O Aprendiz de Morte

Esta é a sala onde são guardados, à luz de velas, todos os marcadores do tempo: prateleiras e mais prateleiras de ampulhetas, cada qual para uma pessoa viva, derramando sua areia fina do futuro ao passado. O chio acumulado dos grãos caindo faz a sala retumbar como o oceano.

Este é o dono da sala, andando com ar de preocupação. Seu nome é Morte.

Mas não qualquer Morte. Este é o Morte cuja esfera particular de ações é, bem, nem um pouco esférica, mas sim o Discworld, que é plano, fica no lombo de quatro elefantes gigantescos — que, por sua vez, sustentam-se sobre a carapaça da enorme tartaruga estelar Grande A'Tuin —, e é contornado por uma queda-d'água a verter no espaço sem fim.

Cientistas calcularam que as chances de uma coisa tão notoriamente absurda acontecer são de uma em um milhão.

Mas os mágicos calcularam que chances de uma em um milhão ocorrem nove a cada dez vezes.

Sobre o chão de ladrilhos brancos e pretos, Morte avança com seus pés de osso, murmurando sob o capuz enquanto passeia os dedos esqueléticos pelas fileiras de ampulhetas em atividade.

Por fim, encontra uma que parece satisfazê-lo, suspende-a da prateleira e a leva até a vela mais próxima. Segura-a de modo a fazê-la reluzir sob a luz e fita o pontinho do brilho refletido.

Com as órbitas cintilantes, avista a tartaruga-mundo, gingando pelas profundezas do espaço com o casco marcado por cometas e meteoros. Um dia, mesmo a Grande A'Tuin vai morrer, Morte sabe disso; agora, seria um desafio.

Mas o foco do olhar se desvia para cima, em direção ao esplendor azul e verde do próprio Disco, a girar lentamente sob o minúsculo Sol.

Então se dirige para a grande cordilheira chamada Ramtops. As Ramtops são repletas de vales profundos, penhascos inusitados e mais características geográficas do que realmente precisariam. Possuem seu próprio clima, cheio de chuvas de pedra, ventos de chicote e tempestades permanentes. Algumas pessoas dizem que é assim porque as Ramtops guardam a magia antiga, selvagem. Não importa, algumas pessoas dizem qualquer bobagem.

Morte pisca os olhos, ajusta o foco. Então vê o terreno gramado das ladeiras que descem no sentido horário das montanhas.

Vê uma certa colina.

Um campo.

Um menino correndo.

Observa.

Então, numa voz que se assemelha a lajes de chumbo caindo sobre granito, diz:

— CERTO.

Não há dúvida de que existia alguma coisa mágica no solo daquela área irregular e montanhosa, solo este que — por causa da estranha tonalidade que dava à flora local — era conhecido como gramado octarina. Por exemplo, esse era um dos poucos lugares do Disco em que havia plantas reanuais.

Reanual é a planta que brota de trás para frente no tempo. Semeamos este ano, e elas brotam no ano passado.

A família de Mortimer havia se especializado em destilar vinho de uvas reanuais. As frutas eram muito poderosas e bastante procuradas por adivinhos, já que obviamente possibilitavam a visão do futuro. O único problema é que a ressaca vinha na manhã anterior, e era preciso beber muito para curá-la.

Em geral, os agricultores de grãos reanuais eram homens grandes e sérios, dados à introspecção e à observação atenta do calendário. O lavrador que descuida de semear grãos comuns só perde a safra, mas o fazendeiro que se esquece de deitar sementes de uma safra que foi colhida doze meses antes arrisca comprometer toda a estrutura da causalidade, sem falar no terrível constrangimento.

Também era terrivelmente constrangedor para a família de Mortimer que o filho mais novo não se mostrasse nem um pouco sério e tivesse o mesmo talento para a horticultura que uma estrela-do-mar morta. Não que fosse irreverente, mas tinha aquele jeito vago e satisfeito de prestar reverência que os homens sérios logo aprendem a detestar. Havia qualquer coisa de contagiante, talvez até fatal, naquilo. Ele era alto, ruivo e sardento, com o tipo de corpo que parece estar apenas ligeiramente sob controle do dono — como se fosse formado por joelhos.

Neste dia em particular, corria pelos campos mais altos, agitando as mãos e gritando.

O pai e o tio de Mortimer observavam com desânimo do alto de um muro de pedra.

— O que eu num entendo — disse o pai, Lezek — é que os pássaros nem voam. Eu voaria se visse aquilo correndo na minha direção.

— Ah. O corpo humano é um negócio maravilhoso. Quer dizer, as pernas dele vão pra todos os lados, mas a velocidade varia bastante.

Mortimer alcançou o fim de um rego. Um pombo gordo desviou lentamente do caminho.

— O coração dele tá no lugar — defendeu Lezek, com cautela.

— Ah, claro. É o resto que num tá.

— É organizado. Não come muito — continuou Lezek.

— Não. Dá pra ver.

Lezek olhou de soslaio para o irmão, que fitava o céu.

— Hamesh, ouvi dizer que tem uma vaga lá na fazenda — disse ele.

— Hum. Peguei um aprendiz.

— Ah — soltou Lezek, com tristeza. — Quando foi isso?

— Ontem — respondeu o irmão, mentindo com a rapidez de uma cascavel. — Tudo acertado. Desculpe. Olha, eu não tenho nada contra o pequeno Mort, entende? Ele é um menino excelente, só que...

— Eu sei, eu sei — cortou Lezek. — Num consegue achar o traseiro nem usando as duas mãos.

Os homens olharam o menino à distância. Ele havia caído. Alguns pombos tinham se aproximado para investigar.

— Ele não é burro — considerou Hamesh. — Não o que chamamos de burro.

— Tem tutano ali dentro — admitiu Lezek. — Às vezes ele começa a pensar tanto que a gente precisa bater na cabeça dele para conseguir chamar sua atenção. A avó ensinou a ler. Acho que superaqueceu a cabeça.

Mortimer havia se levantado e tropeçou na roupa.

— Cê precisa dar um ofício ao menino — sugeriu Hamesh, pensativo. — Talvez o sacerdócio. Ou a profissão de mago. Lêem muito, os magos.

Os irmãos se entreolharam. Em ambas as mentes se insinuou uma vaga idéia do que Mortimer seria capaz de fazer se pusesse as bem-intencionadas mãos num livro de magia.

— Tudo bem — apressou-se em dizer Hamesh. — Então alguma outra coisa. Deve ter um monte de profissões em que ele possa trabalhar.

— O problema é quando começa a pensar demais — advertiu Lezek. — Olhe para ele agora. Ninguém fica pensando em como assustar passarinho, só vai lá e assusta. Quer dizer, um menino normal.

Hamesh coçou o queixo de maneira meditativa.

— Você podia passar o problema adiante — disse.

A fisionomia de Lezek não se alterou, mas houve uma mudança sutil em torno dos olhos.

— Como assim? — perguntou.

— Semana que vem tem a feira de empregos em Serra Ovelha. Cê oferece o garoto como aprendiz, e o novo mestre se encarrega de botá-lo em forma. É a regra. Depois do contrato, o negócio fica amarrado.

Do outro lado do campo, Lezek olhou para o filho, que examinava uma pedra.

— Num quero que nada aconteça a ele — objetou, incerto. — Gostamos muito do menino, minha mulher e eu. A gente se acostuma às pessoas.

— É pro bem do próprio Mort, cê vai ver. Vai fazer dele um homem.

— Ah. Bom. Com certeza tem muita matéria-prima ali — notou Lezek, num suspiro.

Mortimer estava ficando cada vez mais interessado pela pedra. Ela possuía conchas arredondadas, relíquias dos primeiros dias do mundo, quando o Criador fizera criaturas de pedra, ninguém sabia por quê.

Mortimer se interessava por uma porção de coisas. Por exemplo, por que os dentes das pessoas se encaixavam uns nos outros com tamanha perfeição. Ele já passara muito tempo pensando sobre isso. Também havia o enigma de o Sol nascer durante o dia, e não à noite, quando a luz se mostraria vantajosa. Ele conhecia a explicação clássica, que de alguma forma não parecia satisfatória.

Em resumo, Mortimer era uma dessas pessoas que são mais perigosas do que um saco cheio de cobras: estava decidido a descobrir a lógica subjacente ao universo.

O que seria difícil, porque não havia nenhuma. O Criador teve muitas idéias maravilhosas quando inventou o mundo, mas torná-lo compreensível não fora uma delas.

Os heróis trágicos sempre reclamam quando os deuses se interessam por eles, mas são os indivíduos ignorados pelos deuses que enfrentam as provações realmente difíceis.

Como sempre, o pai estava gritando por ele. Mortimer jogou a pedra num pombo, que era quase gordo demais para sair do caminho, e voltou caminhando pelo campo.

E foi por isso que Mortimer e o pai atravessaram as montanhas até Serra Ovelha no Réveillon dos Porcos, com os parcos bens de Mortimer metidos num saco levado ao lombo da mula. A cidade se limitava aos quatro lados de uma praça, alinhados com lojas que ofereciam todas as mercadorias da comunidade rural.

Depois de cinco minutos, Mortimer saiu do alfaiate vestindo uma roupa marrom, larga, indefinida, que compreensivelmente não havia sido reivindicada pelo dono anterior e tinha espaço suficiente para quando ele crescesse, supondo-se que crescesse como um elefante de dezenove patas.

O pai o olhou com ar crítico.

— Muito bom — opinou —, pelo preço.

— Coça — retrucou Mort. — Acho que tem umas coisas aqui dentro.

— Muitos garotos no mundo ficariam felizes por ter uma... — Lezek se deteve e, não achando melhor palavra, desistiu.

— ... roupa boa e quente como essa, meu filho.

— Então posso dividi-la com eles? — perguntou Mort, cheio de esperanças.

— Cê precisa parecer esperto — ressaltou Lezek, com rispidez. — Tem de causar boa impressão, sobressair na multidão.

Não havia dúvida quanto a isso. Ele se sobressairia. Os dois partiram em meio ao ajuntamento de pessoas que abarrotavam a praça, cada qual com seus próprios pensamentos. Em geral, Mortimer gostava de visitar a cidade, com sua atmosfera cosmopolita e os estranhos dialetos de vilarejos que chegavam a ficar três, ou até cinco quilômetros distantes. Mas desta vez ele se sentia incomodado, apreensivo, como se lembrasse de algo que ainda não havia acontecido.


A feira parecia funcionar assim: os homens à procura de trabalho se mantinham em filas desiguais, no meio da praça. Muitos ostentavam pequenos símbolos nos chapéus para mostrar que tipos de trabalho haviam aprendido — pastores usavam fios de lã; carroceiros, mechas de crina de cavalo; decoradores, tiras de curiosos papéis de parede enfeitados; e assim por diante.

Os meninos em busca de aprendizado se amontoavam num dos lados da praça.

— Você fica ali e alguém vem oferecer uma vaga — avisou Lezek, com voz hesitante. — Quer dizer, se gostarem de você.

— Como acontece? — quis saber Mort.

— Bem — respondeu Lezek, e parou.

Hamesh não havia explicado essa parte. Ele recorreu ao conhecimento limitado que tinha da feira livre, que se restringia à venda de gado, e arriscou:

— Devem contar seus dentes. E se certificarem de que você não espirra e os pés estão bons. Eu não falaria nada sobre ler. Chateia as pessoas.

— E depois? — perguntou Mort.

— Depois você aprende o ofício — respondeu Lezek.

— Que ofício?

— Bom... carpintaria é ótimo — arriscou Lezek. — Ou roubo. Alguém tem de fazê-lo.

Mortimer olhou os próprios pés. Era um filho obediente — quando se lembrava — e, se o que esperavam dele era que fosse aprendiz, então seria excelente no negócio. Mas carpintaria não parecia muito promissor: a madeira era inflexível e tinha tendência a se partir. E ladrões oficiais eram raros nas Ramtops, onde o povo não dispunha de dinheiro o bastante para se dar ao luxo de bancá-los.

— Tudo bem — concordou afinal. — Vou tentar. Mas o que acontece se eu não for escolhido?

Lezek coçou a cabeça.

— Num sei — admitiu. — Cê espera até o fim da feira. À meia-noite. Eu acho.

E agora a meia-noite se aproximava.

Uma leve camada de gelo começou a se formar no chão. Na ornamentada torre do relógio que dava para a praça, dois pequenos autômatos elegantemente esculpidos saíram de portinholas no mostrador do relógio e bateram mais um quarto de hora.

Quinze para a meia-noite. Mortimer tremia, mas as chamas rubras da vergonha e da obstinação ardiam dentro dele, mais quentes do que as ladeiras do Inferno. Ele soprou os dedos para ter algo que fazer e fitou o céu gelado, tentando evitar o olhar dos poucos vagabundos que ainda restavam na feira.

A maioria dos mercadores já havia fechado as barracas e ido embora. Até o vendedor de bolo de carne tinha parado de cantar a mercadoria e, sem qualquer preocupação com a segurança pessoal, estava comendo um.

O último dos esperançosos companheiros de Mortimer — um rapaz estrábico com corpo recurvo e nariz escorrendo — havia sumido horas antes. O único mendigo licenciado de Serra Ovelha declarou-o ideal para o serviço. O garoto do outro lado de Mortimer seria fabricante de brinquedos. Um a um, todos haviam se retirado — os pedreiros, ferreiros, assassinos, tanoeiros, negociantes de tecido, trapaceiros e lavradores. Em poucos minutos seria ano-novo, e cem meninos estariam começando suas carreiras, novas vidas de trabalho útil se abrindo à frente deles.

Desconsolado, Mortimer refletia sobre os motivos de não ter sido escolhido. Havia tentado parecer respeitável e olhara todos os possíveis mestres no olho a fim de impressioná-los com sua natureza excelente e ótimas qualidades. Nada pareceu causar o efeito certo.

— Quer bolo de carne? — perguntou o pai. — Não.

— Tá barato.

— Não. Obrigado.

— Ah.

Lezek hesitou.

— Posso perguntar ao vendedor se ele não quer um aprendiz — sugeriu, obsequioso. — Muito seguro, o comércio de alimentos.

— Não acho que ele queira — opinou Mort.

— Não, provavelmente não — concordou Lezek. — É um negócio meio individual, imagino. De qualquer forma, agora ele já se foi. Vou guardar um pouco do meu pra você.

— Não estou com muita fome, papai.

— Quase não tem gordura.

— Não. Mas obrigado mesmo assim.

— Ah.

Lezek suspirou. Pulou um pouco para dar vida aos pés e assobiou sem afinação. Sentia-se na obrigação de dizer alguma coisa, oferecer um conselho, salientar que a vida tinha seus altos e baixos, botar o braço em torno do ombro do filho e conversar extensivamente sobre os problemas da vida, mostrar — em resumo — que o mundo é um lugar antigo e estranho em que não deveríamos jamais, metaforicamente falando, ser tão orgulhosos a ponto de recusar um bolo de carne tão perfeito e bom.

Agora estavam sozinhos. A geada, última do ano, aferrava-se cada vez mais ao chão de pedras.

No alto da torre, uma roda dentada fez “bum”, desengatou uma alavanca, soltou um trinco e deixou cair um peso de chumbo. Houve um terrível chiado metálico, e as portinholas no mostrador do relógio se abriram, liberando os homenzinhos mecânicos. Agitando os martelos como se sofressem de artrite robótica, eles começaram a anunciar o novo dia.

— Bom, é isso — disse Lezek.

Eles teriam de achar algum lugar para dormir. Réveillon dos Porcos não era época de andar pelas montanhas. Talvez houvesse um estábulo em algum lugar...

— Só é meia-noite no último toque — objetou Mort, com frieza.

Lezek encolheu os ombros. A persistência de Mortimer o estava vencendo.

— Tudo bem — disse. — Vamos esperar.

E então ouviram o pocotó a ressoar na praça fria, bem mais alto do que a acústica comum deveria permitir. Aliás, pocotó era uma palavra absurdamente incorreta para o tipo de barulho que vibrava ao redor de Mortimer. Pocotó sugere um pequeno pônei alegre, muito possivelmente usando chapéu de palha com furos para as orelhas. Este som aqui deixava claro que chapéus de palha estavam fora de questão.

O cavalo entrou na praça pela estrada que vinha do Centro, com vapor se desprendendo dos enormes flancos brancos e úmidos, e faíscas saltando do chão. Trotava com elegância, como um cavalo de batalha. Decididamente não usava nenhum chapéu de palha.

O vulto alto em seu dorso estava bem agasalhado contra o frio. Quando o animal alcançou o meio da praça, o cavaleiro desceu, devagar, e mexeu em qualquer coisa atrás da sela. Então trouxe à vista uma cevadeira, prendeu-a as orelhas do bicho e deu-lhe um tapinha no pescoço.

O ar adquiriu uma textura espessa, oleosa, e as sombras ao redor de Mortimer viraram arco-íris roxos e azuis. O cavaleiro avançou na direção dele, com a capa preta a se agitar e os pés a estalarem no chão. Esses eram os únicos sons: o silêncio caiu sobre a praça como grandes montes de algodão.

O efeito geral só foi comprometido por um trecho de gelo escorregadio.

— AH, DROGA.

Não era exatamente uma voz. As palavras sem dúvida estavam ali, mas chegavam à mente de Mortimer sem se incomodar em passar pelos ouvidos.

Ele correu para ajudar o vulto caído e se descobriu pegando um braço que não passava de osso, liso e amarelado como uma velha bola de bilhar. O capuz escorregou para trás, e uma caveira voltou suas cavidades oculares vazias para ele.

Nem tão vazias assim, porém. Bem no fundo, como se fossem janelas que davam para os precipícios do espaço, havia duas minúsculas estrelas azuis.

Ocorreu a Mortimer que ele deveria estar horrorizado. E então ficou ligeiramente chocado ao ver que não estava. Era um esqueleto que se encontrava ali sentado, diante dele, esfregando os joelhos e resmungando. Estava vivo, e era curiosamente impressionante, mas, por alguma estranha razão, não muito assustador.

— OBRIGADO, GAROTO — disse a caveira. — QUAL O SEU NOME?

— Hã — soltou Mort. — Mortimer... senhor. Mas me chamam de Mort.

— QUE COINCIDÊNCIA! — exclamou a caveira. — AJUDE AQUI, POR FAVOR.

Ele se levantou com dificuldade, limpando a roupa. Agora Mortimer podia ver que havia um cinto pesado em torno da cintura, de onde pendia uma espada de punho branco.

— Espero que o senhor não tenha se machucado — arriscou, com educação.

O esqueleto sorriu. É claro, pensou Mortimer, que ele não tem muita escolha.

— ESTÁ TUDO BEM.

A caveira olhou ao redor e pareceu ver Lezek, que dava mostras de estar congelado, pela primeira vez. Mortimer achou que se fazia necessária uma explicação.

— Meu pai — disse, tentando se mover protetoramente para frente dele sem causar nenhum agravo. — Desculpe, mas o senhor é aquele cara que traz a morte?

— QUASE, GAROTO. MAIS PRECISAMENTE, EU SOU O “SENHOR” MORTE. MAS FOI MUITO PERSPICAZ DA SUA PARTE.

Mortimer engoliu em seco.

— Meu pai é um homem bom — observou ele. Pensou por um momento e acrescentou: — Se não for incômodo, eu preferia que o senhor o deixasse em paz. Não sei o que fez com ele, mas gostaria que parasse. Sem querer ofender.

Morte recuou, virando a cabeça de lado.

— EU SÓ NOS TROUXE PARA FORA DO DOMÍNIO DO TEMPO POR UM INSTANTE — JUSTIFICOU. — ELE NÃO VAI VER NEM OUVIR NADA QUE POSSA INCOMODÁ-LO. NÃO, GAROTO FOI POR VOCÊ QUE EU VIM.

— Por mim?

— NÃO ESTÁ PROCURANDO EMPREGO?

Mortimer entendeu o que se passava.

— O senhor está atrás de um aprendiz? — perguntou.

As cavidades oculares se voltaram para ele, com as pontinhas actínicas cintilando.

— CLARO.

Morte agitou a mão de osso. Houve uma explosão de luz roxa, uma espécie de “bum” visível, e Lezek descongelou. Sobre sua cabeça, os homenzinhos mecânicos continuavam o trabalho de anunciar a meia-noite, uma vez que o Tempo pôde enfim voltar a correr.

Lezek piscou os olhos.

— Não vi você chegar — desculpou-se. — Sinto muito... devia estar com a cabeça em outro lugar.

— EU ESTAVA OFERECENDO UM CARGO AO SEU FILHO — informou Morte. — CONTO COM SUA APROVAÇÃO?

— Qual é mesmo o seu trabalho? — perguntou Lezek, encarando o esqueleto vestido de preto sem revelar a menor sombra de espanto.

— CONDUZO ALMAS PARA O PRÓXIMO MUNDO — respondeu Morte.

— Ah — soltou Lezek. — É claro, desculpe, eu já deveria ter adivinhado pelas roupas. Um trabalho muito interessante, bastante estável. O negócio é sólido?

— JÁ ESTOU NELE HÁ ALGUM TEMPO — considerou Morte.

— Excelente. Nunca pensei nisso como trabalho para o Mort, mas é uma boa profissão, uma boa profissão, bastante segura. Qual é o seu nome?

— MORTE.

— Papai... — interveio Mort.

— Nunca ouvi falar da empresa — considerou Lezek. — Onde fica?

— DAS PROFUNDEZAS DO MAR A ALTURAS QUE NEM AS ÁGUIAS PODEM ALCANÇAR — respondeu Morte.

— Nada mal — considerou Lezek. — Bem, eu...

— Papai — insistiu Mort, puxando o casaco de Lezek. Morte pôs a mão no ombro do menino.

— O QUE SEU PAI VÊ E ESCUTA NÃO É O QUE VOCÊ VÊ E ESCUTA — explicou. — NÃO O DEIXE PREOCUPADO. ACHA QUE ELE GOSTARIA DE ME VER... EM CARNE E OSSO, SE FOSSE O CASO?

— Mas o senhor é o Morte — retrucou Mort. — Sai por aí matando as pessoas!

— EU? MATAR? — indignou-se Morte, notadamente ofendido. — CLARO QUE NÃO. AS PESSOAS SÃO MORTAS, E ISSO É PROBLEMA DELAS. EU SÓ ASSUMO O COMANDO A PARTIR DAÍ. AFINAL, SERIA UM MUNDO BASTANTE IDIOTA SE AS PESSOAS FOSSEM MORTAS SEM MORRER, NÃO É MESMO?

— Bem, é... — admitiu Mort, hesitante.

Mortimer jamais ouvira a palavra “intrigado”. Ela não fazia parte do vocabulário da família. Mas uma centelha em sua alma dizia que ali estava um negócio estranho, fascinante e não completamente pavoroso, e que, se ele deixasse aquele momento escapar, passaria o resto da vida arrependido. Então lembrou as humilhações do dia e a longa caminhada de volta para casa...

— Hum — começou ele —, eu não preciso morrer para aceitar o trabalho, preciso?

— NÃO É OBRIGATÓRIO ESTAR MORTO.

— E... os ossos... ?

— SÓ SE VOCÊ QUISER.

Mortimer suspirou outra vez. A idéia começava a lhe agradar.

— Se meu pai concordar — advertiu ele.

Ambos olharam para Lezek, que estava coçando a barba.

— Mort, o que você acha? — perguntou, com a vivacidade de uma pessoa febril. — Não é o que todo mundo considera trabalho. Admito que não se trate do que eu tinha em mente. Mas dizem que o serviço funerário é uma profissão de muito respeito. Você decide.

— Serviço funerário? — surpreendeu-se Mort.

Morte assentiu e levou o dedo aos lábios num gesto conspiratório.

— Interessante... — disse Mort, devagar. — Acho que eu gostaria de experimentar.

— Onde o senhor disse que era a agência? — perguntou Lezek. — Fica longe?

— NÃO MAIS DO QUE A UMA SOMBRA DE DISTÂNCIA — respondeu Morte. — ONDE ESTAVA A CÉLULA PRIMORDIAL, LÁ ESTAVA EU. ONDE O HOMEM ESTÁ, ESTOU EU. QUANDO O ÚLTIMO SER VIVO SE ARRASTAR SOB O BRILHO DE ESTRELAS GELADAS, LÁ ESTAREI.

— Ah — disse Lezek. — O senhor viaja um bocado.

Ele pareceu intrigado, como alguém que se esforça para lembrar algo importante, e então desistiu.

Morte lhe deu um tapinha nas costas e se virou para Mortimer.

— TEM ALGUMA BAGAGEM, GAROTO?

— Tenho — respondeu Mort, e então se lembrou. — Mas acho que esqueci na loja, pai, a gente deixou o saco na loja de roupas!

— Vai estar fechada — afirmou Lezek. — Loja não abre no Réveillon dos Porcos. Você vai ter de voltar depois de amanhã... bem, amanhã.

— NÃO TEM IMPORTÂNCIA — garantiu Morte. — VAMOS EMBORA. COM CERTEZA MUITO EM BREVE VOU TER TRABALHO AQUI.

— Espero que voltem logo e nos visitem — ressaltou Lezek. Ele parecia estar lutando com seus pensamentos.

— Não acho que seja boa idéia — considerou Mort.

— Bem, rapaz, adeus — disse Lezek. — Faça o que mandarem, entendeu? E... desculpe, o senhor tem filho homem?

Morte pareceu surpreso.

— NÃO — respondeu.

— Se o senhor não se importa, eu gostaria de dar uma última palavrinha com o menino.

— ENTÃO VOU OLHAR O CAVALO — decidiu Morte, mais diplomático do que o habitual.

Lezek botou o braço em torno dos ombros do filho — com alguma dificuldade, por causa da diferença de tamanhos — e puxou-o delicadamente pela praça.

— Mort, sabe quando o tio Hamesh me falou dessa história de aprendizado? — sussurrou ele.

— Sei.

— Bem, ele também me contou outra coisa — confidenciou o homem. — Disse que não é raro o aprendiz herdar os negócios do mestre. O que acha disso?

— Hum. Não sei — respondeu Mort.

— Vale a pena pensar a respeito — insistiu Lezek.

— Pai, eu estou pensando a respeito.

— Muitos rapazes começaram assim — justificou Lezek. — Mostram seu valor, ganham à confiança do mestre e, bem, se tiver alguma filha na casa... o Seu, hã, Seu Fulano falou alguma coisa de filhas?

— Seu quem? — perguntou Mort.

— O Seu... novo mestre.

— Ah. Ele. Não. Acho que não — respondeu Mort. — Não parece ser do tipo que se liga em casamento.

— Muitos meninos inteligentes devem seus avanços às núpcias — apontou Lezek.

— Jura?

— Mort, você não tá prestando atenção!

— O quê?

Lezek se deteve e virou o menino, a fim de encará-lo.

— Você realmente vai ter de se esforçar mais — disse ele. — Será que não entende? Se pretende ser alguma coisa na vida, precisa escutar. É o seu pai que está lhe dizendo isso.

Mortimer fitou o rosto do pai. Queria dizer uma porção de coisas: queria mostrar o quanto o amava, explicar sua preocupação. Queria perguntar o que o pai acreditava ter visto e ouvido. Queria dizer que se sentia como se houvesse pisado num montinho de terra e descoberto que na verdade se tratava de um vulcão. Queria perguntar o que significava “núpcias”.

O que acabou, dizendo foi:

— É. Obrigado. Acho melhor eu ir andando. Depois mando uma carta.

— Há de passar alguém que possa ler para a gente — entusiasmou-se Lezek. — Tchau, meu filho.

O velho assoou o nariz.

— Tchau, pai. Eu apareço qualquer hora — prometeu Mort. Morte tossiu com discrição, embora o som parecesse o estalido de uma viga antiga, cheia de besouros.

— É MELHOR IRMOS ANDANDO — considerou. — MONTE, GAROTO.

Enquanto Mortimer subia na pomposa sela prateada, Morte se inclinou e apertou a mão de Lezek.

— Obrigado — disse.

— No fundo, ele é um bom menino — notou Lezek. — Só é um pouco sonhador. Acho que todos fomos jovens um dia.

Morte considerou aquilo.

— NÃO — contestou. — ACHO QUE NÃO.

Pegou as rédeas e virou o cavalo em direção à estrada da Borda. Do lugar em que estava, atrás do vulto de preto, Mortimer acenou em desespero.

Lezek retribuiu o aceno. Então, quando o corcel e os dois cavaleiros desapareceram de vista, baixou a mão e olhou para ela. O aperto de mão... fora estranho. Mas, por algum motivo, ele não conseguia lembrar exatamente por quê.

Mortimer ouviu o barulho das pedras sob os cascos do cavalo. Depois vieram os baques suaves sobre a terra batida da estrada e então não houve mais som algum.

Ele olhou para baixo e viu a paisagem se estender à distância, na noite cortada pelo luar prateado. Se caísse, a única coisa em que bateria seria o ar.

Mortimer redobrou a força com que se agarrava à sela.

Então Morte perguntou:

— ESTÁ COM FOME, GAROTO?

— Estou, sim senhor.

As palavras lhe surgiram direto do estômago, sem intervenção do cérebro.

Morte assentiu e parou o cavalo. O animal ficou parado em pleno ar, com o grande panorama circular do Disco reluzindo abaixo. Daqui e dali vinha o brilho dourado de alguma cidade. Nos mares quentes próximos à Borda, havia uma leve fosforescência. Em alguns vales mais profundos, a luz represada do Disco, que é lenta e ligeiramente pesada[1], evaporava como fumaça prateada. Mas era ofuscada pelo brilho que subia da própria Borda até as estrelas. Imensos raios de luz tremeluziam no breu da noite. Um enorme muro dourado cercava o mundo.

— É lindo! — exclamou Mort, em voz baixa. — O que é isso?

— O SOL ESTÁ DEBAIXO DO DISCO — informou Morte.

— É assim todas as noites?

— TODAS AS NOITES — confirmou Morte. — A NATUREZA É ASSIM.

— E alguém sabe?

— EU. VOCÊ. OS DEUSES. MARAVILHA, NÃO?

— Minha nossa!

Morte se inclinou sobre a sela e contemplou os reinados do mundo.

— NÃO SEI QUANTO A VOCÊ — DISSE. — MAS EU DEVORARIA UM BOM PRATO AO CURRY.

Embora já passasse muito da meia-noite, a cidade gêmea de Ankh-Morpork esbanjava vida. Mortimer achara Serra Ovelha movimentada, mas, comparada à confusão da rua em que estava agora, a cidade era um necrotério.

Poetas já tentaram descrever Ankh-Morpork. Não conseguiram. Talvez seja a energia do lugar, ou então porque uma cidade com um milhão de habitantes e sem esgoto seja demais para os poetas, que naturalmente preferem margaridas. Bem, digamos apenas que Ankh-Morpork é tão cheia de vida quanto queijo velho em dia de calor, tão ruidosa quanto palavrão em igreja, tão iluminada quanto mancha de óleo em superfície de água, tão colorida quanto um hematoma e tão alvoroçada, diligente e ativa quanto cachorro morto em formigueiro.

Havia templos de portas abertas, enchendo a rua com o som de gongos, sinos e, no caso das religiões fundamentalistas mais conservadoras, os breves gritos de suas vítimas. Havia lojas cujas estranhas mercadorias chegavam ao chão da calçada. Parecia haver muitas jovens simpáticas sem dinheiro para se vestir. Havia tochas, malabaristas e vendedores de transcendência instantânea.

E Morte avançava em meio a tudo aquilo. Mortimer esperara vê-lo passar pelas pessoas como fumaça, mas não era assim que acontecia. A verdade nua e crua é que, por onde Morte andava, os indivíduos se desviavam.

O mesmo não se dava com Mortimer. A multidão que suavemente se abria para seu novo mestre tratava de se fechar bem a tempo de ficar no caminho dele. Os dedos dos pés foram esmagados, as costelas se viram contundidas, algumas pessoas tentaram lhe vender ervas desagradáveis e vegetais de formas sugestivas, e, por mais estranho que pareça, uma senhora já de idade disse que ele parecia um rapaz cheio de vida à procura de diversão.

Ele agradeceu muito e respondeu que já estava se divertindo à beça.

Morte alcançou a esquina da rua — a luz das tochas erguendo raios brilhantes no cocuruto lustroso de sua cabeça — e fungou o ar. Um bêbado se aproximou cambaleante e, sem nenhum motivo aparente, fez um leve desvio no caminho irregular que traçava.

— ISTO SIM É QUE É CIDADE — anunciou Morte. — O QUE ACHA?

— Muito grande — respondeu Mort, hesitante. — Quer dizer, por que todo mundo prefere viver apertado assim?

Morte deu de ombros.

— EU GOSTO — afirmou. — É CHEIA DE VIDA.

— Senhor?

— HÃ?

— O que é curry?

As chamas azuis se acenderam nos olhos de Morte.

— JÁ MORDEU PEDRA DE GELO QUENTE?

— Não, senhor — admitiu Mort.

— CURRY É IGUAL.

— Senhor?

— HÃ?

Mortimer engoliu em seco.

— Desculpe, senhor, mas meu pai disse que, se eu tivesse alguma dúvida, deveria perguntar.

— MUITO LOUVÁVEL — considerou Morte.

Então partiu por uma rua lateral, com as pessoas abrindo caminho feito moléculas desordenadas.

— Bem, senhor, eu não pude deixar de notar, a verdade é que, bom, o fato puro e simples, senhor, é...

— VAMOS COM ISSO, GAROTO.

— Como o senhor consegue comer?

Morte parou de repente, de modo que Mortimer andou dentro dele. Quando o menino começou a falar, o mestre acenou para que se calasse. Parecia estar ouvindo alguma coisa.

— SABE? TEM HORAS — disse, quase para si mesmo — EM QUE FICO COM MUITA RAIVA.

Ele se virou e avançou às pressas por um beco, com a capa a se agitar. O beco serpenteava por entre muros escuros e prédios adormecidos — mais um corredor sinuoso do que uma via pública de fato.

Morte se deteve ao lado de um velho barril e mergulhou o braço na água, voltando com um pequeno saco preso a um tijolo. Sacou a espada — uma linha de reluzente chama azul na escuridão — e partiu a corda.

— FICO COM MUITA RAIVA MESMO — ressaltou.

Endireitou o saco, e Mortimer pôde ver os tristes pedaços de pele animal encharcada deslizarem para o chão de pedras. Morte esticou os dedos brancos e acariciou-os com delicadeza.

Depois de um tempo, uma espécie de fumaça cinza começou a se desprender dos filhotes e formar três pequenas nuvens em forma de gato. Os bichanos cresceram, ainda incertos de suas dimensões, e piscaram para Mortimer com intrigados olhos cinza. Quando o menino arriscou tocar um deles, a mão passou direto pelo corpo e formigou.

— NESTE TRABALHO, VEMOS O PIOR DAS PESSOAS — lamentou Morte.

Ele soprou um gatinho, fazendo-o dar cambalhota. O miado de protesto ecoou como se viesse de longe, através de um longo tubo de lata.

— São almas, não são? — admirou-se Mort. — Como fica a gente?

— EM FORMA DE GENTE — respondeu Morte. — TUDO SE RESUME AO CAMPO MORFOGÊNICO CARACTERÍSTICO.

Ele soltou um suspiro parecido com o som de uma mortalha açoitada pelo vento, pegou os filhotes no ar e guardou-os com cuidado em algum misterioso esconderijo do manto. Então ficou de pé.

— HORA DO CURRY! — disse, afinal.

Na esquina da Rua de Deus com o Beco Sangrento, o Jardins de Curry estava lotado, mas apenas com a nata da sociedade — ou, ao menos, com as pessoas que se acham flutuando no topo e a quem, portanto, é melhor chamarmos de nata. Flores perfumadas plantadas entre as mesas quase encobriam o odor natural da própria cidade, que já foi citado como o equivalente nasal da buzina de nevoeiro.

Mortimer comeu com avidez, mas dominou a curiosidade e não ficou olhando para ver como Morte podia abocanhar o que quer que fosse. Primeiro a comida estava ali e depois não estava, então presumiu que alguma coisa devia ter acontecido com ela. Mortimer teve a sensação de que Morte não estava de fato acostumado àquilo tudo, mas vinha fazendo o possível apenas para deixá-lo à vontade, como o tio solteirão que recebe o sobrinho para o feriado e morre de medo de que tudo dê errado.

Os outros clientes não pareciam prestar muita atenção, mesmo quando Morte se recostou na cadeira e acendeu um cachimbo. É difícil ignorar alguém que exala fumaça pelas órbitas dos olhos, mas todos conseguiram.

— É magia? — perguntou Mort.

— O QUE VOCÊ ACHA? — rebateu Morte. — ESTOU REALMENTE AQUI, GAROTO?

— Está — respondeu Mort, devagar. — Eu... fiquei observando as pessoas. Elas olham mas não vêem, eu acho. O senhor faz alguma coisa na mente delas?

Morte sacudiu a cabeça.

— ELAS MESMAS FAZEM — corrigiu — NÃO TEM MAGIA NENHUMA. AS PESSOAS NÃO PODEM ME VER PORQUE NÃO SE PERMITEM. ATÉ QUE SEJA HORA, É CLARO. OS MAGOS ME ENXERGAM, E OS GATOS. MAS O HOMEM COMUM... NÃO, NUNCA.

Ele soprou um anel de fumaça para o céu e acrescentou:

— PODE PARECER ESTRANHO, MAS É A MAIS PURA VERDADE.

Mortimer observou o anel de fumaça flutuar para o alto e se afastar na direção do rio.

— Eu vejo o senhor — objetou Mort.

— É DIFERENTE.

O garçom klatchiano chegou com a conta e colocou-a na frente de Morte. O homem era moreno e atarracado — com o corte de cabelo parecendo um coco —, e o rosto redondo se abriu num sorriso intrigado quando Morte educadamente acenou em agradecimento. Ele sacudiu a cabeça como quem tenta tirar sabão do ouvido e se afastou.

Morte enfiou a mão nas profundezas do manto e retirou um saco de couro cheio de diferentes moedas de cobre, a maioria das quais azuladas ou esverdeadas pelo tempo. Examinou a conta com atenção. E separou uma dúzia de moedas.

— VENHA — disse, levantando-se. — TEMOS DE IR ANDANDO.

Mortimer seguiu-o pelo jardim até a rua, que ainda se encontrava bem movimentada apesar dos primeiros sinais da alvorada no horizonte.

— O que vamos fazer agora?

— COMPRAR ROUPAS NOVAS PARA VOCÊ.

— Estas aqui são novas.

— JURA?

— Meu pai disse que a loja era famosa pelo preço baixo — observou Mort, acelerando o passo a fim de não ficar para trás.

— COM CERTEZA ACRESCENTA UM NOVO HORROR À POBREZA.

Eles entraram numa rua larga, que levava a uma parte mais rica da cidade (as tochas ficavam mais próximas umas das outras; e os montes de lixo, mais espaçados). Ali não havia barracas ou vendedores de esquina, e sim construções respeitáveis com placas penduradas ao lado de fora. Não eram meras lojas; eram estabelecimentos comerciais. Dentro, havia fornecedores, bancos e escarradeiras. A maioria estava aberta mesmo àquela hora da noite porque o comerciante ankhiano médio não consegue dormir, imaginando o dinheiro que está deixando de ganhar.

— Ninguém dorme aqui? — perguntou Mort.

— ISTO É UMA CIDADE — respondeu Morte, e abriu a porta de uma loja de roupas.

Vinte minutos mais tarde, quando os dois saíram, Mortimer vestia uma roupa preta bem ajustada, com leves bordados prateados, e o lojista olhava um punhado de antigas moedas de cobre e imaginava de onde exatamente haviam surgido.

— Como o senhor arranja essas moedas? — quis saber Mort.

— ÀS PENCAS.


Um barbeiro que mantinha o salão aberto durante toda a noite cortou o cabelo de Mortimer à última moda dos garotos da cidade, enquanto Morte descansava na cadeira ao lado, cantarolando baixinho. Para surpresa sua, estava de ótimo humor.

De fato, após algum tempo tirou o capuz e encarou o aprendiz do barbeiro — que ajeitou uma toalha em volta de seu pescoço, daquele jeito hipnotizado e distraído que Mortimer já começava a reconhecer — e disse:

— UM POUCO DE ÁGUA-DE-COLÔNIA E POLIMENTO, MEU BOM JOVEM.

Ao ouvir a voz pesada e sombria, um mago mais velho que vinha aparando a barba do outro lado se retesou e virou a cadeira. Ficou branco e murmurou alguns feitiços de proteção depois que Morte também se virou — bem devagar, para obter o máximo de efeito — e sorriu para ele.

Alguns minutos mais tarde, sentindo extrema timidez e um pouco de frio nas orelhas, Mortimer voltava para o estábulo onde Morte deixara o cavalo. Tentou uma nova maneira de andar, imaginando que o traje e o corte de cabelo pediam. Não funcionou muito bem.


Mortimer acordou.

Continuou deitado, olhando o teto enquanto a memória era rebobinada e os acontecimentos do dia anterior se cristalizavam na mente feito pedras de gelo.

Ele não podia ter conhecido o Morte. Não podia ter jantado com um esqueleto de olhos azuis, brilhantes. Aquilo devia ser um sonho estranho. Ele não podia ter montado um grande cavalo branco que subiu ao céu e depois foi... para onde?

A resposta lhe ocorreu como uma cobrança de impostos inevitável.

Aqui.

Levou as mãos ao cabelo tosado, depois ao lençol, de um material macio e escorregadio. Parecia muito melhor do que o de sempre que cheirava a ovelha. Aquele era como gelo quente e seco.

Ele pulou para fora da cama e correu os olhos pelo quarto.

Em primeiro lugar, era grande — maior do que sua casa inteira — e seco feito uma tumba velha em um deserto ancestral. O ar parecia ter sido cozido durante horas e então posto para esfriar. O tapete era fundo o suficiente para acobertar uma tribo de pigmeus e soltava estalos elétricos à medida que ele andava. Além disso, tudo tinha tons de roxo e preto.

Ele examinou o próprio corpo e viu que estava usando um longo camisão de dormir branco. Sua roupa se encontrava cuidadosamente dobrada na cadeira ao lado da cama. A cadeira, ele não pôde deixar de notar, era esculpida em forma de ossos e caveira.

Mortimer sentou na beira da cama e começou a se vestir, com a mente acelerada.

Abriu a pesada porta de carvalho e ficou decepcionado quando ela não rangeu de maneira assustadora.

Do lado de fora, havia um corredor de tábuas corridas, com grandes velas amarelas suspensas em castiçais na parede oposta. Mortimer se esgueirou do quarto e avançou pelo corredor até alcançar uma escada. Fez isso tudo sem que nada de terrível acontecesse, chegando afinal ao que parecia um hall de entrada cheio de portas. Ali havia uma porção de cortinas fúnebres e um relógio de pêndulo com um tique-taque que parecia o pulsar de uma montanha. Do lado, havia um cabide para guarda-chuvas..

Nele, estava uma foice.

Mortimer olhou as portas. Eram imponentes. Os arcos haviam sido abertos no já familiar desenho de ossos. Arriscou a mais próxima, e uma voz atrás dele disse:

— Não pode entrar aí, menino.

Mortimer levou alguns segundos para se dar conta de que não era uma voz dentro de sua cabeça, mas palavras humanas de verdade, formadas numa boca e transmitidas aos seus ouvidos através de um providencial sistema de compressão do ar, como aquelas cinco meras palavras.

Ele se virou. Havia uma garota ali, mais ou menos da altura dele e talvez alguns anos mais velha. Tinha cabelo cinzento e olhos de brilho perolado, e trajava o tipo de vestido longo, interessante e nada prático, em geral usado por heroínas trágicas que apertam uma rosa ao peito enquanto olham sentimentalmente para a Lua. Mortimer jamais ouvira a expressão “pré-rafaelita”, o que é uma pena, pois teria sido quase a descrição perfeita. No entanto, essas meninas tendem a ser magras e abatidas, ao passo que aquela ali dava a ligeira impressão de ter comido chocolates demais.

Ela o fitava com a cabeça inclinada para o lado e o pé batendo irritadamente no chão. Então estendeu rápido a mão e beliscou-lhe o braço com força.

— Ai!

— Hum. Então você é de verdade — avaliou ela. — Qual é seu nome, menino?

— Mortimer. Mas me chamam de Mort — respondeu ele, esfregando o cotovelo. — Por que fez isso?

— Vou chamá-lo de Menino — anunciou ela. — E não preciso ficar me explicando, mas, se quer saber, pensei que você estivesse morto. Parece morto.

Mortimer não disse nada.

— Perdeu a língua?

Na verdade, ele estava contando até dez.

— Não estou morto — falou, por fim. — Pelo menos, acho que não. Difícil dizer. Quem é você?

— Pode me chamar de senhorita Ysabell — provocou ela. — Meu pai falou que você precisa comer alguma coisa. Siga-me.

Ela avançou por uma das outras portas. Mortimer acompanhou-a a uma distância perfeita para que a porta voltasse e lhe acertasse o outro cotovelo.

Do outro lado, havia uma cozinha comprida, baixa e quente, com panelas de cobre penduradas no teto e um amplo fogão preto de ferro que ocupava toda uma parede. Assobiando diante dele, estava um senhor, fritando ovos e bacon.

Imediatamente o cheiro invocou as papilas gustativas de Mortimer, sugerindo que juntos eles poderiam se divertir. Ele se viu caminhando para frente sem nem mesmo consultar as próprias pernas.

— Albert — chamou Ysabell. — Mais um para o café da manhã. O homem se virou devagar e balançou a cabeça sem dizer uma palavra. Ela se voltou para Mortimer.

— Devo admitir — disse, com arrogância — que, podendo escolher de todo o Disco, papai deveria ter arranjado coisa melhor. Não sei se você vai servir.

Ela se retirou, batendo a porta.

— Servir para quê? — perguntou Mort, a ninguém em especial. A cozinha ficou em silêncio, exceto pelo chiado da frigideira e das pedras de carvão, no centro vazado do fogão. Mortimer notou que o aparelho tinha as palavras “O Lagartinho ®” gravadas na porta do forno.

O cozinheiro não pareceu notá-lo, então Mortimer puxou uma cadeira e se sentou à mesa branca.

— Cogumelo? — perguntou o homem, sem virar a cabeça.

— Hã? Quê?

— Perguntei se quer cogumelo.

— Ah. Desculpe. Não, obrigado — respondeu Mort.

— Pois bem.

Ele se virou e avançou para a mesa.

Mesmo depois que já estivesse acostumado, Mortimer sempre prenderia a respiração quando visse Albert andando. O empregado de Morte era um desses velhos magricelas que sempre parecem estar usando luvas com os dedos cortados — mesmo quando não estão —, e seu modo de caminhar envolvia uma complicada seqüência de movimentos. Albert se inclinou para frente, e o braço esquerdo começou a balançar, a princípio devagar, mas logo com um movimento alucinado que por fim e de súbito, mais ou menos quando esperaríamos que o braço saísse voando do cotovelo, estendeu-se rente ao corpo e impulsionou-o adiante como a um homem sobre pernas de pau caminhando em alta velocidade.

A frigideira traçou uma série de curvas complexas no ar e parou bem acima do prato de Mortimer.

Albert tinha até o tipo certo de óculos em meia-lua para espiar por sobre as lentes.

— Também tem mingau — disse ele, e piscou o olho, aparentemente para incluir Mortimer na conspiração mundial do mingau.

— Desculpe — pediu Mort. — Mas onde exatamente eu estou?

— Você não sabe? Esta é a casa do Morte, rapaz. Ele o trouxe para cá ontem à noite.

— Eu... meio que me lembro. Só que...

— O quê?

— Bem. Esses ovos com bacon — disse, parecendo confuso. — Não parecem apropriados.

— Tem mortadela — ofereceu Albert.

— Não, não é isso... — retrucou Mort, hesitante. — Só não consigo ver o Morte comendo tiras de bacon e ovo frito.

Albert sorriu.

— Ah, ele não come. Não com regularidade. Fácil servir ao patrão. Só cozinho para mim e... para a jovem, é claro.

Mortimer assentiu.

— Sua filha — disse.

— Minha? Ah! — exclamou Albert. — Engano seu. Dele.

Mortimer olhou os ovos fritos. Eles retribuíram o olhar em meio à poça de gordura. Albert já ouvira falar de valores nutritivos e achava tudo uma bobagem.

— Estamos nos referindo à mesma pessoa? — perguntou Mort, afinal. — Alto, de roupa preta, meio... magro...

— Adotada — explicou Albert. — É uma longa história...

Um sino tocou.

— ... que vai ter de ficar pra depois. Ele quer ver você no gabinete. Melhor correr. O patrão não gosta de esperar. Compreensível, não? Subindo a escada, primeira porta à esquerda. É fácil...

— Tem caveiras e ossos ao redor? — perguntou Mort, empurrando a cadeira para trás.

— Todas têm, a maioria delas — suspirou Albert. — É só mania dele. Não existe nenhum significado oculto.

Deixando o café da manhã esfriar, Mortimer subiu a escada e atravessou o corredor às pressas, detendo-se em frente à primeira porta. Suspendeu a mão para bater na madeira.

— Entre.

A maçaneta se virou por livre e espontânea vontade. A porta se abriu.

Morte estava sentado atrás de uma mesa, examinando um enorme livro de couro, quase maior do que a própria mesa. Quando Mortimer entrou, ele ergueu a cabeça, mantendo um dedo calcário para marcar o lugar, e sorriu. Não havia alternativa.

— AH — disse, e parou.

Então coçou o queixo, fazendo ruído semelhante ao de unha raspando em pente.

— QUEM É VOCÊ, GAROTO?

— Mort, senhor — respondeu Mort. — Seu aprendiz. Lembra?

Morte encarou-o durante algum tempo. Então os olhos azuis se voltaram para o livro.

— AH, SIM — disse ele. — MORT. BOM, GAROTO, VOCÊ REALMENTE QUER APRENDER OS MAIORES SEGREDOS DO TEMPO E DO ESPAÇO?

— Quero, senhor. Eu acho, senhor.

— ÓTIMO. O ESTÁBULO FICA NOS FUNDOS. A PÁ DEVE ESTAR PENDURADA NA PORTA.

Ele olhou para baixo. Olhou para cima. Mortimer não se mexera.

— SERÁ POSSÍVEL QUE NÃO TENHA ENTENDIDO?

— Não completamente, senhor — admitiu Mort.

— ESTERCO, GAROTO. ESTERCO. ALBERT MANTÉM O MONTE DE ADUBO NO JARDIM. EM ALGUM LUGAR DA CASA, DEVE TER UM CARRINHO DE MÃO. AGORA PODE IR.

Mortimer assentiu, com tristeza.

— Sim, senhor. Entendi, senhor. Senhor?

— HÃ?

— Não sei o que isso tem a ver com os segredos do tempo e do espaço.

Morte não tirou os olhos do livro.

— ISSO — respondeu ele — É PORQUE VOCÊ ESTÁ AQUI PARA APRENDER.

É fato que embora seja, em suas próprias palavras, uma PERSONIFICAÇÃO ANTROPOMÓRFICA, o Morte do Discworld havia muito tempo deixara de usar os tradicionais cavalos esqueléticos por causa da chateação de ter de ficar parando o tempo todo a fim de juntar os pedaços. Agora seus cavalos eram sempre animais de carne e osso, vindos das mais nobres linhagens.

E muito bem alimentados, como descobriria Mortimer.

Alguns empregos oferecem incrementos. Este oferecia... o oposto, mas pelo menos ficava num lugar quente e era fácil de aprender. Depois de algum tempo, ele entrou no ritmo e começou a brincar daquele joguinho secreto de dividir as quantidades, que todo mundo joga nessas situações. Vejamos, pensou ele, já fiz quase um quarto; se considerarmos um terço, então, quando eu terminar aquele canto perto da manjedoura, vai ser mais da metade, digamos que cinco oitavos, o que significa mais três carrinhos cheios... Isso não prova quase nada além de que o magnífico esplendor do universo fica mais fácil de ser assimilado quando pensamos nele como uma série de pequenas partes.

Da baia, o cavalo o fitava, às vezes tentando lhe comer o chapéu.

Depois de algum tempo, Mortimer se deu conta de que mais alguém o observava. Ysabell estava escorada na meia-porta, com o queixo entre as mãos.

— Você é empregado? — perguntou ela.

Mortimer se enrijeceu.

— Não — respondeu, afinal. — Sou aprendiz.

— Bobagem. Albert disse que você não pode ser aprendiz.

Mortimer se concentrou em jogar a pá cheia no carrinho de mão. Mais duas pás, são três se estiverem bem cheias, e isso significa mais quatro carrinhos, tudo bem, digamos que cinco, para eu terminar metade do...

— Ele disse —. prosseguiu Ysabell, elevando o tom de voz — que aprendiz vira mestre, e não pode existir mais de um Morte. Então você não passa de um criado e tem de fazer o que eu mandar.

... e depois oito carrinhos a mais significa que está tudo acabado até a porta, que é quase dois terços do serviço completo, o que vale dizer...

— Ouviu o que eu falei, menino?

Mortimer assentiu. E então vão ser mais catorze carrinhos, só que podemos considerar quinze, porque não varri muito bem no canto e...

— Perdeu a língua?

— Mort — disse Mort, com doçura. Ela o encarou, furiosa.

— O quê?

— Meu nome é Mort — repetiu ele. — Ou Mortimer. Quase todo mundo me chama de Mort. Quer falar alguma coisa comigo?

Por um instante, ela ficou muda, correndo os olhos do rosto dele para a pá e de volta para o rosto.

— Só que me pediram para fazer isso aqui — advertiu Mort.

Ela explodiu.

— Por que você está aqui? Por que papai trouxe você para cá?

— Ele me contratou na feira de empregos — respondeu Mort. — Todos os meninos foram contratados. Eu também.

— E você quis? — insistiu ela. — Ele é o Morte, sabia? O Ceifeiro Implacável. Ele é muito importante. Não é nada que se possa virar, apenas ser.

Mortimer acenou vagamente em direção ao carrinho de mão.

— Eu espero que tudo acabe bem — retrucou. — Meu pai sempre diz que em geral é o que acontece.

Pegou a pá, virou-se e sorriu para o traseiro do cavalo ao ouvir Ysabell gemer e se retirar.

Mortimer cumpriu toda a série de frações em que havia dividido o trabalho, conduzindo o carrinho de mão até o monte próximo à macieira.

O jardim do Morte era grande, limpo e bem cuidado. Também era muito, muito preto. A grama era preta. As flores eram pretas. Maçãs negras brilhavam entre as negras folhas da macieira negra. Até o ar parecia escuro.

Depois de algum tempo, Mortimer pensou ver — não, ele não poderia imaginar estar vendo — diferentes matizes de preto.

Quer dizer, não apenas tons muito escuros de vermelho, verde ou o que fosse, mas verdadeiras nuanças de preto. Todo um espectro de cores, todas diferentes e todas... pretas. Mortimer despejou a última carga, deixou o carrinho de lado e voltou para casa.

— ENTRE.

Morte estava parado atrás de uma estante, analisando um mapa. Olhou para Mortimer como se ele não estivesse de todo ali.

— POR ACASO, VOCÊ JÁ OUVIU FALAR DA BAÍA DE MANTE? — perguntou.

— Não, senhor — respondeu Mort.

— UM NAUFRÁGIO FAMOSO.

— Foi?

— VAI SER — informou Morte. — SE EU ACHAR A DROGA DO LUGAR...

Mortimer contornou a estante e espiou o mapa.

— O senhor vai afundar o navio? — indagou. Morte pareceu horrorizado.

— CLARO QUE NÃO. VAI SER UMA COMBINAÇÃO DE INABILIDADE NÁUTICA, ÁGUAS RASAS E VENTOS CONTRÁRIOS.

— Que horror! — exclamou Mort. — Muitas pessoas vão se afogar?

— ISSO CABE AO DESTINO — respondeu Morte, virando-se para a estante de trás e puxando um grande Atlas. — NÃO TEM NADA QUE EU POSSA FAZER. QUE CHEIRO É ESSE?

— Eu — disse Mort, sem rodeios. — Ah. O Estábulo.

Morte se deteve, mantendo a mão na lombada do livro.

— E POR QUE ACHA QUE O MANDEI AO ESTÁBULO? PENSE COM CUIDADO.

Mortimer hesitou. Ele já havia pensado com cuidado, enquanto contava os carrinhos de esterco. Imaginara se teria sido para lhe coordenar as mãos e os olhos, ensinar-lhe o hábito da obediência, incutir-lhe a importância das pequenas tarefas ou fazê-lo entender que mesmo os grandes homens começam por baixo. Nenhuma das explicações parecia exata.

— Eu acho... — começou ele.

— SIM?

— Bom, para dizer a verdade, acho que foi porque o senhor estava até aqui de bosta de cavalo.

Morte o encarou durante um longo instante. Mortimer pareceu terrivelmente constrangido.

— CORRETÍSSIMO — observou Morte — CLAREZA DE RACIOCÍNIO. ABORDAGEM REALISTA. MUITO IMPORTANTE NUM TRABALHO COMO O NOSSO.

— Sim, senhor. Senhor?

— HÃ?

Morte estava absorto no índice.

— As pessoas morrem o tempo todo, não é? Milhões delas. O senhor deve ser muito ocupado. Mas...

Morte dirigiu a Mortimer o olhar com o qual o rapaz já vinha se familiarizando. Começava como uma surpresa inusitada, oscilava um pouco para a irritação, passava pela consideração e terminava afinal numa vaga indulgência.

— MAS?

— Achei que o senhor passaria mais tempo fora de casa. Sabe? A caça, na rua. O almanaque da minha avó tem um retrato seu com uma foice e tal.

— SEI. ACHO UM POUCO DIFÍCIL DE EXPLICAR A MENOS QUE VOCÊ ENTENDA DE ENCARNAÇÃO PONTUAL E CONCENTRAÇÃO DE NÓS. IMAGINO QUE NÃO ENTENDA.

— Acho que não.

— EM GERAL, SÓ ESPERAM QUE EU APAREÇA EM OCASIÕES ESPECIAIS.

— Como o rei — considerou Mort. — Quer dizer, o rei reina mesmo quando está fazendo outra coisa ou até dormindo. É isso, senhor?

— SERVE — disse Morte, enrolando os mapas. — E AGORA, GAROTO, SE JÁ TERMINOU O ESTÁBULO, VÁ VER SE ALBERT TEM ALGUM SERVIÇO PARA VOCÊ. SE QUISER, PODE SAIR HOJE À NOITE COMIGO.

Mortimer assentiu. Morte se voltou para o grande livro de couro, pegou uma caneta, olhou para ela durante alguns segundos e então fitou Mortimer com a cabeça de lado.

— CONHECEU MINHA FILHA? — perguntou.

— Hum. Conheci, senhor — respondeu Mort, com a mão na maçaneta.

— É UMA MENINA MUITO AGRADÁVEL — comentou Morte —, MAS ACHO QUE GOSTA DE TER ALGUÉM DA MESMA IDADE POR PERTO PARA CONVERSAR.

— Jura?

— E É CLARO QUE UM DIA ISSO TUDO VAI SER DELA.

Nas profundezas de suas órbitas oculares, algo como uma pequena supernova azul reluziu. Ocorreu a Mortimer que, com algum constrangimento e total falta de experiência, Morte estava tentando piscar.

Num lugar que não tinha nada a ver com o tempo ou o espaço, que não aparecia em nenhum mapa, que só existia naquela esfera do múltiplo cosmo conhecida por alguns poucos astrofísicos que tomam ácido de péssima qualidade, Mortimer passou a tarde ajudando Albert a plantar brócolis. A semente era preta, com traços de roxo.

— Ele tenta — defendeu Albert, agitando a cavadeira. — Só que quando o assunto é cor, não tem muita imaginação.

— Não sei se estou entendendo — admitiu Mort. — Você disse que ele fez isso tudo?

Para além do muro do jardim, o terreno descia num vale profundo e então se erguia numa charneca escura, estendendo-se até as montanhas remotas, pontudas como dentes de gato.

— Isso mesmo — confirmou Albert. — Cuidado com o regador!

— O que tinha aqui antes?

— Não sei — disse Albert, começando uma nova fileira. — O firmamento, imagino. É o nome rebuscado que dão ao nada. Para dizer a verdade, não é um trabalho muito bem feito. Quer dizer, o jardim está ótimo, mas as montanhas são bem inferiores. Quando olhamos de perto, são mal definidas. Uma vez fui lá ver.

Mortimer comprimiu os olhos em direção às árvores mais próximas. Pareciam indubitavelmente sólidas.

— Por que ele fez isso tudo? — perguntou. Albert soltou um grunhido.

— Sabe o que acontece aos meninos que perguntam demais?

Mortimer refletiu por alguns instantes.

— Não — respondeu, afinal. — O quê?

Houve silêncio.

Então Albert se aprumou e disse:

— E eu sei? Provavelmente acham respostas.

— Ele disse que posso acompanhá-lo hoje à noite — entusiasmou-se Mort.

— Pois você é um menino de sorte — considerou Albert, distraído, ao se dirigir de volta para o chalé.

— Ele realmente fez isso tudo? — insistiu Mort, seguindo-o de perto.

— Fez.

— Para quê?

— Imagino que quisesse um lugar onde pudesse se sentir em casa.

— Albert, você está morto?

— Eu? Pareço morto?

O velho bufou quando Mortimer começou a lhe dirigir um demorado olhar crítico.

— E pode parar com isso. Estou tão vivo quanto você. Talvez mais.

— Desculpe.

— Tudo bem.

Albert abriu a porta dos fundos e se virou para olhar Mortimer com o máximo de bondade possível.

— É melhor não fazer todas essas perguntas — sugeriu. — Chateia as pessoas. Agora, que tal uma bela torrada com manteiga?

O sino tocou quando eles estavam jogando dominó. Mortimer se pôs em alerta.

— Ele vai querer que o cavalo esteja pronto — informou Albert. — Vamos.

Os dois saíram para o estábulo na escuridão da noite, e Mortimer observou o velho selar o corcel de Morte.

— O nome dele é Pituco — disse Albert, apertando a cilha. — Precisa dizer mais alguma coisa? A gente nunca sabe.

De maneira afetuosa, Pituco tentou comer o lenço dele.

Mortimer se lembrou da xilogravura no almanaque da avó, entre a página das épocas de plantio e a seção das fases da Lua, que mostrava Morthe, o Grandhe Executhor Que Vhem Para Thodos. Ele havia olhado aquela imagem uma centena de vezes, enquanto aprendia a ler. Não teria lhe causado metade do impacto se fosse de conhecimento geral que o chamejante cavalo montado pelo espectro se chamava Pituco.

— Eu imaginaria algo como Torpedo, Espada ou Ébano — continuou Albert —, mas o patrão tem suas manias. Animado?

— Acho que sim — respondeu Mort, incerto. — Nunca vi Morte em ação.

— Poucos viram — avaliou Albert. — Pelo menos, mais de uma vez.

Mortimer respirou fundo.

— Em relação à filha dele... — começou.

— Ah. Boa noite, Albert.

— Garoto.

— Mort — disse Mort, automaticamente.

Morte entrou no estábulo, abaixando-se um pouco para não bater no teto. Albert cumprimentou-o, não de maneira subserviente, como bem notou Mortimer, mas apenas por educação. Nas raras ocasiões em que estivera na cidade, Mortimer havia conhecido um ou dois servos, e Albert não se parecia nada com eles. Na verdade, agia como se a casa fosse sua e o dono não passasse de uma visita — algo que se deve tolerar, como pintura descascando ou aranhas no banheiro. Morte não se importava. Era como se há muito tempo ele e Albert tivessem dito tudo o que precisava ser dito e agora se contentassem em realizar seus trabalhos sem serem incomodados. Para Mortimer, era como sair para passear depois de uma tempestade forte — tudo se mostrava novo, nada parecia desagradável, mas havia a sensação de que muitas energias haviam sido despendidas.

Descobrir mais sobre Albert se transformou num item para o fim da lista de coisas a fazer.

— SEGURE AQUI — pediu Morte, e lhe entregou uma foice enquanto montava em Pituco.

A foice parecia bastante normal, a não ser pela lâmina: um pálido brilho azul que partia chamas e cortava o som, fina a ponto de Mortimer conseguir enxergar o outro lado. Ele a segurou com cuidado.

— CERTO, GAROTO — disse Morte. — SUBA. ALBERT, NÃO PRECISA NOS ESPERAR.

O cavalo trotou até o jardim e subiu ao céu.

Deveria ter acontecido um lampejo ou um movimento rápido de estrelas. O ar deveria ter subido em espiral e se transformado em inúmeras centelhas, como normalmente ocorre nos galopes transdimensionais comuns, do dia-a-dia. Mas aquele era o Morte, que domina a arte de ir a todos os lugares sem alarde e transpõe dimensões com a mesma facilidade com que atravessa portas trancadas, então os dois cavalgaram por entre cânions de nuvem e enormes montanhas de algodão até tudo se desanuviar e o Disco surgir lá embaixo, aquecendo-se à luz do sol.

— O TEMPO É AJUSTÁVEL — explicou Morte, quando Mortimer salientou o fato de ali ainda ser dia. — NÃO É MUITO IMPORTANTE.

— Sempre achei que fosse.

— AS PESSOAS SÓ PENSAM QUE É IMPORTANTE PORQUE FORAM ELAS QUE O INVENTARAM — alegou Morte, com ar grave.

Mortimer achou o argumento um tanto batido, mas resolveu não discutir.

— O que vamos fazer agora? — perguntou.

— TEM UMA GUERRA BASTANTE PROMISSORA NO KLATCHISTÃO — respondeu Morte. — VÁRIAS EPIDEMIAS. SE VOCÊ PREFERIR, UM HOMICÍDIO IMPORTANTE.

— O quê? Assassinato?

— É, DE REI.

— Ah, reis — disse Mort, com desdém.

Ele sabia o que eram reis. Uma vez por ano, um grupo de atores ambulantes chegava a Serra Ovelha, e as peças que representavam eram invariavelmente sobre reis. Os reis estavam sempre matando uns aos outros ou sendo mortos. Os enredos sempre se mostravam muito complicados, envolvendo identidades trocadas, envenenamentos, lutas, filhos perdidos, fantasmas, bruxas e, em geral, muitos punhais. Como ficava claro que ser rei não era moleza nenhuma, era surpreendente que metade do elenco tentasse se tornar um. A idéia que Mortimer fazia da vida palaciana era um pouco difusa, mas ele imaginava que ninguém dormia o suficiente.

— Eu gostaria de ver um rei de verdade — decidiu. — Minha avó disse que eles usam coroa o tempo todo, até quando vão ao banheiro.

Morte considerou aquilo com atenção.

— NÃO EXISTE NENHUMA RAZÃO TÉCNICA PARA QUE NÃO USEM — reconheceu. — MAS, NA MINHA EXPERIÊNCIA, EM GERAL NÃO É O CASO.

O cavalo se virou, e o vasto tabuleiro da Planície Sto passou zunindo debaixo deles. Era um terreno fértil, cheio de sedimentos, plantações irregulares de repolho e pequenos reinos cujas fronteiras serpenteavam como cobras, uma vez que guerrilhas, pactos de casamento, complexas alianças e ocasionais erros de cartografia foram mudando a configuração política da terra.

— Esse rei — perguntou Mort, quando uma floresta passou em disparada por eles — é bom ou mau?

— NUNCA ME PREOCUPO COM ESSAS COISAS — respondeu Morte. — NÃO É PIOR DO QUE NENHUM OUTRO.

— Mas já levou alguém à morte? — insistiu Mort e, lembrando-se de com quem estava falando, acrescentou: — Poupando sua viagem...

— ÀS VEZES É PRECISO FAZER CERTAS COISAS, QUANDO SE É REI.

Lá embaixo, surgiu uma cidade incrustada em torno de um castelo construído numa rocha que se erguia da planície como uma enorme espinha geológica. Morte disse que se tratava de uma pedra das distantes Ramtops, ali deixada pelo recuo do gelo nos lendários dias em que os Gigantes do Gelo travaram guerra com os deuses e usaram suas geleiras para se locomoverem na terra, numa tentativa de congelar todo o mundo. No fim, eles haviam desistido e conduzido suas grandes pedras cintilantes de volta às remotas terras das montanhas escarpadas próximas ao Centro. Ninguém na planície sabia por que haviam feito isso; as gerações mais novas de Sto Lat — a cidade em torno do rochedo — achavam que o motivo era a chatice do lugar.

Pituco galopou sobre o nada e pousou na torre mais alta do castelo. Morte desceu do animal e pediu a Mortimer que achasse a cevadeira.

— As pessoas não vão notar que tem um cavalo aqui em cima? — perguntou, ao se dirigirem para uma escada.

Morte sacudiu a cabeça.

— VOCÊ ACREDITARIA QUE PUDESSE TER UM CAVALO NO ALTO DESSA TORRE?

— Não. Ele não poderia subir a escada — respondeu Mort.

— OU SEJA...

— Ah, entendi. As pessoas não querem ver o que não deve existir.

— MUITO BEM.

Agora os dois avançavam por um largo corredor cheio de tapeçarias. Morte enfiou a mão no manto e tirou uma ampulheta, observando-a com atenção à meia-luz.

Era um objeto ostentoso, com o vidro cortado em facetas intrincadas e confinado numa estrutura floreada de madeira e bronze. As palavras “Rei Olerve, o Bastardo” estavam gravadas na superfície.

No interior, a areia brilhava de maneira estranha. Não restava muito.

Morte cantarolou para si mesmo e guardou o vidro num misterioso recanto da veste.

Eles dobraram o corredor e deram num grande vozerio. Havia uma sala cheia de gente, sob uma nuvem de fumaça e som que se erguia até a sombra das bandeirolas de guerra no telhado. Na galeria, três menestréis faziam o que podiam para serem ouvidos, sem o menor êxito.

O surgimento de Morte não provocou muito alvoroço. Um soldado à porta se virou para ele, abriu a boca, então sorriu de maneira distraída e pensou em outra coisa. Alguns cortesãos olharam na direção deles, mas os olhos instantaneamente se desviavam.

— TEMOS ALGUNS MINUTOS — informou Morte, pegando uma bebida da bandeja. — VAMOS NOS ENTURMAR.

— Também não podem me ver! — surpreendeu-se Mort. — Mas eu sou de verdade!

— A REALIDADE NEM SEMPRE É O QUE PARECE — advertiu Morte. — DE QUALQUER MODO, SE NÃO QUEREM ME VER, CERTAMENTE NÃO QUEREM VER VOCÊ. SÃO ARISTOCRATAS, GAROTO. SÃO ÓTIMOS EM NÃO VER AS COISAS. POR QUE ESSA BEBIDA TEM CEREJA NO PALITO?

— Mort — disse Mort, automaticamente.

— NÃO CONTRIBUI EM NADA PARA O PALADAR. POR QUE ALGUÉM PEGA UMA BEBIDA PERFEITA E PÕE UMA CEREJA DENTRO?

— O que vai acontecer agora? — perguntou Mort.

Um conde topou em seu cotovelo, olhou para todos os lados menos para ele, deu de ombros e desapareceu.

— POR EXEMPLO, OLHE ISSO AQUI — continuou Morte, pegando um canapé.

— QUER DIZER, COGUMELO, GALINHA, QUEIJO, NÃO TENHO NADA CONTRA NENHUM DELES, MAS, EM NOME DA SANIDADE, POR QUE MISTURAR TUDO E BOTAR EM PEQUENAS FATIAS DE PÃO?

— O quê? — perguntou Mort.

— MORTAIS... — disse Morte. — PASSAM OS POUCOS ANOS QUE TÊM NESSE MUNDO COMPLICANDO AS COISAS PARA SI MESMOS. FASCINANTE. PROVE OS PICLES.

— Onde está o rei? — indagou Mort, esticando o pescoço para olhar por sobre as cabeças dos convivas.

— O SUJEITO DE BARBA DOURADA — apontou Morte. Bateu no ombro de um criado e, quando o homem se virou, desnorteado, surrupiou outro drinque da bandeja.

Mortimer correu os olhos pela sala até avistar o indivíduo parado num pequeno grupo, em meio à multidão, inclinando-se levemente para ouvir o que um cortesão baixinho lhe dizia. O rei era um homem alto, de constituição forte, com o tipo de rosto lerdo e apático que inspiraria total confiança na hora de comprarmos um cavalo usado.

— Ele não parece mal — observou Mort. — Por que querem matá-lo?

— ESTÁ VENDO O HOMEM AO LADO DELE? COM BIGODINHO E SORRISO DE LAGARTO?

Morte apontou com a foice.

— Estou.

— PRIMO. DUQUE DE STO HELIT. BOA GENTE É QUE NÃO É — considerou Morte. — HABILÍSSIMO COM A GARRAFA DE VENENO. ANO PASSADO, QUINTO NA FILA AO TRONO. AGORA, SEGUNDO. UM TANTO ARRIVISTA, PODERÍAMOS DIZER.

Ele vasculhou o manto e retirou uma ampulheta na qual a areia negra corria entre uma treliça de ferro. Deu uma sacudidela experimental:

— E VAI VIVER MAIS UNS 30, 35 ANOS — disse, com um suspiro.

— E sai por aí matando as pessoas? — indignou-se Mort. Ele sacudiu a cabeça. — Nesse mundo não tem justiça.

Morte suspirou outra vez.

— NÃO — concluiu afinal, entregando o drinque para um pajem que ficou surpreso ao se ver de repente segurando um copo vazio. — SÓ TEM EU.

Sacou a espada, que tinha a mesma lâmina fina e azul da foice, e deu um passo à frente.

— Pensei que o senhor usasse a foice — sussurrou Mort.

— REI GANHA A ESPADA — informou Morte. — É UM PRIVILÉGIO REAL.

A mão de dedos ossudos se enfiou novamente nas profundezas do manto e surgiu com a ampulheta de Olerve. Na metade superior, os últimos poucos grãos de areia se juntavam.

— PRESTE MUITA ATENÇÃO — disse Morte. — PODE SER QUE DEPOIS EU FAÇA PERGUNTAS.

— Espere — pediu Mort, aflito. — Não é justo. O senhor não pode impedir isso?

— JUSTO? — rebateu Morte. — QUEM FALOU EM JUSTIÇA?

— Bem, se o outro homem é tão...

— ESCUTE AQUI — disse Morte —, ISSO NÃO TEM NADA A VER COM JUSTIÇA. NÃO DÁ PARA TOMAR PARTIDO. MINHA NOSSA! QUANDO CHEGA A HORA, ACABOU. NÃO TEM JEITO, GAROTO.

— Mort — resmungou Mort, encarando as pessoas.

E então a viu. Um movimento casual na multidão abriu um canal entre Mortimer e a garota magra e esguia sentada entre um grupo de mulheres mais velhas, atrás do rei. Ela não era propriamente bonita, sendo superdotada no departamento de sardas e magricela demais. Mas vê-la provocou um abalo que aqueceu o cérebro de Mortimer e lhe acertou a boca do estômago.

— CHEGOU A HORA — anunciou Morte, cutucando Mortimer com o cotovelo pontudo. — SlGA-ME.

Ele avançou em direção ao rei, levando a espada na mão. Mortimer começou a segui-lo. Por um segundo, os olhos da garota encontraram os dele e instantaneamente se afastaram... então voltaram, arrastando-lhe a cabeça e fazendo a boca se abrir num “O” de horror.

O coração de Mortimer se afrouxou. Ele saiu em disparada na direção do rei.

— Cuidado! — gritou. — O senhor está correndo perigo!

E o mundo se transformou num grande melaço. Começou a se encher de sombras roxas e azuis, como num sonho causado por insolação, e o som foi perdendo intensidade até a balbúrdia da sala ficar distante e chiada como música nos fones de ouvido de outra pessoa. Mortimer viu Morte ao lado do rei, com os olhos voltados para... ... a galeria dos menestréis.

Viu o arqueiro, viu o arco, viu a flecha disparando na velocidade de uma lesma doente. Por mais lenta que estivesse, ele não conseguia ultrapassá-la. Pareceu levar horas para controlar as pernas de chumbo, mas finalmente conseguiu trazer ambos os pés ao chão ao mesmo tempo e saltou com a rapidez de um deslocamento continental.

Enquanto ele se lançava pelo ar, sem rancor, Morte disse:

— NÃO VAI ADIANTAR. É NATURAL QUE VOCÊ QUEIRA TENTAR, MAS NÃO VAI ADIANTAR.

Como em sonho, Mortimer foi levado para um mundo silencioso...

A flecha acertou o alvo. Com as duas mãos, Morte ergueu a espada num golpe suave que atravessou o pescoço do rei sem deixar nenhuma marca. Para Mortimer, movendo-se naquele mundo crepuscular, era como se uma imagem espectral tivesse caído no chão.

Não podia ser o rei, porque ele estava ali de pé, encarando Morte com uma fisionomia de extrema surpresa. Havia um negócio aos pés dele, e a distância as pessoas reagiam com gritos e choros.

— UM SERVIÇO BEM FEITO — comentou Morte. — A REALEZA É SEMPRE UM PROBLEMA. COSTUMA RESISTIR. OS CAMPONESES, POR OUTRO LADO, NÃO VÊEM A HORA.

— Quem é você? — perguntou o rei. — O que está fazendo aqui? Hein? Guardas! Eu exij...

A insistente mensagem dos olhos finalmente chegou ao cérebro. Mortimer ficou impressionado: Olerve havia reinado durante muitos anos e, mesmo quando morto, sabia se comportar como rei.

— Ah — soltou ele. — Entendi. Não esperava vê-lo tão cedo.

— SUA MAJESTADE — disse Morte, inclinando-se. — POUCOS ESPERAM.

O rei olhou à volta. Estava escuro e silencioso naquele mundo de sombras, mas do lado de fora parecia haver uma enorme confusão.

— Sou eu ali no chão, não sou?

— TEMO QUE SIM, SENHOR.

— Belo trabalho. Arco?

— EXATAMENTE. E AGORA, SE O SENHOR NÃO SE...

— Quem foi? — perguntou o rei. Morte hesitou.

— UM ASSASSINO DE ALUGUEL DE ANKH-MORPORK— revelou, afinal.

— Hum. Brilhante. Parabenizo Sto Helit. E eu me enchendo de antídotos... Não existe antídoto para a lâmina de metal, não é? Não é?

— DE FATO, SENHOR.

— O velho truque da escada de corda e cavalo veloz perto da ponte levadiça, certo?

— PARECE QUE SIM, SENHOR — respondeu Morte, delicadamente tomando o vulto do rei pelo braço. — MAS, SE ISSO LHE SERVE DE CONSOLO, O CAVALO PRECISA SER VELOZ.

— Hein?

Morte deixou o sorriso fixo se alargar um pouco mais.

— AMANHÃ TENHO UM ENCONTRO COM ESTE ESPECÍFICO CAVALEIRO EM ANKH — explicou Morte. — ELE ACEITOU A MARMITA QUE O DUQUE LHE OFERECEU.

O rei, cuja aptidão para o cargo implicava não ser rápido de entendimento, considerou aquilo por um instante e soltou uma risada curta. Então pela primeira vez notou Mortimer.

— Quem é esse? — perguntou. — Também está morto?

— MEU APRENDIZ — respondeu Morte. — QUE MUITO EM BREVE VAI LEVAR UMA CHAMADA, O TRATANTE.

— Mort — disse Mort, automaticamente.

O som da conversa flutuava à volta, mas ele não conseguia despregar os olhos da cena ao redor. Sentia-se real. Morte parecia concreto. O rei se mostrava surpreendentemente bem para alguém que estava morto. Mas o resto do mundo era uma massa de sombras ambulantes, movendo-se através dele como se não fossem mais sólidas do que o vento.

A garota estava se ajoelhando, aos prantos.

— É minha filha — disse o rei. — Eu deveria estar triste. Por que não estou?

— AS EMOÇÕES FICAM PARA TRÁS. É TUDO UMA QUESTÃO DE GLÂNDULAS.

— Ah. Então é isso. Ela não pode nos ver, pode?

— NÃO.

— Imagino que não haja possibilidade de eu... ?

— NÃO — cortou Morte.

— Só que ela vai ser rainha e se eu pudesse ao menos avisar...

— SINTO MUITO.

A menina ergueu a cabeça e olhou através de Mortimer. Ele viu o duque se aproximar por trás dela e pousar-lhe a mão no ombro. Um leve sorriso pairava nos lábios do homem. Era o tipo de sorriso que se esconde nos bancos de areia, à espera de nadadores imprudentes.

— Não posso fazer você me ouvir — disse Mort. — Não confie nele!

Ela encarou Mortimer, esfregando os olhos. Ele estendeu o braço e viu a própria mão passar direto pela dela.

— VAMOS, GAROTO. CHEGA DE MALANDRAGEM.

Mortimer sentiu os dedos de Morte lhe apertarem o ombro, sem hostilidade. Relutante, virou-se e acompanhou o rei e seu mestre.

Os três saíram pela parede. Mortimer estava na metade do caminho quando se deu conta de que atravessar paredes era impossível.

A lógica suicida quase o matou. Ele começou a sentir a frieza da pedra, e então ouviu uma voz ao pé do ouvido:

— PENSE ASSIM: A PAREDE NÃO PODE ESTAR AÍ. SE ESTIVESSE, VOCÊ NÃO ESTARIA PASSANDO POR ELA, ESTARIA, GAROTO?

— Mort — irritou-se Mort.

— QUÊ?

— Meu nome é Mort. Ou Mortimer — disse Mort, com raiva, e seguiu adiante.

O frio ficou para trás.

— PRONTO. NÃO FOI TÃO DIFÍCIL, FOI?

Mortimer correu os olhos pelo corredor e experimentou bater na parede. Devia mesmo ter andado por ela, mas agora a estrutura parecia suficientemente sólida. Pontinhos de mica brilhavam em seu corpo.

— Como o senhor faz isso? — perguntou ele. — Como é que eu fiz isso? Magia?

— MAGIA É QUE NÃO É, GAROTO. QUANDO VOCÊ CONSEGUIR FAZER ISSO SOZINHO, EU NÃO VOU TER MAIS NADA PARA LHE ENSINAR.

O rei, que agora estava bem mais embaçado, disse:

— É impressionante, tenho de admitir. Aliás, parece que estou sumindo.

— É O ENFRAQUECIMENTO DO CAMPO MORFOGÊNICO — explicou Morte.

A voz do rei não passava de um sussurro.

— Então é isso?

— ACONTECE COM TODO MUNDO. TENTE APROVEITAR.

— Como?

A voz não passava de um contorno no ar.

— APENAS SEJA VOCÊ MESMO.

Neste momento, o rei sucumbiu, ficando cada vez menor à medida que o campo se tornava um minúsculo pontinho brilhante. Aconteceu tão rápido que Mortimer quase não viu. De fantasma a grão de areia em meio segundo, apenas com um leve suspiro.

Morte pegou o negócio brilhante com cuidado e enfiou-o em algum lugar do manto.

— O que aconteceu com ele? — indagou Mort.

— SÓ ELE SABE — respondeu Morte. — VENHA.

— Minha avó diz que morrer é como dormir — acrescentou Mort, com uma ponta de esperança.

— EU NÃO SABERIA DIZER. NUNCA FIZ NENHUMA DAS DUAS COISAS.

Mortimer deu uma última longa olhada no corredor. As portas haviam se aberto, e as pessoas estavam saindo em debandada. Duas mulheres mais velhas tentavam consolar a princesa, mas a menina seguia na frente, de maneira que as senhoras pareciam quicar atrás dela como duas bolas. As três entraram em outro corredor.

— JÁ RAINHA — admirou-se Morte.

Ele gostava de estilo. Os dois já estavam no telhado quando voltou a falar.

— VOCÊ TENTOU AVISÁ-LO — disse, tirando a cevadeira de Pituco.

— Sim, senhor. Sinto muito.

— NÃO PODE INTERFERIR NO DESTINO. QUEM É VOCÊ PARA JULGAR QUEM DEVE VIVER OU MORRER?

Morte observou a fisionomia de Mortimer com atenção.

— SÓ OS DEUSES PODEM FAZER ISSO — acrescentou. — INTERVIR NO DESTINO DE UMA ÚNICA PESSOA PODE DESTRUIR O MUNDO INTEIRO. ESTÁ ME ENTENDENDO?

Desconsolado, Mortimer assentiu.

— O senhor vai me mandar de volta para casa? — perguntou. Morte se inclinou e ajudou-o a subir na traseira da sela.

— POR TER MOSTRADO COMPAIXÃO? NÃO. TALVEZ SE TIVESSE DEMONSTRADO PRAZER. MAS VOCÊ PRECISA APRENDER A COMPAIXÃO PRÓPRIA AO TRABALHO.

— E qual é?

— UMA PONTA AFIADA.

Os dias se passaram, embora Mortimer não soubesse ao certo quantos. O Sol escuro do mundo de Morte cruzava o céu com regularidade, mas as visitas ao espaço mortal não pareciam se prender a nenhum programa especial. Morte tampouco visitava apenas reis e guerras importantes — a maioria das visitas se destinava a indivíduos bastante comuns.

As refeições eram servidas por Albert, que sorria à beça para si mesmo e não falava muito. Ysabell ficava no quarto a maior parte do tempo, ou montava seu pônei nas charnecas negras para além do chalé. Vê-la com o cabelo ondeando ao sabor do vento seria mais notável se ela andasse melhor a cavalo, se o pônei fosse maior ou se o cabelo fosse do tipo que ondeia naturalmente. Alguns cabelos são assim, outros não são. O dela não era.

Quando não estava longe de casa fazendo aquilo a que Morte se referia como O SERVIÇO, Mortimer ajudava Albert, realizava trabalhos no jardim e no estábulo, ou ficava na imensa biblioteca de Morte, lendo com a rapidez e a voracidade de quem acaba de descobrir a magia da palavra escrita.

Obviamente a maioria dos livros da biblioteca se compunha de biografias.

Os volumes se mostravam diferentes em um aspecto. Eles próprios se escreviam. As pessoas que já haviam morrido apresentavam os livros cheios de capa a capa, e as que ainda não haviam nascido precisavam se conformar com as páginas em branco. As do meio... Mortimer tomava notas, marcando o lugar e contando as páginas extras, e calculava que alguns livros chegavam a gerar de quatro a cinco parágrafos por dia. Ele não reconhecia a caligrafia.

Então finalmente juntou coragem.

— UMA O QUÊ? — indignou-se Morte, sentado atrás da mesa floreada, girando na mão a espátula em forma de foice.

— Uma tarde de folga — repetiu Mort.

O cômodo de repente pareceu opressivamente grande, com ele muito exposto no meio de um tapete que parecia um descampado.

— MAS POR QUÊ? — quis saber Morte. — NÃO PODE SER PARA IR AO ENTERRO DA SUA AVÓ — acrescentou. — EU SABERIA.

— Eu só quero, sabe, sair e conhecer gente — disse Mort, tentando não desviar os olhos do inflexível olhar azul.

— MAS VOCÊ CONHECE GENTE TODOS OS DIAS — protestou Morte.

— E, eu sei, só que, bem, não por muito tempo — retrucou Mort. — Quer dizer, seria bom conhecer alguém com expectativa de vida maior do que alguns minutos. Senhor — completou.

Morte tamborilou os dedos na mesa, produzindo um som parecido com o de um rato sapateando, e dirigiu a Mortimer mais alguns segundos de olhar fixo. Notou que o rapaz parecia ter muito menos cotovelos do que antes, já andava um pouco mais ereto e sabia usar palavras como “expectativa”. A culpa era da biblioteca.

— TUDO BEM — disse, com relutância. — MAS AINDA ACHO QUE VOCÊ TEM TUDO DE QUE PRECISA AQUI. O SERVIÇO NÃO É PESADO, É?

— Não, senhor.

— E VOCÊ TEM COMIDA, CAMA, DIVERSÃO E GENTE DA SUA IDADE.

— Perdão, senhor?

— MINHA FILHA — esclareceu Morte. — VOCÊ JÁ A CONHECEU, EU ACHO.

— Ah. Sim, senhor.

— ELA É MUITO AFETUOSA, DEPOIS QUE PASSAMOS A CONHECÊ-LA.

— Tenho certeza de que sim, senhor.

— NO ENTANTO, VOCÊ QUER... — Morte cuspiu as palavras num esgar de nojo — ... UMA TARDE DE FOLGA?

— Gostaria, sim senhor. Com sua licença, senhor.

— POIS BEM. QUE SEJA. VOCÊ TEM ATÉ O PÔR-DO-SOL.

Morte abriu o grande livro, pegou uma caneta e começou a escrever. De vez em quando, estendia o braço e fazia correr as contas de um ábaco.

Depois de um minuto, ergueu a cabeça.

— AINDA ESTÁ AÍ? — perguntou. — E NO SEU TEMPO LIVRE — Acrescentou, de mau humor.

— Hum — soltou Mort. — As pessoas vão me enxergar, senhor?

— TENHO CERTEZA DE QUE SIM — respondeu Morte. — EXISTE MAIS ALGUMA COISA EM QUE EU POSSA AJUDÁ-LO ANTES DE IR PARA ESSA SEM-VERGONHICE?

— Bem, senhor, tem uma coisa, sim. Não sei entrar no mundo dos mortais — disse Mort, em desespero.

Morte suspirou audivelmente e abriu uma gaveta da mesa.

— SAIA POR LÁ.

Com tristeza, Mortimer assentiu e percorreu o longo caminho até a saída do gabinete. Quando já estava abrindo a porta, Morte tossiu.

— GAROTO! — chamou ele, e jogou alguma coisa em sua direção.

Mortimer pegou-a no susto, enquanto a porta se abria.

Não havia mais porta. O tapete profundo se transformou num chão de pedras barrentas. A luz do dia caiu sobre ele como mercúrio.

— Mort — disse Mort, para quem pudesse ouvir.

— O quê? — perguntou um barraqueiro ao lado.

Mortimer correu os olhos à volta. Estava num mercado abarrotado de pessoas e animais. Todo tipo de mercadoria era vendido ali, desde agulhas até — por intermédio de alguns profetas itinerantes — visões da salvação. Era impossível conversar sem que fosse gritando.

Mortimer cutucou as costas do barraqueiro.

— O senhor está me vendo? — perguntou. O barraqueiro o fitou.

— Acho que sim — respondeu afinal. — Ou alguém bem parecido com você.

— Obrigado — disse Mort, imensamente aliviado.

— Não tem de quê. Vejo uma porção de gente todos os dias, de graça. Quer comprar cadarço?

— Acho que não — lamentou Mort. — Que lugar é esse?

— Você não sabe?

Duas pessoas próximas à barraca estavam pensativamente olhando para Mortimer. A mente dele disparou.

— Meu mestre viaja muito — explicou, sem fugir à verdade. — Chegamos ontem à noite, e eu estava dormindo na carroça. Agora tenho a tarde livre.

— Ah! — exclamou o barraqueiro, inclinando-se para frente de maneira conspiratória. — À procura de diversão? Posso arrumar para você.

— Eu realmente gostaria de saber onde estou — insistiu Mort. O homem se mostrou surpreso.

— Aqui é Ankh-Morpork — disse. — Não dá para ver? Ou sentir pelo cheiro?

Mortimer fungou. Havia alguma coisa diferente naquele ar. Era como se tivesse vida. A cada respiração, era impossível não notar que milhares de pessoas estavam perto e que quase todas tinham sovaco.

O barraqueiro encarou Mortimer, notando-lhe o rosto pálido, as roupas de bom corte e o aspecto estranho.

— Olhe, vou ser franco com você — começou ele. — Posso lhe indicar um ótimo bordel.

— Já almocei — rebateu Mort, distraído. — Mas o senhor poderia me informar se estamos perto de... acho que se chama Sto Lat?

— Uns trinta quilômetros em direção ao Centro, mas lá não tem nada para um jovem do seu tipo — analisou o vendedor. — Você está sozinho, quer novas experiências, emoções, romance...

No meio tempo, Mortimer abrira o saco que Morte havia lhe dado. Estava cheio de moedinhas de ouro, mais ou menos do tamanho de uma lantejoula.

Outra vez lhe veio à mente a imagem da menina clara e ruiva que, de alguma forma, soubera que ele existia. De repente, as sensações difusas que o vinham perseguindo nos últimos dias se acentuaram.

— Eu quero — anunciou ele, com firmeza — um cavalo bem veloz.

Cinco minutos depois, Mortimer estava perdido.

Esta parte de Ankh-Morpork era conhecida como As Sombras, uma área da cidade à espera de auxílio governamental ou, preferencialmente, de um lança-chamas. Não poderíamos chamá-la de miserável, porque seria levar a palavra ao seu extremo. Ela ia além da miséria e saía pelo outro lado, onde, por uma espécie de inversão einsteiniana, alcançava um horror magnífico — ostentado como um emblema arquitetônico. Era barulhenta, abafada e cheirava a chão de estábulo.

Era mais um habitat do que um bairro, como um grande recife de coral terrestre. Havia seres humanos, sem dúvida, mas eram os equivalentes humanóides de lagostas, lulas, camarões e assim por diante. E tubarões.

Mortimer vagou em desespero pelas ruas tortuosas. Qualquer um que se encontrasse à altura dos telhados teria percebido certa configuração no aglomerado de pessoas atrás dele, sugerindo que inúmeros homens distraídos convergiam para um mesmo alvo, e teria acertadamente concluído que Mortimer e seu saco de ouro tinham a mesma expectativa de vida de um porco-espinho de três patas numa auto-estrada de seis pistas.

Percebe-se que As Sombras não era o tipo de lugar que tem moradores. Tem freqüentadores. De vez em quando, Mortimer tentava puxar conversa para achar um bom vendedor de cavalos. A pessoa quase sempre murmurava alguma coisa e saía correndo, pois qualquer freqüentador que quisesse viver por mais de três horas em As Sombras criava sentidos bem apurados e, da mesma forma que um camponês não ficaria ao lado de uma árvore alta durante a tempestade, não se demoraria perto de Mortimer.

Então ele chegou afinal ao Ankh, o maior dos rios. Mesmo antes de entrar na cidade, a corrente já se mostrava lenta e pesada com os sedimentos das planícies e, quando alcançava As Sombras, até um ateu poderia atravessá-la andando. Era difícil afundar no Ankh, mas fácil sufocar.

Desconfiado, Mortimer olhou a superfície. Ela parecia se mover. Havia borbulhas. Aquilo tinha de ser água.

Ele suspirou e deu meia-volta.

Três homens haviam surgido atrás dele, como se saídos das pedras. Tinham a aparência carregada e inabalável desses bandidos cujo aparecimento em qualquer narrativa indica que é hora de o herói ser um pouco ameaçado, mas não demais, porque também é óbvio que eles vão ter uma bela surpresa.

Estavam olhando Mortimer com malícia. Eram bons no negócio.

Um deles havia sacado uma faca, agitando-a em pequenos círculos no ar. Avançou lentamente em direção a Mortimer, enquanto os outros dois se mantinham atrás para dar apoio imoral.

— Passe o dinheiro — gritou ele.

Mortimer levou a mão ao saco de moedas, no cinto.

— Espere um pouco — disse. — O que acontece depois?

— O quê?

— É o dinheiro ou a vida? — perguntou Mort. — É isso que os assaltantes devem dizer. O dinheiro ou a vida. Eu li num livro — Acrescentou.

— Talvez, talvez — reconheceu o ladrão. Sentiu que estava perdendo terreno, mas voltou a atacar cheio de pompa. — Por outro lado, pode ser o dinheiro mais a vida.

O homem olhou de esguelha para os colegas, que aproveitaram a deixa para rir.

— Nesse caso... — começou Mort, suspendendo o saco para jogá-lo o mais longe possível no Ankh, embora houvesse uma chance razoável de o negócio quicar.

— Ei, o que está fazendo? — irritou-se o ladrão.

Ele começou a correr, mas se deteve quando Mortimer moveu o saco de maneira ameaçadora.

— Bem — disse Mort. — Eu penso o seguinte: se vocês vão me matar mesmo, é melhor eu me livrar do dinheiro. Está nas suas mãos.

Para ilustrar o argumento, ele tirou uma moeda do saco e jogou-a na água, que a recebeu com um lamentável barulho de sorvo. Os bandidos estremeceram.

O líder olhou o saco. Olhou a faca. Olhou o rosto de Mortimer. Olhou os colegas.

— Com licença — pediu, e os três se reuniram.

Mortimer calculou a distância até o fim do beco. Não conseguiria vencê-la. De qualquer maneira, parecia que seguir gente era outra coisa em que os três ali seriam bons. Com certeza aquilo os deixara um pouco tensos.

O líder se voltou para Mortimer. Dirigiu um último olhar para os colegas. Ambos fizeram que sim com a cabeça.

— Acho que vamos matá-lo e arriscar perder o dinheiro — anunciou. — Não queremos que esse tipo de coisa se espalhe.

Os outros dois sacaram as facas. Mortimer engoliu em seco.

— Isso é absurdo! — exclamou Mort.

— Por quê?

— Bem, para começo de conversa, eu não vou gostar.

— Você não tem de gostar, você tem de... morrer — retrucou o líder, avançando.

— Não acho que seja minha hora — objetou Mort, recuando. — Tenho certeza de que teriam me dito.

— É — resmungou o líder, que já estava se enchendo com aquilo. — É, bom, teriam dito, não é? Macacos me mordam!

Mortimer havia acabado de dar mais um passo atrás. Cruzando a parede.

O líder examinou a pedra dura que havia engolido Mortimer e jogou a faca longe.

— Estou f... — disse ele. — F... -se os magos! Eu detesto esses r.. desses magos!

— Então por que não pára de f... com a vida deles? — murmurou um dos capangas, pronunciando com facilidade as reticências.

O terceiro membro da gangue, que era um pouco lento de raciocínio, disse:

— Olhem, ele atravessou a parede!

— E tem séculos que o estamos seguindo — reclamou o segundo. — Você é ótimo, Careca. Eu falei que achava que ele era mago. Só mago anda por aqui sozinho. Num falei que parecia mago? Eu falei...

— Você está falando demais — reagiu o líder.

— Eu vi, ele atravessou a parede ali...

— Ah, é?

— É!

— Atravessou mesmo, num viram?

— Você se acha brilhante, não é?

— Isso mesmo, brilhante!

Num único movimento, o líder pegou a faca lustrosa do chão.

— Brilhante assim?

O terceiro ladrão se aproximou da parede e chutou-a algumas vezes. Atrás dele, só havia o som de briga e borbulhas.

— É uma parede mesmo — constatou. — Como qualquer outra. Pessoal, como acham que o cara fez isso?

— Pessoal?

Ele tropeçou nos corpos caídos.

— Ah — disse.

Embora fosse lerdo, não tardou em se dar conta de algo muito importante. Estava num beco de As Sombras, e sozinho. Saiu correndo e conseguiu percorrer um bom pedaço do bairro.


Morte avançava lentamente pela sala dos marcadores de tempo, inspecionando as fileiras em série de ampulhetas em ação. Albert ia atrás, com o livro grande aberto nos braços.

Uma enorme cascata cinza de som troava ao redor. O barulho vinha das prateleiras, onde, estendendo-se ao infinito, fileiras e mais fileiras de ampulhetas derramavam a areia dos mortais. Era um som pesado, melancólico, um som que corria feito creme escuro sobre o rocambole da alma.

— MUITO BEM — disse Morte, afinal. — TOTAL DE TRÊS. UMA NOITE CALMA.

— Então seriam Maná Tendão, outra vez o abade Lobsang e essa princesa Keli — informou Albert.

Morte olhou as três ampulhetas na mão.

— EU ESTAVA PENSANDO EM MANDAR O GAROTO — comentou.

Albert consultou o livro.

— Bem, Maná Tendão não vai ser problema, e o abade é o que se pode chamar de uma pessoa experiente — avaliou. — Uma pena, a menina. Só 15 anos. Pode ser complicado.

— É. UMA LÁSTIMA.

— Patrão?

Morte estava segurando o terceiro vidro, pensativo, olhando o jogo de luz na superfície. Suspirou.

— ALGUÉM TÃO JOVEM ...

— O senhor está bem? — perguntou Albert, com a voz cheia de preocupação.

— O TEMPO, COMO UMA TORRENTE INCESSANTE, LEVA TODOS OS...

— Patrão!

— O QUÊ? — perguntou Morte, voltando a si.

— O senhor está trabalhando demais, é isso...

— DO QUE ESTÁ FALANDO, HOMEM?

— Por um instante, o senhor ficou meio alheio, patrão.

— BESTEIRA. NUNCA ME SENTI MELHOR. ONDE ESTÁVAMOS?

Albert encolheu os ombros e analisou os apontamentos do livro.

— Maná é bruxa — disse. — Pode ficar um pouco chateada se o senhor mandar Mort.

Todos os profissionais da magia ganhavam o direito de, no momento em que sua areia pessoal se esgotava, serem reivindicados pelo próprio Morte, e não por seus representantes.

Morte pareceu não ouvir Albert. Estava outra vez olhando a ampulheta da princesa Keli.

— QUAL É O NOME DAQUELA SENSAÇÃO DE DESGOSTO POR AS COISAS SEREM APARENTEMENTE COMO SÃO?

— Tristeza, senhor. Agora, eu acho...

— EU SOU A TRISTEZA.

Albert ficou boquiaberto. Por fim, conseguiu se controlar durante tempo o bastante para dizer:

— Patrão, a gente estava falando do Mort!

— QUE MORT?

— Seu aprendiz — lembrou Albert, com paciência. — O jovem alto.

— É claro. Bem, vamos mandá-lo.

— Patrão, será que ele está pronto para ir sozinho? — perguntou Albert.

Morte pensou a respeito.

— ELE VAI CONSEGUIR — respondeu, afinal. — É ESPERTO, APRENDE RÁPIDO E, FRANCAMENTE — acrescentou —, AS PESSOAS NÃO PODEM ESPERAR QUE EU FIQUE CORRENDO ATRÁS DELAS O TEMPO TODO.


Desorientado, Mortimer encarou a tapeçaria de veludo a alguns centímetros dos olhos.

Eu atravessei uma parede, pensou. E isso é impossível.

Com cuidado, empurrou a tapeçaria para o lado a fim de ver se existia uma porta escondida em algum lugar, mas não havia nada além do velho reboco, que rachara em alguns pontos para revelar os tijolos úmidos mas enfaticamente sólidos.

Experimentou cutucar a alvenaria. Estava claro que não voltaria pelo mesmo caminho.

— Bem — falou para a parede. — E agora?

Uma voz atrás dele disse:

— Hum. Com licença, por favor.

Ele se virou devagar.

No meio da sala, reunida em torno de uma mesa, havia uma família klatchiana composta de pai, mãe e meia dúzia de filhos pequenos. Oito pares de olhos redondos estavam cravados em Mortimer. O nono par, pertencente a uma pessoa idosa de sexo indefinido, não estava porque a criatura se valera do intervalo para abrir espaço na travessa de arroz, adotando a opinião de que mais vale um peixe cozido na mão do que qualquer número de aparições voando. O silêncio era pontuado pelo barulho da mastigação.

Num canto da sala abarrotada havia um pequeno santuário para Offler, o Deus Crocodilo de Klatch. Ele estava sorrindo exatamente como Morte, à exceção de que Morte não tinha um bando de passarinhos sagrados que lhe traziam notícias dos fiéis e lhe mantinham os dentes limpos.

Os klatchianos prezavam a hospitalidade sobre todas as outras virtudes. A mulher pegou um prato do armário e silenciosamente começou a enchê-lo, arrancando um pedaço de bagre das mãos da pessoa anciã. Os olhos pintados dela não se desgrudaram de Mortimer.

Era o pai que tinha falado. Nervoso, Mortimer os saudou.

— Desculpe — pediu. — Hã, parece que atravessei essa parede.

Foi péssimo, ele tinha de admitir.

— Por favor — disse o homem.

Com as pulseiras chacoalhando, a mulher arrumou algumas fatias de pimentão no prato e jogou sobre elas um molho verde-escuro que Mortimer temeu reconhecer. Ele o havia experimentado algumas semanas antes e, embora se tratasse de uma receita complicada, uma prova fora suficiente para saber que era feito de vísceras de peixe marinadas por vários anos num tanque de bílis de tubarão. Morte havia dito que aquele era um paladar com o qual se acostumava. Mortimer decidira não se dar ao trabalho.

Arriscou contornar a sala em direção ao vão com cortina de contas, e todas as cabeças se viraram para observá-lo. Tentou sorrir.

A mulher perguntou:

— Por que o demônio está mostrando os dentes, marido da minha vida?

O homem respondeu:

— Pode ser fome, lua do meu desejo. Ponha mais peixe!

A pessoa idosa resmungou:

— Eu estava comendo isso, filha ingrata. Que desgraça de mundo, quando não existe respeito pelos mais velhos!

O fato é que, embora as palavras entrassem nos ouvidos de Mortimer em klatchiano, com todos os floreios e sutis ditongos de uma língua tão antiga e sofisticada que tinha quinze palavras para designar “assassinato” antes mesmo de o resto do mundo começar a entender a idéia de se golpear a cabeça das pessoas com pedras, elas chegavam agora ao cérebro dele claras e compreensíveis como sua língua materna.

— Não sou nenhum demônio! Sou humano! — gritou ele, e parou, surpreso, ao notar que as palavras haviam saído num klatchiano perfeito.

— É bandido? — perguntou o pai. — Assassino? Para entrar assim... arrecadador de impostos?

Meteu a mão debaixo da mesa e exibiu um facão de carne amolado à finura de um papel. A mulher gritou, soltou o prato e puxou os filhos mais novos para si.

Mortimer viu a lâmina se agitar e entregou os pontos.

— Trago saudações dos grandes círculos do inferno — arriscou. A mudança foi notável. Baixaram o facão, e a família se abriu em sorrisos largos.

— É sorte quando um demônio vem visitar — exclamou o pai. — Qual é sua vontade, ó filho imundo das vísceras de Offler?

— O quê? — assustou-se Mort.

— O demônio traz bênção e fortuna ao homem que o ajuda — disse o homem. — Como lhe podemos ser úteis, ó hálito funesto da cova maldita?

— Bem, não estou com muita fome — adiantou Mort. — Mas se vocês souberem onde posso arranjar um cavalo veloz, eu poderia chegar a Sto Lat antes do pôr-do-sol.

O homem sorriu e se curvou:

— Conheço o lugar certo, excreção maléfica dos intestinos, se fizer a gentileza de me seguir.

Mortimer correu atrás dele. A pessoa mais velha observou-os sair com o olhar desconfiado, sem parar de mastigar.

— É isso que chamam de demônio por aqui? — ironizou. — Offler faz pouco desse lugar úmido. Até os demônios são de quinta categoria, não chegam nem aos pés dos que tínhamos na Terra Natal.

A mulher pôs uma pequena tigela de arroz no par de mãos dobradas ao meio da estátua de Offler (que sumiria até a manhã) e se afastou.

— Marido disse que mês passado, no Jardins de Curry, serviu a ser que não estava lá — lembrou ela. — Ficou impressionado. Dez minutos depois, o homem voltava e, em silêncio reverencioso, depositava uma pequena pilha de moedas de ouro sobre a mesa. Era dinheiro suficiente para se comprar boa parte da cidade.

— Ele tinha um saco cheio — disse.

Durante algum tempo, a família se limitou a olhar o metal. A mulher suspirou.

— A riqueza traz muitos problemas — lamentou. — O que vamos fazer?

— Voltar para Klatch — afirmou o marido —, onde nossos filhos podem crescer num país direito, fiel às gloriosas tradições dos ancestrais, e o homem não precisa trabalhar como garçom para chefes cruéis, mas se sentir orgulhoso. E temos de partir agora mesmo, flor de tamareira.

— Por que assim tão cedo, ó laborioso filho do deserto?

— Porque — disse o homem — acabo de vender o campeão de corridas do Patrício.

O cavalo não era tão bonito ou rápido quanto Pituco, mas deixou para trás alguns guardas montados que, por alguma razão, pareciam ansiosos em falar com Mortimer. Logo os paupérrimos subúrbios de Morpork também foram ultrapassados, e a estrada se estendeu pelos férteis campos de terra preta da Planície Sto, formada através dos tempos pela cheia periódica do grande e vagaroso Ankh, que levava à região prosperidade, segurança e artrite crônica.

O lugar também era muito entediante. A luz se mostrava cada vez mais dourada, e Mortimer cavalgava pela paisagem plana e fria, cortada de ponta a ponta por plantações de repolho.

Podemos dizer muitas coisas a respeito do repolho. Podemos discorrer sobre o alto teor vitamínico, a contribuição vital de ferro, as valiosas fibras e o recomendável valor nutritivo. No todo, porém, falta alguma coisa a ele. Apesar de toda a imensa superioridade nutritiva e moral sobre, digamos, as margaridas, o repolho nunca foi uma visão que inspirasse os poetas. A menos que eles estivessem com fome, obviamente. Eram apenas trinta quilômetros até Sto Lat, mas em termos de experiência insignificante de vida pareciam dois mil.

Havia guardas nos portões de Sto Lat, embora, comparados aos de Ankh, tivessem uma aparência tímida e amadora. Mortimer se aproximou, e um deles perguntou aonde ia.

— Não consigo parar — gritou Mort.

O guarda era novo no emprego e bastante ágil. O trabalho não era o que ele vinha esperando. Ficar o dia inteiro parado dentro de uma armadura, com um machado preso a um pedaço de pau não era exatamente o que estivera procurando. Ele havia esperado emoções, desafios, arco, flecha e um uniforme que não enferrujasse na chuva.

Deu um passo à frente, pronto para defender a cidade dos indivíduos que não respeitam as ordens dadas por empregados municipais devidamente autorizados. Mortimer considerou a lâmina pairando a alguns centímetros de seu rosto. Aquilo estava começando a acontecer com freqüência demais.

— Por outro lado — arriscou ele, com mais calma —, e se eu lhe desse de presente este maravilhoso cavalo?

Não foi difícil achar a entrada do castelo. Lá também havia guardas, e eles tinham arcos e um ar consideravelmente mais incompassível diante da vida. De qualquer modo, Mortimer já não dispunha de mais nenhum cavalo. Ficou ali um pouco mais, até começarem a lhe dispensar um montante razoável de atenção, e então partiu desconsolado pelas ruas da cidadezinha, sentindo-se idiota.

Depois de tudo aquilo, depois de quilômetros de repolho e de ficar com o traseiro duro feito pedra, ele nem sequer sabia por que estava ali. Então a menina o enxergara quando ele estava invisível? E isso queria dizer alguma coisa? Claro que não. Só que ele continuava vendo o rosto dela e o brilho de esperança em seus olhos Ele queria lhe dizer que estava tudo bem. Queria contar a ela de si mesmo e de tudo que pretendia ser. Queria descobrir qual era o quarto dela e ficar olhando para lá a noite toda, até a luz se apagar. E assim por diante.

Pouco tempo depois, um ferreiro cuja oficina ficava numa rua estreita que dava para a lateral do castelo interrompeu o trabalho a fim de olhar para fora e viu um rapaz alto e desengonçado com o rosto bastante vermelho, tentando atravessar a parede.

Ainda mais tarde, um jovem com feridas superficiais na cabeça entrou numa das tabernas da cidade e pediu o endereço do mago mais próximo.

E foi ainda mais tarde que Mortimer surgiu na casa de alvenaria que se apresentava numa placa de bronze escurecido como a residência do Dr. Ígneo Cortabem (Invisível), Mesttre do Infinitto, Iluminartus, Magho de Príncipes, Guardião dos Porttais Sagrados — Se Não Houver Ninguém, Deixe Recado Com a Senhora Nugent na Casa ao Lado.

Devidamente impressionado — apesar do coração a mil —, Mortimer suspendeu a aldrava, que tinha a forma de uma gárgula pavorosa com uma pesada argola de ferro na boca, e bateu duas vezes.

Houve uma breve agitação no interior da casa, a seqüência de rápidos barulhos domésticos que, num lugar menos nobre, teriam sido feitos por, digamos, alguém metendo a louça do almoço na pia e escondendo a roupa suja.

Por fim, a porta se abriu, lenta e misteriosamente.

— Melhor fingir que eztá imprezionado — advertiu a aldrava, um tanto dificultada pela argola. — Ele faz isso com roldanas e um pedazo de fio. Não é muito bom em feitizos de abertura, entende?

Mortimer encarou o sorridente rosto de metal. Trabalho para um esqueleto que atravessa paredes, disse a si mesmo. Quem sou eu para ficar surpreso com o que quer que seja?

— Obrigado — falou.

— De nada. Limpe os pés no capajo. É dia de folga da razpadeira de calzados.

A grande sala era baixa, escura e cheirava principalmente a incenso, mas um pouco a repolho cozido, roupa suja e a esse tipo de gente que joga todas as meias na parede e usa as que não grudam. Havia uma enorme bola de cristal rachada, um astrolábio com várias partes faltando, um octograma bastante desgastado no chão e um jacaré empalhado pendurado no teto. Jacaré empalhado é um equipamento absolutamente indispensável em qualquer estabelecimento mágico de boa gerência. Aquele ali parecia não ter gostado muito da coisa.

A cortina de contas na parede oposta foi aberta com um gesto dramático, e um vulto encapuzado surgiu.

— Constelações favoráveis brilham a hora de nosso encontro! — exclamou ele.

— Quais? — perguntou Mort.

Houve um súbito silêncio de preocupação.

— O quê?

— Que constelações seriam essas? — indagou Mort.

— As favoráveis — respondeu o vulto, sem muita certeza. Mas logo se reanimou. — Por que incomodas Ígneo Cortabem, dono das oito chaves, aventureiro do Calabouço das Dimensões, mago supremo da...

— Com licença — pediu Mort. — O senhor é mesmo?

— Sou mesmo o quê?

— Mestre de não-sei-o-quê, lorde supremo do calabouço sagrado?

Com um movimento irritado, Cortabem tirou o capuz. Em vez do místico de barbas grisalhas que Mortimer vinha esperando, ele se deparou com um rosto redondo, gorducho e rosado como um empadão, ao qual de alguma forma também se assemelhava em outros aspectos. Por exemplo, como a maioria dos empadões, ele não tinha barba e, como a maioria dos empadões, parecia essencialmente bem-humorado.

— Em sentido figurado — disse ele, afinal.

— O que isso quer dizer?

— Bem, quer dizer não — admitiu Cortabem.

— Mas você disse...

— Era publicidade — cortou o mago. — Um tipo de magia em que venho trabalhando. Afinal, o que você quer? — Ele lançou um olhar sugestivo. — A poção do amor? Alguma coisa para incentivar as meninas?

— É possível atravessar paredes? — perguntou Mort, em desespero.

Cortabem se deteve, com as mãos já a caminho de uma garrafa grande, cheia de um líquido viscoso.

— Usando magia?

— Hum — soltou Mort. — Acho que não.

— Então escolha paredes bem finas — sugeriu Cortabem. — Ainda melhor, use a porta. Aquela ali seria perfeita, se só veio aqui me fazer perder tempo.

Mortimer hesitou, então pôs o saco de moedas sobre a mesa. O mago olhou para elas, soltou um pequeno gemido e estendeu o braço. Mortimer segurou-o pelo pulso.

— Eu já atravessei paredes — disse, devagar.

— Claro que já, claro que já — murmurou Cortabem, sem despregar os olhos do saco.

Tirou a rolha da garrafa de líquido azul e tomou um gole distraído.

— Só que antes de atravessar eu não sabia que podia, enquanto atravessava não sabia que estava conseguindo e agora que atravessei não lembro como fiz. E quero atravessar de novo.

— Por quê?

— Porque — respondeu Mort — se eu puder atravessar paredes, posso fazer qualquer coisa.

— Muito profundo — assentiu Cortabem. — Filosófico. E qual o nome da jovem do outro lado dessa parede?

— Ela é... — Mort engoliu em seco. — Não sei o nome. Se é que existe uma jovem — acrescentou, insolente. — Não estou dizendo que existe.

— Certo — disse o mago, e tomou outro gole. — Pois bem. Como atravessar paredes. Vou pesquisar. Mas pode ficar caro.

Com cuidado, Mort pegou o saco e retirou uma pequena moeda de ouro.

— Um sinal — avisou, botando-a na mesa.

Cortabem pegou a moeda como se esperasse que ela fosse explodir ou evaporar e examinou-a com atenção.

— Nunca vi esse tipo de moeda — objetou. — Que letra ondulada é essa?

— Mas é ouro, não é? — perguntou Mort. — Quer dizer, não precisa aceitar...

— Não, não, é ouro — apressou-se em dizer Cortabem. — É ouro, sim. Eu só estava querendo saber de onde era, só isso.

— Você não ia acreditar — notou Mort. — A que horas é o pôr-do-sol aqui?

— Em geral conseguimos encaixá-lo entre o dia e a noite — respondeu Cortabem, ainda fitando a moeda e tomando pequenos goles da garrafa de líquido azul. — Mais ou menos agora.

Mortimer olhou para fora da janela. A rua já dava mostras de anoitecer.

— Eu volto — murmurou, e avançou para a porta.

Ele ouviu o mago gritar alguma coisa, mas já estava correndo em disparada pela rua.

Começava a entrar em pânico. Morte estaria à sua espera a trinta quilômetros dali. Haveria briga. Haveria uma terrível...

— AH, GAROTO.

Um vulto familiar saiu do clarão da barraca de enguia frita, segurando um prato de búzios.

— O VINAGRE ESTÁ BEM PICANTE. SlRVA-SE. AINDA TENHO UM ESPETO.

Mas, obviamente, só porque ele estava a trinta quilômetros de distância, não queria dizer que também não estivesse ali...


E, na sala desarrumada, Cortabem não parava de girar a moeda de ouro entre os dedos, sussurrando “paredes” e bebendo o líquido azul.

Só pareceu se dar conta do que estava fazendo quando já não havia mais bebida, momento no qual os olhos se voltaram para a garrafa e em meio a uma crescente névoa rosada, leram o rótulo dizia “Revingorante Cabritismo e Possão Mágica da Paichão, Apenas Uma Culher Cheia Antis di Drumir, e Piquena Assim”.


— Sozinho? — perguntou Mort.

— EXATAMENTE. CONFIO EM VOCÊ.

— Nossa!

A proposta tirou tudo o mais da cabeça de Mortimer, e ele se viu surpreso ao descobrir que não estava nauseado. Assistira a muitas mortes na última semana, e todo o pavor desaparecia quando sabíamos que estaríamos conversando com a vítima logo depois. A maioria delas ficava aliviada, uma ou duas se mostravam zangadas, mas todas se achavam dispostas a ouvir algumas palavras amigas.

— ACHA QUE CONSEGUE?

— Bem, senhor. Acho que sim.

— É ESSE O ESPÍRITO. DEIXEI PITUCO NO BEBEDOURO DA ESQUINA. LEVE-O PARA CASA QUANDO TERMINAR.

— O senhor vai ficar aqui?

Morte contemplou a rua. As órbitas oculares brilharam.

— ACHEI QUE TALVEZ PUDESSE PASSEAR UM POUCO — disse, misterioso. — NÃO ESTOU ME SENTINDO MUITO BEM. UM POUCO DE AR FRESCO SERIA EXCELENTE.

Pareceu se lembrar de alguma coisa, ocultou a mão nas sombras do manto e sacou três ampulhetas.

— TUDO ACERTADO — avaliou. — DIVIRTA-SE.

Deu meia-volta e saiu pela rua, cantarolando.

— Hum. Obrigado — disse Mort.

Então levou as ampulhetas à luz, notando a que já estava em seus últimos grãos de areia.

— Quer dizer que estou no comando? — gritou, mas Morte havia dobrado a esquina.

Pituco saudou-o com um leve relincho de reconhecimento, Mortimer montou — o coração acelerado pela apreensão e pelo peso da responsabilidade. Os dedos trabalharam automaticamente, tirando a foice da bainha e ajustando a lâmina (que brilhou azul-metálica na noite, cortando a luz das estrelas como salame). Ele subiu com cuidado, encolhendo-se por causa das feridas da sela do campeão do Patrício, mas montar Pituco era como cavalgar um travesseiro. Bêbado de autoridade delegada, lembrou-se então de tirar do alforje a capa do Morte e prendeu-a ao pescoço com o broche prateado.

Deu outra olhada na primeira ampulheta e cutucou Pituco com os joelhos. O cavalo cheirou o ar frio e começou a trotar.

Atrás deles, Cortabem saiu correndo de casa, avançando pela rua gelada com as roupas esvoaçando.

Agora o cavalo andava a meio galope, aumentando a distância entre os cascos e o chão de pedras. Com uma chicotada do rabo, venceu os telhados e voou para o céu frio.

Cortabem não viu nada disso. Tinha coisas mais urgentes na cabeça. Deu um salto aéreo e caiu por inteiro na água gelada do bebedouro de cavalos, deitando-se aliviadamente entre os pedaços de gelo. Depois de um tempo, a água começou a evaporar.


Mortimer manteve baixa altitude pelo puro prazer de sentir a velocidade. Os campos adormecidos bramiam, inaudíveis, logo abaixo. Pituco avançava num galope confortável, com os grandes músculos deslizando sob a pele como jacarés em bancos de areia, e a crina a açoitar o rosto de Mortimer. A noite se esquivava da ponta da foice, mas era cortada em duas metades aneladas.

Eles avançaram sob o luar tão silenciosamente quanto uma sombra, visíveis apenas aos gatos e seres que se dedicavam a coisas que o homem não deveria saber.

Mais tarde Mortimer não se lembraria, mas ele provavelmente riu.

Logo as planícies geladas cederam espaço para os terrenos irregulares em torno das montanhas, e então as próprias Ramtops surgiram na direção deles. Pituco abaixou a cabeça e aumentou o passo, tendo em mira uma passagem entre duas montanhas pontudas como os dentes de um gnomo. Em algum lugar, um lobo uivou.

Mortimer deu outra olhada na ampulheta. A estrutura era esculpida em madeira de carvalho e raiz de mandrágora, e, mesmo ao luar, a areia se mostrava dourada. Girando o vidro, conseguiu divisar o nome “Ammeline Tendão” gravado em traços levíssimos.

Pituco diminuiu a marcha. Mortimer olhou para a floresta salpicada de uma neve que era prematura ou terrivelmente tardia (podia ser as duas coisas, porque as Ramtops estocavam clima e distribuíam-no sem qualquer compromisso com a verdadeira época do ano).

Um buraco se abriu debaixo deles. Pituco mais uma vez desacelerou, deu meia-volta e desceu para uma clareira branca de neve. Ela era redonda, com um pequeno chalé exatamente no meio. Se a terra à volta não se encontrasse coberta de neve, Mortimer teria notado que não havia cepos; as árvores não tinham sido cortadas, apenas haviam desanimado de crescer ali. Ou tinham fugido.

A luz de vela irradiava de uma das janelas do andar de baixo, criando uma poça laranja sobre a neve.

Pituco pousou com suavidade e trotou pela crosta gelada sem afundar. Evidentemente, não deixou pegadas.

Mortimer desceu do cavalo e caminhou até a porta, murmurando para si mesmo e traçando no ar curvas experimentais com a foice.

O telhado do chalé fora construído com beirais largos, para escoar a neve e cobrir as pilhas de lenha. Nenhum morador das altas Ramtops sonharia em começar o inverno sem pilhas de lenha amontoadas em volta da casa. Mas ali não havia lenha, muito embora ainda faltasse bastante tempo para a primavera.

Havia, no entanto, um rolo de feno numa rede próxima à porta. E um bilhete, escrito em maiúsculas grandes e ligeiramente tremidas: PARA O CAVALO.

Aquilo teria deixado Mortimer preocupado, caso ele se permitisse. Alguém o esperava. Mas nos últimos dias ele vinha aprendendo que melhor do que afundar na incerteza era surfar na superfície. Seja como for, Pituco não estava preocupado com escrúpulos morais e abocanhou a banquete.

Havia a dúvida de bater à porta ou não. Por alguma razão, não parecia apropriado. E se ninguém respondesse, ou o mandassem embora?

Então ele abriu o trinco e empurrou a porta. A madeira se abriu sem ranger.

Havia uma cozinha de teto baixo, com vigas a uma altura complicada para Mortimer. A luz da vela solitária iluminava a louça de barro sobre o aparador e o chão, que tinha sido esfregado e encerado à iridescência. O fogo na lareira não aumentava a claridade, porque não passava de um montinho de cinza branca sob os restos da lenha. Sem que lhe dissessem, Mortimer sabia que se tratava do último pedaço de lenha.

Uma senhora estava sentada à mesa da cozinha, escrevendo furiosamente, com o nariz adunco a poucos centímetros do papel. Um gato cinza se enroscou sobre a mesa, ao lado dela, e piscou com calma para Mortimer.

A foice bateu numa viga. A mulher ergueu a cabeça.

— Só um minutinho — disse, franzindo a testa para o papel. — Ainda não terminei aquela parte de estar em perfeita condição de saúde física e mental, uma porção de besteira mesmo, ninguém em perfeita condição de saúde física e mental estaria morto. Aceita uma bebida?

— O quê? — perguntou Mort. Ele se recompôs e repetiu:

— O QUÊ?

— Se é que você bebe. Vinho de framboesa. No aparador. Pode acabar com a garrafa.

Desconfiado, Mortimer fitou o móvel. Parecia estar perdendo o controle das coisas. Sacou a ampulheta e olhou o vidro. Restava um pouco de areia.

— Ainda tem uns minutos — avisou a bruxa, sem levantar a cabeça.

— Como, quer dizer, COMO A SENHORA SABE?

Ela o ignorou. Secou a tinta na frente da vela, fechou a carta com um pingo de cera e colocou-a debaixo do castiçal. Então pegou o gato.

— Vovó Beedle vem arrumar aqui amanhã e você vai embora com ela, entendeu? A pia de mármore rosa fica para Velhusca Nutley. Faz anos que está de olho nela.

O gato miou, em anuência.

— Eu não tenho, quer dizer, NÃO TENHO A NOITE TODA — Advertiu Mort.

— Tem, sim. Eu não tenho. E não precisa gritar — disse a bruxa.

Ela se levantou, e Mortimer pôde ver como era curvada, quase como um arco. Com alguma dificuldade, a mulher tirou um chapéu pontudo do gancho na parede, firmou-o com diversos alfinetes nos cabelos brancos e apanhou duas bengalas.

Caminhou até Mortimer e olhou para ele com seus olhos pequenos e brilhantes.

— Será que levo o xale? Acha que vou precisar do xale? Não, imagino que não. Deve ser muito quente aonde vou.

Olhou com atenção para Mortimer e franziu a testa.

— Você é mais jovem do que eu pensava — avaliou. Mortimer não disse nada. Então, em voz baixa, Maná Tendão falou:

— Acho que não é quem eu estava esperando.

Mortimer pigarreou.

— Quem exatamente a senhora estava esperando? — perguntou.

— Morte — respondeu, sem rodeios. — Faz parte do acordo, entende? Ficamos sabendo a hora de nossa morte e nos é garantida uma... atenção pessoal.

— Eu sou ela — concluiu Mort.

— Ela?

— A atenção especial. Morte me enviou aqui. Trabalho para ele. Ninguém mais pode ter a mim.

Mortimer se deteve. Estava tudo errado. Ele seria mandado de volta para casa em desgraça. Sua primeira incumbência, e ele deitava tudo por terra. Já podia até ouvir o riso das pessoas.

O gemido começou nas profundezas do seu constrangimento e saiu como uma buzina de nevoeiro.

— Só que esse é meu primeiro trabalho e estraguei tudo!

A foice caiu no chão com um estrondo, partindo um pedaço da perna da mesa e cortando uma laje ao meio.

Maná observou-o durante algum tempo, com a cabeça de lado. Então disse:

— Entendi. Qual o seu nome, rapaz?

— Mort — resmungou Mort. — De Mortimer.

— Bem, Mort, imagino que você tenha uma ampulheta em algum lugar.

Mortimer assentiu, vagamente. Levou a mão ao cinto e exibiu o vidro. A bruxa inspecionou-o com ar pensativo.

— Temos mais ou menos um minuto — analisou. — Não nos resta muito tempo. Só me dê um instante para fechar a casa.

— Mas a senhora não entende! — rebateu Mort. — Vou estragar tudo de novo! Nunca fiz isso!

Ela lhe deu tapinhas na mão.

— Nem eu — disse, afinal. — Podemos aprender juntos. Agora pegue a foice e deixe de criancice, meu menino.

Apesar dos protestos dele, Maná impeliu-o para a neve e seguiu-o, trancando a porta com uma chave pesada de ferro, que pendurou num gancho perto da porta.

O gelo havia se apoderado da floresta, fazendo as raízes estalarem. A Lua estava se pondo, mas o céu se encontrava cheio de estrelinhas brancas que faziam o inverno parecer ainda mais frio. Maná Tendão estremeceu.

— Lá tem um cepo velho — comentou ela. — Dá uma bela vista do vale. No verão, é claro. Eu gostaria de me sentar.

Mortimer ajudou-a a caminhar pela neve e tirou o máximo possível de gelo do tronco. Eles se sentaram com a ampulheta a separá-los. Qualquer que fosse a vista no verão, ela agora consistia apenas de rochedos negros contra um céu do qual caíam pequenos flocos de neve.

— Não acredito nisso — disse Mort. — Quer dizer, a senhora fala como se quisesse morrer.

— Vou sentir saudade de algumas coisas — admitiu ela. — Mas vai cansando, sabe? A vida. Não se pode mais confiar no próprio corpo, e chega o momento de seguir adiante. Acho que já é hora de eu fazer outra coisa. Ele disse a você que o pessoal que lida com magia pode vê-lo o tempo todo?

— Não — respondeu Mort, sem convicção.

— Bem, nós podemos.

— Ele não gosta muito de bruxas e magos — apontou Mort.

— Ninguém gosta de um sabichão — rebateu ela, com certo prazer. — Nós damos trabalho. Os padres não; então gosta deles.

— Nunca me disse nada — ressalvou Mort.

— Ah. Eles estão sempre falando para as pessoas que a vida vai ser melhor depois da morte. Nós afirmamos que pode ser muito boa aqui mesmo, desde que se empenhem.

Mortimer hesitou. Queria dizer: a senhora está enganada, ele não é nem um pouco assim, não se importa com o fato de as pessoas serem boas ou más, desde que se mostrem pontuais. E gostem de gatos.

Mas pensou duas vezes. Ocorreu-lhe que as pessoas precisavam acreditar em alguma coisa.

O lobo uivou novamente, tão próximo que Mortimer olhou à volta, apreensivo. Do extremo oposto do vale, um segundo lobo respondeu. A cantoria foi retomada por outros dois, nos recônditos da floresta. Mortimer nunca ouvira nada tão melancólico.

Olhou de esguelha para o vulto inerte de Maná Tendão e então, com pânico crescente, fitou a ampulheta. Pôs-se de pé, apanhou a foice e girou-a no ar com as duas mãos.

A bruxa se levantou, deixando o corpo para trás.

— Bom trabalho — analisou. — Por um instante, achei que tivesse errado.

Arfante, Mortimer se escorou numa árvore e observou Maná contornar o cepo para ver a si mesma.

— Hum — soltou ela. — O tempo fez muitos estragos.

Suspendeu a mão e riu quando viu as estrelas através de si mesma.

Então se transformou. Mortimer já vira isso acontecer — quando a alma se dava conta de que não estava mais presa ao campo mórfico do corpo —, mas nunca sob tamanho controle. O cabelo se soltou do coque apertado, crescendo e mudando de tom. O corpo se endireitou. As rugas diminuíram até desaparecer. O vestido de lã cinza se agitou como a superfície do mar e acabou traçando contornos totalmente diversos e perturbadores.

Ela olhou para baixo, sorriu e mudou o vestido para alguma coisa verde e colante.

— O que acha, Mort? — perguntou.

Antes a voz soara rachada e trêmula. Agora sugeria almíscar, xarope de bordo e outras coisas que fizeram o pomo-de-Adão de Mortimer balançar como bola de borracha em fita elástica.

— ... — disse ele, e comprimiu a foice na mão até os nós dos dedos ficarem brancos.

Ela avançou para ele como uma cobra.

— Não ouvi — ronronou.

— M-m-m-muito bom — disse ele. — É assim que você era?

— É como sempre fui.

— Ah.

Mortimer fitou os próprios pés.

— Preciso levar você — anunciou.

— Eu sei — disse ela. — Mas vou ficar aqui.

— Não pode! Quer dizer... — ele buscou as palavras — ... entende? Se ficar, você meio que se espalha e fica cada vez mais diluída até...

— Eu vou gostar — afirmou ela.

Inclinou-se para frente e lhe deu um beijo tão tênue quanto o suspiro de uma efemérida, desaparecendo até só restar o beijo — Exatamente como o Gato de Alice, só que mais erótico.

— Cuidado, Mort — disse a voz, em sua cabeça. — Você pode querer segurar esse emprego, mas vai conseguir abrir mão dele?

Mortimer se limitou a ficar passando a mão no rosto. Por um instante, as árvores em torno da clareira balançaram, houve o som de uma risada ao vento, e então o silêncio gelado caiu sobre a floresta outra vez.

O Serviço o chamou através da névoa rosada de sua mente. Ele pegou a segunda ampulheta e olhou-a. A areia já estava quase acabando.

O vidro era moldado com pétalas de lótus. Quando Mortimer o cutucou, o instrumento fez “Ommm”.

Ele correu pela neve até Pituco e se atirou na sela. O cavalo ergueu a cabeça, deu uma empinada e se lançou em direção às estrelas.

Imensos raios de luz verde e azul se desprendiam do teto do mundo. Cortinas de brilho octarina dançavam lenta e majestosamente sobre o Disco, enquanto o fogo da aurora coreal — a grande descarga de magia do campo vertical do Disco — escondia-se nas geladas montanhas verdes do Centro.

A haste central de Cori Celesti, o lar dos deuses, consistia em quinze quilômetros de um reluzente fogo frio.

Era um panorama visto por poucas pessoas, e Mortimer não era uma delas, porque estava inclinado sobre o pescoço de Pituco e se agarrava com unhas e dentes à vida, enquanto os dois avançavam pelo céu noturno, deixando para trás um rastro de vapor.

Havia outras montanhas concentradas em torno de Cori. Em comparação, não passavam de morrinhos, embora na realidade cada uma delas fosse um grandioso arranjo de desfiladeiros, cristas, penhascos, cascalhos e geleiras ao qual toda cadeia de montanhas teria prazer em se associar.

Entre as mais altas — no fim de um vale em forma de funil —, moravam os Ouvintes.

Trata-se de uma das seitas religiosas mais antigas do Disco, embora mesmo os deuses se mostrassem divididos na hora de julgar se ouvir era de fato uma religião. O que impedia o templo de ser soterrado por algumas avalanches bem miradas era o fato de até os deuses estarem curiosos com o que os Ouvintes pudessem vir a escutar. Se tem uma coisa que chateia um deus, é não saber de algo.

Mortimer ainda vai levar alguns minutos para chegar. Uma fileira de pontinhos preencheria muito bem esse espaço, mas o leitor já deve estar notando a estranha forma do templo — espiralado como uma grande concha de molusco branca, no fim do vale — e provavelmente vai querer uma explicação.

O fato é que os Ouvintes estão tentando descobrir o que foi exatamente que o Criador disse quando fez o universo.

A teoria é bastante fácil de entender.

Evidentemente, nada que o Criador faz se apaga, o que vale dizer que o eco daquelas primeiras palavras ainda deve estar em algum lugar, refletindo-se em toda a matéria do cosmo, mas audíveis para o bom ouvinte.

Eras atrás, os Ouvintes descobriram que o gelo e a sorte haviam feito daquele vale o oposto acústico perfeito do vale que gera eco, e construíram o templo de quartos múltiplos na posição exata que a cadeira confortável sempre ocupa na casa de um fanático por alta fidelidade. Complexos sintonizadores captavam e ampliavam o som, que era lançado pelo vale até o quarto central, onde, a qualquer hora do dia ou da noite, sempre estavam três monges.

Ouvindo.

Havia alguns problemas causados pelo fato de que eles não escutavam apenas os ecos sutis das primeiras palavras, mas todos os outros sons produzidos no Disco. Para reconhecerem o som das Palavras, precisavam aprender todos os outros barulhos. Isso exigia certo talento, e o novato só era aceito para treinamento se pudesse distinguir, pelo som, a uma distância de cem metros, de que lado uma moeda havia caído. Na verdade, só era aceito para a ordem quando conseguia dizer de que cor era ela.

E embora os Ouvintes sagrados morassem tão longe, muitas pessoas percorriam o longo e perigoso caminho até o templo, viajando por terras geladas e ameaçadas por trolls, transpondo rios velozes, escalando montanhas intimidantes, galgando a inóspita tundra, a fim de subir a escada estreita que levava ao vale remoto e procurar, com o coração aberto, os segredos do ser.

E os monges gritavam para eles: “Não façam tanto barulho!”

Pituco avançou pelo alto das montanhas como um raio branco, pousando no vazio nevado de um pátio tornado espectral pela luz de discoteca que vinha do céu. Mortimer saltou e correu pelo mosteiro até o quarto onde o 882 abade estava morrendo, cercado de seus fervorosos seguidores.

À medida que Mortimer corria pelo chão de mosaicos intrincados, seus passos ressoavam à volta. Os monges usavam chinelos de lã sobre os calçados.

Ele chegou ao leito e esperou por um instante, apoiando-se na foice até conseguir retomar o fôlego.

O abade, que era pequeno, completamente careca e tinha mais rugas do que um saco de ameixas secas, abriu os olhos.

— Você está atrasado — sussurrou, e morreu.

Mortimer engoliu em seco, lutou em busca de ar e meneou a foice num arco demorado, mas certeiro o bastante: o abade se sentou, deixando o corpo para trás.

— Bem na hora — disse, numa voz que só Mortimer pôde escutar. — Por um instante, cheguei a ficar preocupado.

— Tudo bem? — perguntou Mort. — Só que eu preciso correr...

O abade saltou da cama e avançou na direção de Mortimer por entre o aglomerado de seus consternados seguidores.

— Não vá ainda — pediu. — Sempre fico ansioso por essas conversas. O que aconteceu com o camarada de sempre?

— Camarada de sempre? — alarmou-se Mort.

— Sujeito alto. Capa preta. Pela aparência, não come muito — disse o abade.

— Camarada de sempre? O senhor está falando do Morte? — indagou Mort.

— Ele mesmo — respondeu o abade, com alegria. A boca de Mortimer se abriu.

— O senhor já morreu muito? — conseguiu perguntar.

— Bastante. Bastante. É claro — acrescentou o abade — que é só uma questão de prática.

— É?

— Temos de ir embora — chamou o abade. Mortimer fechou a boca.

— É isso que estou tentando dizer — observou.

— Então se você puder me deixar no vale — continuou o pequeno monge, placidamente.

Passou por Mortimer e seguiu para o pátio. Mortimer ficou olhando o chão por um instante, e então correu atrás dele de maneira que sabia ser extremamente antiprofissional e indigna.

— Olhe aqui... — começou.

— O outro tinha um cavalo chamado Pituco — lembrou o abade, com satisfação. — Comprou o negócio dele?

— Negócio? — perguntou Mort, completamente perdido.

— Ou o que for. Desculpe — pediu o abade. — Não sei como essas coisas funcionam, meu rapaz.

— Mort — disse Mort, distraído. — E acho que o senhor precisa voltar comigo. Se não se importa — acrescentou, no que esperava ser um modo firme e autoritário.

O monge deu meia-volta e sorriu para ele.

— Eu bem que gostaria — disse. — Talvez um dia. Agora, se puder me dar uma carona até a aldeia mais próxima, imagino que eu esteja para ser gerado.

— Gerado? Mas o senhor acabou de morrer! — argumentou Mort.

— É, mas tenho o que se pode chamar de ingresso para a temporada — explicou o abade.

Mortimer começou a entender, mas muito devagar.

— Ah — exclamou. — Já li sobre isso. Reencarnação, não é?

— É essa a palavra. Até agora, 53 vezes. Ou 54.

Pituco levantou a cabeça ao ouvir os dois se aproximarem e soltou um breve relincho de reconhecimento quando o abade lhe acariciou o focinho. Mortimer montou na sela e ajudou o abade a subir atrás dele.

— Deve ser muito interessante — considerou ele, quando Pituco já se afastava do templo.

Na escala de conversas fiadas, esse comentário marcaria pouquíssimos pontos, mas Mortimer não conseguiu pensar em nada melhor.

— Não é, não — refutou o abade. — Você imagina que sim porque acha que me lembro de todas as vidas, mas não me lembro. Pelo menos, não enquanto estou vivo.

— Eu não tinha pensado nisso — admitiu Mort.

— Imagine aprender a usar o banheiro cinqüenta vezes.

— Não ter nada para recordar... — arriscou Mort.

— Exatamente. Se eu pudesse voltar no tempo, não reencarnaria. E, quando começo a pegar o jeito das coisas, os rapazes descem do mosteiro procurando um menino que tenha sido gerado no momento em que o abade morreu. Falta de imaginação pouca é bobagem. Pare aqui, por favor.

Mortimer olhou para baixo.

— Mas estamos em pleno ar — objetou, sem muita certeza.

— Não vai demorar nada.

O abade desceu, deu alguns passos sobre o nada e gritou. Pareceu transcorrer um longo tempo. Então o abade voltou a montar Pituco.

— Nem sei mais há quanto tempo espero por isso — disse. Num vale baixo a alguns quilômetros do templo, havia uma aldeia que funcionava como uma espécie de indústria de serviço. De cima, parecia uma proliferação aleatória de cabanas pequenas mas totalmente à prova de som.

— Qualquer lugar serve — avisou o abade.

Mortimer o deixou a alguns metros da neve, num lugar onde parecia haver mais cabanas.

— Espero que a próxima vida seja melhor — disse. O abade encolheu os ombros.

— A esperança é a última que morre — observou. — De qualquer forma, tenho um intervalo de nove meses. A vista não é maravilhosa, mas pelo menos é quentinho.

— Então tchau — gritou Mort. — Tenho de correr.

— Au revoir — falou o abade, com tristeza, e se virou.

Os raios das luzes do Centro ainda bruxuleavam na paisagem. Mortimer suspirou e pegou a terceira ampulheta.

A estrutura era prateada, ornamentada com pequenas coroas, Quase já não havia areia alguma.


Imaginando que a noite já tivesse dado tudo o que lhe cabia e não pudesse piorar, Mortimer girou o vidro para dar uma olhada no nome...


A princesa Keli acordou.

Antes houvera um som como de alguém não fazendo barulho nenhum. Esqueça sapatinhos de cristal — com o passar dos anos a própria seleção natural havia determinado que as famílias reais que sobreviviam mais tempo eram aquelas cujos membros sabiam distinguir o assassino, no escuro, pelo barulho que ele tinha a decência de não fazer, porque, nos altos círculos, sempre havia alguém pronto para dar cabo do herdeiro.

A princesa ficou parada na cama, pensando no que fazer em seguida. Havia um punhal debaixo do travesseiro. Ela começou a deslizar a mão sobre o lençol, enquanto corria os olhos entreabertos pelo quarto, à procura de sombras estranhas. Sabia muito bem que, se de algum modo revelasse não estar dormindo, jamais acordaria outra vez.

Pelo janelão, entrava um pouco de luz no quarto, mas as armaduras, tapeçarias e apetrechos diversos que abarrotavam o aposento poderiam dar cobertura para um exército.

O punhal havia caído atrás da cama. De qualquer forma, ela provavelmente não o teria usado de maneira adequada.

Gritar pelos guardas não era uma boa idéia, decidiu ela. Se havia alguém no quarto, os guardas já deveriam ter sido dominados ou ao menos rendidos por uma bela quantia de dinheiro.

Havia uma panela utilizada para aquecer a cama perto da lareira. Será que serviria como arma?

Houve um leve som metálico.

Talvez gritar não fosse tão má idéia afinal de contas...

A janela implodiu. Por um instante, Keli pôde ver, emoldurado contra um inferno de chamas roxas e azuis, um vulto encapuzado montado sobre o maior cavalo em que já deitara olhos.

Havia alguém parado perto da cama, com uma faca semi-erguida.

Em câmera lenta, ela observou, fascinada, o braço subir e o cavalo galopar na velocidade de uma geleira pelo quarto. Agora estava sobre ela, começando a descer, o cavalo recuava e o cavaleiro se encontrava de pé nos estribos, agitando um tipo de faca, e então a lâmina cortou o ar com o barulho de um dedo raspando a borda de um copo molhado...

A luz desapareceu. Houve um baque macio no chão, acompanhado de um tinido metálico.

Keli respirou fundo.

Alguém lhe meteu a mão na boca, e uma voz preocupada disse:

— Se você gritar, vou me arrepender. Por favor. Já estou em apuros suficientes.

Qualquer pessoa que manifestasse aquela medida de súplica na voz era ou sincero, ou um ator tão talentoso que não teria de se meter em assassinatos para ganhar a vida. Ela perguntou:

— Quem é você?

— Não sei se posso dizer — respondeu a voz. — Você ainda está viva?

Ela engoliu a resposta irônica a tempo. Alguma coisa no tom da pergunta a inquietou.

— Não dá para ver? — indagou.

— Não é tão fácil... — Houve uma pausa.

Ela forçou a vista para enxergar na escuridão, dar um rosto à voz.

— Pode ser que eu tenha lhe causado um mal terrível — acrescentou o desconhecido.

— Não acabou de salvar minha vida?

— Na verdade, não sei o que salvei. Tem luz aqui?

— Às vezes, a criada deixa fósforos no consolo da lareira — informou Keli.

Ela sentiu o vulto se afastar. Ouviu alguns passos hesitantes, dois baques e por fim um retintim, embora a palavra não seja suficiente para descrever a verdadeira dissonância de metais que encheu o quarto. O barulho foi acompanhado até pelo tradicional tlintlim alguns segundos depois de imaginarmos que estava tudo acabado.

Um tanto indistinta, a voz disse:

— Estou debaixo de uma armadura. Onde é que eu deveria estar?

Keli desceu da cama, seguiu tateando até a lareira, localizou o feixe de fósforos pela luz fraca do fogo agonizante, riscou um deles numa explosão de fumaça, acendeu uma vela, achou a pilha de armadura desmembrada, tirou a espada de sua bainha e então quase engoliu a própria língua.

Alguém havia acabado de dar um sopro quente e molhado em seu ouvido.

— É o Pituco — explicou o sujeito debaixo da armadura. — Só está tentando ser simpático. Imagino que queira um pouco de capim, se tiver.

Com autocontrole real, Keli disse:

— Este é o quarto andar. Um quarto de mulher. Você ficaria surpreso com a quantidade de cavalos que não temos aqui.

— Ah. Pode me ajudar a levantar?

Ela baixou a espada e removeu o peitoral. Um rosto branco e fino a encarou.

— Primeiro é melhor você me explicar por que eu não deveria chamar os guardas — ameaçou ela. — Só de entrar no meu quarto já é motivo suficiente para ser torturado até a morte.

Ela o fitou.

Por fim, ele disse:

— Bem... pode soltar minha mão, por favor? Obrigado... Em primeiro lugar os guardas provavelmente não me veriam, em segundo lugar você nunca vai descobrir por que estou aqui e parece que detestaria não saber, e em terceiro lugar...

— Em terceiro lugar o quê? — irritou-se ela.

A boca dele se abriu e fechou. Mortimer queria dizer: em terceiro lugar você é linda, ou pelo menos muito bonita, ou bem mais bonita do qualquer outra menina que eu já tenha visto, embora eu reconheça que não tenha visto muitas. A partir disso podemos deduzir que a sinceridade nata de Mortimer jamais fará dele um poeta. Se Mortimer comparasse alguma garota a um dia de verão, seguiria uma explicação ponderada de que dia era aquele e se estava chovendo na ocasião. Assim sendo, foi bom que perdesse a voz.

Keli suspendeu a vela e olhou a janela.

Estava inteira. Os marcos de pedra se encontravam intactos. Todas as vidraças, com o brasão de Sto Lat, pareciam incólumes. Ela voltou os olhos para Mortimer.

— Esqueça o terceiro lugar — disse. — Vamos voltar ao segundo.

Uma hora mais tarde, a alvorada chegava à cidade. No Disco, por ser retardada pelo campo mágico do mundo, a luz do sol flutua em vez de correr, e então avançou pelas terras planas como um mar dourado. Por um instante, a montanha da cidade se sobressaiu como um castelo de areia na correnteza, até que o dia a contornasse e subisse.

Mortimer e Keli estavam sentados lado a lado na cama. A ampulheta se encontrava no meio dos dois. Não havia nem um grão de areia no vaso superior.

Do lado de fora, vinha o barulho do castelo despertando.

— Ainda não entendo — protestou ela. — Isso quer dizer que estou morta ou não?

— Quer dizer que deveria estar — respondeu ele —, de acordo com o destino ou o que for. Não estudei a teoria.

— E você deveria ter me matado?

— Não! Quer dizer, não, o assassino deveria tê-la matado. Já expliquei isso — apontou Mort.

— Por que não o deixou?

Horrorizado, Mortimer a encarou.

— Você queria morrer?

— Claro que não. Mas parece que o que as pessoas querem não interessa. Estou tentando ser sensata.

Mortimer fitou os próprios joelhos. Então se levantou.

— É melhor eu ir andando — anunciou, com frieza. Dobrou a foice e meteu-a na bainha atrás da sela. Depois olhou para a janela.

— Você veio por ali — lembrou Keli. — Olha, quando eu falei...

— Ela abre?

— Não. Tem uma varanda ao longo do corredor. Mas vão ver você!

Mortimer a ignorou, abriu a porta e conduziu Pituco para o corredor. Keli correu atrás deles. Uma empregada de passagem parou, fez reverência e franziu levemente a testa quando seu cérebro rechaçou a idéia de que um cavalo imenso caminhava sobre o tapete.

A varanda dava vista para um dos jardins internos. Mortimer olhou para além do parapeito e montou Pituco.

— Cuidado com o duque — avisou. — Ele está por trás disso.

— Meu pai sempre me advertiu em relação a ele — confirmou a princesa. — Tem um criado que prova minha comida.

— Contrate um guarda-costas também — sugeriu Mort. — Agora preciso ir. Tenho coisas importantes a fazer. Adeus — acrescentou, no que esperava ser o tom certo de orgulho ferido.

— Vou vê-lo outra vez? — perguntou Keli. — Tem muita coisa que eu gostaria de...

— Se pensar bem, talvez não seja uma boa idéia — considerou Mort.

Ele estalou a língua, e Pituco saltou para o céu azul da manhã.

— Eu queria lhe agradecer! — gritou Keli.

A empregada, que não conseguira se livrar da sensação de que alguma coisa estava errada e seguira a ama, perguntou:

— A senhorita está bem?

Distraída, Keli olhou para ela.

— O quê? — indagou.

— Eu só perguntei... se estava tudo bem?

Keli deixou os ombros caírem.

— Não — respondeu. — Está tudo errado. Tem um assassino morto no meu quarto. Será que você pode fazer alguma coisa a respeito? E... — ela ergueu a mão — ... não quero que você diga “Morto, senhorita?” ou “Assassino, senhorita?”, nem grite, nem nada disso. Só quero que resolva o assunto. Em silêncio. Acho que estou com enxaqueca. Então apenas confirme com a cabeça.

A empregada confirmou com a cabeça, fez uma vaga reverência e se afastou.


Mortimer não sabia ao certo como havia chegado em casa. O céu apenas mudou de azul-celeste para cinza-lúgubre quando Pituco se enfiou na brecha entre as dimensões. Ele não pousou na terra escura da grande propriedade de Morte; ela simplesmente estava ali, sob seus pés, como se um porta-aviões se alojasse com suavidade debaixo do jato para poupar ao piloto todo o trabalho da aterrissagem.

O enorme cavalo trotou para o estábulo e se deteve à porta, balançando o rabo. Mortimer desceu e correu para casa.

E parou e correu de volta e encheu a manjedoura e correu para casa e parou e murmurou para si mesmo e correu de volta e esfregou o pêlo do cavalo e verificou o balde de água e correu para casa e correu de volta e tirou o cobertor do gancho na parede e cobriu o cavalo. Pituco lhe deu uma leve e gloriosa focinhada.

Não parecia ter ninguém acordado quando Mortimer entrou pela porta dos fundos e seguiu para a biblioteca, onde mesmo àquela hora da noite o ar parecia feito de poeira quente e seca. Foi como se anos tivessem passado até ele localizar a biografia da princesa Keli, mas acabou achando-a. Era um volume terrívelmente fino e estava numa prateleira que só se alcançava com a escada da biblioteca — a frágil estrutura de rodinhas que parecia um antigo instrumento de guerra.

Com os dedos trêmulos, ele abriu a última página e soltou um gemido.

— O assassinato da princesa aos 15 anos de idade — leu em voz alta — resultou na união de Sto Lat com Sto Helit e, indiretamente, no colapso das cidades-estados da planície central e na ascensão do...

Ele continuou lendo, incapaz de parar. De vez em quando, gemia mais uma vez.

Por fim, deixou o livro de lado, balbuciou qualquer coisa e escondeu-o atrás dos outros volumes. Ao descer a escada, ainda podia senti-lo ali, alardeando sua incriminadora existência para o mundo.

No Disco, poucos navios realizavam travessias oceânicas. Nenhum capitão gostava da idéia de se aventurar para além de onde alcançavam os olhos. Era fato que os navios que a distância pareciam cair da beira do mundo não estivessem sumindo no horizonte, mas realmente despencando.

De tempos em tempos, algum navegante entusiasmado duvidava disso e partia para contestar sua validade. Por estranho que pareça, nenhum deles jamais voltava a fim de anunciar o resultado das explorações.

A seguinte analogia, portanto, não teria nenhum significado para Mortimer.

Ele se sentia como se viesse naufragando no Lusitânia, mas na hora H fosse salvo. Pelo Titanic.

Sentia-se como se tivesse atirado uma bola de neve ao acaso e agora observasse a avalanche decorrente engolir três estâncias de esqui.

Sentia a História se desenredar à volta.

Sentia necessidade de falar com alguém, rápido.

Teria de ser Albert ou Ysabell, porque a idéia de explicar tudo àqueles minúsculos pontinhos azuis era inconcebível depois dessa longa noite. Nas raras vezes em que Ysabell se dignara a olhar na direção dele, deixara claro que a única diferença entre Mortimer e um sapo morto era a coloração. Quanto a Albert...

Tudo bem, não era o confidente ideal, mas sem dúvida o melhor num time de um.

Mortimer desceu os degraus e avançou por entre as estantes. Algumas horas de sono também não cairiam mal.

Então ouviu um arquejo, o barulho de pés correndo e a batida de uma porta. Quando espiou a estante mais próxima, não havia nada além de um banco com dois livros em cima. Pegou um deles e olhou o nome, então leu algumas páginas. Do lado, havia um lenço de renda úmido.

Mortimer levantou tarde e correu para a cozinha, esperando pelas lamúrias da reprimenda. Nada aconteceu.

Albert estava na frente da pia de pedra, meditando, com o olhar na frigideira, talvez a imaginar se era hora de trocar o óleo ou deixá-lo esperar mais um ano. Deu meia-volta quando Mortimer sentou numa cadeira.

— Então você teve uma noite agitada — disse. — Vagabundeando até altas horas, eu ouvi. Posso preparar um ovo. E também tem mingau.

— Ovo, por favor — pediu Mort.

Nunca juntara coragem suficiente para experimentar o mingau de Albert, que parecia levar uma vida autônoma nas profundezas da panela e comia colheres.

— Depois o patrão quer vê-lo — acrescentou Albert. — Mas disse que não havia pressa.

— Ah.

Mortimer fixou os olhos na mesa:

— Disse mais alguma coisa?

— Que em mil anos não tirava uma noite de folga — respondeu Albert. — Estava cantando. Não gosto nada disso. Nunca o vi assim.

— Ah.

Mortimer arriscou:

— Albert, faz muito tempo que o senhor está aqui?

O cozinheiro o fitou por sobre o aro dos óculos.

— Talvez — respondeu. — É difícil ter noção do tempo lá fora, garoto. Estou aqui desde que o rei morreu.

— Que rei?

— Acho que se chamava Artorollo. Sujeito atarracado. De voz aguda. Só o vi uma vez.

— Onde foi isso?

— Em Ankh, é claro.

— O quê? — surpreendeu-se Mort. — Não existe rei em Ankh-Morpork, todo mundo sabe disso!

— Eu falei que já tinha algum tempo — defendeu-se Albert.

Então se serviu da chaleira pessoal de Morte e sentou com ar sonhador nos olhos endurecidos. Mortimer aguardava, apreensivo.

— E existiam reis naquela época, reis de verdade, não como esses de hoje em dia. Eram monarcas — continuou Albert, derramando com cuidado um pouco do chá no pires e abanando-o com a ponta do cachecol. — Quer dizer, eram inteligentes e razoáveis, bem, razoavelmente inteligentes. E não pensavam duas vezes na hora de cortar a cabeça de ninguém — acrescentou, em tom de aprovação. — Todas as rainhas eram altas, pálidas e usavam uma espécie de balaclava...

— Touca? — perguntou Mort.

— É, e as princesas eram lindas como é longo o dia e tão nobres que só andavam com safadinhos de crist....

— O quê?

Albert hesitou.

— Alguma coisa assim — disse. — E tinha festas, torneios e execuções. Eram dias de glória!

Ele sorriu sonhadoramente com as lembranças.

— Não como os dias de hoje — irritou-se, emergindo do devaneio.

— Você tem outros nomes, Albert? — perguntou Mort.

Mas o feitiço havia se quebrado e o homem não se deixaria levar.

— Ah, já sei — rebateu ele. — Basta descobrir o nome do Albert e procurá-lo na biblioteca, não é? Espreitar, bisbilhotar. Conheço você, enfiado lá a toda hora, lendo a vida das jovens...

Os arautos da culpa devem ter brandido suas embaciadas cornetas no fundo dos olhos de Mortimer, porque Albert soltou uma risada e cutucou o rapaz com o dedo ossudo.

— Você pelo menos poderia botá-los no lugar certo — advertiu —, e não deixar pilhas por toda parte para o velho Albert guardar. De qualquer forma, é errado paquerar as coitadinhas mortas. Provavelmente deixa a pessoa cega.

— Mas eu só... — começou Mort, então se lembrou do lenço de renda úmido no bolso e se calou.

Deixou Albert lavando a louça, murmurando para si mesmo, e voltou para a biblioteca. Das janelas mais altas, a luz do sol se lançava, suave, desbotando as capas dos livros antigos. De vez em quando, um grão de poeira refletia a luz ao flutuar pelos raios dourados e brilhava como uma supernova em miniatura.

Mortimer sabia que, se ouvisse com atenção, poderia escutar o rangido dos livros escrevendo a si mesmos.

No passado, Mortimer teria achado tudo muito estranho. Agora era... tranqüilizante. Demonstrava que o universo seguia seu curso natural. A consciência dele, que só vinha buscando a oportunidade, teve prazer em lembrá-lo de que, tudo bem, o mundo podia até estar seguindo seu curso natural, mas com certeza não rumava na direção certa.

Ele avançou pelo labirinto de prateleiras até a misteriosa pilha de livros e descobriu que não se encontrava mais lá. Albert não saíra da cozinha, e Mortimer jamais vira o próprio Morte entrar na biblioteca. Então o que é que Ysabell estava procurando?

Ele olhou a montanha de livros acima e sentiu uma pontada no estômago quando pensou no que estava começando a acontecer.

Não tinha jeito. Ele precisava contar para alguém.


Nesse meio tempo, Keli também vinha achando a vida um tanto difícil.

Isso porque a causalidade possui um grande poder de inércia. O golpe imprudente de Mortimer, desferido por desespero, raiva e amor nascente, havia lançado a causalidade num novo caminho, mas ela ainda não notara. Ele tinha chutado o rabo do dinossauro, mas levaria algum tempo para a outra ponta perceber que era hora de dizer “ai”.

Em poucas palavras, o universo sabia que Keli estava morta e portanto se encontrava surpreso ao ver que ela não havia parado de andar ou respirar.

Isso se revelava nas pequenas coisas. Os cortesãos que dirigiram a ela olhares furtivos pela manhã não saberiam dizer por que a visão da princesa lhes deixava extremamente incomodados. Para constrangimento deles e irritação dela, todos começaram a ignorá-la ou lhe falar em tom apressado.

O camareiro descobriu que havia mandado hastear a bandeira real pela metade e por nada nessa vida conseguia explicar por quê. Acabou sendo levado para a cama com uma leve desordem nervosa depois de encomendar cem metros de tecido preto sem nenhuma razão aparente.

A estranha sensação de irrealidade logo se espalhou pelo castelo. O cocheiro-chefe pediu que o cadafalso estatal fosse novamente encerado, depois chorou no estábulo por não lembrar o motivo. Os empregados atravessavam os corredores em silêncio. O cozinheiro teve de vencer o irresistível impulso de preparar pratos simples de frios. Os cachorros uivaram e então pararam, sentindo-se tolos. Os dois cavalos negros que tradicionalmente puxavam o cortejo funeral de Sto Lat ficaram irrequietos em suas baias e quase coicearam um cavalariço até a morte.

No castelo de Sto Helit, o duque em vão aguardou um mensageiro que de fato havia partido naquela direção mas se deteve ao longo do caminho, incapaz de lembrar o que tinha de fazer.

Em meio a tudo isso, Keli se movimentava como um fantasma concreto e cada vez mais irritado.

As coisas chegaram ao limite na hora do almoço. Ela entrou no salão principal e notou que não havia lugar em frente à cadeira real. Falando em alto e bom som com o mordomo, conseguiu corrigir a falta, mas então viu os pratos passarem por ela antes que pudesse se servir. Incrédula, observou o vinho ser levado primeiro ao lorde do Conselho Mimado.

Não foi nada principesco, mas ela esticou a perna e passou uma rasteira no garçom que servia o vinho. Ele tropeçou, balbuciou qualquer coisa e olhou para o chão.

Ela se inclinou para o outro lado e gritou no ouvido do Capitão dos Porcos:

— Você não está me enxergando? Por que temos de comer salame e presunto?

Ele interrompeu a conversa com a Mulher do Pequeno Quarto Hexagonal na Torre do Norte, dirigiu a Keli um olhar demorado em que o choque logo cedeu lugar a uma espécie de atordoamento difuso, e respondeu:

— Ora, claro... estou... há...

— Sua Alteza — lembrou Keli.

— Mas... é... Sua Alteza — murmurou o capitão. Houve uma longa pausa.

Então, como se voltasse a si, ele lhe deu as costas e retomou a antiga conversa.

Por um instante, Keli se limitou a ficar ali sentada, branca de raiva e estupefação, então afastou a cadeira e saiu correndo para os seus aposentos. Dois empregados que dividiam um cigarro no corredor foram atropelados por algo que não conseguiram divisar.

Keli entrou no quarto e puxou a corda que deveria ter feito a criada sair em disparada da sala de espera, no fim do corredor, e se apresentado. Durante algum tempo nada aconteceu, então a porta se abriu devagar e um rosto se enfiou pela fresta.

Dessa vez, a princesa reconheceu a fisionomia e já estava preparada. Agarrou a empregada pelos ombros e arrastou-a para dentro do quarto, fechando a porta. Como a mulher apavorada olhasse para todos os lados menos para ela, Keli abriu a mão e lhe deu um tapa no rosto.

— Sentiu isso? Sentiu? — berrou ela.

— Mas... a senhorita... — sussurrou a criada, recuando até dar na cama e cair sentada sobre ela.

— Olhe para mim! Olhe para mim quando falo com você! — exigiu Keli, avançando para a menina. — Você está me vendo, não está? Diga que está ou vou mandar executá-la!

A criada fitou os olhos horrorizados da princesa.

— Estou vendo — admitiu ela. — Mas...

— Mas o quê? Mas o quê?

— A senhorita está... eu ouvi dizer... achei...

— Achou o quê? — perguntou Keli.

Ela já não gritava mais. As palavras saíam como açoites.

A criada desatou a chorar. Por um instante, Keli ficou batendo o pé no chão, depois sacudiu de leve a mulher.

— Tem algum mago na cidade? — indagou ela. — Olhe para mim, para mim. Tem um mago, não tem? As meninas estão sempre fugindo do trabalho para falar com o mago! Onde ele mora?

A mulher voltou o rosto molhado de lágrimas para ela, lutando contra todos os instintos a lhe afirmarem que a princesa não mais existia.

— Há... mago, é... Cortângulo, na Rua do Muro...

Os lábios de Keli se abriram num sorriso. Ela se perguntou onde ficavam guardadas as capas, mas a razão lhe disse que seria mais fácil achá-las por conta própria do que tentar se impor à empregada. Decidiu esperar, observando com atenção o desenrolar dos acontecimentos: a mulher parou de soluçar, olhou à volta ligeiramente espantada e saiu correndo do quarto.

Já me esqueceu, pensou. Olhou as próprias mãos. Pareciam sólidas o bastante.

Aquilo tinha de ser magia.

Ela entrou no closet e abriu alguns armários, até achar uma capa preta com capuz. Vestiu-a, saiu para o corredor e desceu a escada de serviço.

Não andava por ali desde pequena. Aquele era o mundo dos armários de roupa de cama, mesa e banho, dos cômodos simples e dos carrinhos de serviço. Cheirava a pão levemente dormido.

Keli seguia como um espectro materializado. Sabia da existência do alojamento de empregados, é claro, da mesma forma que as pessoas sabem da existência de sarjetas e esgotos, e estava pronta para admitir que, embora fossem todos muito parecidos, deveria haver algumas características particulares pelas quais seus entes queridos presumivelmente pudessem identificá-los. Mas não estava pronta para ver coisas como Moghedron, o criado encarregado da adega — que até então só considerara uma figura imponente, sempre se locomovendo como um navio a todo vapor —, sentado na despensa, com o paletó aberto e fumando cachimbo.

Duas criadas passaram correndo por ela, dando risadas. Keli seguiu adiante, ciente de que de algum modo estava invadindo seu próprio castelo.

E isso, notou, acontecia porque aquele castelo não era de forma alguma seu. O mundo barulhento ao redor, com lavanderias fumegantes e copas frias, não pertencia a ninguém. Ela não poderia possuí-lo. Talvez ele a possuísse.

Pegou uma coxa de galinha na mesa da cozinha maior — uma caverna coberta por tantas panelas que mais parecia um arsenal para tartarugas — e sentiu a desconhecida emoção de roubar. Roubar! No seu próprio reinado! E o cozinheiro olhou através dela, com os olhos vidrados.

A princesa correu pelo estábulo até o portão dos fundos, passando por dois guardas cujos olhares duros não conseguiram notá-la.

Na rua, não foi tão terrível, mas ainda se sentia estranhamente nua. Era irritante estar entre indivíduos que seguiam fazendo suas coisas sem se incomodar de olhar para a pessoa, quando toda a experiência de mundo da pessoa era tê-lo girando ao seu redor. Os pedestres davam encontrão na pessoa e se afastavam, por um breve espaço de tempo se perguntando no que haviam batido, e a pessoa várias vezes tinha de correr de carroças.

A coxa de galinha não fora suficiente para preencher o buraco deixado pela falta do almoço, e ela roubou duas maçãs de uma barraca, fazendo uma anotação mental para pedir ao camareiro que descobrisse o preço das frutas e enviasse o dinheiro ao dono da barraca.

Desgrenhada, um tanto encardida e cheirando levemente a bosta de cavalo, ela chegou afinal à porta de Cortabem. A aldrava lhe deu algum trabalho. Em sua experiência, as portas se abriam sozinhas; havia pessoas especiais designadas para isso.

Tentou outra vez e imaginou ouvir o ruído distante de algo se quebrando. Depois de algum tempo, a porta se abriu por alguns centímetros e ela entreviu um rosto redondo, rubro, coroado por cabelos encaracolados. O pé direito dela a surpreendeu por se meter espertamente na fresta.

— Exijo ver o mago — anunciou. — Peço que me receba imediatamente.

— Ele está ocupado no momento — disse o rosto. — Você estava querendo uma poção do amor?

— Uma o quê?

— O ungüento Campo da Paixão Cortabem está em promoção — sugeriu o homem, e piscou o olho. — Proporciona um maravilhoso leito de rosas garantindo o malogro da safra, se é que me entende.

Keli ergueu a cabeça.

— Não — mentiu, com frieza. — Não entendo.

— Termo de Donzela? Lágrima de Beladona?

— Eu exijo...

— Sinto muito, estamos fechados — desculpou-se o homem, e bateu a porta.

Keli tirou o pé a tempo.

Balbuciou algumas palavras que deixariam seus tutores perplexos e esmurrou a madeira.

De repente, as batidas se espaçaram, e a princesa entendeu o que havia acabado de acontecer.

Ele a tinha visto! Ele a tinha visto!

Golpeou a porta com vigor renovado, gritando a plenos pulmões.

Uma voz ao seu ouvido disse:

— Não adianta. Ele é muito cabeza-dura.

Ela correu os olhos à volta e se deparou com o olhar impertinente da aldrava. O objeto balançou as sobrancelhas de metal para ela e falou de maneira indistinta através da argola de ferro batido.

— Eu sou a princesa Keli, herdeira ao trono de Sto Lat — avisou, orgulhosa, contendo seu pavor. — E não falo com acessórios de porta.

— Bem, eu zou zó uma aldrava e pozo falar com quem quiser — afirmou a gárgula, satisfeita. — Aí pozo dizer que o patrão está tendo um dia difízil e não quer zer incomodado. Mas vozê poderia tentar a palavrinha mágica — acrescentou. — Vindo de uma mulher bonita, funziona noventa porzento das vezes.

— Palavrinha mágica? Que palavrinha mágica?

A aldrava riu.

— Dona, zerá que não lhe enzinaram nada?

Ela se empertigou. Também vinha tendo um dia difícil. O pai executara uma centena de inimigos em guerra. Ela daria conta de uma aldrava.

— Eu fui ensinada — informou, em bom tom — pelos melhores professores do país.

A aldrava não pareceu impressionada.

— Ze não lhe enzinaram a palavrinha mágica — advertiu, calmamente —, não podem zer tão bons azim.

Keli estendeu a mão, pegou a argola pesada e bateu-a na porta. A aldrava olhou de esguelha para ela.

— Com forza! — pediu. — Azim, que eu gozto!

— Você é nojento!

— Ahh, que delízia, de novo...

Abriu-se uma brecha na porta. Era possível divisar o cabelo encaracolado.

— Senhorita, eu já disse que estamos fech...

Keli entregou os pontos.

— Por favor me ajude — disse. — Por favor!

— Eztá vendo? — perguntou a aldrava, triunfante. — Maiz zedo ou maiz tarde todo mundo lembra a palavrinha mágica!

Keli já comparecera a solenidades em Ankh-Morpork e havia conhecido magos seniores da Universidade Invisível, a maior faculdade de magia do Disco. Alguns eram altos, muitos eram gordos e quase todos sempre se encontravam imponentemente vestidos, ou ao menos acreditavam nisso.

Na verdade, assim como nas artes mundanas, existem modismos na magia, e a tendência de parecer um vereador ancião era apenas temporária. Gerações anteriores já seguiram o objetivo de parecer pálidas e interessantes, druídicas e sujas, ou misteriosas e sombrias. Mas Keli estava acostumada com magos que eram uma espécie de montanha de pêlos com voz chiada, e Ígneo Cortabem não se encaixava bem nessa imagem.

Ele era novo. Bem, quanto a isso não se podia fazer nada — até os magos precisavam começar jovens. Mas também não tinha barba.

— Aceita uma bebida? — ofereceu ele, sorrateiramente chutando uma túnica para debaixo da mesa.

Keli procurou um lugar para se sentar que não estivesse ocupado com roupas sujas ou louça de barro usada e sacudiu a cabeça. Cortabem notou sua fisionomia.

— Está um pouco bagunçado — tratou de acrescentar, jogando os restos de uma lingüiça no chão. — A senhora Nugent sempre vem duas vezes por semana e limpa a casa para mim, mas viajou para visitar a irmã, que sofreu uma de suas crises. Tem certeza? É rápido. Ontem mesmo vi uma xícara limpa aqui.

— Seu Cortabem, estou com um problema — disse Keli.

— Espere aí.

Ele estendeu o braço até o gancho sobre a lareira e pegou um chapéu pontudo que já vira dias melhores, embora pelo aspecto não tivessem sido tão bons assim, e falou:

— Certo. Mande lá.

— O que tem de tão importante no chapéu?

— Ah, é essencial. Precisamos estar com o chapéu adequado para magia. Nós, magos, sabemos disso.

— Se você está dizendo... Você me enxerga?

Ele a fitou.

— Enxergo, enxergo. Sem dúvida diria que sim.

— E me ouve? Está me ouvindo, não está?

— Muito bem. Estou. Todas as sílabas tinindo no devido lugar. Sem problema.

— Então ficaria surpreso se eu dissesse que ninguém mais na cidade me vê?

— Além de mim?

Keli bufou.

— E sua aldrava.

Cortabem puxou uma cadeira e se sentou. Contorceu-se um pouco. Ganhou um ar pensativo. Então se levantou, vasculhou o armário de trás e desencavou uma massa avermelhada que um dia poderia ter sido meia pizza[2]. Encarou-a com ar melancólico.

— Acredita que passei a manhã inteira procurando por isso? — perguntou. — É de Todos os Sabores, com pimentões extras.

Começou a beliscar o negócio e de repente se lembrou de Keli.

— Nossa, me desculpe — pediu. — Onde estão meus modos? O que você vai pensar de mim? Aqui. Pegue uma anchova. Por favor.

— Você não estava me ouvindo? — irritou-se Keli.

— E você se sente invisível? Quer dizer, na sua cabeça? — perguntou Cortabem.

— Claro que não. Só sinto raiva. Então quero que leia minha sorte.

— Bem, não sei, não. Parece mais assunto médico e...

— Eu pago.

— É ilegal, sabia? — perguntou Cortângulo, com tristeza. — O antigo rei proibiu a adivinhação em Sto Lat. Não gostava de magos.

— Pago bem.

— A senhora Nugent disse que a nova menina, a princesa, deve ser pior. Parece que é muito arrogante. Não faz o tipo que olha com benevolência para os praticantes das artes ocultas.

Keli sorriu. Os membros da corte que já haviam presenciado esse sorriso teriam se apressado em arrastar Cortabem para um lugar seguro — como outro continente —, mas ele apenas continuou ali, tentando catar pedaços de cogumelo da roupa.

— Entendo que ela tenha um temperamento difícil — considerou Keli. — Mas ainda assim não me surpreenderia se não o expulsasse da cidade.

— Ai, meu Deus — murmurou Cortabem. — Você acha?

— Olhe aqui — disse Keli —, não precisa ler meu futuro, só o presente. Nem a princesa faria objeção a isso. Se quiser, posso trocar uma palavrinha com ela — acrescentou, com ar de gente importante.

Cortabem se iluminou.

— Ah, você a conhece? — perguntou.

— Conheço. Mas às vezes acho que não muito bem.

Cortabem suspirou e vasculhou o entulho sobre a mesa, removendo pilhas de pratos velhos e os restos petrificados de várias refeições. Por fim, desenterrou um estojo de couro grudado a uma fatia de queijo.

— Bem — disse, sem muita convicção —, essas são as cartas do Caro. A refinada sabedoria dos Antigos e tal. Também tem o Ching Aling, dos centrolandeses. E a coqueluche da alta-roda. Não trabalho com folhas de chá.

— Vou experimentar o Chinring.

— Então jogue esses caules de milefólio para o alto.

Ela obedeceu. Eles olharam o arranjo resultante.

— Hum — soltou Cortabem, depois de um tempo. — Bom, tem um na lareira, um na caneca de cacau, um na rua, que pena, a janela!, um na mesa e um, não, dois atrás da cômoda. Espero que a senhora Nugent ache o resto.

— Você não disse com que força. Jogo outra vez?

— N-nããao, acho que não.

Cortabem folheou as páginas do livro amarelado que antes estivera escorando a perna da mesa.

— Parece que o arranjo faz sentido. É, cá estamos, Octograma 8.887: Ilegalidade, o Ganso Irreparável. Que cruzamos aqui... espere... espere... isso mesmo. Pronto.

— E aí?

— Sem verticalidade, sabiamente o imperador vermelho avança na hora do chá; à noite o molusco faz silêncio entre as flores da amendoeira.

— E então? — indagou Keli, com reverência. — O que quer dizer?

— A menos que você seja um molusco, provavelmente nada — admitiu Cortabem. — Acho que alguma coisa deve ter se perdido na tradução.

— Tem certeza de que sabe fazer isso?

— Vamos tentar as cartas — apressou-se em propor Cortabem, espalhando-as sobre a mesa. — Escolha uma. Qualquer uma.

— É a morte! — exclamou Keli.

— Ah. Bem. Obviamente, a carta da morte não significa morte em todos os casos — explicou Cortabem.

— Você quer dizer que não significa morte nos casos em que o cliente está cada vez mais animado e o adivinho fica sem graça em contar a verdade, não é?

— Pegue outra carta.

— Também é a morte — apontou Keli.

— Você tinha devolvido aquela?

— Não. Pego outra?

— Pode pegar.

— Que coincidência!

— A terceira morte?

— Exatamente. É um baralho especial para pregar peças?

Keli tentou parecer tranqüila, mas mesmo ela pôde detectar a leve insinuação de histeria em sua voz.

Cortabem franziu a testa e levou cuidadosamente as cartas de volta ao baralho, misturou todas e abriu-as sobre a mesa, viradas para cima. Só havia uma morte.

— Ai, meu Deus! — exclamou ele. — Acho que isso vai ser sério. Posso ver a palma da sua mão, por favor?

Ele a examinou durante um longo tempo. Depois se dirigiu à cômoda, tirou uma lente de aumento da gaveta, limpou o mingau ali incrustado com a manga do manto e passou mais alguns minutos inspecionando a mão. Por fim, recostou-se, tirou a lente e olhou para ela.

— Você está morta — anunciou.

Keli se limitou a esperar. Não conseguia pensar em nenhuma resposta apropriada. Faltava estilo a “Não estou”, ao passo que “Jura?” parecia frívolo demais.

— Eu disse que ia ser sério? — perguntou Cortabem.

— Acho que sim — respondeu Keli, tentando manter o equilíbrio.

— Eu estava certo.

— Ah.

— Pode ser fatal.

— Mais fatal do que já estar morta?

— Não estava me referindo a você.

— Ah.

— Alguma coisa muito elementar parece ter desandado, entende? Você está morta em todos os sentidos menos no, hã, real. Quer dizer, as cartas acham que você está morta. Sua linha da vida acha que você está morta. Tudo e todos acham que você está morta.

— Eu não acho! — contestou Keli, sem muita convicção.

— Temo que sua opinião não conte.

— Mas as pessoas me enxergam e me ouvem!

— A primeira coisa que aprendemos quando nos matriculamos na Universidade Invisível é que ninguém dá muita atenção a isso. O importante é o que a mente nos diz.

— Então as pessoas não me enxergam porque suas mentes dizem para não me ver?

— Exatamente. Chama-se predestinação ou algo assim.

Cortabem a fitou, com tristeza.

— Eu sou mago. Sabemos dessas coisas. Aliás, não é a primeira coisa que aprendemos quando nos matriculamos — acrescentou. — Quer dizer, antes disso aprendemos onde ficam os banheiros e tal. Mas depois é a primeira coisa.

— Só que você me enxerga!

— Ah. Bem. Os magos são treinados para enxergar o que existe e não enxergar o que não existe. Tem uns exercícios especiais...

Keli tamborilou os dedos na mesa, ou ao menos tentou. Acabou não sendo fácil. Olhou para baixo, com certo nojo.

Cortabem se adiantou para limpar a mesa com a manga do manto.

— Desculpe — murmurou. — Preparei uns sanduíches de melaço ontem à noite...

— O que posso fazer?

— Nada.

— Nada?

— Bem, com certeza poderia se tornar uma ladra muito bem-sucedida... desculpe. Foi de mau gosto da minha parte.

— Também achei.

Sem jeito, Cortabem lhe deu tapinhas na mão, mas Keli estava preocupada demais para notar o crime flagrante de lesa-majestade.

— Sabe, tudo é determinado. A História já está escrita, do começo ao fim. Os fatos não importam; a História passa por cima. Não podemos mudar nada porque as mudanças já fazem parte dos acontecimentos. Você está morta. É o destino. Vai ter de aceitar.

Ele abriu um sorriso escusatório.

— Você tem mais sorte do que a maioria dos mortos, se encarar a coisa de maneira objetiva — continuou. — Está viva para aproveitar.

— Mas não aceito. Por que deveria? Não é minha culpa!

— Você não entende. A História continua. E você já não faz parte dela. É melhor deixar as coisas seguirem seu rumo.

Ele outra vez lhe afagou a mão. Ela o fitou. Ele recolheu a mão.

— Então o que devo fazer? — perguntou ela. — Deixar de comer porque a comida não se destina a mim? Ir viver numa caverna, em algum lugar distante?

— Paradoxal, não é? — concordou ele. — Mas é sua sina. Se o mundo não a enxerga, você não existe. Eu sou mago. Sabemos dessas...

— Pare de dizer isso.

Keli se levantou.

Cinco gerações antes um de seus antepassados havia parado a alguns quilômetros da montanha de Sto Lat com seu bando de criminosos nômades e contemplado a cidade adormecida com uma fisionomia particularmente determinada que dizia: “Essa serve. Só porque nascemos na sela não quer dizer que tenhamos de morrer sobre o maldito negócio”.

Por mais estranho que pareça, muitas de suas características haviam, por artimanhas da hereditariedade, sido legadas àquela descendente[3], o que lhe explicava a beleza um tanto idiossincrática. Mas nunca estiveram tão patentes quanto agora. Até Cortabem ficou impressionado. Quando o assunto era determinação, poderíamos quebrar pedras na cabeça dela.

No mesmo tom de voz que o antepassado havia usado para se dirigir a seus discípulos exaustos e cobertos de suor antes do ataque[4], ela disse:

— Não, não e não! Não aceito! Não vou me reduzir a uma espécie de fantasma. Você vai me ajudar, mago.

Cortabem reconhecia aquela inflexão. Ela era capaz de fazer até os carunchos nas tábuas do chão pararem suas perfurações e se porem em alerta. Não exprimia uma opinião, mas dizia: as coisas serão assim.

— Eu, dona? — perguntou ele. — Nem imagino como poderia...

Ele se viu içado da cadeira e puxado pela rua, com o manto esvoaçando ao redor. Keli avançava em direção ao castelo com os ombros decididamente erguidos, arrastando o mago como a um cachorrinho relutante. É assim que as mães costumam entrar na escola quando o filho chega em casa com o olho roxo. É irrefreável. É como a Marcha do Tempo.

— O que você pretende? — gaguejou Cortabem, terrivelmente ciente de que não haveria nada que pudesse fazer para impedir o que quer que fosse.

— Mago, é seu dia de sorte.

— Ah, que bom — balbuciou ele.

— Você acaba de ser nomeado reconhecedor real.

— Ah. E o que é isso exatamente?

— Vai lembrar a todo mundo que estou viva. É muito simples. Três refeições e roupa lavada. Ânimo, homem.

— Real?

— Você é mago. Acho que tem uma coisa que precisa saber — disse a princesa.

— TEM? — perguntou Morte.

(Esse é um truque cinematográfico adaptado para o texto impresso). Morte não estava conversando com a princesa. Mas causou um ótimo efeito, não causou? O artifício provavelmente se chama dissolução rápida ou corte em zoom. Ou qualquer outra coisa. A indústria que chama um técnico veterano de contra-regra pode dar a isso o nome que quiser.)

— E O QUE É? — acrescentou Morte, enrolando um pedaço de linha preta num pequeno torno que havia prendido à mesa.

Mortimer hesitou. Em grande parte isso se deu por medo e constrangimento, mas também porque a visão de um espectro encapuzado criando com tranqüilidade moscas artificiais era suficiente para fazer qualquer um parar.

Além disso, Ysabell estava sentada no outro extremo do gabinete, aparentemente fazendo tricô mas também observando-o através da nuvem da censura. Dava para sentir os olhos pintados de vermelho cravados em sua nuca.

Morte juntou umas penas de corvo e assobiou por entre os dentes, sem ter mais com o que assobiar. Ergueu a cabeça.

— Hmm?

— Não... foi tão fácil quanto imaginei — disse Mort, parado diante da mesa.

— TEVE ALGUM PROBLEMA? — perguntou Morte, cortando alguns pedaços de pena.

— Bem, a bruxa não quis vir e o monge começou tudo outra vez.

— Nesse ponto, não há com o que se preocupar, rapaz...

— ... Mort...

— ... VOCÊ JÁ DEVERIA TER ENTENDIDO QUE TODO MUNDO RECEBE O QUE ESPERAVA. É MUITO MAIS SIMPLES ASSIM.

— Eu sei, senhor. Mas isso significa que as pessoas más que imaginam ir para alguma espécie de paraíso acabam indo mesmo. E as pessoas boas que temem ir para um lugar horrível sofrem o pão que o diabo amassou. Não me parece justo.

— O QUE FOI QUE EU DISSE QUE VOCÊ PRECISAVA LEMBRAR QUANDO ESTIVESSE EM SERVIÇO?

— Bem, o senhor...

— Hmm?

Mortimer gaguejou até se calar.

— NÃO EXISTE JUSTIÇA. SÓ EXISTE VOCÊ.

— Bem, eu...

— NÃO PODE SE ESQUECER DISSO.

— Eu sei, mas...

— NO FIM, IMAGINO QUE TUDO ACABE BEM. NÃO CONHEÇO O CRIADOR, MAS ME DISSERAM QUE VÊ AS PESSOAS COM BONS OLHOS.

Morte cortou a linha e começou a desenrolar o torno.

— TIRE ESSAS IDÉIAS DA CABEÇA — acrescentou. — PELO MENOS, A TERCEIRA NÃO DEVE TER LHE DADO NENHUM PROBLEMA.

Era este o momento. Mortimer vinha pensando nele havia muito tempo. Não fazia sentido esconder. Ele tinha perturbado todo o curso futuro da História. Essas coisas costumam chamar a atenção das pessoas. Melhor tirar o peso da consciência. Confessar-se como homem. Receber o castigo. Cartas na mesa. Circunlóquios, jamais. Antes pedir misericórdia.

Os penetrantes olhos azuis o fitaram.

Ele sustentou o olhar como um coelho noturno tentando enfrentar os faróis de um caminhão de dezesseis rodas cujo motorista é um maníaco viciado em café excedendo os tacômetros do inferno.

Não conseguiu.

— Não, senhor — respondeu.

— ÓTIMO. MUITO BEM. E AGORA O QUE ACHA DISSO?

Os pescadores acham que uma boa mosca artificial é aquela que imita o bicho à perfeição. Existem moscas ideais para a manhã. Existem moscas diferentes para a noite. E assim por diante.

Mas o negócio entre os dedos triunfantes de Morte era uma mosca da aurora dos tempos. Era a mosca do caldo primordial. Alimentada em bosta de mamute. Não era uma mosca que se debate em janelas, era uma mosca que fura paredes. Era um inseto que se arrastaria após o mais pesado dos tapas, derramando veneno e querendo vingança. O corpo possuía asas estranhas e pedaços oscilantes. Parecia haver muitos dentes.

— Como chama? — perguntou Mort.

— VOU CHAMÁ-LA DE... A GLÓRIA DE MORTE.

Deu uma última olhada no bicho e meteu-o no capuz do manto.

— ESSA NOITE ESTOU PENSANDO EM VER UM POUCO DE VIDA. VOCÊ PODE FAZER O SERVIÇO, AGORA QUE JÁ PEGOU O JEITO.

— Sim, senhor — disse Mort, num lamento.

Ele viu a vida se estender diante de si como um longo túnel sem luz no fim.

Morte tamborilou os dedos na mesa, murmurou alguma coisa.

— AH, SIM — lembrou-se afinal. — ALBERT DISSE QUE ALGUÉM VEM FUXICANDO A BIBLIOTECA.

— Como, senhor?

— TIRANDO OS LIVROS DO LUGAR, DEIXANDO-OS ESPALHADOS. LIVROS SOBRE MENINAS. ELE PARECE ACHAR DIVERTIDO.

Como já foi dito, os Ouvintes sagrados possuem uma audição tão desenvolvida que podem ficar surdos com um bom pôr-do-sol. Apenas por um instante, Mortimer achou que a pele de sua nuca estava desenvolvendo poderes semelhantes, porque ele podia ver Ysabell paralisada entre os pontos do tricô. E também ouviu a breve inspiração de ar que já ouvira uma vez, em meio às estantes. Lembrou-se do lenço de renda.

E disse:

— Sim, senhor. Não vai se repetir.

A pele da nuca começou a coçar.

— MARAVILHA. AGORA VOCÊS DOIS PODEM SAIR. PEÇAM AO ALBERT QUE PREPARE UM PIQUENIQUE OU ALGO ASSIM. TOMEM UM POUCO DE AR FRESCO. JÁ NOTEI COMO VOCÊS PARECEM SE EVITAR... — ELE DEU UMA CUTUCADA CONSPIRATÓRIA EM MORTIMER (ERA COMO SER TOCADO POR UMA VARA) E ACRESCENTOU: — ALBERT ME CONTOU O QUE ISSO QUER DIZER.

— Contou, é? — perguntou Mort, com pesar.

Ele estava errado: havia luz no fim do túnel, e era um lança-chamas.

Morte lhe dirigiu outra de suas piscadas à supernova.

Mortimer não retribuiu. Deu meia-volta e avançou para a porta numa velocidade média que faria Grande A'Tuin parecer um cordeiro.

Estava na metade do corredor quando ouviu passos apressados e sentiu lhe tocarem o braço.

— Mort?

Virou-se e encarou Ysabell através da névoa da depressão.

— Por que o deixou pensar que fosse você na biblioteca?

— Não sei.

— Foi... muita... gentileza sua — admitiu ela.

— Foi? Não sei o que deu em mim... — Ele enfiou a mão no bolso e pegou o lenço. — Acho que isso é seu.

— Obrigada.

Ela assoou o nariz.

Mortimer seguiu adiante, com os ombros curvados como as asas de um urubu. Ela correu atrás dele.

— Olhe! — chamou.

— Quê?

— Eu queria agradecer.

— Não foi nada — murmurou Mort. — Mas seria melhor se você não pegasse mais os livros. Acho que os deixa perturbados. — Ele soltou o que considerava ser uma risada triste — Rá.

— Como rá?

— Só rá!

Havia chegado ao fim do corredor. Lá estava a porta da cozinha, onde Albert o olharia de soslaio. Decidiu que agora não suportaria aquilo, e se deteve.

— Mas eu só pego os livros para me fazerem companhia — justificou Ysabell, atrás dele.

Mortimer cedeu.

— Podemos dar uma volta no jardim — sugeriu, era desespero, e então conseguiu endurecer um pouco a voz e acrescentar: — Sem compromisso.

— Quer dizer que não vai se casar comigo? — perguntou ela. Mortimer ficou horrorizado.

— Casar?

— Não foi para isso que papai trouxe você para cá? — indagou ela. — Afinal de contas, ele não precisa de nenhum aprendiz.

— Você está falando de todas essas piscadas, cutucadas e observações do tipo “meu filho um dia isso tudo será seu?” — alarmou-se Mort. — Eu tentei ignorar. Ainda não quero me casar com ninguém — acrescentou, reprimindo a imagem mental da princesa. — E certamente não com você, sem querer ofender.

— Eu não me casaria com você nem que fosse o último homem sobre o Disco — observou ela, com doçura.

Mortimer ficou magoado. Uma coisa era não querer casar, outra coisa era ouvir alguém dizer que não queria casar com você.

— Pelo menos eu não tenho a aparência de quem há anos vem comendo biscoito dentro do armário — objetou ele, quando os dois saíram para o jardim negro de Morte.

— Pelo menos eu não ando como se minhas pernas tivessem mais de um joelho cada — rebateu ela.

— Só que meus olhos não são dois ovos pochés estornorosos.

Ysabell assentiu.

— Por outro lado, minhas orelhas não parecem um troço esquisito nascendo de uma árvore morta. O que quer dizer estornoroso?

— Aqueles ovos que o Albert prepara.

— Com a parte branca toda grudenta, gotejante e cheia de pedaços mais finos?

— É.

— Boa palavra — reconheceu ela, pensativamente. — Mas o meu cabelo, vou lhe dizer, não parece um negócio com o qual se limpa a latrina.

— Com certeza, nem o meu parece um porco-espinho molhado.

— Agora, o meu peito não parece uma grelha num saco de papel úmido.

Mortimer olhou de soslaio para o alto do vestido de Ysabell, que continha gordura suficiente para fritar dois quilos de batata, e se absteve do comentário.

— Minhas sobrancelhas não parecem um casal de lagartas cruzando — arriscou.

— Tudo bem. Mas pelo menos minhas pernas dariam conta de deter um porco de passagem.

— O quê?

— Não são arqueadas — explicou ela.

— Ah.

Os dois avançaram pelos canteiros de lírios temporariamente esquecidos das palavras. Ysabell encarou Mortimer e estendeu a mão. Ele a apertou, num silêncio agradecido.

— Chega? — perguntou ela.

— Acho que sim.

— Ótimo. Não tem dúvida de que não devemos nos casar, nem que seja pelo bem dos filhos.

Mortimer assentiu.

Os dois sentaram num banco de pedra, entre algumas sebes vivas bem podadas. Naquele canto do jardim, Morte havia feito um lago, abastecido por uma fonte que parecia vomitada de um leão de pedra. Grandes carpas brancas nadavam pelo fundo ou abriam caminho entre as aveludadas vitórias-régias negras.

— A gente devia ter trazido farelo de pão — aventurou-se Mort, optando por um assunto totalmente neutro.

— Sabia que ele nunca vem aqui? — perguntou Ysabell, observando os peixes. — Só construiu para me agradar.

— Não funcionou?

— Não é de verdade — justificou ela. — Nada aqui é de verdade. Ele só gosta de agir como ser humano. Agora vem tentando com todas as forças, percebeu? Acho que você está tendo um grande efeito sobre ele. Sabia que uma vez papai tentou aprender a tocar banjo?

— Eu o vejo mais tocando órgão.

— Não conseguiu — continuou Ysabell, ignorando-o. — Não sabe criar, entende?

— Você mesma disse que ele fez o lago.

— É a cópia de um que viu em algum lugar. Tudo aqui é cópia.

Mortimer se mexeu. Algum inseto havia lhe subido pela perna.

— É triste — disse ele, esperando que aquele fosse o tom adequado para a ocasião.

— É, sim.

Ela pegou um punhado de pedras do chão e começou a atirá-las distraidamente no lago.

— Minhas sobrancelhas são esse horror todo? — perguntou.

— Hã — soltou Mort. — Temo que sim.

— Ah.

Pedrada, pedrada. As carpas a observavam com desprezo.

— E minhas pernas? — quis saber ele.

— Também. Sinto muito.

Mortimer vasculhou seu limitado repertório de conversa fiada e desistiu.

— Não se preocupe — disse, com educação. — Pelo menos você pode usar pinça.

— Ele é muito bom — ponderou Ysabell, mais uma vez ignorando-o —, apesar da distração.

— Não é pai legítimo, é?

— Meus pais morreram a muitos anos, atravessando o Grande Nef. Teve uma tempestade, eu acho. Ele me encontrou e me trouxe para cá. Não sei por quê.

— Deve ter sentido pena.

— Ele não sente nada. Não estou dizendo isso por maldade, sabe? Só que ele não tem com o que sentir, nenhuma... como é que se chama?... nenhuma glândula. É mais provável que tenha pensado pena de mim.

Ela virou o rosto pálido e redondo para Mortimer.

— E que não falem mal dele na minha presença! Ele faz o melhor que pode. Só que tem muitas coisas para pensar.

— Meu pai era um pouco assim. Quer dizer, é.

— Mas deve ter glândulas.

— Imagino que sim — assentiu Mort, ligeiramente incomodado. — Na verdade, nunca parei para pensar em glândulas.

Lado a lado, os dois olharam as carpas, que retribuíram o olhar.

— Acabo de alterar toda a História do futuro — confessou Mort.

— É?

— Sabe? Quando ele tentou matá-la, eu o matei, mas o negócio é que, de acordo com a História, ela deveria ter morrido e o duque, ter se tornado rei. Mas a pior parte, a pior parte, é que apesar de ser totalmente mau-caráter, ele unificaria as cidades, que acabariam se transformando numa federação, e os livros afirmam que haveria cem anos de paz e prosperidade. Quer dizer, a gente logo imagina que haveria um reinado do terror ou algo assim, mas parece que de vez em quando a História precisa desse tipo de gente, e a princesa seria apenas mais uma monarca. Quer dizer, não má, aliás bastante boa, mas não ideal, e agora isso não vai acontecer, a História se rompeu, está desatada e é tudo culpa minha!

Ele se deteve, ansiosamente aguardando a reação dela.

— Você estava certo, sabia?

— Estava?

— A gente devia ter trazido farelo de pão — disse ela. — Acho que os peixes encontram alimento na água. Besouros e tal.

— Você ouviu o que eu falei?

— Sobre o quê?

— Ah. Nada. Nada demais. Desculpe.

Ysabell suspirou e se pôs de pé.

— Você deve estar querendo ir embora — imaginou ela. — Fico feliz por termos resolvido essa história de casamento. Foi muito bom conversar com você.

— Poderíamos ter uma espécie de relação de ódio e ódio — propôs Mort.

— Em geral, não tenho chance de conversar com as pessoas com quem meu pai trabalha.

Ela parecia não conseguir se afastar, como se esperasse que Mortimer dissesse alguma coisa.

— Bem, você não conversaria mesmo — foi tudo em que ele conseguiu pensar.

— Imagino que agora você tenha de sair para o trabalho.

— Mais ou menos.

Mortimer hesitou, notando que de algum modo inexplicável a conversa havia saído da parte rasa e agora flutuava em áreas profundas que ele ainda não entendia muito bem.

Houve um ruído feito...

Com uma pontada de saudade, Mortimer se lembrou do velho jardim de casa. Durante os invernos rigorosos das Ramtops, a família mantinha as grandes cabras montanhesas no jardim, pastando à vontade. Depois do degelo da primavera, o jardim ainda se mostrava uma imensa crosta sólida. Se a pessoa tivesse cuidado, podia atravessá-lo. Se não tivesse, e mergulhasse a perna até a altura do joelho na bosta concentrada, então o som que a bota fazia ao sair, verde e fumegante, era tão parecido com o som da virada de ano quanto a música dos pássaros e o zumbido das abelhas.

Era esse ruído. Instintivamente, Mortimer examinou os sapatos.

Ysabell estava chorando, não com pequenos soluços femininos, mas com enormes arquejos sôfregos — como bolhas de um vulcão submarino lutando para chegar primeiro à superfície. Eram soluços escapando sob pressão, sazonados na angústia cotidiana.

Mort disse:

— Hum?

O corpo dela tremia feito colchão de água em zona de terremoto. Ela vasculhou as mangas do vestido atrás do lenço, mas, naquelas circunstâncias, o pedaço de renda não teve mais utilidade do que teria um chapéu de papelão numa tempestade. Tentou dizer alguma coisa, que se transformou numa torrente de consoantes pontuadas por soluços.

Mort disse:

— Hã?

— Perguntei quantos anos você acha que eu tenho.

— Quinze? — arriscou ele.

— Dezesseis — corrigiu ela, num lamento. — E sabe há quanto tempo tenho 16 anos?

— Desculpe, não estou entend...

— Não, você não entende. Ninguém entende.

Ela assoou o nariz outra vez e, apesar das mãos trêmulas, guardou com firmeza o lenço molhado.

— Você pode sair — apontou. — Ainda não está aqui há tempo suficiente para notar. O tempo fica parado aqui, não percebeu? Alguma coisa passa, mas não é o tempo real. Ele não pode criar o tempo real.

— Ah.

Quando ela voltou a falar, foi com a voz fina, cuidadosa e sobretudo corajosa da pessoa que se recompôs mas a qualquer momento pode desmoronar outra vez.

— Há 30 anos tenho 16!

— Ah?

— O primeiro ano foi terrível.

Mortimer recordou as semanas anteriores e assentiu.

— E por isso que você lê aqueles livros? — perguntou.

Constrangida, Ysabell baixou a cabeça e girou o pé nas pedras.

— São muito românticos — admitiu ela. — Tem umas histórias encantadoras: a menina que tomou veneno quando o namorado morreu, a outra que pulou de um penhasco porque o pai insistia que se casasse com um velho e aquela que preferiu se afogar a...

Mortimer ouviu, abismado. A julgar pelo material de leitura cuidadosamente escolhido por Ysabell, era digna de nota a mulher do Disco que sobrevivia a adolescência tempo suficiente para vestir o primeiro par de meias finas.

— ... então ela pensou que ele estivesse morto e se suicidou, aí ele acordou e também se matou, e teve uma menina...

O bom senso sugere que pelo menos algumas poucas mulheres entram na casa dos trinta sem se matarem por amor, mas parece que o bom senso não tinha nem papel coadjuvante naqueles dramas[5]. Mortimer já havia notado que o amor nos deixa tristes, eufóricos, fracos e cruéis, mas não tinha se dado conta de que também pode nos deixar burros.

— ... nadava todas as noites no rio, mas uma noite teve uma tempestade e, quando ele não voltou, ela...

Instintivamente, Mortimer acreditava que alguns jovens casais se conheciam, digamos, num baile da cidade e se davam bem, saíam juntos por um ou dois anos, tinham algumas brigas, faziam as pazes, casavam e nem cogitavam se matar.

Ele percebeu que a ladainha do amor arrebatador estava em baixa.

— Ah — disse, baixinho. — E ninguém... vive bem?

— Amar é sofrer — decretou Ysabell. — Tem de haver muita desgraça.

— Tem?

— Com certeza. E agonia.

Ysabell pareceu se lembrar de algo.

— Você falou alguma coisa sobre romper e estar desatada? — perguntou, com a voz apertada de quem se recompõe.

Mortimer considerou a pergunta.

— Não — respondeu, afinal.

— Eu não estava prestando muita atenção.

— Não tem importância.

Os dois voltaram para casa em silêncio.

Quando Mortimer entrou no gabinete, descobriu que Morte havia saído, deixando quatro ampulhetas sobre a mesa. O grande livro de couro estava no atril, bem trancado.

Havia um bilhete debaixo das ampulhetas.

Mortimer imaginara que a letra de Morte seria gótica ou terrivelmente angulosa, mas na verdade Morte tinha estudado uma obra clássica sobre grafologia antes de escolher um estilo e adotara uma letra que indicava personalidade equilibrada e bem ajustada.

Dizia o bilhete:

Phui pescar. Them uma execução em Pseudópolis, uma nathural em Krull, uma queda fathal nas Montanhas Carrick, uma por malária em Ell-Kinte. O restho do dhia é seu.

Mortimer achava que a História estava se debatendo como um cabo de aço solto, zunindo para frente e para trás da realidade em grandes movimentos destrutivos.

A História não funciona assim. A História se desdobra com suavidade, como uma suéter velha. Já foi muitas vezes cerzida e remendada, remodelada para se ajustar a pessoas diversas, metida em caixas sob a pia da censura para ser criticada pelos espanadores da propaganda, e ainda assim sempre acaba conseguindo voltar à antiga forma. A História tem o costume de mudar as pessoas que pensam estar mudando-a. A História sempre tem uns truques na manga. Ela não nasceu ontem.

Eis o que estava acontecendo:

O golpe imprudente da foice de Mortimer havia partido a História em duas realidades distintas. Na cidade de Sto Lat, a princesa Keli ainda governava, com certa dificuldade e com o auxílio ininterrupto do reconhecedor real, que entrou para a folha de pagamento da corte e era encarregado de lembrar todos da existência dela. Nas terras estrangeiras, entretanto — além da planície, nas Ramtops, em torno do Mar Círculo e em toda a região até a Borda —, a realidade tradicional ainda dominava e ela estava morta, o duque era rei e o mundo seguia tranqüilamente de acordo com o planejado, qualquer que fosse ele.

A questão é que ambas as realidades eram verdadeiras.

A zona de contato estava atualmente a cerca de trinta quilômetros da cidade e ainda não era muito perceptível. Isso porque a (bem, podemos chamá-la de) diferença das tensões históricas ainda não se encontrava muito grande. Mas estava crescendo. Nas plantações de repolho, havia uma luz difusa no ar e um leve chiado, como gafanhotos na fritadeira.

O homem não altera a História mais do que os pássaros alteram o céu — apenas traça breves arranjos nela. Aos poucos, implacável como uma geleira e bem mais fria, a realidade real avançava em direção a Sto Lat.


* * *

Mortimer foi o primeiro a perceber.

Havia sido uma tarde longa. O alpinista se segurara no gelo até o último instante e o executado chamara Mortimer de lacaio do estado monarquista. Só a velhinha de 103 anos, que se despedira da vida acompanhada de toda a chorosa família, havia aberto um sorriso e comentado que ele estava um pouco pálido.

O Sol do Disco estava próximo ao horizonte quando Pituco ganhou os céus de Sto Lat, e Mortimer viu a fronteira da realidade. Ela se curvava logo abaixo, numa tênue névoa prateada. Ele não sabia o que era, mas experimentou o terrível pressentimento de que tinha algo a ver consigo próprio.

Deteve o cavalo e conduziu-o suavemente para o chão, pousando a alguns metros do muro de ar iridescente. O negócio se movia devagar, sibilando de leve ao avançar feito um fantasma pelas persistentes plantações de repolho e geladas valas de drenagem.

Era uma noite fria, daquelas em que a geada e a cerração brigam por controle e todo som é abafado. A respiração de Pituco produzia jatos de nuvem no ar parado. Ele relinchou baixinho, como quem pede desculpa, e deu uma patada no chão.

Mortimer desceu da sela e se aproximou da interface. Ela crepitava. Formas estranhas fulguravam ali dentro, flutuando, transformando-se e desaparecendo.

Depois de procurar, achou uma vara e espetou-a com cuidado no muro de ar. Surgiram estranhas ondulações, que cresceram lentamente até sumir.

Mortimer ergueu a cabeça ao notar um vulto cortando o céu. Era uma coruja preta, inspecionando as valas à procura de alimento.

Atingiu o muro num jorro de neblina, deixando uma ondulação em forma de coruja que aumentou de tamanho até se juntar ao caleidoscópio gasoso.

Então sumiu. Dava para enxergar através da interface transparente, e com certeza nenhuma coruja apareceu do outro lado. Quando Mortimer já começava a ficar intrigado, houve outro jorro silencioso a alguns metros de distância, e o pássaro ressurgiu completamente indiferente, afastando-se pelos campos.

Mortimer se recompôs e atravessou a barreira, que não era barreira alguma. Mas formigava.

Um instante mais tarde, Pituco entrava atrás dele, com os olhos revirados de desespero e cachos da interface agarrados nos cascos. Empinou-se, sacudindo a crina como um cachorro para se livrar dos filamentos aderentes de névoa, e encarou Mortimer com ar de súplica.

Mortimer pegou as rédeas, afagou-lhe o focinho e vasculhou o bolso atrás de um torrão de açúcar já sujo. Sabia estar na presença de algo importante, mas ainda não tinha certeza do que era.

Havia uma estrada ladeada por salgueiros molhados e sombrios. Mortimer montou em Pituco e avançou para a escuridão gotejante sob os galhos.

A distância, podia divisar as luzes de Sto Helit — que não passava de uma cidadezinha. O leve brilho no limite de sua visão deveria ser Sto Lat. Olhou para lá com nostalgia.

A barreira o preocupava. Dava para vê-la deslizando pelo campo, atrás das árvores.

Mortimer estava a ponto de conduzir Pituco de volta ao ar livre quando viu a luz adiante, cálida e convidativa. Ela saía das janelas de uma casa grande à margem da estrada. Provavelmente era um tipo festivo de luz, mas, naqueles arredores e comparada ao humor de Mortimer, parecia extasiante.

Ao se aproximar, ele entreviu sombras e escutou trechos de música. Era um bar, e dentro havia pessoas se divertindo, ou ao menos fazendo o que se considera diversão quando se é camponês e se leva a maior parte do dia preocupado com repolhos. Comparado a essas plantas, qualquer coisa é um prazer.

Havia seres humanos ali, fazendo coisas simples e humanas como encher a cara e esquecer a letra das músicas.

Mortimer jamais sentira saudade de fato, possivelmente porque até então sua mente estivera ocupada demais com outras coisas. Mas agora a sentia pela primeira vez — esse tipo de nostalgia não de um lugar, mas de um estado de espírito, de ser apenas uma pessoa comum com coisas práticas com as quais se preocupar, como dinheiro, doenças e outras pessoas...

Acho que vou tomar uma bebida, pensou ele, e talvez me sinta melhor.

Havia um estábulo aberto num lado do prédio principal, e ele conduziu Pituco ao breu quente, cheirando a cavalo, que já acomodava outros três animais. Enquanto Mortimer afrouxava a cevadeira, imaginou se o corcel de Morte se sentia da mesma maneira em relação aos outros cavalos, que tinham estilos de vida bem menos sobrenaturais. Sem dúvida parecia majestoso comparado aos demais, que o observavam com atenção. Pituco era um cavalo de verdade — as bolhas do cabo da pá nas mãos de Mortimer eram prova disso — e confrontado com os outros parecia mais real do que nunca. Mais concreto. Mais cavalar. Ligeiramente exagerado.

Na verdade, Mortimer estava em via de tirar uma dedução importante, e é pena que tenha se distraído ao caminhar pelo jardim até a pequena porta, abaixo do letreiro do bar — A Cabeça da Rainha. O artesão não se mostrava muito talentoso, mas era impossível deixar de reconhecer a linha do queixo e a massa de cabelos cor de fogo de Keli na imagem esculpida.

Mortimer soltou um suspiro e abriu a porta.

Todo mundo parou de falar e olhou para ele com aquele ar sincero do povo rural a sugerir que por quase nada lhe acertam a pá na cabeça e enterram o corpo debaixo de um monte de adubo à luz da Lua cheia.

Talvez valha a pena dar outra olhada em Mortimer, porque ele mudou bastante nos últimos capítulos. Por exemplo, embora ainda possuia muitos joelhos e cotovelos, eles parecem ter migrado para os locais apropriados e o menino já não anda como se as juntas fossem presas por fitas elásticas. Antes, ele parecia não saber nada. Agora parece saber demais. Algo nos olhos sugere ter visto coisas que as pessoas comuns não vêem nunca, ou pelo menos não mais de uma vez.

E todo o resto sugere ao observador que provocar um inconveniente ao garoto seria tão inteligente quanto chutar uma casa de marimbondos. Em resumo, Mortimer não parece mais alguém que troca os pés pelas mãos e depois bate palmas.

O dono do lugar relaxou a pressão sobre o bastão de madeira que mantinha debaixo do bar para apartar possíveis brigas e abriu o rosto numa espécie de sorriso alegre e acolhedor, embora não muito.

— Noite, seu moço — disse ele. — O que vai ser nessa madrugada gelada?

— Quê? — indagou Mort, piscando os olhos sob a luz forte.

— Ele está perguntando o que você quer beber — interveio o homem baixo com cara de doninha sentado próximo à lareira, lançando a Mortimer o tipo de olhar que o açougueiro dirige a um campo cheio de ovelhas.

— Hum. Não sei — respondeu Mort. — Tem gota de estrela?

— Nunca ouvi falar, seu moço.

Mortimer olhou para os rostos a fitá-lo, iluminados pela luz do fogo. Era o tipo de gente normalmente chamada sal da terra. Em outras palavras, eram duros, quadrados e faziam mal aos dentes, mas Mortimer estava preocupado demais para notar.

— Então o que se bebe aqui?

O dono do bar olhou de lado para os clientes — um truque engenhoso já que eles estavam bem à sua frente.

— O, moço. A gente toma esfuminho.

— Esfuminho? — perguntou Mort, sem reparar nos risos abafados.

— É, moço. Feito de maçã. Bem, principalmente de maçã.

Pareceu saudável o bastante para Mortimer.

— Tudo bem — assentiu ele. — Então uma dose de esfuminho.

Enfiou a mão no bolso e retirou o saco de ouro que Morte havia lhe dado. Ainda estava bem cheio. No súbito silêncio do ar, o leve tinido das moedas soou como os legendários Gongos de Bronze de Leshp, que ainda podem ser ouvidos em alto-mar nas noites de tempestade, quando as correntes os agitam na torre submersa, trezentas braças abaixo da superfície.

— E por favor sirva aos cavalheiros o que quiserem — acrescentou Mort.

Ele ficou tão desarmado pelo coro de agradecimentos que não prestou muita atenção ao fato de que os novos amigos recebiam a bebida em copos minúsculos, do tamanho de um dedal, ao passo que a dele era servida numa grande caneca de madeira.

Contam-se muitas histórias sobre o esfuminho e o modo como é produzido nos pântanos, seguindo antigas receitas passadas com algumas variações de pai para filho. Não é verdade sobre os ratos, as cabeças de cobra nem o chumbo. A da ovelha morta é uma mentira deslavada. Podemos descartar todas as variantes da que se refere ao botão de calça. Mas a que alude ao fato de não podermos deixá-lo entrar em contato com metal é verdadeira, porque quando o dono do bar propositadamente deu troco de menos a Mortimer e jogou o montinho de moedas nuns respingos do negócio elas logo começaram a espumar.

Mortimer cheirou o drinque e tomou um gole. O gosto era um pouco de maçã, um pouco das manhãs de outono e bastante de fundo de rio. Sem querer parecer mal-educado, porém, tomou mais um trago.

Todos o observavam, contando a meia voz.

Mortimer achou que esperavam algo dele.

— Gostoso — opinou. — Muito refrescante. Tomou outro gole.

— Um paladar que se aprende — acrescentou —, mas que vale o esforço.

Dos fundos, vieram alguns murmúrios de descontentamento.

— Ele está botando água na bebida, é isso.

— Duvido. Sabe o que acontece quando a gente deixa uma gota de água cair no esfuminho?

O dono do bar tentou ignorar os comentários.

— Você gostou? — perguntou a Mortimer, mais ou menos no tom de voz que as pessoas usaram ao perguntar a São Jorge “Matou o quê?”

— É bem picante — opinou Mort. — E tem um leve sabor de nozes.

— Com licença — pediu o dono do bar, e delicadamente pegou a caneca da mão de Mortimer.

Cheirou o líquido e então enxugou os olhos.

— Arrgh! — disse. — É o troço mesmo.

Encarou o menino com algo que beirava a admiração. Não porque ele tivesse bebido quase duzentos mililitros de esfuminho, é que ainda se encontrava de pé e aparentemente vivo. O homem devolveu a caneca: era como se desse um troféu a Mortimer, depois de uma competição inacreditável. Quando o garoto tomou outro gole, vários clientes estremeceram. O dono do bar se pôs a imaginar do que eram feitos os dentes de Mortimer e concluiu que deveriam ser do mesmo material que o estômago.

— Por acaso, você é mago? — indagou, por precaução.

— Não, por quê? Deveria ser?

Achei que não, pensou o homem, ele não anda como mago e não está fumando nada. Olhou a caneca outra vez.

Havia algo errado ali. Havia algo errado no menino. Ele não parecia direito. Parecia...

... mais concreto do que deveria.

Nada disso fazia sentido, é claro. O bar era concreto, o chão era concreto, os fregueses eram tão concretos quanto se podia ser. E ainda assim Mortimer — ali parado, mostrando-se um tanto constrangido, vez por outra dando goles num líquido com o qual se podia limpar louça — parecia emitir um tipo particularmente poderoso de concretude, uma dimensão extra de realidade. O cabelo era mais cabelo; a roupa era mais roupa; a bota, o epítome da qualidade de bota. Fazia a cabeça doer só de olhar para ele.

Mas então Mortimer mostrou-se humano afinal de contas. A caneca se desprendeu dos dedos incapacitados e caiu no chão, onde os restos do esfuminho começaram a corroer as lajes. Ele apontou a parede oposta, com a boca se abrindo e fechando em silêncio.

Os clientes voltaram a conversar e jogar, assegurados de que coisas eram como deveriam ser: Mortimer agora estava agindo perfeitamente dentro do normal. O dono do bar, aliviado pelo fato de a bebida ter justificado sua fama, estendeu o braço e lhe deu tapinhas amigos no ombro.

— Está tudo bem — garantiu. — Quase sempre faz isso com as pessoas, você só vai ter dor de cabeça durante algumas semanas, mas não se preocupe: com uma gota de esfuminho você fica bonzinho de novo.

É verdade que o melhor remédio para ressaca de esfuminho é a própria bebida.

Mas Mortimer apenas continuou apontando e, com voz trêmula, disse:

— Não vê? Está vindo pela parede! Está vindo pela parede!

— Muita coisa vem pela parede depois do primeiro esfuminho. Em geral, coisas verdes e peludas.

— É a neblina! Não está ouvindo o chiado?

— Uma neblina que chia, é?

O dono do bar olhou a parede, que parecia vazia e nada misteriosa, à exceção de umas teias de aranha. Mas a urgência na voz de Mortimer o deixou perturbado. Ele preferia os monstros escamosos de sempre. Ao menos o homem sabe com quem está lidando diante deles.

— Vem na direção do bar! Não está sentindo?

Os fregueses se entreolharam. Mortimer estava deixando todos apreensivos. Mais tarde, um ou dois admitiriam ter sentido algo como um formigamento gelado, mas poderia ter sido indigestão.

Mortimer se afastou e agarrou o balcão. Tremeu por um instante.

— Olhe aqui — começou o dono do bar —, brincadeira é brincadeira, mas...

— Você estava de camisa verde antes!

O homem olhou para baixo. Havia uma ponta de horror na voz dele.

— Antes de quê? — perguntou.

Para surpresa sua, e antes que pudesse levar a mão ao pedaço de madeira, Mortimer se lançou pelo balcão e agarrou-o pelo avental.

— Você tem uma camisa verde, não tem? — indagou. — Eu vi. De botões amarelos!

— Bem, é verdade. Tenho duas camisas.

O dono do bar tentou se aprumar um pouco.

— Sou um homem de posses — acrescentou. — Só não a usei hoje.

Ele não queria nem imaginar como o menino sabia dos botões.

Mortimer soltou-o e deu meia-volta.

— Estão todos sentados em lugares diferentes! Cadê o homem perto da lareira? Mudou tudo!

Ele saiu correndo pela porta. Ouviu-se um grito abafado vindo de fora, e Mortimer voltou de olhos arregalados, encarando a clientela, horrorizada.

— Quem mudou o letreiro? Alguém mudou o letreiro!

Nervoso, o dono do bar passou a língua pelos lábios.

— Depois que o rei morreu? — perguntou.

A fisionomia de Mortimer deixou-o gelado: os olhos do garoto eram duas poças negras de pavor.

— Estou falando do nome!

— Nós... sempre foi o mesmo nome — disse o homem, olhando em desespero para os fregueses, em busca de apoio. — Não é mesmo, rapazes? A Cabeça do Duque.

Houve um coro murmurado de anuência.

Mortimer encarou os clientes, visivelmente trêmulo. Depois se virou e correu para fora outra vez.

Todos ouviram o tropel no jardim, que ficou mais fraco e então desapareceu por completo, como se o cavalo tivesse deixado a superfície da terra.

Não havia nenhum som no bar. Os homens tentavam evitar os olhares uns dos outros. Ninguém queria admitir ter visto o que imaginava acabar de ver.

Então coube ao dono se arrastar pelo bar, estender o braço e correr os dedos pela familiar e tranqüilizadora madeira da porta. Era sólida, dura, tudo que uma porta deveria ser.

Os homens tinham visto Mortimer atravessá-la três vezes. Só que em momento algum ele a abrira.

Pituco alçou vôo, erguendo-se quase na vertical, com os cascos a agitar o ar e o hálito enovelando-se como um rastro de vapor. Mortimer se agarrou com mãos e joelhos, mas principalmente com força de vontade, tendo a cabeça enterrada na crina do animal. Só olhou para baixo quando o ar à volta se encontrava frio e ralo como feijão de cadeia.

Acima, as Luzes do Centro tremeluziam em silêncio no céu invernal. Abaixo...

... um pires de ponta-cabeça, com quilômetros de diâmetro, prateado sob o luar. Era possível ver luzes atravessando-o. As nuvens flutuavam através dele.

Não. Mortimer observou com atenção. As nuvens com certeza flutuavam para dentro do negócio, e havia nuvens em seu interior, mas as de dentro eram mais finas e se moviam numa direção ligeiramente diferente das de fora. Tinha outra coisa... ah sim, as Luzes do Centro. Elas davam à noite externa ao hemisfério espectral um leve tom esverdeado, mas não havia nem sinal disso debaixo da abóbada.

Era como ver um pedaço de outro mundo, quase idêntico, que houvesse se acoplado ao Disco. Ali o clima era um pouco diferente, e naquela noite as Luzes não estavam à mostra.

Mas o Disco reagia, cercando-o e tentando eliminá-lo. De cima, Mortimer não podia vê-lo diminuir de tamanho, mas imaginou ouvir o chiado da interface ao avançar pela terra, transformando todas as coisas de volta a como deveriam ser. A realidade se recobrava.

Sem nem mesmo ter de pensar a respeito, Mortimer sabia quem se encontrava no meio da abóbada. Mesmo dali, era óbvio que ela se centrava em Sto Lat.

Tentou imaginar o que aconteceria quando a abóbada tivesse se reduzido ao tamanho de um quarto, depois ao tamanho de uma pessoa e então ao tamanho de um ovo. Não conseguiu.

A Lógica teria dito a Mortimer que ali estava sua salvação. Em um ou dois dias, o problema se resolveria, os livros da biblioteca estariam endireitados, o mundo teria voltado a seu estado normal, como uma fita elástica. A Lógica teria lhe dito que interferir no sistema uma segunda vez só faria piorar as coisas. A Lógica teria dito isso tudo, se também não tivesse tirado a noite de folga.

A luz anda muito devagar no Disco — por causa do efeito retardador de seu imenso campo mágico —, e nesse instante a parte da Borda onde fica a Ilha de Krull se encontrava exatamente sob a órbita do pequeno Sol. Portanto, ainda era o começo da noite. E estava bem quente, já que a Borda pega mais calor e se beneficia de um suave clima costeiro.

Na verdade, Krull, com grande parte do que por ausência de melhor palavra deve ser chamado de seu “litoral” projetando-se sobre a Beira, era uma ilha abençoada. Os únicos krullianos nativos que não gostavam disso eram aqueles que não olhavam por onde andavam ou eram sonâmbulos, mas, pela própria seleção natural, já não havia muitos deles. Toda sociedade possui seu quinhão de pessoas que acabam “caindo fora”, mas em Krull elas nunca tinham chance de voltar.

Terpsic Mims não era uma delas. Era apenas pescador. E estava feliz. Vinha observando a pena presa à rolha boiar placidamente nas plácidas águas do Rio Hakrull, e sua mente se encontrava quase vazia. A única coisa que poderia aborrecê-lo seria de fato pegar um peixe, porque pegar peixes era a única coisa na pescaria que ele detestava. Os bichos eram frios, escorregadios, desesperados, davam nos nervos, e os nervos de Terpsic não eram dos melhores.

Desde que não pegasse nada, Terpsic Mims era um dos pescadores mais felizes do Disco, porque o Rio Hakrull ficava a oito quilômetros de casa e, portanto, a oito quilômetros da senhora Gwladys Mims, com quem havia partilhado seis felizes meses de vida conjugal. Cerca de vinte anos antes.

Terpsic não deu muita atenção quando outro pescador se postou mais acima. É claro que alguns pescadores poderiam fazer objeção àquela quebra de regras, mas no livro de etiqueta de Terpsic, qualquer coisa que diminuísse suas chances de pegar um dos malditos animais era excelente. Com o canto dos olhos, notou que o recém-chegado estava pescando com moscas, um passatempo interessante que Terpsic rejeitara pelo fato de o indivíduo passar tempo demais em casa, preparando o equipamento.

Ele jamais vira pescaria como aquela. Existem moscas artificiais para baixo e para cima da superfície, mas aquela mosca mergulhava na água com um ganido e arrastava o peixe para fora de trás para a frente.

Num misto de medo e fascinação, Terpsic observou o vulto indistinto atrás dos salgueiros atirar repetidamente a linha. A água fervilhava à medida que toda a bicharada tentava escapar ao zumbido de horror e, na confusão, infelizmente um imenso lúcio enlouquecido caiu no anzol de Terpsic.

Num instante ele se encontrava à margem, no instante seguinte estava na escuridão verde e abafada, soltando bolhas pela boca, vendo sua vida passar diante dos olhos e — mesmo na hora do afogamento — temendo a idéia de ver a parte que ficava entre o dia do casamento e o momento atual. Ocorreu-lhe que Gwladys logo seria viúva, o que o alegrou um pouco. Na verdade, Terpsic sempre tentara olhar o lado positivo de tudo e, ao afundar deliciosamente para as profundezas do rio, pensou que dali em diante a vida só poderia melhorar...

Então puxaram-no pelo cabelo até a superfície, que de repente lhe pareceu extremamente dolorosa. Terríveis manchas pretas e azuis flutuavam à frente dos olhos. Os pulmões estavam em brasa. A garganta doía de aflição.

Mãos frias, geladas, semelhantes a luvas de gelo, suspenderam-no da água e jogaram-no na margem, onde, depois de algumas intrépidas tentativas de continuar se afogando, ele acabou sendo animado de volta ao que chamavam de vida.

Terpsic não ficava chateado com freqüência, porque Gwladys não aprovava. Mas se sentiu enganado. Nascera sem ser consultado, casara porque Gwladys e o pai dela queriam, e a única grande conquista humana exclusivamente sua acabava de lhe ser arrancada. Alguns segundos antes, tudo estivera tão simples! Agora as coisas voltavam a se complicar.

Não que ele quisesse morrer, evidentemente. Os deuses eram inclementes no que tangia ao suicídio. Apenas não queria ter sido salvo.

Com os olhos vermelhos, numa máscara de lodo e lentilhas-d'água, espreitou o vulto indistinto acima e gritou:

— Por que tinha de me salvar?

A resposta o deixou preocupado. Terpsic não parou de pensar nela ao voltar ensopado para casa. Ela o acompanhou enquanto Gwladys reclamava do estado das roupas. E não lhe saiu da cabeça enquanto ele espirrava cheio de culpa próximo à lareira — porque ficar doente era outra coisa que Gwladys não aprovava. Quando se deitou na cama, ela voltou em sonho como um iceberg. Em meio à febre, ele murmurou:

— Como assim, “ESTOU GUARDANDO PARA DEPOIS”?

Tochas iluminavam a cidade de Sto Lat. Um pelotão de homens era encarregado de renová-las. As ruas brilhavam. As chamas crepitantes afastavam sombras que durante séculos vinham, noite após noite, inocentemente fazendo o que lhes cabia. Clareavam cantos antigos onde olhos de ratos atordoados cintilavam em buracos profundos. Obrigavam ladrões a não sair de casa. Reluziam nas neblinas noturnas, formando um nimbo de luz amarela que embaciava os raios frios a emanar do Centro. Mas principalmente faziam reluzir o rosto da princesa Keli.

Ele estava por toda parte. Cobria toda superfície plana. Pituco avançou pelas ruas iluminadas, em meio ao retrato de princesa em portas, muros e paredes. Mortimer ficou boquiaberto ao ver os cartazes da amada em todas as superfícies onde os operários haviam conseguido fazer a cola grudar.

Ainda mais estranho era o fato de ninguém parecer lhes dar muita atenção. Embora a vida noturna de Sto Lat não fosse tão intensa e cheia de acontecimentos quanto a de Ankh-Morpork — da mesma forma que não se pode comparar uma cesta de latrina ao depósito de lixo municipal —, ainda assim as ruas eram uma algazarra, com os gritos de vendedores ambulantes, jogadores, comerciantes de doces, trapaceiros, damas de aluguel, batedores de carteira e os ocasionais negociantes honestos que haviam chegado ali por engano e não conseguiam juntar dinheiro suficiente para partir. A medida que Mortimer caminhava, restos de conversa em meia dúzia de línguas diferentes lhe chegavam aos ouvidos. Resignado, ele se deu conta de que entendia cada uma delas.

Por fim, desceu de Pituco e conduziu o cavalo pela Rua do Muro, em vão procurando a casa de Cortabem. Achou-a apenas porque uma protuberância no cartaz mais próximo gritava injúrias abafadas.

Estendeu o braço com cuidado e retirou um pedaço do papel.

— Obrigadízimo — disse a aldrava em forma de gárgula. — Não dá para acreditar, não é? Uma hora a vida normal, na outra a boca jeia de cola.

— Onde está Cortabem?

— Foi morar no palázio... — A aldrava olhou de esguelha para ele e piscou o olho de ferro batido. — Uns homens vieram e levaram tudo. Depois outros homens comezaram a colar retratos da namorada dele por aí. Imbezis — acrescentou.

Mortimer ficou rubro.

— Namorada?

Sendo de natureza demoníaca, a aldrava riu da inflexão dele. O barulho parecia unha raspando em parede.

— É — respondeu. — E tinham preza.

Mortimer já estava montado em Pituco.

— Ezcute aqui! — gritou a aldrava, ao vê-lo se afastar. — Ezcute aqui! Garoto, zerá que vozê poderia me dezcolar daqui?

Mortimer puxou as rédeas de Pituco com tanta força que o cavalo se empinou e deu uns passos doidos para trás, então estendeu a mão e segurou a argola da aldrava. A gárgula olhou o rosto dele e de repente sentiu muito medo. Os olhos de Mortimer brilhavam como uma caldeira, a fisionomia era uma fornalha, e desprendia calor suficiente para derreter ferro. A aldrava não sabia o que ele poderia fazer, mas achou melhor não tentar descobrir.

— Do que você me chamou? — sussurrou Mort. A gárgula pensou rápido.

— Zenhor — disse.

— O que me pediu para fazer?

— Para me dezcolar.

— Não pretendo fazer isso.

— Tudo bem — concordou a aldrava. — Tudo bem. Não tem problema. Então vou ficar azim mesmo.

Ela viu Mortimer se afastar pela rua e encolheu os ombros de alívio, batendo a si mesma de nervoso.

— Foi por pouuuco! — disse uma das dobradiças.

— Cale-ze!

Mortimer passou pelos vigias noturnos, cujo trabalho agora parecia consistir em tocar sinos e gritar o nome da princesa, mas com pouca firmeza, como se tivessem dificuldade em se lembrar. Ele os ignorou, porque estava ouvindo vozes dentro de sua própria cabeça, que assim diziam:

Idiota, ela só o viu uma vez. Por que se incomodaria com você?

É, mas eu salvei a vida dela.

Isso significa que a vida pertence a ela. Não a você. Além do mais, ele é mago.

E daí? Os magos não podem... não podem sair com as garotas. São celibatários.

Celibatários?

Não podem nunca você sabe...

— O quê? Nunca nada de você sabe?, perguntou a voz interior, e parecia estar rindo.

Parece que faz mal à magia, pensou Mortimer, com amargor.

Situação estranha para ser fiel à magia!

Mortimer ficou chocado.

Quem é você?, perguntou.

Sou você, Mort. Seu íntimo.

Bem, eu gostaria de sair da minha cabeça. Está cheio demais comigo aqui dentro.

Tudo bem, disse a voz. Eu só estava tentando ajudar. Mas lembre-se: se você alguma vez precisar de você, você estará sempre por perto.

A voz sumiu.

Bem, pensou Mortimer cheio de ressentimento, devo ter sido eu mesmo. Sou o único que me chama de Mort.

O susto acabou ocultando o fato de que, enquanto estivera absorto no monólogo, ele havia passado pelos portões do palácio. Obviamente, as pessoas passavam pelos portões do palácio todo dia, mas a maioria precisava de coisas para abri-los.

Os guardas do outro lado ficaram rijos de medo, porque imaginaram ter visto um fantasma. Teriam ficado bem mais apavorados se soubessem que fantasma era exatamente o que não haviam visto.

O guarda à porta do salão principal também viu o ocorrido, mas teve tempo de recobrar os sentidos, ou o que sobrava deles, e erguer a lança quando Pituco avançava pelo jardim.

— Pare — resmungou. — Pare. Quem vem lá?

Mortimer olhou-o pela primeira vez.

— O quê? — perguntou, ainda perdido em pensamentos.

O guarda passou a língua sobre os lábios secos e recuou. Mortimer desceu de Pituco e deu alguns passos adiante.

— Eu quis dizer “quem vem lá?” — aventurou-se o guarda mais uma vez, num misto de teimosia e estupidez suicida que em breve lhe traria promoção.

Mortimer pegou a lança com delicadeza e suspendeu-a para fora do caminho. Quando fez isso, a tocha iluminou-lhe o rosto.

— Mort — respondeu, baixinho.

Isso bastaria para qualquer soldado normal, mas aquele guarda era qualificado para ser oficial.

— Quer dizer, amigo ou inimigo? — gaguejou, tentando evitar o olhar de Mortimer.

— O que você prefere?

Ele sorriu. Não era exatamente o sorriso do mestre, mas se mostrou bem eficaz e não exibia nem um traço de humor. O guarda suspirou com alívio e se pôs de lado.

— Passe, amigo — decidiu.

Mortimer cruzou a sala em direção à escada que levava aos aposentos reais. O salão havia mudado muito desde a última visita. Os retratos de Keli estavam por toda parte, haviam até substituído os velhos estandartes de guerra no telhado escuro. Era impossível para qualquer um que andasse pelo palácio avançar mais de alguns passos sem se deparar com eles. Uma parte da mente de Mortimer imaginava o motivo, outra parte se preocupava com a abóbada tremeluzente a se aproximar da cidade, mas a maior parte dela era uma rajada quente e fumegante de ódio, perplexidade e ciúme. Ysabell estava certa, pensou ele, aquilo deveria ser o amor.

— O menino que atravessa paredes!

Ele ergueu a cabeça. Cortabem estava no alto da escada.

O mago também havia mudado muito, pensou Mortimer com rancor. Mas talvez nem tanto assim. Embora estivesse vestido com um manto preto e branco bordado com lantejoulas, embora o chapéu pontudo tivesse um metro de altura e fosse decorado com mais símbolos místicos do que um mapa astral e apesar de os sapatos de veludo vermelho possuírem fivelas de prata e biqueiras recurvas como caracóis, ainda havia algumas manchas na gola e ele parecia estar mastigando.

O mago observou Mortimer subir a escada em sua direção.

— Está com raiva de alguma coisa? — perguntou. — Eu comecei a trabalhar naquilo, mas acabei me envolvendo em outra história. É muito difícil atravessar... por que está me olhando assim?

— O que está fazendo aqui?

— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta. Quer um morango?

— Em pleno inverno?

— Na verdade, são couves-de-bruxelas com uma pitada de feitiço.

— Têm gosto de morango?

Cortabem suspirou.

— Não. De couve-de-bruxelas. O feitiço não é totalmente eficaz. Achei que talvez pudessem animar um pouco a princesa, mas ela jogou tudo em cima de mim. Um desperdício. Sirva-se.

Mortimer ficou de queixo caído.

— Jogou em cima de você?

— Exatamente. É uma jovem muito temperamental.

Ei, disse uma voz nos fundos da mente de Mortimer, é você de novo, apontando para você mesmo que as chances de a princesa sequer considerar você — sabe, com esse sujeito são extremamente remotas.

Vá embora, pensou Mortimer. O subconsciente já estava deixando-o preocupado. Parecia ter uma ligação direta com partes de seu corpo que naquele momento ele gostaria de ignorar.

— Por que está aqui? — indagou ele, em voz alta. — Tem a ver com os retratos?

— Ótima idéia, não foi? — entusiasmou-se Cortabem. — Estou muito orgulhoso de mim mesmo.

— Desculpe — pediu Mort. — Tive um dia cheio. Gostaria de me sentar.

— Ali fica a Sala do Trono — apontou Cortabem. — A essa hora da noite, não tem ninguém. Todo mundo está dormindo.

Mortimer assentiu e então olhou desconfiado para o jovem mago.

— Então o que está fazendo acordado? — perguntou.

— Hum — disse Cortabem. — Hum, só pensei em ver se tinha alguma coisa na despensa.


Ele encolheu os ombros.[6]

Agora é hora de dizer que Cortabem também notou que Mortimer — mesmo esse Mortimer insone e cansado de cavalgar — está de alguma forma irradiando calor interno e energia. A diferença é que, por ter sido treinado, Cortabem é melhor adivinhador do que as outras pessoas e sabe que nos assuntos ocultos a resposta óbvia em geral está errada.

Mortimer pode desatentamente atravessar paredes e beber “fazedores de viúva” permanecendo sóbrio não porque esteja se tornando um fantasma, mas porque está ficando perigosamente real.

De fato, quando ao caminhar pelo corredor silencioso o menino tropeça e atravessa uma coluna de mármore sem nem sequer notá-la, fica óbvio que o mundo vem se transformando num lugar bastante imaterial, do seu ponto de vista.

— Você acabou de atravessar aquela coluna de mármore — observou Cortabem. — Como fez isso?

— Atravessei?

Mortimer correu os olhos à volta. A coluna parecia sólida o bastante. Bateu o braço nela e machucou o cotovelo.

— Eu podia jurar que atravessou — insistiu Cortabem. — Os magos reparam nessas coisas.

Ele enfiou a mão no bolso do manto.

— Então você reparou a abóbada de névoa em torno daqui? — perguntou Mort.

Cortabem soltou um gemido. O pote em sua mão caiu e se quebrou no chão. Sobreveio um cheiro de molho de salada ligeiramente rançoso.

— Já?

— Não sei nada de já — respondeu Mort —, mas tem um muro barulhento se aproximando daqui, ninguém mais parece se preocupar e...

— A que velocidade?

— ... ele muda as coisas!

— Você viu? A que distância? A que velocidade?

— Claro que vi. Atravessei o negócio duas vezes. Foi como...

— Mas você não é mago, então por que...

— O que está fazendo aqui, afinal...?

Cortabem respirou fundo.

— Todo mundo quieto! — gritou.

Houve silêncio. Então o mago pegou a mão de Mortimer.

— Venha cá — chamou, puxando-o de volta pelo corredor. — Não sei quem você é e espero ter tempo para descobrir um dia, mas vai acontecer uma coisa horrível e acho que, de algum modo, você está envolvido.

— Uma coisa horrível? Quando?

— Isso depende da distância em que se encontra a interface e com que velocidade está se movendo — considerou Cortabem, arrastando Mortimer por uma passagem lateral.

Quando os dois chegaram a uma porta de madeira, ele soltou o braço do garoto e vasculhou o bolso mais uma vez, retirando um pedaço duro de queijo e um tomate desagradavelmente mole.

— Segure aqui, por favor. Obrigado.

Procurou novamente, achou uma chave e abriu a porta.

— Aquilo vai matar a princesa, não vai? — perguntou Mort.

— Vai — respondeu Cortabem. — E não vai.

Ele se deteve, com a mão na maçaneta.

— É muito perspicaz da sua parte. Como sabe disso?

— Eu...

Mort hesitou.

— Ela me contou uma história muito estranha — observou Cortabem.

— Imagino que sim — disse Mort. — Se era inacreditável, era verdadeira.

— É você, não é? O assistente do Morte?

— Sou. Mas de folga no momento.

— Fico feliz em saber.

Cortabem fechou a porta e procurou um castiçal. Houve um estouro, um clarão de luz azul e um gemido.

— Desculpe — pediu, soprando os dedos. — Feitiço do fogo. Nunca peguei o jeito do negócio.

— Você já estava esperando a abóbada, não estava? — impacientou-se Mort. — O que vai acontecer quando ela se fechar?

O mago sentou nos restos de um sanduíche de bacon.

— Não tenho certeza — admitiu. — Vai ser interessante de se ver. Mas não de dentro. O que acho que vai acontecer é que a última semana jamais terá existido.

— Ela vai morrer de repente?

— Você não entende. Ela vai estar morta há uma semana. Nada disso... — Ele agitou as mãos vagamente no ar — ... vai ter acontecido. O assassino vai ter feito o trabalho dele. Você vai ter feito o seu. A História terá se recuperado. Tudo estará perfeito. Quer dizer, do ponto de vista da História. Na verdade, não existe nenhum outro.

Mortimer olhou para fora da janela estreita. Do outro lado do jardim, na rua iluminada, o retrato da princesa sorria para o céu.

— Agora me fale dos retratos — pediu. — Isso parece coisa de mago.

— Não sei se está funcionando. As pessoas estavam começando a ficar transtornadas e não sabiam por que, e isso só fez piorar as coisas. A mente delas se encontrava numa realidade e o corpo em outra. Muito incômodo. Não se acostumavam à idéia de que a princesa ainda vivia. Achei que os retratos pudessem ser uma boa idéia, mas ninguém vê o que a mente afirma não estar ali.

— Não me diga — ironizou Mort.

— Também mandei os apregoadores municipais falarem na princesa durante o dia — continuou Cortabem. — Achei que, se acreditassem nela, essa nova realidade poderia suplantar a outra.

— Como assim? — perguntou Mort, afastando-se da janela.

— Bem... imaginei que, se pessoas suficientes acreditassem nela, poderiam mudar a realidade. Funciona com os deuses. Se ninguém acredita num deus, ele morre. Se muitos crêem, ele ganha força.

— Não sabia disso. Achei que deus fosse deus.

— Eles não gostam que falem — disse Cortabem, vasculhando a pilha de livros e pergaminhos sobre a mesa.

— Talvez funcione para os deuses porque eles são especiais — sugeriu Mort. — Gente é... mais sólida. Não funcionaria com gente.

— Não é bem assim. Vamos supor que você saísse daqui e ficasse rondando o palácio. Provavelmente um dos guardas notaria e pensaria que você é ladrão. Não seria verdade, mas você morreria como se fosse. A crença é um troço poderoso. Eu sou mago. Sabemos dessas coisas. Olhe aqui.

Ele retirou um livro do entulho à frente e abriu-o no pedaço de bacon que usara como marcador. Mortimer espiou por sobre o ombro e franziu a testa ao ver a ondeada caligrafia mágica. Ela se movia pela página, retorcendo-se na tentativa de não se deixar ler por quem não fosse mago, e o efeito geral era perturbador.

— O que é isso? — perguntou ele.

— O Livro de Maghia de Alberto Malich, o Feiticeiro — informou o mago. — Uma espécie de publicação sobre teoria mágica. Não é bom olhar demais as palavras, elas não gostam. Veja, aqui diz...

Os lábios se moveram sem produzir nenhum som. Pequenas gotas de suor brotaram em sua testa e resolveram se unir para descer e ver o que estava acontecendo no nariz. Os olhos lacrimejaram.

Algumas pessoas gostam de se entregar à leitura de livros. Mas ninguém em seu juízo perfeito gosta de se entregar à leitura de livros de magia, porque mesmo as palavras soltas possuem vida própria, e lê-las é uma espécie de queda-de-braço mental. Muitos magos jovens tentaram decifrar livros mágicos potentes demais para eles, e quem escutava os gritos acabava encontrando apenas seus sapatos pontudos com a clássica fumacinha saindo de dentro e um livro que talvez se mostrasse ligeiramente mais grosso. Nas bibliotecas mágicas, podem acontecer coisas ao leitor que fazem os amassos e apertos provocados por monstruosidades cheias de tentáculos do Calabouço das Dimensões parecerem uma simples massagem.

Por sorte, Cortabem tinha uma edição reduzida, com algumas das páginas mais perturbadoras coladas umas às outras (embora nas noites mais silenciosas ele escutasse as palavras aprisionadas chiando irritadamente dentro de seu cárcere, como uma aranha presa em caixa de fósforos. Quem já se sentou perto de alguém ouvindo walkman pode imaginar como era o ruído).

— É essa parte — salientou Cortabem. — Aqui diz que até os deuses...

— Eu conheço esse homem!

— O quê?

Mort apontou o dedo trêmulo para o livro.

— Ele!

Cortabem lhe dirigiu um olhar desconfiado e examinou a página da esquerda. Havia o retrato de um velho mago segurando um livro e um castiçal numa pose que sugeria dignidade em estado terminal.

— Isso não faz parte da magia — irritou-se ele. — É só o autor.

— O que diz debaixo do retrato?

— Hã. Diz “Se vhocê gosthou desse livro, thalvez se intheresse por outros thítulos da...”

— Não, estou falando da legenda!

— Aí é fácil. Trata-se do próprio Malich. Qualquer mago conhece. Quer dizer, ele fundou a universidade... — Cortabem riu. — Tem uma estátua famosa dele no salão principal e, uma vez, na Semana da Arruaça, eu subi lá em cima e botei um...

Mortimer estudou o retrato.

— A estátua tinha uma gota na ponta do nariz? — perguntou, baixinho.

— Acho que não — respondeu Cortabem. — Era de mármore, mas não sei por que você está ficando todo tenso. Muita gente conhece o Malich. Ele é famoso.

— E viveu muito tempo atrás, não foi?

— Acho que há 2 mil anos. Olhe, não sei por que...

— Mas aposto que não morreu — disse Mort. — Aposto que um dia ele simplesmente sumiu. Não foi?

Por um instante, Cortabem se manteve em silêncio.

— Engraçado você mencionar isso — falou, devagar. — Existe uma lenda, sim. Dizem que ele se meteu numa furada. Que se transportou para o Calabouço das Dimensões enquanto tentava realizar o Rito de AshkEnte de trás para a frente. Só encontraram o chapéu dele. E nem era um chapéu bonito, tinha marcas de queimado.

— Alberto Malich — murmurou Mort, meio para si mesmo. — Imagine!

Ele tamborilou os dedos na mesa, embora o som saísse surpreendentemente abafado.

— Desculpe — pediu Cortabem. — Sempre faço lambança com sanduíche de melaço.

— Calculo que a interface venha se movendo a passos lentos — imaginou Mort, distraidamente lambendo os dedos. — Não pode detê-la com mágica?

Cortabem sacudiu a cabeça.

— Nem pensar. Ela me esmagaria — objetou.

— E o que vai acontecer quando ela chegar?

— Ah, eu volto a morar na Rua do Muro. Quer dizer, jamais terei saído de lá. Nada disso vai ter acontecido. Uma pena... A comida aqui é deliciosa, e lavam minha roupa de graça. Aliás, a que distância você disse que ela estava?

— Acho que a uns trinta quilômetros.

Cortabem rolou os olhos e mexeu os lábios. Por fim, disse:

— Então vai chegar aqui por volta da meia-noite de amanhã, bem a tempo para a coroação.

— De quem?

— Dela.

— Mas ela já é rainha, não é?

— De certo modo, mas oficialmente só vai virar rainha quando for coroada.

Cortabem sorriu, com o rosto sombreado contra a luz de vela, e acrescentou:

— É como a diferença entre deixar de viver e estar morto.

Vinte minutos antes, Mortimer estivera cansado o bastante para cair no sono. Agora sentia o sangue fervilhar. Era aquele tipo de energia desvairada que nos vem tarde da noite e pela qual sabemos que vamos pagar por volta do meio-dia seguinte, mas agora ele precisava de ação ou seus músculos saltariam para fora.

— Quero vê-la — anunciou. — Se você não pode fazer nada, talvez eu possa.

— Tem guardas do lado de fora do quarto — advertiu Cortabem. — Falo isso apenas a título de observação. Nem por um minuto imagino que eles venham a fazer alguma diferença.


Era meia-noite em Ankh-Morpork, mas na grande cidade gêmea a única diferença entre o dia e a noite era o escuro. Os mercados estavam apinhados, os transeuntes ainda se encontravam amontoados na área das vagabundas, os perdedores das eternas e bizantinas lutas de gangue da cidade afundavam em silêncio nas águas geladas do rio com pesos de chumbo amarrados aos pés, negociantes de várias delícias ilegais e mesmo ilógicas realizavam suas vendas, assaltantes assaltavam, facas reluziam à luz das estrelas em becos escuros, astrólogos davam início ao trabalho do dia e, nas sombras, um guarda-noturno que havia errado o caminho tocava a campainha de casa e gritava:

— Querida chegueiaaaahhh...

Mas a Associação Comercial de Ankh-Morpork não ficaria nem um pouco satisfeita com a insinuação de que a única diferença entre a cidade e um pântano era o número de patas de um jacaré. De fato, nas áreas mais distintas de Ankh — que costumavam ficar nas regiões montanhosas, onde existe alguma chance de se pegar um pouco de brisa —, as noites são suaves e têm aroma de habiscina e flor de cecília.

Nesta noite em particular também tinham cheiro de nitrato de potássio, porque era o décimo aniversário da ascensão do Patrício[7], e ele tinha convidado alguns amigos — no caso, quinhentos — para um drinque e estava soltando fogos. O riso e o ocasional gorgolejo da paixão enchiam os jardins do palácio, e a noite acabava de chegar a essa interessante fase em que todo mundo já bebeu demais, mas não o suficiente para cair. E o tipo de fase em que a pessoa faz coisas das quais vai se lembrar vermelha de vergonha para o resto da vida, como assobiar com papeizinhos e rir até passar mal.

De fato, cerca de duzentos convidados do Patrício estavam agora cambaleando os passos da Dança da Serpente, um exótico costume morporkiano que consiste em ficar bastante bêbado, pegar a cintura da pessoa à frente e então bordejar e rir alto numa longa fila que atravessa o máximo possível de cômodos, de preferência aqueles com objetos fáceis de quebrar, enquanto os participantes chutam o ar mais ou menos no ritmo da batida, ou pelo menos de alguma batida. A dança já vinha acontecendo havia meia hora e tinha passado por todos os cantos do palácio, acolhendo dois trolls, o cozinheiro, o torturador-mor do Patrício, três garçons, um assaltante que estava de passagem e um pequeno e doméstico dragão do brejo.

Em algum lugar, no meio da dança, estava o gordo lorde Rodley de Quirm, herdeiro das fabulosas terras de Quirm, cuja atual preocupação eram os dedos finos a lhe apertarem a cintura. Banhado em álcool, seu cérebro tentava lhe chamar a atenção.

— Ei — gritou ele, por cima dos ombros, ao atravessar pela décima vez a imensa cozinha. — Não aperte tanto, por favor.

— SINTO MUITO.

— Sem problema, amigo. Conheço você? — perguntou o lorde Rodley, chutando o ar vigorosamente ao som da batida.

— POUCO PROVÁVEL. POR FAVOR, QUAL É O SENTIDO DESSA ATIVIDADE?

— Quê? — berrou lorde Rodley, em meio ao barulho de alguém chutando a porta de uma cristaleira e aos muitos gritos de alegria.

— O QUE É ISSO QUE ESTAMOS FAZENDO? — perguntou a voz, com paciência glacial.

— Nunca esteve numa festa? Aliás, cuidado com o copo.

— NÃO SAIO TANTO QUANTO GOSTARIA. POR FAVOR ME EXPLIQUE. TEM ALGUMA COISA A VER COM SEXO?

— Não, a menos que o sujeito chegue junto, meu velho, se é que você me entende — disse o lorde, e cutucou o conviva com o cotovelo. — Ai! — resmungou.

Um estrondo adiante assinalou o fim do bufê de frios.

— NÃO.

— O quê?

— NÃO ENTENDO.

— Cuidado com o creme ali, escorrega... Olhe, é só uma dança. A gente faz por diversão.

— DIVERSÃO?

— Exatamente. Tchá-tchá-tchá... e chuta! Houve uma pausa audível.

— QUEM É DIVERSÃO?

— Não, diversão não é ninguém, a gente é que se diverte.

— A GENTE ESTÁ SE DIVERTINDO?

— Achei que estivesse — respondeu o lorde, sem muita certeza. A voz estava começando a preocupá-lo, parecia lhe chegar diretamente ao cérebro.

— MAS O QUE É DIVERSÃO?

— Isso aqui!

— CHUTAR O AR COM FORÇA É DIVERSÃO?

— Bem, faz parte da diversão. Chute!

— OUVIR MÚSICA ALTA EM LUGARES QUENTES É DIVERSÃO?

— Talvez.

— COMO A DIVERSÃO SE MANIFESTA?

— Bem... olhe aqui, o sujeito se diverte ou não se diverte, não precisa me perguntar, a pessoa sente. Como entrou aqui? — acrescentou ele. — É amigo do Patrício?

— DIGAMOS QUE ELE ME DÁ TRABALHO. ACHEI QUE EU DEVESSE APRENDER ALGUMA COISA DOS PRAZERES HUMANOS.

— Parece que tem uma longa estrada pela frente.

— EU SEI. POR FAVOR, PERDOE MINHA LAMENTÁVEL IGNORÂNCIA. SÓ QUERO APRENDER. TODAS ESSAS PESSOAS, BEM... ESTÃO SE DIVERTINDO?

— Estão!

— ENTÃO ISSO É DIVERSÃO.

— Fico feliz que tenhamos resolvido isso. Cuidado com a cadeira — advertiu lorde Rodley, que agora se sentia bastante normal e pavorosamente sóbrio.

Baixinho, a voz de trás disse:

— ISSO É DIVERSÃO. BEBER EM EXCESSO É DIVERSÃO. NÓS ESTAMOS NOS DIVERTINDO. ELE ESTÁ SE DIVERTINDO. QUE DIVERTIDO!

Atrás de Morte, o pequeno dragão doméstico do Patrício segurou firme nos quadris de osso e pensou: com guardas ou sem guardas, da próxima vez que eu passar por uma janela aberta, vou correr feito uma besta.


Keli se endireitou na cama.

— Não dê nem mais um passo! — gritou. — Guardas!

— Não pudemos detê-lo — desculpou-se o primeiro guarda, enfiando o rosto envergonhado no vão da porta.

— Ele forçou passagem... — disse o segundo guarda, do outro lado do vão da porta.

— O mago falou que não tinha problema, e a gente ouviu dizer que todo mundo tem de escutá-lo porque...

— Está bem, está bem — gritou Keli, e devolveu a balista à mesinha de cabeceira, infelizmente esquecendo-se de ativar o dispositivo de segurança.

Houve um clique, um estalo de metal, um zunido pelo ar e um gemido. O gemido veio de Cortabem. Mortimer se virou para ele.

— Você está bem? — perguntou. — Foi atingido?

— Não — respondeu o mago, em voz baixa. — Não fui, não. Como está se sentindo?

— Meio cansado. Por quê?

— Ah, por nada. Por nada. Nenhuma sensação estranha?

— Não. Por quê?

— Ah, por nada, por nada.

Cortabem se virou e deu uma olhada na parede, atrás de Mortimer.

— Será que os mortos não têm paz? — protestou Keli, com amargor. — Pensei que uma das coisas com a qual se podia contar depois da morte era uma boa noite de sono.

Parecia que ela vinha chorando. Com uma perspicácia que o surpreendeu, Mortimer se deu conta de que ela sabia de tudo e aquilo a estava deixando ainda mais zangada do que antes.

— Não é justo — retrucou ele. — Vim aqui ajudar. Não é, Cortabem?

— Hummm? — perguntou Cortabem, que havia achado a flecha da balista enterrada no reboco e agora a estudava, desconfiado. — Ah, é. Veio, sim. Mas não vai funcionar. Desculpe, alguém tem um barbante?

— Ajudar? — rebateu Keli. — Ajudar? Se não fosse por você...

— Você ainda estaria morta — cortou Mort. Ela o fitou boquiaberta.

— Mas não saberia de nada — considerou. — Essa é a pior parte.

— Acho melhor vocês dois saírem — sugeriu Cortabem para os guardas, que vinham tentando parecer invisíveis. — Mas eu fico com a lança, por favor. Obrigado.

— Olhe — disse Mort. — Tenho um cavalo lá fora. Você vai ficar admirada. Posso levá-la a qualquer lugar. Não precisa esperar aqui.

— Você não entende muito de monarquia, não é? — gracejou Keli.

— Hã? Não.

— Ela quer dizer que mais vale ser uma rainha morta no castelo do que uma plebéia viva em qualquer outro lugar — explicou Cortabem, que enfiara a lança na parede, perto da flecha, e vinha tentando puxá-la. — De qualquer maneira, não adiantaria. A abóbada não está centrada no palácio, está centrada na menina.

— Em quem? — perguntou Keli.

A voz poderia manter leite fresco durante um mês.

— Em Sua Alteza — emendou Cortabem automaticamente, comprimindo os olhos para a seta.

— Não se esqueça disso.

— Não vou esquecer, mas a questão não é essa — salientou o mago.

Ele tirou a flecha do reboco e sentiu a ponta com o dedo.

— Se você ficar aqui, vai morrer! — adiantou-se Mort.

— Então mostrarei ao Disco como morre uma rainha — disse Keli, com o máximo de altivez possível quando se está de pijama de tricô rosa.

Mort sentou na cama, com a cabeça nas mãos.

— Eu sei como morre uma rainha — murmurou. — Igual às outras pessoas. E alguns de nós preferem não ver isso acontecer.

— Com licença, só quero dar uma olhada nessa balista — interveio Cortabem, passando por eles. — Não se incomodem comigo.

— Irei com orgulho ao encontro do meu destino — alardeou Keli, mas havia um leve tremor de incerteza em sua voz.

— Não vai, não. Quer dizer, eu sei do que estou falando. Acredite em mim. Não tem nada do que se orgulhar nisso. Você só morre.

— Tudo bem, mas a questão é como. Vou morrer com nobreza, exatamente como a rainha Ezeriel.

A testa de Mortimer se franziu. A História era um livro fechado para ele.

— Quem é ela?

— Viveu em Klatch, teve uma porção de amantes e uma vez sentou numa cobra — informou Cortabem, que agora esticava a balista.

— Ela quis! Estava apaixonada!

— Só lembro que costumava tomar banho com leite de asno. Engraçada, a História — observou Cortabem, meditativamente. — A mulher vira rainha, reina durante trinta anos, cria leis, declara guerra aos povos e a única coisa pela qual é lembrada é que cheirava a iogurte e tinha sido picada na...

— Ela é uma antepassada distante minha — cortou Keli. — Não vou ouvir esse tipo de coisa.

— Vocês querem ficar quietos e me escutar! — gritou Mort. O silêncio caiu como uma mortalha.

Então Cortabem mirou com cuidado e atirou nas costas de Mortimer.


A noite deixava para trás os primeiros desastres e seguia adiante. Mesmo as festas mais loucas haviam terminado, com os convidados se arrastando para a própria cama, ou para a cama alheia. Em meio a esses viajantes — meros seres do dia desviados de sua rotina cotidiana —, os verdadeiros sobreviventes da noite se entregavam ao importante comércio das trevas.

Não era muito diferente das transações diurnas de Ankh-Morpork, à exceção de que as facas ficavam mais óbvias e as pessoas não riam tanto.

O bairro conhecido como As Sombras estava mergulhado em silêncio, salvo pelos sinais assobiados de ladrões e pela quietude abafada de dezenas de pessoas levando seus negócios privados à surdina.

E no Beco do Presunto o famoso jogo bosta flutuante de Coxo Wa seguia seu curso. Dezenas de vultos encapuzados se encontravam ajoelhados ou agachados ao redor do pequeno círculo de terra batida onde os três dados de oito lados de Wa rolavam e ministravam sua enganosa aula de probabilidade estatística.

— Três!

— Por Io, Olhos de Tuphal!

— Montanha, ele pegou você! Esse cara sabe jogar!

— É DOM.

Montanha M'guk — o homem baixo de rosto achatado, natural de uma das tribos de Centrolândia, cujo talento com os dados era notório onde quer que dois homens se juntassem para trapacear um terceiro — pegou os dados e estudou-os. Em silêncio, xingou Wa — cujo próprio dom em mudar os dados era do mesmo modo famoso entre os entendidos, embora aparentemente não houvesse funcionado naquele momento —, desejou uma morte prematura e dolorosa ao jogador sentado à frente e lançou as peças no chão.

— Vinte e um!

Wa pegou os dados e entregou-os ao desconhecido. Ao se virar para Montanha, um dos olhos se mexeu de leve. Montanha ficou impressionado: mal notara o movimento dos dedos enganosamente torcidos de Wa, apesar de estar observando com atenção.

Era desconcertante o modo como os cubos chacoalharam na mão do desconhecido e então se atiraram num arco demorado que terminou com os 24 pontinhos virados para as estrelas.

Alguns dos homens mais vividos do grupo se afastaram do desconhecido, porque sorte assim podia ser um azar no jogo bosta flutuante de Coxo Wa.

A mão de Wa se fechou sobre os dados com um barulho semelhante ao estalo de um gatilho.

— Todos os oitos — suspirou. — Meu senhor, é um mistério tanta sorte.

O resto do grupo evaporou feito sereno, deixando apenas aqueles indivíduos de constituição robusta e fisionomia truculenta, que, se Wa pagasse imposto, teria declarado como Aparelhos Essenciais e Equipamento de Trabalho.

— Talvez não seja sorte — acrescentou ele. — Talvez seja magia.

— ESTOU FICANDO OFENDIDO.

— Uma vez, tivemos um mago que queria ficar rico — disse Wa — Não consigo lembrar o que aconteceu com ele. Rapazes?

— Tivemos uma conversa com o cara...

— ... e o deixamos na Viela dos Porcos...

— ... e na Estrada do Mel...

— ... e em alguns outros lugares de que não me lembro.

O desconhecido se levantou. Os rapazes se aproximaram.

— NÃO TEM NECESSIDADE DISSO. EU SÓ QUERIA APRENDER. QUE PRAZER O SER HUMANO PODE ENCONTRAR NUMA SIMPLES CONFIRMAÇÃO DAS LEIS DO ACASO?

— Aqui o acaso não tem vez. Vamos dar uma geral nele, rapazes. Os acontecimentos que se seguiram não seriam lembrados por viva'lma, afora a que pertencia a um gato selvagem — um dos milhares da cidade — que vinha cruzando o beco a caminho de um encontro. Ele parou e observou com atenção.

Os homens se congelaram em pleno ato de apunhalar. Aflitivas luzes roxas tremeluziram à volta. O desconhecido tirou o capuz e pegou os dados, então botou-os na mão inerte de Wa. O homem abria e fechava a boca, forçando os olhos para não ver o que se encontrava à sua frente. Sorrindo.

— JOGUE.

Wa conseguiu olhar a própria mão.

— Qual é a aposta?

— SE VOCÊ GANHAR, VAI PARAR COM ESSA TENTATIVA RIDÍCULA DE SUGERIR QUE O ACASO REGE A VIDA DOS HOMENS.

— Está bem. Está bem. E... se eu perder?

— VAI DESEJAR TER GANHADO.

Wa tentou engolir, mas a garganta estava seca.

— Eu sei que mandei matar muitas pessoas...

— VINTE E TRÊS, PARA SER EXATO.

— É tarde demais para me arrepender?

— ESSAS COISAS NÃO ME DIZEM RESPEITO. AGORA JOGUE OS DADOS.

Wa fechou os olhos e atirou as peças no chão, nervoso demais para tentar o especial lançamento de “agito e giro”. Manteve os olhos fechados.

— TODOS OS OITOS. PRONTO. NÃO FOI TÃO DIFÍCIL, FOI?

Wa desmaiou.

Morte deu de ombros e se afastou, parando apenas para acariciar as orelhas do gato que se encontrava de passagem pelo beco. Então cantarolou para si mesmo. Não sabia ao certo o que lhe vinha acontecendo, mas estava gostando.


— Você não podia ter certeza de que iria funcionar!

Cortabem esticou as mãos num gesto conciliatório.

— Bem, não — admitiu. — Mas aí pensei, o que tenho a perder?

Ele recuou.

— O que você tem a perder? — gritou Mort.

Ele deu um passo adiante e arrancou a flecha de um dos balaústres da cama da princesa.

— Você não vai querer me dizer que isso atravessou o meu corpo — objetou Mort.

— Eu estava prestando atenção — insistiu Cortabem.

— Eu também vi — garantiu Keli. — Foi horrível. Saiu bem de onde fica o coração.

— E eu vi você atravessar uma coluna de pedra — lembrou.

— E eu vi você atravessar uma janela fechada.

— Tudo bem, mas aquilo foi em serviço — argumentou Mort, agitando as mãos no ar. — Não acontece todo dia, é diferente. E...

Ele se deteve.

— O modo como estão me olhando... — disse. — Essa noite me olharam do mesmo jeito no bar. O que há de errado?

— Foi à maneira como você agitou o braço através do balaústre da cama — explicou Keli, em voz baixa.

Mortimer olhou a própria mão e então bateu na madeira.

— Está vendo? — perguntou. — Braço concreto, madeira concreta.

— Então ficaram olhando para você no bar? — indagou Cortabem. — O que você fez? Atravessou uma parede?

— Não! Quer dizer, não, só tomei um drinque, acho que se chamava entuminho...

— Esfuminho?

— É. Tem gosto de maçã podre. Pelo jeito que ficaram me encarando, cheguei a pensar que fosse algum tipo de veneno.

— Bebeu quanto? — quis saber Cortabem.

— Talvez uma caneca, eu não estava prestando muita atenção...

— Sabia que esfuminho é a bebida alcoólica mais forte numa área que vai daqui até as Ramtops? — perguntou o mago.

— Não. Ninguém me falou nada — respondeu Mort. — O que isso tem a ver com...

— Não — disse Cortabem, devagar. — Você não sabia. Hum. É uma pista, não é?

— Tem alguma coisa a ver com a salvação da princesa?

— Provavelmente não. Mas eu gostaria de dar uma olhada nos meus livros.

— Nesse caso, não é importante — afirmou Mort.

Ele se virou para Keli, que o fitava com os primórdios da admiração.

— Acho que posso ajudar — disse ele. — Acho que posso arranjar uma fonte poderosa de magia. Cortabem, magia detém o muro, não detém?

— A minha não. Teria de ser muito potente e, mesmo assim, não tenho certeza. A realidade é mais forte do que...

— Então daqui me retiro — alardeou Mort. — Até amanhã, adeus!

— Já é amanhã — retrucou Keli. Mort murchou um pouco.

— Tudo bem, então até hoje à noite — disse, ligeiramente embaraçado, e acrescentou: — Despeço-me.

— O quê?

— É jeito de herói falar — informou Cortabem. — Ele não pode evitar.

Mortimer lançou um olhar mal-humorado para o mago, sorriu com bravura para Keli e se retirou do quarto.

— Ele podia ter aberto a porta — observou Keli, depois que Mortimer se foi.

— Acho que estava um pouco constrangido — advertiu Cortabem. — Todos passamos por essa fase.

— Que fase, de andar atravessando as coisas?

— De certo modo. Pelo menos, de andar esbarrando nelas.

— Vou dormir um pouco — decidiu Keli. — Até os mortos precisam descansar. Cortabem, pare de mexer nessa balista, por favor. Tenho certeza de que não condiz com nenhum mago ficar sozinho nos aposentos de uma dama.

— Há? Mas eu não estou sozinho. A senhorita está aí.

— Essa — disse ela — é a questão, não é?

— Ah. Sim. Desculpe. Hum. Até amanhã.

— Boa noite, Cortabem. Feche a porta quando sair.

O Sol despontou no horizonte, resolveu que valia o sacrifício e começou a subir.

Mas levaria algum tempo para sua vagarosa luz rolar pelo Disco adormecido — arrebanhando os restos de noite à frente —, e sombras noturnas ainda dominavam a cidade.

Agora, amontoavam-se os últimos clientes em torno da Tambor Consertado (na Rua Filigrana), a principal taberna da cidade. O lugar não era famoso pela cerveja — que parecia urina de donzela e tinha gosto de ácido de bateria —, mas pela clientela. Dizia-se que se a pessoa ficasse muito tempo na Tambor, mais cedo ou mais tarde todos os grandes heróis do Disco lhe roubariam o cavalo.

O ambiente ainda estava barulhento e carregado de fumaça, embora o dono viesse fazendo tudo que os donos fazem quando acham que é hora de fechar, como apagar algumas luzes, dar corda no relógio, botar um pano sobre as bombas de chope e, só para garantir, conferir o paradeiro do bastão com pregos enfiados na ponta. Não que os fregueses viessem prestando qualquer atenção, evidentemente. Para a maioria da clientela da Tambor, até o bastão com pregos teria sido considerado uma mera insinuação.

Entretanto, eram observadores o suficiente para estar vagamente incomodados com o vulto alto parado no balcão a se embebedar.

O ébrio dedicado e solitário sempre cria um campo mental que lhe assegura total privacidade, mas aquele ali irradiava um tipo de brilho funesto que vinha lentamente esvaziando o bar.

Nada disso incomodou ao barman, porque o vulto solitário se encontrava entretido numa experimentação dispendiosa.

Qualquer bar de todo o multiverso possui prateleiras de garrafas com formato estranho que não apenas contêm bebidas de nome exótico — em geral verdes ou azuis —, mas também insignificâncias que garrafas de bebidas normais jamais se permitiriam conter, tais como frutas inteiras, pedaços de galho e, em casos extremos, pequenos lagartos afogados. Ninguém sabe por que os donos acumulam tantas delas, uma vez que todas têm gosto de melaço dissolvido em aguarrás. Já se especulou que talvez sonhem com o dia em que alguém entre e peça uma taça de Estrada de Pêssego com Sabor de Hortelã e, da noite para o dia, o lugar fique In.

O desconhecido vinha provando os líquidos da primeira fileira.

— O QUE É AQUELE VERDE ALI?

O dono do bar leu o rótulo.

— Aqui diz que é Aguardente de Melão — respondeu, incerto. — Diz que é engarrafada por uns monges seguindo uma receita antiga... — acrescentou.

— VOU EXPERIMENTAR.

O homem olhou de esguelha para os copos vazios sobre o balcão, alguns dos quais exibindo pedaços de fruta, cerejas em palitos e pequenos guarda-sóis de papel.

— Tem certeza de que já não bebeu o bastante? — perguntou. Incomodava-o um pouco o fato de não conseguir entrever o rosto do desconhecido.

O copo, com o drinque a se cristalizar nas beiradas, desapareceu sob o capuz e voltou novamente vazio.

— TENHO. O QUE É AQUELA AMARELA COM VESPAS DENTRO?

— Licor da Primavera, diz aqui. Vai?

— VAI. E A AZUL COM MANCHAS DOURADAS.

— Hã. Velho Sobretudo?

— É. E ENTÃO A SEGUNDA FILEIRA.

— Qual das bebidas?

— TODAS.

O desconhecido continuava de pé, embora os copos com líquidos e vegetais variados sumissem debaixo do capuz em ritmo de produção em série.

É isso, pensou o dono, isso é estilo, é aí que compro um paletó vermelho e ponho amendoins e picles sobre o balcão, espalho uns espelhos pela casa, troco a serragem. Ele pegou um pano empapado de cerveja e deu umas esfregadelas entusiasmadas na madeira, espalhando as marcas dos copos numa única mancha colorida que deu conta do verniz. O último freguês botou o chapéu na cabeça e se retirou, murmurando para si mesmo.

— NÃO VEJO SENTIDO — disse o desconhecido.

— Como?

— O QUE DEVERIA ACONTECER?

— Quantas bebidas você tomou?

— QUARENTA E SETE.

— Então qualquer coisa — respondeu o barman e, por conhecer o trabalho e saber o que se esperava dele quando se bebe sozinho em plena madrugada, começou a lustrar um copo com o pano de prato e perguntou: — A patroa botou você para fora?

— PERDÃO?

— Afogando as mágoas?

— NÃO TENHO MÁGOAS.

— Não, claro que não. Esqueça o que falei. — Ele esfregou o copo um pouco mais. — Só achei que talvez ajudasse ter com quem conversar.

Por um instante, o desconhecido permaneceu em silêncio, matutando. Então perguntou:

— QUER CONVERSAR COMIGO?

— Quero, sim. Claro. Sou um ótimo ouvinte.

— NUNCA NINGUÉM QUIS CONVERSAR COMIGO.

— Que pena!

— NUNCA ME CONVIDAM PARA AS FESTAS.

— Tch.

— TODOS ME DETESTAM. NÃO TENHO NENHUM AMIGO.

— Todo mundo precisa de amigo — disse o barman, com ares de sabedor.

— EU ACHO...

— Sim?

— ACHO... QUE POSSO FICAR AMIGO DA GARRAFA VERDE.

O dono do bar empurrou a garrafa octogonal pelo balcão. Morte pegou-a e inclinou-a sobre o copo. A bebida retiniu na borda.

— VOCÊ BÊBADO QUE EU ESTOU ACHA, NÃO É?

— Sirvo a qualquer pessoa que consiga ficar de pé.

— VOCÊ ESSSHTÁ TOTAAALMENTE CEERRRTO. MAS EU. ..

O desconhecido se deteve, com um dedo declamatório em riste.

— O QUE EU DIZIA?

— Que eu achava que você estava bêbado.

— AH, SIM. MAS POSSO FICAR SÓBRIO A HORA QUE EU QUISER, ISSO É SSSSSÓ UMA EXPERIÊNCIA. E AGORA EU GOOOSSSHTARIA DE EXPERIMENTAR A AGUARDENTE LARANJA OUTRA VEZ.

O dono da taberna suspirou e deu uma olhada no relógio. Não havia dúvida de que estava ganhando muito dinheiro, principalmente porque o desconhecido não parecia disposto a se preocupar com preço de mais e troco de menos. Mas estava ficando tarde. Na verdade, estava ficando tão tarde que já era cedo. Também havia qualquer coisa no cliente solitário que o deixava incomodado. Na Tambor Consertado, as pessoas em geral bebiam como se não houvesse amanhã, mas aquela era a primeira vez que ele tinha a sensação de que podiam estar certas.

— QUER DIZER, O QUE POSSO ESPERAR DO FUTURO? ONDE ESTÁ O SENTIDO DISSO TUDO? QUAL É?

— Não sei, amigo. Acho que você vai se sentir melhor depois de dormir um pouco.

— DORMIR? DORMIR? EU NUNCA DURMO. SOU FAMOSO POR ISSO.

— Todo mundo precisa dormir. Até eu — sugeriu ele.

— TODOS ME ODEIAM, SABIA?

— É, você falou. Mas são quinze para as três.

O desconhecido se virou cambaleante e correu os olhos pela taberna vazia.

— SÓ SOBRAMOS VOCÊ E EU — disse.

O barman contornou o balcão para ajudar o desconhecido a descer do tamborete.

— NÃO TENHO NENHUM AMIGO. ATÉ OS GATOS ME ACHAM ESTRANHO.

Ele estendeu o braço e pegou uma garrafa de Aguardente Amanita antes que o homem conseguisse empurrá-lo até a porta, perguntando-se como alguém tão magro podia pesar tanto.

— NÃO PRECISO FICAR BÊBADO. POR QUE AS PESSOAS GOSTAM DE FICAR BÊBADAS? É DIVERTIDO?

— Ajuda a esquecer a vida, meu velho. Agora se segure aí enquanto eu abro a porta...

— ESQUECER A VIDA. AH! AH!

— Volte sempre que quiser, ouviu?

— GOSTARIA MESMO DE ME VER DE NOVO?

O dono do bar olhou o montinho de moedas sobre o balcão. Aquilo valia um pouco de maluquice. Pelo menos, esse ali era tranqüilo e parecia inofensivo.

— Ah, claro — respondeu, empurrando o desconhecido para a rua e recuperando a garrafa num único movimento suave. — Apareça uma hora dessas.

— FOI A COISA MAAAIS GENTIL...

A porta se fechou para o resto da frase.


Ysabell sentou na cama.

As batidas se repetiram, macias e urgentes. Ela puxou os cobertores até o queixo.

— Quem é? — perguntou, num sussurro.

— Sou eu, Mort — veio o murmúrio do outro lado da porta. — Deixe-me entrar, por favor!

— Espere!

Ysabell vasculhou a mesinha de cabeceira atrás de fósforos, derrubando um vidro de água-de-colônia e empurrando uma caixa de chocolates que agora mais tinha papéis amassados do que bombons propriamente ditos. Quando conseguiu acender a vela, ajustou sua posição para obter o máximo de efeito, puxou a camisola a fim de mostrar algo mais revelador e disse:

— Não está trancada.

Mortimer entrou no quarto, cheirando a cavalo, sereno e esfuminho.

— Espero — disse Ysabell, maliciosamente — que você não tenha forçado passagem até aqui para tirar vantagem de sua situação na família.

Mortimer olhou ao redor. Ysabell era aficionada por babados. Até a penteadeira parecia estar usando anágua. O quarto inteiro parecia antes adornado com lingerie do que mobiliado.

— Olhe, não tenho tempo para brincadeiras — avisou ele. — Traga a vela para a biblioteca. E, pelo amor de Deus, vista alguma coisa decente. Você está transbordando.

Ysabell olhou para baixo, e então sua cabeça se ergueu.

— E daí?

Mortimer voltou a enfiar o rosto no vão da porta.

— É uma questão de vida ou morte — acrescentou, e desapareceu. Ysabell viu a porta se fechar, revelando o robe com borlas que Morte havia lhe dado de presente no último Réveillon dos Porcos e que ela não tivera coragem de jogar fora, apesar de ser um número menor do que o seu e ter um coelho no bolso.

Por fim, desceu da cama, vestiu o robe infame e saiu para o corredor. Mortimer a aguardava.

— Papai não vai nos ouvir? — alarmou-se ela.

— Ainda não chegou. Vamos.

— Como é que você sabe?

— A casa fica diferente quando ele está aqui. É... é como a diferença entre o casaco que está sendo usado e o que se encontra pendurado no cabide. Você não percebe?

— O que estamos fazendo de tão importante?

Mortimer abriu a porta da biblioteca. Saiu uma lufada de ar quente e seco, e as dobradiças soltaram um rangido de protesto.

— Vamos salvar a vida de uma pessoa — informou ele. — Aliás, de uma princesa.

Ysabell de pronto se mostrou fascinada.

— Uma princesa de verdade? Ela só anda com sapatinhos de cristal?

— Se ela anda... ? — Mort sentiu uma ligeira preocupação desaparecer. — Ah, sim. Achei mesmo que Albert tivesse se enganado.

— Está apaixonado por ela?

Mortimer se deteve entre as estantes, ciente do diligente chiado no interior das capas dos livros.

— Não tenho certeza — respondeu. — Pareço estar?

— Parece um pouco transtornado. O que ela sente por você?

— Não sei.

— Ah — disse Ysabell, com ar de profunda entendedora. — O amor não correspondido é o pior tipo. Mas provavelmente não é boa idéia sair tomando veneno ou se matando — acrescentou, pensativa. — O que estamos fazendo aqui? Quer achar o livro dela para saber se casa com você?

— Já li, e ela está morta — disse Mort. — Mas só tecnicamente. Quer dizer, não de fato.

— Que bom, do contrário seria necromancia! O que estamos procurando?

— A biografia do Albert.

— Para quê? Acho que ele não tem.

— Todo mundo tem.

— Bem, ele não gosta que ninguém lhe faça perguntas pessoais. Uma vez, procurei o livro mas não achei. E o Albert não valia o sacrifício de insistir. Por que ele é tão importante?

Ysabell acendeu duas velas com a que estava na mão e encheu a biblioteca de sombras dançantes.

— Preciso de um mago poderoso e acho que ele é.

— Quem, o Albert?

— É. Só que devemos procurar por Alberto Malich. Acho que ele tem mais de 2 mil anos.

— Quem, o Albert?

— É, o Albert.

— Ele não usa chapéu de mago — protestou Ysabell, desconfiada.

— Deve ter perdido. De qualquer maneira, chapéu não é obrigatório. Onde começamos a procurar?

— Bem, se você está certo disso... no Depósito. É onde papai guarda as biografias que têm mais de quinhentos anos. Por aqui.

Ela o conduziu por entre as estantes murmurantes até a porta cravada num beco sem saída. A madeira se abriu com certa dificuldade, e o rangido das dobradiças ressoou na biblioteca inteira. Por um instante, Mortimer imaginou que todos os livros tivessem parado seu trabalho apenas para escutar.

Uma escada levava à escuridão aveludada. Havia teias de aranha, poeira e ar cheirando a mil anos de clausura.

— Ninguém nunca vem aqui — comentou Ysabell. — Eu vou na frente.

Mortimer achou que era hora de falar alguma coisa.

— Você é uma mão na roda — arriscou.

— Quer dizer pálida, suada e calosa? Você realmente sabe elogiar uma mulher, garoto.

— Mort — disse ele, automaticamente.

O Depósito era escuro e quieto como uma caverna subterrânea. As estantes mal davam espaço para que se caminhasse entre elas e se elevavam para muito além do alcance da luz de vela. Eram particularmente misteriosas porque se encontravam em silêncio. Não havia mais vidas a escrever, os livros dormiam. Mas Mortimer achou que dormiam como gatos, com um olho aberto. Atentos.

— Já vim aqui embaixo uma vez — sussurrou Ysabell. — Se você andar toda a vida, acabam os livros, e aí só tem argila, pedras e peles de animal. E todo mundo se chama Ug e Zog.


O silêncio era quase palpável. Ao avançar pelos corredores abafados, Mortimer sentia os livros a observá-los. Todos os seres que já tinham vivido se encontravam enfileirados ali, até as primeiras pessoas que os deuses haviam criado com barro ou o que fosse. Os livros não chegavam a desgostar dele, apenas se perguntavam o que estava fazendo ali.

— Você foi além de Ug e Zog? — perguntou, baixinho. — Tem muita gente que adoraria saber o que tem lá.

— Fiquei com medo. É muito longe, e eu não tinha velas suficientes.

— Uma pena...

Ysabell parou tão de súbito que Mortimer deu um encontrão nela.

— Seria por aqui — calculou. — E agora?

Mortimer leu os nomes desbotados nas lombadas.

— Não seguem nenhuma ordem! — reclamou.

Eles olharam para cima. Andaram por dois corredores laterais. Tiraram livros ao acaso das prateleiras mais baixas, levantando nuvens de poeira.

— É ridículo — irritou-se Mort, afinal. — Tem milhões de vidas aqui. As chances de encontrar a do Albert são ínfimas e...

Ysabell pôs a mão na boca dele.

— Escute!

Mortimer murmurou um pouco por entre os dedos dela e então captou a mensagem. Aguçou os ouvidos, tentando escutar alguma coisa sobre o chiado profundo do silêncio absoluto.

E conseguiu. Um leve rangido nervoso. Bem acima, em algum canto do impenetrável breu no alto da estante, uma vida ainda se escrevia.

Perplexos, os dois se entreolharam. Então Ysabell falou:

— A gente passou por uma escada. De rodinhas.

À medida que Mortimer empurrava a estrutura, as rodas gemiam. O alto também se movia, como se fosse preso a outro conjunto de rodas em algum ponto da escuridão.

— Certo — disse ele. — Passe a vela e...

— Se a vela vai subir, eu também vou — protestou Ysabell. — Você fica aqui e empurra a escada quando eu mandar. E não discuta.

— Pode ser perigoso lá em cima — avisou Mort, com um quê de bravura.

— Pode ser perigoso aqui embaixo — argumentou Ysabell. — Então subo eu, com a vela, obrigada.

Botou o pé no primeiro degrau e logo não passava de uma sombra cheia de babados, delineada pelo halo da luz de vela que não tardou em encolher.

Mortimer firmou a escada e tentou não pensar em todas as vidas que se encontravam ao redor. De vez em quando, um meteoro de cera quente caía no chão, abrindo uma cratera na poeira. Ysabell agora era apenas um leve brilho a distância, mas ele sentia cada um dos passos a vibrar na escada.

Ela se deteve. Pareceu transcorrer um longo tempo.

Então a voz irrompeu, amortecida pelo peso do silêncio à volta.

— Mort. Achei.

— Ótimo. Traga para cá.

— Mort, você estava certo.

— Tudo bem, obrigado. Agora traga para cá.

— Eu sei, Mort, mas qual?

— Não enrola. A vela não vai durar muito mais do que isso.

— Mort!

— O quê?

— Mort, tem uma prateleira inteira!

Agora era realmente a alvorada, essa hora do dia que não pertence a ninguém salvo às gaivotas das docas de Morpork, à correnteza do rio e ao vento quente do sentido horário, que acrescenta um aroma primaveril ao complexo cheiro da cidade.

Morte estava sentado num poste de amarração, contemplando o mar. Decidira parar de ficar bêbado. Aquilo estava começando a lhe dar dor de cabeça.

Havia tentado pescar, dançar, jogar e beber — quatro dos supostos prazeres da vida — e não sabia se conseguira entender o sentido. De comida ele gostava... Como qualquer ser desse mundo, Morte apreciava uma boa refeição. Mas não concebia nenhum outro prazer da carne, ou melhor, concebia, mas eram todos... carnais, e ele não imaginava como seria possível desfrutá-los sem passar por uma grande reestruturação corporal, que estava fora de questão. Além do mais, parece que o ser humano ia deixando de procurá-los à medida que envelhecia, então presumivelmente não deveriam ser tão bons assim.

Morte começou a achar que, enquanto vivesse, jamais entenderia o homem.

Os paralelepípedos ardiam ao sol, e Morte sentiu o comi-chão daquele impulso primaveril capaz de fazer jorrar mil toneladas de seiva através de cem metros de madeira bosque adentro.

As gaivotas planavam ao redor. Um gato de um só olho, já pela sétima vida e contando com uma única orelha, saiu da toca em meio a uma pilha de caixas de peixe abandonadas, espreguiçou-se, miou e se esfregou nas pernas dele. O vento, cortando o famoso cheiro de Ankh, trazia o aroma de ervas e pão fresco.

Morte ficou abismado. Não conseguiu resistir. Estava realmente contente por se encontrar vivo e relutante era ser Morte.

DEVO ESTAR DOENTE, pensou.


Mortimer se ajeitou na escada, ao lado de Ysabell. Era bamba, mas parecia segura. Pelo menos a altura não o incomodava: lá embaixo só havia escuridão.

Alguns dos livros mais antigos de Albert estavam se esfacelando. Ele escolheu um ao acaso, sentindo a escada tremer ao fazê-lo, e abriu numa página do meio.

— Ponha a vela assim — pediu.

— Sabe ler isso?

— Mais ou menos: “... hera dedhicado, mas esttava terrivelmmente atormentado pelo facto de thodos os hommens morreremm e jurou acchar a imortalidade. 'Assim', dissce haos jovens maegos, 'podhemos trazzer para denttro de nóis õ conszolo dos dheuses'. No dhia seguinte, chowia e Alberto...” Está escrito numa língua antiga — disse ele. — Antes que inventassem a ortografia. Vejamos o último.

Era o Albert mesmo. Havia diversas referências a pão torrado com manteiga.

— Vamos ver o que ele está fazendo agora — sugeriu Ysabell.

— Acha que devemos? É espionagem.

— E daí? Está com medo?

— Tudo bem.

Ele folheou até chegar às páginas em branco e então voltou para a história da vida de Albert, a avançar pela página numa velocidade surpreendente para aquela hora da noite. A maioria das biografias não se entretinha muito nas horas de sono, a menos que o sonho fosse especialmente claro.

— Segure a vela direito. Não quero que caia sebo na vida dele.

— Por que não? Ele adora gordura.

— Pare de rir, vai acabar nos metendo em apuros. Agora veja essa parte... “Ele avançou pelo breu empoeirado do Depósito” — leu Ysabell — “com os olhos fixos no pequeno brilho da luz de vela acima. Abelhudos, pensou, por que essas pestes têm de se meter no que não lhes diz respeito...?” Mort! Ele está...

— Fique quieta. Também estou lendo! “... dar um basta nisso. Em silêncio, Albert se dirigiu ao pé da escada, cuspiu nas mãos e se preparou para empurrar. O patrão jamais saberia. Ele já vinha se comportando de maneira estranha mesmo e era tudo culpa do garoto...”

Mortimer fitou os olhos apavorados de Ysabell.

Então a menina tirou o livro de suas mãos, ergueu-o à frente sem desgrudar os olhos dele e soltou-o.

Mortimer observou os lábios dela se mexerem e então se deu conta de que também estava contando em voz baixa.

Três, quatro...

Houve um baque surdo, um gemido abafado e silêncio.

— Acha que o matamos? — perguntou Mort, depois de um tempo.

— O quê? Aqui? De qualquer maneira, você não teve nenhuma idéia melhor.

— Não, mas... ele é um senhor de idade.

— Não é, não — rebateu Ysabell, começando a descer a escada.

— Dois mil anos?

— Nem um dia além de 67.

— Os livros diziam...

— Eu já falei para você: o tempo não se aplica aqui. Não o tempo real. Não presta atenção, garoto?

— Mort — disse Mort.

— E pare de pisar nos meus dedos. Estou indo o mais rápido que posso.

— Desculpe.

— E deixe de ser frouxo. Tem idéia do tédio que é viver aqui?

— Provavelmente não — respondeu Mort, acrescentando com genuíno desejo: — Já ouvi falar do tédio, mas nunca tive chance de experimentar.

— É horrível.

— Se é essa a questão, o entusiasmo também não é tudo o que dizem.

— Qualquer coisa é melhor do que isso aqui. Ouviu-se um gemido, e então uma rajada de esconjuros. Ysabell fitou a escuridão.

— Evidentemente não comprometeu os músculos responsáveis pelo praguejamento — disse ela. — Acho que não preciso ouvir isso. Pode fazer mal à minha índole.

Eles acharam Albert caído ao pé da estante, murmurando e passando a mão no braço.

— Não tem necessidade desse escândalo — reprovou Ysabell. — Você não está machucado. Papai não deixaria esse tipo de coisa acontecer.

— Por que tinham de fazer isso? — resmungou ele. — Eu não queria o mal de ninguém.

— O senhor ia nos empurrar! — rebateu Mort, tentando ajudá-lo a se levantar. — Eu li. Estou surpreso que não tenha usado magia.

Albert o encarou.

— Ah, então vocês descobriram, não é? — perguntou, baixinho. — Pois façam bom proveito. Não têm o direito de espionar.

Ele se pôs de pé, apertou a mão de Mortimer e se afastou cambaleante por entre as prateleiras silenciosas.

— Não, espere — gritou Mort. — Preciso da sua ajuda.

— Ah, é claro — disse Albert, por cima do ombro. — Faz sentido, não faz? O sujeito pensa “vou dar uma espiada na vida pessoal do cara e depois pedir um favor a ele”.

— Eu só queria saber se o senhor era realmente o senhor — argumentou Mort, correndo atrás dele.

— Sou. Todo mundo é.

— Mas se não me ajudar, vai acontecer uma coisa horrível! Tem uma princesa...

— Coisas horríveis acontecem o tempo todo, garoto...

— ... Mort...

— ... e ninguém espera que eu faça nada a respeito.

— Mas o senhor foi o maior!

Por um instante, Albert parou, mas sem se virar.

— Foi o maior? Foi o maior? E não tente me adular. Sou inadulável.

— Fizeram estátuas suas e tudo o mais — observou Mort, tentando não bocejar.

— Porque são idiotas.

Albert alcançou o pé da escada que levava à biblioteca propriamente dita e subiu os degraus, contornado pela luz de vela da biblioteca.

— Então não vai me ajudar? — perguntou Mort. — Nem mesmo se puder?

— Alguém dê um prêmio ao garoto — resmungou Albert. — E não adianta achar que vai me comover com essa cara dura — acrescentou — porque sou mais duro do que isso.

Os dois ouviram-no atravessar a biblioteca como se nutrisse um rancor especial por ela e bater a porta.

— Bem — disse Mort, incerto.

— O que você esperava? — indagou Ysabell. — Ele não liga para ninguém além de papai.

— Só achei que alguém assim ajudaria se eu explicasse o caso todo — lamentou Mort.

Ele fraquejou. A energia que o vinha impulsionando pela longa noite havia se evaporado, enchendo-lhe a cabeça de chumbo.

— Sabia que ele foi um mago famoso?

— Isso não quer dizer nada, os magos não são necessariamente bons. Não se meta nos negócios deles, porque a recusa sempre magoa, já li em algum lugar.

Ysabell se aproximou de Mortimer e fitou-o, tomada de preocupação.

— Você está parecendo algo que se deixou no prato — analisou.

— 'Tô bem — garantiu Mort, arrastando-se pelos degraus em direção às sombras rumorejantes da biblioteca.

— Não está, não. Uma boa noite de sono vai lhe cair como uma luva, menino.

— T'bã — murmurou Mort.

Ele sentiu Ysabell lhe pegar o braço e botá-lo sobre os ombros. As paredes se moviam com suavidade, até o som de sua própria voz vinha de um lugar distante, e ele experimentava vagamente o desejo de se estirar numa boa laje de pedra e dormir para sempre.

Morte logo estaria de volta, disse a si mesmo, sentindo o corpo se deixar conduzir pelos corredores. Não tinha jeito, precisaria contar a ele. O mestre não era tão cabeça-dura assim. Acabaria lhe ajudando. Tudo o que ele precisava fazer era explicar os fatos. E então poderia parar de se preocupar e dorm...

— E qual foi seu cargo anterior?

— Perdão?

— Como ganhava a vida? — perguntou o rapaz magro atrás da mesa.

O vulto à frente se mostrou pouco à vontade.

— EU CONDUZIA AS ALMAS PARA O OUTRO MUNDO. ERA O SEPULCRO DE TODA ESPERANÇA. A REALIDADE ÚLTIMA. O ASSASSINO QUE NENHUM CADEADO PODIA DETER.

— Sei. Mas tem alguma aptidão especial?

Morte pensou no assunto.

— ACHO QUE CERTA HABILIDADE COM FERRAMENTAS AGRÍCOLAS — arriscou, depois de um tempo.

O jovem sacudiu a cabeça.

— NÃO?

— Isso aqui é uma cidade, senhor... — Ele baixou os olhos e mais uma vez sentiu um incômodo indefinido. — Senhor... senhor... senhor, e não temos muitas plantações.

Botou a caneta sobre a mesa e abriu um tipo de sorriso que parecia ter aprendido em livro.

Ankh-Morpork não era avançada a ponto de ter uma agência de empregos. As pessoas arranjavam serviço porque os pais abriam espaço para elas, porque o talento natural exigia uma vaga ou pelo boca-a-boca. Mas havia demanda de servos e lacaios e, com as seções comerciais da cidade começando a se desenvolver, o rapaz magro — ou senhor Liona Keeble — inventara a profissão de agenciador de empregos e, naquele exato momento, estava achando impossível exercê-la.

— Meu caro — Ele baixou os olhos. — ... senhor, tem muita gente vindo do campo para a cidade porque acha que a vida aqui é mais generosa. Desculpe por dizer isso, mas o senhor me parece um cavalheiro em dificuldades. Imagino que prefira um emprego mais refinado do que... — Ele baixou os olhos outra vez e franziu a testa — ... “alguma coisa interessante que lide com flores ou gatos”.

— ACHEI QUE ERA HORA DE MUDAR.

— Toca algum instrumento musical?

— NÃO.

— É bom em carpintaria?

— NÃO SEI, NUNCA TENTEI.

Morte olhou os próprios pés. Estava começando a ficar profundamente constrangido.

Keeble mexeu os papéis sobre a mesa e suspirou.

— SEI ATRAVESSAR PAREDES — aventurou-se Morte, ciente de que a conversa chegara a um impasse.

Keeble levantou a cabeça.

— Gostaria de ver isso — animou-se. — Pode ser uma qualificação.

— CERTO.

Morte afastou a cadeira e avançou confiante para a parede mais próxima. — Ai! Apreensivo, Keeble observava.

— Pode ir — disse.

— HÃ. ESSA PAREDE É NORMAL, NÃO É?

— Acho que é. Não sou nenhum especialista.

— ESTÁ ME OFERECENDO ALGUMA RESISTÊNCIA.

— Parece que sim.

— COMO SE CHAMA A SENSAÇÃO DE A GENTE FICAR MUITO PEQUENO E COM CALOR?

Keeble girou o lápis na mão.

— Pigmeu?

— COMEÇA COM C.

— Constrangido?

— ISSO — disse Morte. — QUER DIZER, ISSO.

— Parece que o senhor não tem nenhum dom ou talento — analisou o jovem. — Já pensou em lecionar?

O rosto de Morte era uma máscara de horror. Bem, sempre havia sido uma máscara de horror, mas dessa vez ele quis que fosse.

— Sabe? — começou Keeble, largando a caneta e juntando as mãos sobre a mesa. — É muito raro eu ter de achar emprego para uma... como é mesmo?

— PERSONIFICAÇÃO ANTROPOMÓRFICA.

— Ah, sim. O que é isso, exatamente?

Morte se cansou.

— ISSO — respondeu.

Por um instante, apenas por um instante, o senhor Keeble viu-o com clareza. O rosto ficou quase tão pálido quanto o do próprio Morte. As mãos se agitaram em convulsão. O coração disparou. Morte observou-o com algum interesse, então tirou uma ampulheta das profundezas do manto, suspendeu-a até a luz e examinou-a.

— CALMA — disse. — VOCÊ AINDA TEM UNS BONS ANOS PELA FRENTE.

— Mmmmmmm...

— SE QUISER, POSSO LHE DIZER QUANTOS.

Esforçando-se para respirar, Keeble conseguiu sacudir a cabeça.

— ENTÃO QUER UM COPO D'ÁGUA?

— Nnn... Nnn.

A campainha da agência soou. Keeble revirou os olhos. Morte decidiu que devia algo ao homem. O sujeito não deveria perder a freguesia — que sem dúvida era algo que os seres humanos estimavam muito.

Atravessou a cortina de contas e entrou na parte externa da agência, onde uma mulher baixa e gorda, mais parecida com um pão de queijo, batia no balcão com um bacalhau.

— É sobre o emprego de cozinheira na universidade — avisou ela. — Você disse que era um cargo maravilhoso, e aquilo é um inferno, com as armações dos alunos. Eu quero, exijo que você... não estou...

A voz se perdeu.

— ... aqui — disse, mas era óbvio que o ânimo se fora. — Você não é o Keeble, é?

Morte a encarou. Jamais tivera a experiência de pegar um cliente insatisfeito pela frente. Estava perplexo. Por fim, não agüentou.

— FORA, SUA BRUXA PRETA DA MEIA-NOITE — gritou ele. Os olhinhos da cozinheira se apertaram.

— Quem você está chamando de bucha da meia-noite? — perguntou, acusadoramente, e bateu outra vez com o peixe no balcão. — Olhe isso aqui — pediu. — Ontem à noite era meu aquecedor, hoje de manhã é um bacalhau.

— QUE TODOS OS DEMÔNIOS DO INFERNO LHE DILACEREM O ESPÍRITO SE VOCÊ NÃO SAIR DA AGÊNCIA NESTE INSTANTE — Arriscou Morte.

— Não sei nada disso, mas e quanto ao meu aquecedor? Aquilo não é lugar para mulher de respeito. Eles tentaram...

— SE VOCÊ FIZER A BONDADE DE IR EMBORA — propôs Morte, em desespero —, POSSO LHE PAGAR.

— Quanto? — perguntou a cozinheira, com uma rapidez que teria deixado cobra para trás e dado susto em relâmpago.

Morte pegou o saco de dinheiro e depositou uma pilha de moedas escurecidas sobre o balcão. Ela as fitou, com extrema desconfiança.

— AGORA SAIA — exigiu Morte, e acrescentou: — ANTES QUE OS VENTOS SECOS DO INFINITO LHE QUEIMEM A CARCAÇA IMPRESTÁVEL.

— Meu marido vai ficar sabendo disso — ameaçou a cozinheira, sombriamente, ao deixar a loja.

Ocorreu a Morte que nenhuma ameaça dele jamais poderia ter sido tão medonha.

Ele voltou para dentro. Ainda afundado na cadeira, Keeble soltou uma espécie de gorgolejo sufocado.

— Então é verdade! — lamentou. — Achei que você fosse um pesadelo!

— POSSO ACABAR ME OFENDENDO — advertiu Morte.

— Você realmente traz a morte? — perguntou Keeble.

— TRAGO.

— Por que não me disse logo?

— EM GERAL, PREFEREM QUE EU NÃO DIGA.

Keeble remexeu nos papéis, rindo histericamente.

— Quer trabalhar em outra ocupação? — indagou. — Bicho papão? Mula-sem-cabeça? Boitatá?

— NÃO SEJA RIDÍCULO. EU SÓ... QUERIA MUDAR UM POUCO.

Keeble achou afinal o papel que vinha procurando. Soltou um riso alucinado e botou-o nas mãos do visitante. Morte leu.

— ISSO É EMPREGO? AS PESSOAS RECEBEM PARA FAZER ISSO?

— Recebem, recebem, vá vê-lo. Você tem o perfil ideal. Só não diga a ele que eu o mandei.


Pituco avançava em galopes vigorosos pela noite. Agora Mortimer descobria que a espada ia além de onde havia imaginado, que alcançava as próprias estrelas, então agitou-a no espaço até o coração de uma estrela anã, que, com satisfação, virou nova. Ele se endireitou na sela e meneou a lâmina, rindo ao ver o fio azul atravessar o céu, deixando um rastro de escuridão e brasas.

Que não parou. Ele tentou conter a espada a cortar o horizonte, derrubando montanhas, secando oceanos, transformando florestas verdes em podridão e cinzas. Ao correr os olhos à volta, em desespero, ouviu vozes e o breve grito de amigos e parentes. Tempestades de areia se erguiam da terra em ruína, enquanto ele tentava soltar a arma, mas a espada lhe ardia a mão, arrastando-o numa dança que só acabaria quando não restasse mais nada.

Essa hora chegou, e Mortimer ficou sozinho, à exceção de Morte, que disse:

— Bom trabalho, garoto.

E Mortimer respondeu:

— MORT.

— Mort! Mort! Acorde!

Mortimer voltou a si lentamente, como um cadáver emergindo no lago. Resistiu um pouco, agarrando-se ao travesseiro e aos horrores do sono, mas alguém estava lhe puxando a orelha.

— Mnmph? — disse.

— Mort!

— Uzzz.

— Mort, é papai!

Desorientado, ele abriu os olhos e fitou o rosto de Ysabell. Então os acontecimentos do dia anterior atingiram-no como um saco de areia molhada.

Ele desceu da cama, ainda enredado nos restos do sonho.

— Tá, tudo bem — disse. — Vou vê-lo agora mesmo.

— Ele não está aqui! Albert já está maluco!

Ysabell se encontrava ao lado da carna, apertando um lenço entre as mãos.

— Mort, acha que aconteceu alguma coisa?

Ele a encarou, confuso.

— Não seja idiota — irritou-se. — Ele é o Morte.

Coçou a pele. Estava quente e seca.

— Mas nunca ficou tanto tempo assim fora! Nem quando teve peste em Pseudópolis! Quer dizer, de manhã ele precisa estar aqui para escrever nos livros, decifrar os nós e...

Mortimer agarrou os braços dela.

— Tudo bem, tudo bem — disse, da forma mais apaziguadora possível. — Tenho certeza de que está tudo certo. Fique calma, que vou resolver... Por que está de olhos fechados?

— Mort, por favor vista suas roupas — exigiu Ysabell, num sussurro constrangido.

Mort olhou para baixo.

— Desculpe — pediu. — Não percebi... Quem me botou na cama?

— Eu — respondeu ela. — Mas fiquei olhando para o outro lado. Mortimer enfiou a calça e a camisa e correu para o gabinete de Morte, com Ysabell em seu encalço. Albert já estava lá, saltando de um pé para o outro, como um pato na chapa. Quando Mortimer chegou, a fisionomia do homem quase poderia ter sido de gratidão.

Atônito, Mortimer notou que havia lágrimas em seus olhos.

— A cadeira dele está intacta — lamentou Albert.

— Desculpe, mas isso é grave mesmo? — perguntou Mort. — Meu avô costumava passar vários dias fora de casa quando fazia uma boa venda no mercado.

— Mas ele está sempre aqui — rebateu Albert —, toda manhã, desde que o conheço, sentado aí na mesa interpretando os nós. É seu trabalho. Ele não faltaria.

— Imagino que os nós possam cuidar de si mesmos por um ou dois dias — disse Mort.

A queda na temperatura do ambiente lhe disse que estava errado. Ele fitou o rosto dos dois.

— Não podem? — perguntou. Ambos sacudiram a cabeça.

— Se os nós não forem decifrados de maneira adequada, todo o Equilíbrio vai ser destruído — informou Ysabell. — Qualquer coisa poderia acontecer.

— Ele não explicou isso para você? — surpreendeu-se Albert.

— Não. Só participei do lado prático. Ele falou que me ensinaria a parte teórica mais tarde — esclareceu Mort.

Ysabell desatou a chorar.

Albert pegou Mortimer pelo braço e, com movimentos consideráveis das sobrancelhas, sugeriu que os dois deveriam ter uma conversinha no canto do gabinete. Relutante, Mortimer o seguiu.

O velho investigou os bolsos e exibiu afinal um saco amassado de papel.

— Hortelã? — ofereceu. Mort sacudiu a cabeça.

— Ele nunca lhe falou dos nós? — perguntou Albert. Outra vez Mort sacudiu a cabeça. Albert chupou a hortelã.

O som parecia o ralo da banheira de Deus.

— Quantos anos você tem, rapaz?

— Mort. Dezesseis.

— Tem coisas que o homem precisa aprender antes de chegar aos 16 — disse Albert, olhando de esguelha para Ysabell, a chorar na cadeira de Morte.

— Ah, eu já sei disso. Meu pai me contou uma vez que a gente levou as cabras para acasalar. Quando o homem e a mulher...

— Estou falando do universo — cortou Albert. — Alguma vez já parou para pensar nele?

— Sei que o Disco é carregado no lombo de quatro elefantes que ficam sobre a carapaça da Grande A'Tuin — resumiu Mort.

— Isso é só uma parte. Estou falando de todo o universo: do tempo e do espaço, da vida e da morte, do dia, da noite e tudo o mais.

— Não posso dizer que já tenha pensado no assunto — admitiu Mort.

— Ah. Pois deveria. A questão é que os nós fazem parte disso. Eles impedem que a morte fuja ao controle. Não o Morte. Mas a morte. Porque, hã... — Albert procurou as palavras certas — ... porque a morte só deve chegar no fim da vida, entende? E não antes ou depois. E os nós precisam ser decifrados para que as figuras-chave... Você não está entendendo, está?

— Sinto muito.

— Eles precisam ser decifrados — repetiu Albert. — E então as vidas certas devem ser levadas. As ampulhetas, como as chamamos. O Serviço em si é um trabalho fácil.

— O senhor sabe fazer isso?

— Não. Você sabe?

— Não!

Pensativo, Albert chupava a hortelã.

— Então estamos perdidos — decidiu.

— Olhe, não sei por que vocês estão tão preocupados. Ele deve ter ficado preso em algum lugar — considerou Mort, mas não pareceu convencer nem a si próprio.

Ninguém pedia ao Morte que ficasse mais tempo para ouvir uma história nem lhe dava palminhas nas costas e dizia coisas como “Tome mais uma bebida, meu amigo, não vá ainda” ou o convidava para formar um time de boliche e depois degustar uma boa comida klatchiana... Com uma força súbita e assustadora, ocorreu a Mortimer que Morte deveria ser a criatura mais solitária do universo. Na grande festa da Criação, ele estava sempre na cozinha.

— Não sei o que está acontecendo com o patrão — murmurou Albert. — Levante-se, minha filha. Vamos dar uma olhada nesses nós.

Eles abriram o livro. Olharam-no por um longo tempo. Então Mort perguntou:

— O que significam todos esses símbolos?

— Non sapiens demo — respondeu Albert, baixinho.

— O que quer dizer isso?

— Quer dizer “E eu sei lá que diabo?”

— Aquilo era jargão de mago, não era? — indagou Mort.

— Pare com essa história de mago. Não sei nada de jargão. Concentre-se nisso aqui.

Mortimer olhou as linhas floreadas. Era como se uma aranha tivesse feito uma teia na página, detendo-se a cada junção para tomar notas. Mortimer ficou olhando até as vistas doerem, à espera de alguma centelha de inspiração. Nenhuma se candidatou.

— Alguma coisa?

— Parece klatchiano — sugeriu Mort. — Não sei nem se é para ser lido de lado ou de cabeça para baixo.

— Em espiral, do meio para fora — informou Ysabell, sentada no canto.

Os dois deram de cabeça ao se virarem para o centro da página. Então encararam Ysabell. Ela encolheu os ombros.

— Quando eu fazia tricô aqui — disse —, papai me ensinava a ler o gráfico de nós. Sempre lia alguma parte em voz alta.

— Pode nos ajudar? — perguntou Mort.

— Não — respondeu Ysabell. Ela assoou o nariz.

— Como assim, não? — irritou-se Albert. — Isso é importante demais para capricho de...

— O que estou dizendo — cortou Ysabell — é que posso decifrá-los, e você pode nos ajudar.


O Grêmio de Mercadores de Ankh-Morpork decidiu contratar uma enorme legião de homens com cérebro de geléia e músculos de aço, cuja função é reeducar os transviados que não reconhecem os muitos pontos turísticos da bela cidade. Por exemplo, o filósofo Gatassado foi encontrado boiando de bruços no rio poucas horas depois de proferir a famosa frase “Quando o homem está cansado de Ankh-Morpork, está cansado de chafurdar na lama”.

Logo, é prudente nos demorarmos em uma das muitas (evidentemente) coisas que elevam Ankh-Morpork a uma das principais cidades do multiverso.

Trata-se da comida.

As rotas comerciais de metade do Disco passam pela cidade ou ao menos por seu vagaroso rio. Mais da metade das tribos e raças do Disco possuem representantes que vivem na região. Em Ankh-Morpork, as cozinhas do mundo colidem: existem no cardápio mil tipos de vegetal, mil e quinhentos queijos, duas mil especiarias, trezentos tipos de carne, duzentas aves, quinhentas espécies diferentes de peixe, uma centena de variedades no que se refere a massa, setenta ovos de um tipo ou de outro, cinqüenta insetos, trinta moluscos, vinte tipos de cobra e outros répteis, além de um negócio marrom-claro e verruguento conhecido como trufa migratória dos pântanos de Klatch.

Os estabelecimentos comercias que servem refeições vão desde os luxuosos, onde as porções são ínfimas mas os talheres são de prata, até os obscuros, onde se diz que alguns dos habitantes mais exóticos do Disco comem qualquer coisa que consigam enfiar goela abaixo.

Perto do cais, a Casa das Costelas de Harga provavelmente não se encontra entre os melhores restaurantes da cidade, atendendo a uma clientela de peso que prefere quantidade e quebra a mesa se não tiver. Os fregueses não se interessam por extravagâncias e exotismos, mas se prendem à comida tradicional, como embriões de galinha, órgãos picados em pele de intestino, fatias de carne de porco e sementes de trigo banhadas em gordura animal, ou — como se diz na gíria local — ovo, lingüiça, bacon e torrada com manteiga.

Era o tipo de restaurante que não precisava de cardápio. Bastava olhar o avental de Harga.

No entanto, ele tinha de admitir que o novo cozinheiro era o supra-sumo da profissão. Grande propagador de sua mercadoria altamente calórica, Harga ficava radiante com a casa cheia de clientes satisfeitos. E com funcionário rápido! Aliás, perturbadoramente rápido.

Ele bateu no postigo.

— Dois ovos, feijão, batata frita e hambúrguer de troll sem cebola — gritou.

— Certo.

Alguns segundos mais tarde, o postigo se abria e dois pratos eram empurrados para fora. Harga sacudiu a cabeça, num misto de deleite e perplexidade.

A noite toda fora assim. Os ovos eram claros e brilhantes, os feijões reluziam como rubis e as batatas tinham o bronze dourado dos corpos expostos ao sol em praias requintadas. O cozinheiro anterior fazia batatas semelhantes a pequenos sacos de papel cheios de pus.

Harga correu os olhos pelo restaurante abarrotado. Ninguém estava olhando. Ele iria até o fim. Bateu novamente no postigo.

— Sanduíche de crocodilo — pediu. — Com...

O postigo se fechou. Depois de alguns segundos, juntando coragem suficiente, Harga espiava no meio das longas fatias de pão à sua frente. Ele não diria que aquilo era crocodilo, mas também não diria que não era. Bateu mais uma vez no postigo.

— Tudo bem — disse. — Não estou reclamando. Só quero saber como pôde fazer tão rápido.

— O TEMPO NÃO É IMPORTANTE.

— Jura?

— JURO.

Harga decidiu não discutir.

— BEM, GAROTO, VOCÊ ESTÁ REALIZANDO UM ÓTIMO TRABALHO — Elogiou. — COMO SE CHAMA A SENSAÇÃO DE ESTAR ANIMADO, CONTENTE E QUERER QUE AS COISAS FIQUEM ASSIM PARA SEMPRE?

— Acho que felicidade — respondeu Harga.

Dentro da minúscula cozinha, coberta pela gordura das décadas, Morte se esmerava, cortando, fatiando e temperando. A frigideira cintilava em meio ao vapor malcheiroso.

Ele havia aberto a porta para o ar frio da noite, e uma dezena de gatos do bairro tinham entrado ali, atraídos pelas tigelas de leite e carne — a melhor da seleção de Harga —, estrategicamente espalhadas pelo chão. De vez em quando, Morte parava o trabalho e afagava um deles atrás da orelha.

— Felicidade — murmurou, e se surpreendeu com o timbre da própria voz.


Cortabem, mago e reconhecedor real por nomeação, subiu o último dos degraus da torre e se encostou na parede, esperando o coração parar de saltar.

Na verdade, a torre não era muito alta, apenas alta para Sto Lat. Na arquitetura geral, parecia o tipo padrão de torre onde se aprisionam princesas. Era usada principalmente para guardar móveis velhos, e oferecia panoramas incomparáveis da cidade e da planície Sto, o que vale dizer que podíamos ver uma quantidade monstruosa de repolhos.

Cortabem se dirigiu às ameias e olhou a neblina matutina. Talvez estivesse um pouco mais cerrada do que de costume. Se ele se esforçasse, poderia imaginar uma oscilação no céu. Se realmente desse asas à imaginação, ouviria um chiado sobre as plantações de repolho, um barulho de gafanhotos fritando. O mago estremeceu.

As mãos de imediato apalparam os bolsos, mas não acharam nada além de meio saco de balas de gelatina, derretidas numa massa grudenta, e um caroço de maçã. Nenhum dos dois oferecia qualquer consolo.

O que Cortabem queria é o que todo mago em juízo perfeito quer numa hora dessas: fumar. Ele teria matado por um charuto e aceitado até levar um ferimento leve em troca de uma guimba esmagada. Então se recompôs. Coragem era bom para o caráter. O único problema é que o caráter não estava nada satisfeito com os sacrifícios que ele vinha fazendo em seu nome. Dizem que o verdadeiro mago deve estar sempre sob tensão. Dava para usar Cortabem como corda de arco.

Ele deu as costas para a paisagem de repolhos e voltou pela escada sinuosa até a parte principal do palácio.

Pelo menos, disse a si mesmo, a campanha parecia estar funcionando. A população não vinha oferecendo resistência ao fato de que haveria uma coroação, embora não estivesse certa em relação a quem seria coroado. Haveria bandeiras na rua, e Cortabem conseguira que a principal fonte da praça jorrasse, se não vinho, pelo menos uma razoável cerveja feita de brócolis. Haveria dança folclórica — a ferro e fogo, se necessário. Haveria corrida para as crianças. Haveria carne assada. A carruagem real havia sido redourada, e Cortabem estava otimista, achando que o povo se deixaria persuadir a notá-la passar.

O sumo sacerdote do Templo do Cego Io seria um problema. Cortabem já havia reparado que se tratava de uma alma generosa cuja aptidão com a faca se mostrava tão precária que metade dos sacrifícios ficava cansada de esperar e ia embora. A última vez que tentara sacrificar uma cabra, o animal teve tempo de dar à luz dois filhotes antes que o homem conseguisse se concentrar, e então o instinto da maternidade a fizera expulsar toda a fraternidade do templo.

Cortabem havia calculado que, mesmo em condições normais, a chance de o velho botar a coroa na cabeça certa era apenas média. Ele teria de ficar perto do homem e tentar cuidadosamente lhe guiar as mãos trêmulas.

Ainda assim, esse não era o maior problema. O maior problema era muito maior. O maior problema lhe fora trazido pelo chanceler, depois do café da manhã.

— Fogos de artifício? — surpreendera-se Cortabem.

— Não é o troço em que vocês, magos, são bons? — perguntou o chanceler, áspero como pedra-pomes. — Raios, explosões e não-sei-mais-o-quê. Quando eu era menino, lembro-me de um mago...

— Não sei nada de fogos de artifício — rebateu Cortabem, num tom de voz destinado a mostrar que estimava aquela ignorância.

— Muitos foguetes... — continuou o chanceler, com alegria. — Velas ankhianas. Relâmpagos. E coisinhas que a gente segurava com a mão. Não é uma coroação de verdade se não tem fogos de artifício.

— Sei, mas veja o senhor que...

— Excelente — animou-se o chanceler. — Eu sabia que podíamos contar com você. Muitos foguetes, entendeu? E para terminar deve haver uma obra magistral, sabe? Algo de tirar o fôlego, como o retrato da... da...

Os olhos se embaciaram de um modo que vinha ficando terrivelmente familiar para Cortabem.

— Princesa Keli — lembrou ele, fatigado.

— Ah, sim. Dela — respondeu o chanceler. — Um retrato da... de quem você disse... em fogos de artifício. Claro que provavelmente é tudo muito simples para vocês, magos, mas as pessoas gostam. Nada como umas boas explosões e um aceno na sacada para manter os músculos da lealdade em forma, é o que sempre digo. Foguetes. Com runas.

Fazia uma hora, Cortabem correra os olhos pelo índice de O Livro Mágico da Monstruosa Diversão, reunira alguns ingredientes caseiros básicos e jogara um fósforo neles.

Engraçadas as sobrancelhas, refletiu o mago. A gente só nota quando não estão mais ali.

Com marcas vermelhas em torno dos olhos e cheirando ligeiramente a fumaça, Cortabem avançou em direção aos aposentos reais, passando por vários grupos de criadas entretidas no que quer que fazem as criadas — o que sempre parece exigir pelo menos três delas. Sempre que as meninas viam Cortabem, ficavam caladas, passavam correndo de cabeça baixa e então desatavam a soltar risos abafados corredor afora. Isso irritava Cortabem. Não — tratou de afirmar para si mesmo — por qualquer razão pessoal, mas porque deve-se mostrar mais respeito pelos magos. Além disso, algumas empregadas tinham um jeito de olhar que lhe fazia ter pensamentos contrários à norma dos magos.

Sinceramente, meditou ele, o caminho da luz tem um quilômetro de vidro quebrado.

Bateu à porta da suíte de Keli. Uma criada atendeu.

— A patroa está? — perguntou, com o máximo de arrogância que conseguiu manifestar.

A empregada botou a mão na boca. Os ombros se sacudiram. Os olhos brilharam. Um som como gás vazando lhe escapou por entre os dedos.

Não posso evitar, pensou Cortabem. Parece que causo um efeito espantoso nas mulheres.

— É homem? — perguntou Keli, lá de dentro.

Os olhos da criada se embaciaram, e ela inclinou a cabeça, como se não tivesse certeza do que tinha ouvido.

— Sou eu, Cortabem — avisou Cortabem.

— Ah, então não tem problema. Pode entrar.

Cortabem passou pela menina e tentou ignorar o riso abafado que ela soltou ao se retirar do quarto. Todo mundo sabia que não havia necessidade de dama de companhia quando uma mulher se encontrava com um mago. Fora exatamente a inflexão da princesa — “Ah, então não tem problema” — que fez ele se contorcer por dentro.

Keli estava sentada à penteadeira, escovando o cabelo. Pouquíssimos homens no mundo chegam a descobrir o que uma princesa usa debaixo do vestido e, com extrema relutância mas notável autocontrole, Cortabem juntou-se a eles. Apenas a dança frenética do pomo-de-Adão o traiu. Não havia a menor dúvida: por dias ele não estaria apto a realizar magia.

Ela se virou, e ele sentiu o cheiro de talco. Por semanas, droga, por semanas.

— Cortabem, parece estar com calor. Algum problema?

— Nãããh.

— O quê?

Ele se sacudiu. Concentre-se na escova de cabelo, homem de Deus, na escova de cabelo.

— Foram as experimentações mágicas, senhorita. Só queimaduras superficiais.

— A coisa ainda está se movendo?

— Está.

Keli se voltou para o espelho. O rosto estava sério.

— Temos tempo?

Essa era a parte que ele vinha temendo. Fizera tudo o que podia. O astrólogo real fora mantido sóbrio durante tempo suficiente para insistir que o dia seguinte era a única data possível para a realização da cerimônia, então Cortabem havia providenciado para que começasse um segundo após a meia-noite. Tinha impiedosamente cortado a apresentação da banda real. Havia agendado a invocação do sumo sacerdote aos deuses e então eliminado algumas partes. (Haveria confusão quando os deuses descobrissem.) E o ritual de unção com óleos sagrados se resumiria a um breve salpico atrás das orelhas. Ainda não tinham inventado o skate no Disco — se tivessem, a passagem de Keli pela nave da igreja seria inconstitucionalmente rápida. E mesmo assim não bastava. Ele tomou coragem.

— Talvez não — arriscou. — Pode ser questão de minutos. Ele notou que estava sendo encarado através do espelho.

— Quantos?

— Hum. Poucos.

— Você está tentando dizer que deve chegar na hora da cerimônia?

— Hã. Mais para, hum, antes — lamentou Cortabem.

Não havia nenhum som além do tamborilo dos dedos de Keli na beira da mesa. Cortabem se perguntou se ela iria entrar em pânico ou quebrar o espelho. Em vez disso, a princesa perguntou:

— Como sabe?

Ele imaginou se conseguiria se safar com uma resposta do tipo “Sou mago, sabemos dessas coisas”, mas decidiu que não. A última vez que dissera isso, ela o havia ameaçado de degola.

— Perguntei a um dos guardas sobre o bar de que Mort tinha falado — contou ele. — Então calculei a distância aproximada que a abóbada havia percorrido. Mort disse que ela estava se movendo a passos lentos, mas acho que as passadas dele...

— Simples assim? Não usou magia?

— Só o bom senso. A longo prazo, é muito mais confiável. Ela estendeu o braço e afagou a mão dele.

— Coitado do meu velho Cortabem.

— Só tenho 20 anos, senhorita.

Ela se levantou e avançou para o quarto de vestir. Uma coisa que se aprende quando se é princesa é ser sempre mais velha do que todo mundo em posição inferior.

— É, imagino que devem existir magos jovens — disse, por sobre o ombro. — Só que as pessoas sempre os imaginam velhos. Por que será?

— Os contratempos da profissão — lamuriou Cortabem, rolando os olhos para cima.

Ele ouviu o ruge-ruge da seda.

— O que o fez decidir virar mago?

A voz saiu abafada, como se ela estivesse com alguma coisa sobre a cabeça.

— É trabalho interno e não precisa levantar peso — respondeu Cortabem. — Acho que eu também queria aprender como funciona o mundo.

— E aprendeu?

— Não.

Cortabem não era muito bom em conversa fiada, do contrário jamais teria deixado a mente vaguear o bastante para se permitir perguntar:

— O que a fez decidir virar princesa?

Depois de um silêncio meditativo, ela respondeu:

— Decidiram por mim.

— Desculpe, eu...

— Ser rei é meio que uma tradição familiar. Imagino que aconteça a mesma coisa com magia. Com certeza, seu pai era mago...

Cortabem rangeu os dentes.

— Hum. Não — respondeu. — Não de todo. Aliás, não de nada.

Ele sabia o que viria em seguida, e foi o que veio, certo como o pôr-do-sol, numa voz que sugeria graça e fascínio.

— Ah? É verdade que mago não pode...

— Bem, se isso é tudo, vou andando — gritou Cortabem. — Caso precise de mim, basta seguir as explosões. Eu... gnnnh!

Keli havia saído do quarto de vestir.

Ora, roupa feminina não era um assunto que ocupasse Cortabem — na verdade, quando ele pensava em mulher, as imagens mentais raramente incluíam qualquer vestimenta —, mas a visão à frente de fato lhe tirava o fôlego. Quem quer que houvesse desenhado o vestido não sabia quando parar. Tinham botado renda sobre a seda e enfeitado com peles de animal, enfiado pérolas onde quer que parecesse vazio, enchido e engomado as mangas e então acrescentado filigranas de prata e aí começado tudo outra vez com a seda.

Era sem dúvida impressionante o que se podia fazer com vários gramas de metal pesado, alguns moluscos irritados, uns poucos roedores mortos e muito fio saído do traseiro de insetos. O vestido era antes ocupado do que usado. Se os babados à volta não estavam sustentados por rodinhas, então Keli era muito mais forte do que ele havia imaginado.

— O que acha? — perguntou ela, virando-se devagar. — Foi usado pela minha mãe, minha avó e a mãe dela.

— O que, ao mesmo tempo? — indagou Cortabem, preparado para acreditar que sim.

“Como ela conseguiu entrar ali?”, perguntava-se ele. Deve ter uma porta atrás...

— É um legado familiar. Tem diamantes de verdade no corpete.

— Que parte é o corpete?

— Esta aqui.

Cortabem estremeceu.

— É espetacular — comentou, quando pôde confiar em si mesmo para falar. — Mas a senhorita não acha que talvez seja um pouco senhoril demais?

— É de rainha.

— Eu sei, mas talvez não a deixe andar muito depressa.

— Não tenho a menor intenção de sair correndo. Deve haver dignidade.

Mais uma vez a disposição do queixo remeteu ao vitorioso antepassado, que preferia andar depressa o tempo todo e só conhecia a dignidade existente em ponta de lança afiada.

Cortabem abriu as mãos.

— Tudo bem — disse. — Ótimo. A gente faz o que pode. Só espero que Mort tenha tido alguma idéia.

— É difícil confiar em fantasma — rebateu Keli. — Ele atravessa paredes!

— Estive pensando sobre isso — considerou Cortabem. — É estranho, não é? Ele só atravessa as coisas quando não sabe que está atravessando. Acho que é doença profissional.

— O quê?

— Ontem à noite, tive quase certeza. Ele está ficando real.

— Todos nós somos reais! Pelo menos você é, e acho que eu também.

— Mas ele está ficando mais real. Extremamente real. Quase tão real quanto Morte, e nada é mais real. Nada mesmo.

— Tem certeza? — perguntou Albert, desconfiado.

— Claro — respondeu Ysabell. — Se preferir, decifre você mesmo. Albert voltou os olhos para o livro, tendo no rosto a máscara da incerteza.

— Bem, pode ser que esteja certo — admitiu relutante, e copiou os dois nomes num pedaço de papel. — Só tem um jeito de descobrir.

Abriu a gaveta superior da mesa de Morte e retirou um grande chaveiro de ferro. Havia apenas uma chave.

— E AGORA? — indagou Mort.

— Temos de pegar as ampulhetas — informou Albert. — Você vem comigo.

— Mort! — alarmou-se Ysabell.

— O quê?

— O que você acabou de dizer... — Ela ficou em silêncio, e então acrescentou: — Ah, nada. Só me pareceu... estranho.

— Eu só perguntei e agora — disse Mort.

— É, mas... ah, não importa.

Albert passou por eles e avançou pelo corredor como uma aranha de duas patas até alcançar a porta que sempre ficava trancada. A chave se encaixou à perfeição. A porta se abriu. Não houve nem um leve rangido das dobradiças, apenas o zunido de um silêncio mais profundo.

E o bramido de areia.

Mortimer e Ysabell ficaram no vão da porta, paralisados, enquanto Albert se esgueirava por entre as passagens de vidro. O som não invadia o corpo somente pelos ouvidos, entrava pelas pernas e pelo crânio e enchia o cérebro até tudo em que se podia pensar ser o violento silvo acinzentado, o som de milhões de vidas sendo vividas. E correndo para o destino inevitável.

Eles olharam as infindáveis fileiras de ampulhetas, cada qual diferente, cada qual com um nome específico. A luz das tochas alinhadas na parede reluzia, de modo que em cada vidro brilhava uma estrela. As paredes opostas do cômodo se perdiam na galáxia de luz.

Mortimer sentiu os dedos de Ysabell se apertarem em seu braço. Quando ela falou, a voz saiu apertada.

— Mort, algumas são tão pequenas!

— Eu sei.

Os dedos relaxaram, muito de leve, como alguém botando o último ás numa casa de cartas e retirando a mão com cuidado para que toda a estrutura não venha abaixo.

— Fale de novo — pediu ela.

— Só falei que sei disso. Mas não posso fazer nada a respeito. Você já não esteve aqui?

— Não.

Ela havia se afastado um pouco e agora estudava os olhos dele.

— Não é pior do que a biblioteca — analisou Mort, e quase acreditou no que disse.

Mas na biblioteca eles apenas liam. Ali, viam acontecer.

— Por que está me olhando assim? — perguntou ele.

— Só queria me lembrar de que cor são seus olhos — desculpou-se ela —, porque...

— Vocês dois já não se cansaram um do outro? — berrou Albert, acima do estrondo de areia. — Por aqui!

— Castanhos — disse Mort a Ysabell. — São castanhos. Por quê?

— Rápido!

— É melhor você ir ajudá-lo — sugeriu Ysabell. — Parece que ele está ficando chateado.

Mortimer a deixou, com a mente envolta num mar de desconforto, e se dirigiu até onde estava Albert, impaciente, batendo o pé no chão de ladrilhos.

— O que tenho de fazer? — perguntou.

— Apenas me siga.

O lugar se abria numa série de corredores, todos alinhados com ampulhetas. Aqui e ali, as prateleiras eram separadas por colunas de pedra escritas com letras angulosas. De vez em quando Albert as consultava. Na maior parte do tempo avançava pelo labirinto de areia como se conhecesse tudo de cor.

— Albert, existe uma ampulheta para cada pessoa?

— Existe.

— Mas o lugar não parece grande o bastante.

— Você sabe alguma coisa de topografia multidimensional?

— Hum... Não.

— Então, se eu fosse você, não me atreveria a dar opinião.

Ele se deteve de frente para uma prateleira, consultou novamente o papel, correu a mão pela fileira de ampulhetas e de repente pegou um dos instrumentos. O vaso superior estava quase vazio.

— Segure aqui — pediu. — Ao que tudo indica, o outro deve estar por perto. Ah... Aqui.

Mortimer girou as duas ampulhetas nas mãos. Uma apresentava todos os sinais de uma vida importante, ao passo que a outra era atarracada e bastante simples.

Leu os nomes. O primeiro parecia se referir a um nobre das regiões do Império Agateano. O segundo era um conjunto de pictogramas que pareciam vir de Klatch Sentido Horário.

— Agora depende de você — alegrou-se Albert. — Quanto mais cedo começar, mais cedo vai terminar. Vou levar Pituco à porta da frente.

— Meus olhos estão normais? — perguntou Mort, ansioso.

— Não vejo nada de errado — respondeu Albert. — Meio vermelho nos cantos, mais azul do que de costume, nada de especial.

Pensativo, Mortimer seguiu-o de volta por entre as longas prateleiras de vidro. Ysabell viu-o tirar a espada do cabide ao lado da porta e examinar a ponta, agitando-a no ar — exatamente como fazia Morte — e sorrindo sério ao desejado som de trovão.

Ela reconheceu a maneira de andar. Ele andava como quem está à caça.

— Mort? — sussurrou ela.

— O QUÊ?

— Está acontecendo alguma coisa com você.

— Eu SEI — respondeu ele. — Mas acho que posso controlar. Os dois ouviram o som de cascos ao lado de fora, então Albert abriu a porta e entrou esfregando as mãos.

— Muito bem, rapaz, não temos tempo para...

Mortimer meneou a espada. A arma cortou o ar com um som de seda rasgando e se enterrou no batente da porta, ao lado da orelha de Albert.

— De joelhos, Alberto Malich.

A boca de Albert se entreabriu. Os olhos correram para o canto a fim de ver a lâmina reluzente a alguns centímetros da cabeça e então se comprimiram em duas linhas finas.

— Você não ousaria, garoto — desafiou ele.

— Mort.

A palavra saiu rápida como uma chicotada e duas vezes mais violenta.

— Houve um pacto — argumentou Albert, mas havia um levíssimo quê de dúvida em sua voz. — Houve um acordo.

— Não comigo.

— Tem um acordo! Onde vamos chegar se não honrarmos nossos acordos?

— Não sei onde eu vou chegar — respondeu Mort, devagar. — Mas sei para onde você vai.

— Não é justo!

Agora a voz não passava de um gemido.

— NÃO TEM JUSTIÇA. SÓ TEM EU.

— Pare com isso — pediu Ysabell. — Mort, você está sendo absurdo. Não pode matar ninguém aqui. E não quer matar o Albert.

— Não aqui. Mas posso mandá-lo de volta ao mundo.

Albert empalideceu.

— Você não faria isso!

— Não? Posso levá-lo de volta e deixá-lo por lá. Imagino que não tenha muito mais tempo de vida, tem? TEM?

— Não fale assim — implorou Albert, incapaz de sustentar o olhar do garoto. — Você parece o patrão quando fala assim.

— Posso ser muito pior do que ele — afirmou Mort, com tranqüilidade. — Ysabell, vá pegar o livro do Albert.

— Mort, acho que você está...

— VOU TER DE PEDIR DE NOVO?

Pálida, ela desapareceu do quarto.

Do outro extremo da espada, Albert olhou para Mortimer e abriu um sorriso torto, sem graça.

— Você não vai controlar isso para sempre — avisou.

— Nem quero. Só durante o tempo suficiente.

— Agora você é receptivo. Quanto mais o patrão se mantiver ausente, mais você ficará como ele. Só que pior, porque vai se lembrar de como era ser humano e...

— E quanto a você? — reagiu Mort. — O que lembra de ser humano? Se voltasse agora, quanto tempo de vida teria?

— Noventa e um dias, três horas e cinco minutos — respondeu Albert, prontamente. — Eu sabia que ele estava no meu encalço, entende? Mas aqui estou seguro, e ele não é tão ruim assim. Às vezes, não sei o que faria sem mim.

— É, ninguém morre no reino do próprio Morte. Mas você está satisfeito? — quis saber Mort.

— Tenho mais de 2 mil anos. Vivi mais do que qualquer outra pessoa desse mundo.

Mort sacudiu a cabeça.

— Não viveu, não — protestou. — Só estendeu mais as coisas. Ninguém vive aqui. O tempo neste lugar é falso. Nada muda. Eu preferiria morrer e ver o que acontece depois a passar a eternidade aqui.

Pensativo, Albert botou a mão na testa.

— É, talvez — admitiu. — Mas eu sou mago. E era bom no negócio. Ergueram uma estátua para mim, sabia? Mas ninguém é mago por muito tempo sem fazer alguns inimigos... inimigos que vão esperar do Outro Lado.

Ele fungou e prosseguiu:

— Nem todos têm duas pernas. Alguns não têm perna nenhuma. Nem rosto. A morte não me assusta. É o que vem depois.

— Então me ajude.

— De que me serviria?

— Um dia, pode precisar de amigos no Outro Lado — respondeu Mort. Então pensou por alguns segundos e acrescentou: — Se eu fosse você, não me incomodaria em dar uma polida de última hora na alma. Talvez alguns desses inimigos não gostem do sabor.

Albert estremeceu e fechou os olhos.

— Você não sabe sobre o quê que coisa está falando — disse, com mais sentimento do que gramática. — Do contrário, não diria isso. O que quer de mim?

Mort contou.

Albert soltou uma gargalhada.

— Só isso? Só mudar a Realidade? Não dá! Já não existe magia forte o bastante. Há algum tempo, os Grandes Feitiços podiam. Mas nada além deles. E é isso, faça o que quiser e seja feliz.

Arfante, Ysabell retornou, trazendo nas mãos o último livro da vida de Albert. Ele fungou outra vez. A gotinha na ponta de seu nariz deixava Mortimer fascinado. Estava sempre a ponto de cair, mas nunca tinha coragem. Exatamente como o dono, pensou.

— Não podem fazer nada comigo através do livro — aventurou-se o mago.

— Nem pretendo. Mas acho que não se chega a ser um mago poderoso dizendo a verdade o tempo todo. Ysabell, leia o que está sendo escrito.

— “Albert encarou-o, hesitante” — leu Ysabell.

— Você não pode acreditar em tudo que está escrito aí...

— “... gritou ele, sabendo que Mort com certeza podia” — continuou Ysabell.

— Pare!

— “... berrou, tentando esconder no fundo da mente a informação de que mesmo se a Realidade não podia ser detida, era possível desacelerá-la um pouco.”.

— Como?

— “... entoou Mort, na inflexão sepulcral de Morte” — recomeçou Ysabell, obedientemente.

— Tudo bem, tudo bem, não precisa ler minha parte — irritou-se Mort.

— Perdoe-me, “senhor”, por estar viva.

— Ninguém é perdoado por estar vivo!

— Não fale comigo desse jeito. Você não me assusta — disse ela. Então leu no livro a frase que a chamava de mentirosa.

— Mago, diga como — exigiu Mort.

— A magia é tudo o que me resta! — lamentou Albert.

— Você não precisa mais dela, seu miserável.

— Não pense que me assusta, garoto...

— Olhe na minha cara e diga isso.

Altivo, Mort estalou os dedos. Ysabell baixou novamente a cabeça sobre o livro.

— “Albert mirou o brilho azul daqueles olhos e o resto da ousadia escoou” — leu ela. — “Porque viu não apenas Morte mas Morte com todos os temperos humanos da vingança, da crueldade e da aversão. Com uma certeza terrível, soube que aquela era a última chance e que Mort o mandaria de volta ao Tempo, então o perseguiria e o entregaria pessoalmente ao escuro Calabouço das Dimensões, onde criaturas do horror fariam pontinho pontinho pontinho pontinho pontinho” — terminou ela. — Fica metade de uma página só no pontinho pontinho.

— Porque o livro não se atreve nem mesmo a mencionar o que acontece — murmurou Albert.

Tentou fechar os olhos mas as imagens na escuridão de sua mente se mostraram tão vividas, que ele os abriu novamente. Até Mortimer era melhor do que aquilo.

— Tudo bem — disse, afinal. — Existe um feitiço. Ele retarda o tempo num lugar específico. Vou escrever, mas você vai ter de achar um mago para dizê-lo.

— Sem problema.

Albert passou a língua pelos lábios ressequidos.

— Mas tem seu preço — advertiu. — Você precisa fazer o Serviço antes.

— Ysabell? — chamou Mort. Ela olhou a página à frente.

— É verdade — disse. — Se você não fizer o Serviço, tudo desanda e ele volta ao Tempo de qualquer maneira.

Os três se viraram para o grande relógio que dominava o vestíbulo. O pêndulo oscilava lentamente no ar, cortando o tempo em pedacinhos.

Mort soltou um gemido.

— Não tem tempo! — exclamou. — Não vou conseguir fazer os dois a tempo! Não vou conseguir fazer os dois a tempo!

— O patrão teria achado tempo — observou Albert.

Mortimer pegou a espada no vão da porta e agitou-a furiosamente, mas sem muita eficácia, na direção de Albert, que se afastou.

— Então escreva o feitiço — gritou. — E rápido!

Deu meia-volta e dirigiu-se ao gabinete de Morte. Num canto, havia um grande disco do mundo inteiro, com elefantes de prata fincados na carapaça de uma Grande A'Tuin feita de bronze, com mais de um metro de comprimento. Os rios eram representados por veios de jade; os desertos, por diamante em pó; e as cidades mais notáveis se distinguiam por pedras preciosas. Ankh-Morpork, por exemplo, era um carbúnculo.

Ele depositou as duas ampulhetas sobre a localização aproximada de seus donos e sentou na cadeira de Morte, olhando para elas, desejando que se encontrassem mais perto. A cadeira rangia de leve ao girar de um lado para o outro.

Depois de um tempo, Ysabell entrou no gabinete, em passos macios.

— Albert escreveu o feitiço — tratou de informar. — Conferi no livro. Não é nenhum truque. Agora se trancou no quarto e...

— Olhe pra isso! Quer por favor olhar pra isso!

— Mort, acho que você precisa se acalmar um pouco.

— Como posso me acalmar com, olhe, esse aqui quase no Grande Nef e esse outro bem em Bes Pelargic? E depois tenho de voltar a Sto Lat. Contando idas e voltas, é uma viagem de 15 mil quilômetros. Impossível!

— Tenho certeza de que você vai achar um jeito. E eu vou ajudar.

Pela primeira vez, ele a olhou e viu que estava usando o casaco de sair, aquele bastante impróprio, com a imensa gola de pele.

— Você? O que poderia fazer?

— Pituco carrega dois fácil — argumentou ela, com doçura. Então agitou vagamente um saco de papel. — Já preparei lanche para a gente. Eu posso... abrir as portas e tal.

Mort riu, melancólico.

— Não vai ser necessário.

— Pare de falar assim.

— Não posso levar passageiros. Você vai me atrasar.

Ysabell suspirou.

— Olhe aqui, vamos fazer o seguinte. Imagine que tivemos uma briga e eu ganhei. Entende? Poupa tempo. Aliás, você vai achar o Pituco um tanto relutante se eu não for junto. Ano após ano, sempre dei muito torrão de açúcar para ele. Agora... vamos?

Albert sentou na cama estreita, encarando o teto. Ouviu o ruído de patas, abruptamente interrompido no momento em que Pituco levantou vôo, e murmurou alguma coisa.

Vinte minutos se passaram. Expressões atravessavam o rosto do velho mago feito sombras de nuvens na encosta de uma montanha. De vez em quando, ele sussurrava algo para si mesmo, como “Eu avisei”, “Não deveria ter ajudado” ou “O patrão precisa saber disso”.

Por fim, pareceu chegar a um acordo consigo mesmo, ajoelhou-s com cuidado no chão e puxou um antigo baú de baixo da cama. Abriu-o com dificuldade e desdobrou um manto cinza empoeirado, espalhando naftalina e lantejoulas foscas pelo chão. Vestiu-o, sacudiu o grosso da poeira e outra vez engatinhou para debaixo da cama. Ouviu-se um monte de esconjuros e um tinido de porcelana, então Albert finalmente se levantou trazendo um bastão maior do que ele próprio.

A vara era mais grossa do que qualquer bastão normal, principalmente por causa dos entalhes que a cobriam de alto a baixo. Os cortes eram bastante indefinidos, mas davam impressão de que, se olhássemos melhor, acabaríamos nos arrependendo.

Albert bateu a poeira da roupa outra vez e examinou a si mesmo no espelho do lavatório.

Então disse: Chapéu. Falta o chapéu. Mago precisa de chapéu. Droga.

Saiu do quarto e voltou depois de quinze diligentes minutos, que incluíram um buraco circular no tapete do quarto de Mortimer, o papel prateado tirado de trás do espelho do quarto de Ysabell, linha e agulha da caixa que ficava embaixo da pia da cozinha e algumas lantejoulas soltas catadas no fundo do baú. O resultado final não era tão bom quanto ele gostaria e tendia a escorregar sobre um dos olhos, mas era preto, exibia luas e estrelas e revelava que sem dúvida o dono era mago, embora possivelmente um mago em desespero.

Pela primeira vez em 2 mil anos, ele se sentiu vestido da maneira adequada. Era uma sensação desconcertante que o fez refletir durante alguns segundos, antes de chutar o tapete em frangalhos para debaixo da cama e usar o bastão para traçar um círculo no chão.

À medida que a ponta da vara passava, deixava uma linha da reluzente octarina, a oitava cor do espectro, a cor da magia, o pigmento da imaginação.

Ele marcou oito pontos na circunferência e juntou-os a fim de formar um octograma. Uma pulsação baixa começou a tomar conta do quarto.

Alberto Malich entrou no centro e ergueu a vara sobre a cabeça. Sentiu-a despertar ao aperto de sua mão, sentiu o comichão do poder adormecido se estender devagar e deliberadamente, como um tigre acordando. Aquilo acionou antigas lembranças de força e magia que zumbiram no sótão cheio de teias de aranha de sua mente. Pela primeira vez em séculos, ele se sentiu vivo.

Lambeu os lábios. A pulsação havia sucumbido, deixando um tipo estranho, expectante de silêncio.

Malich levantou a cabeça e gritou uma única sílaba.

Um raio verde-azulado se desprendeu de ambas as pontas da vara. Chamas octarinas jorraram dos oito pontos do octograma e envolveram o mago. Nada disso era realmente necessário para realizar o feitiço, mas os magos acham as aparências muito importantes...

As “desaparências” também. Ele sumiu.

Ventos estratosféricos agitavam a capa de Mort.

— Aonde vamos primeiro? — perguntou Ysabell, no ouvido dele.

— Bes Pelargic! — gritou Mort, com a rajada a carregar as palavras para longe.

— Onde fica?

— No Império Agateano! Continente Contrapeso!

Ele apontou para baixo.

Sabendo dos quilômetros que tinham pela frente, no momento ele não estava forçando Pituco, e o grande cavalo branco corria num galope tranqüilo sobre o oceano. Ysabell olhou as estrondosas ondas verdes encimadas pela espuma branca e se agarrou a Mortimer.

Mortimer espiou as nuvens que assinalavam o continente distante e resistiu ao impulso de apressar Pituco com a lâmina da espada. Jamais picara o cavalo e não estava nem um pouco certo do que aconteceria se o fizesse. Tudo que podia fazer era esperar.

Uma pequena mão surgiu debaixo do seu braço, segurando um sanduíche.

— Tem de presunto ou queijo com chutney — avisou ela. — É melhor você comer, não tem nada melhor a fazer.

Mortimer olhou o triângulo empapado e tentou lembrar a última vez em que comera. Alguma hora para além do alcance do relógio — seria preciso um calendário para determinar. Pegou o sanduíche.

— Obrigado — disse, com o máximo de educação que conseguiu exprimir.

O minúsculo Sol avançava em direção ao horizonte, arrastando a vagarosa luz consigo. As nuvens adiante aumentaram e ficaram tingidas de rosa e laranja. Depois de um tempo, ele conseguiu avistar a massa escurecida de terra abaixo, com as ocasionais luzes de alguma cidade.

Meia hora depois, teve certeza de estar vendo construções isoladas. A arquitetura agateana pendia para pirâmides baixas.

Pituco desceu até os cascos se encontrarem a poucos metros do mar. Mortimer examinou a ampulheta outra vez e, com suavidade, puxou as rédeas para conduzir o cavalo em direção a um porto, mais no sentido da Borda.

Havia alguns navios ancorados, a maioria dos quais mercantes costeiros de uma única vela. O Império Agateano não incentivava os cidadãos a irem para longe, com medo de que vissem algo que pudesse perturbá-los. Pela mesma razão, construíra um muro em torno de todo o país, vigiado pela Guarda Divina, cujo trabalho consistia em pisar nos dedos dos habitantes que queriam dar uma escapulida de cinco minutos para tomar ar fresco.

Isso não acontecia com freqüência, porque a maioria dos cidadãos do imperador Solar estava satisfeita em viver do lado de dentro do Muro. É fato que todo mundo se encontra de um lado ou de outro de algum muro, então o melhor é esquecer o assunto ou fortalecer os dedos.

— Quem governa esse lugar? — perguntou Ysabell, ao passarem pelo porto.

— Tem um garoto imperador — respondeu Mort. — Mas acho que o manda-chuva mesmo é o grande vizir.

— Nunca confie num vizir — sugeriu Ysabell.

De fato, o imperador Solar não confiava. O vizir, cujo nome era Nove Espelhos Giratórios, tinha idéias muito claras a respeito de quem deveria reger o país, isto é, ele próprio, e agora o garoto estava ficando grande o bastante para fazer perguntas como “Você não acha que o muro ficaria melhor com alguns portões?” e “Tudo bem, mas como são as coisas do lado de lá?” O vizir chegara à conclusão de que, para o bem do próprio imperador, era melhor que ele fosse cruelmente envenenado e enterrado com cal.

Pituco pousou no chão coberto de cascalhos e pedras, do lado de fora do palácio de muitos cômodos, rearranjando de forma violenta a harmonia do universo[8]. Mortimer saltou e ajudou Ysabell a descer.

— Só não me atrapalhe, está bem? — pediu ele. — E não pergunte nada.

Subiu alguns degraus laqueados e percorreu os cômodos silenciosos, às vezes detendo— Se para se orientar pela ampulheta. Por fim, avançou por um corredor e espiou através de uma treliça floreada a longa e baixa sala onde a corte agora jantava.

O jovem imperador Solar estava sentado de pernas cruzadas à cabeceira da esteira, com a capa de penas e peles que parecia brotar dele. O resto da corte se encontrava sentada em torno da esteira — seguindo uma rígida e complicada ordem de precedência —, mas era impossível não identificar o vizir, olhando desconfiado sua tigela de “esmago” e alga marinha cozida. Ninguém parecia prestes a morrer.

Mortimer seguiu o corredor, dobrou a quina e quase deu com vários membros da Guarda Divina, amontoados em torno de um buraco no papel de parede, passando um cigarro de mão em mão.

Voltou para a treliça e escutou a seguinte conversa:

— Sou o mais infeliz dos mortais, ó Presença Imanente, por achar isso no meu “esmago”, que do contrário estaria satisfatório — disse o vizir, estendendo os pauzinhos de comer.

A corte esticou o pescoço para ver. Mortimer também. E não pôde deixar de concordar com o homem: o negócio parecia uma massa disforme verde-azulada com tubos borrachentos pendurados.

— O cozinheiro será punido, Nobre Excelência da Erudição — garantiu o imperador. — Quem ficou com as costelas?

— Não, ó Perspicaz Pai do Povo, eu estava antes me referindo ao fato de que isso, acredito eu, são a bexiga e o baço da enguia de águas profundas, supostamente a mais deliciosa das guloseimas, a ponto de só poder ser ingerida pelos entes queridos dos próprios deuses, e não incluo meu reles ser a tal grupo.

Com um gesto hábil, lançou o negócio na tigela do imperador, onde a coisa se agitou até parar. O garoto olhou-a durante algum tempo, e então fisgou-a com o palitinho.

— Ah! — exclamou. — Mas também não foi escrito por ninguém menos do que o grande filósofo Yin Gha No que o erudito está acima dos príncipes? Lembro-me da ocasião em que o senhor me deu esse trecho para ler, ó Fiel e Assíduo Explorador do Conhecimento.

O negócio traçou outro breve arco no ar e caiu na tigela do vizir. Ele o pegou com um movimento rápido e ergueu-o para o segundo round. Os olhos se apertaram.

— Talvez em geral seja esse o caso, ó Rio Brilhante da Sabedoria, mas especificamente não estou acima do imperador a quem amo como filho e assim tenho feito desde a desgraçada morte de seu falecido pai, e portanto ponho essa pequena oferenda a seus pés.

Os olhos da corte seguiram o deplorável órgão em sua terceira viagem por sobre a esteira, mas o imperador pegou o leque e deu uma rebatida perfeita, jogando-o de volta à tigela do vizir com tanta força que fez derramar um pouco da alga marinha.

— Alguém coma isso, pelo amor de Deus! — gritou Mort, sem ser ouvido. — Estou com pressa!

— O senhor é sem dúvida o mais atencioso dos servos, ó Devotada Companhia Única de Meus Falecidos Pai e Avô Ao Morrerem, e portanto decreto que sua recompensa seja a mais rara e requintada das guloseimas.

Irresoluto, o vizir espetou o negócio e olhou o sorriso do Imperador. Era alegre e terrível. Ele procurou uma desculpa.

— Ai de mim! Acho que já comi demais... — começou, mas o imperador acenou para que se calasse.

— Sem dúvida merece um tempero apropriado — disse, e bateu as mãos.

A parede atrás dele se rasgou de alto a baixo, e quatro guardas divinos entraram na sala, três deles brandindo espadas e o quarto se apressando em tentar engolir uma guimba acesa.

A tigela do vizir lhe caiu das mãos.

— O mais fiel dos meus servos acha que não tem espaço para um último bocado — informou o imperador. — Talvez vocês possam investigar o estômago dele para ver se é verdade. Por que esse homem está com fumaça saindo pelas orelhas?

— Sede de ação, ó Eminência Celestial — respondeu o sargento, com rapidez. — Não tem o que o faça parar.

— Então deixe-o pegar a faca e... ah, parece que o vizir está com fome afinal. Muito bem.

Houve silêncio absoluto quando o vizir começou a comer. Então engoliu.

— Delicioso — atestou. — Esplêndido. Realmente o manjar dos deuses. E agora, se o senhor me permite...

Ele esticou as pernas e se preparou para levantar. Pequenas gotas de suor haviam lhe brotado na testa.

— Quer se retirar? — perguntou o imperador, erguendo as sobrancelhas.

— Urgentíssimos assuntos de Estado, ó Sagaz Alteza do...

— Fique sentado. Levantar tão rápido depois das refeições pode ser péssimo para a digestão — argumentou o imperador, e os guardas assentiram. — Além do mais, não existe nenhum assunto de Estado urgente, a menos que o senhor esteja se referindo ao que se encontra no vidrinho vermelho rotulado de “Antídoto”, no armário laqueado preto sobre a esteira dos seus aposentos, ó Luz das Altas Horas.

Surgiu um zumbido nos ouvidos do vizir. O rosto começou a ficar azul.

— Está vendo? — indagou o imperador. — Muita atividade de estômago cheio causa indisposição. Que essa lição chegue a todos os cantos do país, que todos os homens saibam do seu estado lamentável e tirem proveito dele.

— Devo... parabenizá-lo... ó Excelência, por essas considerações — disse o vizir, e caiu para frente, na travessa de caranguejos de casca mole.

— Tive um ótimo professor — rebateu o imperador.

— E JÁ NÃO ERA SEM TEMPO — disse Mort, agitando a espada. Um instante depois, a alma do vizir se levantava da esteira e olhava Mortimer dos pés à cabeça.

— Quem é você, bárbaro? — perguntou.

— Morte.

— Não o meu Morte — retrucou o vizir, com firmeza. — Onde está o Celestial Dragão Negro do Fogo?

— NÃO PÔDE VIR — desculpou-se Mort.

Havia sombras se formando atrás da alma do vizir. Várias delas usavam o manto imperial, mas havia muitas outras, e todas pareciam ansiosas para receber o recém-chegado à terra dos mortos.

— Acho que tem umas pessoas aqui para ver o senhor — adiantou Mort, e se foi.

Quando alcançou o corredor, a alma do vizir começou a gritar...

Ysabell aguardava pacientemente ao lado de Pituco, que estava almoçando um bonsai de 500 anos.

— Menos um! — gritou Mort, montando na sela. — Vamos. Estou com um pressentimento ruim em relação ao próximo, e não temos muito tempo.

Albert se materializou bem no centro da Universidade Invisível, no mesmo lugar em que havia se despedido do mundo cerca de 2 mil anos antes.

Resmungou satisfeito e limpou algumas manchas de poeira do manto.

Então percebeu que estava sendo observado: olhando para cima, descobriu que ganhara existência sob o ríspido olhar de mármore que pertencia a si mesmo.

Ajustou os óculos e consultou a placa de bronze presa ao pedestal. Dizia:

“Alberto Malich, Fundador desta Universidade — 1222-1289 — Jamais Veremos Outro Igual”

Mas vão ver o mesmo, pensou ele. E se o tinham em tão alta estima, deveriam pelo menos ter contratado um escultor decente. Aquilo era uma desgraça. O nariz estava todo errado. Chamam aquela deformidade de perna? Os alunos também vinham escrevendo seus nomes na pedra. E ele jamais se deixaria ver morto num chapéu daqueles. Aliás, se pudesse, jamais se deixaria ver morto da maneira que fosse.

Albert mirou um raio octarina na estátua medonha e abriu um sorriso maligno ao detoná-la.

— Certo — disse para ninguém em especial. — Eu voltei.

O formigamento da magia lhe atravessou o braço e começou a aquecer sua mente. Durante todos aqueles anos, como ele havia sentido falta disso!

Ao som da explosão, os magos logo chegaram correndo pelas grandes portas duplas e de pronto tiraram a conclusão errada.

Ali estava o pedestal, vazio. Havia uma nuvem de pó de mármore sobre tudo. E, avançando para fora dela, murmurando para si próprio, encontrava-se Albert.

Os magos dos fundos começaram a fugir o mais rápido e silenciosamente possível. Não havia um deles que, a certa altura da juventude, não houvesse colocado um utensílio doméstico qualquer na cabeça do velho Albert ou esculpido seu nome em algum canto da anatomia indiferente da estátua, ou ainda derramado cerveja no pedestal. Pior era o que acontecia durante a Semana da Arruaça, quando a bebida corria depressa e a latrina parecia longe demais. Tudo isso parecera engraçadíssimo na hora. Agora, já não parecia mais.

Apenas duas criaturas continuaram para fazer frente à fúria da estátua, uma porque o manto ficara preso na porta e a outra porque na verdade se tratava de um macaco, e então podia ter uma postura tranqüila em relação aos assuntos humanos.

Albert agarrou o mago, que tentava desesperadamente atravessar a parede. O homem soltou um grito.

— Tudo bem, tudo bem. Eu confesso! Estava bêbado na ocasião, acredite, não era minha intenção, sinto muito, sinto tanto...

— Homem de Deus, do que está falando? — perguntou Albert, genuinamente intrigado.

— ... mas tanto, se eu tivesse de dizer o quanto, a gente...

— Pare de besteira!

Albert olhou o macaco, que lhe dirigia um sorriso amigo.

— Qual o seu nome?

— Sim, senhor. Vou parar, senhor. Agora mesmo, parar de besteira, senhor... Rincewind, senhor. Bibliotecário-Assistente, se não for problema para o senhor.

Albert olhou-o de cima a baixo. O sujeito tinha um aspecto amarrotado, feito roupa suja à espera de lavar. Ele decidiu que, se era àquele ponto que os magos haviam chegado, algo tinha de ser feito.

— Que tipo de bibliotecário teria você como assistente? — perguntou, irritado.

— Oook.

Uma espécie de luva de couro quente tentou segurar sua mão.

— Um gorila! Na minha universidade!

— Orangotango, senhor. Era mago mas foi atingido por um feitiço. Agora não quer ser transformado de volta e é o único que sabe onde ficam todos os livros — esclareceu Rincewind, às pressas. — Eu cuido das bananas dele — acrescentou, por achar que se fazia premente alguma explicação adicional.

Albert olhou para ele.

— Cale a boca.

— Calando a boca, agora mesmo, senhor.

— E me diga onde está o Morte.

— Morte, senhor? — alarmou-se Rincewind, recuando em direção à parede.

— Alto, esquelético, olhos azuis, anda como quem está sempre à caça, FALA ASSIM... o Morte. Não o viu por aí?

Rincewind engoliu em seco.

— Não, senhor.

— Bem, estou atrás dele. Esse absurdo precisa parar. Vou dar um basta nisso agora mesmo. Quero os oito magos mais antigos reunidos aqui em meia hora, com o equipamento necessário para realizar o Rito de AshkEnte, entendido? Não que ver vocês me dê alguma segurança. Bando de maricas... E pare de segurar minha mão!

— Oook.

— Agora vou ao bar — avisou Albert. — Será que ainda tem algum lugar decente que venda cerveja?

— Tem a Tambor — informou Rincewind.

— A Tambor Quebrado? Na Rua Filigrana? Ainda existe?

— Bem, às vezes mudam o nome e reformam, mas o lugar se encontra, ha... no mesmo lugar há anos. Imagino que o senhor esteja com sede — comentou Rincewind, com ar forçado de camaradagem.

— Por quê? — perguntou Albert, rispidamente.

— Por nada — tratou de responder Rincewind.

— Então vou à Tambor. Em meia hora, entendido? E se, quando eu voltar, não estiverem esperando por mim, ora, é melhor estarem!

Retirou-se da sala em meio a uma nuvem de pó de mármore. Rincewind observou-o sair. O bibliotecário segurou sua mão.

— Sabe o que é pior? — perguntou Rincewind.

— Oook?

— Nem me lembro de ter passado debaixo de escada.

Mais ou menos por volta da hora em que Albert se encontrava na Tambor Consertado discutindo com o dono sobre uma conta amarelecida que fora cuidadosamente passada de pai para filho, sobrevivendo a um regicidio, três guerras civis, 61 grandes incêndios, 490 assaltos e mais de 15 mil brigas de bar para sustentar o fato de que Alberto Malich ainda devia à gerência três moedas de cobre mais juros, agora eqüivalendo ao conteúdo de grande parte das maiores casas-fortes do Disco (o que mais uma vez prova que o comerciante ankhiano com uma conta não paga tem o tipo de memória que faria qualquer elefante pestanejar)... mais ou menos por volta dessa hora, Pituco deixava um rastro de vapor nos céus do misterioso continente de Klatch.

Bem abaixo, tambores vibravam nas selvas escurecidas e perfumadas, e colunas de névoa subiam de rios remotos, onde feras inomináveis se ocultavam à espera do jantar seguinte.

— Não tem mais de queijo, você vai ter de comer o de presunto — disse Ysabell. — Que claridade é aquela?

— São as Represas de Luz — informou Mort. — Estamos perto. Tirou a ampulheta do bolso e conferiu o nível da areia:

— Mas não perto o bastante, droga!

As Represas de Luz pareciam grandes poças de luz em direção ao Centro, que era exatamente o que eram. Algumas tribos haviam construído muros espelhados nas montanhas do deserto a fim de recolher a luz solar do Disco, que era lenta e ligeiramente pesada. Usavam-na como dinheiro.

Pituco planou sobre os acampamentos nômades e os silenciosos brejos do rio Tsort. Adiante, formas familiares começaram a se revelar.

— As pirâmides de Tsort ao luar! — exclamou Ysabell. — Que romântico!

— Agamassadas com o sangue de milhares de escravos — Observou Mort.

— Por favor, pare.

— Sinto muito, mas o lado prático da questão é que...

— Tudo bem, tudo bem, já entendi — irritou-se Ysabell.

— É trabalho demais só para enterrar rei morto — considerou Mort, ao circularem sobre uma das pirâmides mais baixas. — E enchem o lugar de conservantes, sabia? Para que o sujeito viva no mundo do além.

— Funciona?

— Aparentemente, não.

Mort se inclinou sobre o pescoço de Pituco.

— Tem tochas mais para lá — avisou. — Segure firme.

Uma procissão se afastava da rua das pirâmides, liderada por uma gigantesca estátua de Ofler, o Deus Crocodilo, carregada por uma centena de escravos suados. Totalmente despercebido, Pituco galopou sobre o cortejo e pousou no chão de terra batida à entrada da pirâmide.

— Armazenaram outro rei — disse Mort.

Ele novamente examinou a ampulheta à luz do luar. Parecia bem tosca, não era o tipo em geral associado à realeza.

— Não pode ser ele — advertiu Ysabell. — Só armazenam o rei quando já está morto, não é?

— Espero que sim, porque li que, antes de deixarem o corpo na conserva, arrancam...

— Não quero ouvir...

— ... todas as partes moles — concluiu Mort. — É melhor que a conservação não funcione. Imagine ter de viver sem o...

— Então você não veio pegar o rei — cortou Ysabell. — Quem será?

Mortimer se voltou para a entrada escura. Só seria fechada no alvorecer, para que a alma do rei morto pudesse sair. A pirâmide parecia profunda e agourenta, sugerindo propósitos consideravelmente mais terríveis do que, digamos, afiar uma faca.

— Vamos descobrir — disse.

— Olhem! Ele está voltando!

Os oito magos mais antigos da universidade se puseram em fila, tentaram desembaraçar as barbas e fizeram o vão esforço de parecer apresentáveis. Não foi fácil. Eles haviam sido arrancados de seus gabinetes, ou da degustação de uma aguardente em frente à lareira, ou da calma reflexão numa poltrona confortável, e todos estavam extremamente apreensivos e um tanto perplexos. Não conseguiam parar de olhar o pedestal vazio.

Apenas uma criatura poderia ter reproduzido a expressão de seus rostos, e seria o pombo que ouvisse dizer não só que lorde Nelson havia descido de sua coluna mas que também fora visto comprando arma e caixa de cartuchos.

— Ele já está no corredor! — gritou Rincewind, e se escondeu atrás de uma pilastra.

Os magos miraram as grandes portas duplas como se elas fossem explodir, o que mostra que eram adivinhos, porque de fato explodiram. Choveram lascas de madeira, e um pequeno vulto magricela emergiu contra a luz. Segurava um bastão fumegante numa das mãos. Na outra, trazia um sapo amarelo.

— Rincewind! — berrou Albert.

— Senhor!

— Dê sumiço nisso aqui.

O sapo subiu na mão de Rincewind e lhe dirigiu um olhar apologético.

— É a última vez que esse maldito dono de bar bate boca com um mago — disse Albert, com satisfação e aprumo. — Saio de cena por algumas centenas de anos e de repente as pessoas da cidade acham que podem responder aos magos.

Um dos magos seniores murmurou alguma coisa.

— O que foi? Fale alto!

— Como tesoureiro da universidade, devo dizer que sempre incentivamos a política da boa vizinhança com a comunidade — sussurrou o mago, tentando evitar o olhar penetrante de Albert.

Em sua consciência, pesavam um penico virado e três pichações indecentes a serem consideradas. Albert abriu a boca.

— Por quê? — perguntou.

— Bem, hã, por um sentimento de obrigação cívica, achamos que é de vital importância dar exempl... aaaiiii.

Em desespero, o mago tentou apagar as chamas da barba. Albert baixou a vara e correu lentamente os olhos pela fila de magos. Eles se desviavam do olhar como capim ao vento.

— Mais alguém quer mostrar sentimento de obrigação cívica? — indagou. — De boa vizinhança, talvez? — Ele se endireitou. — Pulhas covardes! Não fundei esta universidade para que vocês pudessem emprestar o cortador de grama! De que vale ter poder se não o exercemos? Se o sujeito não mostra respeito, não deixem sobrar da espelunca nem o suficiente para torrar castanhas, entenderam?

Algo como um leve suspiro surgiu em meio aos magos. Com pesar, os homens olharam o sapo na mão de Rincewind. Na juventude, a maioria deles dominara a arte de ficar terrivelmente bêbado na Tambor. É claro que isso fazia parte do passado, mas o jantar anual do Grêmio dos Mercadores aconteceria no salão superior da Tambor na noite seguinte, e todos os magos do oitavo nível tinham recebido convite. Haveria cisne assado, dois tipos de bolo e muitos brindes fraternos aos “nossos estimados, não, distintos convidados” até que fosse hora de os carregadores da faculdade aparecerem com os carrinhos de mão.

Albert avançou empertigado pela fileira de homens, vez por outra cutucando uma barriga com o bastão. Sua mente dançava. Voltar? Jamais. Aquilo era o poder, aquilo era viver! Ele desafiaria o antigo patrão e cuspiria em seu olho vazio.

Pelo Espelho Fumegante de Grism, vamos ter mudanças por aqui!

Os magos que estudavam história assentiram, constrangidos. Seria voltar ao chão de pedra, a acordar quando ainda estava escuro, a nada de álcool em nenhuma circunstância e à memorização dos verdadeiros nomes de tudo até que o cérebro rangesse.

— O que esse homem está fazendo?

O mago que vinha distraidamente vasculhado seu saco de tabaco deixou o cigarro cair dos dedos trêmulos. A bagana quicou ao atingir o chão, e todos os magos observaram-na rolar com olhos desejosos até Albert dar um passo adiante e esmagá-la.

Albert fez meia-volta. Rincewind, que o vinha seguindo como uma espécie de ajudante extra-oficial, quase deu um encontrão nele.

— Você! Rincewind! Fuma?

— Não, senhor! Vício nojento!

Rincewind evitou o olhar dos superiores. De repente se deu conta de que havia feito mais inimigos para o resto da vida, e não era consolo nenhum saber que isso provavelmente não duraria muito.

— Exatamente! Segure o bastão. Agora, seu bando de relapsos miseráveis, isso vai acabar, ouviram? Amanhã, ao raiar do dia, primeira coisa: três voltas no pátio e depois exercícios físicos aqui! E esse maldito macaco vai para o circo!

— Oook?

Vários dos magos mais velhos fecharam os olhos.

— Mas antes — disse Albert, baixando o tom de voz — vocês vão me fazer o favor de organizar o Rito de AshkEnte. Tenho alguns assuntos pendentes — acrescentou.

Mortimer avançava pelos corredores escuros da pirâmide, com Ysabell correndo em seu encalço. O leve brilho da espada iluminava coisas pavorosas. Offler, o Deus Crocodilo, era um anúncio de cosméticos comparado a alguns dos seres que o povo de Tsort venerava. Nas alcovas ao longo do caminho havia estátuas aparentemente construídas com todas as partes que Deus havia deixado de lado.

— Por que estão aqui? — sussurrou Ysabell.

— Os padres tsorteanos dizem que, quando a pirâmide se fecha, elas ganham vida e rondam os corredores para proteger o corpo do rei — explicou Mort.

— Que superstição horrível!

— Quem falou em superstição? — perguntou Mort, distraído.

— Ficam vivas mesmo?

— Só estou dizendo que, quando os tsorteanos jogam maldição num lugar, não brincam em serviço.

Mortimer dobrou um corredor e, por um momento terrível, Ysabell perdeu-o de vista. A garota saiu correndo pela escuridão e se chocou contra ele. Mortimer estava examinando um pássaro com cabeça de cachorro.

— Argh! — disse ela. — Não lhe dá calafrios?

— Não — respondeu Mortimer, impassível.

— Por que não?

— Porque sou mort.

Ele se virou, e ela viu os olhos brilharem como dois pontinhos azuis.

— Pare com isso!

— EU... NÃO CONSIGO.

Ela tentou rir. Não funcionou.

— Você não é o Morte — objetou ela. — Só está fazendo o trabalho dele.

— Morte é quem quer que faça o trabalho de Morte.

A longa pausa que se seguiu foi interrompida por um gemido mais adiante no corredor escuro. Mortimer se virou e correu para lá.

Ele está certo, pensou Ysabell. Mesmo o jeito de andar... Mas o medo das trevas se sobrepôs a quaisquer conjecturas e ela correu atrás dele, dobrando uma esquina e chegando ao que, sob o brilho intermitente da espada, parecia um misto de tesouro e sótão muito bagunçado.

— Que lugar é esse? — sussurrou ela. — Nunca vi tanta coisa!

— O REI LEVA PARA O ALÉM — informou Mort.

— Com certeza não gosta de viajar com pouca bagagem. Olhe, tem um barco inteiro. E uma banheira de ouro!

— Vai querer ficar limpo quando chegar lá.

— E todas essas estátuas!

— Sinto dizer que essas estátuas são gente. Servos do rei, entende?

O rosto de Ysabell endureceu.

— OS PADRES DÃO VENENO A ELES.

Do outro lado do cômodo abarrotado, veio outro gemido. Mortimer seguiu em direção ao som, avançando por sobre rolos de tapete, pencas de tâmara, caixas de louça e sacos de pedra preciosa. Obviamente o rei não havia conseguido decidir o que deixar para trás e resolvera agir com prudência e levar tudo.

— SÓ QUE NEM SEMPRE FUNCIONA RÁPIDO — acrescentou Mort, com tristeza.

Aos trancos, Ysabell seguiu-o e espiou por sobre a canoa, deparando-se com uma menina deitada numa pilha de cobertores. Ela vestia calça de algodão, um colete feito com material insuficiente e pulseiras bastantes para atracar um navio de bom tamanho. Havia uma mancha verde em torno da boca.

— Dói? — perguntou Ysabell, em voz baixa.

— Não. Eles acham que isso vai levá-los ao paraíso.

— E vai?

— Quem sabe? Talvez.

Mortimer tirou a ampulheta do bolso e inspecionou-a sob o brilho da espada. Pareceu contar para si mesmo e então, com um movimento súbito, jogou a ampulheta por sobre o ombro e trouxe a espada abaixo com a outra mão.

A sombra da menina sentou e se espreguiçou, com um leve tinido das jóias espectrais. Ela viu Mortimer e fez uma reverência com a cabeça.

— Meu senhor!

— NÃO SOU SENHOR DE NINGUÉM — rebateu Mort. — AGORA VÁ PARA ONDE QUER QUE ACREDITE ESTAR INDO.

— Vou ser concubina na paradisíaca corte do rei Zetesphut, que vai viver para sempre entre as estrelas — afirmou ela.

— Você não precisa ser isso — retrucou Ysabell. De olhos arregalados, a menina se virou para ela.

— Ah, preciso, sim. Estudei para isso — explicou, enquanto desaparecia de vista. — Até agora só consegui ser escrava.

Ela sumiu. Ysabell continuou olhando com desaprovação para o lugar em que a garota estivera.

— Bem — disse, afinal. — Viu o que ela estava usando?

— Vamos sair daqui.

— Mas não pode ser verdade essa história de o rei Sei-lá-Quem viver entre as estrelas — resmungou ela, enquanto procuravam à saída do quarto entupido. — Lá não tem nada.

— É DIFÍCIL EXPLICAR — considerou Mort. — ELE VAI VIVER ENTRE AS ESTRELAS NA PRÓPRIA CABEÇA.

— Com os escravos?

— SE É O QUE ACREDITAM SER.

— Não é justo.

— NÃO TEM JUSTIÇA — argumentou Mort. — SÓ NÓS.

Os dois se apressaram pelos corredores de almas expectantes e já estavam quase correndo quando irromperam no ar noturno do deserto. Arfante, Ysabell se encostou na parede de pedra.

Mort não estava sem fôlego.

Não estava respirando.

— VOU LEVÁ-LA AONDE QUISER — disse. — E VOCÊ FICA POR LÁ.

— Mas achei que quisesse salvar a princesa!

Mort sacudiu a cabeça.

— NÃO TENHO ESCOLHA. NÃO EXISTEM ESCOLHAS.

Ela correu adiante e agarrou-o pelo braço. Com suavidade, ele afastou a mão dela.

— Terminei o aprendizado.

— Está tudo na sua cabeça! — gritou Ysabell. — Você é o que que é!

Ela se deteve e olhou para baixo. A areia em volta dos pés de Mortimer estava começando a formar pequenos jatos e retorcidos demônios de areia.

Ouviu-se um estalo, e o ar ganhou uma textura viscosa. Mort ficou apreensivo.

— Alguém está realizando o Rito de Ash...

Um vento vindo como martelo do céu soprou a areia para uma espécie de cratera. Surgiu um chiado baixo e um cheiro de estanho aquecido.

Girando como em sonho, sozinho no centro tranqüilo do redemoinho, Mortimer olhou o vento de areia ao redor. Raios cortavam o turbilhão. Dentro de sua própria mente, tentava se libertar, mas algo o havia prendido, e ele não conseguiu resistir mais do que uma agulha de bússola conseguiria ignorar a pressão de apontar para o Centro.

Por fim, achou o que vinha procurando. Era um vão de porta cercado por luz octarina, que levava a um túnel curto. Do outro lado, havia vultos chamando por ele.

— JÁ VOU — disse, e então se virou, ao ouvir um barulho repentino atrás de si.

Setenta quilos de mulher lhe acertaram o peito, derrubando-o. Mort caiu com Ysabell a se ajoelhar sobre ele, segurando-o pelos braços.

— DEIXE-ME IR — ordenou ele. — FUI EVOCADO.

— Não você, idiota!

Ela fitou as poças azuis desprovidas de pupila. Era como olhar um túnel em movimento.

Mortimer dobrou o corpo e berrou uma praga tão antiga e terrível que, naquele campo mágico intenso, ela ganhou forma, bateu asas e voou para longe. Uma tempestade caiu sobre as dunas de areia.

Os olhos dele a arrastavam. Ela desviou o olhar antes de cair como pedra num poço de luz azul.

— EU EXIJO.

A voz de Mort poderia abrir buracos em rocha.

— Há anos papai tenta esse tom de voz comigo — disse ela, tranqüilamente. — Em geral, quando quer que eu arrume o quarto. Nunca funciona. — Mort soltou outro esconjuro, que caiu no chão e tentou se enfiar na areia.

— A DOR...

— Está tudo na sua cabeça — insistiu ela, lutando contra a força que tentava arrastá-los para o cintilante vão de porta. — Você não é o Morte. É só o Mort. Você é o que eu acho que é.

Em meio ao azulão dos olhos dele surgiram dois pontinhos castanhos, crescendo com enorme velocidade.

A tempestade à volta se acentuou. Mortimer soltou um grito.

Em poucas palavras, o Rito de AshkEnte evoca Morte. Os alunos do oculto sabem que é possível realizar o feitiço com umas poucas palavras mágicas, três pequenas lascas de madeira e quatro centímetros cúbicos de sangue de rato, mas nenhum mago que valha seu chapéu pontudo sequer sonharia em fazer algo tão simples. Eles sabem que, se a magia não envolver grandes velas amarelas, muitos incensos raros, círculos desenhados no chão com oito cores diferentes de giz e alguns caldeirões espalhados pelo lugar, então nem é digna de se cogitar.

Os oito magos a postos no grande octograma ritual se embalavam e cantavam, com os braços erguidos de lado, a tocar as mãos dos companheiros.

Mas alguma coisa estava dando errado. É verdade que uma névoa havia se formado no centro do octograma, mas ela se contorcia, recusando-se a firmar.

— Mais força! — gritou Albert. — Joguem mais força!

Por um instante, surgiu um vulto na fumaça, de manto negro, segurando uma espada reluzente. Albert praguejou ao entrever o rosto pálido sob o capuz: não era pálido o bastante.

— Não! — gritou, entrando no octograma e batendo no vulto tremeluzente. — Você, não. Você, não...

E, no distante Tsort, Ysabell esqueceu que era dama, fechou a mão, apertou os olhos e deu um soco no queixo de Mortimer. O mundo à volta explodiu...

Na cozinha da Casa das Costelas de Harga, a frigideira caiu no chão, afugentando os gatos...

No salão da Universidade Invisível, tudo aconteceu de uma só vez[9].

A tremenda força que os magos vinham depositando no redemoinho de sombras de repente ganhou nitidez. Como a relutante rolha de uma garrafa, como o catchup a cair do vidro do Infinito, Morte pousou no octograma e praguejou.

Tarde demais Albert se deu conta de que estava dentro do anel encantado e tentou se afastar para a beira. Mas os dedos esqueléticos lhe pegaram a ponta do manto.

Os magos que ainda se encontravam de pé — e conscientes — ficaram um tanto surpresos ao ver que Morte estava usando avental e segurando um gatinho.

— Por que você tinha DE ESTRAGAR TUDO?

— Estragar tudo? O senhor já viu o que o garoto fez? — rebateu Albert, ainda tentando alcançar a beira do anel.

Morte levantou a caveira e cheirou o ar.

O ruído se sobrepôs a todos os outros sons do salão e levou-os ao silêncio.

Era o tipo de ruído que se ouve às margens crepusculares dos sonhos, desses dos quais acordamos suando frio de horror. Era a fungadela atrás da porta do medo. Era como a fungadela de um porco-espinho, mas nesse caso trata-se de uma espécie de porco-espinho que achata caminhões. Era o tipo de ruído que não gostaríamos de ouvir duas vezes, que não gostaríamos de ouvir uma vez.

Devagar, Morte se endireitou.

— É ASSIM QUE ELE RETRIBUI MINHA GENEROSIDADE? ROUBANDO MINHA FILHA, INSULTANDO OS EMPREGADOS E PONDO EM RISCO A TRAMA DA REALIDADE POR UM CAPRICHO PESSOAL? AH, COMO FUI BURRO!

— Patrão, se o senhor puder soltar o meu manto... — começou Albert, e se deu conta do tom de súplica que antes não existia em sua voz.

Morte ignorou-o. Estalou os dedos como castanholas, e o avental amarrado à cintura explodiu em chamas breves. O gatinho, entretanto, ele botou no chão com bastante cuidado, afastando-o com o pé.

— ENTÃO NÃO DEI A ELE A MAIOR DAS OPORTUNIDADES?

— Exatamente, senhor. E agora se puder largar...

— TREINAMENTO... UMA CARREIRA BEM ESTRUTURADA... PERSPECTIVA... O EMPREGO DE SUA VIDA...

— Isso mesmo. E se o senhor puder...

A mudança na voz de Albert era total. As trombetas da autoridade tinham virado flautins de súplica. Ele parecia realmente apavorado, mas conseguiu chamar a atenção de Rincewind e sussurrar:

— O BASTÃO! JOGUE O MEU BASTÃO! QUANDO ELE ESTÁ NO CÍRCULO, NÃO É INVENCÍVEL! PASSE O BASTÃO, E PODEREI ME LIBERTAR!

Rincewind disse:

— Perdão?

— Ah, é minha culpa por ceder a essas fraquezas do que por falta de palavra melhor devo chamar de carne!

— O bastão, imbecil, o bastão! — irritou-se Albert.

— O quê?

— Obrigado, meu servo, por me prevenir — agradeceu Morte.

— NÃO PERCAMOS MAIS TEMPO.

— O bast...! O bast...!

Houve uma implosão e um fluxo de ar. Por um instante, as chamas das velas se estenderam como linhas de fogo, depois apagaram.

O tempo passou.

Então, de algum lugar do chão, veio a voz do tesoureiro:

— Rincewind, foi muito indelicado da sua parte perder o bastão dele assim. Lembre-me de puni-lo severamente um dia desses. Alguém tem luz?

— Não sei o que aconteceu! Só deixei a vara apoiada ali na pilastra e...

— Oook.

— Ah — soltou Rincewind.

— Banana extra, esse macaco... — reclamou o tesoureiro, com indiferença.

Alguém riscou um fósforo e conseguiu acender uma vela. Os magos começaram a se levantar.

— Bem, foi uma lição para todos nós — continuou o tesoureiro, batendo a poeira e a cera do manto.

Ele olhou para cima, esperando ver a estátua de Alberto Malich de volta ao pedestal.

— É evidente que até as estátuas têm sentimentos — afirmou. — Quando eu era calouro, lembro-me de escrever meu nome na... bem, não importa. A questão é a seguinte: aqui e agora proponho substituirmos a estátua.

A sugestão foi recebida com um silêncio mortal.

— Digamos que uma cópia em ouro. Devidamente adornada com pedras preciosas, como condiz ao grande fundador — prosseguiu ele, inflamado. — E para termos certeza de que nenhum aluno venha a destruí-la, vamos erigi-la no mais distante dos porões. E então trancar a porta — acrescentou.

Vários magos começaram a se animar.

— E jogar fora a chave? — propôs Rincewind.

— E soldar a porta — concordou o tesoureiro.

Ele havia acabado de se lembrar da Tambor Consertado. Pensou por um momento e também se lembrou da regulamentação de exercícios físicos.

— E empedrar a porta — sugeriu. Houve uma saraivada de palmas.

— E jogar fora o pedreiro! — alegrou-se Rincewind, achando que já estava pegando o jeito do negócio. — o tesoureiro o encarou, mal-humorado.

— Não precisa se animar! — disse.

No silêncio, uma duna de areia maior do que as outras se curvou e então tombou para revelar Pituco, soprando areia das narinas e sacudindo a crina.

Mortimer abriu os olhos.

Deveria existir uma palavra para descrever o breve instante em que acabamos de acordar, quando a mente ainda se encontra cheia de um nada cálido e rosado. Ficamos completamente esvaziados de pensamentos, exceto pela crescente suspeita de que vindo em nossa direção, como um saco de areia molhada num beco escuro, estão todas as coisas das quais preferiríamos não nos lembrar e que se resumem ao fato de que o único alívio no terrível futuro é a certeza de que ele será curto.

Mortimer se sentou e pôs as mãos no alto da cabeça, a fim de fazê-la parar de rodar.

A areia ao lado se ergueu, e Ysabell também se sentou. O rosto estava sujo do pó da pirâmide e o cabelo se encontrava cheio de areia. Alguns fios pareciam encrespados na ponta. Apática, ela o encarou.

— Você bateu em mim? — indagou ele, examinando o queixo.

— Bati.

— Ah.

Ele olhou para cima, como se o céu pudesse lembrá-lo das coisas. Recordou que era preciso estar em algum lugar. Então se lembrou de outra coisa.

— Obrigado — disse.

— Sempre às ordens.

Ysabell se pôs de pé e tentou tirar o pó e as teias de aranha do vestido.

— Vamos salvar sua princesa? — perguntou ela, hesitante.

A realidade interior e pessoal de Mortimer sobreveio. Ele se levantou com um gemido abafado, viu fogos de artifício azuis espocarem diante dos olhos e caiu novamente. Ysabell pegou-o por baixo dos ombros e suspendeu-o outra vez.

— Vamos ao rio — disse. — Beber água vai nos fazer bem.

— O que aconteceu comigo?

Ela encolheu os ombros o melhor que pôde enquanto sustentava o peso dele.

— Alguém usou o Rito de AshkEnte. Papai detesta, diz que só o evocam nas horas mais inconvenientes. A sua parte que era Morte foi e você ficou para trás. Eu acho. Pelo menos voltou a falar com a própria voz.

— Que horas são?

— A que horas você disse que os padres fecham a pirâmide?

Mortimer voltou os olhos marejados para o sepulcro do rei.

De fato, alguns dedos iluminados à vela mexiam na porta. De acordo com a lenda, logo os guardiães ganhariam vida e começariam a infindável patrulha.

Ele sabia que sim. De repente, lembrou-se de todo o conhecimento. Lembrou-se de se sentir frio como gelo e ilimitado feito o céu noturno. Lembrou-se de ser convocado à existência no instante em que a primeira criatura nascera, na certeza de que sobreviveria à vida até que o último ser do universo sucumbisse, quando então, metaforicamente falando, seria sua função pôr as cadeiras sobre as mesas e apagar todas as luzes.

Lembrou-se da solidão.

— Não me deixe — pediu, apreensivo.

— Eu estou aqui — assegurou ela. — Pelo tempo que precisar de mim.

— É meia-noite — disse ele, desanimado, ajoelhando-se às margens do Rio Tsort e baixando a cabeça dolorida até a água.

Do lado, surgiu um barulho como de uma banheira se esvaziando. Pituco estava bebendo.

— Quer dizer que é tarde demais?

— Isso mesmo.

— Sinto muito. Eu gostaria de poder fazer alguma coisa.

— Mas não pode.

— Pelo menos você cumpriu sua promessa ao Albert.

— É — assentiu Mort, com amargor. — Pelo menos fiz isso. Quase toda a distância de um lado a outro do Disco... Deveria existir uma palavra para descrever a microscópica centelha de esperança que não ousamos nutrir com medo de que o simples ato de reconhecê-la a faça desaparecer, como tentar olhar um fóton. Só podemos passar por ela, olhando de soslaio, esperando que cresça o suficiente para enfrentar o mundo.

Ele suspendeu a cabeça encharcada e olhou em direção ao horizonte crepuscular tentando lembrar o grande modelo do Disco no gabinete de Morte sem deixar o mundo saber o que vinha tramando.

Nessas horas, parece que o acaso é tão fragilmente equilibrado que o mero pensamento pode estragar tudo.

Ele se norteou pelos finos raios das luzes do Centro a dançar contra as estrelas e fez uma estimativa acertada de que Sto Lat ficava... lá...

— Meia-noite — gritou.

— Já passou da meia-noite — advertiu Ysabell.

Mortimer se levantou, tentando não deixar a alegria irradiar dele como um farol, e pegou os arreios de Pituco.

— Vamos — chamou. — Não temos muito tempo.

— Do que está falando?

Mortimer estendeu o braço para ajudá-la a sentar atrás dele. Foi um ato generoso, mas quase o fez cair da sela. Com delicadeza, Ysabell empurrou-o de volta e montou sozinha. Ao sentir o entusiasmo de Mortimer, Pituco avançou de lado, relinchou e bateu as patas na areia.

— Eu perguntei do que está falando.

Mortimer virou o cavalo para o remoto brilho crepuscular.

— Da velocidade da noite — respondeu.

Cortabem esticou a cabeça por sobre as ameias do palácio e gemeu. A interface estava a apenas uma rua de distância, notadamente visível em octarina, e ele nem teve de imaginar o chiado. Pôde ouvir o barulho elétrico e desagradável produzido à medida que partículas aleatórias de possibilidade atingiam a interface e soltavam sua energia como som. Ao avançar pela rua, o muro perolado engolia bandeiras, tochas e a multidão à espera, deixando apenas ruas escuras. Em algum lugar ao longe, pensou Cortabem, estou dormindo na minha cama e nada disso aconteceu. Sorte minha!

Ele se agachou, desceu a escada de mão até o piso da torre e voltou ao salão principal com as abas do manto esvoaçando ao redor dos tornozelos. Passou pelo pequeno portão dos fundos e pediu aos guardas para trancá-lo, então suspendeu as abas mais uma vez e disparou por um corredor lateral para que os convidados não o notassem.

O salão estava iluminado por milhares de velas e abarrotado de autoridades da Planície Sto, a maioria das quais ligeiramente incerta do motivo de se encontrar ali. E, obviamente, havia o elefante.

Foi o elefante que convenceu Cortabem de que ele havia fugido às raias da sanidade, mas parecera uma ótima idéia algumas horas antes, quando seu desespero em relação à fraca visão do sumo sacerdote lhe trouxe a recordação de que um moinho na fronteira da cidade possuía o dito animal para a carga mais pesada. O paquiderme era velho, tinha artrite e temperamento instável, mas possuía uma importante vantagem como vítima de sacrifício: o sumo sacerdote com certeza o enxergaria.

Seis guardas tentavam dominar o bicho, a cujo cérebro já ocorrera que deveria estar no familiar estábulo, com muita água, comida e tempo para sonhar com os dias ensolarados das grandes planícies caqui de Klatch. Estava cada vez mais indócil.

Logo vai ficar patente que outra razão para sua crescente euforia é o fato de que, na confusão anterior ao ritual, ele havia enfiado a tromba no cálice cerimonial, que continha um galão de vinho forte, e bebido tudo. Idéias estranhas começavam a passear diante de seus olhos incrustados: baobás tombados, lutas de acasalamento com outros machos, gloriosas debandadas por aldeias nativas e outros prazeres vagamente recordados. Logo, logo ele vai começar a ver pessoas cor-de-rosa.

Por sorte, de nada disso sabia Cortabem, que chamou a atenção do assistente do sumo sacerdote — um rapaz dedicado que tomara a precaução de vestir um grande avental de borracha e botas impermeáveis — e fez sinal de que a cerimônia deveria começar.

Voltou correndo para o quarto de vestir do sacerdote e se enfiou no manto especial que a costureira do palácio havia feito para ele, vasculhando o fundo da cesta de costura atrás de pedaços de renda, lantejoulas e linhas de ouro a fim de criar uma roupa de tanto mau gosto que o arquichanceler da Universidade Invisível não teria vergonha de usar. Cortabem se permitiu cinco segundos para admirar a si mesmo no espelho antes de enterrar o chapéu pontudo na cabeça e disparar até a porta, detendo-se a tempo de surgir no salão no ritmo tranqüilo das pessoas abastadas.

Chegou onde estava o sumo sacerdote quando Keli já começava a avançar pelo corredor central, ladeada por criadas que se agitavam em torno dela como rebocadores à volta de um navio.

Apesar das imperfeições do vestido herdado, Cortabem achou que ela estava bonita. Havia algo na princesa que o fazia...

Ele cerrou os dentes e tentou se concentrar nas medidas de segurança. Havia deixado guardas na sala, em vários pontos de observação, para o caso de o duque de Sto Helit tentar alguma alteração de última hora da sucessão real, e se lembrou de ficar, ele próprio, de olho no duque, que estava sentado na fileira da frente com um estranho sorriso calmo no rosto. O duque mirou Cortabem, e o mago desviou o olhar.

O sumo sacerdote ergueu as mãos em pedido de silêncio. Quando se virou para o Centro e, com voz estridente, deu início à invocação dos deuses, Cortabem foi até ele e então deixou os olhos se voltarem para o duque.

— Ouçam-me, hum, ó deuses...

Por acaso, Sto Helit estava olhando o breu infestado de morcegos nos caibros do telhado?

— ... Ouça-me, ó Cego Io dos Cem Olhos. Ouça-me, ó Grande Offler da Boca Cheia de Pássaros. Ouça-me, ó Clemente Destino. Ouça-me ó Inabalável, hum, Sina. Ouça-me, ó Sek das Sete Mãos. Ouça-me, ó Hoki das Florestas. Ouça-me, ó...

Horrorizado, Cortabem se deu conta de que, a despeito de todas as instruções dadas, o idiota do velho mencionaria a categoria inteira. Havia mais de novecentos deuses conhecidos no Disco, e teólogos pesquisadores descobriam mais a cada ano. Aquilo poderia levar horas. A congregação já começava a se aborrecer.

Keli estava de frente para o altar, exalando ódio. Cortabem cutucou o sumo sacerdote na altura das costelas, o que não surtiu nenhum efeito aparente, e então mexeu as sobrancelhas com veemência para o assistente.

— Faça com que ele pare! — sussurrou. — Não temos tempo!

— Os deuses ficariam chateados...

— Não tão chateados quanto eu, e eu estou aqui!

O assistente estudou a fisionomia de Cortabem e por fim decidiu que seria melhor explicar aos deuses mais tarde. Cutucou o ombro do sumo sacerdote e sussurrou alguma coisa em seu ouvido.

— ... ó Steikhegel, deus dos, hum, estábulos de vacas. Ouça-me, ó... sim? O quê?

Cochicho, cochicho.

— Isso vai contra as, hum, regras. Muito bem, podemos ir direto ao, hum, Sermão da Linhagem.

Cochicho, cochicho.

O sumo sacerdote lançou um olhar mal-humorado para Cortabem, ou ao menos para onde imaginava que Cortabem se encontrava.

— Ah, tudo bem. Hum, prepare o incenso e os aromas para a Penitência da Via Quádrupla.

Cochicho, cochicho.

O rosto do sumo sacerdote endureceu.

— Imagino que uma prece curta, hum, esteja fora de questão? — perguntou, com mordacidade.

— Se algumas pessoas não se apressarem — ameaçou Keli —, vai ter confusão.

Cochicho.

— Não sei — disse o sumo sacerdote. — Era melhor não ter nenhuma cerimônia religiosa. Então traga a droga do elefante.

O assistente dirigiu um olhar desatinado a Cortabem e acenou para os guardas. Enquanto eles incitavam o vagaroso animal adiante com gritos e varas pontudas, o assistente se dirigiu até Cortabem e lhe entregou alguma coisa.

O mago olhou para baixo. Era um chapéu impermeável.

— Tem necessidade disso?

— Ele é muito ortodoxo — respondeu o assistente. — Talvez a gente precise de um tubo de respiração.

O elefante alcançou o altar e, sem muita dificuldade, foi levado a se ajoelhar. Soltou um soluço.

— Bem, então onde está o bicho? — perguntou o sumo sacerdote. — Vamos acabar com essa, hum, farsa!

O assistente cochichou. O sumo sacerdote fez que sim com a cabeça, pegou a faca sacrificial de punho branco e ergueu-a sobre a cabeça com as duas mãos. Toda a sala observava, de respiração presa. Então ele a baixou.

— Na minha frente, onde?

Cochicho.

— Meu rapaz, com certeza não preciso de sua ajuda! Há setenta anos sacrifico homens, meninos, mulheres e, hum, animais. Quando eu não souber mais usar a faca, pode me dar uma pazada na cabeça!

E investiu a lâmina num golpe violento que, por mera sorte, provocou uma ferida superficial na tromba do elefante.

O animal despertou da agradável letargia reflexiva e guinchou. Apavorado, o assistente se virou, dando de cara com os dois minúsculos olhos injetados a se comprimirem no alto da tromba enfurecida, e deixou o altar num salto vertical.

O elefante estava furioso. Vagas recordações lhe inundaram a cabeça dolorida: incêndios, gritos, homens com redes, jaulas, lanças e anos a fio puxando pesados troncos de árvore. Ele golpeou a pedra do altar com a tromba — e, para surpresa sua, partiu-a em duas — , suspendeu as duas partes com os dentes, em vão tentou extirpar uma coluna de pedra do chão e depois, sentindo uma súbita necessidade de ar fresco, começou a avançar “artriticamente” pelo salão.

Na corrida desenfreada, acertou a porta — com o sangue fervilhando ao chamado do rebanho e chiando sob efeito do álcool — e arrancou-a pelas dobradiças. Trazendo o batente nos ombros, correu pelo jardim, destruiu os portões, arrotou, percorreu a cidade adormecida e ainda avançava a passos lentos quando farejou o distante continente de Klatch na brisa noturna e, de rabo em riste, seguiu o antigo chamado de casa.

No salão, havia poeira, gritos e confusão. Cortabem levantou o chapéu que lhe cobria o olho e conseguiu ficar de quatro.

— Obrigada — disse Keli, que estivera deitada debaixo dele. — Por que pulou em cima de mim?

— Meu primeiro impulso foi protegê-la, Sua Majestade.

— Pode ter sido impulso, mas...

Ela começou a dizer que talvez o elefante tivesse pesado menos, mas o grande rosto sério e corado dele fez com que parasse.

— Falamos disso depois — decidiu, sentando-se e batendo o pó da roupa. — Agora acho melhor cancelarmos o sacrifício. E ainda não sou Sua Majestade, só Sua Alteza. Será que alguém pode trazer a coroa...?

Ouviu-se o som de um gatilho pouco atrás.

— Mago, bote as mãos onde eu possa ver — ordenou o duque. Devagar, Cortabem se levantou e deu meia-volta. O duque estava escorado por seis homens grandes e sérios, homens cuja única função na vida é ficar atrás de indivíduos como o duque. Eles tinham seis arcos grandes e poderosos, com o único propósito de parecer estarem a ponto de disparar.

A princesa se pôs de pé e avançou para o tio, mas Cortabem a segurou.

— Não — contestou, baixinho. — Esse não é o tipo de homem que amarra a pessoa num porão com tempo suficiente para que os ratos comam as cordas antes que o nível da água suba. É o tipo de homem que mata aqui e agora.

O duque se inclinou.

— Acho que podemos dizer que os deuses se pronunciaram — avaliou. — Sem dúvida, a princesa foi tragicamente esmagada pelo elefante desgarrado. O povo vai ficar triste. Eu mesmo decretarei uma semana de luto.

— Você não pode fazer isso, todos os convidados viram...! — começou a princesa, à beira das lágrimas.

Cortabem sacudiu a cabeça. Era possível divisar os guardas andando pela multidão desnorteada.

— Não viram, não — lamentou o mago. — Você ficaria surpresa com a quantidade de coisas que eles não viram. Principalmente quando aprenderam que ser tragicamente esmagado por elefantes desgarrados pode ser contagioso. Até na cama se pode morrer disso.

O duque riu com satisfação.

— Você é bem inteligente para um mago — disse. — Só vou propor sua expulsão...

— Você não vai escapar impunemente — reagiu Cortabem. Ele pensou por um instante e acrescentou:

— Bem, é provável que escape impunemente, mas vai se arrepender no seu leito de morte e vai desejar ter...

Parou de falar. A boca se abriu.

O duque se virou para seguir o olhar.

— Ora, mago. O que foi que você viu?

— Não vai escapar — gritou Cortabem, histericamente. — Não vai nem estar aqui. Nada disso vai ter acontecido, entende?

— Fiquem de olho nas mãos dele — berrou o duque. — Se mexer os dedos, atirem.

Intrigado, correu os olhos à volta. O mago parecera sincero. Era de conhecimento geral que os magos viam coisas que não existem...

— Não tem importância nem se você me matar — murmurou Cortabem —, porque amanhã vou acordar na minha cama e nada disso vai ter acontecido. Já atravessou a parede!

A noite avançava pelo Disco. Obviamente, ela nunca saía dali, escondida em sombras, buracos e porões, mas, à medida que a vagarosa luz do dia se retirava com o Sol, as poças de noite se espalhavam, encontravam-se e se fundiam. No Discworld, a luz anda devagar por causa de seu imenso campo mágico. Nesse mundo, ela é diferente. Já cresceu, tem experiência e não sente necessidade de sair correndo para todo lado. A luz sabe que, por mais rápido que ande, a escuridão sempre chega primeiro, então é melhor ir com calma.

A meia-noite pairava sobre a terra como um morcego aveludado. E, mais rápido do que ela, Pituco — uma minúscula centelha contra o mundo escuro do Disco — galopava pouco atrás. Faíscas saltavam dos cascos. Os músculos se moviam sob a pele reluzente feito cobras banhadas em óleo.

Eles seguiam em silêncio. Ysabell tirou um braço da cintura de Mortimer e viu fagulhas das oito cores do arco-íris saltarem ao redor dos dedos. Pequenos raios crepitantes de luz lhe corriam pelo braço e brilhavam na ponta dos cabelos.

Mortimer baixou o cavalo, deixando um rastro fumegante de nuvem a se estender por quilômetros.

— Agora sei que estou enlouquecendo — murmurou ele.

— Por quê?

— Acabo de ver um elefante ali. Ô rapaz — disse, acalmando Pituco. — Olhe, dá para avistar Sto Lat mais adiante.

Por sobre o ombro dele, Ysabell espiou o distante brilho de luz.

— Quanto tempo temos? — perguntou, nervosa.

— Não sei. Talvez alguns minutos.

— Mort, eu não perguntei antes, mas...

— O quê?

— O que vai fazer quando chegar?

— Não sei — admitiu ele. — Eu esperava que surgisse alguma idéia na hora.

— E surgiu?

— Não. Mas ainda não chegou a hora. O feitiço de Albert talvez ajude. E eu...

A abóbada da realidade estava se fechando sobre o palácio como uma água-viva. A voz de Mortimer se perdeu num silêncio apavorado. Então Ysabell disse:

— Bem, acho que está quase na hora. O que vamos fazer?

— Segure firme!

Pituco galgou os portões destroçados do palácio, cruzou o jardim numa trilha de centelhas e saltou pelo destroçado vão da porta do salão. O muro perolado da interface surgiu adiante e foi atravessado como um jato frio de spray.

Confuso, Mortimer viu Keli, Cortabem e um grupo de homens parrudos se abaixarem. Reconheceu os traços do duque e sacou a espada, descendo da sela tão logo o cavalo parou.

— Não encoste nem um dedo nela! — gritou. — Ou corto fora sua cabeça!

— É tudo muito impressionante — disse o duque, sacando a própria espada.

— É tudo uma grande tolice. Eu...

Ele se deteve. Os olhos rolaram. Ele caiu para frente. Cortabem baixou o grande candelabro de prata que segurava e sorriu para Mortimer.

Mortimer se virou para os seguranças, com o raio azul da espada de Morte a zunir pelo ar.

— Mais alguém? — perguntou.

Todos recuaram, deram meia-volta e saíram correndo. Ao passarem pela interface, desapareceram. Também não havia mais nenhum convidado do outro lado. Na realidade verdadeira, a sala estava vazia e escura.

Os quatro se viram sozinhos num hemisfério que ficava cada vez menor.

Mort se dirigiu até Cortabem.

— Alguma idéia? — perguntou. — Tenho um feitiço mágico em algum lugar aqui...

— Esqueça. Se eu tentar mágica agora, vai estourar nossas cabeças. Essa realidadezinha é pequena demais para suportá-la.

Mortimer sentou nos destroços do altar. Sentia-se vazio, esgotado. Por um momento, estudou o muro da interface a se aproximar. Ele sobreviveria àquilo, e Ysabell também. Aquele Cortabem não sobreviveria, mas com certeza um outro. Só Keli...

— Vou ser coroada ou não? — indagou ela, com frieza. — Tenho de morrer rainha! Seria um horror estar morta e comum!

Mortimer lhe, dirigiu um olhar vago, tentando lembrar do que ela estava falando. Ysabell vasculhou as ruínas atrás do altar e surgiu com um ornato de ouro um tanto amassado, enfeitado com pequenos diamantes.

— É isso aqui? — perguntou.

— É a coroa, sim — respondeu Keli, a um passo das lágrimas. — Mas não tem padre nem nada.

Mort suspirou.

— Cortabem, se essa é nossa própria realidade, podemos reorganizá-la como bem entendermos, não é?

— Aonde quer chegar?

— Agora você é padre. Designe seu próprio deus. Cortabem fez uma reverência e pegou a coroa de Ysabell.

— Vocês estão debochando de mim! — irritou-se Keli.

— Desculpe — pediu Mort. — Foi um dia longo.

— Espero saber fazer isso — disse Cortabem, com seriedade. — Nunca coroei ninguém.

— E eu nunca fui coroada!

— Ótimo — decidiu Cortabem, apaziguadoramente. — Podemos aprender juntos.

Então começou a murmurar umas palavras difíceis em língua desconhecida. Na verdade, tratava-se de um feitiço bastante simples para tirar pulga de roupa, mas ele pensou, e daí? Depois pensou, meu Deus, nessa realidade eu sou o mago mais poderoso que existe, é algo para se contar aos NET... Cerrou os dentes. Com certeza, haveria algumas alterações naquela realidade.

Ysabell sentou ao lado de Mort e lhe deu a mão.

— Então? — perguntou, baixinho. — Chegou a hora. Alguma idéia?

— Não.

A interface já se encontrava na metade da sala, desacelerando ao vencer inexoravelmente a pressão da realidade invasora.

Um ar quente e molhado soprou no ouvido de Mort. Ele estendeu o braço e tocou o focinho de Pituco.

— Meu bom cavalo — disse. — E não tenho nenhum torrão de açúcar para você. Vai ter de achar o caminho de casa sozinho...

A mão se deteve em pleno ar.

— Podemos ir rodos para casa — sugeriu.

— Acho que papai não gostaria muito disso — advertiu Ysabell, mas Mort a ignorou.

— Cortabem!

— Quê?

— Estamos indo. Você vem? Sei que você ainda vai existir quando a interface se fechar...

— Uma parte de mim vai — assentiu o mago.

— Foi o que eu quis dizer — respondeu Mort, montando em Pituco.

— Mas falando pela parte que não vai, eu gostaria de acompanhá-los — tratou de ressalvar Cortabem.

— Quero ficar aqui e morrer no meu reino — objetou Keli.

— O que você quer não importa — rebateu Mort. — Viajei o Disco todo para salvá-la, entende? E você vai ser salva.

— Mas eu sou rainha! — retrucou Keli.

A incerteza se insinuou em seus olhos, e ela se virou para Cortabem, que abaixou o candelabro, cheio de culpa.

— Você disse! Eu sou rainha, não sou?

— Ah, é — respondeu Cortabem, instantaneamente. E então, porque a palavra de um mago deve ser firme como ferro fundido, acrescentou: — E não pode se contaminar por nada.

— Cortabem! — chamou Mort.

O mago assentiu, pegou Keli pela cintura e botou-a no lombo de Pituco. Levantando o manto, subiu atrás de Mortimer e puxou Ysabell para que se agarrasse às suas costas. O cavalo se agitou um pouco, reclamando da sobrecarga, mas Mortimer virou-o para o vão da porta e impeliu-o adiante.

A medida que avançavam pela sala, galgavam o jardim e levantavam vôo, a interface os acompanhava. A névoa perolada se encontrava a apenas alguns metros de distância, fechando-se centímetro a centímetro.

— Com licença — disse Cortabem para Ysabell, levantando o chapéu pontudo. — Ígneo Cortabem, mago do primeiro grau, ex-reconhecedor real e provavelmente prestes a ser decapitado. A senhorita, por acaso, sabe para onde estamos indo?

— Para a terra do meu pai — gritou Ysabell, mais alto que o barulho do vento.

— Eu o conheço?

— Acho que não. Você se lembraria.

As patas de Pituco rasparam no alto do muro palaciano, quando, com os músculos retesados, o cavalo tentou ganhar mais altura. Cortabem se virou novamente para trás, segurando o chapéu.

— Quem é o cavalheiro de que falamos? — berrou.

— Morte — respondeu Ysabell.

— Não...

— Sim.

— Ah.

Cortabem olhou de esguelha para os telhados distantes e abriu um sorriso torto para ela.

— Eu economizaria tempo se saltasse agora?

— Ele é muito simpático quando você o conhece — defendeu Ysabell.

— É mesmo? Será que vamos ter oportunidade?

— Segurem! — gritou Mort. — Logo devemos atravessar... Um buraco negro surgiu do céu e os engoliu.

A interface oscilou indecisa, vazia como bolso de pobre, e continuou encolhendo.

A porta da frente se abriu. Ysabell enfiou a cabeça para fora.

— Não tem ninguém — avisou. — É melhor vocês entrarem. Os outros três marcharam para o vestíbulo. Escrupuloso, antes Cortabem limpou os pés.

— É meio pequeno — avaliou Keli.

— É bem maior por dentro — advertiu Mort, e se virou para Ysabell. — Olhou todos os cômodos?

— Não achei nem Albert — respondeu ela. — Que eu me lembre, ele nunca saiu de casa.

Ela tossiu, lembrando suas obrigações de anfitriã.

— Alguém aceita uma bebida? — perguntou. Keli a ignorou.

— Eu esperava pelo menos um castelo — disse. — Grande e negro, com imensas torres escuras. Não um cabide para guarda-chuvas..

— Tem uma foice pendurada — argumentou Mort.

— Que tal nos sentarmos um pouco no gabinete? Tenho certeza de que vamos nos sentir melhor — propôs Ysabell, e abriu a porta de baeta preta.

Cortabem e Keli entraram. Ysabell agarrou o braço de Mortimer.

— O que vamos fazer agora? — perguntou. — Papai vai ficar possesso se encontrá-los aqui.

— Vou pensar em alguma coisa — disse Mort. — Reescrever as biografias ou algo assim... — Ele abriu um sorriso desanimado. — Não se preocupe. Vou pensar em alguma coisa.

A porta se fechou. Mortimer deu meia-volta e se deparou com o rosto sorridente de Albert.

Atrás da mesa, a grande cadeira de couro se virou lentamente. Morte encarou Mortimer por sobre os dedos esqueléticos. Quando teve certeza de que recebera a atenção horrorizada de todos, disse:

— É MELHOR COMEÇAR AGORA.

Ele se levantou, parecendo crescer à medida que o gabinete escurecia.

— NÃO PRECISA PEDIR DESCULPA — acrescentou.

Keli enterrou a cabeça no tórax avantajado de Cortabem.

— ESTOU DE VOLTA. E ESTOU COM RAIVA.

— Mestre, eu... — começou Mort.

— CALE A BOCA — cortou Morte.

Ele chamou Keli com o dedo indicador. A princesa se virou para olhá-lo, sem ousar desobedecer.

Morte estendeu o braço e lhe tocou o queixo. Mort levou a mão à espada.

— É ESTE O ROSTO CAPAZ DE LANÇAR MIL NAVIOS AO MAR E INCENDIAR AS TORRES DE PSEUDÓPOLIS? — perguntou Morte.

Hipnotizada, Keli fitava os pontinhos vermelhos a quilômetros de profundidade nas órbitas oculares escuras.

— Hã, com licença — pediu Cortabem, respeitosamente segurando o chapéu.

— SIM? — disse Morte, distraído.

— Não é, não. O senhor deve estar pensando em outro rosto.

— Qual é o seu nome?

— Cortabem, senhor. Sou mago, senhor.

— SOU MAGO, SENHOR — escarneceu Morte. — FIQUE QUIETO, MAGO.

— Senhor.

Cortabem recuou.

Morte se virou para Ysabell.

— FILHA, EXPLIQUE-SE. POR QUE FOI AJUDAR ESSE IDIOTA?

Ysabell fez uma reverência nervosa.

— Eu... o amo, papai. Eu acho.

— Ama? — surpreendeu-se Mort. — Você nunca disse nada!

— Não parecia ter tempo — explicou Ysabell. — Papai, ele não pretendia...

— QUIETA.

Ysabell baixou os olhos.

— Sim, papai.

Morte contornou a mesa até estar de frente para Mort. Encarou-o por um longo tempo.

Então, num único movimento rápido, acertou-lhe o rosto, jogando-o no chão.

— CONVIDO VOCÊ PARA A MINHA CASA — DISSE —, DOU ROUPA, COMIDA, EDUCAÇÃO E OPORTUNIDADES COM AS QUAIS VOCÊ NEM SONHARIA, E É ASSIM QUE RETRIBUI. SEDUZ MINHA FILHA, DESCUIDA DO SERVIÇO, PROVOCA ONDULAÇÕES NA REALIDADE QUE LEVARÃO SÉCULOS PARA SE CONSERTAR. A INSENSATEZ DAS SUAS ATITUDES CONDENOU SEUS COMPANHEIROS AO ESQUECIMENTO. É O MÍNIMO QUE OS DEUSES VÃO EXIGIR. NO TODO, GAROTO, NÃO FOI UM BOM COMEÇO PARA O SEU PRIMEIRO EMPREGO.

Mort conseguiu se sentar, segurando o rosto. Ardia frio.

— Mort — disse.

— ELE FALA! O QUE FOI?

— Solte os outros — pediu Mort. — Eu meti todos nessa. Não é culpa deles. O senhor poderia rearranjar as coisas para...

— POR QUE EU FARIA ISSO? AGORA ELES PERTENCEM A MIM.

— Eu luto com o senhor por eles — desafiou Mort.

— MUITO NOBRE. OS MORTAIS LUTAM COMIGO O TEMPO TODO. VOCÊ ESTÁ DEMITIDO.

Mort se pôs de pé. Lembrou de como fora ser Morte. Deixou a sensação fluir...

— NÃO — disse.

— AH. ENTÃO ME DESAFIA COMO IGUAL?

Mort engoliu em seco. Mas pelo menos agora o caminho estava livre. Quando caímos do penhasco, a vida toma um rumo bem definido.

— Se necessário — respondeu ele. — E se eu ganhar...

— Se VOCÊ GANHAR VAI ESTAR EM POSIÇÃO DE FAZER O QUE BEM LHE APROUVER — garantiu Morte. — SIGA-ME.

Passou por Mort e saiu para o corredor. Os outros quatro miraram Mort.

— Tem certeza do que está fazendo? — perguntou Cortabem.

— É impossível vencer o patrão — salientou Albert, num suspiro. — Tire por mim.

— O que acontece se você perder? — quis saber Keli.

— Não vou perder — respondeu Mort. — Esse é o problema.

— Papai quer que ele ganhe — disse Ysabell aflita.

— Vai deixar Mort vencer? — indagou Cortabem.

— Ah, não. Não vai deixá-lo vencer. Só quer que ele ganhe.

Mortimer confirmou com a cabeça. Ao seguir o vulto negro de Morte, refletiu sobre o infindável futuro, servindo ao propósito misterioso do Criador e vivendo à margem do Tempo. Não podia culpar Morte por querer largar o emprego. Morte havia dito que os ossos não eram obrigatórios, mas talvez isso não importasse. Será que, a eternidade demoraria a passar, ou, de um ponto de vista pessoal, todas as vidas tinham a mesma duração? Oi, disse uma voz em sua cabeça. Lembra de mim? Sou você. Fui eu que o meti nessa.

— Obrigado — grunhiu ele. Os outros o encararam.

Você pode se dar bem, disse a voz. Tem uma grande vantagem. Você já foi ele, e ele nunca foi você.

Morte atravessou o corredor até a Sala de Vidro, com as velas obedientemente se acendendo ao entrar.

— ALBERT!

— Senhor?

— Traga as ampulhetas.

— Senhor.

Cortabem segurou o braço do velho.

— Você é mago — sussurrou. — Não tem de fazer o que ele manda!

— Rapaz, quantos anos você tem? — perguntou Albert, com doçura.

— Vinte.

— Quando tiver a minha idade, vai ver suas escolhas de outra maneira.

Ele se virou para Mort.

— Sinto muito.

Mortimer sacou a espada, a lâmina quase invisível sob a luz das velas. Morte deu meia-volta e o encarou, sendo então apenas uma silhueta delgada contra a imensa estante de ampulhetas.

Estendeu os braços. A foice apareceu em suas mãos com um pequeno estrondo.

Albert surgiu de um dos corredores com duas ampulhetas e, sem dizer nada, depositou-as na saliência de uma das colunas.

Uma era várias vezes maior do que as ampulhetas comuns — preta, fina e intrincadamente esculpida num jogo de ossos e caveira.

Não era o pior.

Mortimer engoliu um gemido. Não havia areia dentro.

Ao lado, a ampulheta menor era bastante simples e despretensiosa. Mortimer estendeu a mão para pegá-la.

— Posso? — perguntou.

— Fique à vontade.

O nome Mort estava inscrito. Ele ergueu a ampulheta à luz, notando sem muita surpresa que quase já não restava areia no vaso superior. Quando levou-a ao ouvido, imaginou escutar, apesar do eterno ruído dos milhões de instrumentos ao redor, o som de sua própria vida se esvaindo.

Com cuidado, botou-a onde estava.

Morte se virou para Cortabem.

— Senhor mago, pode fazer a gentileza de contar até TRÊS?

Com ar grave, Cortabem assentiu.

— Tem certeza de que isso não poderia ser resolvido numa mesa... — começou.

— Não.

— Não.

Mortimer e Morte começaram a andar em círculo, seus reflexos a tremeluzirem nas fileiras de ampulhetas.

— Um — disse Cortabem.

Morte agitou a foice ameaçadoramente.

— Dois.

As armas se encontraram no ar com um som de gato deslizando em vidro.

— Os dois trapacearam! — gritou Keli. Ysabell confirmou.

— É claro — disse.

Mortimer deu um salto para trás, curvando a espada num arco tão demorado que Morte não teve dificuldade em desviar, transformando a defesa num movimento circular baixo, do qual Mortimer só se livrou com um desajeitado pulo vertical.

Embora a foice não ocupe lugar de destaque entre as armas de guerra, qualquer pessoa que já tenha estado do outro lado de uma, digamos, revolta camponesa sabe que em mãos hábeis ela vira um perigo. Quando o dono começa a agitá-la, ninguém — inclusive quem a empunha — sabe onde a lâmina está nem onde estará dali a um minuto.

Sorrindo, Morte avançou. Mortimer evitou o golpe à altura da cabeça e saltou de lado, ouvindo o tinido da foice contra uma ampulheta na prateleira mais próxima...

... num beco escuro de Morpork um limpador de fossas levou a mão ao peito e caiu para frente da carroça...

Mortimer rolou no chão e se levantou, meneando com as duas mãos a espada acima da cabeça e sentindo uma ponta de alegria ao ver Morte se afastar. O golpe violento acertou uma prateleira. Uma a uma, as ampulhetas começaram a cair. Em confusão, Mortimer notou Ysabell passar por ele e salvá-las...

... no Disco, quatro pessoas escaparam milagrosamente da morte por queda...

...e então correu adiante, aproveitando a vantagem. Morte agitou as mãos com rapidez ao aparar cada uma das investidas, depois mudou a foice de posição e trouxe a lâmina para cima num arco do qual Mortimer só escapou com um pulo para o lado, no percurso rachando uma ampulheta com o punho da espada e lançando-a pelo ar...

... nas Montanhas Ramtops, o pastor que à luz de vela procurava uma vaca perdida nos campos mais elevados escorregou e despencou mais de trezentos metros...

... Cortabem saltou para frente, pegou a ampulheta numa das mãos estendidas em desespero, caiu no chão e deslizou de bruços...

... uma árvore retorcida surgiu de forma misteriosa debaixo do pastor e aparou a queda, eliminando seus problemas mais graves — a morte, o julgamento dos deuses, a incerteza do Paraíso e assim por diante — e substituindo-os por aquele comparativamente mais leve: escalar cerca de trezentos metros de penhasco gelado no breu absoluto.

Houve uma pausa quando os adversários se afastaram um do outro e voltaram a andar em círculo, à procura de uma brecha.

— Não tem nada que a gente possa fazer? — perguntou Keli.

— Mort vai perder de qualquer maneira — respondeu Ysabell, sacudindo a cabeça.

Cortabem tirou o castiçal de prata da manga e começou a passá-lo de uma mão para a outra.

Morte brandiu a foice, acidentalmente quebrando uma ampulheta à altura do ombro...

... em Bes Pelargic, o torturador-chefe do imperador caiu de costas em seu próprio poço de ácido...

... e desferiu outro golpe, que Mortimer desviou por mera sorte. Mas por pouco. Ele já sentia dor nos músculos e o entorpecimento cinza do cansaço, duas desvantagens que Morte não tinha de considerar.

Morte percebeu.

— RENDA-SE — disse. — POSSO SER MISERICORDIOSO.

A bem de ilustração, desferiu um golpe circular que Mortimer aparou desajeitadamente na ponta da espada. A lâmina da foice ricocheteou, espatifando uma ampulheta...

... o duque de Sto Helit levou a mão ao peito, sentiu uma pontada aguda de dor, gritou sem proferir nenhum som e caiu do cavalo...

Mortimer recuou até sentir a aspereza de uma coluna de pedra na nuca. A ampulheta de Morte, com os vasos assustadoramente vazios, encontrava-se a alguns centímetros de sua cabeça.

Morte não estava prestando atenção. Encontrava-se pensativamente olhando os restos da vida do duque.

Mortimer soltou um grito e meneou a espada aos aplausos do pessoal, que havia algum tempo vinha esperando que ele fizesse isso. Até Albert bateu as mãos enrugadas.

Mas, em vez do tinido de vidro que Mortimer esperava ouvir, não houve nada.

Ele se virou e tentou de novo. A lâmina atravessou a ampulheta sem quebrá-la.

A mudança na textura do ar fez com que ele girasse a espada e a trouxesse de volta bem a tempo de aparar um ataque violento.

Então foi a vez de Morte se afastar para escapar ao contra-ataque de Mortimer, que saiu fraco e lento.

— E AQUI TERMINAMOS, GAROTO.

— Mort — disse Mort. Ele olhou para cima.

— Mort — repetiu, e ergueu a espada num movimento que partiu o punho da foice em dois. A raiva fervilhava dentro dele. Se era para morrer, que ao menos fosse com o nome certo.

— Mort, seu cretino! — gritou, e partiu para cima da caveira sorridente com a espada a zunir numa complicada dança de luz azul.

Morte recuou, rindo e se agachando sob a saraivada de golpes furiosos que partiram o punho da foice em mais pedaços.

Mortimer avançava em círculo, sempre atacando e, mesmo através da névoa avermelhada do ódio, ciente de que Morte acompanhava cada um de seus movimentos, segurando a lâmina da foice como uma espada. Não havia nenhuma brecha, e o impulso da raiva não duraria muito. Você não vai vencê-lo nunca, disse a si mesmo. O máximo que pode fazer é adiar a derrota. E provavelmente perder é melhor do que ganhar. Afinal, quem precisa da eternidade?

Por entre as cortinas do cansaço, viu Morte esticar os ossos e movimentar a lâmina num arco vagaroso, como se envolto em melaço.

— Papai! — gritou Ysabell. Morte virou a cabeça.

Talvez a mente de Mortimer acalentasse a idéia da vida por vir, mas o corpo — que tinha mais a perder — objetou. Suspendeu a espada num golpe irrefreável, que tirou a lâmina da mão de Morte, e então encurralou-o contra a coluna mais próxima.

No silêncio repentino, Mortimer se deu conta de que já não ouvia o ruído que nos últimos dez minutos vinha escutando no limiar da audição. Os olhos se voltaram para o canto.

Os últimos grãos de areia já escorriam.

— Ataque.

Mort brandiu a espada e encarou os dois pontinhos azuis.

Baixou a arma.

— Não.

Morte chutou-o entre as pernas com tanta rapidez, que fez até Cortabem se encolher.

Em silêncio, Mortimer se dobrou e rolou no chão. Por entre as lágrimas, viu Morte avançar com a lâmina da foice numa das mãos e sua ampulheta na outra. Viu Keli e Ysabell passarem, tentando agarrar o manto. Viu Cortabem levando uma cotovelada nas costelas e deixando o castiçal cair no chão.

Morte se pôs de pé sobre Mortimer. Por um instante, a ponta da lâmina pairou acima dos olhos do menino e então subiu.

— Você está certo. Não tem justiça. Só tem você.

Morte hesitou e então lentamente baixou a arma. Deu meia-volta e fitou o rosto de Ysabell. Ela estava tremendo de raiva.

— O QUE QUER DIZER?

Ela encarou o pai e lhe deu um tapa no rosto.

O estrépito não foi mais alto do que o silêncio que se seguiu.

Keli fechou os olhos. Cortabem se afastou e pôs os braços sobre a cabeça.

Bem devagar, Morte levou a mão à caveira.

O peito de Ysabell subia e descia de tal modo que poderia fazer Cortabem desistir da magia para o resto da vida.

Por fim, numa voz ainda mais cavernosa do que de costume, Morte perguntou:

— POR QUÊ?

— Você falou que mexer no destino de uma única pessoa poderia destruir o mundo inteiro — disse Ysabell.

— Sim?

— Você interveio no dele. E no meu.

Ela apontou o dedo trêmulo para os cacos de vidro no chão.

— E nesses também.

— E DAI?

— O que os deuses vão exigir por isso?

— DE MIM?

— É!

Morte pareceu surpreso.

— NENHUM DEUS PODE EXIGIR NADA DE MIM. ÀS VEZES, ATÉ ELES ME OBEDECEM.

— Não é justo, é? Então os deuses não se importam com justiça e misericórdia? — perguntou Ysabell.

Sem que ninguém notasse, ela havia pegado a espada. Morte sorriu.

— LOUVO O SEU EMPENHO — disse — MAS NÃO LHE VALE DE NADA. SAIA DA FRENTE.

— Não.

— VOCÊ DEVE SABER QUE O AMOR NÃO ME VENCE. SINTO MUITO.

Ysabell brandiu a espada.

— Você sente muito?

— SAIA DA FRENTE, EU JÁ DISSE.

— Não. Você só está querendo vingança. Não é justo!

Por um instante, Morte inclinou a caveira e então voltou a erguê-la com os olhos brilhando.

— FAÇA O QUE ESTOU MANDANDO.

— Não faço.

— VOCÊ ESTÁ DIFICULTANDO AS COISAS.

— Ótimo.

Os dedos de Morte tamborilaram impacientemente na lâmina da foice, como um rato sapateando em lata. Ele parecia estar pensando. Ainda parado acima de Mortimer, fitou Ysabell, depois se virou e encarou os outros, agachados contra uma estante.

— NÃO — disse, afinal. — NÃO PODEM ME COAGIR. NÃO PODEM ME FORÇAR. SÓ VOU FAZER O QUE SEI SER O CERTO.

Agitou a mão, e a espada se perdeu das mãos de Ysabell. Fez outro gesto complicado, e a garota se viu içada e pressionada, com suavidade mas firmeza, contra a pilastra mais próxima.

Mortimer viu o ceifeiro de negro outra vez avançar em sua direção, com a lâmina brandindo para o ataque final. O vulto se postou sobre o garoto.

— VOCÊ NÃO SABE O QUANTO ISSO ME DEIXA TRISTE — disse.

Mort se apoiou nos cotovelos.

— Talvez eu saiba — rebateu.

Durante alguns segundos, Morte lhe dirigiu um olhar surpreso e então começou a rir. O som ressoou sinistramente pelo cômodo, ecoando nas prateleiras à medida que ele — ainda rindo como um terremoto em cemitério — erguia a ampulheta de Mort diante dos olhos do dono.

Mortimer ajustou a visão. Viu o último grão de areia deslizar pela superfície lustrosa, oscilar na borda e então cair, despencando em câmera lenta para o fundo. A luz de vela se refletiu na face de sílica. O grão caiu sem qualquer som, abrindo uma minúscula cratera.

A luz dos olhos de Morte brilhou até tomar a visão de Mortimer, e o som de sua gargalhada retiniu em todo o universo.

Então Morte virou a ampulheta de cabeça para baixo.


Mais uma vez o grande salão de Sto Lat reluzia à luz de vela e se enchia de música.

Enquanto os convidados desciam os degraus da escada até o bufê de frios, o mestre-de-cerimônias falava sem parar, anunciando aqueles que, por um motivo relevante ou simples distração, haviam chegado tarde. Como por exemplo:

— O reconhecedor real, mestre do quarto da rainha, sua ipssissumidade Ígneo Cortabem, mago do primeiro grau .

Sorrindo, Cortabem se dirigiu ao casal real, com um grande charuto na mão.

— Posso beijar a noiva? — perguntou.

— Se não estiver proibido aos magos — respondeu Ysabell, oferecendo o rosto.

— Achamos os fogos de artifício estupendos — comentou Mort. — Só espero que reconstruam logo o muro. Com certeza, você vai achar o caminho até a comida.

— Ele está bem melhor agora — disse Ysabell, por trás do sorriso fixo, quando Cortabem desapareceu na multidão.

— É a única pessoa que não se importa em obedecer à rainha — salientou Mort, cumprimentando um nobre.

— Dizem que ele é a verdadeira força por trás do trono — considerou Ysabell. — Eminência alguma coisa.

— Eminência parda — confirmou Mort, distraído. — Já reparou que ele deixou de fazer mágica?

— Fique quieto, aí vem ela.

— Sua Majestade, a rainha Kelirehena I, soberana de Sto Lat, protetora dos oito protetorados e imperatriz do disputado terreno de Sto Kerrig.

Ysabell fez uma mesura. Mortimer fez uma reverência. Keli sorriu para os dois. O casal não pôde deixar de notar que ela vinha sofrendo alguma influência no sentido de vestir roupas que pelo menos acompanhavam a forma do corpo e também abandonara cortes de cabelo que pareciam o cruzamento de um abacaxi com algodão-doce.

Ela beijou Ysabell e recuou para olhar Mortimer de alto a baixo.

— Como está Sto HeLit? — perguntou.

— Bem, muito bem — respondeu Mort. — Mas vamos ter de fazer alguma coisa em relação aos porões. Seu finado tio tinha um... hobby meio fora do comum...

— Ela está falando de você — sussurrou Ysabell. — É o seu nome oficial.

— Eu preferia Mort — lamentou Mort.

— Também tem um brasão muito interessante — lembrou a rainha. — Duas foices cruzadas sobre uma ampulheta, num campo negro. Deu muita dor de cabeça à equipe real.

— Não é que eu me incomode em ser duque — disse Mort. — É ser casado com uma duquesa que me assusta.

— Você se acostuma.

— Espero que não.

— Ótimo. E agora, Ysabell — animou-se Keli —, se você vai andar nos círculos reais, tem umas pessoas que precisa conhecer...

Ysabell lançou a Mortimer um olhar de desespero ao ser carregada para a multidão e logo se perdeu de vista.

Mortimer correu um dedo pelo colarinho, olhou para os lados e então se dirigiu ao canto sombreado por uma samambaia, perto do bufê, onde poderia desfrutar um instante de paz consigo mesmo.

Atrás dele, o mestre-de-cerimônias pigarreou. Os olhos ganharam um ar distante, vidrado.

— Ladrão de almas — anunciou, na voz distraída da pessoa cujos ouvidos não escutam o que a boca está dizendo. — O demolidor de impérios, engolidor de oceanos, ladrão dos anos, a realidade última, o ceifeiro da humanidade, o...

— TUDO BEM, TUDO BEM. JÁ DEU PARA ENTENDER QUE SOU EU.

Mortimer se deteve com uma coxa de peru fria a meio caminho da boca. Não se virou. Nem precisava. Impossível não reconhecer aquela voz, antes sentida do que ouvida, ou o modo como o ambiente esfriava e escurecia. A balbúrdia e a música da recepção do casamento minguaram até desaparecer.

— Achamos que o senhor não fosse vir — disse ele, para a samambaia.

— AO CASAMENTO DA MINHA PRÓPRIA FILHA? ALIÁS, FOI A PRIMEIRA VEZ QUE RECEBI CONVITE DE ALGUMA COISA. TINHA CONTORNOS DOURADOS, PEDIDO PARA RESPONDER E TUDO O MAIS.

— É, mas o senhor não estava na cerimônia.

— IMAGINEI QUE NÃO FOSSE APROPRIADO.

— Bem, é, talvez não...

— PARA SER SINCERO, ACHEI QUE VOCÊ SE CASARIA COM A PRINCESA.

Mort enrubesceu.

— Conversamos a respeito — disse. — Então pensamos: “o sujeito não deve se precipitar só porque salvou uma princesa”.

— MUITO SENSATO. POR EXEMPLO, VÁRIAS MOÇAS SE JOGAM NOS BRAÇOS DO PRIMEIRO RAPAZ A ACORDÁ-LAS DEPOIS DE DORMIREM CEM ANOS.

— E achamos que, levando tudo em conta, quando eu realmente conheci Ysabell, bem...

— É, E, ENTENDO. UMA DECISÁO EXCELENTE. SÓ QUE RESOLVI NÃO ME METER MAIS NOS ASSUNTOS HUMANOS.

— Jura?

— A NÃO SER OFICIALMENTE. É CLARO. ESTAVA COMPROMETEN-DO MINHA CAPACIDADE CRITICA.

Com o canto dos olhos, Mortimer viu uma das mãos esqueléticas espetar com maestria um ovo recheado. O garoto se virou.

— O que aconteceu? — perguntou. — Eu preciso saber! Uma hora a gente estava na sala de ampulhetas, na outra estava num campo próximo a cidade, e éramos realmente nós! Quer dizer, a realidade havia se transformado para nos receber. Quem fez isso?

— TROQUEI UMA PALAVRINHA COM OS DEUSES.

Morte pareceu constrangido.

— Ah. Trocou, é? — indagou Mort. Morte desviou o olhar.

— É.

— Imagino que eles não tenham ficado muito satisfeitos.

— OS DEUSESB SÃO JUSTOS, E SENTIMENTAIS. EU MESMO NÃO CONSEGUI NUNCA SER ESSAS COISAS... MAS VOCÊ AINDA NÃO ESTÁ LIVRE. PRECISA FAZER A HISTÓRIA ACONTECER.

— Eu sei — disse Mort. — Unir os reinos e tal.

— VAI ACABAR DESEJANDO TER FICADO COMIGO.

— Aprendi muito com o senhor — admitiu Mort.

Levou a mão ao rosto e distraidamente alisou as quatro cicatrizes finas na bochecha.

— Mas acho que não fui feito para esse tipo de trabalho. Olhe, eu realmente sinto muito...

— TENHO UM PRESENTE PARA VOCÊ.

Morte baixou o prato de petiscos e vasculhou os misteriosos recantos do manto. Quando a mão esquelética surgiu, segurava um pequeno globo entre o polegar e o indicador.

O objeto tinha cerca de oito centímetros de diâmetro. Poderia ser a maior pérola do mundo, exceto pelo fato de que a superfície parecia um redemoinho de intrincados traços prateados eternamente a ponto de se transformar em algo reconhecível, mas sempre conseguindo se safar.

Quando Morte depositou-a na palma estendida de Mortimer, pareceu ao rapaz muito pesada e um pouco quente.

— PARA VOCÊ E SUA MULHER. UM PRESENTE DE CASAMENTO. UM DOTE.

— É lindo! A gente achou que a torradeira fosse presente seu.

— ERA DO ALBERT. ELE NÃO TEM MUITA IMAGINAÇÃO.

Mortimer revirou o globo nas mãos. Os traços internos reagiam ao toque, enviando pequenos raios de luz através da superfície, em direção aos dedos.

— É uma pérola? — perguntou.

— É. QUANDO ALGUMA COISA IRRITA A OSTRA E NÃO PODE SER REMOVIDA, A COITADA A COBRE DE MUCO E A TRANSFORMA EM PÉROLA. ESSA É UMA PÉROLA DIFERENTE. UMA PÉROLA DA REALIDADE. TODA ESSA PARTE BRILHANTE É REALIDADE CONGELADA. VOCÊ DEVERIA RECONHECER... AFINAL, FOI QUEM A CRIOU.

Mortimer começou a jogá-la de uma mão para a outra.

— Vamos guardar junto às jóias do castelo — disse. — Não temos muitas.

— UM DIA VAI SER O GERME DE UM NOVO UNIVERSO.

Mortimer errou a mão, mas, com reflexo apurado, estendeu o braço e pegou-a antes que caísse no chão.

— O quê?

— A PRESSÃO DA NOSSA REALIDADE A MANTÉM CONDENSADA. PODE CHEGAR O DIA EM QUE O UNIVERSO ACABE E A REALIDADE SE ESVAIA. ENTÃO ESSA AQUI VAI EXPLODIR E... QUEM SABE? GUARDE COM CUIDADO. ALÉM DE PRESENTE, É UM FUTURO.

Morte inclinou a caveira.

— É UMA COISINHA A TOA — acrescentou. — VOCÊ PODERIA TER A ETERNIDADE.

— Eu sei — respondeu Mort. — Tive muita sorte.

Com cuidado, deixou-a sobre a mesa do bufê, entre os ovos de codorna e os enroladinhos de salsicha.

— TEM MAIS UMA COISA — lembrou-se Morte. Novamente enfiou a mão sob o manto e desencavou um pacote retangular, mal embrulhado e amarrado com barbante.

— É PARA VOCÊ — disse. — NUNCA DEMONSTROU NENHUM INTERESSE. ACHOU QUE NÃO EXISTISSE?

Mortimer desembrulhou o pacote e se deu conta de ter em mão um pequeno livro de couro. Na lombada, em ouro, estava gravada uma única palavra: Mort.

Ele folheou o volume de trás para a frente, das páginas em branco até o pequeno fluxo de tinta, a avançar pacientemente pela folha, e leu: Mortimer fechou o livro com um estalido, que, no silêncio absoluto, pareceu o estouro da criação, e sorriu, apreensivo.

— Ainda tem muitas páginas para serem preenchidas — disse ele. — Quanta areia ainda me resta? Ysabell falou que, como o senhor virou a ampulheta de cabeça para baixo, significa que vou morrer quando estiver com...

— VOCÊ TEM AREIA SUFICIENTE — cortou Morte. — A MATEMÁTICA NÃO É TUDO O QUE DIZEM.

— Que tal se o convidássemos para os batizados?

— Acho melhor não. Não fui bom pai que dirá avô. Não tenho muito jeito para a coisa.

Largou a taça de vinho e curvou a cabeça para Mort.

— Saudações à sua senhora — disse. — Agora preciso ir.

— Tem certeza? Eu gostaria que o senhor ficasse.

— É MUITA GENTILEZA SUA DIZER ISSO, MAS O SERVIÇO ME CHAMA.

Ele estendeu a mão de osso.

— Sabe como é.

Mort apertou a mão, ignorando o frio.

— Olhe — Falou. — Se quiser tirar uns dias de folga, se estiver precisando de umas férias...

— MUITO OBRIGADO PELA OFERTA — agradeceu Morte. — VOU PENSAR NO ASSUNTO. E AGORA...

— Adeus — disse Mort, e se surpreendeu ao descobrir um aperto na garganta. — É uma palavra horrível, não é?

— É, SIM.

Morte sorriu, porque, como muitas vezes já foi mencionado, não tinha alternativa. Mas possivelmente desta vez fora intencional.

— EU PREFIRO AU REVOIR — disse ele.


FIM
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