Ford desistiu de tentar dormir. No canto de sua cabine havia uma pequena tela de computador e um teclado. Sentou-se ante o terminal e tentou redigir um novo verbete a respeito dos vogons para o Mochileiro, mas não conseguiu pensar em nada que fosse agressivo o bastante, por isso desistiu. Vestiu um roupão e foi até a ponte de comando.

Ao entrar, surpreendeu-se em ver duas figuras excitadas, debruçadas sobre o painel de controle.

- Está vendo? A nave está prestes a entrar em órbita - dizia Trillian. - Tem um planeta aí. Justamente nas coordenadas que você previu. Zaphod ouviu um barulho e olhou em volta.

- Ford! Venha dar uma olhada nisso.

Ford foi dar uma olhada. Viu uma série de números na tela.

- Está reconhecendo essas coordenadas galácticas?-perguntou Zaphod.

- Não.

- Vou lhe dar uma pista. Computador!

- Oi, pessoal! - disse o computador, simpático. - Isso aqui está virando uma festa, não é mesmo?

- Cale a boca e mostre as telas - disse Zaphod.

A iluminação da cabine diminuiu. Pontos de luz acenderam-se nos painéis, refletidas nos quatro pares de olhos que perscrutavam as telas de monitoração.

Não havia absolutamente nada nelas.

- Está reconhecendo? - cochichou Zaphod. Ford franziu as sobrancelhas.

- Hum... não.

- O que você está vendo?

- Nada.

- Está reconhecendo?

- Sobre o que você está falando?

- Estamos na nebulosa da Cabeça de Cavalo. Uma enorme nuvem escura.

- E você queria que eu adivinhasse isso porque não aparece nada na tela?

- Os únicos lugares da Galáxia em que a tela fica preta são os interiores das nebulosas escuras.

- Muito bem.

Zaphod riu. Claramente, estava muito entusiasmado por algum motivo, uma empolgação quase infantil.

- Mas isso é incrível, isso é demais!

- Qual o grande barato de estar dentro de uma nuvem de poeira? - perguntou Ford.

- O que você espera encontrar aqui? - retrucou Zaphod.

- Nada.

- Nenhuma estrela? Nenhum planeta?

- Nada.

- Computador! - gritou Zaphod. - Vire o ângulo de visão 180 graus, e nada de comentários bestas!

Por um instante, nada aconteceu. De repente, surgiu uma luminosidade no canto do telão. Uma estrela vermelha do tamanho de um pires começou a atravessar a tela, rapidamente seguida de uma outra - um sistema binário. Então um grande crescente surgiu no canto da tela - um brilho vermelho que aos poucos se esvaía em negro, o lado noturno do planeta.

- Achei! - exclamou Zaphod, com um tapa no painel. -Achei!

Ford ficou olhando para a tela estupefato.

- O que é isso?

- Isso - respondeu Zaphod - é o planeta mais improvável que jamais existiu.

Capítulo 15

[Trecho do Guia do Mochileiro das Galáxias, p. 634.784, 5a seção. Verbete: Magrathea.)

Há muito tempo, nas brumas do passado, nos dias de glória do antigo Império Galáctico, a vida era selvagem, exuberante e livre de impostos. Grandes espaçonaves navegavam entre sóis exóticos, em busca de aventuras e riquezas nos mais remotos confins do espaço galáctico. Naqueles tempos, os espíritos eram bravos, as apostas eram altas, os homens eram homens de verdade, as mulheres eram mulheres de verdade e as criaturinhas peludas de Alfa do Centauro eram criaturinhas peludas de Alfa do Centauro de verdade. E todos desafiavam terrores desconhecidos para realizarem feitos grandiosos e corajosamente conjugarem infinitivos jamais conjugados. Assim foi forjado o Império.

Naturalmente, muitos homens enriqueceram enormemente, mas isto era natural e não era problema nenhum, pois ninguém era realmente pobre - pelo menos ninguém importante. E para todos os mercadores mais ricos, como era inevitável, a vida tornou-se um tanto tediosa e insatisfatória, levando-os a pensar que isto era devido as limitações dos mundos em que eles haviam se estabelecido - nenhum deles era inteiramente satisfatório. Ou o clima não era muito bom no final da tarde, ou o dia era meia hora mais comprido do que devia ser, ou o oceano era precisamente da tonalidade errada de rosa. Assim, surgiram circunstâncias favoráveis ao nascimento de uma espetacular indústria: a construção de planetas de luxo sob medida. A sede dessa indústria era o planeta Magrathea, cujos engenheiros hiperespaciais drenavam a matéria por buracos brancos no espaço para transformá-la em planetas de sonho - planetas de ouro, planetas de platina, planetas de borracha macia cheios de terremotos, todos eles encantadoramente feitos segundo as mais detalhadas especificações determinadas pelos homens mais ricos da Galáxia.

Mas tamanho foi o sucesso dessa indústria que o próprio planeta Magrathea logo se tornou o planeta mais rico de todos os tempos e o resto da Galáxia ficou reduzido à

mais negra miséria. Assim, o sistema entrou em colapso, o Império entrou em colapso e um longo período de silêncio submergiu um bilhão de mundos famintos, um silêncio perturbado apenas pelos ruídos das canetas dos estudiosos, que passavam suas noites em claro elaborando pequenos tratados confiantes em que defendiam o valor de uma economia política planejada.

Magrathea desapareceu e logo se transformou numa lenda obscura... Hoje em dia, em nossos tempos esclarecidos, é claro que ninguém acredita numa palavra disso.

Capítulo 16

Arthur foi despertado por vozes exaltadas e dirigiu-se à ponte de comando. Ford gesticulava, exaltado.

- Você está maluco, Zaphod. Magrathea é um mito, um conto de fadas que os pais contam para os filhos de noite quando querem que eles se tornem economistas quando crescerem; não passa de...

- Pois é em torno de Magrathea que estamos em órbita.

- Olhe, você em particular pode até estar em órbita em torno de Magrathea - disse Ford -, mas esta nave...

- Computador! - gritou Zaphod. -Ah, não...

- Oi, turma! Aqui fala Eddie, seu computador de bordo. Hoje estou me sentindo muito bem, caras, e estou doidinho pra que vocês me programem do jeito que vocês quiserem.

Arthur olhou para Trillian sem entender. Ela fez sinal para que ele entrasse, mas não dissesse nada.

- Computador - disse Zaphod -, diga novamente qual é nossa trajetória no momento.

- Com prazer, meu querido. Estamos atualmente em órbita do lendário planeta Magrathea, a uma altitude de 500 quilômetros.

- Isso não prova nada - disse Ford. - Eu não confiaria nesse computador nem mesmo para calcular meu peso.

- Posso fazer isso sem problemas - disse o computador, animado, cuspindo mais fita perfurada. - Posso até mesmo determinar seus problemas de personalidade com precisão de dez casas decimais, se você quiser. Trillian interrompeu.

- Zaphod - disse ela -, a qualquer momento estaremos sobrevoando o lado diurno deste planeta, seja ele o que for.

- O que você quer dizer com isso? O planeta está justamente onde eu previ, não é?

- É, eu sei que há um planeta lá. Não estou discutindo com ninguém. O

negócio é que eu não seria capaz de distinguir Magrathea de nenhum outro pedregulho flutuando no espaço. O dia está nascendo, caso você esteja interessado.

- Está bem, está bem - murmurou Zaphod. - Pelo menos vamos apreciar a vista. Computador!

- Oi, gente! O que é...

- Cale a boa e mostre o planeta outra vez.

Novamente uma massa escura e sem detalhes discerníveis encheu as telas: era o planeta que estavam sobrevoando.

Ficaram olhando para as telas por um momento. Zaphod estava excitadíssimo.

- Ainda estamos sobrevoando o lado noturno - disse ele, em voz baixa. A imagem do planeta passava pelas telas. - A superfície do planeta está no momento a uma distância de 500 quilômetros... - prosseguiu Zaphod, tentando valorizar aquele momento que ele considerava de grande importância. Magrathea! Sentia-se ofendido pelo ceticismo de Ford. Magrathea! -Dentro de alguns segundos estaremos vendo... olhem!

Foi um momento grandioso. Mesmo o mais viajado vagabundo das estrelas não pode conter um arrepio diante de uma espetacular alvorada vista do espaço, e uma alvorada num sistema binário é uma das maravilhas da Galáxia.

Do meio da escuridão absoluta surgiu subitamente um ponto de luz ofuscante. Aos poucos foi se abrindo, formando um fino crescente, e segundos depois dois sóis apareceram, duas fornalhas de luz, queimando o horizonte com fogo branco. Raios de cor intensa riscavam a atmosfera rarefeita do planeta. -As luzes da aurora...! - exultava Zaphod. - Os sóis gêmeos de Soulianis e Rahm...!

- Ou seja lá o que for - disse Ford baixinho.

- Soulianis e Rahm! - insistiu Zaphod.

Os sóis ardiam no negrume do espaço, e ouvia-se uma música macabra no recinto: era Marvin cantarolando, sarcástico, porque detestava a espécie humana.

Ford contemplava o espetáculo de luz à sua frente, ardendo de entusiasmo; porém era apenas o entusiasmo de ver um planeta que jamais vira antes; isso lhe bastava. Irritava-o um pouco a necessidade que Zaphod tinha de criar uma fantasia ridícula para poder se empolgar com a cena. Toda essa bobagem de Magrathea parecia-lhe infantil. Não basta apreciar a beleza de um jardim, sem ter que imaginar que há fadas nele?

Para Arthur, toda essa história de Magrathea era totalmente incompreensível. Virou-se para Trillian e perguntou-lhe o que estava acontecendo.

- Só sei o que Zaphod disse - cochichou. - Pelo visto, Magrathea é uma espécie de lenda antiqüissima que ninguém leva a sério. Mais ou menos como a lenda de Atlântida lá na Terra, só que dizem que os magratheanos fabricavam planetas.

Arthur olhava para a tela, sentindo falta de alguma coisa importante. De repente deu-se conta do que era.

- Tem chá nessa nave?

Pouco a pouco ia aumentado a faixa visível do planeta que sobrevoavam. Os sóis agora estavam bem acima do horizonte, destacando-se da escuridão do céu; terminara o espetáculo pirotécnico do amanhecer, e a superfície do planeta parecia erma e assustadora à luz do dia - cinzenta, cheia de poeira e de contornos imprecisos. Parecia morta e fria como uma cripta. De vez em quando surgiam detalhes promissores no horizonte longínquo - gargantas, talvez montanhas, quem sabe até cidades -, mas, à

medida que se aproximavam, a imagem perdia a nitidez e não ficava claro do que se tratava. A superfície do planeta estava apagada pelo tempo, pelo lento movimento da atmosfera estagnada que nela roçava há séculos. Certamente era um planeta velhíssimo.

Por um momento surgiu uma dúvida na mente de Ford, ao contemplar a paisagem cinzenta do planeta. A imensidão do tempo o perturbava; era uma presença palpável. Pigarreou.

- Bem, e se for...

- É - disse Zaphod.

- Não é - prosseguiu Ford. - Mas o que você quer com esse planeta? Não há nada nele.

- Não na superfície - disse Zaphod.

- Está bem. Mesmo que tenha alguma coisa, não acredito que você esteja interessado em estudar arqueologia industrial. O que é que você está

procurando?

Uma das cabeças de Zaphod desviou a vista. A outra olhou ao redor para ver o que a primeira estava vendo, mas ela não estava olhando para nada em particular.

- Bem - disse Zaphod, meio vago -, em parte é curiosidade, em parte é o gosto pela aventura, mas acho que o principal é a perspectiva de fama e dinheiro...

Ford encarou-o. Teve a nítida impressão de que Zaphod não tinha a menor idéia do motivo que o levara ali.

- Sabe, não fui nem um pouco com a cara desse planeta -disse Trillian, com um arrepio.

- Ah, não ligue para isso - disse Zaphod. - Com metade das riquezas do antigo Império Galáctico guardadas em algum lugar aí dentro, o planeta tem todo o direito de não ser lá essas coisas em matéria de beleza natural.

"Bobagem", pensou Ford. "Ainda que fosse mesmo a sede de uma antiga civilização já extinta, ainda que uma série de coisas muito improváveis fosse verdadeira, se houvesse de fato imensas riquezas guardadas lá, era impossível que elas tivessem algum valor para a civilização atual." Deu de ombros.

- Acho que é só um planeta sem vida - disse ele.

- Esse suspense está me matando - disse Arthur, irritado.

A tensão nervosa e o estresse são agora problemas sociais sérios em todas as partes da Galáxia, e é para não exacerbar ainda mais esta situação que vamos revelar os fatos que se seguem antecipadamente.

O planeta em questão é mesmo o lendário Magrathea.

O terrível ataque de mísseis que terá início em breve, desencadeado por um antigo sistema de defesa automático, resultará apenas na destruição de três xícaras de café e de uma gaiola de ratos, um braço machucado e a inoportuna criação e súbita morte de um vaso de petúnias e um inocente cachalote. Para manter um mínimo de suspense, não diremos por enquanto a quem pertence o braço que será machucado. Esse fato pode ser mantido em segredo sem qualquer problema por ser absolutamente irrelevante.

Capítulo 17

Tendo começado mal o dia, a mente de Arthur estava se recompondo a partir dos fragmentos a que havia sido reduzida na véspera. Arthur encontrara uma Nutrimática, máquina que lhe dera um copo plástico cheio de um líquido que era quase, mas não exatamente, completamente diferente do chá. A máquina funcionava de maneira muito interessante. Quando o botão de bebida era apertado, ela fazia um exame instantâneo, porém altamente detalhado, das papilas gustativas do usuário, uma análise espectroscópica de seu metabolismo e então enviava pequenos sinais experimentais por seu sistema nervoso para testar seu gosto. Porém ninguém entendia por que ela fazia tudo isso, já que invariavelmente servia um líquido que era quase, mas não exatamente, completamente diferente do chá. A Nutrimática é fabricada pela Companhia Cibernética de Sirius, cujo departamento de reclamações atualmente cobre todos os continentes dos três primeiros planetas do sistema estelar de Sirius Tau.

Arthur bebeu o líquido e sentiu que ele o reanimou. Olhou para as telas de novo e viu mais algumas centenas de quilômetros de deserto cinzento passarem por eles. De repente resolveu fazer uma pergunta que o vinha incomodando há algum tempo.

- Não tem nenhum perigo?

- Magrathea está morto há cinco milhões de anos - disse Zaphod. - É

claro que não há perigo nenhum. A essa altura, até os fantasmas já criaram juízo e estão casados e cheios de filhos. Neste momento, um som estranho e inexplicável ouviu-se no recinto - parecia uma fanfarra distante; um som oco, frouxo, insubstancial. Foi seguido de uma voz igualmente oca, frouxa e insubstancial.

- Sejam bem-vindos... - disse a voz.

Alguém estava falando com eles, daquele planeta morto.

- Computador! - gritou Zaphod.

- Oi, gente!

- Que diabo é isso?

- Ah, alguma gravação de cinco milhões de anos que está sendo tocada para nós.

- O quê? Uma gravação?

- Psss! - exclamou Ford. - Vamos escutar.

A voz era velha, cortês, quase encantadora, porém continha um toque de ameaça inconfundível.

- Isto é uma gravação, e infelizmente não há ninguém presente no momento. O

Conselho Comercial de Magrathea agradece a sua gentil visita...

- Uma voz de Magrathea! - exclamou Zaphod.

- Está bem, você venceu - disse Ford.

- ...porém lamenta informar que todo o planeta está temporariamente fechado. Obrigado. Se tiverem a bondade de deixar seus nomes e o endereço de um planeta em que possamos contatá-los, por favor, falem após o sinal. Ouviu-se um zumbido e, depois, silêncio.

- Querem se livrar de nós - disse Trillian, nervosa. - O que vamos fazer?

- É só uma gravação - disse Zaphod. - Vamos em frente. Ouviu, computador?

- Ouvi, sim - disse o computador. Acelerando um pouco a nave. Esperaram.

Um ou dois segundos depois ouviu-se a fanfarra, seguida da voz:

- Queremos informar-lhes que, assim que reabrirmos, o fato será anunciado nas principais revistas e suplementos coloridos e nossos clientes poderão mais uma vez adquirir o que há de melhor em matéria de geografia contemporânea. - O tom de ameaça da voz intensificou-se. - Até então, agradecemos o interesse de nossos clientes e pedimos que partam. Agora.

Arthur olhou para os rostos nervosos de seus companheiros.

- Bem, acho melhor a gente ir embora, não é?

- Oral - disse Zaphod. - Não há motivo para preocupação.

- Então por que todo mundo está tão nervoso?

- Estamos só interessados! - gritou Zaphod. - Computador, comece a penetrar na atmosfera e preparar para a aterrissagem.

Desta vez a fanfarra foi só pro forma, e a voz, bem fria.

- É muito gratificante o seu entusiasmo manifestado em relação a nosso planeta. Portanto, gostariamos de lhes dizer que os mísseis teleguiados que estão no momento convergindo para sua nave fazem parte de um serviço especial que oferecemos a nossos clientes mais entusiásticos; as ogivas nucleares prontas para detonar são apenas um detalhe da cortesia. Esperamos não perder contato com vocês em vidas futuras... Obrigado.

A voz calou-se.

- Ah - exclamou Trillian.

- Hummm... - disse Arthur.

- E agora? - perguntou Ford.

- Escutem - disse Zaphod -, será que vocês não entendem? Isso é só uma mensagem gravada há milhões de anos. Não se aplica ao nosso caso, entenderam?

- E os mísseis? - perguntou Trillian, em voz baixa.

- Mísseis? Ora, não me faça rir.

Ford deu um tapinha no ombro de Zaphod e apontou para a tela de trás. Nela via-se claramente dois dardos prateados subindo em direção à nave. Com um aumento maior, viu-se claramente que eram dois foguetes dos grandes. Foi um choque.

- Acho que eles vão se esforçar o máximo para que se aplique ao nosso caso também - disse Ford.

Zaphod olhou para os outros, atônito.

- Que barato1. Tem alguém lá embaixo que quer matar a gente!

- Maior barato! - disse Arthur.

- Mas você não entende o que isso representa?

- Claro. Vamos morrer.

- Sim, mas afora isso.

- Afora isso?

- Quer dizer que lá deve ter alguma coisa!

- Como é que a gente sai dessa?

A cada segundo, a imagem dos mísseis na tela aumentava. Agora eles já

estavam apontando diretamente para o alvo, de modo que tudo que se via deles eram as ogivas, de frente.

- Só por curiosidade - disse Trillian -, o que vamos fazer?

- Não perder a calma - disse Zaphod.

- Só isso? - gritou Arthur.

- Não, vamos também... ah... adotar táticas de evasão! - disse Zaphod, subitamente em pânico. - Computador, que espécie de tática de evasão podemos adotar?

- Bem... infelizmente nenhuma, pessoal - disse o computador.

- ...ou então outra coisa qualquer - disse Zaphod.

- Hããã...

- Alguma coisa parece estar interferindo com meus sistemas de controle - explicou o computador, com uma voz alegre. - Impacto em 45 segundos. Podem me chamar de Eddie, se isso os ajudar a manter a calma.

Zaphod tentou correr em várias direções ao mesmo tempo.

- Certo! - exclamou. - Bem... vamos ter que assumir o controle manual da nave.

- Você sabe pilotá-la? - perguntou Ford, com um tom de voz simpático.

- Não. E você?

- Também não.

- Trillian, e você?

- Também não.

- Tudo bem - disse Zaphod, relaxando. - Vamos trabalhar todos juntos.

- Eu também não sei - disse Arthur, achando que já era hora de começar a se afirmar.

- Era o que eu imaginava - disse Zaphod. - Está bem. Computador, quero controle manual, imediatamente.

- É todo seu - disse o computador.

Diversos painéis grandes abriram-se, contendo diversos pacotes de plásticos e rolos de celofane: os controles nunca tinham sido usados antes. Zaphod contemplou-os assustado.

- Vamos lá, Ford. Retroceder a toda velocidade, dez graus para estibordo. Ou coisa parecida...

- Boa sorte, gente - disse o computador. - Impacto dentro de 30

segundos...

Ford saltou para cima dos controles; só conseguiu reconhecer alguns deles, e os acionou. A nave estremeceu e guinchou, pois todos os seus foguetes direcionadores tentaram empurrá-la em todas as direções simultaneamente. Ford soltou metade dos controles, e a nave começou a rodar num arco fechado, até completar meia-volta, seguindo diretamente em direção aos mísseis. Colchões de ar amortecedores de impacto saíram das paredes de repente e todos foram atirados de encontro a eles. Por alguns segundos, as forças de inércia os mantiveram achatados contra os colchões, ofegantes, incapazes de se mexer. Em desespero, Zaphod conseguiu safar-se e dar um pontapé numa pequena chave que fazia parte do sistema de direcionamento. A chave caiu da parede. A nave fez uma curva abrupta e virou para cima. A tripulação foi toda jogada contra a parede oposta. O exemplar de Ford do Guia do Mochileiro foi cair em cima do painel de controle, o que teve dois efeitos simultâneos: o livro começou a dizer a quem estivesse prestando atenção nele quais eram as melhores maneiras de partir de Antares levando clandestinamente glândulas de periquitos antareanos (espetadas em palitos, são salgadinhos asquerosos, porém estão em moda, e verdadeiras fortunas são gastas na aquisição dessas glândulas, por idiotas muito ricos que querem esnobar outros idiotas muito ricos); e a nave de repente começou a cair como uma pedra.

Naturalmente, foi mais ou menos nesse momento que um membro da tripulação machucou bastante o braço. É necessário enfatizar esse fato porque, como já afirmamos, afora isso a tripulação escapou absolutamente incólume, e os letais mísseis nucleares não atingiram a nave. A segurança dos tripulantes está inteiramente garantida.

- Impacto em 20 segundos, pessoal - disse o computador.

- Então liga a porcaria dos motores! - gritou Zaphod.

- Claro, tudo bem - disse o computador. Com um zumbido sutil, os motores ligaram-se novamente, a nave retomou seu curso e voltou a seguir em direção aos mísseis.

O computador começou a cantar.

- Ao caminhar na tempestade... - começou ele, com uma voz anasalada - mantenha a cabeça erguida...

Zaphod gritou-lhe que se calasse, porém não foi possível ouvi-lo no meio daquele ruído, que todos, naturalmente, acharam que fosse o ruído de sua própria destruição.

- E não tenha medo do escuro! - cantava Eddie.

Ao reassumir sua trajetória, a nave ficara de cabeça para baixo; assim, os tripulantes estavam no teto, e portanto não tinham acesso aos comandos.

- No final da tempestade... - cantarolava Eddie.

Os dois mísseis cresciam cada vez mais nas telas, e seus rugidos eram cada vez mais próximos.

- .. .há um céu dourado...

Porém, por um acaso extraordinariamente feliz, eles não haviam corrigido sua trajetória com precisão em relação à trajetória aleatória da nave, e passaram logo abaixo dela.

- E o doce canto da cotovia... Correção: impacto dentro de 15 segundos, pessoal... Caminhe contra o vento...

Os mísseis descreveram um arco e voltaram.

- É agora - disse Arthur, olhando para a tela. - Agora vamos morrer mesmo, não é?

- Preferia que você parasse de dizer isso - gritou Ford.

- Mas é verdade, não é? -É.

- Caminhe pela chuva... - cantava Eddie.

Arthur teve uma idéia. Pôs-se de pé com dificuldade.

- Por que a gente não liga o tal gerador de improbabilidade? - perguntou ele. - Talvez a gente o alcance.

- Você está maluco? - exclamou Zaphod. - Sem antes fazer a programação, pode acontecer qualquer coisa.

- Qual o problema, a essa altura? - gritou Arthur.

- Ainda que seus sonhos se esfumem... - cantava Eddie. Arthur agarrouse a uma protuberância decorativa localizada no trecho em que a curva da parede encontrava com o teto.

- Siga em frente, cheio de esperança...

- Alguém podia me dizer por que Arthur não deve ligar o gerador de improbabilidade? - gritou Trillian.

- E você não há de estar sozinho... Impacto dentro de cinco segundos, pessoal; foi um prazer conhecê-los. Deus os abençoe... Sozinho jamais!

- Eu perguntei - berrou Trillian - por que...

Houve então uma explosão estonteante de ruídos e luzes.

Capítulo 18

E logo em seguida a nave Coração de Ouro seguia em frente na mais perfeita normalidade, com seu interior inteiramente redecorado. Agora era um pouco maior, pintado com delicados tons pastel de verde e azul. No centro havia uma escada em espiral, que não levava a nenhum lugar em especial, cercada de samambaias e flores amarelas; a seu lado, um pedestal de relógio de sol, de pedra, em cima do qual se encontrava o terminal central do computador. Uma série de luzes e espelhos engenhosamente dispostos criavam a ilusão de que o observador estava dentro de uma estufa, com vista para um amplo jardim, muito bem-cuidado. Ao redor da estufa havia mesas com tampos de mármore e pernas de ferro batido, lindamente trabalhadas. Quando se olhava para a superfície polida do mármore, as formas vagas dos controles se tornavam visíveis, e, ao estender a mão para tocá-los, os controles se materializavam imediatamente. Olhando-se os espelhos no ângulo correto, eles pareciam refletir todos os dados relevantes, embora fosse impossível dizer qual a origem dessas imagens refletidas. Em suma: uma beleza extraordinária. Refestelado numa espreguiçadeira de palhinha, Zaphod Beeblebrox perguntou:

- Que diabos aconteceu?

- Bem, o que eu estava dizendo - disse Arthur, ao lado de um pequeno laguinho com peixes ornamentais - era que a tal chave do gerador de improbabilidade ficava aqui - e, ao falar, indicava o lugar onde antes ficava a chave e agora havia um vaso com uma planta.

- Mas onde estamos? - perguntou Ford, sentado na escada em espiral, com uma Dinamite Pangaláctica geladinha na mão.

- Exatamente no mesmo lugar, pelo visto - disse Trillian, pois nos espelhos a seu redor de repente apareceu a mesma paisagem árida de Magrathea.

Zaphod levantou-se de um salto.

- Então o que aconteceu com os mísseis?

Uma nova e surpreendente imagem apareceu nos espelhos.

- Parece - disse Ford, hesitante - que se transformaram num vaso de petúnias e numa baleia muito espantada...

- O fator de improbabilidade - interrompeu Eddie, que não havia mudado nem um pouco - é de oito milhões, setecentos e sessenta e sete mil, cento e vinte e oito contra um.

Zaphod olhou para Arthur.

- A idéia foi sua, terráqueo?

- Bem - disse Arthur -, eu só fiz...

- Você usou a cabeça, sabe? Grande idéia, ligar o gerador de improbabilidade por um segundo sem ativar as telas de proteção. Olhe, rapaz, você salvou as nossas vidas, sabe?

- Ah - disse Arthur-, não foi nada...

- Nada? - disse Zaphod. - Bem, então não se fala mais nisso. Computador, vamos aterrissar.

-Mas...

- Eu disse que não se fala mais nisso.

Também não se falou mais no fato de que, contra todas as probabilidades, um cachalote havia de repente se materializado muitos quilômetros acima da superfície de um planeta estranho.

E como não é este o meio ambiente natural das baleias em geral, a pobre e inocente criatura teve pouco tempo para se dar conta de sua identidade

"enquanto" cachalote, pois logo em seguida teve de se dar conta de sua identidade "enquanto" cachalote morto.

Segue-se um registro completo de toda a vida mental dessa criatura, do momento em que ela passou a existir até o momento em que ela deixou de existir.

Ah...! O que está acontecendo?, pensou o cachalote.

Ah, desculpe, mas quem sou eu?

Ei!

Por que estou aqui? Qual a minha razão de ser?

O que significa perguntar quem sou eu?

Calma, calma, vamos ver... ah! que sensação interessante, o que é? É

como... bocejar, uma cócega na minha... minha... bem, é melhor começar a dar nome às coisas para eu poder fazer algum progresso nisto que, para fins daquilo que vou chamar de discussão, vou chamar de mundo. Então vamos dizer que esta seja minha barriga.

Bom. Ah, está ficando muito forte. E que barulhão é esse passando por aquilo que resolvi chamar de minha cabeça? Talvez um bom nome seja... vento!

Será mesmo um bom nome? Que seja... talvez eu ache um nome melhor depois, quando eu descobrir pra que ele serve. Deve ser uma coisa muito importante, porque tem muito disso no mundo. Epa! Que diabo é isso? É... vamos chamar essa coisa de rabo. Isso, rabo. Epa! Eu posso mexê-lo bastante! Oba! Oba! Que barato! Não parece servir pra muita coisa, mas um dia eu descubro pra que ele serve. Bem, será que eu já tenho uma visão coerente das coisas?

Não.

Não faz mal. Isso é tão interessante, tanta coisa pra descobrir, tanta coisa boa por vir, estou tonto de expectativa...

Ou será o vento?

Realmente tem vento demais aqui, não é?

E, puxai Que é essa coisa se aproximando de mim tão depressa? Tão depressa. Tão grande e chata e redonda, tão... tão... Merece um nome bem forte, um nome tão... tão... chão! É isso! Eis um bom nome: chão!

Será que eu vou fazer amizade com ele?

E o resto - após um baque súbito e úmido - é silêncio.

Curiosamente, a única coisa que passou pela mente do vaso de petúnias ao cair foi: Ah, não, outra vez! Muitas pessoas meditaram sobre esse fato e concluíram que, se soubéssemos exatamente por que o vaso de petúnias pensou isso, saberíamos muito mais a respeito da natureza do Universo do que sabemos atualmente.

Capítulo 19

Esse robô vai conosco? - perguntou Ford, olhando com repulsa para Marvin, que estava em pé, os ombros caídos para a frente, desconjuntado, debaixo de uma palmeirinha.

Zaphod desviou a vista das telas-espelhos, que mostravam uma visão panorâmica da paisagem desértica na qual a nave Coração de Ouro acabava de aterrissar.

- Ah, o Andróide Paranóide - disse ele. - É, vamos levá-lo.

- Mas o que a gente vai fazer com um robô maníaco-depressivo? -Você

acha que o seu problema é sério? - exclamou Marvin, como se estivesse se dirigindo ao novo morador de uma sepultura. - E

eu? O que faço se eu sou um robô maníaco-depressivo? Não, nem tente responder; eu sou 50 mil vezes mais inteligente que você e nem eu sei a resposta. Só ao tentar me colocar no seu nível intelectual, fico com dor de cabeça. Trillian veio correndo de sua cabine.

- Meus ratinhos brancos fugiram! - exclamou ela.

Nos dois rostos de Zaphod, expressões de profunda preocupação e consternação nem sequer fingiram aparecer.

- Danem-se os seus ratinhos brancos. Trillian olhou-o com raiva e saiu de novo.

É possível que a frase de Trillian tivesse despertado mais atenção se todos soubessem que os seres humanos eram apenas a terceira forma de vida mais inteligente do planeta Terra, e não (como era geralmente considerado pela maioria dos observadores independentes) a segunda.

- Boa tarde, meninos.

A voz era estranhamente familiar, porém curiosamente diferente. Tinha um quê de maternal. Ela manifestou-se pela primeira vez quando os tripulantes aproximaram-se da câmara de descompressão pela qual passariam para sair da espaçonave.

Eles se entreolharam surpresos.

- É o computador - explicou Zaphod. - Descobri que ele tinha uma segunda personalidade, para ser usada em casos de emergência, e eu achei que talvez fosse melhor que a outra.

- Esta é a primeira vez que vocês vão sair neste planeta desconhecido - prosseguiu a nova voz de Eddie. - Por isso eu quero todos bem agasalhadinhos, e nada de botar a mãozinha em criaturinhas feias de olhos esbugalhados, ouviram?

Zaphod tamborilava a escotilha com impaciência.

- Me desculpem - disse ele. - Acho que estaríamos melhor com uma régua de cálculo.

- Muito bem1. - gritou o computador. - Quem foi que disse isso?

- Quer abrir a escotilha de saída, por favor, computador? -disse Zaphod, tentando não perder a calma.

- Só quando a pessoa que disse aquilo se identificar - falou o computador, fechando algumas sinapses.

- Ah, meu Deus - murmurou Ford, encostando-se num an-teparo e começando a contar até dez. Preocupava-o muito a possibilidade de que um dia as formas de vida inteligentes não soubessem mais fazer isso. Contar era a única maneira que restava aos seres humanos para provar sua independência em relação aos computadores.

- Vamos - disse Eddie, sério.

- Computador... - foi dizendo Zaphod.

- Estou esperando - interrompeu Eddie. - Se precisar, espero o dia inteiro...

- Computador - disse Zaphod, que havia tentado pensar num raciocínio sutil que convencesse o computador, mas resolveu desistir de continuar lutando com as mesmas armas que ele -, se não abrir essa escotilha agora, eu vou agora mesmo até o seu banco de dados e vou reprogramar você com um porrete desse tamanho, ouviu?

Eddie, chocado, parou para pensar.

Ford continuava contando discretamente. Isso é a coisa mais agressiva que se pode fazer com um computador. É como se aproximar de um ser humano e dizer: Sangue... sangue... sangue.

Afinal, Eddie disse, em voz baixa:

- Pelo visto, todos nós vamos ter que nos esforçar para desenvolvermos um bom relacionamento.

E a escotilha se abriu.

Um vento gélido surpreendeu-os; encolheram-se de frio e desceram a rampa até a poeira morta de Magrathea.

- Aposto que tudo isso vai acabar em lágrimas - gritou Eddie quando eles já se afastavam, e fechou a escotilha.

Alguns minutos depois, ele abriu e fechou a escotilha obedecendo a uma ordem que o pegou completamente de surpresa.

Capítulo 20

Cinco figuras caminhavam lentamente pela terra desértica. O solo era às vezes de um cinza chato, às vezes de um marrom chato, e o resto era menos interessante ainda. Era como um pântano seco, sem qualquer vegetação, coberto com uma camada de dois centímetros de poeira. Fazia muito frio. Zaphod estava evidentemente muito deprimido com aquela paisagem. Foi se destacando dos outros e logo se perdeu de vista atrás de uma pequena elevação.

O vento fazia arder os olhos e ouvidos de Arthur, e o ar viciado e rarefeito ressecava-lhe a garganta. Porém o que estava mais impactado era sua mente.

- É fantástico... - exclamou ele, e surpreendeu-se com o som de sua própria voz. Naquela atmosfera rarefeita, o som se propagava com dificuldade.

- Quer saber o que eu acho? O fim do mundo é isso aqui -disse Ford. - Um mictório pra gatos é mais divertido. - Sua irritação crescia. Com tantos planetas em todos os sistemas estelares da Galáxia, muitos deles selvagens e exóticos, cheios de vida, depois de 15 anos de exílio, ele tinha que ir parar numa droga daquelas! Nem mesmo uma barraquinha de cachorro-quente por perto. Abaixou-se e pegou um torrão de terra fria, mas embaixo dele não havia nada que valesse a pena viajar milhares de anos-luz para ver.

- Não - insistiu Arthur -, será que você não entende? É a primeira vez que ponho os pés em outro planeta... todo um mundo diferente... É mesmo uma pena que não tenha nada pra se ver.

Trillian, toda encolhida de frio, tremia. Havia uma expressão de dúvida em seu rosto. Ela seria capaz de jurar que tinha visto um leve movimento inesperado com o canto da vista, mas quando olhou naquela direção só viu a nave, imóvel e silenciosa, uns 100 metros atrás.

Sentiu-se aliviada quando, segundos depois, viu Zaphod no alto da elevação, fazendo sinal para que os outros se aproximassem. Ele parecia excitado, mas não dava para ouvir o que ele dizia, por causa do vento e da atmosfera rarefeita.

Ao se aproximarem da elevação, perceberam que ela parecia ser circular

- uma cratera de uns 150 metros de diâmetro. Ao redor da cratera havia umas coisas pretas e vermelhas. Pararam e olharam para um dos pedaços. Era úmido. Tinha a consistência de borracha.

Horrorizados, descobriram que era carne de baleia fresca.

Na beira da cratera, encontraram Zaphod.

-Vejam - disse ele, apontando para dentro da cratera.

No centro via-se a carcaça arrebentada de um cachalote que não vivera o suficiente para se decepcionar com a sua condição. O silêncio foi perturbado apenas pelos leves espasmos involuntários da garganta de Trillian.

- Acho que é bobagem enterrá-la, não é? - murmurou Arthur, e logo se arrependeu de ter falado.

- Venha - disse Zaphod, e foi descendo rumo ao centro da cratera.

- O quê? Ir aí? - disse Trillian, com extrema repulsa.

- É - disse Zaphod. - Venham. Quero mostrar uma coisa.

- Dá pra ver daqui - disse Trillian.

- Não, é outra coisa - disse Zaphod. - Venham.

Todos hesitaram.

- Vamos! - insistiu Zaphod - Eu achei a entrada.

- Entrada? -exclamou Arthur, horrorizado.

- A entrada do interior do planeta! Uma passagem subterrânea. O

impacto da baleia rachou o chão, e é por aí que a gente pode passar. Vamos onde homem algum pisou desde cinco milhões de anos atrás, explorar as profundezas do tempo...

Marvin mais uma vez começou a cantarolar, irônico.

Zaphod deu-lhe um tabefe e ele parou.

Com arrepios de asco, todos seguiram Zaphod, descendo a encosta da cratera, esforçando-se ao máximo para não olhar o ser que a criara.

- Ah, a vida - disse Marvin, lúgubre. - Pode-se odiá-la ou ignorá-la, mas é

impossível gostar dela.

No ponto em que caíra a baleia, o chão havia cedido, revelando uma rede de galerias e passagens, muitas delas obstruídas por terra e entranhas de baleia. Zaphod havia começado a desobstruir uma delas, mas Marvin era bem mais rápido nessa tarefa. Um ar úmido saía das cavernas escuras, e, quando Zaphod iluminou a passagem com uma lanterna, não se viu quase nada.

- Reza a lenda - disse ele - que os magratheanos passavam a maior parte do tempo debaixo da terra.

- Por quê? - perguntou Arthur. - Por que a superfície tornou-se muito poluída ou superpovoada?

- Não, acho que não - disse Zaphod. - Creio que eles simplesmente não gostavam muito dela.

- Você sabe mesmo o que está fazendo? - perguntou Trillian, olhando nervosa para as trevas. - Nós já sofremos um ataque, não é?

- Escute, menina, eu garanto que a população deste planeta é de zero mais nós quatro. Vamos entrar, ô, terráqueo...

- Arthur - disse Arthur.

- Pois é, será que dava pra você ficar com esse robô e tomar conta dessa entrada?

- Tomar conta? - perguntou Arthur. - Pra quê? Você não acabou de dizer que não tem ninguém neste planeta?

- É, pois é, mas, você sabe, só por segurança, está bem? -insistiu Zaphod.

- A sua segurança ou a minha?

- Então estamos combinados. Vamos lá.

Zaphod enfiou-se na passagem, seguido de Trillian e Ford.

- Tomara que vocês não se divirtam nem um pouco - disse Arthur.

- Não se preocupe - disse Marvin. - Não há perigo de eles se divertirem. Segundos depois, eles já haviam desaparecido.

Arthur ficou andando de um lado para o outro, batendo com os pés no chão, e depois concluiu que túmulo de baleia não é um bom lugar para ficar andando e batendo com os pés no chão.

Marvin dirigiu-lhe um olhar assassino e em seguida desligou-se. Zaphod descia rapidamente a passagem, nervosíssimo, mas tentava disfarçar o nervosismo andando depressa. Apontou a lanterna para todas as direções. As paredes eram recobertas de ladrilhos escuros e frios; no ar havia um cheiro pesado de podridão.

- Está vendo, eu não disse? - exclamou ele. - Um planeta habitado, Magrathea. - E seguiu em frente, caminhando por entre os montes de terra e detritos que enchiam o chão de ladrilhos.

Trillian, naturalmente, lembrou-se do metrô de Londres, só que ali era bem mais limpo.

De vez em quando, os ladrilhos das paredes eram interrompidos por grandes mosaicos, formando desenhos simples e angulosos, em cores vivas. Trillian parou e examinou um deles, mas não conseguiu interpretar seu significado. Dirigiu-se a Zaphod:

- Você faz alguma idéia do que representam esses símbolos estranhos?

- Acho que são símbolos estranhos de alguma espécie - disse Zaphod, sem sequer olhar para trás.

Trillian deu de ombros e seguiu-o.

De vez em quando havia uma porta à esquerda ou à direita. Essas portas davam para pequenos recintos que, conforme constatou Ford, continham equipamentos de computador abandonado. Ford arrastou Zaphod para dentro de um desses cubículos para mostrar-lhe o que havia lá. Trillian entrou também.

- Escute - disse Ford -, você acha que estamos em Magrathea...

- Acho - disse Zaphod -, e a voz confirmou, não é?

- Está bem. Então aceito que estamos mesmo em Magrathea, para fins de discussão. Só que até agora você não explicou como foi que descobriu este planeta. Garanto que não foi ao consultar um atlas de astronomia.

- Pesquisas. Arquivos do governo. Trabalhos de detetive. Algumas intuições felizes. Fácil.

- E aí você roubou a nave Coração de Ouro pra vir até aqui?

- Roubei a nave pra procurar um monte de coisas.

- Um monte de coisas? - exclamou Ford, surpreso. - Por exemplo?

- Sei lá.

- O quê?

- Sei lá o que eu estou procurando.

- Como assim?

- Porque... porque... acho que porque... se soubessem o que eu procurava, eu não poderia procurar.

- Você está maluco?

- É uma possibilidade que ainda não excluí - disse Zaphod, em voz baixa.

- De mim mesmo só sei o que meu cérebro consegue entender nas atuais circunstâncias. Que não são nada boas. Durante um bom tempo ninguém disse nada. Ford ficou olhando para Zaphod, bastante preocupado.

- Escute, meu amigo, se você quer... - começou Ford.

- Não, espere... vou lhe dizer uma coisa - disse Zaphod. - Eu vivo rodando por aí. Eu tenho uma idéia, penso em fazer uma coisa, eu vou e faço. Resolvo virar presidente da Galáxia, e pronto, é fácil. Resolvo roubar esta nave. Resolvo procurar Magrathea, e pronto, tudo acontece. É, eu vejo qual é a melhor maneira de agir e sempre acerto. É como se eu tivesse um cartão Galaxicred que sempre é aceito, embora eu nem precise mandar o cheque. E aí, quando eu paro e penso: por que eu quis fazer isso? Como foi que eu consegui? - aí eu sinto uma tremenda vontade de parar de pensar nisso. Como agora, por exemplo. Tenho que fazer o maior esforço só pra conseguir falar sobre esse assunto. Zaphod fez uma pausa. Fez-se silêncio por algum tempo. Depois Zaphod franziu as sobrancelhas e disse:

- Ontem à noite eu estava pensando nisso outra vez. Esse problema de uma parte do meu cérebro não funcionar direito. Depois me ocorreu que o que parecia era que alguém estava usando minha mente para ter boas idéias, sem me dizer nada. Juntei as duas idéias e concluí que talvez alguém tenha reservado uma parte do meu cérebro para isso, e por isso eu não tenho acesso a ela. Aí resolvi encontrar um jeito de verificar se era isso mesmo.

"Fui ao compartimento médico da nave e me liguei ao encefalógrafo. Fiz todos os testes mais importantes com minhas duas cabeças, todos os testes que eu tive que fazer com os médicos do governo para poder ratificar minha nomeação para a presidência. Não deu nada. Quero dizer, nada de inesperado. Deu que era inteligente, cheio de imaginação, irresponsável, nada confiável, extrovertido - tudo o que vocês já sabem. Nenhuma outra anomalia. Então comecei a inventar outros testes, completamente aleatórios. Nada. Aí tentei fazer uma superposição dos resultados referentes a uma das cabeças com os da outra. Nada. Aí resolvi que era só paranóia. Antes de guardar os equipamentos, peguei a foto da superposição e olhei pra ela através de um filtro verde. Você se lembra da minha superstição em relação à cor verde quando eu era garoto? Eu sempre quis ser astronauta mercante. Ford concordou com a cabeça.

- E não deu outra - disse Zaphod. - No meio dos cérebros havia em cada um deles uma seção, e elas só estavam relacionadas uma com a outra, mas sem relação com o que estava em volta delas. Algum sacana cauterizou todas as sinapses e traumatizou eletronicamente aqueles dois pedaços do cérebro. Ford arregalou os olhos. Trillian estava branca.

- Alguém fez isso com você? - sussurrou Ford. -É.

- Mas você faz alguma idéia de quem foi? E por quê?

- Por quê? Tenho uns palpites, só isso. Mas sei quem foi o sacana.

- Sabe? Como?

- Porque deixaram as iniciais marcadas nas sinapses cauteri-zadas. De propósito, pra eu saber.

Ford olhou para ele horrorizado; estava todo arrepiado.

- Iniciais? Marcadas no seu cérebro? -É.

- Mas quais eram as iniciais, afinal?

Zaphod olhou para ele em silêncio por um momento. Então desviou a vista.

- Z. B. - disse, em voz baixa.

Neste momento, uma porta de aço fechou-se atrás dele e o recinto começou a encher-se de gás.

- Depois eu explico - disse Zaphod, tossindo, e os três desmaiaram. Capítulo 21

Na superfície de Magrathea, Arthur andava de um lado para o outro, emburrado.

Para distraí-lo, Ford tivera a idéia de emprestar-lhe seu Guia do Mochileiro das Galáxias. Arthur apertou alguns botões aleatoriamente. O Guia do Mochileiro das Galáxias é uma obra organizada de modo um tanto caótico e contém diversos trechos que foram incluídos simplesmente porque na hora os organizadores acharam que era uma boa idéia.

Um desses trechos (foi o que Arthur leu nesse momento) supostamente é o relato das experiências de um certo Veet Voojagig, jovem e tímido estudante da Universidade de Maximegalon, que seguiu uma carreira brilhante estudando filologia arcaica, ética transformacional e a teoria ondulatória-harmônica da percepção histórica, e que, após uma noite bebendo Dinamite Pangaláctica com Zaphod Beeblebrox, começou a ficar obcecado com o que teria acontecido com todas as esferográficas que ele havia comprado nos últimos anos.

Seguiu-se um longo período de pesquisas meticulosas, durante o qual Voojagig visitou todos os principais centros de perdas de esferográficas da Galáxia, e terminou formulando uma curiosa teoria que se popularizou muito na época. Em algum lugar no cosmos - afirmou ele -, além de todos os planetas habitados por humanóides, reptilóides, peixóides, arvoróides ambulantes e tons de azul superinteligentes, haveria também um planeta habitado exclusivamente por seres vivos esferografóides. E era para esse planeta que iam todas as esferográficas perdidas e abandonadas, escapulindo por buraquinhos no espaço para um mundo onde elas podiam viver uma vida esferografóide, reagir a estímulos de caráter eminentemente esferografitico - em suma, levar a vida com que sonha toda esferográfica.

Como teoria, isso era bastante interessante. Mas, um dia, Veet Voojagig resolveu afirmar que havia descoberto esse planeta, onde teria trabalhado por algum tempo como chofer de uma família de canetas verdes baratas de ponta retrátil. Então Voojagig foi internado, escreveu um livro e terminou como exilado tributário, que é o que costuma acontecer com aqueles que fazem papel de bobo publicamente. Quando, um dia, foi enviada uma expedição para as coordenadas espaciais onde, segundo Voojagig, se encontraria o tal planeta, acharam apenas um pequeno asteróide cujo único habitante era um velhinho, o qual vivia afirmando que nada era verdade, se bem que mais tarde constatou-se que ele estava mentindo. Porém permaneceram sem resposta duas questões: a misteriosa quantia anual de 60.000 dólares altairenses depositada na sua conta, em Brantisvogan; e, naturalmente, a lucrativa empresa de comércio de esferográficas de segunda mão de propriedade de Zaphod Beeblebrox.

Depois de ler essa passagem, Arthur largou o livro. O robô continuava sentado, completamente inerte.

Arthur levantou-se e caminhou até o alto da borda da cratera. Ficou andando em torno da depressão, vendo os dois sóis de Magrathea se pondo, uma cena magnífica.

Desceu para o centro da cratera outra vez. Acordou o robô, porque é

melhor falar até mesmo com um robô maníaco-depressivo do que falar sozinho.

- Está anoitecendo - disse Arthur. - Veja, robô, as estrelas estão aparecendo.

Do interior de uma nebulosa escura só se pode ver um pequeno número de estrelas, e assim mesmo muito fracas; mas era melhor que nada. Obediente, o robô olhou para o céu e depois baixou a vista.

- É - disse ele. - Que droga, não é?

- Mas aquele pôr-do-sol! Nunca vi nada igual, nem nos meus sonhos mais alucinantes... dois sóis! Era como montanhas de fogo ardendo contra o céu.

- Já vi esse tipo de coisa - disse Marvin. - Um saco.

- Lá na Terra a gente só tinha um sol - insistiu Arthur. - Sou de um planeta que se chamava Terra, você sabe.

- Sei, sim - disse Marvin. - Você não fala noutra coisa. Pelo que você diz, devia ser horrível.

-Ah, não, era um lugar belíssimo...

- Tinha oceanos?

- Se tinha! - disse Arthur, suspirando. - Oceanos enormes, com ondas, bem azuis...

- Não tolero oceanos - disse Marvin.

- Me diga uma coisa... - disse Arthur. - Você se dá bem com os outros robôs?

- Detesto todos - disse Marvin. - Aonde você vai? Arthur não agüentava mais. Levantou-se.

- Acho que vou dar mais uma volta.

- É, eu entendo - disse Marvin, e contou 597 bilhões de carneiros até

conseguir adormecer de novo.

Arthur ficou dando tapinhas nos seus próprios braços para estimular a circulação. Recomeçou a subir a borda da cratera.

Como a atmosfera era muito rarefeita e não havia lua, a noite caía muito depressa, e já estava muito escuro. Por isso, Arthur só viu o velho quando já

estava quase esbarrando nele.

Capítulo 22

O velho estava de costas para Arthur, contemplando os últimos vestígios de luz que desapareciam no horizonte. Era um velho alto, que trajava uma longa túnica cinzenta. Quando se virou, revelou um rosto fino e nobre, envelhecido porém bondoso, o tipo de rosto que você gosta de ver no gerente do seu banco. Mas ele não se virou nem mesmo quando Arthur soltou uma interjeição de espanto.

Por fim, os últimos raios de luz morreram completamente, e só então ele se virou. Seu rosto ainda estava iluminado por alguma luz, e, quando Arthur procurou a fonte de onde ela vinha, viu que a alguns metros dali havia uma pequena nave, uma espécie de pequeno hovercraft. A seu redor havia um pálido círculo de luz.

O homem olhou para Arthur, com um olhar aparentemente triste.

- Você escolheu uma noite fria para visitar nosso planeta morto - disse ele.

- Quem... quem é você? - gaguejou Arthur.

O homem virou o rosto. Novamente surgiu uma expressão de tristeza em sua fisionomia.

- Meu nome não é importante - disse.

Parecia estar pensando em alguma coisa. Pelo visto, não estava com pressa de começar a conversa.

Arthur sentiu-se pouco à vontade.

- Eu... aaah... o senhor me deu um susto - disse, por falta do que dizer. O homem virou-se e olhou para ele de novo, arqueando de leve as sobrancelhas. -Hum?

- Eu disse que o senhor me assustou.

- Não tenha medo, não vou lhe fazer mal. Arthur franziu a testa.

- Mas o senhor nos atacou! Os mísseis...

O homem olhou para o centro da cratera. A luzinha fraca que saía dos olhos de Marvin projetava débeis sombras vermelhas sobre a enorme carcaça da baleia.

O homem deu uma risadinha.

- É um sistema automático - disse, e suspirou. - Há milênios que esses computadores funcionam no interior do planeta, e seus empoeirados bancos de dados aguardam há muitas eras algum acontecimento. Acho que de vez em quando eles soltam um míssil só pra quebrar a monotonia. - Dirigiu um olhar sério a Arthur e acrescentou: - Eu gosto muito de ciência, sabe.

-Ah... é mesmo? - perguntou Arthur, que estava começando a ficar desconcertado com o jeito cortês e curioso do velho.

- Gosto, sim - respondeu o velho, e calou-se de novo.

- Ah... - disse Arthur. - É... - Sentia-se como um homem que, apanhado em flagrante de adultério, quando o marido da amante entra no quarto, vê o marido mudar as calças, comentar o tempo que está fazendo e ir embora.

- Você parece desconcertado - disse o homem, atencioso.

- Não, quero dizer... é, estou, sim. O senhor sabe, é que a gente não esperava encontrar ninguém aqui. Eu pensava que vocês todos já tinham morrido, sei lá...

- Morrido?-disse o velho. - Não, que idéia! Estávamos apenas dormindo.

- Dormindo? - exclamou Arthur, surpreso.

- É, por causa da recessão econômica, sabe - disse o velho, aparentemente pouco ligando se Arthur entendia o que ele estava dizendo ou não. Arthur foi obrigado a perguntar: -Ah... recessão econômica?

- Bem, há uns cinco milhões de anos a economia galáctica entrou em crise, e como os planetas sob medida são um luxo supérfluo, você entende... Fez uma pausa e olhou para Arthur.

- Você sabe que a gente construía planetas, não sabe?

- Ah, claro - disse Arthur. - Era o que eu imaginava...

- Uma atividade fascinante - disse o velho, com um olhar nostálgico. - O

que eu preferia era fazer os litorais. Como eu me divertia, caprichando nos fiordes... Mas, como eu ia dizendo -disse ele, tentando retomar o fio da meada -, veio a recessão e resolvemos que o melhor a fazer seria dormir por uns tempos. Assim, programamos os computadores para nos acordarem quando tudo tivesse voltado ao normal. - O velho sufocou um leve bocejo e prosseguiu: - Os computadores estavam ligados à bolsa de valores da Galáxia, de modo que seríamos acordados quando a economia já tivesse recuperado o bastante para as pessoas voltarem a se interessar por nossos produtos, que são um tanto caros. Arthur, que lia The Guardian regularmente, ficou muito chocado.

- Mas isso é um comportamento imperdoável, não acha?

- Você acha? - perguntou o velho, cortês. - Desculpe, ando meio desatualizado. - Apontou para o fundo da cratera. - Aquele robô é seu?

- Não - respondeu uma vozinha metálica, vindo do fundo da cratera. - Sou meu, mesmo.

- Se é que isso é um robô - murmurou Arthur. - É mais uma espécie de gerador eletrônico de mau humor.

- Traga-o aqui - disse o homem, surpreendendo Arthur com o tom de voz autoritário que de repente surgiu em sua voz. Arthur chamou Marvin, que subiu à borda da cratera mancando ostensivamente, embora não fosse manco.

- Pensando bem - disse o velho -, é melhor deixá-lo aí. Venha comigo. Coisas importantes estão acontecendo.

Virou-se para seu veículo, o qual, embora aparentemente o velho não tivesse feito nenhum sinal para ele, vinha deslizando silenciosamente na direção deles, na escuridão.

Arthur olhou para Marvin, que agora ostensivamente virou-se com dificuldade e começou a descer de volta para o centro da cratera, resmungando.

- Venha - disse o velho. - Venha logo, senão você chegará tarde.

- Tarde? - exclamou Arthur. - Tarde pra quê?

- Como você se chama, humano?

- Dent. Arthur Dent.

- Tarde, como em "tarde demais", Dentarthurdent - disse o velho, friamente. - É uma espécie de ameaça. - Novamente seus olhos cansados assumiram uma expressão melancólica. - Nunca fui muito bom em matéria de ameaças, mas dizem que às vezes ameaçar funciona, mesmo.

Arthur arregalou os olhos.

- Que criatura extraordinária - murmurou.

- Como? - perguntou o velho.

- Ah, nada, desculpe - disse Arthur, sem jeito. - Bem, para onde vamos?

- Vamos pegar meu aeromóvel - disse o velho, fazendo sinal para que Arthur entrasse no veículo, que já estava parado a seu lado. - Vamos nos aprofundar no interior deste planeta, onde nesse exato momento nossa espécie está despertando após um sono de cinco milhões de anos. Magrathea está

acordando.

Arthur estremeceu sem querer, ao sentar-se ao lado do velho. Perturbava-o a estranheza do movimento daquele veículo, que balançava de leve ao elevar-se no ar.

Arthur olhou para o velho, cujo rosto estava iluminado pelas luzinhas do painel de controle.

- Desculpe - perguntou -, mas qual é seu nome mesmo?

- Meu nome? - disse o velho, e a mesma tristeza nostálgica apareceu em seu rosto. Fez uma pausa. - Meu nome... é Slartibartfast.

Arthur quase se engasgou.

- Como?

- Slartibartfast - repetiu o velho, tranqüilo.

- Slartibartfast?

O velho dirigiu-lhe um olhar sério.

- Eu disse que meu nome não era importante. O aeromóvel singrou o céu escuro.

Capítulo 23

É um fato importante, e conhecido por todos, que as coisas nem sempre são o que parecem ser. Por exemplo, no planeta Terra os homens sempre se consideraram mais inteligentes que os golfinhos, porque haviam criado tanta coisa - a roda, Nova York, as guerras, etc. -, enquanto os golfinhos só sabiam nadar e se divertir. Porém, os golfinhos, por sua vez, sempre se acharam muito mais inteligentes que os homens - exatamente pelos mesmos motivos. Curiosamente, há muito que os golfinhos sabiam da iminente destruição do planeta, e faziam tudo para alertar a humanidade; porém suas tentativas de comunicação eram geralmente interpretadas como gestos lúdicos com o objetivo de rebater bolas ou pedir comida, e por isso eles acabaram desistindo e abandonaram a Terra por seus próprios meios antes que os vogons chegassem. A derradeira mensagem dos golfinhos foi entendida como uma tentativa extraordinariamente sofisticada de dar uma cambalhota dupla para trás assobiando o hino nacional dos Estados Unidos, mas na verdade o significado da mensagem era: Adeus, e obrigado por todos os peixes. Na verdade havia no planeta uma única espécie mais inteligente que os golfinhos, que passava boa parte do tempo nos laboratórios de pesquisas de comportamento, correndo atrás de rodas e realizando experiências incrivelmente elegantes e sutis com seres humanos. O fato de que mais uma vez os homens interpretaram seu relacionamento com essas criaturas de modo totalmente errado era exatamente o que estava nos planos elaborados por elas. Capítulo 24

Silenciosamente, o aeromóvel cruzava a fria escuridão, a única luzinha acesa nas trevas profundas da noite de Magrathea. O veículo voava depressa. O

companheiro de Arthur parecia absorto em seus próprios pensamentos, e nas duas vezes que Arthur tentou puxar conversa com ele o velho limitou-se a perguntar-lhe se estava tudo bem com ele, e a coisa ficou por aí mesmo. Arthur tentou calcular a velocidade com que estavam se deslocando, mas a escuridão lá fora era absoluta, não havendo, assim, qualquer ponto de referência. A sensação de estarem se movendo era tão suave que era quase possível acreditar que estavam parados.

Então apareceu ao longe um pontinho de luz, que em poucos segundos já havia crescido tanto que Arthur concluiu que o ponto estava se aproximando deles a uma velocidade colossal. Tentou discernir que espécie de nave seria. Olhava, mas não conseguia perceber nenhuma forma definida; de repente soltou uma interjeição de pavor quando o aeromóvel perdeu altura num movimento súbito, parecendo estar prestes a chocar-se de frente com o outro veículo. A velocidade relativa dos dois parecia inacreditável, e antes que Arthur tivesse tempo de respirar tudo já havia terminado. Quando deu por si, Arthur viu que estavam cercados de uma luminosidade prateada incompreensível. Virou-se para trás de repente e viu um pequeno ponto preto diminuindo rapidamente na distância, e levou alguns segundos para entender o que havia acontecido.

Haviam entrado num túnel subterrâneo. A velocidade relativa colossal fora simplesmente a velocidade do aeromóvel em relação a um buraco no chão, a boca do túnel. A luminosidade prateada era a parede circular do túnel que eles agora estavam percorrendo, a algumas centenas de quilômetros por hora. Apavorado, Arthur fechou os olhos.

Depois de um intervalo de tempo que ele sequer tentou avaliar, sentiu que estavam perdendo um pouco de velocidade, e algum tempo depois percebeu que estavam gradualmente parando.

Reabriu os olhos. Ainda estavam dentro do túnel prateado, atravessando um verdadeiro labirinto de túneis convergentes. Quando por fim estacionaram, estavam numa pequena câmara de paredes curvas de aço. Diversos outros túneis também terminavam aí e na extremidade oposta Arthur viu um círculo grande de luz fraca e irritante. Era irritante porque proporcionava uma espécie de ilusão de ótica: não havia como focalizar os olhos nela, e era impossível calcular a que distância estava. Arthur imaginou (erradamente) que fosse luz ultravioleta.

Slartibartfast virou-se e encarou Arthur com seus olhos velhos e solenes.

- Terráqueo - disse ele -, estamos agora no coração de Magrathea.

- Como descobriu que eu sou terráqueo?

- Estas coisas vão ficar claras para você - disse o velho, delicadamente. - Pelo menos - acrescentou, com um toque de dúvida na voz - vão ficar mais claras do que agora. - E prosseguiu: - Devo lhe avisar que a câmara pela qual vamos passar agora não existe literalmente dentro de nosso planeta. É um pouco... grande demais. Vamos entrar numa ampla extensão de hiperespaço. A experiência talvez seja perturbadora para você.

Arthur fez uns ruídos nervosos.

Slartibartfast apertou um botão e acrescentou, num tom não muito tranqüilizador:

- Eu, pelo menos, fico de perna bamba. Segure-se bem firme. O aeromóvel disparou em direção ao círculo de luz, e de repente Arthur teve uma idéia mais ou menos clara do que é o infinito.

Na verdade, não era o infinito. O infinito é uma coisa chata, nos dois sentidos da palavra. Quem olha para o céu à noite está olhando para o infinito; a distância é incompreensível, e portanto sem significado. A câmara na qual o aeromóvel entrou estava longe de ser infinita; era apenas muito, muito, mas muito grande, tão grande que dava a impressão de ser o infinito melhor do que o próprio infinito.

Os sentidos de Arthur balançavam-se e rodavam enquanto o aeromóvel, naquela velocidade imensa que ele já pudera estimar, subia lentamente no espaço aberto, e a passagem por onde eles haviam entrado transformava-se num pontinho invisível na parede reluzente da qual eles se afastavam. A parede.

A parede desafiava a imaginação - ela a seduzia e derrotava. Era tão assustadoramente imensa e lisa que seus limites, no alto, embaixo e nos lados, estavam além do alcance da vista. Ela proporcionava uma vertigem capaz de matar uma pessoa de choque.

A parede parecia perfeitamente plana. Seria necessário o mais delicado medidor para constatar que, à medida que ela subia, aparentemente rumo ao infinito, e descia, e se espalhava para os dois lados, ela também se curvava. Fechava-se sobre si própria a uma distância de 13 segundos-luz dali. Em outras palavras: a parede era o interior de uma esfera oca, com cerca de cinco milhões de quilômetros de diâmetro, inundada por uma luz inimaginável.

- Bem-vindo - disse Slartibartfast, quando o cisco infinitesimal que era o aeromóvel, viajando agora a uma velocidade três vezes superior à velocidade da luz, avançava imperceptivel-mente naquele espaço estonteante. - Bem-vindo à nossa fábrica.

Arthur olhou ao redor, com uma mistura de deslumbramento e horror. Dispostos à sua frente, a distâncias que ele não podia calcular, nem mesmo imaginar, havia uma série de curiosas suspensões, delicadas redes de metal e luz penduradas sobre sombrias formas esféricas que pairavam no espaço.

- É aqui - disse Slartibartfast - que fazemos a maioria dos nossos planetas.

- Quer dizer - disse Arthur, articulando as palavras com dificuldade - que vocês vão reabrir a fábrica agora?

- Não, não, que é isso! - exclamou o velho. - Não, a Galáxia ainda está

longe de ter dinheiro o suficiente para manter nosso negócio. Não, fomos despertados apenas para realizar um único serviço, para clientes muito... especiais, de outra dimensão. Talvez isto lhe interesse... ali, ao longe, à nossa frente.

Arthur olhou na direção em que o velho apontava, até que conseguiu distinguir a estrutura que ele indicava. Era, de fato, a única delas que tinha alguns sinais de atividade, embora isto fosse mais uma impressão subliminar do que uma coisa concreta.

Porém nesse instante um facho de luz descreveu um arco através da estrutura, pondo em relevo as formas que havia na superfície da esfera negra nela contida. Formas que Arthur conhecia, formas irregulares que lhe eram tão familiares como as formas das palavras, parte do mobiliário de sua mente. Por alguns segundos, Arthur ficou abestalhado, sem palavras, enquanto as imagens dançavam em sua mente, tentando encontrar um ponto em que pudessem estacionar e fazer sentido.

Uma parte de seu cérebro lhe dizia que ele sabia muito bem o que era que estava vendo, o que representavam aquelas formas, enquanto uma outra parte, muito sensatamente, recusava-se a admitir aquela idéia e não assumia a responsabilidade por levar adiante aquele raciocínio.

O facho de luz iluminou o globo outra vez, e agora não havia mais lugar para dúvida.

- A Terra... - sussurrou Arthur.

- Bem, a Terra II, para ser exato - disse Slartibartfast, sorridente. - Estamos fazendo uma cópia, com base nos esquemas originais. Houve uma pausa.

- O senhor quer dizer - foi dizendo Arthur lentamente, controladamente - que foram vocês que fizeram... a Terra original?

- Isso mesmo - disse Slartibartfast. -Você já esteve num lugar chamado... acho que era Noruega?

- Não - disse Arthur. - Nunca.

- Que pena - disse Slartibartfast. - Fui eu que fiz. Ganhou um prêmio, sabe? Beleza de litoral, todo trabalhado. Fiquei muito aborrecido quando soube que tinha sido destruída.

- O senhor ficou aborrecido!

- Fiquei. Cinco minutos depois, eu não teria me incomodado. Um equívoco fenomenal.

- Hein? - exclamou Arthur.

- Os ratos ficaram furiosos.

- Os ratos ficaram furiosos?

- É, ora - disse o velho.

- Está bem, mas não só os ratos como, imagino eu, os cachorros, os gatos, ornitorrincos, mas...

- Ah, mas não foram eles que pagaram por ela, não é?

- Escute - disse Arthur -, não seria mais prático pro senhor se eu entregasse os pontos e pirasse logo de uma vez?

Durante algum tempo, o aeromóvel voou num silêncio constrangedor. Depois o velho, paciente, tentou explicar.

- Terráqueo, o planeta em que você vivia foi encomendado, pago e governado pelos ratos. Ele foi destruído cinco minutos

antes de terminar de servir aos propósitos para o qual foi construído, e agora vamos ter que fazer outro.

Só uma palavra fora registrada no cérebro de Arthur.

- Ratos?

- É, terráqueo.

- Escute, por acaso estamos falando sobre aquelas criaturi-nhas peludas que se amarram em queijo e que faziam as mulheres subir nas mesas e ficar gritando naquelas comédias enlatadas dos anos 1960?

Slartibartfast tossiu um pouco, polidamente.

- Terráqueo, às vezes é difícil compreender a sua fala. Lembre-se que há

cinco milhões de anos estou dormindo dentro de Magrathea, e portanto não sei muita coisa sobre essas comédias enlatadas dos anos 1960. Essas criaturas chamadas ratos não são exatamente o que parecem ser. Não passam de protusões em nossa dimensão de seres pandimensionais imensos e hiperinteligentes. Toda essa história de queijo e guinchos é só fachada. - O

velho fez uma pausa, uma careta simpática, e prosseguiu. - Eles estavam fazendo experiências com vocês.

Arthur pensou nisso por um segundo, e então seu rosto se desanuviou.

- Ah, não - disse ele. - Agora entendi a origem desse mal-entendido. - Não, o que acontecia é que nós é que fazíamos experiências com eles. Os ratos eram muito utilizados em pesquisas do comportamento. Pavlov, essas coisas. O

que acontecia era que os ratos participavam de tudo quanto era experiência, aprendiam a tocar campainhas, corriam em labirintos, de modo que toda a natureza do processo de aprendizagem pudesse ser examinada. Com base nas observações do comportamento deles, a gente aprendia um monte de coisas a respeito do nosso comportamento...

A voz de Arthur foi morrendo aos poucos.

- Que sutileza! - disse Slartibartfast. - É realmente admirável.

- Como assim?

- Para disfarçar melhor suas verdadeiras naturezas e orientar melhor o pensamento de vocês. De repente corriam para o lado errado de um labirinto, comiam o pedaço errado de queijo, inesperadamente morriam de mixomatose... a coisa sendo bem calculada, o efeito cumulativo é imenso. - Fez uma pausa para acentuar o efeito de suas palavras. - Sabe, terráqueo, eles são mesmo seres pandimensionais particularmente hiperinteligentes. O seu planeta e a sua espécie formaram a matriz de um computador orgânico que processou um programa de pesquisa de dez milhões de anos... Eu lhe conto toda a história. Vai levar algum tempo.

- Tempo - respondeu Arthur, com voz débil. - No momento não é um dos meus problemas.

Capítulo 25

Como é sabido, a vida apresenta uma série de problemas, dos quais os mais importantes são, entre outros, Porque as pessoas nascem? Por que elas morrem? Por que elas passam uma parte tão grande do tempo entre o nascimento e a morte usando relógios digitais?.

Há muitos e muitos milhões de anos, uma espécie de seres pandimensionais hiperinteligentes (cuja manifestação física no universo pandimensional deles não é muito diferente da nossa) ficaram tão de saco cheio dessas discussões incessantes a respeito do significado da vida, as quais costumavam interromper seu passatempo favorito, o ultracríquete broquiano (um jogo curioso, no qual, entre outras coisas, os jogadores de repente batiam uns nos outros sem nenhum motivo aparente e depois fugiam correndo), que decidiram sentar e resolver esses problemas de uma vez por todas. Para tal, construíram um estupendo supercomputador tão extraordinariamente inteligente que, mesmo antes de seus bancos de dados serem ligados, ele já deduzira, a partir do princípio Penso, logo existo, a existência do pudim de arroz e do imposto de renda, antes que tivessem tempo de desligá-lo.

Era do tamanho de uma cidade pequena.

Seu terminal principal foi instalado num escritório especialmente projetado para esse fim, sobre uma mesa imensa de ultra-mogno, com tampo forrado de finíssimo couro ultravermelho. O carpete escuro era discretamente suntuoso; havia plantas exóticas e gravuras de muito bom gosto que representavam os principais programadores do computador com suas respectivas famílias, e janelas imponentes que davam para uma praça toda arborizada.

No dia da Grande Ligação do Computador, dois programadores de roupas sóbrias, carregando pastas, entraram e foram discretamente levados até

a sala do terminal. Sabiam que nesse dia agiam como representantes de sua espécie em seu momento mais solene, mas estavam perfeitamente calmos. Sentaram-se à mesa com certa deferência, abriram suas pastas e delas tiraram cadernos encadernados em couro.

Chamavam-se Lunkwill e Fook.

Por alguns momentos, permaneceram num silêncio respeitoso. Depois, após trocar um olhar com Fook, Lunkwill inclinou-se para a frente e tocou num pequeno painel negro.

Um sutilíssimo zumbido indicou que o enorme computador estava agora em funcionamento. Após uma pausa, ele falou, com uma voz cheia, ressoante e grave:

- Qual é a grande tarefa que eu, Pensador Profundo, o segundo maior computador do Universo do Tempo e Espaço, fui criado para assumir?

Lunkwill e Fook entreolharam-se, surpresos.

- Sua tarefa, ó computador... - ia dizendo Fook.

- Não, espere um minuto, isso não está certo - interrompeu Lunkwill, preocupado. - Nós projetamos esse computador de modo que ele fosse o maior de todos, e não vamos aceitar essa história de "segundo maior". Pensador Profundo - disse ele, dirigindo-se ao computador -, então, você não é, tal como foi feito para ser, o maior e mais poderoso computador de todos os tempos?

- Eu disse que era o segundo maior - respondeu Pensador Profundo -, e é o que sou.

Os dois programadores trocaram outro olhar preocupado. Lunkwill pigarreou.

- Deve haver algum engano - disse ele. - Você não é maior que o Pantagrucérebro Colossal de Maximegalon, que é capaz de contar todos os átomos de uma estrela em um milissegundo?

- O Pantagrucérebro Colossal? - disse Pensador Profundo, sem tentar disfarçar seu desprezo. - Aquele ábaco? Falemos de outra coisa.

- E você não é um calculador mais hábil - disse Fook, nervoso - que o Pensador Estelar Googleplex da Sétima Galáxia de Luz e Engenho, capaz de calcular a trajetória de cada grão de poeira em uma tempestade de areia de cinco semanas em Beta de Dangrabad?

- Uma tempestade de areia de cinco semanas? - exclamou Pensador Profundo, arrogante. - Eu, que já considerei os vetores dos átomos do próprio big-bang? Não me venham com essas proezas de calculadora de bolso. Por um momento, os dois programadores não souberam o que dizer. Então Lunkwill falou de novo:

- Mas não é verdade que você é um adversário mais temível que o Grande Estronca-Nêutrons Omini-Cognato Hiperlóbico de Ciceronicus 12, o Mágico e Infatigável?

- O Grande Estronca-Nêutrons Omni-Cognato Hiperlóbico - disse Pensador Profundo, caprichando nos erres - é capaz, de argumentar com uma megamula de Areturus até ela cair morta de exaustão, mas só eu seria capaz de convencê-la a levantar-se e andar depois.

- Então - perguntou Fook -, qual é o problema?

- Não há problema - disse Pensador Profundo, num tom de voz extraordinariamente ressonante. - Sou simplesmente o segundo maior computador no Universo do Espaço e Tempo.

- Mas, o segundo? - insistiu Lunkwill. - Por que você fala a toda hora que é o segundo? Será que você está pensando no Ruminador Titânico Perspieutrônico Multicorticóide? Ou no Meditamático? Ou no... Luzinhas arrogantes piscaram no terminal.

- Não gasto um bit pensando nesses retardados cibernéticos! Só falo do computador que há de vir depois de mim!

Fook estava perdendo a paciência. Pôs de lado o caderno e murmurou:

- Acho esse seu messianismo totalmente fora de propósito

- Você nada sabe do futuro - disse Pensador Profundo -, enquanto eu, com meus circuitos abundantes, navego nos deltas infinitos da probabilidade futura, e vejo que um dia surgirá um computador cujos parâmetros operacionais não sou digno de calcular, mas que será meu destino um dia projetar.

Fook suspirou fundo e olhou para Lunkwill.

- Podemos fazer logo a pergunta? Lunkwill fez sinal para que ele esperasse.

- De que computador você está falando? - perguntou Lunkwill.

- Não falarei mais dele no presente - respondeu Pensador Profundo. - Podem perguntar-me qualquer outra coisa que eu funcionarei. Falem. Os dois deram de ombros. Fook endireitou-se na cadeira.

- Ó Pensador Profundo, a tarefa que lhe cabe assumir é a seguinte: queremos que nos diga... - fez uma pausa e concluiu: - ...a Resposta!

- A Resposta? - repetiu Pensador Profundo. - Resposta a que pergunta?

- A Vida! - exclamou Fook.

- O Universo! - disse Lunkwill.

- E tudo o mais! - exclamaram em uníssono. Pensador Profundo fez uma pausa para refletir.

- Essa é fogo - disse, finalmente.

- Mas você pode nos dizer? Outra pausa significativa.

- Posso, sim - respondeu Pensador Profundo.

- Então há uma resposta? - perguntou Fook, ofegante.

- Uma resposta simples? - perguntou Lunkwill.

- Sim - respondeu Pensador Profundo. - A Vida, o Universo e Tudo o Mais. Há uma resposta. Mas vou ter que pensar nela.

O momento solene foi interrompido por uma comoção súbita: a porta abriu-se de repente e entraram dois homens irritados, trajando as vestes e cinturões de fazenda azul desbotada e grosseira que os identificava como membros da Universidade de Cruxwan, empurrando para o lado os empregados que tentavam impedir sua entrada.

- Exigimos o direito de entrar! - gritou o mais jovem dos dois, enfiando um cotovelo no pescoço de uma jovem e bonita secretária.

- Ora! - gritou o mais velho. - Vocês não podem nos manter do lado de fora! - Empurrou um jovem programador para fora da sala.

- Exigimos o direito de vocês não terem o direito de impedir que entremos! - gritou o mais jovem, embora já estivesse dentro da sala e ninguém o estivesse empurrando para fora.

- Quem são vocês? - perguntou Lunkwill, irritado, levan-tando-se. - O

que vocês querem?

- Sou Majikthise! - proclamou o mais velho.

- E exijo que eu seja Vroomíondel! - gritou o mais jovem. Majikthise virou-se para Vroomfondel.

-Tudo bem - explicou, zangado. - Isso você não tem que exigir!

- Está bem! - berrou Vroomfondel, esmurrando uma mesa.

- Eu sou Vroomfondel, e isto não é uma exigência, e sim um fato concreto1. O que exigimos são fatos concretos!

- Nada disso! - exclamou Majikthise, mais irritado ainda.

- É justamente isso que não exigimos!

Sem parar para respirar, Vroomfondel gritou:

- Não exigimos fatos concretos! O que exigimos é uma ausência total de fatos concretos. Exijo que eu possa ser ou não ser Vroomfondel!

- Mas, afinal, quem são vocês? - gritou Fook, indignado.

- Somos - disse Majikthise - filósofos.

- Se bem que podemos não ser - disse Vroomfondel, dedo em riste na cara dos programadores.

- Ah, somos, sim, definitivamente! - insistiu Majikthise. - Somos representantes do Sindicato Reunido de Filósofos, Sábios, Luminares e Outras Pessoas Pensantes, e queremos que essa máquina seja desligada agora mesmo 1

- Qual é o problema? - perguntou Lunkwill.

- Eu lhe digo já, já qual é o problema, meu chapa! - respondeu Majikthise.

- O problema é a demarcação!

- Exigimos - gritou Vroomfondel - que o problema possa ser ou não ser a demarcação!

- Essas máquinas têm mais é que fazer contas - disse Majikthise -, enquanto nós cuidamos das verdades eternas. Quer saber a sua situação perante a lei? Pela lei, a Busca da Verdade Ultima é uma prerrogativa inalienável dos pensadores. Se uma porcaria de uma máquina resolve procurar e acha a porcaria da Verdade, como é que fica o nosso emprego? O que adianta a gente passar a noite em claro discutindo se Deus existe ou não pra no dia seguinte essa máquina dizer qual é o número do telefone dele?

- Isso mesmo! — gritou Vroomfondel. - Exigimos áreas de dúvida e incerteza rigidamente delimitadas!

De repente, uma voz tonitruante ressoou no recinto.

- Por acaso eu poderia fazer uma observação? - perguntou Pensador Profundo.

- A gente entra em greve! - gritou Vroomfondel.

- Isso mesmo! - apelou Majikthise. - É o que vocês vão arranjar, uma greve nacional de filósofos!

O nível de zumbido de repente aumentou, quando diversos alto-falantes auxiliares, instalados em caixas de som envemizadas e trabalhadas, entraram em funcionamento para dar um pouco mais de potência à voz de Pensador Profundo, que prosseguiu:

- Eu só queria dizer que meus circuitos agora estão irrevogavelmente dedicados à tarefa de calcular a resposta à Questão Fundamental da Vida, o Universo e Tudo o Mais. - Fez uma pausa, para certificar-se de que agora todos estavam prestando atenção nele, e então acrescentou, em voz mais baixa: - Só

que o programa vai levar um certo tempo pra ser processado. Fook olhou para o relógio, impaciente.

- Quanto tempo?

- Sete milhões e quinhentos mil anos - respondeu o computador. Lunkwill e Fook entreolharam-se.

- Sete milhões e quinhentos mil anos...1. - exclamaram em uníssono.

- Exato - disse Pensador Profundo. - Eu disse que ia ter que pensar, não disse? E ocorre-me que um programa como esse certamente há de gerar uma publicidade imensa para toda a área de filosofia. Todo mundo vai elaborar uma teoria a respeito da resposta que vou dar no final. E ninguém poderá explorar melhor essa situação nos meios de comunicação do que vocês. Enquanto vocês continuarem a discordar violentamente um do outro e a atacar-se mutuamente na imprensa e a contratar bons agentes, vocês garantem sombra e água fresca pro resto da vida. É ou não é?

Os dois filósofos olhavam boquiabertos para o terminal.

- Ora, porra - disse Majikthise -, isso é que é pensar de verdade, o resto é

conversa fiada. Me diga uma coisa, Vroom-fondel, como é que a gente nunca tem uma idéia dessas?

- Sei lá - sussurrou Vroomfondel, reverente. - Acho que é porque nossos cérebros são treinados demais, Majikthise.

E, assim, os dois se viraram e saíram da sala, prontos a viver num padrão de vida muito superior aos seus sonhos mais loucos.

Capítulo 26

E muito edificante - disse Arthur, quando Slartibartfast terminou sua narrativa -, mas continuo não vendo relação entre isso tudo e a Terra, os ratos e tudo o mais.

- Isso é apenas a primeira metade da história, terráqueo -disse o velho. - Se você quiser saber o que aconteceu sete milhões e quinhentos mil anos depois, no grande dia da Resposta, permita-me convidá-lo a visitar meu gabinete de estudo, onde você mesmo poderá vivenciar os eventos por meio de gravações em Sensorama. Quero dizer, a menos que você prefira dar um passeio pela superfície da Nova Terra. Infelizmente ainda não está terminada; ainda nem acabamos de enterrar os esqueletos de dinossauros artificiais na crosta terrestre, e depois ainda temos que fazer períodos terciário e quaternário da era cenozóica, mais o ...

- Não, obrigado - disse Arthur. - Não seria a mesma coisa.

- É - concordou Slartibartfast -, não mesmo. - E deu meia-volta no aeromóvel, voltando para a parede inconcebível.

Capítulo 27

0 gabinete de Slartibartfast era uma bagunça completa, semelhante a uma biblioteca pública após uma explosão. O velho fechou a cara assim que entraram.

- Que azar! - disse ele. - Explodiu um diodo de um dos computadores dos sistemas de suporte de vida. Quando tentamos reavivar nossa equipe de limpeza, descobrimos que estão todos mortos há quase 30 mil anos. Eu queria saber quem é que vai remover os cadáveres. Escute, sente ali enquanto eu ligo o aparelho, está bem?

Indicou uma cadeira que parecia feita com a caixa torácica de um estegossauro.

- Ela foi feita com a caixa torácica de um estegossauro -explicou o velho, puxando uns fios debaixo de pilhas de papel e instrumentos. - Pronto. Segure as pontas - disse, entregando duas pontas de fio desencapado a Arthur. No momento em que ele as pegou, um pássaro veio voando e passou através dele.

Arthur estava pairando em pleno ar, e totalmente invisível para si próprio. Lá embaixo via uma bela praça arborizada; para todos os lados havia prédios de concreto branco, construções bem espaçosas, porém um tanto velhas; muitos dos prédios tinham rachaduras e manchas causadas pela chuva. Mas naquele dia em particular fazia sol, uma brisa agradável balançava os galhos das árvores, e Arthur tinha a curiosa sensação de que todos os prédios estavam zumbindo discretamente, talvez porque a praça e as ruas que nela desembocavam estavam cheias de pessoas alegres e animadas. Em algum lugar uma banda de música tocava; flâmulas coloridas balançavam na brisa; havia um ar de festa na cidade.

Arthur sentia-se extraordinariamente solitário lá no alto, sem ter nem mesmo um corpo para chamar de seu, mas, antes que ele tivesse tempo de pensar em sua situação, uma voz ressoou na praça, pedindo a atenção de todos. Em pé sobre uma plataforma enfeitada em frente do prédio mais importante da praça, um homem se dirigia à multidão através de um megafone.

- Ó vós que aguardais à sombra de Pensador Profundo] - gritou ele. - Honrados descendentes de Vroomfondel e Majikthise, os maiores e mais interessantes sábios do Universo... É findo o Tempo de Espera!

Um coro de vivas elevou-se da multidão. Bandeiras, flâmulas e assobios cruzaram os ares. As ruas mais estreitas pareciam centopéias emborcadas, agitando suas perninhas desesperadamente.

- Há sete milhões e quinhentos mil anos que nossa espécie espera por este Grande Dia de Iluminação! - gritou o homem. - O Dia da Resposta!

Hurras entusiásticas brotaram da multidão.

- Nunca mais acordaremos de manhã perguntando a nós mesmos: Quem sou eu? Qual meu objetivo na vida? Em uma escala cósmica, faz alguma diferença se hoje eu resolver não me levantar e não ir ao trabalho?. Pois hoje saberemos, de uma vez por todas, a resposta clara e simples a todas estas incômodas perguntas relacionadas à Vida, ao Universo e a Tudo o Mais!

Enquanto a multidão aplaudia mais uma vez, Arthur viu-se planando no ar em direção a uma das grandes e imponentes janelas do primeiro andar do prédio atrás da plataforma.

Arthur foi dominado pelo pânico durante um instante, quando se viu voando para dentro da janela, mas um segundo depois deu-se conta de que havia atravessado a vidraça sem sentir nada.

Ninguém na sala achou nada de estranho quando ele chegou, o que aliás era perfeitamente compreensível, já que, na verdade, Arthur não estava lá. Ele começou a entender que toda aquela experiência que ele estava tendo não passava de uma projeção, algo que punha no chinelo o filme de 70 milímetros com seis canais de som.

A sala era tal como Slartibartfast a havia descrito. Durante sete milhões e quinhentos mil anos ela fora bem-cuidada, sendo limpa regularmente a cada 100 anos, mais ou menos. A mesa de ultramogno estava gasta nas beiras, o carpete estava um pouco desbotado, mas o grande terminal de computador embutido no tampo de couro da mesa estava tão reluzente quanto se tivesse sido construído na véspera.

Dois homens sobriamente vestidos, sentados diante do terminal, aguardavam.

- Está chegando a hora - disse um deles, e Arthur surpreendeu-se ao ver uma palavra materializar-se ao lado do pescoço do homem. A palavra era LOONQUAWL; ela piscou umas duas vezes e depois desapareceu. Antes que Arthur tivesse tempo de assimilar o escorrido, o outro homem falou, e a palavra PHOUCHG apareceu ao lado de seu pescoço.

- Há 75 gerações, nossos ancestrais deram início a este programa - disse o segundo homem -, e após todo esse tempo nós seremos os primeiros a ouvir o computador falar.

- Uma perspectiva tremenda, Phouchg - concordou o primeiro homem, e Arthur de repente entendeu que estava assistindo a uma gravação com letreiros.

- Seremos nós que ouviremos a resposta à grande questão da Vida...! - disse Phouchg.

- O Universo...! - disse Loonquawl.

- E Tudo o Mais...!

- Psss! - exclamou Loonquawl com um gesto sutil. - Acho que Pensador Profundo está se preparando para falar?

Houve uma pausa cheia de expectativa, quando as luzes do painel lentamente foram se acendendo. As luzes piscaram, como se a título de experiência, e logo assumiram um ritmo funcional. O canal de comunicação começou a emitir um zumbido suave.

- Bom dia - disse Pensador Profundo por fim.

- Ah... Bom dia, ó Pensador Profundo - disse Loonquawl, nervoso. -Você

tem... ah, quero dizer...

- Uma resposta para vocês? - interrompeu Pensador Profundo, majestoso. - Tenho, sim.

Os dois homens tremeram de expectativa. Sua espera não fora em vão.

- Então há mesmo uma resposta? - exclamou Phouchg.

- Há mesmo uma resposta - confirmou Pensador Profundo.

- A resposta final? À grande Questão da Vida, do Universo e Tudo o Mais?

- Sim.

Os dois homens haviam sido treinados para esse momento. Toda a sua vida fora uma longa preparação para ele: haviam sido escolhidos no momento em que nasceram para testemunhar a resposta, mas mesmo assim sentiam-se alvoroçados e ofegantes como crianças excitadas.

- E você está pronto pra nos dar a resposta? - perguntou Loonquawl.

- Estou.

- Agora?

- Agora - disse Pensador Profundo. Os dois umedeceram os lábios secos.

- Se bem que eu acho que vocês não vão gostar - disse o computador.

- Não faz mal - exclamou Phouchg. - Precisamos conhecer a resposta!

Agora!

- Agora? - perguntou Pensador Profundo.

- É, agora!...

- Está bem - disse o computador, e calou-se. Os dois homens remexiam-se, inquietos. A tensão era insuportável.

- Olhem, vocês não vão gostar mesmo - comentou Pensador Profundo.

- Diga logo!

- Está bem - disse o computador. - A Resposta à Grande Questão...

- Sim...!

- Da Vida, o Universo e Tudo o Mais... - disse Pensador Profundo.

- Sim!

- É... - disse Pensador Profundo, e fez uma pausa.

- Sim...! -É... -Sim...!!!...?

- Quarenta dois - disse Pensador Profundo, com uma majestade e uma tranqüilidade infinitas.

Capítulo 28

Durante muito, muito tempo, ninguém disse nada. Com o canto do olho, Phouchg via pela janela o mar de rostos cheios de expectativa na praça.

- Nós vamos ser linchados, não vamos? - sussurrou.

- A pergunta não foi fácil - disse Pensador Profundo, com modéstia.

- Quarenta e dois! - berrou Loonquawl. - É tudo que você tem a nos dizer depois de sete milhões e quinhentos mil anos de trabalho?

- Eu verifiquei cuidadosamente - disse o computador -, e não há dúvida de que a resposta é essa. Para ser franco, acho que o problema é que vocês jamais souberam qual é a pergunta.

- Mas era a Grande Pergunta! A Questão Fundamental da Vida, o Universo e Tudo o Mais - gritou Loonquawl.

- É - disse Pensador Profundo, com um tom de voz de quem tem enorme paciência para aturar pessoas estúpidas -, mas qual é exatamente a pergunta?

Um silêncio de estupefação aos poucos dominou os homens, que olharam para o computador e depois se entreolharam.

- Bem, você sabe, é simplesmente tudo... tudo... - começou Phouchg, vacilante.

- Pois é! - disse Pensador Profundo. - Assim, quando vocês souberem qual é exatamente a pergunta, vocês saberão o que significa a resposta.

- Genial - sussurrou Phouchg, jogando o caderno para o lado e enxugando uma pequena lágrima.

- Está bem, está bem - disse Loonquawl. - Será que dava pra você nos dizer qual é a pergunta?

- A Pergunta Fundamental? -É!

- Sobre a Vida, o Universo e Tudo o Mais? -Él

Pensador Profundo pensou um pouco.

- Essa é fogo - disse ele.

- Mas você pode descobri-la? - perguntou Loonquawl. Pensador Profundo ponderou a questão por mais algum

tempo.

- Não - respondeu por fim, com firmeza.

Os dois homens caíram sentados, em desespero.

- Mas eu lhes digo quem pode - disse o computador. Os dois levantaram a vista de repente.

- Quem?

- Diga!

De repente, Arthur começou a sentir seus pêlos inexistentes ficarem em pé à medida" que ele se aproximava lenta porém inexoravelmente do terminal do computador, mas era apenas um zoom de grande efeito dramático por parte de quem havia realizado aquela gravação, aparentemente.

- Refiro-me ao computador que virá depois de mim - proclamou Pensador Profundo, reassumindo seu tom declamatório habitual. - Um computador cujos parâmetros operacionais eu não sou digno de calcular, mas que, ainda assim, irei projetar para vocês. Um computador capaz de calcular a Pergunta referente à Resposta Fundamental, um computador de tamanha complexidade sutil e infinita que a própria vida orgânica fará parte de sua matriz operacional. E vocês assumirão uma nova forma e entrarão no computador para operar seu programa, durante dez milhões de anos! Sim! Eu projetarei este computador para vocês. E eu também lhe darei um nome. E ele se chamará... Terra.

Phouchg olhou para Pensador Profundo, atônito.

- Que nome mais besta - disse ele, e longas incisões abriram-se em seu corpo de alto a baixo. Loonquawl, também, de repente começou a sofrer cortes terríveis vindos de lugar nenhum. O terminal do computador inchou e rachouse, as paredes estremeceram e desabaram, e toda a sala caiu para cima, em direção ao teto...

Slartibartfast estava em pé diante de Arthur, segurando os dois fios.

- Fim da gravação - explicou ele.

Capítulo 29

Zaphod! Acorde! - Mmmmmaaaaaãããããhn?

- Vamos, acorde logo.

- Deixe que eu continue fazendo o que sei fazer, está bem? - murmurou Zaphod; sua voz morreu aos poucos e ele adormeceu de novo.

- Quer levar um chute? - perguntou Ford.

- Isso vai lhe dar muito prazer? - retrucou Zaphod, com a voz cheia de sono.

-Não.

- A mim também não. Então pra que me chutar? Pare de me perturbar. - E Zaphod encolheu-se todo novamente.

- Ele ingeriu uma do^se dupla de gás - disse Trillian, olhando para Zaphod. - Duas traquéias.

- E parem de falar - disse Zaphod. - Já não é fácil dormir aqui. Que diabo deu nesse chão? Está tão duro, gelado.

- É ouro - disse Ford.

Com um movimento espantoso de bailarino, Zaphod pôs-se de pé e começou a olhar para todos os lados, até o horizonte; era tudo ouro, o chão era uma camada perfeitamente lisa e sólida de ouro. Brilhava como... é impossível achar uma comparação razoável, porque nada no Universo brilha exatamente como um planeta de ouro maciço.

- Quem botou isso tudo aqui? - exclamou Zaphod, de olhos esbugalhados.

- Não fique excitado - disse Ford. - Isso é só um catálogo.

- O quê?

- Um catálogo - disse Trillian - Uma ilusão.

- Como é que vocês podem dizer uma coisa dessas?

- exclamou Zaphod, caindo de quatro e olhando para o chão. Cutucou-o com o dedo. Era muito pesado e ligeiramente macio - era possível riscá-lo com a unha. Era muito amarelo e muito brilhante, e, quando ele bafejava sobre a superfície, ela embaçava e depois desembaçava daquela maneira peculiar que é

característica das superfícies de ouro maciço.

- Eu e Trillian acordamos uns minutos atrás - disse Ford.

- Gritamos até que alguém veio, e continuamos a gritar até que eles se encheram e trancaram a gente aqui no catálogo de planetas, pra gente se distrair até que eles estejam preparados pra lidar conosco. Isso aqui é só uma gravação em Sensorama.

Zaphod olhou-o com raiva.

- Ora, merda - exclamou ele -, você me acorda no meio do meu sonho agradável pra me mostrar o sonho de outra pessoa.

- Sentou-se, emburrado. - E aqueles vales ali, que é aquilo?

- perguntou.

- É só o selo de qualidade - disse Ford. - Já fomos lá ver.

- Não acordamos você antes - disse Trillian. - O último planeta era só

peixe até a altura das canelas.

- Peixe?

- Tem gosto pra tudo.

- E antes dos peixes - disse Ford - foi platina. Meio chato. Mas esse aqui achamos que você ia gostar de ver.

Mares de luz dourada resplandeciam em todas as direções, para onde quer que olhassem.

- Muito bonito - disse Zaphod com petulância.

No céu apareceu um enorme número de catálogo. Ele piscou e mudou, e, quando os três olharam ao redor, viram que a paisagem mudara também. Em uníssono, os três exclamaram:

-Argh!

O mar era roxo. A praia em que estavam era de pedrinhas amarelas e verdes - provavelmente pedras terrivelmente preciosas. Ao longe, as montanhas ostentavam picos vermelhos; pareciam macias e ondulantes. A pouca distância de onde estavam havia uma mesa de praia de prata maciça, com uma sombrinha alva ornada com borlas de prata.

No céu apareceram os seguintes dizeres em letras garrafais substituindo o número do catálogo: Qualquer que seja seu gosto, Magrathea tem o que você deseja. Não nos orgulhamos disso.

E então 500 mulheres nuas em pêlo caíram do céu de pára-quedas. Imediatamente o cenário desapareceu, sendo substituído por um pasto cheio de vacas.

- Ah, meus cérebros! - exclamou Zaphod.

- Quer falar sobre isso? - perguntou Ford.

- Está bem - disse Zaphod, e os três sentaram-se e ignoraram os cenários que surgiam e desapareciam a seu redor.

- O que eu acho é o seguinte - disse Zaphod. - Seja lá o que for que aconteceu coma minha mente, fui eu que fiz. E fiz de um jeito tal que os testes governamentais a que me submeteram quando me candidatei não pudessem descobrir nada. E que nem mesmo eu soubesse o que fiz. Tremenda loucura, não é?

Os outros dois concordaram com a cabeça.

- Então me pergunto: o que seria tão secreto que não posso deixar que ninguém saiba, nem mesmo o governo galáctico, nem mesmo eu? E a resposta é: não sei. É óbvio. Mas juntei uma coisa e outra, e dá pra eu fazer uma idéia. Quando foi que resolvi me candidatar à presidência? Logo depois da morte do presidente Yooden Vranx. Você se lembra de Yooden, Ford?

- Lembro - disse Ford. - Aquele cara que nós conhecemos quando éramos garotos, o comandante de Arcturus. Ele era um barato. Nos deu umas castanhas quando você arrombou o megacargueiro dele. Disse que você era o garoto mais incrível que ele já tinha visto.

- Que história é essa? - perguntou Trillian.

- Uma história antiga - disse Ford -, do nosso tempo de garotos, lá em Betelgeuse. Os megacargueiros de Arcturus eram encarregados da maior parte do comércio entre o Centro Galáctico e as regiões periféricas. Os vendedores da astronáutica mercante de Betelgeuse encontravam os mercados e os arcturianos os abasteciam. Havia muita pirataria no espaço antes das guerras de Dordellis, quando os piratas foram dizimados, e os megacargueiros eram equipados com os escudos de defesa mais fantásticos de toda a Galáxia. Eram realmente umas naves enormes. Quando entravam em órbita ao redor de um planeta, elas eclipsavam o Sol.

"Um dia, o jovem Zaphod resolveu saquear uma delas. Num patinete de três propulsores a jato, feito para navegar na estratosfera, coisa de garoto, mesmo. Ele era totalmente pirado. Fui junto porque havia apostado uma boa nota que ele não ia conseguir, e não queria que ele voltasse com provas falsas de que tinha conseguido. Pois sabe o que aconteceu? Entramos no patinete dele, que já era algo totalmente diferente de tanto que ele o tinha incrementado, cobrimos uma distância de três parsecs em poucas semanas, arrombamos um megacargueiro, até hoje não sei como, fomos até a ponte de comando brandindo pistolas de brinquedo e exigimos castanhas. Maluquice maior nunca vi. Perdi um ano de mesadas. Tudo pra ganhar o quê? Castanhas.

- O capitão era um cara realmente incrível, o tal de Yooden Vranx - disse Zaphod. - Ele nos deu comida, bebida, coisas dos lugares mais exóticos da Galáxia, muita castanha, claro, e a gente se divertiu paca. Depois ele teleportou a gente. Direto pra ala de segurança máxima da prisão estadual de Betelgeuse. Um cara incrível. Acabou presidente da Galáxia.

Zaphod parou de falar.

O cenário ao redor deles estava no momento imerso na escuridão. Névoas escuras elevavam-se, sombras imensas moviam-se indistintas. O ar era ocasionalmente riscado por ruídos de seres ilusórios assassinando outros seres ilusórios. Pelo visto, havia quem gostasse daquilo o bastante para ter valor comercial.

- Ford - disse Zaphod, em voz baixa. -Sim?

- Pouco antes de morrer, Yooden me procurou.

- É mesmo? Você nunca me contou. -Não.

- O que foi que ele disse? Por que ele procurou você?

- Me falou sobre a nave Coração de Ouro. Ele é que me deu a idéia de roubá-la.

-Ele?

- É - disse Zaphod -,ea única oportunidade pra isso seria a cerimônia de lançamento.

Ford arregalou os olhos para ele por um instante, depois caiu na gargalhada.

- Você está me dizendo que virou presidente da Galáxia só pra roubar essa nave? - perguntou ele.

- Justamente - disse Zaphod, com o tipo de sorriso que, na maioria das pessoas, teria o efeito de fazer com que elas fossem trancafiadas em celas acolchoadas.

- Mas por quê? - perguntou Ford. - Por que é tão importante pra você ter essa nave?

- Sei lá - disse Zaphod. - Acho que se eu soubesse conscientemente por que isso é tão importante e pra que eu precisava dela, isso teria aparecido nos testes governamentais e eu jamais teria passado. Acho que Yooden me disse um monte de coisas que ainda estão trancadas no meu cérebro.

- Então por causa da conversa com Yooden você bagunçou o seu próprio cérebro?

- Ele levava qualquer um no papo.

- É, rapaz, mas você tem que se cuidar, sabe? Zaphod deu de ombros.

- Mas será que você não faz a menor idéia do porquê disso tudo? - insistiu Ford.

Zaphod pensou bastante na pergunta e uma dúvida pareceu esboçar-se em sua mente.

- Não - disse por fim. - Acho que não estou revelando nenhum dos meus segredos a mim mesmo. Seja como for - acrescentou, após pensar mais um pouco -, eu até entendo. Eu é que não sou maluco de confiar em mim. Um minuto depois, o último planeta do catálogo desapareceu e o mundo concreto reapareceu a seu redor.

Estavam sentados numa sala de espera luxuosa, cheia de mesas de vidro e prêmios recebidos em concursos de design.

Um magratheano alto estava em pé diante dos três.

- Os ratos querem ver vocês agora.

Capítulo 30

Pois é isso - disse Slartibartfast, fazendo uma tentativa puramente pro forma de arrumar a bagunça extraordinária de seu gabinete. Pegou um papel que estava no alto de uma pilha de objetos, mas, como não sabia onde guardálo, recolocou-o no alto da mesma pilha, que imediatamente desabou. - Pensador Profundo projetou a Terra, nós a construímos e você viveu nela.

- E os vogons vieram e a destruíram cinco minutos antes de terminar o processamento do programa - disse Arthur, não sem um toque de rancor.

- É - disse o velho, olhando ao redor sem saber por onde começar. - Dez milhões de anos de planejamento e trabalho, tudo por água abaixo. Dez milhões de anos, terráqueo... Você concebe uma coisa dessas? Toda uma civilização galáctica pode evoluir a partir de um verme, cinco vezes seguidas, em dez milhões de anos. Tudo por água abaixo. - Fez uma pausa. - Pois é, coisas da burocracia - acrescentou.

- Sabe - disse Arthur, pensativo -, isso explica um monte de coisas. Toda a minha vida eu sempre tive uma impressão estranha, inexplicável, de que estava acontecendo alguma coisa no mundo, uma coisa importante, até mesmo sinistra, e ninguém me dizia o que era.

- Não - disse o velho -, isso é só uma paranóia perfeitamente normal. Todo mundo no Universo tem isso.

- Todo mundo? - repetiu Arthur. - Bem, se todo mundo tem isso, então talvez isso queira dizer alguma coisa. Quem sabe em algum lugar fora do Universo que conhecemos...

- Talvez. E daí? - disse Slartibartfast, antes que Arthur ficasse muito excitado com a idéia. -Talvez eu esteja velho e cansado, mas acho que a probabilidade de descobrir o que realmente está acontecendo é tão absurdamente remota que a única coisa a fazer é deixar isso pra lá e simplesmente arranjar alguma coisa pra fazer. Veja o meu caso: eu trabalho em litorais. Ganhei um prêmio pela Noruega. - Começou a remexer no meio de uma pilha de cacarecos, tirou dela um grande bloco de acrílico contendo um modelo da Noruega e mais o nome dele.

- O que adiantou ganhar isso? Que eu saiba, nada. Passei a vida inteira fazendo fiordes. De repente, durante algum tempo, eles entraram em moda e eu ganhei um grande prêmio.

- Revirou o bloco de acrílico na mão e, dando de ombros, jogou-o para o lado, descuidadamente, mas não tão descuidadamente que não desse um jeito de fazer com que o troféu caísse sobre alguma coisa macia. - Nesta Terra substituta que estamos construindo me encarregaram da África, e é claro que estou carregando nos fiordes, porque eu gosto, e sou um sujeito antiquado a ponto de achar que os fiordes dão um belo toque barroco num continente. E

agora estão me dizendo que isso não condiz com o caráter equatorial do lugar. Equatorial!

- soltou uma risada sarcástica. - Que importância tem isso? A ciência conseguiu algumas coisas fantásticas, não vou negar, mas acho mais importante estar feliz do que estar certo.

- E o senhor está feliz?

- Não. Aí é que está o problema, é claro.

- Que pena - disse Arthur, com sentimento. - Estava me parecendo um estilo de vida e tanto.

Uma luzinha branca se acendeu na parede.

- Vamos - disse Slartibartfast -, você vai conhecer os ratos. A sua chegada a esse planeta causou muito rebuliço. Parece que alguém já fez o cálculo, e é o terceiro evento mais improvável na história do Universo.

- Quais são os dois primeiros?

- Ah, provavelmente apenas coincidências - disse Slartibartfast, dando de ombros. Abriu a porta e esperou que Arthur o seguisse.

Arthur olhou ao redor mais uma vez e depois para suas próprias roupas, as mesmas roupas suadas e sujas com as quais havia se deitado na lama na manhã de quinta-feira.

- Estou tendo sérios problemas com meu estilo de vida - murmurou Arthur.

- O quê? - perguntou o velho.

- Ah; nada. Eu estava só brincando.

Capítulo 31

Como todos sabem, palavras ditas impensadamente podem custar muitas vidas, mas nem todos sabem como esse problema é sério. Por exemplo, no exato momento em que Arthur disse "estou tendo sérios problemas com meu estilo de vida", abriu-se um buraco aleatório na textura do contínuo espaço-tempo que transportou as palavras de Arthur para um passado muito remoto, para uma distância espacial quase infinita, até uma galáxia distante onde estranhos seres belicosos estavam prestes a dar início a uma terrível batalha interestelar.

Os dois líderes adversários estavam se encontrando pela última vez. Fez-se um silêncio terrível na mesa de reuniões quando o comandante dos vl'hurgs, com seu resplandecente short de batalha negro cravejado de pedras preciosas, encarou o líder dos g'gugvuntts, de cócoras à sua frente, numa nuvem de vapor verde e odorífico, e, cercado de um milhão de cruzadores estelares aerodinâmicos e armados até os dentes, preparados para desencadear a morte elétrica assim que ele desse a ordem, desafiou a vil criatura a retirar o que ela tinha dito a respeito da mãe dele. A criatura remexeu-se em sua nuvem de vapor escaldante e pestilento e, neste exato momento, ouviram-se as palavras Estou tendo sérios problemas com meu estilo de vida na sala de reuniões.

Infelizmente, na língua dos vl'hurgs isto era o pior insulto possível, e não havia reação possível senão desencadear uma terrível guerra, que durou séculos.

Naturalmente, quando, alguns milênios depois, quando a galáxia em questão havia sido devastada, descobriu-se que tudo não passara de um lamentável mal-entendido; e assim as duas frotas inimigas resolveram acertar as poucas diferenças que ainda tinham e unir-se para atacar a nossa Galáxia, já

identificada, com absoluta certeza, como fonte do comentário ofensivo. Durante milhares de anos, as naves majestosas atravessaram os imensos espaços vazios intergalácticos, finalmente parando no primeiro planeta que encontraram, que era, por acaso, a Terra; e lá, devido a um erro colossal de escala, toda a frota foi acidentalmente engolida por um cachorrinho. Aqueles que estudam o complexo inter-relacionamento entre causas e efeitos na história do Universo dizem que esse tipo de coisa acontece o tempo todo, mas nós não podemos fazer nada.

- A vida é assim mesmo - dizem eles.

Após uma curta viagem de aeromóvel, Arthur e o velho magratheano chegaram a uma porta. Saltaram do veículo e entraram numa sala de espera cheia de mesas de vidro e troféus de acrílico. Quase imediatamente, uma luz começou a piscar acima da porta no lado oposto do recinto.

- Arthur! Você está bem! - exclamou a voz.

- Estou mesmo? - perguntou Arthur, um tanto assustado. - Que bom. A luz era pouca, e demorou algum tempo para que ele reconhecesse Ford, Trillian e Zaphod, sentados em volta de uma mesa em que se via uma bela refeição: pratos exóticos, doces estranhos e frutas bizarras. Os três estavam tirando a barriga da miséria.

- O que aconteceu com vocês? - perguntou Arthur.

- Bem - disse Zaphod, atacando um músculo grelhado -, os nossos anfitriões nos desacordaram com um gás, depois bagunçaram totalmente todos os nossos sentidos, agiram de várias formas estranhas e agora, pra compensar, estão nos oferecendo um senhor jantar. Tome - disse, estendendo um pedaço de carne malcheirosa que estava numa tigela -, prove essa costeleta de rinoceronte de Vegan. Pra quem gosta, é uma iguaria.

- Anfitriões? - exclamou Arthur. - Que anfitriões? Não estou vendo nenhum...

Uma vozinha então falou:

- Seja bem-vindo, terráqueo.

Arthur olhou para a mesa e soltou uma interjeição de asco.

- Argh! Tem ratos na mesa!

Houve um silêncio constrangedor; todos dirigiram olhares significativos a Arthur.

Ele olhava para os dois ratos brancos que estavam dentro de objetos semelhantes a copos de uísque. Percebeu o silêncio e olhou para as caras de seus companheiros.

- Ah!. - exclamou, entendendo tudo de repente. - Desculpe, é que eu não estava preparado pra...

- Permita-me apresentar-lhe Benjy - disse Trillian.

- Prazer - disse um dos ratos, tocando com os bigodes o que devia ser um painel sensível ao tato no interior do recipiente de vidro, o qual avançou um pouco.

- E esse aqui é Frankie.

- Muito prazer - disse o outro rato, e seu recipiente também avançou. Arthur estava boquiaberto.

- Mas esses não são...?

- São eles - disse Trillian. - São mesmo os ratos que eu trouxe da Terra. Ela encarou Arthur, e ele julgou perceber era seu olhar uma sutil expressão de resignação.

- Me passa essa tigela de megamula arcturiana gratinada, sim? - pediu ela.

Slartibartfast pigarreou discretamente.

- Ah, com licença... - disse ele.

- Sim, obrigado, Slartibartfast - disse Benjy, seco. - Você pode retirar-se.

- O quê? Bem... ah, está bem - disse o velho, um pouco desconcertado. - Vou trabalhar nos meus fiordes.

- A propósito, isso não é mais necessário - disse Frankie. - Creio que não vamos mais precisar da nova Terra. - Revirou os olhinhos rosados. - Porque encontramos um nativo do planeta que estava lá segundos antes de sua destruição.

- O quê? - exclamou Slartibartfast, atônito. - Não pode ser! Tenho mil geleiras prontas pra avançar sobre a África!

- Bem, talvez você possa tirar umas férias pra esquiar antes de desmontálas - disse Frankie, irônico.

- Esquiar? - exclamou o velho. - Essas geleiras são verdadeiras obras de arte! Contornos elegantes, picos altíssimos de gelo, desfiladeiros majestosos!

Esquiar numa obra-prima dessas seria um sacrilégio!

- Obrigado, Slartibartfast - disse Benjy com firmeza. - Assunto encerrado.

- Sim, senhor - disse o velho, com frieza. - Muito obrigado. Bem, adeus, terráqueo - disse para Arthur. - Espero que dê um jeito no seu estilo de vida. Com um leve aceno para os outros, o velho virou-se e saiu do recinto, cabisbaixo.

Arthur ficou a vê-lo sair, sem saber o que dizer.

- Bem - disse Benjy -, vamos ao que interessa. Ford e Zaphod fizeram tintim com seus copos.

- Ao que interessa! - disseram.

- Como assim? - perguntou Benjy. Ford olhou ao redor.

- Desculpe, pensei que estivesse propondo um brinde

- disse ele.

Os ratos remexeram-se com impaciência dentro de seus recipientes de vidro. Então aquietaram-se, e Benjy avançou para falar com Arthur.

- Criatura da Terra - disse -, a situação é a seguinte: como você sabe, há

dez milhões de anos que administramos o seu planeta para descobrir essa maldita Questão Fundamental.

- Por quê? - indagou Arthur.

- Não, essa aí já descartamos - disse Frankie, interrompendo

- porque não bate com a resposta. Por quê? Quarenta e dois... Como você

vê, não faz sentido.

- Não é isso - explicou Arthur. - Eu perguntei por que vocês querem saber isso.

- Ah - exclamou Frankie. - Bem, pra ser absolutamente franco, só por força do hábito, creio eu. E acho que a questão é mais ou menos essa: já estamos de saco cheio dessa história toda, e a idéia de ter que começar do zero outra vez por causa daqueles panacas dos vogons realmente é demais, sacou? Foi por mero acaso que Benjy e eu terminamos a tarefa específica de que estávamos encarregados e saímos do planeta pra tirar umas feriazinhas, e conseguimos dar um jeito de voltar a Magrathea graças aos seus amigos.

- Magrathea é um dos portões que dá acesso à nossa dimensão - explicou Benjy.

- E recentemente - prosseguiu o outro roedor - recebemos uma proposta irrecusável de participar de uma mesa-redonda na quinta dimensão e dar umas palestras lá na nossa terra, e estamos inclinados a aceitar.

- Eu aceitava, se me convidassem; você não aceitava, Ford?

- perguntou Zaphod.

- Ah; claro, na mesma hora - disse Ford.

Arthur olhava para eles, sem saber aonde aquilo ia dar.

- Só que a gente não pode ir de mãos abanando - disse Frankie. - Ou seja: temos que descobrir a Questão Fundamental, de algum modo.

Zaphod debruçou-se, chegando mais perto de Arthur.

- Imagine só - disse ele - se eles estão lá no estúdio, muito tranqüilos, dizendo que sabem qual é a Resposta à Questão da Vida, o Universo e Tudo o Mais, e depois têm que admitir que a Resposta é 42. O programa vai acabar ali mesmo. Não dá pra espichar o programa, entendeu?

- A gente tem que ter alguma coisa que soe bem - disse Benjy.

- Uma coisa que soe bem - exclamou Arthur. - Uma Questão Fundamental que soe bem? Formulada por dois ratos?

Os ratos irritaram-se.

- Olhe - disse Frankie -, essa história de idealismo, de dignidade da pesquisa pura, da busca pela verdade em todas as suas formas, está tudo muito bem, mas chega uma hora que você começa a desconfiar que, se existe uma verdade realmente verdadeira, é o fato de que toda a infinidade multidimensional do Universo é, com certeza quase absoluta, governada por loucos varridos. E entre gastar mais dez milhões de anos pra descobrir isso ou então faturar em cima do que já temos, eu fico tranqüilamente cora a segunda opção.

- Mas... - começou Arthur, desanimado.

- Você vai entender, terráqueo - disse Zaphod. - Você é um produto de última geração daquela matriz de computador, certo?, e você estava lá na Terra até o instante em que o planeta foi exterminado, não é?

- Bem...

- Assim, o seu cérebro estava organicamente integrado à penúltima configuração do programa do computador - disse Ford, e admirou a clareza de sua própria explicação.

- Certo? - perguntou Zaphod.

- É - disse Arthur, hesitante. Ele jamais havia se sentido organicamente integrado a coisa nenhuma. Sempre achara que este era um de seus problemas.

- Em outras palavras - disse Benjy, fazendo com que seu curioso veículo se aproximasse de Arthur -, é bem provável que a estrutura da pergunta esteja codificada na estrutura de sua mente, e por isso queremos comprá-la de você.

- O que, a pergunta? - indagou Arthur.

- É - responderam Ford e Trillian.

- Por uma nota preta - disse Zaphod.

- Não, não - explicou Frankie -, o que a gente quer comprar é o seu cérebro.

- O quê?

- Mas que falta vai fazer? - perguntou Benjy.

- Eu entendi você dizer que sabiam ler o cérebro dele eletronicamente - protestou Ford.

- É claro que sabemos - disse Frankie -, só que primeiro a gente tem que retirá-lo do lugar. Tem que ser preparado.

- Tratado - disse Benjy.

- Cortado em pedaços.

- Obrigado - gritou Arthur, inclinando a cadeira para trás para afastar-se da mesa, horrorizado.

- Se você achar isso importante - disse Benjy, razoável -, a gente coloca outro no lugar.

- É, um cérebro eletrônico - disse Frankie -, bastaria um bem simples.

- Bem simples! - gemeu Arthur.

- É - disse Zaphod, com um sorriso maldoso -, era só programá-lo para dizer O quê?, Não entendi e Cadê o chá?. Ninguém ia notar a diferença.

- O quê? - exclamou Arthur, afastando-se ainda mais.

- Está vendo? - disse Zaphod, e urrou de dor por causa de algo que Trillian fez naquele momento.

- Pois eu notaria a diferença - disse Arthur.

- Não - disse Frankie -, porque você seria programado pra não notar. Ford saiu em direção à porta.

- Vocês me desculpem, meus caros ratos, mas pelo visto nada feito.

- Creio que essa posição é inaceitável - disseram os ratos em coro; suas vozinhas finas perderam todo e qualquer toque de cordialidade. Com um zumbido agudo, os dois recipientes de vidro levantaram-se da mesa e partiram em direção a Arthur, que ficou encurralado num canto do recinto, absolutamente incapaz de fazer alguma coisa, ou mesmo de pensar em alguma coisa.

Trillian agarrou-o pelo braço, em desespero, e tentou arrastá-lo em direção à porta, que Ford e Zaphod estavam tentando abrir, mas Arthur era um peso morto. Parecia hipnotizado pelos roedores voadores que se aproximavam dele.

Trillian gritou, mas ele continuou abestalhado.

Com um último safanão, Ford e Zaphod conseguiram abrir a porta. Lá

fora havia uma pequena multidão de homens mal-encarados, que, aparentemente, era o pessoal que fazia os serviços sujos em Magrathea. Não apenas eram mal-encarados, mas também traziam equipamentos cirúrgicos bem assustadores. Os homens atacaram.

Assim, a cabeça de Arthur ia ser aberta, Trillian não conseguia ajudá-lo, e Ford e Zaphod iam ser atacados por um bando de brutamontes bem mais fortes e armados do que eles.

Portanto, foi bem a calhar que, naquele exato momento, todos os alarmes do planeta tenham soado ao mesmo tempo, fazendo uma barulheira infernal. Capítulo 32

- Emergênáal Emergência! -ouvia-se em todo o planeta.

- Nave inimiga aterrissou no planeta. Invasores armados na seção 8A. Postos de defesa, postos de defesa.

Os dois ratos fungavam, irritados, cercados dos cacos de seus recipientes de vidro, quebrados no chão.

- Droga - disse o rato Frankie. - Tanta confusão por causa de um quilo de cérebro de terráqueo. - Seus olhos rosados estavam cheios de cólera; seu belo pêlo branco estava eriçado de eletricidade estática.

- A única saída agora - disse Benjy, acocorado e cocando os bigodes pensativamente - é tentar inventar uma pergunta que pareça plausível.

- Vai ser difícil - disse Frankie. - Que tal o que é, o que é, que é amarelo e perigoso?

Benjy pensou por alguns instantes.

- Não, não serve - disse. - Não casa com a resposta. Por alguns segundos, permaneceram em silêncio.

- Está bem - disse Benjy. - Quanto dá seis vezes sete?

- Não, muito literal, muito objetivo - disse Frankie. - Não vai despertar o interesse do público.

Pensaram mais um pouco. Então Frankie disse:

- Que tal Quantos caminhos é preciso caminhar?*

- Arrá! - exclamou Benjy. - Essa parece promissora! - repetiu a frase, saboreando-a. - É, essa é excelente, mesmo! Parece uma coisa muito importante, mas ao mesmo tempo não quer dizer nada de muito específico. Quantos caminhos é preciso caminhar? Quarenta e dois. Excelente, excelente! Com essa a gente enrola todo mundo. Frankie, meu rapaz, estamos feitos!

E dançaram entusiasmados.

Perto deles, no chão, havia alguns homens mal-encarados que tinham sido golpeados na cabeça com pesados troféus de acrílico.

A um quilômetro dali, quatro figuras corriam por um corredor, tentando achar uma saída. Saíram numa sala espaçosa cheia de portas, onde havia um terminal de computador. Olharam ao redor, confusos.

- Pra onde vamos, Zaphod? - perguntou Ford.

- Eu chutaria por ali - disse Zaphod, correndo entre o terminal e a parede. Antes que os outros saíssem atrás dele, Zaphod parou imediatamente quando uma faísca de Raio-da-Morte estalou alguns centímetros à sua frente, fritando um pedaço da parede.

Ouviu-se uma voz forte ampliada, dizendo.

- Pare aí mesmo, Beeblebrox. Você está encurralado.

- Os tiras! - sibilou Zaphod, acocorando-se e virando-se para trás. - Você

tem alguma sugestão, Ford?

- Por aqui - propôs Ford, e os quatro se enfiaram numa passagem entre dois painéis do terminal.

No final da passagem havia uma figura com um traje espacial à prova de qualquer projétil, com uma tremenda arma de Raio-da-Morte na mão.

* No original, How many roads must a man walk down, primeiro verso de Blowin' in the Wind, canção de Bob Dylan. (N.T.)

- Não queremos atirar em você, Beeblebrox! - gritou a figura.

- Ótimo! - gritou Zaphod, e enfiou-se entre duas unidades de processamento de dados.

Os outros foram atrás dele.

- Eles são dois - disse Trillian. - Estamos encurralados. Espremeram-se entre um grande banco de dados e a parede. Prenderam a respiração e esperaram.

De repente, o ar foi riscado por raios; os dois policiais estavam atirando neles ao mesmo tempo.

- Vejam, estão atirando na gente - disse Arthur, todo encolhido. - Eles não disseram que não queriam fazer isso?

- É, foi o que eu entendi também - concordou Ford. Zaphod esticou a cabeça para fora do esconderijo, corajosamente.

- Ei - disse ele -, vocês não disseram que não queriam atirar na gente?

E escondeu-se de novo.

Esperaram.

Após um momento, uma voz respondeu:

- Ser policial não é mole!

- Que foi que ele disse? - cochichou Ford, espantado.

- Disse que ser policial não é mole.

- Bem, mas isso é problema dele, não é?

- A meu ver, é.

- Escutem - gritou Ford. - Acho que nós já temos bastante problemas sem que vocês fiquem atirando em nós, e assim, se vocês parassem de descarregar as suas frustrações em cima de nós, acho que seria melhor pra todo mundo!

Uma pausa, depois a voz amplificada ecoou novamente:

- Escute aqui, cara, não pense que a gente é que nem esses retardados que só sabem puxar gatilho, com olhar vazio, que nem sabem conversar direito!

Nós somos uns caras inteligentes, decentes, e se vocês nos conhecessem melhor até gostariam de nós! Eu não ando por aí dando tiros a torto e a direito e depois saio contando vantagem pelos botecos da Galáxia, como muitos policiais que conheço! Eu saio por aí dando tiros a torto e a direito, só que depois morro de arrependimento e conto tudo pra minha namorada!

- E eu escrevo romances! - disse o outro policial. - Se bem que não consegui publicar ainda nenhum deles. Quer dizer, é bom vocês saberem que hoje estou com um humor terrível!

Os olhos de Ford quase saltaram das órbitas.

- Qual é a desses caras? - perguntou.

- Sei lá - disse Zaphod. - Eu gostava mais deles quando estavam só

dando tiros.

- Então, vocês vão sair daí por bem ou vai ter que ser na porrada? - gritou um dos policiais.

- O que você preferir - gritou Ford

Um milissegundo depois, as armas de Raio-da-Morte encheram a sala de relâmpagos, que atingiram em cheio o terminal de computador atrás do qual os três estavam escondidos.

O tiroteio continuou por algum tempo, com uma intensidade insuportável.

Quando parou, seguiram-se alguns segundos de quase silêncio, e os ecos foram morrendo.

- Vocês ainda estão aí? - gritou um dos policiais.

- Estamos - eles gritaram.

- Nós não gostamos nem um pouco de ter que fazer isso - gritou o outro policial.

- Deu pra perceber - gritou Ford.

- Agora, preste atenção no que vou dizer, Beeblebrox, mas preste atenção mesmo!

- Por quê? - gritou Zaphod.

- Porque vou dizer uma coisa muito inteligente, interessante e humana!

Bem, ou vocês se entregam agora e deixam a gente dar umas porradinhas em vocês, só um pouquinho, é claro, porque nós somos totalmente contra a violência desnecessária, ou então a gente explode esse planeta todo e talvez mais um ou dois que nós vimos quando viemos pra cá!

- Mas isso é loucura! - exclamou Trillian. - Vocês não podem fazer isso!

- A gente não pode? - gritou o policial. - Não pode? - perguntou ele ao outro.

- A gente pode e deve, não tem dúvida - gritou o outro.

- Mas por quê? - perguntou Trillian.

- Porque tem coisas que a gente tem que fazer, mesmo sendo policiais liberais esclarecidos, cheios de sensibilidade e o cacete!

- Esses caras não existem! - murmurou Ford, sacudindo a cabeça. Um dos policiais gritou para o outro:

- E aí, vamos dar mais uns tirinhos neles?

- É uma!

Outra tempestade elétrica.

O calor e o barulho eram fantásticos. Lentamente, o terminal de computador foi se desintegrando. A parte da frente já tinha se dissolvido quase toda, e riachos espessos de metal derretido se aproximavam do canto em que os quatro estavam escondidos. Eles se encolheram ainda mais e esperaram pelo fim.

Capítulo 33

Mas o fim não veio. Pelo menos, não naquela hora. De repente os raios cessaram, e no silêncio repentino que se seguiu ouviram-se gritos guturais e dois baques surdos. Os quatro se entreolharam.

- O que houve? - perguntou Arthur.

- Eles pararam - disse Zaphod, dando de ombros.

- Por quê?

- Sei lá! Quer ir lá e perguntar a eles?

- Não. Esperaram.

- Ei! - gritou Ford. Nada.

- Estranho.

- Pode ser uma armadilha.

- Eles são burros demais pra isso.

- Aqueles baques, o que foi aquilo?

- Não sei.

Esperaram mais alguns segundos.

- Eu vou lá ver - disse Ford. Olhou para os outros e acrescentou: - Será

que ninguém vai dizer: Não, você não, deixe que eu vou?

Os outros três sacudiram a cabeça.

- Nesse caso... - disse ele, e levantou-se.

Por um momento, não aconteceu nada.

Então, alguns segundos depois, continuou a não acontecer nada. Ford olhou para a fumaça espessa que saía do computador destruído. Cuidadosamente, saiu do esconderijo.

Continuou não acontecendo nada.

Vinte metros adiante, ele pôde entrever em meio à fumaça o vulto de um dos policiais em sua roupa espacial. Estava embolado no chão. A 20 metros dele, no outro lado da sala, estava o outro. Não havia mais ninguém. Ford achou isso extremamente estranho.

Lenta e nervosamente, aproximou-se do primeiro policial. O corpo estava perfeitamente imóvel quando ele se aproximou e permaneceu perfeitamente imóvel quando ele colocou o pé sobre a arma de Raio-da-Morte que o cadáver ainda tinha na mão.

Abaixou-se e pegou a arma, sem encontrar nenhuma resistência. O policial estava indubitavelmente morto.

Ford examinou-o rapidamente e constatou que ele era de Kappa de Blagulon - um ser que respirava metano e que só poderia sobreviver na rarefeita atmosfera de oxigênio existente em Magrathea com seu traje espacial. O pequeno sistema computadorizado em sua mochila, que lhe permitia sobreviver naquele planeta, parecia ter explodido inesperadamente Ford examinou-o profundamente intrigado. Esses minicomputadores normalmente funcionavam ligados ao computador central que ficava na nave e com o qual eles permaneciam ligados através do subeta. O sistema era completamente seguro, a menos que houvesse uma falha completa do sistema de retroalimentação, o que jamais acontecera.

Ford correu até o outro cadáver e descobriu que exatamente a mesma coisa impossível havia acontecido com ele. E, pelo que tudo indicava, exatamente na mesma hora.

Ford chamou os outros para virem olhar. Eles vieram, manifestaram o mesmo espanto, mas não a mesma curiosidade.

- Vamos sair daqui - disse Zaphod. - Se a coisa que estou procurando está

mesmo aqui, seja lá o que ela for, não quero mais saber dela. Zaphod agarrou a segunda arma, fulminou um computador de contabilidade absolutamente inofensivo e saiu correndo pelo corredor; os outros foram atrás. Quase atirou também num aeromóvel que os esperava perto dali.

O veículo estava vazio, mas Arthur reconheceu-o: era de Slartibartfast. No painel de controle, que tinha poucos controles, aliás, havia um recado do proprietário. No papel havia uma seta apontando para um dos botões do painel e os seguintes dize-res: Este é provavelmente o melhor botão para vocês apertarem.

Capítulo 34

O aeromóvel, a uma velocidade acima de RI 7, percorreu os túneis forrados de aço e levou-os de volta à aterradora superfície do planeta, onde mais uma vez raiava uma melancólica madrugada. Uma luz cinzenta e fantasmagórica congelava-se sobre a superfície do planeta. R é uma unidade de velocidade definida como uma velocidade razoável para se viajar, compatível com a saúde física e mental dos viajantes e garantindo um atraso não maior do que cinco minutos, mais ou menos. É, por conseguinte, uma grandeza quase infinitamente variável, que depende das circunstâncias, já que os dois primeiros fatores variam não apenas em função da velocidade absoluta do veículo, mas também em função da consciência do terceiro fator. A menos que seja abordada com tranqüilidade, essa equação pode resultar em estresse, úlceras e até mesmo morte.

RI7 não é uma velocidade definida, mas é sem dúvida excessivamente alta.

O aeromóvel saiu do túnel a mais de RI7, largou seus passageiros ao lado da nave Coração de Ouro, que se destacava daquele chão congelado como se fosse um osso ressecado, e mais que depressa voltou para as bandas de onde eles tinham vindo, para cuidar de sua própria vida.

Trêmulos, os quatro encararam a nave.

Ao lado dela estava pousada uma outra.

Era uma nave policial de Kappa de Blagulon. Parecia um tubarão inchado, verde-ardósia, coberto de letras negras dos mais variados tamanhos, todas igualmente antipáticas. A inscrição informava a todos os interessados de onde era aquela nave, qual a seção da polícia que a utilizava e onde deviam ser feitas as conexões de força.

De algum modo, parecia anormalmente escura e silenciosa, mesmo sabendo-se que sua tripulação de dois membros estava naquele momento morta por asfixia numa câmara enfumaçada muitos quilômetros abaixo da superfície. É uma dessas coisas curiosas, que não há como explicar nem definir, mas o fato é que dá para sentir quando uma nave está completamente morta. Ford sentia isso, e achava tudo muito misterioso - a nave e seus dois tripulantes pareciam ter morrido espontaneamente. De acordo com sua experiência, o Universo simplesmente não funciona assim.

Os outros três também sentiam isso, mas sentiam ainda mais o frio desgraçado que estava fazendo, e correram para dentro da nave Coração de Ouro, com um forte ataque de ausência de curiosidade.

Ford ficou lá fora e resolveu examinar a nave de Blagulon. Enquanto caminhava, quase tropeçou numa figura inerte, deitada de bruços na poeira fria.

- Marvin! - exclamou ele. - O que você está fazendo?

- Não fique achando que você tem obrigação de se importar comigo, por favor - disse Marvin, com uma voz monótona e abafada.

- Mas como é que você está, sua lata velha? - perguntou Ford.

- Deprimidíssimo.

- O que houve?

- Eu nem sabia que tinha havido alguma coisa - disse Marvin.

- Por que - indagou Ford, acocorando-se ao lado do robô, tremendo de frio - você está deitado de bruços na poeira?

- Pra quem está com o astral lá embaixo, é um prato cheio.

- disse Marvin. - Não finja que você está com vontade de falar comigo. Eu sei que você me odeia.

- De jeito nenhum.

- Odeia, sim, você e todo mundo. Faz parte da estrutura do Universo. É

só eu falar com uma pessoa que na mesma hora ela me odeia. Até os robôs me odeiam. É só você me ignorar que eu provavelmente vou desaparecer do mapa. O robô levantou-se e ficou olhando para o outro lado, irredutível

- Aquela nave me odiava - disse, apontando para a nave policial.

- Aquela nave? - perguntou Ford, subitamente animado.

- O que aconteceu com ela? Você está sabendo?

- Ela passou a me detestar porque falei com ela.

- Você falou com ela? Como assim?

- Muito simples. Eu estava muito entediado e deprimido, e aí me liguei na entrada externa do computador. Conversei por muito tempo com o computador e expliquei a ele a minha concepção do Universo - disse Marvin.

- E o que aconteceu? - insistiu Ford.

- Ele se suicidou - disse Marvin, e foi caminhando em direção à nave Coração de Ouro.

Capítulo 35

Naquela noite, quando a nave Coração de Ouro já estava a alguns anosluz da nebulosa da Cabeça de Cavalo, Zaphod descansava debaixo da palmeirinha da ponte de comando, tentando consertar o cérebro com doses maciças de Dinamite Pangaláctica; Ford e Trillian discutiam num canto sobre a vida e questões correlatas; e Arthur, deitado na cama, folheava O Guia do Mochileiro das Galáxias. "Como ia ter que viver na tal da Galáxia, o jeito era aprender alguma coisa sobre ela", pensou. Encontrou o seguinte verbete:

"A história de todas as grandes civilizações galácticas tende a atravessar três fases distintas e identificáveis - as da sobrevivência, da interrogação e da sofisticação, também conhecidas como as fases do como, do por que e do onde. Por exemplo, a primeira fase é caracterizada pela pergunta: Como vamos poder comer?

A segunda, pela pergunta: Por que comemos?

E a terceira, pela pergunta: Aonde vamos almoçar?" Neste momento o interfone da nave soou.

- Ô terráqueo! Está com fome, garoto? - Era a voz de Zaphod.

- É, seria legal comer alguma coisa - disse Arthur.

- Então se segure - disse Zaphod - que a gente vai dar uma paradinha no Restaurante do Fim do Universo.

Próximos lançamentos da série

• O Restaurante no Fim do Universo

• A Vida, o Universo e Tudo Mais

• Até Mais, e Obrigado pelos Peixes!


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