros caiu no chão ao seu lado, atingido pelo inimigo. Foi o bastante para que a fúria se apoderasse de Nuramon, recolocando-o na luta. Finalmente conseguia se libertar da paralisia que o assolara quando viu por mais de mil vezes o rosto de Guillaume.

Agarrou com firmeza suas espadas e pulou onde havia espaço, justamente quando o cavaleiro da ordem atacava com sua espada. Rápido como um raio, cruzou sua arma sobre a cabeça, e atingiu a lâmina do inimigo, bloqueando o golpe. Com um pontapé, jogou-o no chão, avançou sobre ele e apunhalou-o nas costelas. Depois de derrubar dois outros cavaleiros da ordem, ergueu sua espada longa e gritou para seus homens:

— Weldaron!

Todos eles gritaram o nome do fundador de seu clã, fizeram o inimigo recuar por todos os lados, reuniram-se com seus companheiros e avançaram abrindo caminho até os anões.

Os filhos dos albos das trevas ainda não haviam aberto a formação do couraçado-dragão. Só moviam-se aos poucos para a frente. As montanhas de cadáveres e os corpos dos cavalos mortos desapareciam sob seus escudos como se a multidão de anões fosse feita de feras que se alimentavam da carne dos defuntos.

Repentinamente soaram ao lado deles gritos de milhares de gargantas. O exército principal do inimigo devia ter chegado.

— Aqui comigo! — gritou Nuramon. — Reúnam-se aqui!

Seus companheiros armados recuaram um trecho e se aglomeraram novamente ao redor dele. Aos poucos que ainda estavam montados, o elfo apontou para a esquerda, e a todos os outros, à sua direita.

Então eles chegaram! Inúmeros guerreiros da ordem forçaram-se pelas lacunas entre os combatentes. Afluíam como um rio que corre para formar um imenso lago.

Nuramon sentiu-se como alguns dias antes, quando caminhara na direção do exército de anões e depois até a cavalaria dos elfos. Só que agora o medo também se misturava às suas sensações. Viu dois couraçados-dragões afastarem-se lentamente, como se fossem seres que tentavam lhes sinalizar em silêncio para que se posicionassem entre eles. Nuramon deu sinal aos seus homens e eles recuaram para dentro da proteção das formações dos anões.

A infantaria lançaria-se sobre eles sem piedade. Os inimigos já estavam a cinquenta passos de distância. Para os firnstaynenses era tarde demais para entrar nas linhas de combate.

Nuramon ergueu sua espada longa nas alturas e gritou:

— Terra dos Albos!

Seus parentes e os alvemerenses juntaram-se a ele no grito. Os inimigos estavam a vinte passos de distância quando baixou a arma e bradou:

— Ao ataque!

Mas seu grito de guerra sumiu entre os urros que, naquele instante, elevavam-se à esquerda e à direita.

Os couraçados-dragões dos anões se abriram! Os escudeiros da primeira fila avançaram e puxaram suas espadas curtas. Os combatentes com partasanas seguiram-nos junto com outros guerreiros, que baixaram seus escudos da cabeça até a frente do peito, e impeliram-se adiante. Era como uma metamorfose. A enorme besta lutadora desmanchou-se em inúmeros guerreiros anões.

A investida dos homens de Wengalf não deixou os inimigos incólumes. Os guerreiros nas primeiras filas de combate reduziram o passo e os gritos metálicos se calaram. Quando os primeiros pararam, os dois exércitos embateram. Nuramon então avançou fundo, para dentro das fileiras dos inimigos.

Não sentiu mais medo da morte.

Armaduras e fumo de mascar

Um escudo enorme, quase do tamanho de uma porta, escureceu o céu e interceptou a ponta da alabarda. Em seguida, uma voz bastante familiar gritou:

— Façam picadinho do sujeito!

Uma mão forte agarrou Farodin e ajudou-o a se levantar.

— Parece que todos os seus membros ainda estão aí! — disse Orgrim, com um sorriso largo. — Isso foi por ter salvo a mim e ao meu navio no fiorde.

O elfo piscou intensamente, ainda aturdido.

— Como... Como você me reconheceu?

— Ollowain me fez um favor. Pintou uma cruz branca na parte de trás do seu elmo. Assim eu pude ficar atrás de você quando abriu caminho pela formação de piqueiros.

Uma dor pesada fazia o ombro esquerdo do elfo latejar. Uma placa de sua armadura tinha sido afundada e esmagara sua carne. Mal conseguia erguer o braço.

— Agora você poderia me fazer mais um favor, Orgrim. Abra as fivelas da proteção do meu ombro esquerdo e retire-a.

— Você acha mesmo que estes dedos conseguem abrir essas fivelas delicadas, elfo? — perguntou, exibindo as mãozorras.

Farodin esticou-se e praguejou. Sozinho não conseguia tirar a armadura. Olhou ao redor. Em volta deles havia dúzias de mortos.

— Você consegue andar com as próprias forças?

— Com certeza não preciso de nenhum troll para me carregar — retrucou irritado.

A dor no ombro estava piorando.

O ataque dos trolls tinha feito os piqueiros recuarem um bom trecho. As costas largas dos gigantes bloqueavam a visão de Farodin sobre os acontecimentos da batalha. Uma gritaria infernal ainda soava.

— Como está o combate?

Orgrim deu uma cusparada.

— Um monte de humanos não vai poder mais se gabar dos seus feitos heroicos. Nós os fizemos recuar. — Ele acenou para um troll e, instantes depois, soou um toque prolongado de corneta. — Eles estão reunindo cavaleiros lá embaixo na colina. Nós precisamos nos retirar antes que comece o contra-ataque.

Sem prestar mais atenção em Farodin, o rei caminhou pesadamente até seus homens e cobriu a retirada das tropas.

Somente seis daqueles vinte elfos que chefiaram o ataque retornaram para trás das trincheiras dos arqueiros. Ollowain estava entre os sobreviventes. Tinha a armadura toda arranhada e vermelha de sangue. O elfo havia tirado o elmo; tinha as mechas dos cabelos longos e louros grudadas na cabeça.

— Que vitória!

Ele apontou para a parte de baixo da encosta. Em alguns lugares não se via mais a grama, tão próximos os mortos estavam uns dos outros. Depois que os trolls avançaram para dentro das brechas que os elfos haviam aberto nos piqueiros, o combate tinha se tornado um massacre.

Ollowain tirou a placa amassada do ombro de Farodin. Afastou para o lado o gibão acolchoado e apalpou seu ombro.

— Nada quebrado. Você teve sorte. Como está o braço?

Farodin fez um amplo movimento circular. Agora que mais nenhuma pressão sobrecarregava a contusão, a dor afrouxara um pouco.

— Para se atracar com humanos vai ser suficiente.

Ollowain apontou para uma das torres queimadas acima da encosta.

— Ali você vai encontrar um dos artesãos de armaduras dos gnomos. Ele vai desamassar a sua placa de ombro para que você possa colocá-la de novo. Não demore muito. Infelizmente, os cavaleiros da ordem têm a memória muito curta no que diz respeito às suas derrotas. Logo eles vão atacar de novo.

Com essas palavras, o guardião da Shalyn Falah se foi. Farodin seguiu-o com os olhos. Ollowain gracejou com alguns arqueiros e gritou alguma coisa para um troll que fez o gigante sorrir. A confiança que o comandante dos elfos emanava fazia parecer não haver qualquer dúvida de que manteriam suas posições até a noite cair. Ainda nem era meio-dia.

Farodin encontrou o chapeador sem dificuldades. O gnomo, um sujeito velho e falante, exibia uma barba branca e toda cheia de manchas de fumo de mascar. Desamassou a armadura sem se apressar. Falou de tudo, menos sobre a guerra. Pelo visto, o velho refugiava-se em seu trabalho, tentando desesperadamente conservar um pouco da rotina em meio ao caos. Por fim, cuspiu na placa e poliu-a com a manga. Ao fechar as fivelas da armadura, encarou o elfo com seus olhos castanhos e ar de preocupação.

— Nós vamos conseguir manter a ponte?

Farodin não quis mentir para o velho.

— Não sei.

Olhou encosta abaixo. Os humanos haviam formado uma nova linha de ataque.

— Hum... — foi tudo o que o velho respondeu. Então curvou-se e apanhou uma besta de sua bancada de trabalho. — Meu povo sempre se manteve fiel à rainha. — O chapeador não conseguia esconder o medo. Piscava nervosamente e o tempo todo acariciava o encaixe de ombro da arma. — Os humanos nos dão uma vantagem: eles sempre vêm em número tão grande que sequer um chapeador velho e quase cego pode errar a mira.

— Posso acompanhá-lo até a linha de combate? — perguntou Farodin com seriedade.

Surpreso, o gnomo ergueu os olhos para ele.

— Mas você é um conhecido herói elfo. O que quer comigo?

— Ainda não me indicaram um lugar na nossa linha de combate da próxima luta. Além disso, nunca lutei ao lado de um herói dos gnomos. Se você não tiver nada contra, para mim será uma honra ocupar o posto à sua esquerda. Como você se chama?

— Gorax. — O velho puxou uma barra de fumo de mascar marrom-escura de trás do cinto. — Um elfo que pede permissão a um gnomo para lutar a seu lado! Nós vivemos tempos estranhos. Posso oferecer-lhe um pouco disto aqui? Isso põe a cabeça em ordem — disse, estendendo o fumo de mascar a Farodin.

O elfo pegou a barra e mordeu um pedaço da massa dura. O fumo queimou em sua língua e sua boca encheu-se de saliva. Teria preferido cuspir o fumo de volta imediatamente. Mas empurrou-o com a língua para trás das bochechas, e estendeu a barra de volta para Gorax.

— Da cabeça em ordem, nós podemos realmente precisar.

No pé da colina novamente soaram as flautas e as batidas de tambor.

Reorganizados, os soldados da ordem avançavam outra vez.

Morte e renascimento

Nuramon baixou os olhos para o corpo do jovem guerreiro como se estivesse hipnotizado. Lumnuon tinha lutado melhor que ele, mas estava ali, deitado à sua frente no chão, fitando-o com olhos vazios. Nuramon sequer o vira morrer. Tinha inúmeras feridas nas pernas e braços e seu rosto estava arranhado. Morrera, contudo, de um ferimento no pescoço. Alguém havia cortado sua garganta.

A visão do jovem sem vida enchia Nuramon de raiva. Olhou ao redor e avistou um oponente que acertava um elfo com ódio, cujos ataques este último só conseguia defender com esforço e aflição. Nuramon aproximou-se do guerreiro por trás, e fincou-lhe a espada longa nas costas. Então arrancou sua máscara e atirou-o ao chão. O elfo a quem viera ajudar lhe agradeceu. Antes, porém, que pudesse reagir, um cavaleiro da ordem atacou-o pela direita. Nuramon foi mais rápido, cravando a espada de Gaomee no peito do inimigo. Os braços do oponente se afrouxaram, fazendo o movimento do ataque cessar no meio. Nuramon então o deixou escorregar da lâmina.

Mais e mais guerreiros vinham em sua direção. A cada inimigo que mandava para o chão, parecia atrair para si novas atenções. Ou será que os guerreiros de seu clã que lutavam ali próximos haviam ficado mais fracos?

— Atrás de você! — gritou uma voz de elfo ao seu lado.

Nuramon olhou por cima do ombro e viu de canto de olho um guerreiro preparando um golpe. Ainda antes de se mover, soube que a lâmina inimiga o atingiria. Ao se virar já contava com a dor, mas o golpe foi falho. Sua espada, por sua vez, acertou o elmo do inimigo e o atravessou. Nuramon imediatamente percebeu por que a investida do oponente não o ferira. Curvado diante dele estava um guerreiro anão de armadura prateada reluzente, que logo despencou no chão. Nuramon conhecia essa armadura. Virou o anão sobre as costas e viu o rosto de Alwerich. O amigo deu um sorriso sofrido.

— Alwerich! — gritou uma voz familiar, e Wengalf veio correndo com seus guerreiros. — Formem uma parede de escudos!

Os guerreiros obedeceram a ordem do rei.

Alwerich estava totalmente pálido. A espada o atingira por baixo do peito. Sangue brotava do ferimento fresco.

— Você ainda não pode morrer — disse o guerreiro anão com a voz fraca. — Você precisa ir até Noroelle. Eu vou renascer.

Nuramon abanou a cabeça desolado.

— Por que você não pensou em Solstane?

— Ela vai entender. Aceite esse presente meu, e não se esqueça de jeito nenhum do seu... do seu velho... — Sua cabeça despencou sobre o peito, e a impressão era de que adormecera de esgotamento. Tinha parado de respirar e seus batimentos cardíacos haviam cessado. Alwerich estava morto.

Nuramon beijou o anão na testa.

— Eu nunca vou esquecê-lo, velho amigo.

Foi uma despedida dolorosa, mesmo que o renascimento estivesse à espera do anão. Primeiro Lumnuon e agora Alwerich. Nuramon pensou se devia curá-lo, como curara Farodin daquela vez na caverna.

Mas Wengalf pousou a mão em seu ombro.

— Deixe-o! Ele renascerá como herói e se lembrará deste dia com orgulho. Agora precisamos decidir a batalha a nosso favor. Estamos nos saindo bem. Talvez realmente consigamos detê-los.

De repente, um guerreiro anão passou com esforço entre os escudeiros.

— Sua majestade! Nossos guerreiros destroçaram os atiradores inimigos deste lado. Os seus estranhos canos de fogo estão apagados para sempre. Devemos avançar? Ouvimos ainda do flanco esquerdo que Mandred, com seu pequeno bando de humanos, quer tentar se adiantar para o coração do exército oponente.

Nuramon ficou atemorizado. Não queria ter de perder Mandred também! Para o rei dos fiordlandeses não haveria renascimento.

O rei voltou-se para o mensageiro.

— Dê a ordem de atacar o flanco por este lado. Mas, no meio do campo, nossos homens devem recuar e atrair o inimigo um pouco para a frente. Assim tiraremos alguns guerreiros do caminho de Mandred.

Nuramon olhou o rei no rosto.

— Obrigado, Wengalf!

— Venha! Pegue as suas espadas! Vamos acabar com essa batalha. Estou morrendo de cansaço.

Nuramon concordou balançando a cabeça. Soltou, relutante, o corpo de Alwerich e apanhou suas espadas. Também queria que a batalha finalmente terminasse. Voltou-se para os poucos elfos restantes:

— Agrupem-se! Este será o último ataque!

Por trás das filas

Mandred contemplou as tranças ruivas cortadas que jaziam ao seu redor na grama. Em seguida, passou as mãos nas faces lisas e na cabeça raspada, murmurando:

— Vou mantê-los na memória, meus mortos.

Beorn empurrou sua faca de volta no cinto, onde estava pendurada uma corneta de alerta de bronze, e balançou a cabeça satisfeito.

— Assim você pode se passar por comandante deles, antepassado. Mas deixe-me falar quando formos parados.

Na corte dos pais de Beorn, alguns prisioneiros guerreiros da ordem tinham trabalhado como servos. Com eles, o guarda havia aprendido a língua de Fargon. Ele conhecia a organização dos exércitos da ordem e sabia até mesmo os sinais de corneta e de tambor dos inimigos.

Mandred pôs o elmo dos cavaleiros, com suas abas longas de proteção das bochechas, e puxou a faixa vermelha e larga que dava a volta em seus quadris. Despira a armadura de Alfadas de coração pesado, mas com ela não seriam capazes de enganar o inimigo.

Seu olhar vagueou sobre o ousado bando de mândridos que se apresentara voluntariamente. O ataque montado dos cavaleiros da ordem havia sido repelido, mas eles não poderiam vencer devido à superioridade numérica dos soldados inimigos.

— Imagino que os amigos de vocês tenham os aconselhado insistentemente a não cavalgar comigo! — gritou Mandred a plenos pulmões para seus homens. — Se fizeram isso, são bons amigos! Eles têm razão! Dentro de uma hora, aqueles que lutarem comigo ou serão heróis, ou estarão sentados nos átrios dourados dos deuses. Se sobreviverem, pelo resto dos seus dias as pessoas cochicharão pelas suas costas que vocês foram totalmente malucos.

Os homens sorriram. Até alguns dos centauros riram. Os homens-cavalo de Dailos haviam concordado em ajudá-los. Quase cem deles aguardavam ordens para agir. Cheio de orgulho, Mandred passava em revista seus voluntários. Todos tinham vestido armaduras de cavaleiros abatidos e feito a barba para não darem na vista como guerreiros do norte. Mandred queria ser capaz de fazer um discurso tão comovente como aquele de Liodred no salão do rei. No dia anterior, quando falara ao pé de sua sepultura, repetira as melhores partes que ainda lhe restavam na memória. Assim, mais uma vez, as palavras de Liodred inflamaram o espírito de luta dos fiordlandeses. O jarl observou as fileiras de homens que queriam segui-lo naquela cavalgada suicida. A maior parte deles era assustadoramente jovem.

— Appanasios?

Dirigia-se ao comandante dos centauros, um sujeito selvagem de cabelos negros que trazia um largo cinto de couro na parte de cima do peito, de onde pendiam seis canos curtos de fogo. Além disso, tinha uma aljava com flechas afivelada às costas e ainda uma espada longa.

— Você vai nos seguir com o seu bando de cortadores de pescoço e promover um espetáculo violento. Galopem e atirem, como se realmente fôssemos cavaleiros blindados em fuga. — Mandred ergueu a mão direita, enfiada em uma luva de armadura lindamente trabalhada. Cerrou o punho, fazendo as articulações de ferro rangerem. — Mas se os seus malandros realmente atingirem um dos meus homens que seja, Appanasios, eu vou voltar e enfiar isso aqui nessa sua bunda gorda de cavalo.

— Se você realmente voltar, vai poder enfiar a sua luva onde mais quiser, enquanto eu canto um hino em homenagem à sua coragem heroica. — O centauro sorriu, mas em seus olhos havia tristeza. — Estou orgulhoso por tê-lo encontrado, Mandred Aikhjarto.

— Vamos ver se ainda vai ficar orgulhoso hoje à noite na celebração da vitória, quando eu embebedar a você e ao seu bando de patifes até caírem da mesa.

— Um humano que deixa centauros bêbados! Isso você não verá! — Appanasios riu com vontade. — Isso nem você vai conseguir, antepassado de Firnstayn.

— Eu já fiz até um carvalho encher a cara! — retrucou Mandred, lançando-se sobre a sela.

No seu quadril tilintou uma espada estreita e moderna de cavaleiro. Da frente da sela pendiam duas bolsas de couro. O jarl voltou-se para o centauro e apontou para a sua faixa. — Como é que se usa essa coisa, afinal?

Appanasios puxou uma das armas e rodopiou-a por diversão.

— Isto, venerado antepassado, é uma pistola de roda. Capturamos estas armas do inimigo. Você estica aqui embaixo do gancho e então dá um tiro. O melhor é segurá-la levemente inclinada. Elas são carregadas com pequenas esferas de chumbo.

— Chumbo? — perguntou Mandred, incrédulo.

— Não se deixe iludir. A curta distância, essas esferas são capazes de atravessar qualquer armadura.

O centauro empurrou a arma de volta na sua faixa de couro.

Mandred acariciou a folha do machado pendurado no chifre de sela. Confiaria nas velhas armas tradicionais.

Olhou rapidamente para o pequeno bando de cavaleiros. Além das espadas e pistolas, estavam armados com lanças. Cinco deles carregavam estandartes enrolados. Os brasões que havia neles eram novos para Mandred, mas para os cavaleiros da ordem eram bastante familiares, já que a guerra dos homens do norte contra seu inimigo já durava séculos.

O jarl ergueu a mão:

— Avante, homens!

Quando as tropas de cavaleiros puseram-se em movimento, os cascos dos cavalos trovejaram, surdos, sobre o chão revolvido. As mesmas depressões de terreno de onde começaram seu primeiro ataque os haviam ocultado do olhar do inimigo mais uma vez. Agora impeliam os cavalos na subida. Atrás deles soaram os gritos de guerra estridentes dos centauros. Enquanto isso, no outro flanco, a batalha estava em pleno curso. A maioria dos cavaleiros inimigos havia sido abatida, mas a infantaria estava em uma luta dura contra elfos e anões.

Mal irromperam da colina, uma flecha errou Mandred por pouco. O humano se abaixara totalmente sobre o pescoço da égua. Em pleno galope, eles agora se dirigiam diretamente para a ala direita dos inimigos. Lá, um oficial fez um sinal com a espada para Mandred e apontou para uma brecha entre duas tropas armadas com pistolas. O pequeno grupo de cavaleiros passou pela linha de combate inimiga, enquanto os centauros recuaram, praguejando e disparando flechas contra os soldados inimigos.

Mandred refreou seu cavalo. Beorn, que não saíra do seu lado, ergueu o braço direito e virou-se na sela.

— Parem!

Pronunciou a palavra em um ritmo estranho, e prolongou-a até o infinito.

Apreensivo, Mandred olhou em volta. Mas ninguém dos cavaleiros da ordem pareceu achar o comportamento de Beorn estranho. Um mensageiro a cavalo percorreu rápido a linha de batalha e desapareceu atrás de um pequeno trecho de floresta. Será que estaria a caminho da Shalyn Falah? Como estariam as coisas para Farodin?

—Em filas de dois! — comandou Beorn.

Os cavaleiros formaram uma coluna em marcha.

Mandred apontou para uma colina a cerca de meia milha do centro da linha de combate. Estandartes com o carvalho queimado estavam cravados ali. Um grupo de oficiais observava a evolução dos combates. Um pouco afastados, havia alguns mensageiros montados e uma pequena tropa de alabardeiros. A grande unidade de espadachins que havia sido mantida como reserva acabara de receber ordem de marcha. Os anões no centro da batalha recuaram. O coração de Mandred quase parou. Talvez fosse tarde demais para a sua artimanha. A impressão era de que as linhas de combate estavam colapsando. Mas os anões não fugiam — somente recuavam! Os elfos do lado esquerdo se detiveram. Será que isso fazia parte do plano dos anões, para atrair as últimas reservas do inimigo para dentro do combate? Então haveria ao menos uma perspectiva diminuta de sobreviverem ao plano de batalha de Mandred.

— Marchem! — ordenou Beorn, e a tropa de cavaleiros pôs-se em movimento. O guarda sorriu. — Eu jamais pensei que passaríamos com tanta facilidade pelas fileiras deles.

Mandred retribuiu o sorriso.

— Essa foi a parte fácil. A verdadeira acrobacia vai ser sair vivo daqui.

— Isso chegou realmente a fazer parte do nosso plano? — perguntou Beorn, baixo o suficiente para os cavaleiros atrás deles não ouvirem.

Mandred não respondeu. Mas também o que podia dizer? Os dois sabiam muito bem como era improvável conseguirem sobreviver.

Eles cavalgaram ao longo de uma comprida fila de carroças. A um bom trecho de distância, estavam reunidas as tropas feridas de cavaleiros, protegidas por um pequeno bosque.

Um tempo depois, o bando de Mandred deixou o caminho lamacento e dirigiu-se em um grande arco à subida da colina dos generais. Na parte de trás, fora do campo de visão dos soldados, estava montado um banquete. Vários cozinheiros trabalhavam junto a grandes fogueiras. Em espetos de ferro estavam sendo assados dois leitões e todos os tipos de aves. Mandred ficou com água na boca.

— Muito atencioso da parte deles prepararem nossa refeição de vitória.

Beorn continuou sério. Apontou para um oficial com um penacho branco no elmo, que cavalgava colina abaixo na direção deles.

— Por favor, deixe-me falar com ele, antepassado.

Ele acenou para os cavaleiros e os homens fizeram uma evolução para fora da coluna para formar uma grande fila ao pé da colina.

— O que vocês estão fazendo aqui? — gritou o oficial furioso, apontando para a floresta. — Todas as tropas de cavaleiros têm ordens para se reunir ali atrás. Se nossas tropas de infantaria romperem as fileiras inimigas, vocês terão chance de reparar a vergonha dos ataques fracassados.

— Tenho um recado urgente para o grão-mestre Tarquinon — respondeu Beorn calmamente.

— Então diga-me o que você tem para relatar!

— Com todo o respeito, creio que neste caso o grão-mestre preferiria receber a notícia em primeira mão. Eu avancei com meus cavaleiros pelas costas do inimigo. Descobrimos um enorme contingente de trolls que está se mantendo oculto em uma depressão do terreno, para avançar sobre nossas tropas pelos flancos se continuarmos a nos adiantar.

O jovem oficial fitou-o espantado.

— Tínhamos sido informados que o exército de trolls fora reduzido a um contingente pequeno. Siga-me!

Ele virou seu cavalo e impeliu-o colina acima.

O grão-mestre e seu estado-maior estavam de pé junto a uma pesada mesa de carvalho, conferindo um mapa do campo de batalha. Pequenos blocos de madeira colorida pareciam estar marcando as posições das diferentes partes das tropas.

Mandred e Beorn apearam e foram em direção à reunião de oficiais. Um homem alto e magricela virou-se na direção deles. O peitoral de sua armadura reluzia como se fosse de prata polida. Uma capa branca descansava sobre seus ombros. A arrogância do poder refletia-se em seus traços ascéticos. Tinha cabelos longos e brancos que caíam-lhe livremente sobre os ombros.

— Não tenho em muito bom conceito os oficiais que cavalgam em fuga à frente de suas tropas, capitão...

— Balbion, eminência. Capitão Balbion.

O grão-mestre franziu a testa.

— Esse nome não é familiar para mim.

— Eu só fui despachado há quatro dias, depois das lutas junto à ponte branca, eminência.

Mandred odiava sujeitos presunçosos e convencidos como esse Tarquinon. Beorn devia ir direto ao ponto, e não desperdiçar tanto tempo com esse falatório inútil.

Como se o grão-mestre tivesse ouvido seus pensamentos, virou-se um pouco e olhou para Mandred.

— O que é isso que o seu ajudante de campo tem aí? O regulamento não prevê machados para o armamento de cavaleiros blindados. Ele deve tê-lo arrancado de um desses bárbaros. Como é o nome dele?

— O nome dele é Mandred Torgridson — retrucou Mandred calmamente, indo em direção ao grão-mestre. Ele é o comandante dos fiordlandeses, jarl de Firnstayn. E está aqui para negociar com você que baixemos as armas por hoje.

Um sorriso esboçou-se nos lábios finos do grão-mestre. Os outros comandantes fitaram Mandred, admirados. Alguns agarraram suas espadas. Tarquinon fez uma breve reverência com a cabeça.

— Curvo-me diante de uma coragem audaciosa como essa, jarl. — E, apanhando sua pistola de cima da mesa do mapa: — Ao mesmo tempo, desprezo uma burrice tão extraordinária.

Beorn avançou e tentou agarrar o braço do grão-mestre. Uma fumaça cáustica brotou da arma. Mandred foi atingido no quadril, mas não sentiu nenhuma dor. O jarl olhou rapidamente para baixo. Sua armadura não parecia ter sofrido dano. Ao seu redor, oficiais puxavam suas espadas. De machado em punho, o jarl deu um salto adiante. Seu machado traçou um amplo semicírculo no ar, espalhando sangue, e a cabeça do grão-mestre caiu sobre a mesa do mapa de batalha, separando as formações de blocos de madeira umas das outras.

Beorn defendeu um golpe de espada que mirava a cabeça de Mandred. De costas um para o outro, os guerreiros do norte enfrentavam os oficiais em ataque. Mandred destroçou uma lâmina fina de espada e atravessou o espigão do machado na armadura do agressor. Um golpe escorregou com ruído da placa protetora no ombro do jarl. Ele virou-se um pouco e estraçalhou as pernas de um adversário.

De repente, soaram estampidos de pistolas de roda. A fumaça acre flutuou sobre as colinas e encobriu os combatentes, deixando um cheiro ruim de enxofre no ar. Exatamente como se o devanthar estivesse mais uma vez entre eles.

O machado de Mandred enterrou-se profundamente no ombro do jovem oficial que os conduzira colina acima. O homem fitou-o com olhos arregalados, e então caiu de joelhos.

Do meio da fumaça de pólvora das pistolas surgiram mais cavaleiros. Com suas espadas longas, massacraram os últimos oficiais do estado-maior. Mandred viu os estandartes do carvalho negro serem derrubados. Beorn tirou a corneta de seu cinto e soprou-a a plenos pulmões. Sobre as cabeças dos cavaleiros, tremularam os estandartes desdobrados de Firnstayn. Mostravam um carvalho verde em fundo branco. A árvore viva tinha vencido a morta. Todo o exército dos cavaleiros da ordem veria a fumaça de pólvora sobre a colina dos generais e os estandartes dos inimigos! E, além disso, Beorn estava tocando o sinal de retirada.

Logo uma das unidades desvencilhou-se da linha de combate e recuou, lutando. Do flanco da colina soaram tinidos de armas.

— Os alabardeiros estão atacando! — gritou um jovem firnstaynense.

Mandred lançou-se sobre um cavalo vago.

— Empurrem-nos de volta! — ordenou severamente. A colina não podia cair novamente nas mãos dos inimigos. Do contrário, tudo teria sido em vão.

Mandred saltou sobre o cavalo negro e dirigiu-se ao inimigo. Segurou as rédeas entre os dentes e puxou uma das duas pistolas de roda do coldre da sela. Mais adiante, surgiu a formação de alabardeiros. Já haviam derrubado vários cavaleiros. O jarl, então, girou a arma na mão e arremessou-a em direção à formação dos inimigos. Ele jamais dispararia uma arma que cuspia o hálito do devanthar. Mas, para serem atiradas, elas serviam.

Sacou então a segunda pistola de roda e ergueu o braço. O sinal de alerta ainda ressoava atrás dele. Outros cavaleiros se juntaram ao jarl e formaram uma fila. Todos puxaram suas pistolas das selas e dispararam ao mesmo tempo. A fumaça branca cercou os cavaleiros. Vários alabardeiros caíram. As fileiras de agressores caíram em desordem.

— Sacar armas! — gritou Mandred por cima de todo o barulho. Ouviu-se o som de espadas estreitas atritando contra as bainhas metálicas.

— Ao ataque!

O jarl esporeou seu cavalo. Restavam poucos passos até os soldados da ordem. Atirou a segunda pistola e ergueu o machado.

— Por Firnstayn!

Fogo e enxofre

Junto à colina, línguas de fogo romperam a espessa parede de fumaça branca. Algo bateu contra o peitoral da armadura de Farodin. O elfo apanhou o projétil do chão. Era uma esfera de metal, cinza-escura e achatada.

— A essa distância elas não conseguem mais atravessar nenhuma armadura — disse Giliath, erguendo seu arco e atirando uma flecha em direção ao muro de fumaça. A elfa e seus cavaleiros tinham chegado havia uma hora para reforçar as fileiras minguadas de defensores.

Ao lado de Farodin, ela estava agachada atrás do grande escudo de um troll morto que eles haviam encaixado entre duas estacas de trincheira. Puxou uma nova flecha da aljava, posicionou-a com um movimento rápido e atirou.

— Eu não entendo esses soldados da ordem. Esses canos de fogo são armas totalmente absurdas. Enquanto seus atiradores recarregam-nas, posso atirar cinco flechas. Depois de no máximo duas salvas, a fumaça cobre tanto a visão que eles nem sabem mais para onde estão atirando. As armas fazem um barulho terrível e espalham um fedor horrendo. E, se a pólvora ficar úmida, eles ficam totalmente desarmados. Eu realmente não entendo o que eles veem nessa bobagem!

Farodin observou o velho gnomo no chão a seus pés. Uma massa sangrenta havia escorrido pela cavidade do seu olho esquerdo. A quem não vestia nenhuma armadura, as esferas das armas de fogo certamente podiam fazer mal.

Os defensores da ponte Shalyn Falah já haviam repelido dois ataques à sua posição, mas o preço que pagaram por isso fora terrível. Mais da metade dos guerreiros estava morta.

Trolls agora estavam de pé na fileira da frente junto com os arqueiros, tentando proteger os elfos do tiroteio com seus enormes escudos.

— Quando isto estiver terminado, gostaria de desafiá-lo para uma luta com espadas de treino, Farodin. Seria muito cortês e amável da sua parte não usar o seu anel dessa vez.

O elfo encarou a guerreira admirado.

— Você ainda está brava comigo?

— Você terminou o nosso duelo com um golpe declaradamente pérfido e nada élfico.

— Daquela vez eu não podia me dar ao luxo de ser ferido — respondeu rápido, na esperança de terminar a conversa assim.

Não achava que era hora nem lugar apropriado para discutir virtudes de guerreiro.

— Eu daria a você de bom grado a oportunidade de restabelecer sua reputação comigo.

Aquilo não podia ser verdade, pensou Farodin. Estavam sob uma chuva de tiros inimigos e Giliath queria desafiá-lo para um duelo.

— Você perdeu um olho. Com isso eu teria uma grande vantagem.

— Desde o nosso último duelo, tive muitas oportunidades de treinar. Estou convencida de que já era melhor que você naquela época. Sem dúvida seria interessante constatar se você também melhorou na mesma proporção.

Farodin virou os olhos. Estava quase ansioso pelo próximo ataque para que esse absurdo tivesse fim. Com estrondos, os soldados da ordem dispararam a saraivada seguinte. O elfo curvou-se atrás do grande escudo.

— O que você acha de nos encontrarmos amanhã ao nascer do sol no campo na frente do castelo? — perguntou Giliath.

Farodin suspirou.

— Você está partindo do pressuposto de que amanhã ainda estaremos vivos?

— Eu, certamente — disse a elfa, com uma confiança surpreendente. — E vou cuidar bem de você para que também esteja entre os sobreviventes. Estão dizendo que amanhã você quer ir para sempre para o mundo dos humanos. Eu ficaria muito satisfeita se antes disso nós pudéssemos esclarecer essa questão.

— Por que esse duelo é tão importante?

A elfa encarou-o surpresa.

— É uma questão de honra. Você foi a minha única derrota.

Farodin fitou-a, desconfiado. A tira de tecido escuro sobre seu olho destruído fazia-a parecer ousada. Algumas vitórias tinham um preço alto demais, pensou ele.

Um gnomo com uma grande cesta de vime nas costas agachou-se ofegante sob o abrigo do escudo deles. Então apanhou dois feixes de flechas da cesta e os colocou no chão na frente de Giliath.

— Estão nos faltando guerreiros, mas munição pelo menos não falta — esclareceu, com voz rabugenta. — Devo transmitir a vocês da parte de Ollowain que para cada arqueiro ainda há mais de cem flechas. Ele espera que vocês mandem todas elas abaixo para o inimigo.

O gnomo se encolheu quando a trovejada de um novo ataque voou colina acima. Sem mais nenhuma palavra, afastou-se para abastecer os próximos arqueiros.

Giliath cortou a tira de couro de um dos feixes de flechas e encheu a sua aljava.

— Os sobreviventes de Valemas são muito agradecidos a você e a seus companheiros por terem salvo Yulivee — disse a elfa subitamente. — Yulivee é completamente doida por esse Nuramon. Por causa dele, ela até se opôs às ordens da rainha.

— Do que você está falando?

Giliath levantou os olhos e deu um sorriso frio.

— Eu já imaginava que ela não tivesse contado nada disso a vocês. Ela ficou muito deprimida quando não conseguiu libertá-los.

Aos poucos Farodin ia perdendo a paciência.

— O que você tem para me dizer?

Giliath ergueu-se e olhou diretamente para ele.

— Ela conduziu a mim e meus guerreiros por uma trilha alba, partindo de Firnstayn até a fortaleza de um mosteiro próximo a Aniscans. Lá, ela queria atravessar por uma segunda estrela e procurar por vocês. Mas havia um encantamento no portal. Nós não conseguimos abri-lo e fomos descobertos. Durante a luta que se seguiu, queimamos o mosteiro até os alicerces. Yulivee era contra isso, mas esses sacerdotes de Tjured só entendem uma língua! Eu pensei que você e seus companheiros soubessem disso. Acho que ela jamais diria espontaneamente alguma coisa a esse respeito. Ela se sente em dívida com vocês.

Uma esfera de chumbo tirou lascas de madeira do escudo troll. Giliath armou o arco e mirou na muralha de fumaça espessa.

Soaram batidas de tambor e o som de flautas. Uma fileira de homens com canos de fogo saiu do vapor de pólvora e começou a subir a encosta. Eram seguidos por duas outras fileiras. Giliath praguejou e atirou.

Farodin puxou duas espadas curtas que havia apanhado de elfos mortos. A espada de duas mãos era difícil demais de manejar lutando no meio das próprias linhas de defesa.

Os atiradores embaixo da encosta agora seguiam os cavaleiros da ordem, que estavam armados com espadas e escudos redondos. Entre eles caminhavam homens com tochas. Todos levavam pequenas caixas de madeira afiveladas à barriga.

Com estampidos, uma salva de tiros começou. Atingido no peito, Farodin foi jogado para trás. Sua armadura sofreu um amassado profundo.

Os atiradores da primeira fila pararam e carregaram suas armas. Andavam em formação aberta, de modo que os outros soldados da ordem não fossem atrapalhados pela sua marcha de avanço.

Chuvas de flechas baixaram sobre os agressores. Giliath atirava sem parar, ao mesmo tempo soltando pragas e blasfêmias. Farodin admirava-se com a coragem dos humanos. Devia estar claro para eles com quanto sangue eles teriam de pagar. Ainda assim, avançavam continuamente.

Quando a fileira seguinte de atiradores se deteve, Farodin agachou-se, apreensivo, atrás do grosso escudo de madeira. Línguas de fogo se adiantaram e outras esferas de chumbo bateram contra a madeira. Farodin viu um troll cambalear, atingido por vários tiros, e então sucumbir.

Os elfos revidavam o tiroteio com uma determinação desesperada. Saraivada atrás de saraivada de flechas atingiam os agressores. Mas nada mais parecia capaz de deter o seu avanço.

Quando estavam a menos de quarenta passos de distância, a terceira fileira de atiradores de fogo fincou suas hastes de apoio no chão. Eles baixaram as armas pesadas e sopraram as brasas de seus estopins.

— Para o chão! — gritou Giliath, atirando o arco de lado e deitando-se no solo. Farodin agachou-se ao seu lado. Quando a salva trovejou, ouviu a madeira do grande escudo de proteção se estilhaçar. Ao redor deles ressoaram gritos.

O elfo rolou de lado e voltou a se erguer com dificuldade. Viu os furos no grosso escudo troll. Lentamente, compreendeu o porquê de os humanos estarem tão convictos a respeito dessas novas armas. Passando por entre os atiradores, os guerreiros com as caixinhas de madeira afiveladas avançaram. Cada um deles segurava na mão direita uma pequena garrafa esférica de barro. Eles acenderam tiras de tecido sobre as garrafas, das quais subiu uma fumaça espessa e gordurosa. Então lançaram os estranhos projéteis na direção dos defensores.

Uma das garrafas despedaçou-se com ruído ao acertar o escudo troll. Uma chama ardente subiu pelo ar. Farodin recuou assustado com o calor repentino. O fogo agora ardia por todos os lados da linha de defesa. Farodin viu um arqueiro ser atingido e se transformar em uma tocha humana. O elfo atirou-se no chão e rolou aos gritos para lá e para cá, mas nada era capaz de apagar as chamas.

— O fogo de Balbar — murmurou Farodin. — A praga de Iskendria.

— De volta para a segunda fila! — destacou-se a voz de Ollowain no meio daquele inferno. — Recuem e apanhem algumas garrafas dessas para mim!

Farodin e Giliath correram na direção das ruínas da torre no começo da encosta íngreme.

— Apanhar as garrafas? Você perdeu a razão, elfo? Tirem as garrafas do caminho! — gritou Orgrim.

— Nós precisamos delas para pôr fogo sobre a ponte! — gritou Ollowain de volta.

A sede de luta dos defensores fora vencida. Em multidões densas, os últimos sobreviventes avançavam pelo caminho no rochedo.

Logo os primeiros humanos haviam chegado às trincheiras. Espadachins e atiradores passavam por entre as estacas. Com eles, vinham os guerreiros com as tochas e as caixas de madeira.

Os tiros de fogo agora caíam no meio da aglomeração de fugitivos. Orgrim tentou conduzir um contra-ataque com uma pequena tropa de trolls para deter os humanos um pouco mais. Giliath atirava flecha atrás de flecha enquanto recuava ao lado de Farodin.

O elfo, por sua vez, guardou suas duas espadas de volta na bainha e correu até Ollowain.

— Nós precisamos desse maldito fogo para bloquear a ponte. Precisamos detê-los por mais tempo!

De repente, o elfo deu um salto à frente e ergueu a mão com agilidade. Apanhara uma das malditas garrafas de barro no ar. Arrancou a tira de tecido acesa e colocou a garrafa cuidadosamente no chão.

— Viu só? É possível!

Farodin respirou com dificuldade.

— Vou preferir pegar uma caixa dessas!

Então cerrou os dentes e se apressou a seguir Orgrim.

Ali onde os trolls estavam atacando, os soldados da ordem recuaram. Com uma coragem cega, Farodin lançou-se para dentro da massa de inimigos. Rodopiava em uma dança mortal, bloqueando lâminas e golpeando os oponentes nas brechas de sua defesa. Um golpe de revés cortou a garganta de um dos atiradores de fogo, que não conseguiu erguer sua arma com rapidez suficiente para interceptar a investida. Uma pontada atravessou o bloqueio de um espadachim e entrou-lhe pela boca. Farodin se abaixou, soltou a lâmina e bloqueou o golpe de um segundo espadachim. Com um golpe no ombro, tirou o equilíbrio do homem e atingiu-o impiedosamente.

Abaixar, bloquear, estocar! Sangue espirrou no seu rosto. Um cano de fogo estalou tão perto que ele sentiu a mordida da chama vindo do cano da arma, mas a esfera o errou. Pôde sentir na boca o sabor do enxofre. Eles eram realmente filhos do devanthar! Farodin rasgou a barriga do atirador e o homem caiu de joelhos, aos gritos.

— Recuar! — gritou Orgrim. — Eles estão nos isolando dos outros. Recuar!

De canto de olho, Farodin viu um atirador apontar para o rei dos trolls. Estava distante demais para que conseguisse chegar até ele a tempo, então arremessou uma de suas espadas. A lâmina fincou, certeira, nas costas do soldado da ordem.

Farodin abaixou-se para pegar a arma de um morto.

— De volta, seu maluco sanguinário! Você não vai vencê-los sozinho! — o rei dos trolls havia corrido até o seu lado.

Uma garrafa de óleo estilhaçou-se no escudo de Orgrim. Chamas claras varreram a madeira. Línguas do fogo de Balbar também atingiram a armadura de Farodin, mas as manchas escuras que causaram não se incendiaram.

Bem próximos dele, o elfo viu dois guerreiros se ajoelharem com suas malditas caixas de madeira.

— Precisamos pegar aquelas caixas! — gritou para Orgrim. — Então vamos recuar!

O rei dos trolls soltou um xingamento que teria feito até Mandred empalidecer, mas Farodin não fez caso dele. Três espadachins apressaram-se em sua direção. Ele bloqueou um golpe e deixou a lâmina do agressor deslizar por sua arma. Então deu meia-volta, mudou a pegada e cravou a espada nas costas do guerreiro, enquanto deteve, com a segunda arma, uma investida por cima de sua cabeça. A clava de Orgrim destroçou o crânio do combatente seguinte.

Farodin lançou-se com ambas as espadas sobre o soldado sobrevivente da ordem. Com um movimento giratório, prendeu a lâmina do homem e enfiou-lhe sua segunda espada no abdome, atravessando seu escudo protetor.

Com um grande salto, o elfo chegou aos homens com as esferas de fogo e massacrou-os, sem piedade. As pequenas arcas de madeira tinham divisórias forradas com palha para que as finas garrafas de cerâmica pudessem ser transportadas e resistissem a pequenos impactos. Havia ainda nove garrafas nas duas arcas que conseguiram. Isso devia bastar!

Orgrim apanhou uma das caixas de madeira.

— De volta para a ponte! Eles estão derrubando tudo. Nós ainda poderemos detê-los na Shalyn Falah, isso se muito.

Farodin concordou em silêncio e levantou a segunda caixa de madeira. Ollowain havia reunido alguns trolls e arqueiros ao seu redor. Tentava manter as costas deles livres.

Nuvens densas de fumaça subiam sobre o campo de batalha. Por todos os lados, ouviam-se os estampidos dos canos de fogo. A linha de combate dos elfos estava totalmente destroçada.

Farodin decepou a mão de um oficial que mirava uma pistola de roda em sua direção. Um golpe de revés acertou o homem no rosto por cima do gorjal e arrebentou seus dentes.

Ao seu lado, um agressor veio abaixo, atingido por uma flecha. Farodin olhou rapidamente para cima e viu Giliath de pé ao lado de Ollowain. Foi inevitável sorrir. A elfa realmente se preocupava com o encontro para o duelo.

Fazendo muita fumaça, uma chama subiu para as alturas bem à frente deles. Farodin pulou para o lado. Por um momento, perdeu seus companheiros de vista. Então viu Ollowain. O cavaleiro elfo deu um salto adiante e agarrou no ar uma das malditas garrafas de fogo de Balbar. Segurava-a triunfante no alto quando uma esfera fulminou sua mão. O óleo escuro espirrou e incendiou-se no trapo em chamas da garrafa. As labaredas cobriram a cabeça e a armadura de Ollowain. Por um instante, o elfo ficou totalmente imóvel. Então sacou a espada com a mão ilesa e correu aos gritos em direção a uma fila de atiradores.

Farodin assistiu ao que aconteceu sem respirar. A fumaça branca envolveu os soldados da ordem, mas nenhuma esfera foi capaz de deter o guardião da Shalyn Falah. Totalmente coberto de chamas, desapareceu para dentro do paredão de fumaça.

— Guerreiros como ele só nascem uma vez em mil anos — disse Orgrim, agarrando Farodin pelos ombros. — Vamos, antes que novos atiradores avancem.

Giliath esperava com alguns arqueiros junto à torre queimada e lhes deu cobertura. Tinham alcançado o ponto mais alto do penhasco. Farodin olhou para baixo, em direção à trilha sinuosa até a ponte. Ali o fogo ainda ardia. Havia no máximo trezentos defensores ainda vivos. A maioria deles estava ferida. Esgotados e escurecidos de fuligem, fugiam de volta para a fortificação do outro lado do desfiladeiro.

Farodin olhou para trás. Uma lufada de vento espalhou a fumaça sobre a larga cadeia de montanhas. Milhares de soldados da ordem avançavam. No alto do círculo de pedras, o elfo viu homens com longas escadas de ocupação. Tinham perdido a batalha!

Rumo a Shalyn Falah

A coragem abandonou os cavaleiros da ordem assim que os estandartes de Firnstayn começaram a tremular sobre a colina de seus comandantes. Pareciam estar totalmente confusos. Recuavam cada vez mais diante do avanço das fileiras de Wengalf e Nuramon. Então o elfo avistou Mandred. À primeira vista, quase não o reconheceu, já que o jarl vestia a armadura do inimigo e havia feito a barba. Cercado de companheiros em armaduras capturadas, estava sentado sobre um cavalo negro, segurando a cabeça decapitada de um humano pelos cabelos. Sangue pingava dos farrapos de carne sob ela.

— Olhem no rosto do comandante de vocês! — gritou ele.

Os anões se apressaram até lá e formaram uma larga parede de escudos ao redor de Mandred e seus guerreiros. Assim foi quebrada a última resistência e os inimigos irromperam em uma fuga selvagem.

— Mandred! — gritou Nuramon.

— Meu amigo! Veja que dia!

Nuramon olhou em volta, desconfiado. Um franco-atirador ainda seria capaz de estragar o triunfo de Mandred. Mas os inimigos não faziam mais menção de se defender. Alguns gritaram-lhes xingamentos e juraram regressar em um prazo de poucos dias, com um novo contingente de batalha. Essa ameaça, contudo, não conseguiu causar preocupação em ninguém.

— Experimentem voltar! — vociferou Mandred. — Vão levar mais um pontapé na bunda!

Nuramon estendeu a mão para Mandred. Sobre seu cavalo alto, o amigo parecia mesmo um soberano legítimo. Sua mão sangrenta recebeu o cumprimento. Nuramon passou os olhos pelo companheiro, procurando ferimentos. Não sabia dizer se a maior parte do sangue que cobria o jarl era dos inimigos ou dele próprio. A armadura de Mandred parecia intacta. Um esfolado comprido atravessava sua bochecha esquerda, mas o rei dos fiordlandeses não parecia sentir dor — em vez disso, tinha o rosto radiante.

— Você está ferido, Mandred? — perguntou Nuramon ao amigo, só para se certificar.

— Só uns arranhões.

Os anões deixaram um bando de elfos adentrar o círculo de escudos. Entre eles estavam Nomja e Daryll, a comandante dos alvemerenses, que havia resistido ao assalto da cavalaria inimiga no centro das fileiras de batalha. Ela levava Felbion pelas rédeas.

Nuramon ficou aliviado. Mandred e Nomja estavam vivos, e seu cavalo também saíra ileso da batalha!

Daryll estendeu-lhe as rédeas de Felbion.

— Aqui está o seu cavalo! Ele salvou a minha vida.

A líder contou que Felbion derrubara três inimigos que teriam lhe aplicado um golpe mortal com um único coice.

Nuramon passou a mão pela crina de seu fiel cavalo.

— Você é um verdadeiro herói!

Felbion desviou o olhar de lado, parecendo entediado.

Nuramon olhou ao redor.

— Queria agradecer a todos vocês. — Voltou-se para Nomja: — Os seus arqueiros são os melhores da Terra dos Albos.

Voltou-se para Daryl e disse:

— Para nós, elfos, você foi como uma rocha na arrebentação. — Finalmente, ajoelhou-se na altura de Wengalf: — Nós devemos tudo a você.

Wengalf discordou:

— Não, não. É Mandred quem merece as grandes honras!

Nuramon levantou os olhos para Mandred e sorriu.

— Hoje, meu poderoso rei, você conquistou a imortalidade. Os filhos de albos glorificarão o seu nome por todo o sempre.

— Ainda não acabou! Quem sabe como está a batalha na frente de Shalyn Falah? Venha! Vamos cavalgar até lá!

O jarl jogou a cabeça do comandante inimigo para um de seus mândridos. O sangue esguichou longe ao redor dele.

Um homem vestindo armadura de oficial aproximou-se trazendo a égua de Mandred. O jarl apeou e cumprimentou-a. Mas, quando quis montá-la, faltaram-lhe forças. O homem da armadura ajudou-o rapidamente a subir.

Nuramon olhou em volta. Os guerreiros estavam no fim de suas forças. Naquele dia nenhum deles aguentaria mais a marcha até Shalyn Falah. E seria imprudente retirar as tropas dali enquanto o inimigo não estivesse totalmente aniquilado.

— Bem, Mandred, acho que vamos ter de cavalgar sozinhos. Os guerreiros precisam manter a posição aqui.

— Tudo bem. Com certeza Farodin pode fazer bom proveito da nossa ajuda. Quando ouvirem que não só detivemos o inimigo como também o fizemos fugir, certamente vão se inspirar.

Nuramon sorriu.

— Então está bem, Mandred! Reze para Luth! Hoje ele realmente nos ajudou.

O elfo montou em Felbion e seguiu com os olhos os guerreiros de Tjured em fuga. Eles certamente ainda teriam sido uma força de combate considerável, mas, sem comando, eram somente uma multidão desordenada.

Uma sensação de angústia apoderou-se de Nuramon quando partiu com Mandred a caminho da Shalyn Falah. Estava certo de que a ponte nunca havia sido tomada e de que Farodin tinha mais experiência do que eles dois juntos. Ainda assim...

Ao cruzar o campo de combate, foram ovacionados por bandos de guerreiros. Nuramon viu seus parentes acenando para ele, gritando seu nome, entusiasmados. Os mândridos ergueram seus machados e espadas nas alturas e gritaram:

— Vida longa a Mandred, jarl de Firnstayn!

Após deixarem o campo de batalha para trás, Mandred disse:

— Depois de ajudar Farodin, quero passar a noite com duas lindas garotas!

— Duas? — espantou-se Nuramon.

— Sim. Ontem foi uma coisa! Primeiro eu fiz as duas...

— Por favor, Mandred! Poupe-me das suas aventuras amorosas! Você não usa termos agradáveis a ouvidos élficos.

— Você está com inveja porque vou dormir com duas...

— Pare, Mandred! Não precisa dizer o que já foi despertado claramente na minha imaginação e agora está arruinando minha tentativa de pensar em qualquer coisa graciosa.

Mandred e Nuramon riram.

— Você nada sabe sobre a poesia de uma noite a três...

— É melhor cavalgarmos — sugeriu Nuramon.

Tinha sentido falta daquela tagarelice. Queria que Mandred pudesse acompanhar Farodin e ele. Mas com certeza seria difícil arrancar o jarl da cama de suas duas amantes.

Teriam ainda de galopar por algumas horas até a Shalyn Falah. Na metade do caminho, porém, Mandred ficou um pouco para trás. Quando sua égua começou a relinchar, inquieta, Nuramon virou-se para olhar. Seu amigo estava caído na sela!

Felbion correu em direção à égua e parou perto dela. Com as mãos trêmulas, Nuramon tocou o companheiro e tentou endireitá-lo.

— Mandred! — gritou.

O jarl se assustou e olhou inseguro ao redor. Vacilou um pouco e então caiu da sela.

Nuramon pulou do cavalo e virou-o cuidadosamente sobre as costas.

Mandred encarou-o com os olhos arregalados de medo e pressionou a mão sobre a barriga.

— Acho que foi mais do que um arranhão — sussurrou ele, soltando a mão do corpo.

O peitoral da armadura estava intacto. Mas quando Nuramon tateou a larga faixa da cintura, suas mãos ficaram vermelhas de sangue. Atemorizado, o elfo afastou a faixa para o lado e descobriu um furo redondo na armadura. Com as mãos tremendo, soltou as fivelas do peitoral. A camisa estofada de linho também estava ensopada de sangue. Com seu punhal, Nuramon cortou o tecido resistente. O ferimento na barriga de Mandred estava cheio de farrapos fibrosos de roupa. Devia ter sido causado por um daqueles sinistros canos de fogo. Cuidadosamente, Nuramon tateou as costas de Mandred. A esfera não tinha saído do corpo.

— Você não está com dor? — perguntou Nuramon.

— Não — disse Mandred, surpreso. — Eu só estou... tonto.

Mandred havia perdido muito sangue, e morreria se nada fosse feito. Então Nuramon pôs a mão sobre a ferida e começou seu feitiço de cura. Esperou pela dor e ela de fato veio, mas muito mais fraca do que imaginara. Então percebeu que o ferimento realmente estava se fechando sob seus dedos, mas que sua magia não estava tendo nenhum efeito dentro do corpo de Mandred. Ficou com medo. A dor desapareceu, mas Mandred não estava curado. Ter fechado a ferida na barriga não ajudaria. Agora o sangue estava se acumulando dentro do corpo sem conseguir escorrer para fora. Conseguira apenas que a morte chegasse um pouco mais devagar. Mais uma vez, Nuramon reuniu todas as suas forças. Novamente fracassou.

— Mas o que é isso? — perguntou-se.

Algo atrapalhava o seu feitiço; algo que estava dentro de Mandred. Só podia ser a esfera. Teria sido esse o último presente maligno do devanthar para o seu séquito? Talvez esses ferimentos de tiro não pudessem ser curados com a magia dos elfos.

— Eu acho que esse é o fim, Nuramon — sussurrou Mandred. — E que fim para um humano!

— Não, Mandred!

— Para mim você sempre foi... — Seus olhos se fecharam, e ele expirou, esgotado.

Nuramon ficou desolado. A vida de Mandred não podia terminar assim! Tateou para verificar o pulso do amigo. Ainda estava lá, embora a respiração estivesse ficando mais fraca. Com grande esforço, Nuramon ergueu o pesado rei humano sobre Felbion e sentou-se atrás dele na sela. Então cavalgou na direção do acampamento militar à frente do castelo da rainha. Ficava mais próximo que a Shalyn Falah.

Nuramon repreendeu a si próprio. Seria culpa sua se Mandred morresse agora. Durante a batalha, curara suas próprias feridas de forma egoísta, certamente usando muitas forças para isso; forças que lhe faltavam agora que precisava salvar um amigo. Ele nunca se perdoaria se Mandred morresse por incapacidade sua.

Enquanto avançava a todo galope, surgiu ao longe uma luz fulgurante subindo em direção ao céu, que depois se espalhou como um raio. Seria o começo do feitiço pelo qual haviam esperado? Nuramon queria ganhar um sopro dessa magia para a cura de Mandred. Bem no momento do triunfo, o destino atingia a ele e a seus companheiros com toda a força. Só restava-lhe esperar que na Shalyn Falah não estivesse acontecendo nada parecido com Farodin.

Fissuras no céu

Haviam precisado recuar até o meio da ponte. Lentamente, as chamas do fogo de Balbar se apagavam. No caminho havia centenas de soldados da ordem, prontos para o último ataque. Logo que o fogo se consumisse começaria a última investida.

Ao lado de Farodin só restavam Orgrim e Giliath. Todos os outros guerreiros do minguado bando de defensores haviam se recolhido para a muralha da fortaleza do outro lado da ponte.

Desesperado, Farodin ergueu os olhos para o céu. Levaria ao menos mais duas horas até o crepúsculo. Não conseguiriam manter a ponte por tanto tempo. Uma brisa borrifou seu rosto com água e espuma. O trovejar das quedas-d’água tinha algo de tranquilizador. Escorriam pelas rochas como artérias brancas e deixavam a superfície da ponte lisa como um espelho. A Shalyn Falah não tinha mais que dois passos de largura, e nenhum corrimão. Naquele dia, Farodin estava agradecido ao mestre de construção, há tanto tempo esquecido, por sua ponte singular. Mais do que três homens não conseguiriam ficar de pé lado a lado sobre ela. Além disso, quem quisesse atravessá-la não poderia ter vertigens, ou não conseguiria resistir ao chamado do abismo.

— Não dizem que não se deve derramar sangue na Shalyn Falah? — perguntou Orgrim, gritando para sobrepor a voz ao estrondo das cascatas.

Farodin olhou para as manchas de um rosa pálido, que eram lentamente enxaguadas pela água que espirrava.

— Ontem à noite eu fiz a mesma pergunta a Ollowain. Ele me explicou que a pedra da ponte fica tão escorregadia se estiver molhada de sangue que não é mais possível atravessá-la. Também ouvi uma profecia que diz que, no dia em que a pedra branca for manchada de sangue, trevas eternas baixarão sobre ela.

— Eu acho que gosto mais da primeira história — murmurou o troll.

Sangue escorria de uma bandagem em seu braço, mas ainda assim conseguia segurar o escudo que tirara de um moribundo.

As chamas no acesso para a ponte agora só tinham pouco mais que meio metro de altura. Um movimento começou nas tropas sobre o rochedo.

Ouviu-se o estampido de um tiro. Uma esferea de chumbo acertou a pedra branca alguns passos à frente deles.

— Esses idiotas simplesmente não querem admitir que estamos fora do alcance de suas armas — murmurou Giliath.

Ela contou em voz baixa as flechas que havia em sua aljava.

Farodin sabia de cor a que resultado ela chegaria. Treze! Era pelo menos a décima vez que ela contava os projéteis que haviam restado.

Na outra ponta da ponte, um oficial jogou uma pesada capa cinzenta sobre as labaredas e sufocou o fogo. Soldados avançaram com seus canos.

Giliath ergueu o arco. De repente desatou a rir. Os cavaleiros da ordem tinham parado. Acenavam com os braços e tentavam empurrar de volta os guerreiros que chegavam atrás deles.

— Os pavios e a pólvora ficaram úmidos. Agora os canos de fogo não lhes servem para mais nada.

Em meio à confusão no final da ponte, um dos atiradores perdeu o apoio e despencou nas profundezas com um grito horripilante. Os homens finalmente recuavam. No lugar deles, fileiras de espadachins começaram a avançar.

Farodin girou ambas as espadas no ar para soltar os músculos tensos de seus braços. Tateando cuidadosamente, checou mais uma vez o chão escorregadio. A pedra da ponte era polida. Um passo em falso ou um movimento irrefletido e, a exemplo do soldado da ordem, ele despencaria abismo abaixo.

Um raio ofuscante de luz cortou o azul do céu e desfiou-se repentinamente em centenas de faíscas, mas nenhum trovão ecoou no firmamento. Farodin sentiu todos os pelos de seu corpo se arrepiarem. No ponto os raios desvaneceram, restaram finas linhas negras, como se o céu quisesse se despedaçar.

Os soldados da ordem ficaram inquietos. Alguns se ajoelharam e começaram a rezar em voz alta. Uma única voz nítida sobrepôs-se a todas as outras. Entoava um cântico sobre a grandeza de Tjured, o curador de todo o mal. Outras vozes se juntaram a ela. E, por fim, centenas de humanos agora cantavam o hino a seu deus.

Uma névoa negra vazou pelas rachaduras no firmamento.

Farodin recuou. O feitiço da rainha havia começado. A menos de dez passos na frente deles, uma das fendas atingiu a ponte. A névoa escura agora descia do céu em cascatas sinuosas. Mais fissuras surgiam, até onde Farodin conseguia enxergar.

A névoa encobriu a vista para a outra ribanceira. O canto cessou de forma abrupta. Atravessando o desfiladeiro no meio, traçou-se uma parede de escuridão ondulante. A ponte branca esticou-se, formando um amplo arco, e agora desembocava no vazio.

— Então está feito — disse Orgrim, solenemente.

Farodin empurrou a espada de volta na bainha. A guerra estava terminada. Mas ele não se sentia um vencedor.

O pescador

Mandred escutou a canção dos rouxinóis acima dele. Os pequenos pássaros estavam pousados nos ramos mais altos das duas tílias, cujas folhas farvalhavam embaladas por uma brisa leve. Ao seu lado, ouvia o doce marulhar da água de uma nascente. Nuramon tinha razão. Aquele era o lugar mais mágico de toda a Terra dos Albos.

Seu amigo havia lhe acendido uma fogueira e o envolvido nas cobertas dos cavalos. Ainda assim, o frio penetrava fundo em seus ossos, como daquela vez em que subira no rochedo para alertar Firnstayn sobre o devanthar. Teria sido tudo diferente se tivesse conseguido acender o fogo de alerta?

Nuramon havia mandado um mensageiro para Shalyn Falah e outro para a rainha. Mandred conseguira ver o céu escurecer. Então, o primeiro feitiço tinha funcionado. Seu povo estava a salvo. A Terra dos Albos continuaria existindo. Seus fiordlandeses procurariam uma costa escarpada e turbulenta para eles; um lugar que fosse um pouco como a sua pátria perdida. Passara quase a noite inteira anterior à batalha na barraca da rainha Gishild. Havia falado com ela e tentado transmitir-lhe o sonho de uma nova Firnstayn. Acreditava na força dela. Seria uma boa líder para o seu povo.

Mandred girou a cabeça um pouco para o lado e observou seu amigo elfo, que alimentava o fogo com mais um cepo de madeira. Fagulhas luminosas subiam, dançantes, para o céu noturno. As chamas aprofundavam as sombras no rosto de Nuramon. Mandred sorriu. Seu companheiro realmente acreditara que tinha passado a noite anterior com duas belas fiordlandesas.

Os olhos de Nuramon brilharam quando viu o sorriso.

— Em quem você está pensando?

— Nas duas mulheres da noite passada.

O elfo suspirou.

— Acho que nunca vou entender vocês, humanos.

Mandred quase se arrependeu do gracejo. Por um instante, ficou tentado a dizer a verdade ao elfo.

— Eu sinto muito por agora não poder acompanhá-los em sua última viagem.

O jarl sentia um gosto metálico na boca. Não demoraria muito mais. Não sentia dores. Suas pernas estavam como mortas; já não conseguia mais movê-las. As pontas de seus dedos formigavam.

— Não diga a ninguém que uma esfera tão pequena de aço foi o que me matou. Isso não é morte para um herói...

— Você ainda não vai morrer! — protestou Nuramon. — Eu mandei um mensageiro para a rainha. Ela vai conseguir curá-lo. Nós vamos viajar juntos. Como nós fizemos... — ele parou. — Como nós quase sempre fizemos.

— Não seja muito duro com Farodin. Ele é um cabeça-dura obstinado, é verdade, mas também um amigo que atacaria um castelo de trolls totalmente sozinho para... — Mandred suspirou. A fala o enfraquecia. — Onde está o meu machado?

Nuramon foi até os cavalos e retornou com a arma. À luz das chamas, sua lâmina brilhava, dourada.

— Dê-o a Beorn...

Os olhos de Mandred se fecharam. Estava mergulhado na escuridão. Um cavaleiro chegou até eles. Prestou atenção no bater dos cascos para tentar reconhecer algo, mas não podia ver absolutamente nada. Tentou erguer a mão. Nem ela estava mais lá. Sentiu o chão tremer. O cavaleiro agora devia estar bem próximo, e ainda assim não conseguia vê-lo. Assustado, o jarl abriu os olhos. Pôde ver então Farodin ajoelhado ao seu lado. O elfo parecia aflito.

Farodin segurou sua mão.

— Eu estava com medo de que você já tivesse ido, meu irmão de armas. Resista! A rainha virá. — O elfo louro tinha lágrimas nos olhos. Nunca vira Farodin chorar antes. — O seu novo corte de cabelo lhe caiu bem, guerreiro. Com essa careca você parece muito mais perigoso.

Mandred sorriu fraco. Gostaria de ter dado algo aos dois. Algo como lembrança. Mas não possuía nada de valor além do machado.

— Foi bom ter cavalgado com vocês — murmurou ele. — Vocês tornaram a minha vida muito rica.

Novamente a escuridão impenetrável o cercou. Mandred pensou nos átrios dourados dos deuses. Será que tinha conquistado seu lugar ao lado dos grandes heróis? Lá talvez ele encontrasse Alfadas... Seria bom ir pescar com ele. Nunca pudera ensinar isso direito ao filho. Será que havia uma terra do outro lado dos átrios? Uma terra como a dele, com montanhas escarpadas e fiordes cheios de peixes?

Ele precisava falar com Luth! Isso de não pôr mais as mãos em chifres de hidromel também não podia valer nos átrios dos heróis!

De repente, o frio passou. Estava de pé em águas claras que batiam-lhe nos joelhos. Salmões prateados deslizavam lentamente sobre o chão de pedra e nadavam rio acima contra a correnteza.

— Você finalmente chegou, meu velho!

Mandred ergueu os olhos. Sob um carvalho na margem, viu Alfadas. Com um movimento frouxo de pulso ele arremessou a linha de seu anzol.

“Nada mal para um iniciante”, pensou Mandred. “Nada mal.”

Os escritos sagrados de Tjured

Livro 98: do fim da Terra dos Albos

Certa noite, o sábio guerreiro Erilgar sonhou com as palavras de Tjured. Estas mostraram a ele que deveria liderar um grande ataque. Assim, pôs em formação imensos exércitos e conduziu-os contra os inimigos. E vejam! Lá estavam eles, os exércitos demoníacos da Terra dos Albos, e os fiéis de Tjured eram minoria. Mas porque a fé era forte dentro deles, eles lutaram valentemente. Os filhos de albos, porém, desde sempre eram pérfidos. Pronunciaram feitiços e fizeram pedras choverem do céu. Lançaram encantamentos sobre os cavalos dos fiéis, fazendo-os ter medo dos inimigos. E fizeram seus mortos ressuscitarem para que jamais fossem vencidos. Apesar de tudo isso, os fiéis mantiveram- se fortes sob a liderança de Erilgar.

Então aconteceu que Erilgar entrou em apuros. A face de Tjured revelou-se para ele e, nos lábios divinos, o comandante leu o que deveria fazer. Rezou uma prece, chamou seus mensageiros e ordenou a retirada. Muitos contestaram essa ordem. Mas Erilgar proferiu: “Tjured não me agraciou com o poder? Ele não me colocou acima de vós?”. Mesmo assim, muitos acreditaram estar mais próximos de Tjured que Erilgar. Então ocorreu o que tinha de ser.

Os fiéis haviam recuado e os incrédulos que ficaram lutavam contra os filhos de albos e os traidores da terra dos fiordes. Assim sucedeu que, naquele dia, o próprio Tjured desceu dos céus e cobriu os filhos de albos com as trevas eternas. Suas terras desapareceram em uma névoa espessa, restando somente o chão que os fiéis pisavam com seus pés. Fez-se que nunca mais se viu um filho de albos, pois nas trevas eternas os aguardavam os albos, os velhos demônios. E estes seguem com o martírio de seus filhos até os dias de hoje.

Citação da edição de Schoffenburg Volume 45, fólio 123 R.

O último portal

Amanhecera. Nos limites da floresta, humanos e filhos de albos estavam reunidos, olhando para eles na clareira. Farodin e Nuramon estavam de pé diante da cova aberta do amigo, cercados pelos grandes dos filhos de albos: Emerelle, Wengalf, Thorwis, Yulivee e Obilee. Nomja e Giliath também estavam ali. Até mesmo Orgrim e Skanga fizeram questão de prestar as últimas honras ao rei dos humanos. Dos firnstaynenses tinham vindo Beorn e a pálida e jovem rainha, que tivera de ser carregada para perto da cova em uma cadeira.

Farodin e Nuramon olhavam para dentro do buraco estreito. Lá jazia o corpo de seu amigo. Vestia a armadura de Alfadas. As tranças que cortara na batalha tinham sido acomodadas cuidadosamente na terra escura, ao lado de sua cabeça. Seguindo os costumes dos fiordlandeses, no túmulo haviam sido feitas oferendas. Dos firnstaynenses, havia recebido pão, carne-seca e uma caneca cheia de hidromel, coberta com uma tábua de madeira. Haviam dito que Mandred precisaria de provisões, pois os átrios dourados dos deuses ficavam muito longe. Ao seu lado, os centauros lhe haviam oferecido o melhor vinho de Dailos. Dos anões tinha recebido uma luneta e, dos trolls, uma pedra de barin vermelha. Emerelle, por sua vez, lhe presenteara com uma coroa de ouro e prata, que descansava em sua testa e lhe dava um brilho que certamente nenhum soberano humano já tivera. Ao redor do pescoço, Mandred usava duas correntes com amuletos élficos da amizade. Eram presentes de Farodin e Nuramon. Em runas élficas estava escrito: Liuvar Alveredar, paz para o amigo. No amuleto dado por Nuramon havia uma safira incrustada, no de Farodin, um diamante. Os duendes haviam produzido aquelas peças em uma única noite.

Xern aproximou-se e, com um gesto discreto, deu o sinal a quatro guerreiros da guarda pessoal da rainha. Usando suas lanças, eles levaram um tecido branco de seda das fadas até o fundo e o esticaram sobre o corpo do rei morto. Então vieram dois outros guardas, que começaram a cobrir a cova. A terra escura caiu sobre o tecido de seda clara, escondendo o branco da seda cada vez mais até cobri-lo totalmente. A pedra de barin dos trolls reluziu; foi a última luz que atravessou a terra.

Para Farodin, Mandred agora se fora definitivamente. Só tivera em sua vida uma perda que lhe causara mais dor que essa. Todos os filhos de albos que no dia anterior tombaram em combate renasceriam, como depois de toda grande guerra. Um tempo de amor presentearia todas as almas com novos corpos. Mas Mandred e os outros humanos haviam sacrificado sua única vida para vencer a batalha. Isso combinava com Mandred. Ir até mesmo ao covil dos trolls por um amigo!

Uma lágrima escorreu pela face de Farodin ao se lembrar de todas as aventuras que vivera com Mandred, começando pela Caçada dos Elfos, passando pela busca por Guillaume, pelo caminho torturante pelo deserto, pela libertação dos elfos da fortaleza dos trolls, até a última batalha pela Terra dos Albos. De jarl de uma aldeia insignificante, ele se fizera antepassado cercado de lendas da família real das terras do fiorde e indicara a seu povo o caminho para a Terra dos Albos. Para os fiordlandeses, Mandred era o que a primeira Yulivee foi para os elfos de Valemas, o que Wengalf era para os anões e Emerelle para os elfos. Ele sempre retornava a Firnstayn enquanto os séculos se passavam. Vivera a vida de um filho de albos e morrera como herói. As lágrimas de Farodin corriam, mesmo que, com toda a sinceridade, soubesse que o amigo vivera uma vida completa.

Nuramon não conseguia se conformar com a morte de Mandred. Enquanto ainda via o corpo morto do amigo, estava evidente para ele que o companheiro realmente morrera. Mas agora sua vontade era de se debruçar na cova coberta até a metade e puxar o amigo de volta para fora. Ir ao Outro Mundo sem ele parecia-lhe inimaginável. Tinha sido um bom companheiro e seu melhor amigo. Também simplesmente não conseguia acreditar que, para os humanos, tudo terminasse com a morte. Eles viviam na incerteza. Talvez fosse isso o que tornava suas vidas tão preciosas. Ninguém sabia o que acontecia com suas almas depois da morte. Então, todos precisavam dar o melhor de si. Mandred chegara mais longe que qualquer outro humano. Mesmo entre os filhos de albos, poucos podiam olhar para trás e vislumbrar uma existência como aquela.

Nos quase cinquenta anos que Nuramon passou em Firnstayn, tomou consciência de quanto os fiordlandeses veneravam Mandred. Viam nele tanto o antepassado grandioso quanto o guerreiro nativo que não se furtava de entoar com seus descendentes uma canção rude junto com a bebedeira. Nuramon lembrou-se das histórias das mulheres da corte de Firnstayn que escutara naquela época. Mandred, o amante! Isso o fazia sorrir. Ainda se lembrava da noite em que vira o amigo pela primeira vez. Tinha ouvido que o estranho filho de humanos contemplara as mulheres na corte de Emerelle com olhares atrevidos. Por isso, ficara desconfiado dele, temendo que pudesse olhar para Noroelle da mesma maneira. Mal pôs os olhos no guerreiro do norte e o ouviu falar, não pôde evitar gostar dele. Enquanto se entregava a esses pensamentos, Nuramon observava a cova de seu amigo ser lentamente preenchida.

Ao terminarem seu trabalho, os guardas pessoais da rainha recuaram. Então Xern se aproximou do túmulo e abriu a mão. Exibiu uma bolota, que fez Nuramon se lembrar das palavras de Yulivee na noite anterior à última batalha.

O mestre da corte disse:

— Esta é uma bolota de Atta Aikhjarto. Na nova Terra dos Albos que floresce, ele também será o mais velho dos carvalhos com alma, da mesma forma como Mandred era o humano mais velho da Terra dos Albos.

Xern ajoelhou-se junto à sepultura, curvando sua enorme galhada para a frente. Abriu uma fenda com as mãos e, como quem leva uma criança que acabara de ninar ao berço, cuidadosamente acomodou a bolota. Então cobriu-a com terra. Depois de se reerguer, disse solenemente:

— Aqui a alma do velho pai dos carvalhos se unirá ao corpo do grande filho de humanos. Em sua sabedoria, Atta Aikhjarto presenteou Mandred com uma porção do seu poder, pois viu este dia distante e soube do destino do filho de humanos. E soube que aqui, sobre o corpo de Mandred, começaria uma nova vida para a sua alma. As raízes de Aikhjarto envolverão Mandred e acolherão em si o que restar do filho de humanos. Um novo ser nascerá. E esta clareira deve pertencer a ele. A estrela de albos daqui, a partir de agora, é de Mandred Aikhjarto.

Xern afastou-se da cova e contemplou Farodin e Nuramon com firmeza.

Então Emerelle se aproximou, segurou a mão da jovem rainha Gishild e disse:

— Mandred viveu como um filho de albos e morreu como um de nossos heróis. Como ele, de hoje em diante queremos considerar filhos de albos todos os humanos. Mesmo os mais sábios entre nós não conhecem os vossos segredos. Não sabemos de onde vocês vieram, nem para onde vocês irão. Mas o meu coração se alegraria se aquilo que vocês, fiordlandeses, chamam de átrio dourado dos deuses, não fosse nada mais que o luar. Se isso for verdade, um dia a alma de Mandred estará lá, a esperar por todos nós, mesmo que tenha sido preciso deixar seu corpo para trás aqui.

As lágrimas vieram a Nuramon mais uma vez. O pensamento de rever Mandred no luar o comovia. Acreditava firmemente nisso. As almas não desapareciam assim tão simplesmente. Mesmo que quase todos os filhos de albos desaparecessem para o luar com seus corpos e até mesmo com o que carregavam com ele, dizia-se que justamente as árvores com alma deixavam para trás o corpo para pairar até o luar. Nuramon acreditava que, com Mandred, aconteceria do mesmo modo.

Farodin olhou para o lugar onde Xern enterrara a bolota. Nuramon e ele sempre haviam se perguntado de que forma a magia de Atta Aikhjarto mudara Mandred. Agora, no fim do caminho, tinham recebido a resposta. Desde o dia em que viera à Terra dos Albos, Mandred esteve ligado ao velho carvalho. Agora, seu corpo se uniria à alma dele.

A rainha tocou Farodin e Nuramon nos ombros.

— Meus dois amigos leais: agora é a hora da despedida. O feitiço continua, e as trilhas albas para o Outro Mundo estão se tornando mais fracas. Mas vocês ainda têm tempo para dar seu adeus a todos. Venham!

Emerelle puxou os dois pela mão e levou-os até os cavalos, passando pelo meio da clareira e pelo grupo em luto.

Durante a noite, Farodin e Nuramon conversaram sobre Felbion e o cavalo baio. Decidiram deixá-los. Ambos tinham sido companheiros fiéis e mereciam descansar na Terra dos Albos. Acomodaram as coisas que queriam levar em grandes bolsas de linho, que podiam ser carregadas confortavelmente sobre os ombros. Agora confiavam os cavalos a Yulivee. Para sua surpresa, eles pareciam até gostar da ideia de ficar com a elfa.

— Com você eles continuarão em boas mãos — disse Nuramon para a feiticeira ao aproximar-se dela, enquanto Farodin ia até seus parentes.

Ela vestia trajes vermelhos de luto, como era habitual em Valemas; eram de corte amplo e feitos do mais fino tecido.

— Agora precisamos nos despedir. Você foi uma boa irmã para mim, mesmo que nosso tempo juntos tenha sido curto. Tudo o que me pertencia agora é seu. Você carrega o meu legado, irmã.

— Eu o carregarei com dignidade — respondeu Yulivee com seu sorriso divertido. — E eu escreverei uma saga: A saga do elfo Nuramon. Ela será muito lisonjeira. Será uma longa narrativa, do seu nascimento até este momento. Depois eu a recitarei nas cortes. Assim seus feitos e de seus companheiros serão enaltecidos para sempre.

— Quando era criança, você já era uma boa contadora de histórias — respondeu Nuramon.

Ela sorriu outra vez.

— Eu puxei totalmente o meu irmão.

Nuramon recordou-se do dia em que encontrou Yulivee pela primeira vez.

— Eu me pergunto que fim levaram o dschinn e os guardiões do saber.

— Os humanos aniquilaram a biblioteca.

Nuramon baixou o olhar.

Yulivee pousou a mão sob seu queixo e ergueu sua cabeça.

— Eu já contei a história da valente Yulivee, que partiu para encontrar na Terra dos Albos as almas dos dschinns e dos guardiões do saber? Já fiz isso? Não? — Ela sorriu. — Eu encontrei todas elas e as levei para Valemas. Lá, nós construímos uma biblioteca. O velho saber não se perdeu. Um dia essas almas se lembrarão de sua vida anterior.

Nuramon enlaçou-a com os braços.

— Você é única, Yulivee. Adeus!

Ela beijou-o na testa.

— Mande minhas saudações a Noroelle. E fique longe dos cavaleiros da ordem!

— Vou ficar! — prometeu Nuramon.

Nomja aproximou-se. Vestia roupas azul-claras de tecido pesado, como todos os alvemerenses naquele dia de luto. Segurava o velho arco de Nuramon nas mãos.

— Você deveria levá-lo. Ele prestará bons serviços.

Nuramon sacudiu a cabeça.

— Não, ele pode ser um símbolo para você se quiser. Eu alcancei a lembrança das minhas vidas anteriores e você também é capaz. Então, vai se lembrar do nosso tempo no mundo dos homens. A morte que a atingiu lá desvanecerá, e certamente parecerá heroica.

— E o arco deve ser um símbolo disso?

— Você nunca precisará estirá-lo. O arco e a corda são sempre um só, assim como a alma e a vida.

Nomja balançou a cabeça afirmativamente.

— Eu entendo... O caminho para a memória é longo. Mas eu o percorrerei, Nuramon.

— Adeus, Nomja! — O elfo abraçou-a: — Você foi uma boa companheira de luta para mim. E também uma amiga.

— Nuramon! — chamou uma voz conhecida.

Wengalf aproximou-se com Thorwis. O rei usava uma armadura dourada e o feiticeiro anão, uma toga negra.

Nuramon agachou-se e pôs a mão no ombro de seu velho amigo.

— Obrigado por tudo, Wengalf.

Os olhos do rei cintilaram.

— Eu contarei a Alwerich sobre este dia quando ele renascer. Ele certamente gostaria de ter estado presente.

— Diga a ele que eu jamais esquecerei o seu último ato heroico. E diga a Solstane que sinto muito.

— Farei isso.

— Agora você conhece o segredo das suas espadas? — perguntou Thorwis.

— Sim. Emerelle me contou tudo. E minhas lembranças aos poucos estão se ordenando. Eu devo a vocês, anões, o que sou hoje. Vivam bem em seus velhos salões e não se esqueçam de mim.

Enquanto Nuramon se despedia do seu clã, Farodin deparou-se de Giliath. A guerreira sorriu para ele.

Eles haviam se encontrado no raiar do dia diante do castelo de Emerelle e Giliath vencera o duelo. Tinha lhe aplicado um golpe na bochecha que decidira a luta.

— Em Valemas é costume atender a um pedido de um amigo antes de partir — disse ela.

— O que é? — perguntou ele, sorrindo de volta. — Você quer mais um duelo?

Ela balançou a cabeça.

— Não, essa rixa está definitivamente resolvida. Se um dos meus filhos for menino, posso dar o seu nome a ele?

— E quantos filhos você quer ter?

— Uma longa guerra terminou, Farodin. A morte encontrou um fim e o tempo do viver despontou. Inúmeras almas querem renascer.

O sorriso dela alcançou Nuramon. Ele virou-se e seu olhar recaiu sobre Obilee, que estava afastada como se quisesse observar os acontecimentos de uma distância segura. Também vestia o traje azul dos alvemerenses. O elfo aproximou-se dela.

— Você gostaria de se despedir de mim só de longe? — perguntou ele.

— É só que... — começou ela em voz baixa. — Eu sinto muito pelo que disse naquela noite. Eu devia ter me calado. Não devia ter aceitado aquele instante que você me deu.

— Não diga isso, Obilee. O instante foi seu, e não houve nada de ruim nele. — Segurou a mão da elfa: — Guarde aquele momento na sua lembrança como algo bonito. Agora, Farodin e eu vamos partir. Um dia seremos fortes o bastante para libertar Noroelle. Não se preocupe conosco; em vez disso, lembre-se sempre de que viveremos no Outro Mundo afastados de todo o mal e que pensaremos em você e em todos os outros. Vamos imaginar o seu encontro com um elfo incrível e como você se apaixonará por ele. Vamos nos perguntar quantos filhos você vai ter e se eles vão puxar a mãe. Um dia nos veremos novamente no luar e, então, vamos saber de você o que realmente aconteceu.

Ele abraçou-a afetuosamente.

— Obrigada — murmurou ela.

Junto com Farodin, Nuramon então apresentou-se à rainha, que estava reunida com os outros na estrela alba. Lá havia uma pedra plana e redonda no chão. Nela, as trilhas se encontravam.

Emerelle usava um vestido verde com bordados vermelhos. Recebeu os dois e disse:

— Meus dois guerreiros fiéis, vejo que já fizeram suas despedidas. Aqui está o portal de vocês, o último para o Outro Mundo.

No disco de pedra ao lado da rainha surgiu um fio de luz, que se abriu formando uma grande parede, esticada de uma ponta a outra da rocha.

— Vocês serão os últimos a ir da Terra dos Albos para o Outro Mundo. Adeus, e vivam bem, meus escudeiros!

Na ponta dos pés, beijou ambos na testa.

— Viva bem você também, Emerelle — disse Farodin. — Você é uma boa rainha para nós. Não nos arrependemos de ter sacrificado a pedra alba por tudo isso. — E apontando para as copas das árvores: — Deixar a Terra dos Albos sabendo que ela sempre florescerá me tranquiliza.

Nuramon curvou-se sobre o joelho diante de Emerelle, apanhou sua mão e beijou-a, como antes era hábito na corte.

— Agradeço à minha rainha por sempre ter feito o que o destino exigia. — Então levantou-se e disse: — À antiga companheira de luta, no entanto, gostaria de agradecer pelo tempo em Ischemon.

Farodin admirou-se com as palavras de seu companheiro. Era verdade que a rainha um dia estivera em Ischemon, mas já fazia tanto tempo que somente as lendas ainda contavam isso.

Nuramon não se deixou desconcertar e continuou falando:

— Agradeço pelo caminho pelo qual você me conduziu e que agora deixa a Terra dos Albos. Adeus, Emerelle!

Os dois companheiros já estavam prestes a entrar pelo portal quando a rainha dirigiu-se a eles mais uma vez.

— Esperem mais um momento! Eu não posso deixá-los ir. Não sem levarem minhas desculpas com vocês no caminho.

Das pregas do seu traje, a rainha tirou algo que fez Farodin e Nuramon ficarem paralisados. Era uma ampulheta, quase totalmente cheia de areia!

Sussurros percorreram a floresta. Nuramon viu que somente Yulivee e Xern não pareciam surpresos.

— Essa é a ampulheta com que exilou Noroelle?

— Sim. Eu a quebrei na pedra. Muito da areia e também os cacos trouxe comigo. Escondi tudo bem fundo sob o meu castelo, onde vocês não poderiam encontrar. Sabia que chegaria o dia em que gostaria de dá-la a vocês. Mas, até hoje, eu tive de ser a rainha fria para que tudo o que aconteceu pudesse acontecer.

Voltou-se então para Farodin:

— Dê-me a areia da sua garrafinha!

Emerelle abriu a tampa da ampulheta e Farodin deixou o conteúdo do pequeno recipiente prateado escorregar para dentro dela. Então guardou a garrafinha de volta e viu a rainha recolocar a tampa na ampulheta.

Emerelle disse:

— Ainda falta muita areia. Mas vocês não precisarão do restante para abrir o portal. Isto quebrará a barreira do feitiço. Vocês dois e Noroelle serão os últimos filhos de albos no Outro Mundo. Busquem a trilha do vosso destino. Mas não ajam de forma insensata, pois, se morrerem, não renascerão junto de nós. O luar, contudo, estará ao alcance de vocês no Outro Mundo. Esforcem-se para isso! Procurem o vosso destino! — disse, estendendo o vidro a Farodin.

Com as mãos trêmulas, o elfo pegou a ampulheta. Trocou um olhar com Nuramon, que ainda continuava como se entorpecido.

— Nós agradecemos, Emerelle! — foi tudo o que Farodin conseguiu dizer.

Lançou um último olhar para Giliath e Orgrim, a quem o desejo de vingança não o prendia mais. Eles sorriram para o elfo. O rei dos trolls até foi capaz de acenar com seus enormes braços.

— Vão! As trilhas para o Outro Mundo estão quase apagadas. Vocês têm de partir agora, ou terão de ficar para sempre.

Nuramon pousou a mão no ombro de Farodin.

— Venha!

O companheiro fitou-o e balançou a cabeça com um sorriso. Então, os dois avançaram lado a lado para dentro da luz. Nuramon tinha decidido não olhar mais para trás, mas quando estava cercado pelo brilho do portal, não conseguiu evitar olhar por cima do ombro. Ali em pé, sorrindo para eles, estavam Emerelle, Yulivee, Obilee, Nomja, seus parentes e Wengalf. Junto ao túmulo de Mandred estava Xern, que o seguia com um olhar solene. Nuramon queria guardar todos esses rostos na memória para sempre. Lentamente, a clareira apagou-se atrás dele, e assim desapareceram todos a quem havia se afeiçoado. Restou somente o branco do portal que ele agora atravessava.

Seus olhos jamais reveriam a Terra dos Albos.

O luar

Pacientemente, esperavam a maré baixar. Farodin estava sentado, encostado em uma árvore, e Nuramon, na pedra em que um dia Emerelle quebrara a ampulheta. Ambos deixavam os anos que haviam ficado para trás passarem novamente diante de seus olhos.

Farodin pensou na última vez que vira Noroelle. Ela estava com muito medo e temia que algo pudesse acontecer a eles. Quem teria imaginado, na época, que seria a ela que algo poderia ocorrer?

Nuramon olhava bem para trás, para o princípio da sua existência, que já vira tantas vidas. Lembrou-se de ter sido companheiro de luta da rainha, pai de Gaomee e amigo de Alwerich e Wengalf. Mas nada significava mais para ele do que a vida que vivia agora. Por mais brilhantes que alguns dos acontecimentos anteriores também pudessem parecer, nada fora capaz de comovê-lo tanto como as aventuras dos últimos anos.

Farodin acariciou a ampulheta, que descansava a seu lado.

— Nossa jornada durou tão poucos anos e, ainda assim, me parece ter sido uma eternidade — disse em voz baixa.

Nuramon sorriu.

— Eu esperei cinquenta anos por você e Mandred. Para mim, esse foi um tempo muito maior do que você acredita.

— Mandred! — disse Farodin, deixando o olhar se perder no vazio. — Será que a suposição da rainha está correta?

— Eu acho que a alma de Mandred foi para o luar, assim como a de uma árvore. Eu queria que ele estivesse aqui, no fim do nosso caminho. Sinto falta dele. E da sua língua solta.

Nuramon jamais se esqueceria de como Mandred atormentara seu filho Alfadas com exercícios com o machado, ou de como queria o porão de vinhos em Iskendria inteiro para ele.

Enfim, suspirou e olhou para a água.

— Estou com medo. O que espera por nós do outro lado?

— Eu não sei — respondeu Farodin. — Só me resta esperar que Noroelle não tenha sofrido demais e que, em vez disso, o seu ser maravilhoso tenha feito o lugar do outro lado do portal florescer.

Ele imaginara algumas vezes como Noroelle estaria vivendo em seu pequeno caco do Mundo Partido. Com certeza não estava esperando por eles; havia se resignado com o seu destino.

Nuramon olhou para os mariscos e lembrou-se da última vez que haviam estado ali. Tinham fracassado de forma lastimável diante do poder da barreira. Agora, nada mais os deteria.

— A maré baixou! — disse Farodin, levantando-se.

Nuramon concordou em silêncio e pôs-se de pé da mesma forma.

Eles caminharam até os mariscos sobre a areia acidentada e ficaram ali parados por um bom tempo. Agora que haviam chegado tão longe, não tinham pressa para fazer o feitiço. Para Noroelle, mais de mil anos tinham se passado. Que diferença faria esse momento de calma?

Por fim, os dois elfos trocaram um olhar e puseram-se ao trabalho. Farodin pousou a ampulheta no círculo de mariscos. Então perguntou:

— Você ou eu?

Como resposta, Nuramon estendeu a mão a Farodin, que concordou, balançando a cabeça. Eles abririam o portal juntos.

Fecharam os olhos. Cada um viu a estrela dos albos à sua maneira. A trilha para a Terra dos Albos estava para sempre apagada. Ao tecerem o feitiço, sentiram que a barreira de Emerelle havia desaparecido. Tinham aberto tantos portais que, afinal, não seria difícil abrir este também. Mas não era a mesma coisa. Todos os anos passados tinham sido unicamente por causa deste portal. Finalmente, já não haveria mais nada que os separasse de sua amada.

Quando abriram os olhos, viram o portal de luz diante deles. E os dois novamente hesitaram.

Nuramon abanou a cabeça.

— Um caminho tão difícil, e agora só falta um passo para alcançarmos o nosso objetivo?

Farodin sentia o mesmo.

— Vamos lado a lado... amigo.

— Sim... amigo — concordou Nuramon.

Atravessaram o portal juntos e tiveram a sensação de cair. Então sentiram sob os pés o acidentado leito do mar, mas, em vez de água, estavam de pé em uma névoa que lhes batia nos tornozelos. Diante deles havia uma ilha cercada pelo mar de névoa, que se confundia com a escuridão. Na ilha havia uma floresta cujas árvores estavam cobertas de musgo. Gorjeios baixos de pássaros chegavam até o baixio onde estavam. Uma luz esverdeada pairava sobre a floresta, parecendo um véu fino flutuando no vento sob as copas das árvores.

Farodin e Nuramon aproximavam-se lentamente da ilha. Seus passos chapinhavam sobre o chão úmido.

Nuramon inspirou fundo.

— Esse perfume!

Farodin soube imediatamente o que Nuramon queria dizer. Era o aroma da nascente de Noroelle.

— Ela está aqui!

Mal haviam posto os pés sobre a areia da praia, ouviram uma voz que cantava uma canção sonhadora e melancólica. Era a voz de Noroelle! Quantas noites haviam se sentado na grama ao ar livre, escutando o canto de sua amada...

Embora soubessem que Noroelle estava por perto, não se apressaram: em vez disso, davam passos refletidos um depois do outro enquanto olhavam ao redor. De fato, tinham ouvido pássaros, mas não conseguiam ver nenhum. Da luz verde sobre eles desciam nuvens de névoa muito fina, dando à floresta uma aura de mistério. As árvores dali ficavam tão próximas umas das outras que suas raízes se entrecruzavam. Nodosas, projetavam-se para fora da terra.

Chegavam cada vez mais perto do canto. Quando finalmente adentraram a borda de uma pequena clareira, ficaram paralisados no meio do movimento. Ali à frente deles estava Noroelle, sentada em uma pedra branca. Estava de costas para eles, e parecia olhar para seus pés dentro de um pequeno lago. Seus cabelos escuros passavam bastante dos ombros. Tinham crescido desde que Farodin e Nuramon a viram pela última vez.

Farodin estava encantado. Em seus ouvidos, o canto tinha mudado. A voz dela ainda era a mesma, mas cantava a melodia como Aileen gostava de fazer quando achava que estava sozinha. Cantava alguns versos e então continuava murmurando a melodia.

Finalmente haviam chegado. Somente por aquele instante, todos os esforços e perigos já tinham valido a pena. O peso de uma vida inteira caiu dos ombros de Farodin.

Foi Nuramon quem se aventurou a dirigir a palavra a Noroelle. Ele disse:

Oh, veja, graciosa filha de albos!

Noroelle estremeceu. Seria uma voz que ela não tinha criado com um feitiço? Ela redobrou a atenção, mas nada veio a seguir. No entanto, logo sentiu que havia alguém ali. Ela se levantou. Quando deu meia-volta, não acreditou no que seus olhos viram.

— Por todos os albos! Isso é uma ilusão? Um feitiço da minha saudade? Oh, doce saudade! Mas que presente o seu!

Aquilo atingiu Farodin e Nuramon como um raio: ver novamente as maravilhosas feições de sua amada. Ela não estava diferente. Tinha a mesma aparência daquele dia em que precisaram se separar dela para partir para a caçada ao devanthar. Usava um vestido branco e, adornando o belo colo, uma corrente de grama trançada, onde estava presa uma água-marinha.

— Você está enganada, Noroelle — disse Farodin com voz suave. — Somos nós mesmos!

— Nós viemos para libertá-la — completou Nuramon.

Noroelle balançou a cabeça, incrédula. Não era possível! Emerelle deixara-lhe claro que não haveria esperanças. Como os seus amados teriam encontrado um caminho até ela? Aproximou-se dos dois com receio; então parou e fitou-os longamente antes de estender as mãos trêmulas para eles. Passou-as por seus rostos, prendendo a respiração. Seu olhar vagueava entre suas mãos, para lá e para cá. Simplesmente não podia acreditar que estava realmente tocando as faces de seus amados. Acariciou a única mecha branca no cabelo de Nuramon. Ele estava mudado. Farodin, por sua vez, estava exatamente como antes.

— O que vocês tiveram de enfrentar para chegar até aqui? — Ela soltou-se de seus amados e deu um passo para trás. — Que horrores vocês tiveram de atravessar para me salvar? — disse, começando a chorar.

Nuramon e Farodin seguraram suas mãos, mas não ousaram dizer nada. Somente contemplaram Noroelle. Doía-lhes ver suas lágrimas correrem.

— Desculpem — disse a elfa. — Vocês vêm até mim e eu choro como se fosse um desastre. — Ela sorriu com esforço. — Mas entendam que eu jamais...

Nuramon pousou suavemente o dedo sobre a boca de Noroelle.

— Nós a entendemos!

Ela beijou a mão de Nuramon, e depois a de Farodin. Então sorriu aliviada.

— Levem-me para fora, para o Outro Mundo, meus amados! Deem um fim nisso!

Farodin e Nuramon caminharam lentamente, com ela entre eles, através da floresta.

De repente, Nuramon parou.

— O que foi? — perguntou Farodin.

Nuramon fitou Noroelle nos olhos.

— Nossa busca está no fim. — Lentamente sacou a espada de Gaomee. — Eu carrego esta arma desde aquela noite antes da partida da Caçada dos Elfos. Ela me acompanhou por toda a nossa longa viagem. Mas agora começa um novo caminho.

Ele fincou a arma no chão. Então retornou para o lado de Noroelle e Farodin, para seguir em direção à estrela alba.

O olhar de Noroelle passeava entre seus dois amados. Tanto tempo havia se passado, mas para ela era como se os três tivessem estado há pouco sentados junto a seu lago, sob a sombra das tílias.

Nuramon não conseguia acreditar na sua felicidade. Tocar sua amada novamente depois de todos aqueles anos, ouvir sua voz, ver o seu semblante e sentir o seu perfume! Mesmo que tivesse acreditado firmemente que um dia estaria ali e poderia viver exatamente o que acontecia agora, de repente lhe parecia que tudo aquilo só podia ser um sonho.

Para Farodin, foi inevitável pensar em como ele e Noroelle tinham vivido o tempo de forma diferente. Para ele, somente poucos anos haviam se passado; para Noroelle, séculos. Não teria se admirado se ela estivesse diferente. Para a sua surpresa, tinha a sensação de que ainda era a mesma daquela época, quando se despediram antes da Caçada dos Elfos.

Eles deixaram a ilha, caminharam pelo mar de névoa e chegaram à estrela. Nuramon e Farodin estavam prestes a abrir o portal novamente, quando Noroelle os deteve.

— Deixem-me fazer esse feitiço.

Ela lembrou-se da última vez que o fizera. Havia aberto o portal para fugir com seu filho para o mundo dos humanos.

Farodin e Nuramon recuaram e contemplaram sua amada. O Carvalho dos Faunos ensinara-lhes muito da arte de Noroelle.

Ela olhou para cima. Não havia sol. Teria de fazer sem a ajuda do astro. Então fechou os olhos, sentiu as trilhas albas e deixou seus próprios poderes mágicos fluírem por seu curso. Conseguia sentir a magia se espalhar sobre as trilhas à sua volta. Então abriu os olhos e sorriu.

Farodin e Nuramon ficaram surpresos ao perceber que tudo ao redor deles se transformava. Foi ficando mais claro; a névoa desapareceu e o chão deformou-se levemente. Ao longe, florestas e montanhas saíram da escuridão e a ilha cercada de luz verde transformou-se na ilha do mundo dos humanos. O céu tornou-se azul-escuro. Estava anoitecendo, as estrelas surgiam no céu. Nuramon e Farodin estavam ali de pé, admirados. Como o feitiço dos portais de sua amada era poderoso!

Noroelle inspirou profundamente.

— É maravilhoso.

Ela viu a ampulheta no círculo de mariscos, apanhou-a e foi em frente até a ilha. Parou junto à pedra, e olhou de volta para a estrela alba.

— A rainha estava aqui quando abriu o portal e me mandou embora. Ela quebrou a ampulheta na pedra e a areia se espalhou. Agora esse ciclo também se fecha. — E apontando para a floresta: — Ali, na pequena clareira, Emerelle me disse que todas as esperanças deveriam ser esquecidas. Eu perderia tudo, até mesmo o luar. E ela me disse isso tão afetuosamente, como se não fosse ela quem me proferia a sentença... Vamos até lá!

Ela avançou. Seus amados pegaram as bolsas que haviam deixado na borda da floresta e a seguiram.

Chegaram à clareira do outro lado da ilha. Ali Farodin e Nuramon tinham há muito tempo armado seu acampamento com os companheiros. Nada lembrava mais aquilo.

— Vamos nos sentar aqui — disse Noroelle. Ela tomou as mãos dos amados e, juntos, sentaram-se na grama alta. — Contem-me tudo o que vocês viveram. Tudo. Eu gostaria de saber.

Nuramon tirou de sua bolsa duas pedras de barin que Wengalf lhe dera na última noite e colocou-as na grama. Lançou um olhar de interrogação para Farodin, que consentiu com a cabeça. Então começou:

— Quando nós atravessamos o portal junto a Atta Aikhjarto e viemos para o Outro Mundo, percebi o quanto estes campos são diferentes da nossa pátria. O ar era turvo e, à primeira vista, as coisas não pareciam se encaixar. Nós encontramos a pista do homem-javali. No entanto, quando a noite veio e acampamos em uma floresta, começou o desastre.

Farodin escutava as palavras de Nuramon e foi ficando totalmente envolvido. Seu companheiro narrava com uma voz que não se podia comparar a nenhuma outra. Invejava-o um pouco por isso. Sem hesitar, Nuramon descreveu a Noroelle em todos os detalhes os eventos e horrores daquela noite. Farodin podia ver no rosto da amada o quanto a narrativa a sensibilizava. Ela agarrava a água-marinha que usava na corrente trançada e, o tempo todo, prendia a respiração. A narração da cura de Farodin pelas mãos de Nuramon a fez tremer. E Farodin sentia seu próprio coração batendo forte. Nunca vira aquela história da forma como agora era narrada por seu companheiro. Quando falou do retorno para a Terra dos Albos, de Obilee e sua recepção no terraço, Nuramon perguntou como Farodin vivenciara aquele momento. A partir daí, os dois companheiros alternaram-se para narrar a história.

A atenção de Noroelle se prendia a cada palavra que seus amados pronunciavam. Logo estavam se revezando de forma tão harmônica que parecia que tinham estudado a grande epopeia cada dia do último século. Quando lhe contaram dos sofrimentos pelos quais passaram, os olhos dela enchiam-se de lágrimas. E, quando contavam dos casos de Mandred, então era-lhe inevitável sorrir, mesmo quando os episódios eram fortes e seus amados eram obrigados a dizer palavras que outrora a teriam chocado. Narraram até tarde, noite adentro.

Foi Nuramon quem terminou:

— A rainha nos disse que nós três seríamos os últimos filhos de albos no Outro Mundo. Em seguida, atravessamos o portal. A trilha para a Terra dos Albos desvaneceu e, com o passo que demos para o Mundo Partido, a nossa busca terminou. E essa é a história de Noroelle, a feiticeira; de Farodin, o grande herói; de Nuramon, a alma antiga; e de Mandred Torgridson, o filho de humanos.

Ficaram um tempo calados, olhando uns para os outros Noroelle queria que esse momento pudesse durar para sempre. Deixava os acontecimentos passarem mais uma vez diante dos olhos.

— Eu queria poder agradecer a Mandred! Eu só o vi rápidamente, mas as palavras de vocês também o tornaram um companheiro meu. Talvez as portas do luar realmente estejam abertas para os humanos. E vocês dois, meus queridos, fizeram mais do que qualquer um poderia esperar. Eu lhes dei as pedras para protegê-los do devanthar. Jamais teria esperado que vocês procurariam por mim e me libertariam. — Ela afastou uma mecha de cabelo do rosto. — Estou feliz por vocês, pois serão para sempre heróis na Terra dos Albos. Estou contente principalmente por você, Nuramon. Você encontrou a sua memória e agora sabe o que eu sempre senti: que você é mais do que parece. Ao longo de todos os anos, lá no meu pequeno mundo, eu aprendi a olhar para dentro de mim mesma. Também sou mais do que pareço, pois carrego em mim a alma de uma elfa que morreu.

Com isso Nuramon não contara.

— Você também se lembra das suas vidas anteriores?

— Sim. Antes eu me chamava Aileen. Como muitos outros, eu morri nas Guerras dos Trolls, junto à Shalyn Falah. Dolgrim, o duque dos trolls, foi quem me matou.

Farodin desviou o olhar de Noroelle. Sua amada se lembrava da vida anterior! Então também devia se lembrar dele.

Noroelle acariciou a face de Farodin.

— Por que não me disse? Por que não disse que carrego a alma de Aileen em mim?

— Eu não queria que você me amasse por causa de um antigo compromisso.

— Então você silenciou pelo motivo certo. Naquele tempo, prometi amor eterno a você. Mas eu era Aileen, e como Noroelle fiz novas promessas a vocês dois. Eu disse a vocês que tomaria a minha decisão quando retornassem da Caçada dos Elfos. E então eu a deixei em aberto, porque pensei que jamais reveria vocês. Queria poder escolher vocês dois. Agora, que nós somos os únicos filhos de albos neste mundo, este certamente seria um caminho prudente. Mas para mim foi revelado a quem meu coração pertence, e o que acontecerá se eu me declarar para ele.

Farodin ficou inquieto. Tinham se preocupado com Noroelle por tanto tempo que sua decisão havia se tornado menos importante. Agora eles retornavam ao caminho onde tinham estado naquela época do início da Caçada dos Elfos. E não havia mais segredos entre eles. Agora tudo se decidiria: a busca dele por Aileen, e depois a busca por Noroelle... Enfim, se colheria o que plantou a vida inteira.

Nuramon ainda estava surpreso por Farodin já ter conhecido Noroelle como Aileen. Lembrou-se da briga em Iskendria, quando fizera muitas acusações ao amigo por não ter sido capaz de se abrir para Noroelle por tanto tempo. Agora ele entendia o porquê de ele ter agido assim.

— Vejo o quanto minhas palavras mexeram com vocês — disse Noroelle. — Vocês dois mereceriam ter um amor realizado. Quem poderia ter ido tão longe quanto vocês? Qual amada de trovador um dia já recebeu uma dedicação como essa? Mas eu não posso amar por gratidão.

Então, segurou a mão de Farodin e continuou:

— Você é o homem que eu amei na época em que era Aileen. Você era tudo o que eu queria naquele tempo. Mas já faz muito tempo que sou Noroelle. E Noroelle é muito mais do que Aileen já foi. Encare-me como uma elfa que mudou ao longo dos séculos; que não continuou a mesma. Até você mudou desde que nos despedimos na partida da Caçada dos Elfos. Você não esconde mais os seus sentimentos.

Agora era a mão de Nuramon que ela segurava:

— E você cresceu como eu sempre desejei. Como eu, agora você é muito mais do que naquele tempo. Eu consigo entender como você se sentiu quando suas lembranças vieram à tona. A pergunta é: será que naquela época Farodin e eu fomos destinados um para o outro? Ou será que já tivemos o nosso tempo? E será que Aileen era a amada de Farodin, e Noroelle é a de Nuramon? Eu conheço a resposta. Depois de todos esses anos que passaram, vocês devem ouvi-la.

Ela olhou em volta na clareira.

— Aqui a rainha me revelou que um de vocês é o meu destino. Ela me disse: “Qualquer que fosse aquele que você escolhesse, com ele você iria para o luar. Mas agora isso jamais acontecerá”. Eu não sei se na época a rainha já sabia como isso terminaria. Mas agora vocês estão aqui, e o que uma vez já me pareceu impossível de acontecer está para se tornar realidade. Eu fiz a minha escolha. É você...

Ela olhou para Farodin, e ele não soube se isso era bom ou ruim. É você! Será que ele era o seu escolhido ou aquele que ela recusava? Seu coração pulava.

— O destino nos fez um para o outro, desde o primeiro dia — completou Noroelle. — Nós partiremos para o luar juntos.

Um peso enorme saiu dos ombros de Farodin. Aquele era o momento pelo qual esperara a vida toda. Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Ele olhou para Nuramon e viu o olhar vazio de seu companheiro.

As palavras de Noroelle ainda ecoavam nos pensamentos de Nuramon. Ela partiria para o luar com Farodin? E ele ficaria ali, sozinho, separado para sempre da Terra dos Albos? Ficaria prisioneiro em um mundo imenso. Estava dominado por seus sentimentos. Desespero e medo fizeram lágrimas surgirem em seus olhos.

Noroelle aproximou-se dele e pousou a mão sobre seu ombro.

— Eu sinto muito, Nuramon — disse em voz baixa.

Para ele, foi difícil encará-la. Mas, ao olhar em seus olhos azuis, retornaram todas as lembranças dos dias à margem de seu lago. Ele vivera vinte anos com a sua afeição e salvara sua amada junto com Farodin.

Noroelle enxugou as lágrimas dele.

— Eu não sou o seu destino, Nuramon. Eu não sou o seu caminho para o luar. Eu o amo como amo Farodin. Mas você não é a minha determinação. E dói em mim saber que você enfrentou todo esse caminho para terminá-lo sozinho. Você me contou sobre Obilee. E eu agradeço pelo momento que você deu a ela e pelas doces palavras que soube lhe dizer. É como um punhal em meu coração saber o quanto ela te ama e como sente a sua falta. Agora, mundos diferentes os separam; mundos que jamais se reencontrarão. E isso tudo por minha causa! Isso eu nunca serei capaz de consertar.

Nuramon acariciou os cabelos de Noroelle.

— Você já fez isso. Só por ter podido vê-la mais uma vez, tudo o que passei valeu a pena.

— Você precisa seguir o caminho que é somente seu. Olhe para dentro de você! Verá que o seu destino é marchar pelos séculos. Não somos nós três os últimos filhos de albos neste mundo. É você.

Ela beijou-o e acariciou sua face. Então soprou-lhe:

— Logo serei só lembrança, exatamente como todo o resto. — Beijou-o novamente: — Eu te amo. Jamais se esqueça, Nuramon!

Ela soltou-se dele e dirigiu-se a Farodin:

— Você esperou por mim tanto tempo. E agora estou desperta, e me lembro de tudo que já aconteceu um dia. — Ela olhou para cima: — Ali! O fim está próximo! A lua está brilhando clara! E eu sinto que está nos chamando, Farodin. É hora de nos despedirmos. Venha!

Ela puxou-o pelas mãos e ajudou-o a se levantar.

Nuramon também se ergueu. Agora ele sabia como Obilee se sentira. Também dissera a ela que não era o seu destino. E ela o deixara partir. Agora precisava fazer o mesmo.

Farodin aproximou-se de Nuramon com sentimento de culpa. Embora tivesse alcançado seu objetivo de vida, doía nele ver seu amigo tão triste e saber que ficaria tão solitário.

— Eu queria que não tivesse de terminar aqui e agora. Eu queria que nós três tivéssemos um século para podermos explorar esse mundo aí fora.

— Olhe para Noroelle — respondeu Nuramon. — E então me diga se você quer qualquer outra coisa diferente do que vocês têm à sua frente agora.

— Você tem razão. Mas vou sentir sua falta.

Nuramon estendeu a mão a Farodin para o cumprimento de guerreiros. Farodin a segurou.

— Adeus, Nuramon! Lembre-se sempre do que nos une.

— Eu jamais me esquecerei — respondeu ele.

— Um dia vamos nos ver no luar. Esperaremos por você, Noroelle e eu. E espero que Mandred já esteja lá.

Nuramon não conteve um sorriso.

— Se estiver, diga a ele que suas proezas tornaram os firnstaynenses filhos de albos.

Eles se abraçaram.

Então Noroelle veio e também enlaçou Nuramon com os braços.

— Uma viagem termina aqui, e uma nova começa. Para todos nós! Adeus, Nuramon!

Noroelle e Farodin se beijaram. Nuramon percebeu que algo havia mudado. Deu um passo para trás e contemplou seu amigo e sua amada. Eles se abraçaram e se beijaram. Ao vê-los, soube que Noroelle tinha razão. Farodin sempre fora a escolha certa. Sentia que, para ele, era quase como se estivesse despertando de um sonho longo e doce.

O aroma de flores soprou sobre a clareira. Nuramon viu uma luz prateada se espalhar e envolver o casal de elfos. Eles sorriram um para o outro e pareciam figuras de luz; seres elevados, ou albos. Então desvaneceram com tudo o que traziam no corpo. Simplesmente sumiram daquele mundo — da mesma forma como a Terra dos Albos desaparecera diante de seus olhos. Agora, restara somente ele.

Estava sozinho. No entanto, não conseguia chorar. Noroelle levara toda a sua tristeza. Saber que ela encontrara o seu destino o tranquilizava. Agora doía muito menos do que antes o fato de ela ter se decidido por Farodin. Ergueu então os olhos para a lua cheia. Será que isso era mesmo o luar? Será que os mortos realmente viviam ali em cima?

Ficou ali de pé até de manhã, seguindo o disco de prata com o olhar.

— Eu nunca me esquecerei do luar — disse para si mesmo em voz baixa.

Quando veio a alvorada, ele apanhou suas coisas, caminhou até a pedra onde Noroelle quebrara a ampulheta e se sentou. Enquanto contavam a história na noite anterior, a maré havia subido e enxaguado os cacos e grãos de areia para longe. Logo a maré baixa estaria novamente próxima.

Lembrou-se das palavras de Noroelle: Uma viagem termina aqui; uma nova começa. Sim, para ele agora realmente começava algo novo. Ele era o último; o último elfo daquele mundo, o último filho de albos. Ali, do outro lado da água, havia uma terra desconhecida que deveria ser explorada. Lá ainda não reinava o cheiro de enxofre. E talvez a fé em Tjured jamais avançaria até ali. Havia novos caminhos, novas experiências e novas memórias a serem encontradas. O infinito estava diante dele; eternamente se lembraria de Noroelle e Farodin, de Obilee e Yulivee, de Mandred e Alwerich, de Emerelle e de todos os outros. Nunca se esqueceria da Terra dos Albos.

Quando a maré baixa retornou, ele pisou sobre o chão acidentado da terra firme. E observou a paisagem como se nunca a tivesse visto antes.

Aquele mundo jamais deixaria de fasciná-lo.

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