Lingote encontrara Coin no que, até a noite anterior, havia sido um armário de vassoura. Agora estava bem maior. Foi apenas porque Lingote nunca ouvira falar em hangar de avião que não soube com o que compará-lo, embora, para ser sincero, pouquíssimos hangares possuam chão de mármore e estátuas. No canto, as duas vassouras e o pequeno balde amassado pareciam notadamente deslocados, mas não tão deslocados quanto as mesas esmigalhadas do ex-salão principal, que, devido às ondas de magia pairando no local, havia encolhido ao tamanho aproximado do que, se Lingote conhecesse, teria chamado de uma pequena cabine telefônica.

Ele entrou no cômodo com muito cuidado e juntou-se ao conselho de magos. O ar estava carregado de energia.

Lingote criou uma cadeira ao lado de Carding e inclinou-se para ele.

— Você não vai acreditar… — começou.

— Silêncio — sussurrou Carding. — É incrível!

Coin estava sentado no banco ao meio do círculo, com uma das mãos na vara e a outra estendida, segurando um objeto pequeno, branco e parecido com um ovo. Era estranhamente difuso. Na verdade, pensou Lingote, não era algo pequeno visto de perto. Era algo imenso, mas a uma longa distância. E o garoto o firmava na mão.

— O que ele está fazendo? — cochichou Lingote.

— Não tenho certeza — murmurou Carding. — Até onde entendemos, está criando um novo lar para a magia dos magos.

Raios de luz colorida reluziam na indistinta forma ovóide como uma tempestade longínqua. O clarão iluminava por baixo o rosto preocupado de Coin, conferindo-lhe o aspecto de uma máscara.

— Não entendo como vamos caber todos aí — considerou o tesoureiro. — Carding, na noite passada eu vi…

— Acabou — anunciou Coin.

Ele suspendeu o ovo, que de vez em quando se acendia com alguma luz interna e formava pequenas saliências brancas. Não só estava a uma longa distância, pensou Lingote, como também era muito pesado. Na verdade, atravessava o conceito de peso até o estranho realismo negativo em que chumbo seria vácuo. Ele puxou a manga de Carding outra vez.

— Carding, escute, é importante, escute, quando eu olhei…

— Eu realmente gostaria que você parasse com isso.

— Mas a vara, a vara não é…

Coin pôs-se de pé e apontou o bastão para a parede, onde instantaneamente surgiu um vão. Depois passou por ele, com os magos em seu encalço.

Atravessou o jardim do arqui-reitor acompanhado pelo grupo de magos, como um cometa se faz acompanhar de sua cauda, e só parou ao alcançar as margens do Ankh. Lá havia alguns salgueiros velhos, e o rio contornava um pequeno campo conhecido de maneira otimista como Jardim de Prazer dos Magos. Nas noites de verão, quando o vento soprava na direção do rio, era um lugar maravilhoso para passear.

A neblina quente e prateada ainda pairava sobre a cidade quando Coin atravessou o gramado úmido até o centro do campo. Arremessou o ovo, que traçou um arco suave no ar e caiu na lama.

Ele se virou para os magos.

— Afastem-se — ordenou. — E preparem-se para correr.

Apontou a vara de octirona para o objeto, submerso pela metade. Um raio de luz octarina surgiu da ponta e atingiu o ovo, detonando-o numa saraivada de faíscas que deixaram rastilhos de imagens azuis e roxas no local. Houve uma pausa. Em expectativa, uma dezena de magos fitou o ovo. Não aconteceu mais nada.

— Hã… — começou Lingote.

Nesse momento, veio o primeiro tremor. Algumas folhas caíram das árvores, e uma ave aquática alçou vôo, assustada.

O barulho começou como um gemido baixo, antes sentido do que escutado, como se os pés de todos tivessem virado orelhas. As árvores estremeceram, e alguns magos também. A lama em torno do ovo começou a borbulhar. E explodiu. O chão descascou feito limão. Gotas de lama quente atingiam os magos a saltar para a proteção das árvores. Apenas Coin, Lingote e Carding ficaram para ver o reluzente prédio branco emergir do campo, com terra e grama caindo do topo. Outras torres irromperam do terreno de trás. Os contrafortes cresciam em pleno ar, ligando as torres.


Lingote soltou um gemido quando o solo lhe escapou dos pés e foi substituído por lajes salpicadas de prata. Cambaleou no momento em que o chão começou a subir inexoravelmente, levando-os bem acima da copa das árvores. Os telhados da Universidade ficaram para trás. Ankh-Morpork estendia-se como um mapa, o rio parecia uma cobra aprisionada, as planícies eram um borrão anuviado. Os ouvidos de Lingote estalaram, mas a escalada prosseguia em direção às nuvens.

Os três emergiram, frios e molhados, à luz quente do sol, com nuvens que se estendiam para todos os lados. Outras torres surgiam ao redor, brilhando lancinantes à claridade do dia.

Carding ajoelhou-se e tocou o chão com cuidado. Acenou para que Lingote fizesse o mesmo.

Lingote sentiu a superfície, mais lisa do que pedra. Parecia gelo, se gelo fosse quente, e tinha a aparência de marfim. Apesar de não ser totalmente transparente, dava a impressão de que gostaria de ser.

Ele teve a nítida sensação de que, se fechasse os olhos, não conseguiria sentir nada. Cruzou o olhar com Carding.

— Não olhe para, hum, mim — disse. — Também não sei o que é.

Ambos se voltaram para Coin, que anunciou:

— E magia.

— Sim, senhor. Mas é feito de quê? — insistiu Carding.

— Feito de magia. Magia em estado natural. Solidificada. Coagulada. Renovada a cada instante. Dá para imaginar substância melhor para se construir o novo lar da fonticeria?

A vara cintilou por um instante, derretendo as nuvens. O Discworld surgiu lá embaixo e, dali de cima, dava para ver que de fato se tratava de um disco, ligado ao céu pela montanha central de Cori Celesti, onde viviam os deuses. Lá estava o Mar Círculo, tão perto que talvez fosse possível mergulhar nele. Ali estava o vasto continente de Klatch, esmagado pela perspectiva. A queda d'água da Beira do mundo fazia uma curva brilhante.

— E grande demais! — exclamou Lingote, baixinho.

O mundo em que ele vivia não se estendia para muito além do portão da Universidade, e ele havia preferido assim. O homem podia se sentir à vontade num mundo daquele tamanho. Com certeza não podia se sentir à vontade estando a oitocentos metros do chão e pisando num negócio que, de algum modo fundamental, não estava ali.

A idéia deixou-o pasmo. Ele era mago, e estava duvidando da magia.

Com cautela, aproximou-se de Carding, que disse:

— Não é exatamente o que eu esperava.

— Hum?

— Daqui parece bem menor, não parece?

— Bem, não sei. Escute, preciso lhe dizer…

— Olhe as Ramtops. Quase dá para tocá-las.

Os dois fitaram a enorme cordilheira branca, reluzente e fria, a duzentas léguas dali. Rezava a lenda que quem fosse até os recônditos vales das Ramtops acharia, nas terras geladas sob a própria Cori Celesti, o reino secreto dos Gigantes do Gelo, aprisionados depois da última batalha contra os deuses. Naquele tempo, as montanhas eram meras ilhas num grande mar de gelo, e o gelo ainda as dominava.

Coin abriu o sorriso dourado.

— O que você disse, Carding? — perguntou.

— É o ar puro, senhor. Parecem tão pequenas e próximas. Eu só disse que quase dava para tocá-las…

Coin pediu que se calasse. Esticou o braço fino, arregaçando a manga no sinal clássico de que estava para realizar mágica sem truques. Estendeu a mão e voltou com os dedos fechados em torno do que, sem sombra de dúvida, era um punhado de neve.

Abismados, os dois magos observaram-na derreter e pingar no chão.

Coin riu.

— Acham difícil de acreditar? — perguntou. — Será que devo pegar pérolas de Krull ou areia do Grande Nef? A velha magia dos magos conseguiria fazer metade disso?

Pareceu a Lingote que a voz traía certo tom metálico. O garoto encarou-os. Por fim, Carding suspirou e, em voz baixa, respondeu:

— Não. A vida inteira eu busquei a magia, e tudo que achei foram luzes coloridas, truques banais e livros velhos. A magia dos magos não fez nada pelo mundo.

— E se eu disser que pretendo dissolver as ordens e fechar a Universidade? Apesar de que, obviamente, meus conselheiros receberão o status devido.

Os nós dos dedos de Carding embranqueceram, mas ele deu de ombros.

— Não há muito que argumentar — admitiu. — De que vale uma vela ao meio-dia?

Coin virou-se para Lingote. A vara também. Os entalhes filigranados miravam-no com frieza. Um deles, no alto do bastão, era terrivelmente parecido com uma sobrancelha.

— Você está muito quieto, Lingote. Não concorda com o que eu disse?

Não. O mundo já experimentara a fonticeria e decidira trocá-la pela magia dos magos. A fonticeria não é para nós. Havia alguma coisa errada nela, e esquecemos o que era. Eu gostava da magia dos magos. Ela não transtornava o mundo. Adaptava-se bem. Era perfeita. Mago era tudo que eu sempre quis ser.

Ele olhou os próprios pés.

— Concordo — murmurou.

— Ótimo! — exclamou Coin, satisfeito.

Ele se dirigiu à beira da torre e contemplou o mapa de Ankh-Morpork, lá embaixo. A Torre de Arte mal chegava a um décimo da altura de onde estavam.

— Eu acho — continuou — que vamos realizar a cerimônia na semana que vem, à lua cheia.

— Ha… Só vai ter lua cheia daqui a três semanas — advertiu Carding.

— Semana que vem — repetiu Coin. — Se digo que a lua vai estar cheia, não tem discussão.

Ele continuou estudando os prédios minúsculos da Universidade e, então, apontou o dedo. — O que é aquilo? Carding esticou o pescoço.

— Hã… A biblioteca. É. A biblioteca. Hã…

O silêncio foi tão opressivo que Carding imaginou esperarem mais dele. Qualquer coisa seria melhor do que aquele silêncio.

— É onde guardamos os livros, entende? Noventa mil volumes, não é, Lingote?

— Hum? Ah. É. Cerca de 90 mil, eu acho.

Coin apoiou-se na vara e continuou olhando o edifício.

— Mandem queimar — ordenou. — Todos eles.

A meia-noite avançava, altiva, pelos corredores da Universidade Invisível, enquanto Lingote, com bem menos confiança, seguia cauteloso em direção à porta da biblioteca. Ele bateu na madeira, e o som ecoou tão alto no prédio vazio que o tesoureiro teve de se apoiar na parede e esperar que o coração desacelerasse um pouco. Depois de um tempo, escutou o barulho de mobília pesada sendo arrastada.

— Oook?

— Sou eu.

— Oook?

— Lingote.

— Oook.

— Olhe, vocês têm de sair daí! Ele vai botar fogo na biblioteca!

Não houve resposta.

Lingote deixou-se cair de joelhos.

— Ele vai, sim — sussurrou. — Provavelmente vai me pedir para fazer o serviço. É a vara, hum, ela sabe de tudo que se passa. Sabe que eu sei… Por favor, me ajude…

— Oook?

— Na outra noite, espiei o quarto dele… A vara… a vara estava brilhando, parada no meio do quarto, como um sinal luminoso, e o menino chorava na cama. Dava para sentir que ela estava lhe ensinando, sussurrando coisas terríveis. Então, notou minha presença. Você tem de me ajudar, é o único que não está sob o…

Lingote se deteve. O rosto congelou. Ele se virou bem devagar, sem querer fazê-lo, porque alguma coisa o fazia girar.

O tesoureiro sabia que a Universidade estava vazia. Todos os magos haviam se mudado para a Nova Torre, onde o mais reles aluno tinha uma suíte mais esplêndida do que qualquer mago sênior jamais tivera.

A vara pairava no ar, a poucos metros de distância. Estava cercada de um leve brilho octarina.

Ele se levantou devagar e, mantendo as costas na parede de pedras e os olhos fixos no objeto, cuidadosamente avançou de lado, até alcançar o fim do corredor. Lá, notou que a vara, embora não tivesse saído de onde estava, havia girado para acompanhá-lo. Ele soltou um grito, suspendeu o manto e correu. A vara surgiu adiante. Lingote parou e se deixou ficar, recuperando o fôlego.

— Você não me assusta — mentiu. Deu meia-volta e partiu em outra direção, estalando os dedos a fim de criar uma tocha de bela chama branca (apenas a penumbra de octarina traía a origem mágica).

Mais uma vez, a vara surgiu adiante. A luz da tocha virou uma fumaça fina de fogo branco que tremeluziu e desapareceu com um “clique”.

Ele aguardou, os olhos lacrimejando com rastilhos de imagens azuis, mas, se a vara ainda se encontrava ali, não parecia disposta a tirar vantagem dele. Quando a visão retornou, conseguiu divisar uma sombra ainda mais escura, à esquerda: a escada que levava à cozinha.

Correu para lá, saltando os degraus invisíveis e caindo pesada e inesperadamente nas lajes irregulares. O pálido luar se filtrava por uma grade a distância e, em algum lugar lá em cima, ele sabia, havia uma porta para o mundo exterior.

Cambaleando um pouco, com os tornozelos doendo e o som da própria respiração ressoando nos ouvidos, como se tivesse metido a cabeça inteira numa concha marinha, Lingote atravessou o interminável deserto dos corredores.

Coisas estalavam debaixo dos seus pés. Evidentemente não havia mais ratos, mas a cozinha não vinha sendo usada: os cozinheiros da Universidade sempre haviam sido os melhores do mundo, mas, agora, qualquer mago podia inventar pratos que ficavam além da mera habilidade culinária. As grandes panelas de cobre achavam-se penduradas na parede, esquecidas, já perdendo o brilho. E debaixo do gigantesco arco da chaminé não havia nada além de cinzas…

A vara estava atravessada na porta dos fundos, como uma tranca. Ergueu-se à aproximação de Lingote e ficou ali suspensa, irradiando silenciosa malevolência a poucos metros de distância. Com muita calma, começou a avançar na direção dele.

Lingote recuou, com os pés escorregando no chão gorduroso de pedras. Uma pontada na parte traseira das coxas fez com que gritasse, mas, ao tatear, descobriu que era apenas um dos talhos.

Em desespero, passou a mão pela superfície do objeto e, contra todas as probabilidades, achou um cutelo enterrado na madeira. Num gesto tão instintivo e antigo como a própria espécie humana, os dedos de Lingote fecharam-se no cabo.

Ele estava sem fôlego, sem paciência, sem tempo nem espaço, e também morrendo, quase literalmente, de medo.

Então, quando a vara se aproximou, ele puxou o cutelo com toda a força que conseguiu juntar… e hesitou. Tudo que havia de mago nele clamava contra a destruição de tamanho poder, poder que talvez pudesse ser usado por ele mesmo…

E a vara girou, de modo que o eixo apontava diretamente para ele.

A vários corredores dali, o bibliotecário estava encostado na porta da biblioteca, observando os clarões brancos e azuis que reluziam no chão. Ouviu o distante estalido de energia bruta e um ruído que começou baixo e acabou numa altura que nem mesmo Wuffles, deitado com as patas sobre a cabeça, ouviu.

Houve, então, um leve tinido ordinário, como o que poderia ser feito por um cutelo de metal torcido e derretido caindo no chão.

Era o tipo de barulho que fazia o silêncio seguinte avançar como uma avalanche quente.

O bibliotecário deixou-se envolver pelo silêncio e ficou estudando as fileiras de livros, cada qual pulsando no fulgor de sua própria magia. Todos os volumes o fitavam do alto.[13]

Eles haviam escutado. Dava para lhes sentir o medo.

O orangotango permaneceu imóvel como uma estátua durante vários minutos. Depois, pareceu chegar a uma conclusão. Dirigiu-se à escrivaninha e, após muita procura, achou a pesada argola, cheia de chaves. Voltou para o meio da sala e, decidido, disse:

— Oook.

Os livros inclinaram-se para a frente. Agora, o bibliotecário contava com a atenção integral deles.


— Que lugar é esse? — perguntou Conina.

Rincewind correu os olhos à volta e tentou adivinhar.

Eles ainda estavam no coração de Al Khali. Era possível ouvir o burburinho além dos muros. Mas, no meio da cidade, alguém havia aberto uma área imensa, cercado-a com muros e plantado um jardim romântico e artificial.

Parece que alguém separou quinze quilômetros quadrados da cidade e cercou-os com muros e torres — arriscou.

— Que idéia estranha! — avaliou Conina.

Bem, algumas religiões daqui… quando morremos, entende? acham que vamos para uma espécie de jardim, onde tem muita música e… — continuou ele, aflito — refresco e… mulheres.

Conina estudou o esplendor verde do jardim murado, com seus pavões, arcos intrincados e chafarizes. Doze mulheres deitadas fitavam-na, impassíveis. Uma misteriosa orquestra de cordas tocava a complicada música klatchiana.

— Eu não estou morta — retrucou. — Tenho certeza de que me lembraria. Além do mais, essa não é a minha idéia de paraíso. — Analisou as mulheres deitadas e acrescentou:-Quem será que faz o cabelo delas?

Nesse momento, sentiu uma ponta de espada na nuca, e ambos partiram, pelo caminho enfeitado, em direção a um pequeno pavilhão cercado de oliveiras. Ela franziu a testa.

— Seja como for, não gosto de refresco.

Rincewind não teceu nenhum comentário. Estava examinando seu próprio estado mental, e não ficou nada satisfeito com o que viu. Teve a terrível sensação de que estava se apaixonando.

Era certo que apresentava todos os sintomas. Havia as palmas molhadas, a quentura do estômago, a sensação geral de que a pele do peito era feita de elástico. Toda vez que Conina falava, vinha a sensação de que alguém lhe passava aço quente na espinha.

Ele voltou os olhos para a Bagagem, caminhando estoicamente a seu lado, e reconheceu os sintomas.

— Você também? — alarmou-se.

Talvez fosse apenas o jogo de luz sobre a maltratada tampa da Bagagem, mas também era possível que, por um instante, ela se mostrasse mais vermelha do que de costume.

É claro que a sábia madeira de pereira possui uma espécie de ligação mental com o dono… Rincewind sacudiu a cabeça. Por outro lado, isso explicaria por que a arca havia perdido a agressividade.

— Não daria certo — opinou ele. — Quer dizer, ela é mulher e você é um, bem, você é… — ele se deteve. — Bem, o que quer que você seja, é feito de madeira. Não daria certo. As pessoas comentariam.

Ele se virou e fitou os guardas, vestidos de preto.

— Não sei o que estão olhando — disse, rispidamente.

A Bagagem foi para junto de Conina, seguindo-a de perto, a ponto de a garota bater o tornozelo nela.

— Saia daqui! — explodiu a menina, e chutou-a novamente, desta vez por querer.

Até onde a Bagagem conseguia manifestar sentimentos, olhou ofendida para Conina.

O pavilhão à frente era uma estrutura abobadada, cravejada de pedras preciosas e sustentada por quatro colunas. No interior, havia um monte de almofadas, onde se sentava um homem gordo de meia-idade, cercado por três moças. Ele vestia um manto roxo entrelaçado com linhas de ouro. Elas, até onde Rincewind conseguia ver, mostravam que seis pequenas tampas de panela e uns poucos metros de rede dava conta do recado. Mas — ele estremeceu — não o bastante para mantê-lo afastado. O homem parecia escrever. Ergueu a cabeça.

— Alguém conhece uma boa rima para “vós”? — perguntou, irritado.

Rincewind e Conina se entreolharam.

— Anzóis? — arriscou Rincewind. — Atroz?

— Calos — sugeriu Conina, com alegria forçada.

O homem hesitou.

— De calos eu gosto — decidiu. — Calos promete. Para dizer a verdade, talvez calos funcione. Aliás, puxem uma almofada. Tomem um pouco de refresco. Por que estão parados aí?

— São as cordas — respondeu Conina.

— Tenho alergia a aço frio — acrescentou Rincewind.

— Realmente, que chato — disse o homem gordo, e bateu uma palma com mãos tão cheias de anéis que o barulho foi, antes, um tinido. Dois guardas adiantaram-se e cortaram os laços. Todo o batalhão desapareceu, embora Rincewind estivesse bem consciente de que havia dezenas de olhos escuros observando-os da folhagem circundante. O instinto animal dizia-lhe que, apesar de parecer que estava sozinho com o homem e Conina, qualquer gesto agressivo de sua parte faria com que o mundo se transformasse num lugar hediondo. Ele tentou irradiar tranqüilidade e simpatia. Tentou pensar em algo a dizer.

— Bem — aventurou, olhando as tapeçarias de brocado, as colunas cravejadas de rubis e as almofadas fíligranadas com ouro —, o senhor ajeitou bem o lugar. E… — ele procurou algo adequadamente descritivo — … uma maravilha de criação.

— A gente busca a simplicidade — suspirou o homem, ainda escrevendo diligentemente. — Por que vocês estão aqui? Não que não seja sempre um prazer receber colegas estudiosos da musa poética.

— Fomos trazidos para cá — respondeu Conina.

— Homens com espadas — acrescentou Rincewind.

— Caríssimos colegas, eles fazem isso para manter a prática. Querem uma?

O gordo estalou os dedos para uma das moças.

— Agora, hã, não — começou Rincewind, mas ela havia pegado uma bandeja de palitos dourados e a oferecia recatadamente.

Ele experimentou uma das guloseimas. Era deliciosa, crocante, com um leve gosto de mel. Pegou mais duas.

— Desculpe — disse Conina. — Mas quem é o senhor? E que lugar é esse?

— Meu nome é Creosoto, xerinfe de Al Khali — respondeu o homem. — E esse é o meu Bosque. A gente faz o que pode.

Rincewind tossiu com o palito de mel.

— Não o Creosoto de “Rico como Creosoto”? — indagou.

— Esse era o meu querido pai. Na verdade, eu sou mais rico. Quando se tem muito dinheiro, é difícil atingir a simplicidade. A gente faz o que pode.

Ele suspirou.

— O senhor poderia doar — sugeriu Conina.

Ele suspirou outra vez.

— Não é fácil. Não, a gente só tem de tentar fazer pouco com muito.

— Não, não, mas olhe aqui — disse Rincewind, cuspindo pedaços do biscoito. — Dizem que tudo que o senhor toca vira ouro.

— Isso dificultaria as coisas na hora de ir ao banheiro — brincou Conina. — Desculpe.

— A gente ouve esses boatos — lamentou Creosoto, fingindo não escutar. — Que chato! Como se o dinheiro importasse. A verdadeira riqueza está nos cofres da literatura.

— O Creosoto de que eu ouvi falar — observou Conina, com tato — era chefe de um bando de, bem, matadores terríveis. Os Assassinos originais, temidos em toda a região central de Klatch.

Sem querer ofender.

— Ah, sim. Meu querido pai — confirmou Creosoto júnior. — Os haxixinos.[14] Que idéia inusitada. Mas não necessariamente eficaz. Por isso, contratamos os tugues.

— Sei. Que têm esse nome por causa de uma seita religiosa — afirmou Conina.

Creosoto dirigiu-lhe um olhar demorado.

— Não — protestou, devagar. — Acho que não. Acho que os batizamos assim por causa do ruído que fazem as cabeças das vítimas ao serem arrancadas do pescoço. Um horror.

Ergueu o pergaminho em que vinha escrevendo e continuou:

— Eu busco uma vida mais cerebral, que é o motivo de ter transformado o centro da cidade num Bosque. Muito melhor para o fluxo mental. A gente faz o que pode. Leio para vocês minha última ode?

— Pote? — perguntou Rincewind, que não estava entendendo nada muito bem.

Creosoto estendeu a mão e declamou o seguinte:

Um palácio de verão, sob nuvens de lençóis,

taça de vinho, fatia de pão, macarrão de cordeiro

com abobrinha, língua assada de pavão, kebab, refresco

gelado, variedade de doces e a

possibilidade de vós,

cantando ao meu lado no Bosque,

e o Bosque é…

Ele se deteve e suspendeu a caneta, pensativo.

— Talvez calos não seja uma idéia tão boa — considerou —, agora que parei para analisar.

Rincewind estudou a folhagem podada, as pedras bem dispostas e os altos muros circundantes.

— Isso aqui é um bosque? — perguntou.

— Acho que os paisagistas incorporaram todas as características essenciais. Levaram um tempão para tornar os córregos sinuosos o bastante. Fui informado de que possuem áreas de grande esplendor e surpreendente beleza natural.

— E escorpiões — lembrou Rincewind, servindo-se de outro palito de mel.

— Disso eu não sei — respondeu o poeta. — Escorpiões não me parecem muito poéticos. Mel e gafanhotos são mais apropriados, segundo as instruções poéticas regulamentares, embora eu nunca tenha gostado de comer insetos.

— Sempre achei que o gafanhoto que se come em bosque fosse o fruto de uma árvore — disse Conina. — Papai sempre me disse que era muito ruim.

— Não é o inseto? — surpreendeu-se Creosoto.

— Acho que não.

O xerinfe olhou para Rincewind.

— Então pode acabar com eles — disse. — Bichinhos nojentos, eu já não gostava mesmo.

— Não quero parecer ingrata — disse ela, em meio à tosse alucinada de Rincewind. — Mas por que o senhor nos trouxe para cá?

— Boa pergunta.

Creosoto encarou-a durante alguns segundos, como se tentasse lembrar o motivo de os visitantes estarem ali.

— Você é uma moça linda — elogiou. — Por acaso, sabe tocar citara?

— Quantas lâminas tem? — perguntou Conina.

— Que pena — lamentou o xerinfe. — Acabei de importar uma.

— Meu pai me ensinou a tocar gaita — observou.

Os lábios de Creosoto mexeram-se em silêncio enquanto ele avaliava a idéia.

— Não serve — decidiu, afinal. — Não dá para escandir. Mas obrigado, assim mesmo. — Olhou-a outra vez. — Sabe, você é realmente bonita. Alguém já disse que seu pescoço parece uma torre de marfim?

— Nunca — admitiu Conina.

— Que pena — disse Creosoto.

Ele vasculhou as almofadas, suspendeu um pequeno sino e tocou-o.

Depois de algum tempo, um homem alto e taciturno surgiu de trás do pavilhão. Tinha a aparência de quem conseguiria usar saca-rolhas sem se abaixar, e alguma coisa nos olhos que faria qualquer roedor sair correndo.


Era o tipo de homem que nasce para ser vizir. Não havia muito o que lhe ensinar sobre enganar viúvas e aprisionar rapazes impressionáveis em pretensas cavernas de tesouro. Se o assunto era trabalho sujo, ele poderia escrever um livro a respeito, embora fosse mais provável que o roubasse, já pronto, de outra pessoa.

Trazia um turbante, do qual saía um chapéu pontudo. Obviamente, tinha um bigode fino e comprido.

— Ah, Abrim — saudou-o Creosoto.

— Vossa alteza?

— Meu grande vizir! — exclamou o xerinfe.

— Foi o que eu pensei… — murmurou Rincewind.

— Essas pessoas, por que as trouxemos aqui?

O vizir enrolou o bigode, provavelmente imaginando uma dezena de crueldades.

— O chapéu, vossa alteza — respondeu ele. — O chapéu, lembra?

— Ah, é. Fascinante. Onde o pusemos?

— Esperem aí — apressou-se Rincewind. — Esse chapéu… não seria um pontudo, amassado, com uma porção de coisas em cima? Rendas, e não sei mais o quê… — ele hesitou. — Ninguém o experimentou, experimentou?

— O próprio chapéu nos advertiu que não o fizéssemos — explicou Creosoto. — E claro que Abrim obrigou um escravo a usá-lo. O homem ficou com dor de cabeça.

— O chapéu também nos avisou que vocês chegariam em breve — disse o vizir, inclinando-se ligeiramente para Rincewind.

— Eu… quer dizer, o xerinfe achou que vocês poderiam nos falar mais sobre esse artefato maravilhoso?

Existe um tom de voz conhecido como interrogativo, e o vizir o estava usando. Uma leve inflexão das palavras sugeria que, se ele não ficasse rapidamente sabendo mais sobre o chapéu, pensaria em várias atividades em que palavras como “facas” e “afiadas” apareceriam. Obviamente, todo grande vizir fala assim a maior parte do tempo. Deve haver uma escola em algum lugar.

— Nossa, estou contente que vocês o tenham achado — entusiasmou-se Rincewind. — Esse chapéu é gngngnh…

— O quê? — perguntou Abrim, acenando para que dois guardas se adiantassem. — Não entendi o que vinha depois que a moça… — ele curvou a cabeça para Conina — … acotovelou sua orelha.

— Eu acho — disse Conina, com educação e, ao mesmo tempo, firmeza — que é melhor vocês nos levarem até ele.

Cinco minutos depois, no depósito de tesouros do xerinfe, o chapéu dizia:

Até que enfim. Por que demoraram tanto?

É numa hora dessas, com Rincewind e Conina provavelmente prestes a serem vítimas de um ataque assassino, Coin prestes a falar aos magos de traição, e o Disco prestes a cair em plena ditadura mágica, que vale a pena mencionar a questão da poesia e da inspiração.

Por exemplo, em seu extravagante bosquete, o xerinfe acabou de virar as páginas do caderno para revisar versos que começam assim:

Acorda! Pois chegou a alvorada afastando de todo a noite estrelada.

… e suspirou, porque os versos pungentes que lhe cruzam a mente nunca saem exatamente como ele quer. Na realidade, é impossível que um dia venham a sair.

Infelizmente, esse tipo de coisa acontece o tempo todo.

É fato conhecido em todos os mundos multidimensionais do universo que a maioria das descobertas realmente importantes se deve a um momento breve de inspiração. Há sempre muito trabalho preliminar, evidentemente, mas o que fecha a questão é sempre a visão, digamos, de uma maçã caindo, de uma chaleira fervendo ou de água transbordando na banheira. Alguma coisa estala na cabeça do observador, e tudo se encaixa. Dizem que o formato do DNA deve sua descoberta à visão fortuita de uma escada em caracol no momento em que a mente do cientista se encontrava na temperatura certa. Se ele tivesse usado o elevador, todo o estudo da genética poderia ter sido bem diferente.[15]


Todo mundo acha isso maravilhoso. Não é. É trágico. As pequenas partículas de inspiração correm pelo universo o tempo todo, atravessando a matéria mais densa como o neutrino passaria por um monte de algodão-doce, e a maioria delas se perde.

Ainda pior, a maior parte das que atingem o cérebro atinge-no de forma errada.

Por exemplo, o estranho sonho de uma rosca de chumbo numa grua de 600 metros, que na mente certa seria o catalisador para a invenção da produção de eletricidade gravitacional reprimida (um tipo de energia não poluente, barata e inesgotável, que o mundo em questão vinha procurando havia séculos e por cuja falta estava mergulhado numa guerra terrível e absurda), foi, de fato, sonhado por um patinho assustado.

Por outro golpe de má sorte, a visão de uma manada de cavalos brancos galopando pelo campo de jacintos silvestres teria levado um compositor em dificuldades a escrever a famosa Séquito do deus voador, trazendo alívio e conforto às almas de milhões de indivíduos, se ele não estivesse em casa com herpes-zoster. A inspiração, por isso, caiu num sapo, ali perto, que não se encontrava em posição de fazer nenhuma contribuição brilhante para o campo da poesia sinfônica.

Muitas civilizações reconheceram esse desperdício terrível e experimentaram vários métodos para impedi-lo, a maioria dos quais envolvia tentativas agradáveis porém ilícitas de sintonizar a mente ao canal certo, com o uso de ervas exóticas ou produtos de levedo. Nunca funciona direito.

Creosoto, que sonhava com a inspiração de um poema magistral sobre a vida e a filosofia, e sobre como elas parecem melhor depois de uma taça de vinho, estava de mãos atadas por possuir tanto talento poético quanto uma hiena.

É um mistério por que os deuses permitem que esse tipo de coisa continue.

Na verdade, o lampejo de inspiração necessário para explicar essas coisas clara e precisamente já aconteceu, mas a criatura que o recebeu — um passarinho — jamais conseguiu tornar clara a proposição, mesmo depois de exaustivas mensagens cifradas no alto de garrafas de leite. Por estranha coincidência, um filósofo que vinha devotando noites insones ao mesmo mistério acordou, naquela manhã, com uma nova idéia maravilhosa de como pegar alpiste nos recipientes.

O que nos leva à questão da magia.

Nos sombrios confins do espaço interestelar, uma única partícula de inspiração vem se movimentando alheia ao seu destino, o que não tem muita importância, porque seu destino é atingir, dentro de poucas horas, uma minúscula área da mente de Rincewind.

Já seria um destino cruel mesmo se o centro criativo de Rincewind fosse de um tamanho decente, mas o carma da partícula havia lhe conferido a proeza de acertar um alvo em movimento do tamanho de uma pequena uva passa, várias centenas de anos-luz distante. A vida pode ser bem difícil para uma pequena partícula subatômica num universo tão grande.

Se ela der conta do recado, no entanto, Rincewind terá uma idéia filosófica séria. Se não der, um tijolo próximo terá um insight importante, com o qual não estará nem um pouco aparelhado para lidar.

O palácio do xerinfe, conhecido como Rhoxie, ocupava a maior parte do centro de Al Khali que já não era ocupada pelo bosque. Quase tudo que se ligava a Creosoto era envolto em lendas, e dizia-se que o palácio abobadado e cheio de colunas possuía mais cômodos do que qualquer homem conseguiria contar. Rincewind não sabia em que número estava.

— E magia, não é? — perguntou Abrim, o vizir.

Ele cutucou Rincewind na altura das costelas.

— Você é mago — continuou. — Diga o que ele faz.

— Como sabe que sou mago? — alarmou-se Rincewind.

— Está escrito no seu chapéu — informou o vizir.

— Ah.

— E você estava com ele no barco. Meus homens viram.

— O xerinfe emprega traficantes de escravos? — surpreendeu-se Conina. — Não me parece nada simples.

— Ah não, eu é que emprego os traficantes de escravos. Afinal, sou vizir — justificou Abrim. — É o que se espera de mim.

Ele analisou a menina, depois acenou para dois guardas.

— O atual xerinfe é muito literário — disse. — Eu, por outro lado, não sou. Levem-na ao harém, embora — ele rolou os olhos e soltou um suspiro irritado — eu tenha certeza de que sua única sina lá será o tédio e, talvez, dor de garganta.

Virou-se para Rincewind.

— Não diga nada — ordenou. — Não mexa as mãos. Não tente nenhum ato súbito de magia. Estou protegido por amuletos poderosíssimos.

— Espere aí… — começou Rincewind.

Mas Conina interveio:

— Tudo bem. Eu sempre quis saber como era um harém.

Rincewind ficou abrindo e fechando a boca sem produzir nenhum som. Por fim, conseguiu perguntar:

— Jura?

Ela mexeu a sobrancelha. Provavelmente, era algum tipo de sinal. Rincewind achou ter entendido, mas sentimentos estranhos se agitavam nas profundezas do seu ser. Eles não chegariam a torná-lo corajoso, mas estavam-no deixando enfurecido. Em velocidade acelerada, o diálogo por trás de seus olhos seguia assim:

Não!

Quem está aí?

Sua consciência. Estou péssima. Veja, estão levando Conina para o harém.

Antes ela do que eu, pensou Rincewind, mas sem muita convicção.

Faça alguma coisa!

Há guardas demais! Vão me matar!

Tudo bem que o matem, não é o fim do mundo. Para mim, é, pensou Rincewind, emburrado. Mas imagine como irá se sentir na próxima vida…

— Olhe aqui, cale a boca. Já estou cheio de mim.

Abrim aproximou-se de Rincewind e fitou-o, intrigado.

— Com quem está falando? — perguntou.

— Estou lhe avisando — ameaçou Rincewind, por entre os dentes cerrados. — Tenho uma arca mágica, com pernas, que é implacável com quem a ataca. Uma palavra minha e…

— Estou impressionado — ironizou Abrim. — Ela é invisível?

Rincewind arriscou olhar para trás.

— Estava comigo quando cheguei — disse, e inclinou-se para o lado.

Seria um erro dizer que a Bagagem não estava em lugar nenhum. Ela estava em algum lugar, mas em nenhum lugar perto de Rincewind.

Vagarosamente, Abrim contornou a mesa onde ficava o chapéu, enrolando o bigode.

— Mais uma vez eu lhe pergunto — insistiu. — Este é um artefato de poder. O que ele faz?

— Por que não pergunta ao próprio chapéu? — sugeriu Rincewind.

— Ele se nega a responder.

— Por que você quer saber?

Abrim riu. Não era um barulho agradável. Parecia que haviam lhe explicado exaustivamente o que era rir, mas ele jamais ouvira alguém rir de fato.

— Você é mago — repetiu. — A magia dos magos é só jogo de poder. Eu mesmo já me interessei por ela. Tenho o dom, entende?

O vizir se aprumou.

— Ah, tenho sim. Mas não me aceitaram na Universidade. Disseram que eu era mentalmente instável, dá para acreditar?

— Não — respondeu Rincewind, com sinceridade.

A maioria dos magos da Invisível sempre lhe pareceu ter um parafuso a menos. Abrim parecia boa matéria-prima para mago. O vizir abriu um sorriso à guisa de incentivo.

Rincewind olhou de viés para o chapéu. A peça não disse nada. Ele voltou a encarar o vizir. Se a risada havia sido estranha, o sorriso fazia com que parecesse normal feito canto de passarinho. Era como se o vizir o tivesse aprendido em gráficos.

— Nem cavalos selvagens me fariam ajudá-lo — provocou Rincewind.

— Ah — exclamou o vizir. — Um desafio.

Ele chamou o guarda mais próximo.

— Temos cavalos selvagens no estábulo?

— Alguns bem agressivos, senhor.

— Enfureça quatro deles e leve-os ao jardim anti-horário. Ah, e leve também correntes.

— Agora mesmo, senhor.

— Hum. Olhe — disse Rincewind.

— Sim? — indagou Abrim.

— Bom, se é assim…

— Quer dizer alguma coisa?

— É o chapéu de arqui-reitor — revelou Rincewind. — O símbolo da magia dos magos.

— Poderoso?

Rincewind estremeceu.

— Muito — assentiu.

— Por que se chama chapéu de arqui-reitor?

— Arqui-reitor é o mago sênior mais importante, entende? O líder. Mas, olhe…

Abrim pegou o chapéu e revirou-o nas mãos.

— Poderíamos dizer que é o símbolo do cargo?

— Com certeza. Mas, olhe, se for botá-lo na cabeça, é melhor eu avisar…

Cale a boca.

Abrim saltou para trás, deixando o chapéu cair no chão. O mago não sabe de nada. Livre-se dele. Precisamos negociar. O vizir mirou as octarinas reluzentes em torno do chapéu.

— Eu, negociar? Com um acessório de vestuário?

Tenho muito a oferecer, na cabeça certa.

Rincewind estava horrorizado. Já foi mencionado que ele tinha o instinto de perigo, em geral encontrado em pequenos roedores. Naquele momento, esse instinto lhe batia na lateral do crânio, impelindo-o a fugir e esconder-se em algum lugar.

— Não lhe dê ouvidos! — gritou.

Ponha-me, pediu o chapéu dissimuladamente, numa voz envelhecida e abafada.

Caso realmente houvesse uma escola de vizir, Abrim seria o primeiro da turma.

— Vamos conversar antes — decidiu.

Encarou os guardas e apontou para Rincewind.

— Joguem-no no tanque de aranhas — ordenou.

— Não, aranha não, qualquer outra coisa! — gemeu o mago.

O capitão da guarda deu um passo adiante e bateu continência.

— Acabaram as aranhas, senhor — lamentou.

— Ah — o vizir pareceu momentaneamente desconcertado. — Nesse caso, tranquem-no na jaula do tigre.

O guarda hesitou, tentando ignorar a súbita crise de choro ao seu lado.

— O tigre está doente, senhor. A noite toda, para um lado e para o outro.

— Então joguem esse covarde no poço do fogo eterno!

Dois guardas entreolharam-se por cima da cabeça de Rincewind, que havia caído de joelhos.

— Ah. Vamos precisar de tempo, senhor…

— … para acendê-lo novamente.

O vizir esmurrou a mesa com força. O capitão da guarda iluminou-se.

— Tem a cova das serpentes, senhor — sugeriu.

Os outros guardas assentiram. Sempre havia a cova das serpentes.

Quatro cabeças voltaram-se para Rincewind, que se levantou e limpou a poeira dos joelhos.

— O que acha de cobras? — perguntou um dos guardas.

— Cobras? Não gosto muito…

— Para a cova das serpentes — decidiu Abrim.

— Para a cova das serpentes — concordaram os guardas.

— Quer dizer, algumas cobras são legais… — arriscou Rincewind, enquanto dois guardas lhe agarravam os cotovelos.

Na verdade, só havia uma única serpente, bastante circunspecta, que permaneceu enrolada num canto da cova escura, observando Rincewind, desconfiada, talvez porque ele a lembrava um mangusto, mamífero que se alimenta de cobras.

— Oi — disse ela, afinal. — Você é um mago?

No que tange à fala de cobra, era um progresso considerável na cadeia geral de “esses”, mas Rincewind estava desanimado o bastante para não perder tempo pensando no assunto, e apenas respondeu:

— Está escrito no chapéu. Não sabe ler?

— Na verdade, em dezessete línguas. Aprendi por conta própria.

— Jura?

— Fiz cursos por correspondência. Mas tento não ler. Não cai bem.

— Imagino que não.

Sem dúvida, era a voz de cobra mais polida que Rincewind já ouvira.

— Igual ao tom de voz — acrescentou a serpente. — Eu não deveria estar falando com você agora. Pelo menos, não assim. Acho que poderia rosnar um pouco. Para dizer a verdade, eu deveria mesmo era estar tentando matá-lo.

— Tenho poderes extraordinários — alegou Rincewind. Não é mentira, pensou ele: a incapacidade quase absoluta de dominar qualquer tipo de magia é bastante extraordinária para um mago, e, de qualquer maneira, mentir para cobra não tem importância.

— Nossa. Imagino que você não vá ficar aqui por muito tempo.

— Hummm?

— Imagino que saia levitando a qualquer instante.

Rincewind estudou os muros de cinco metros de altura e alisou seus machucados.

— Talvez — disse, com cautela.

— Nesse caso, será que poderia me levar junto?

— Hã?

— Eu sei que é pedir muito, mas essa cova é um buraco só.

— Levar você? Mas você é uma cobra, essa cova é sua. A idéia é você ficar aqui e as pessoas virem até você. Sei como são essas coisas.

Uma sombra atrás da serpente se desdobrou.

— Isso não é coisa que se diga a ninguém — observou o vulto, e se adiantou para a luz.

Era um rapaz, mais alto do que Rincewind. Quer dizer, o mago estava sentado, mas o garoto seria mais alto mesmo que o mago estivesse de pé.

Dizer que era magro seria perder a oportunidade perfeita de usar a palavra “descarnado”. Parecia que tabuleiros e espreguiçadeiras haviam figurado em sua genealogia, e o motivo de isso ficar tão óbvio eram as roupas.

Rincewind olhou-o novamente. Estivera certo da primeira vez.

O indivíduo de cabelo escorrido à sua frente estava usando o vestuário tradicional dos heróis bárbaros: algumas tiras de couro cravejadas de tachas, grandes botas de animal e pele arrepiada de frio. Não havia nada de notável nisso, víamos centenas de aventureiros vestidos da mesma maneira nas ruas de Ankh-Morpork, embora não víssemos nenhum outro usando…

O jovem acompanhou o olhar de Rincewind e encolheu os ombros.

— Não posso fazer nada — lamentou. — Prometi à minha mãe.

— Roupa íntima de lã?


Naquela noite, estavam acontecendo coisas estranhas em Al Khali. Havia certa coloração prateada, vinda do mar, que surpreendeu os astrônomos da cidade, mas essa não era a coisa mais estranha. Pequenos raios de magia em estado natural saíam das quinas das superfícies, como eletricidade estática, mas essa também não era a coisa mais estranha.

A coisa mais estranha entrou numa taverna, no limite da cidade, onde o vento incessante soprava o cheiro do deserto pelas janelas sem vidro, e sentou-se no chão.

Os fregueses observaram-na durante algum tempo, bebendo café com orakh. O drinque, feito de seiva de cacto e veneno de escorpião, é uma das bebidas alcoólicas mais fortes do universo, mas os nômades do deserto não a tomam por seus fins inebriantes. Usam-na porque precisam de algo que atenue o efeito do café klatchiano.

Não que pudéssemos usar o café para impermeabilizar telhados. Não que ele entrasse no estômago desacostumado como uma bola de fogo atravessando manteiga derretida. O que ele fazia era pior.

Ele nos deixava knurds.[16]

Os filhos do deserto olharam desconfiados para as minúsculas xícaras de café e perguntaram a si mesmos se não teriam exagerado no orakh. Estariam todos vendo o mesmo? Seria ridículo fazer um comentário? Esse é o tipo de coisa com que devemos nos preocupar se pretendemos ter algum crédito como perspicazes filhos do deserto. Apontar o dedo trêmulo e dizer “Vejam, uma arca com centenas de perninhas acabou de entrar aqui, não é incrível?” revelaria uma ausência terrível, e possivelmente fatal, de virilidade.

Os fregueses tentaram não se entreolhar, mesmo quando a Bagagem se aproximou da fileira de jarras de orakh, junto à parede oposta. A Bagagem tinha um jeito de ficar parada que, de algum modo, era ainda mais aterrorizante do que seu andar.

Por fim, um cliente disse:

— Acho que ela quer beber.

Houve um longo silêncio até que, com a precisão de um grande mestre de xadrez fazendo uma jogada mortal, outro freguês perguntou:

— Quem?

Os homens fitaram os próprios copos.

Durante algum tempo, não se ouviu nenhum ruído, salvo os passos de uma lagartixa no teto. O primeiro cliente respondeu:

— O demônio que está agora atrás de você, ó irmão de areia. O atual vencedor do Campeonato Municipal de Impassibilidade sorriu, até sentir lhe puxarem o manto. O sorriso permaneceu onde estava, mas parecia que o resto do rosto não queria ter nenhuma ligação com ele.

A Bagagem estava apaixonada e fazia o que qualquer sujeito sensato faria nessas circunstâncias, que era ficar bêbada. Não tinha dinheiro, nem como pedir o que queria, mas nunca teve muita dificuldade em se fazer entender.

O dono da taverna acabou passando uma noite longa e solitária, enchendo um pires de orakh até que a arca, já trôpega, saísse dali por uma das paredes.

O deserto estava em silêncio. Geralmente, não era assim. Em geral, ouvia-se o cricri dos grilos, o zumbido dos mosquitos, o rumor de asas batendo sobre a areia fria. Mas aquela noite estava silenciosa, com o silêncio diligente de dezenas de nômades dobrando suas barracas e dando o fora dali.


— Prometi à minha mãe — disse o garoto. — Estou sempre resinado, entende?

— Talvez você devesse tentar usar, bem, um pouco mais de roupa.

— Ah, eu não poderia. Temos de vestir todo esse arsenal de couro.

— Eu não o chamaria de todo — protestou Rincewind. — Não tem o bastante para chamar de todo. Por que tem de vestir isso?

— Para que as pessoas saibam que sou um herói bárbaro.

Rincewind recostou-se no muro fétido da cova das serpentes e fitou o menino. Viu dois olhos semelhantes a uvas cozidas, um emaranhado de cabelos louros e o rosto que era campo de batalha entre sardas nativas e as terríveis tropas invasoras da acne.

O mago gostava desses momentos. Eles convenciam-no de que não era louco, porque, se fosse louco, não sobraria nenhuma palavra para descrever algumas pessoas que encontrava.

— Herói bárbaro — murmurou.

— Está legal, não está? Essa parafernália de couro foi muito cara.

— E, mas, olhe… qual é o seu nome, rapaz?

— Nijel…

— Veja bem, Nijel…

— Nijel, o Destruidor — acrescentou Nijel.

— Veja bem, Nijel…

— O Destruidor…

— Tudo bem, Destruidor… — afligiu-se Rincewind.

— Filho de Lebremar, o Mercador de Provisões…

— O quê?

— Todo mundo é filho de alguém — explicou Nijel. — Está escrito aqui, em algum lugar…

Ele se virou e vasculhou o interior de uma bolsa de pele animal encardida, até achar um livro fino, rasgado e sujo.

— Tem uma parte sobre escolha de nome — murmurou.

— Como veio parar nessa cova?

— Eu queria roubar o depósito de tesouros de Creosoto, mas tive uma crise asmática — contou o bárbaro, ainda folheando as páginas barulhentas.

Rincewind olhou a cobra, que ainda procurava manter distância de todos. Ela sabia o que era complicação. E não pretendia incomodar ninguém. Apenas retribuiu o olhar do mago e encolheu os ombros, o que é notável para um réptil sem ombros.

— Há quanto tempo você é herói bárbaro?

— Estou começando. Sempre quis ser, e achei que poderia aprender com o tempo — Nijel encarou Rincewind. — Algum problema?

— Segundo dizem, é uma vida perigosa — arriscou Rincewind.

— Já imaginou o que seria vender legumes e verduras durante cinqüenta anos? — sussurrou Nijel, soturnamente.

O mago pensou no assunto.

— Alface está incluída? — perguntou.

— Está — respondeu Nijel, enfiando o misterioso livro de volta na bolsa.

O rapaz, então, começou a prestar atenção nos muros da cova.

Rincewind suspirou. Gostava de alface. Alface era muito entediante. Ele havia passado anos à procura do tédio e jamais o alcançara. Quando pensava que o tinha nas mãos, ávida de repente ficava cheia de curiosidades quase fatais. A idéia de que alguém poderia deliberadamente recusar a possibilidade de ficar entediado durante cinqüenta anos deixava-o transtornado. Com cinqüenta anos, pensou, ele poderia elevar o tédio ao status de arte. Não haveria fim para o que poderia fazer.

— Você conhece alguma piada de pavio de lampião? — perguntou, ajeitando-se confortavelmente na areia.

— Acho que não — respondeu Nijel, batendo numa laje.

— Eu conheço milhares. São muito engraçadas. Por exemplo, sabe quantos trolls são necessários para trocar um pavio de lampião?

— Essa laje gira — notou Nijel. — Olhe, é uma espécie de porta. Venha aqui me ajudar.

Ele empurrou com força, os bíceps saltando nos braços como ervilhas num lápis.

— Deve ser alguma passagem secreta — acrescentou. — Vamos lá, use um pouco de magia. Está presa.

— Não quer ouvir o resto da piada? — insistiu Rincewind, a voz aflita.

Estava quente e seco ali embaixo, sem nenhum perigo imediato, descontada a serpente, que tentava passar despercebida. Tem gente que nunca está satisfeita.

— Acho que agora não — respondeu Nijel. — Eu preferiria um pouco de auxílio mágico.

— Não sou bom nisso — confessou Rincewind. — Nunca peguei o jeito, é mais do que apenas apontar o dedo para aí e dizer “Abracadabra”…

Ouviu-se o ruído de um raio de luz octarina atingindo uma laje pesada e detonando-a em mil pedrinhas voadoras, e não era de admirar.

Depois de um tempo, Nijel levantou-se devagar, limpando o colete.

— Isso mesmo — disse, com a voz de quem está determinado a não perder o autocontrole. — Muito bem. Agora, que tal deixarmos esfriar um pouco? E depois… depois podemos ir.

Ele pigarreou um pouco.

— Nnn — murmurou Rincewind.

O mago estava olhando fixamente para a ponta do dedo, mantendo o braço esticado de modo a sugerir que lamentava não ter braços mais compridos.

Nijel espiou o buraco enfumaçado.

— Parece dar numa sala — informou.

— Nnn.

— Você na frente — disse Nijel.

Ele deu um leve empurrão em Rincewind. O mago cambaleou para a frente, deu com a cabeça numa pedra, sem ao menos notar, e entrou no buraco.

Nijel bateu no muro e franziu a testa.

— Está sentindo? — perguntou. — A pedra não está tremendo?

— Nnn.

— Você está bem?

— Nnn.

O bárbaro colou o ouvido às pedras.

— Tem um barulho muito estranho — avisou. — Uma espécie de zumbido.

Um pouco de poeira caiu da argamassa acima de sua cabeça.

Então duas pedras bem mais pesadas se soltaram dos muros da cova e tombaram na areia.

Rincewind já havia partido, cambaleante, pelo túnel, soltando interjeições de susto e ignorando completamente as pedras que não o acertavam e, também, as que o atingiam em cheio.

Caso se encontrasse em condições de reparar, saberia o que estava acontecendo. O ar tinha uma textura oleosa e cheirava a lata queimada. Arco-íris cobriam todas as arestas. Uma formação mágica vinha se desenvolvendo em algum lugar próximo. Era grande e tentava se enterrar. Qualquer mago, mesmo inábil como Rincewind, sobressaía como um farol de cobre.

Nijel surgiu da poeirada quente e ressonante, e deu com ele parado em outra cova, cercado por uma coroa octarina.

Rincewind estava pavoroso. Até Creosoto teria lhe notado os olhos reluzentes e o cabelo esvoaçante. Ele parecia ter acabado de comer um punhado de glândulas pineais, acompanhadas de uma dose de adrenocromo. Estava tão alto que poderia ser usado como satélite.

Todos os fios de cabelo se erguiam da cabeça, soltando faíscas. Até a pele dava a impressão de querer se desprender dele. Os olhos pareciam girar na horizontal. Quando abriu a boca, centelhas de menta irromperam dos dentes. Por onde havia pisado, as pedras derretiam, criavam orelhas ou transformavam-se em negócios pequenos, escamosos e roxos, e fugiam.

— Ei — chamou Nijel. — Você está bem?

— Nnn — respondeu o mago, e a sílaba virou uma rosca no ar.

— Não parece — considerou Nijel, com o que, nas circunstâncias, poderíamos chamar de extraordinária perspicácia.

— Nnn.

— Por que não tenta nos tirar daqui? — acrescentou Nijel, e sensatamente se jogou no chão.

Como uma marionete, Rincewind assentiu e apontou o dedo para o teto, que derreteu como gelo sob a ação de um maçarico.

Ainda assim, o ruído prosseguia, enviando seus tons inquietantes, a dançar pelo palácio. E fato conhecido de todos à existência de freqüências que geram pânico e freqüências que provocam constrangedora incontinência, mas a rocha estremecida ressoava na freqüência que faz a realidade se derreter pelos cantos.

Nijel mirou o teto gotejante e provou-o com cuidado.

— Creme de limão — disse, e perguntou: — Sem chance de uma escada?

Mais chamas se lançaram dos dedos arruinados de Rincewind, fundindo-se numa escada rolante quase perfeita, à exceção de que provavelmente nenhuma outra escada rolante no mundo era forrada com pele de jacaré.

Nijel pegou o mago e saltou para lá. Por sorte, os dois haviam chegado ao topo antes de a magia desaparecer, muito de repente.


Brotando do centro do palácio, quebrando os telhados como um cogumelo a irromper do chão, havia uma torre branca mais alta do que qualquer outro prédio de Al Khali.

Imensas portas duplas haviam se aberto na base e, agora, dezenas de magos saíam delas como se fossem donos do lugar. Rincewind imaginou reconhecer alguns rostos, rostos que já vira murmurando vagamente em salas de audiência ou examinando o mundo no campus da Universidade. Não eram rostos feitos para o mal. Não tinham presas. Mas havia um denominador comum entre as fisionomias que deixaria apavorada qualquer pessoa mais observadora.

Nijel escondeu-se atrás de um muro. Pegou-se fitando os olhos preocupados de Rincewind.

— Aquilo é magia!

— Eu sei — confirmou Rincewind. — Não está certo!

Nijel olhou a torre reluzente.

— Mas…

— Está errado — insistiu Rincewind. — Não me pergunte por quê.

Meia dúzia de guardas do xerinfe surgiu de uma porta arqueada e correram em direção aos magos — a correria parecia ainda mais sinistra por causa do terrível silêncio geral. Por um instante, as espadas brilharam à luz do sol. Então, dois magos se viraram, estenderam as mãos e… Nijel desviou os olhos.

— Eca! — disse.

Algumas espadas recurvas tombaram no chão.

— Acho que devemos ir embora — sugeriu Rincewind.

— Mas você não viu no que transformaram os guardas?

— Em cadáveres — respondeu Rincewind. — Eu sei. Não quero pensar nisso.

Nijel se deu conta de que jamais conseguiria deixar de pensar naquilo, principalmente às três da manhã, em noites de vento. O problema de morrer por magia é que era muito mais criativo do que, digamos, a facadas. Havia uma infinidade de maneiras novas de morrer, e ele não conseguia tirar da cabeça as formas que tinha visto, só por um instante, antes que a onda de fogo octarina as houvesse engolido.

— Eu não sabia que os magos eram assim — disse ele, enquanto os dois disparavam por uma rua. — Achei que fossem mais tolos do que cruéis. Figuras divertidas.

— Então morra de rir daquilo — murmurou Rincewind.

— Mas mataram os guardas sem nem mesmo…

— Eu prefiro que você não fale. Também vi.

Nijel recuou. Apertou os olhos.

— Você é mago — observou, acusadoramente.

— Não daquele tipo — objetou Rincewind.

— E de que tipo?

— Do tipo que não mata.

— Foi a maneira de olharem para os guardas, como se aquilo não tivesse importância… — prosseguiu Nijel, sacudindo a cabeça.

— Foi a pior parte.

— É.

Rincewind soltou a vogal única sobre o fio de pensamento de Nijel como se fosse um tronco de árvore. O menino estremeceu, mas pelo menos se calou. Rincewind começou a sentir dó dele, o que não era comum: em geral, achava que precisava de toda a piedade para si próprio.

— Foi a primeira vez que viu alguém morrer? — perguntou.

— Foi.

— Há quanto tempo é herói bárbaro?

— Ha… Em que ano estamos?

Da esquina, Rincewind espiou a rua. As pessoas que estavam de pé se encontravam ocupadas demais, entrando em pânico, para se incomodarem com eles.

— Já está na estrada há muito tempo — avaliou, baixinho. — Perdeu a noção do tempo? Sei como é. Estamos no ano da hiena.

— Ah. Nesse caso, faz… — os lábios de Nijel moveram-se em silêncio — uns três dias. Olhe — apressou-se em acrescentar. — Como é que se pode matar assim, sem nem pensar a respeito?

— Não sei — respondeu Rincewind, num tom de voz que sugeria que ele estava pensando a respeito.

— Quer dizer, até quando o vizir mandou me jogarem na cova das serpentes, parecia ao menos interessado naquilo.

— Que bom. Todo mundo deveria ter interesse em alguma coisa.

— Ele chegou a rir!

— Ah. Senso de humor também.

Rincewind sentiu que podia ver o futuro com a mesma clareza que o homem caindo de um despenhadeiro vê o chão, e pelo mesmo motivo. Então, quando Nijel disse:

— Eles simplesmente apontaram o dedo, sem ao menos…

Rincewind rebateu:

— Cale a boca. Como acha que me sinto? Também sou mago!

— E, então você vai ficar bem — murmurou Nijel.

Não foi um soco forte, porque, mesmo com raiva, Rincewind tinha músculos que pareciam tapioca, mas o golpe acertou a lateral da cabeça de Nijel e derrubou-o, mais pelo peso da surpresa do que pela força intrínseca.

— E, sou mago — sussurrou Rincewind. — Um mago que não é bom em magia! Consegui sobreviver até aqui procurando não ser importante o bastante para morrer! E, quando todos os magos são temidos e odiados, quanto tempo acha que vou durar?

— Que besteira!

Rincewind não teria ficado mais surpreso se Nijel tivesse batido nele.

— O quê?

— Bocó! É só parar de usar esse manto ridículo e se livrar desse chapéu idiota, e ninguém vai saber que você é mago!

Rincewind abriu e fechou a boca algumas vezes, dando a impressão bem real de um peixe dourado que viesse tentando entender o conceito de sapateado.

— Parar de usar o manto? — perguntou ele.

— Claro. Essas lantejoulas espalhafatosas são uma tremenda bandeira — justificou Nijel, levantando-se com dificuldade.

— E me livrar do chapéu?

— Você tem de admitir que sair por aí com “Maggo” escrito no chapéu é um pouco demais.

Rincewind abriu um sorriso preocupado.

— Desculpe — pediu. — Não estou entendendo…

— Livre-se deles. E fácil. Largue em qualquer lugar e você poderá ser… bem, o que for. Alguma coisa que não seja mago.

Houve uma pausa, interrompida apenas pelos ruídos distantes de briga.

— Hã… — soltou Rincewind, e sacudiu a cabeça. — Eu me perdi…

— Minha nossa, é muito simples de entender!

— Acho que não pesquei o sentido… — segredou Rincewind, com o rosto banhado em suor.

— Você pode simplesmente deixar de ser mago.

Os lábios de Rincewind mexeram-se em silêncio, enquanto ele repetia cada palavra isoladamente, e depois em conjunto.

— O quê? — perguntou, e então disse: — Ah!

— Entendeu? Quer tentar mais uma vez?

Rincewind sacudiu a cabeça, em desalento.

— Acho que você não entende. Mago não é o que se faz, é o que se é. Se eu não fosse mago, não seria nada.

Ele tirou o chapéu e brincou com a estrela frouxa na ponta, fazendo com que mais algumas lantejoulas se desprendessem.

— Quer dizer, tem “mago” escrito no meu chapéu — continuou. — É muito importante…

Parou e olhou o objeto.

— Chapéu — repetiu vagamente, dando-se conta de uma lembrança insistente que tentava pular a janela de sua memória.

— E um bom chapéu — observou Nijel, sentindo que se esperava algo dele.

— Chapéu — repetiu Rincewind mais uma vez, e então acrescentou: — O chapéu!'Temos de achar o chapéu!

— Está aí! — apontou Nijel.

— Não esse, o outro. E Conina!

Deu uns passos perdidos na rua e voltou.

— Onde acha que estão? — perguntou.

— Quem?

— Tem um chapéu mágico que preciso encontrar. E uma garota.

— Por quê?

— E difícil explicar. Mas, a certa altura, envolve gritos.

Nijel não tinha muito queixo, mas projetou-o para a frente.

— Uma garota precisa ser salva? — perguntou, sombrio.

Rincewind hesitou.

— É provável que alguém precise ser salvo — disse. — Talvez ela. Ou, pelo menos, alguém próximo a ela.

— Por que não disse logo? E por isso que venho esperando. Heroísmo é isso. Vamos!

Ouviu-se outro estrondo e o som de pessoas gritando.

— Aonde? — perguntou Rincewind.

— A qualquer lugar!

Em geral, os heróis têm a capacidade de correr alucinadamente por palácios que mal conhecem, salvar todo mundo e escapar bem a tempo de o edifício explodir ou afundar no pântano. Nijel e Rincewind visitaram a cozinha, salas variadas, o estábulo (duas vezes) e o que pareceu a Rincewind serem quilômetros de corredor. De vez em quando, grupos de guardas vestidos de preto passavam correndo, sem lhes dar atenção.

— Isso é ridículo — objetou Nijel. — Por que não perguntamos a alguém? Você está bem?

Arfante, Rincewind encostou-se numa pilastra enfeitada com esculturas constrangedoras.

— Você poderia torturar um guarda para arrancar as informações dele — sugeriu, arquejando.

Nijel encarou-o.

— Espere aqui — disse, e saiu andando até se deparar com um empregado que saqueava um armário.

— Com licença — pediu. — Onde fica o harém?

— Terceira porta à esquerda — respondeu o homem, sem olhar para trás.

— Certo.

Voltou e contou a Rincewind.

— Tudo bem, mas você o torturou?

— Não.

— Então, não foi muito bárbaro da sua parte.

— Estou chegando lá-garantiu Nijel. — Pelo menos não falei “obrigado”.

Trinta segundos depois, eles abriam uma pesada cortina de contas e entravam no harém do xerinfe de Al Khali.

Havia lindas aves canoras em gaiolas filigranadas de ouro. Havia chafarizes. Havia vasos de orquídeas raras, por entre as quais beija-flores deslizavam como pequenas pedras preciosas. Havia cerca de vinte moças vestidas com roupa suficiente para, digamos, meia dúzia, amontoadas em silêncio.

Rincewind não soube apreciar nada disso. Não que a visão de vários metros de coxas e quadris de todas as cores, variando do branco rosado ao negro retinto, não levantasse a maré no golfo de sua libido, mas ela foi engolida pela cheia consideravelmente maior do pânico à chegada de quatro guardas com cimitarras nas mãos e brilho assassino nos olhos.

Sem hesitar, Rincewind recuou.

— Amigo, são todos seus — disse.

— Certo!

Nijel sacou a espada e ergueu-a a frente, com os braços trêmulos pelo esforço. Houve alguns segundos de silêncio absoluto, enquanto todos aguardavam para ver o que aconteceria em seguida. Nijel soltou, então, o grito de guerra do qual, para o resto da vida, Rincewind se lembraria.

— Hã… — disse o rapaz. — Desculpe…

— Parece uma pena — comentou um mago baixote.

Os outros não responderam. Era uma pena, e não havia ninguém ali que não ouvisse as lamúrias violentas da culpa lhe cortando a espinha. Mas, como sempre acontece, por uma estranha alquimia da alma, a culpa nos deixa arrogantes e indiferentes.

— Cale a boca — ordenou o líder temporário. Chamava-se Benado Aversal, mas, nessa noite, há qualquer coisa no ar que sugere não valer a pena gravar o nome. O ar se encontra pesado, escuro e cheio de fantasmas.

A Universidade Invisível não está vazia, apenas não tem ninguém ali.

Evidentemente, os seis magos enviados para queimar a biblioteca não têm medo de fantasma, porque se acham tão carregados de magia que quase zumbem ao caminhar. Vestem mantos mais esplêndidos do que os usados por qualquer arqui-reitor, os chapéus são mais pontudos do que qualquer outro até então, e o motivo de se encontrarem tão próximos uns dos outros é pura coincidência.

— Está escuro demais — reclamou o mais baixo dos magos.

— É meia-noite — rebateu Aversal. — E a única coisa perigosa aqui somos nós. Não é, rapazes?

Ouviu-se um coro de murmúrios vagos. Estavam todos admirados com Aversal, sobre quem corria o boato de que fazia exercícios para manter o pensamento positivo.

— E não temos medo de alguns livros velhos, temos, companheiros? — Ele encarou o mago baixote. — Você não tem, tem? — acrescentou, irritado.

— Eu? Ah. Não. Claro que não. Não passam de papel, como ele bem disse — apressou-se em responder o mago.

— Pois bem.

— São 90 mil — contestou outro.

— Sempre ouvi dizer que eram infinitos — observou ainda outro. — São as dimensões, ouvi falar que o que vemos não passa da ponta do… que quer que seja. Sabem, aquele negócio que fica quase todo debaixo d'água…

— Hipopótamo?

— Jacaré?

— Oceano?

— Calem a boca! — gritou Aversal.

Ele hesitou. A escuridão parecia absorver o som da voz. E enchia o ambiente como se fosse de plumas. Ele se aprumou um pouco.

— Muito bem — disse, e virou-se para a ameaçadora porta da biblioteca.

Levantou as mãos, fez uns gestos complicados nos quais os dedos, de algum modo que fazia os olhos se encherem de água, pareciam atravessar uns aos outros, e detonou a porta.

As ondas do silêncio retornaram, abafando o ruído da queda das lascas de madeira.

Não havia dúvida de que a porta estava despedaçada. Quatro dobradiças tristes oscilavam na lateral, e restos de bancos e estantes quebradas encontravam-se entre os escombros. Até Aversal se mostrou um pouco surpreso.

— Pronto — animou-se. — E fácil assim. Viram? Não aconteceu nada comigo. Certo?

As botas de ponta recurva arrastaram-se no chão. O breu, para além do vão da porta, se fazia delinear pelo indistinto brilho da irradiação taumatúrgica, uma vez que as partículas de possibilidade excediam a velocidade da realidade em campo mágico intenso.

— E agora — entusiasmou-se Aversal — quem quer ter a honra de botar fogo?

Dez segundos de silêncio mais tarde, ele disse:

— Nesse caso, eu mesmo boto. Sinceramente, é como se eu estivesse falando para as paredes.

Atravessou o vão da porta e correu até a área iluminada pela luz das estrelas, a entrar pela cúpula de vidro bem acima do centro da biblioteca (embora, evidentemente, sempre tenha havido muita discussão sobre a geografia exata do lugar: concentrações maciças de magia distorcem o tempo e o espaço, e é possível que a biblioteca nem tenha fim, que dirá centro).

Ele estendeu os braços.

— Pronto. Estão vendo? Não aconteceu absolutamente nada.

Agora entrem.

Os outros magos obedeceram, com muita relutância e tendência de agachar ao passar pelo arco violado.

— Muito bem — disse Aversal, com satisfação. — Todos trouxeram os fósforos, como instruídos? Fogo mágico não vai funcionar nesses livros, então quero que vocês…

— Alguma coisa se mexeu lá em cima — observou o mais baixo dos magos.

Aversal piscou.

— O quê?

— Alguma coisa se mexeu na cúpula — informou o mago, acrescentando, à guisa de explicação: — Eu vi.

Aversal mirou o breu do teto e decidiu empregar um pouco de autoridade:

— Absurdo — protestou, energicamente. Pegou um feixe de fósforos amarelos malcheirosos e continuou: — Agora, quero que todos vocês juntem…

— Eu vi mesmo — insistiu o mago baixote, amuado.

— Tudo bem, viu o quê?

— Bem, não sei exatamente…

— Você não sabe? — irritou-se Aversal.

— Eu vi alg…

— Você não sabe! — repetiu Aversal. — Não está vendo nada além de sombras, só quer minar minha autoridade, não é isso? — Aversal hesitou e, por um instante, os olhos se vidraram. — Estou calmo — disse ele. — Estou no comando. Não vou deixar…

— Era…

— Escute aqui, tampinha, cale a boca, está bem?

Um dos outros magos, que vinha olhando o teto para esconder seu constrangimento, tossiu.

— Hã… Aversal…

— E isso serve para você também!

Aversal empertigou-se e agitou os fósforos.

— Como eu estava falando — prosseguiu —, quero que acendam os fósforos e… acho que vou ter de mostrar a vocês como acender fósforo, para vantagem do tampinha aí, e… eu não estou lá fora. Minha nossa. Olhem para mim. Peguem o fósforo…

Ele acendeu o fósforo, uma bola de luz branca brotou da escuridão, e então o bibliotecário caiu sobre ele.

Todos conheciam o bibliotecário, da mesma forma clara e, ao mesmo tempo, difusa como conhecemos as paredes, o chão e todos os outros detalhes insignificantes, contudo necessários, ao palco da vida. Caso se lembrassem dele, era a lembrança vaga de vê-lo sentado debaixo da mesa, restaurando livros, ou se arrastando pelos corredores, atrás de fumantes. Qualquer mago tolo o bastante para arriscar acender um cigarro escondido logo não veria nada além da mão aveludada a lhe confiscar a bagana ofensiva. Mas o bibliotecário nunca armava fuzuê, limitando-se a parecer extremamente magoado com o fato e comer a guimba.

Ao passo que a criatura que vinha tentando desparafusar a cabeça de Aversal pelas orelhas era um pesadelo vivo, com os lábios revirados a fim de revelar longas presas amarelas.

Apavorados, os magos viraram para correr e se viram colidindo em estantes que agora, inexplicavelmente, bloqueavam os corredores. O mais baixo dos magos soltou um grito, rolou para debaixo de uma mesa cheia de atlas e pôs as mãos sobre os ouvidos para abafar os ruídos pavorosos dos outros magos, que tentavam escapar.

Por fim, não se ouviu nada além do silêncio, mas era aquele silêncio opressivo de quando alguma coisa se arrasta furtivamente, talvez à procura de outra coisa. Horrorizado, o mais baixo dos magos mordeu a ponta do chapéu.

A criatura, a se mover em silêncio, agarrou-o pela perna e puxou-o suave mas firmemente para fora, onde ele se lamuriou um pouco de olhos fechados e, depois, ao se dar conta de que dentes medonhos não haviam lhe cortado o pescoço, arriscou uma olhadela.

O bibliotecário ergueu-o pela nuca e o manteve suspenso a trinta centímetros do chão, fora do alcance do pequeno e velhusco terrier de pêlos duros, que tentava se lembrar de como era morder tornozelo de gente.

— Hã… — soltou o mago, e se viu arremessado pelo vão da porta destruída, onde sua queda foi aparada pelo chão.

Depois de um tempo, uma sombra ao seu lado disse:

— Bem, é isso. Alguém viu aquele imbecil desgraçado do Aversal?

E uma sombra, do outro lado, comentou:

— Acho que meu pescoço está quebrado.

— Quem está aí?

— Aquele imbecil desgraçado — respondeu a sombra, com rispidez.

— Ah. Desculpe, Aversal.

Aversal levantou-se, desta vez com o corpo inteiro contornado por uma aura mágica. Tremia de raiva ao erguer as mãos.

— Vou ensinar aquele retrocesso histórico a respeitar seus superiores evolucionários… — rosnou. — Peguem-no, rapazes!

E Aversal viu-se novamente jogado no chão, agora sob o peso dos cinco magos.

— Desculpe, mas…

— … você sabe que se usar…

— … magia perto da biblioteca, com toda a concentração que já existe aqui…

— … basta um errinho, forma-se a massa crítica, e aí…

— …BUM! Até nunca mais, mundo!

Aversal resmungou. Os magos, sentados sobre ele, decidiram que levantar não seria o mais sensato a fazer àquela altura. Por fim, ele disse:

— Tudo bem. Vocês estão certos. Obrigado. Foi erro meu perder a cabeça assim. Comprometeu minha capacidade de discernimento. E imprescindível manter a calma. Vocês têm toda a razão. Obrigado. Saiam.

Eles arriscaram obedecer. Aversal pôs-se de pé.

— Aquele chimpanzé — vociferou — nunca mais vai comer banana. Peguem…

— Hã… Macaco, Aversal — corrigiu o mais baixo dos magos, incapaz de se conter. — É macaco, entende? Não chimpanzé…

E murchou sob o olhar fixo do outro.

— O que importa? Macaco, chimpanzé, qual é a diferença? — perguntou Aversal. — Qual é a diferença, senhor Zoólogo?

— Não sei — admitiu o mago, submisso. — Acho que chimpanzé é um tipo de macaco.

— Cale a boca.

— Está bem.

— Nanico ridículo — completou Aversal.

Ele se virou e, numa voz nivelada feito lâmina de serra, acrescentou:

— Estou perfeitamente calmo. Minha mente está fria como um mamute pelado. A razão está no comando. Quem de vocês sentou na minha cabeça? Não, não posso ficar com raiva. Não estou com raiva. Basta pensar positivo. Minhas faculdades estão bem ajustadas… alguém duvida?

— Não, Aversal — responderam todos, em coro.

— Então me tragam uma dezena de barris de óleo e toda a lenha que conseguirem achar! Aquele macaco vai fritar!

No telhado da biblioteca — lar de corujas, morcegos e outras criaturas —, ouviu-se um tinido de corrente e o ruído de vidro se partindo com o máximo possível de educação.


— Eles não parecem muito preocupados — lamentou Nijel, ligeiramente insultado.

— Como vou lhe explicar? — perguntou Rincewind. — Quando escreverem a lista dos Grandes Gritos Mundiais de Guerra, “Hã… desculpe” não vai constar dela.

E deu um passo para o lado.

— Não estou com ele — alegou para um guarda que sorria. — Acabei de conhecê-lo por aí. Numa cova.

O mago soltou uma risada.

— Esse tipo de coisa acontece comigo o tempo todo.

Os guardas o encararam.

— Hã… — disse. — Tudo bem.

E voltou para perto de Nijel.

— Sabe usar a espada?

Sem despregar os olhos dos guardas, Nijel vasculhou a bolsa e entregou o livro para Rincewind.

— Li o capítulo três inteiros — informou. — Tem ilustrações.

Rincewind folheou as páginas amassadas. O livro fora tão usado que poderíamos embaralhá-lo, mas o que provavelmente havia sido a capa mostrava a xilogravura meio tosca de um homem musculoso. Os braços pareciam sacos cheios de bolas de futebol, e o sujeito estava mergulhado até os joelhos num mar de mulheres sensuais e vítimas massacradas, trazendo uma expressão presunçosa no rosto. À volta dele havia a legenda: Im appenas 7 dias vou ttornar voccê um herhói bárbbaro!Abaixo, em letra menor, estava o nome: Cohen, o Bárbbaro. Rincewind ficou desconfiado. Havia conhecido Cohen e, embora até certo ponto o velho soubesse ler, jamais conseguira usar a caneta e ainda assinava o nome com um “X”, que em geral soletrava errado. Por outro lado, o herói se deixava atrair por tudo que envolvesse dinheiro.

Rincewind estudou mais uma vez a ilustração e voltou os olhos para Nijel.

— Sete dias?

— Bem, eu leio devagar.

— Ah — disse Rincewind.

— E não me preocupei com o capítulo seis, porque prometi à minha mãe que me limitaria a roubar e saquear até achar a garota certa.

— Então, esse livro ensina a ser herói?

— Ah, ensina. É muito bom. — Nijel dirigiu a Rincewind um olhar preocupado. — É legal, não é? Custou caro.

— Bem, hum. Se é assim, vá à luta.

Nijel endireitou o que, por falta de palavra melhor, chamaremos de ombros, e agitou a espada outra vez.

— E melhor vocês quatro tomarem cuidado — avisou. — Ou… esperem aí.

Pegou o livro de Rincewind e virou rapidamente as folhas, até achar o que estava procurando. Depois continuou:

— E, ou “os ventos frios do destino vão soprar seus esqueletos descorados as legiões do inferno vão afogar sua alma viva em ácido”. Pronto.

Ouviu-se o acorde metálico de quando os quatro homens sacaram as espadas em perfeita harmonia.

A espada de Nijel se agitou. Traçou um complicado número oito no ar, girou sobre o braço, passou de uma das mãos para a outra pelas costas, pareceu contornar o peito duas vezes e se lançou como um salmão.

Uma ou duas das moças do harém aplaudiram. Até os guardas se mostraram impressionados.

— Esse foi o Golpe em Arco Triplo com Lançamento Extra — orgulhou-se Nijel. — Quebrei vários espelhos para aprender. Olhe, eles estão parando.

— Nunca devem ter visto nada igual — murmurou Rincewind, calculando a distância até a porta.

— Acho que não.

— Principalmente a última parte, quando ela fica presa no teto.

Nijel olhou para cima.

— Engraçado — observou. — Isso sempre acontecia lá em casa também. O que será que estou fazendo de errado?

— Nem imagino.

— Nossa. Sinto muito — lamentou Nijel, enquanto os guardas pareciam se dar conta de que o espetáculo havia terminado e se aproximavam para a matança.

— Não se culpe… — disse Rincewind, ao ver Nijel, em vão, estendendo o braço para tentar soltar a lâmina.

— Obrigado.

— Deixe que eu faço isso.

Rincewind considerou o passo seguinte. Na verdade, considerou vários passos. Mas a porta ficava longe demais e, de qualquer maneira, pelo barulho que vinha de fora, as coisas não estavam muito melhor por lá.

Só havia um jeito. Ele teria de tentar mágica.

Ergueu a mão, e dois homens caíram. Ergueu a outra mão, e os outros dois também caíram.

Quando ele começava a se perguntar o que teria ocorrido, Conina surgiu sobre os corpos inertes, negligentemente massageando a lateral da mão.

— Achei que você não vinha mais — reclamou. — Quem é o seu amigo?


Como já foi sugerido, a Bagagem raramente demonstra sentimentos. Ou, pelo menos, qualquer sentimento menos extremo do que a fúria cega. Portanto, fica difícil avaliar sua emoção ao acordar a alguns quilômetros de Al Khali, de tampa para baixo, num rio seco, com as pernas para o ar.

Mesmo alguns minutos após a alvorada, o ar já parecia o sopro de uma fornalha. Depois de balançar um pouco, a Bagagem conseguiu dispor a maioria das pernas na direção certa e ficou se agitando para deixar a menor quantidade possível de pés na areia quente. Ela não estava perdida. Sempre sabia exatamente onde estava. Estava sempre aqui.

Só que todos os outros lugares pareciam temporariamente errados.

Depois de pensar um pouco, a Bagagem virou-se e avançou vagarosamente para um penedo.

Deu alguns passos para trás e se sentou, um tanto intrigada. Era como se estivesse cheia de penas quentes, e então teve a vaga noção do bem que poderiam fazer sombra e água fresca.

Depois de algumas arrancadas em falso, caminhou até o alto de uma duna de areia próxima, que oferecia a vista de centenas de outras dunas.

No seu cerne, a Bagagem estava aflita. Havia sido rejeitada. Havia sido mandada embora. Havia sido desprezada. Também havia bebido orakh suficiente para envenenar um país pequeno. Se tem uma coisa de que os acessórios de viagem necessitam mais do que tudo é de alguém a quem pertencer. Cheia de esperança, a Bagagem partiu cambaleante pela areia ardente.


— Acho que não temos tempo para apresentações — disse Rincewind, enquanto uma parte longínqua do palácio ruía, com um estrondo que fez o chão tremer. — É hora de…

Ele se deu conta de que falava sozinho.

Nijel largou a espada.

Conina deu um passo à frente.

— Ah, não — lamentou Rincewind, mas era tarde demais.

De repente, o mundo havia se dividido em dois: o lado que continha Nijel e Conina e o lado que continha todo o resto. O ar estalava entre o casal. No mundo deles, provavelmente uma orquestra tocava, passarinhos cantavam, pequenas nuvens cor-de-rosa flutuavam no céu e sucedia tudo o que é de praxe nessas ocasiões. Quando esse tipo de coisa acontece, meros palácios desmoronando no mundo vizinho não têm a menor chance.

— Talvez a gente possa resolver logo as apresentações — decidiu Rincewind, em desespero. — Nijel…

— … o Destruidor… — completou Nijel, como em sonho.

— Tudo bem. Nijel, o Destruidor — confirmou Rincewind, e acrescentou: — Filho de Lebremar, o…

— Poderoso — interveio Nijel.

Rincewind deixou a boca se entreabrir um pouco, depois deu de ombros.

— Bem, que seja — consentiu. — Enfim, essa é Conina. O que, aliás, é uma coincidência, porque o pai dela era mmph.

Sem desviar o olhar, Conina havia estendido o braço e agarrado o rosto de Rincewind, num gesto suave que, apenas com um ligeiro acréscimo na pressão dos dedos, teria transformado a cabeça dele em bola de boliche.

— Embora eu possa estar enganado — acrescentou ele, quando a menina afastou a mão. — Quem sabe? Quem se importa? Que diferença faz?

Eles não prestavam atenção a nada.

— Vou ver se acho o chapéu — arriscou.

— Boa idéia — murmurou Conina.

— Vou acabar morrendo, mas não ligo — notou Rincewind.

— Excelente — disse Nijel.

— Acho que ninguém vai reparar que eu fui — imaginou Rincewind.

— Está bem, está bem — impacientou-se Conina.

— Vou acabar sendo cortado em pedaços — insistiu Rincewind, avançando para a porta na velocidade de uma lesma moribunda.

Conina piscou.

— Que chapéu? — perguntou, e então: — Ah, aquele chapéu.

— Não tem nem chance de vocês dois me ajudarem? — aventurou-se Rincewind.

Em algum lugar no mundo particular de Conina e Nijel, os pássaros retiraram-se para dormir, as pequenas nuvens cor-de-rosa deixaram-se levar pelo vento e a orquestra guardou os instrumentos e partiu para a apresentação única, numa boate qualquer. Um pouco de realidade se restaurou.

Conina desviou o olhar de admiração do rosto embevecido de Nijel até a fisionomia de Rincewind, onde imediatamente esfriou. Caminhou até o mago e segurou-o pelo braço.

— Olhe — disse ela. — Você não vai contar para ele quem eu realmente sou, vai? Homem tem sempre umas idéias estranhas e… bem, enfim, se você contar, eu mesma quebro todos os seus…

— Vou estar ocupado demais — cortou Rincewind — com vocês me ajudando a recuperar o chapéu e tudo o mais. Não que eu entenda o que você viu nele — acrescentou, orgulhoso.

— Ele é gentil. Não conheço muitas pessoas gentis.

— É, bem…

— Está olhando para cá!

Rincewind pareceu confuso. Não. Pela primeira vez na vida, sentiu como se áreas inteiras da experiência humana o tivessem ignorado, como se áreas pudessem ignorar gente. Talvez ele as tivesse ignorado. Encolheu os ombros.

— Por que você se deixou levar para o harém sem lutar? — perguntou.

— Eu sempre quis saber o que acontecia lá.

Houve uma pausa.

— E então? — indagou Rincewind.

— A gente só ficava ali, sentada. Depois, o xerinfe chegou, pediu para eu me aproximar e disse que, como eu era nova, seria a minha vez. Você nem imagina o que ele queria que eu fizesse. As meninas disseram que é a única coisa por que ele se interessa.

— Hum.

— Você está bem?

— Ótimo, ótimo — murmurou o mago.

— Você está transpirando.

— Não, estou bem.

— Ele me pediu para contar uma história.

— Sobre o quê? — inquiriu Rincewind, desconfiado.

— As outras garotas disseram que ele preferia histórias de coelho.

— Ah. Coelho.

— De preferência, branquinho e peludo. Mas as únicas histórias que conheço são as que meu pai contava quando eu era pequena, e acho que não convém.

— Não tem coelho?

— Braços e pernas decepados — confirmou Conina, e suspirou. — É por isso que você não pode contar a ele sobre mim, entendeu? Não nasci para levar uma vida normal.

— Contar história em harém não é normal — objetou Rincewind. — Essa moda não pega.

— Ele está olhando novamente para cá!

Conina segurou o braço de Rincewind. Ele se desprendeu.

— Minha nossa! — exclamou, e se dirigiu até Nijel, que lhe agarrou o outro braço.

— Você não andou falando de mim para ela, andou? — perguntou o rapaz. — Nunca vou me perdoar se você tiver contado que ainda estou aprendendo a…

— Não. Ela só quer que você nos ajude. É uma espécie de resgate.

Os olhos de Nijel brilharam.

— Você quer dizer múnus? — perguntou.

— O quê?

— Está no livro. Para ser herói de verdade, diz que temos de assumir um múnus.

Rincewind franziu a testa.

— São bichos?

— Acho que é mais uma espécie de obrigação — respondeu Nijel, mas sem muita convicção.

— A mim, parece bicho — insistiu Rincewind. — Tenho certeza de que li no bestiário uma vez. Grande. Não voava. Imensas pernas rosadas. O rosto dele mostrava-se cada vez mais confuso, à medida que os ouvidos digeriam o que diziam os lábios.

Cinco minutos mais tarde, os três saíam da sala, deixando para trás quatro guardas caídos e as próprias moças do harém, que logo se puseram a contar um pouco mais de histórias.


O deserto próximo a Al Khali é cortado pelo Rio Tsort, celebrado em mitos e mentiras. Ele se insinua pela paisagem marrom como um longo trecho escrito pontuado por bancos de areia. E todo banco de areia se encontra coberto de troncos queimados de sol, e a maioria dos troncos é do tipo que tem dentes, e a maioria dos troncos abriu um olho preguiçoso ao som distante de movimentos na água, e de repente a maioria dos troncos criou pés. Uma dezena de corpos escamosos deslizou para as águas barrentas, que se fecharam novamente. A superfície do rio se mostrava lisa, a não ser por algumas inconseqüentes ondulações em forma de V.

A Bagagem caminhava devagar no leito do rio. A água vinha lhe fazendo bem. Ela gingava suavemente na correnteza fraca, ponto de convergência de diversos redemoinhos misteriosos a correr na superfície.

As ondulações se encontraram.

A Bagagem deu uma guinada. A tampa se abriu. E se fechou debaixo d'água, com um estalo breve e desesperador.

As águas cor-de-chocolate do Tsort fecharam-se novamente. Elas já tinham prática nisso.

E a torre da fonticeria erguia-se sobre Al Khali como um imenso e lindo cogumelo, do tipo que aparece nos livros ao lado de pequenos símbolos de caveira e ossos cruzados.

A guarda do xerinfe havia lutado, mas agora só havia uma porção de sapos e salamandras desorientados na base da torre, e esses eram os afortunados. Pelo menos, ainda possuíam braços e pernas de algum tipo, e a maior parte dos órgãos ainda se encontrava dentro do corpo. A cidade estava sob a lei marcial da fonticeria.

Alguns dos prédios mais próximos à base da torre já vinham se transformando no mármore branco e reluzente que era de clara predileção dos magos.

O trio espiou por um buraco na parede do palácio.

— Impressionante — comentou Conina. — Seus magos são mais poderosos do que eu pensava.


Meus magos, não — protestou Rincewind. — Não sei de quem são eles. E não gosto nada disso. Os magos que conheço não sabem botar tijolo em cima de tijolo.

— Não me agrada a idéia de os magos governarem o mundo — observou Nijel. — E claro que, como herói, sou filosoficamente contra a idéia de magia. Ainda vai chegar o dia em que… — os olhos se vidraram, como se ele tentasse lembrar algo que tivesse visto em algum lugar — … vai chegar o dia em que a magia dos magos desaparecerá da face do Disco, e os filhos do, do… enfim, a gente pode ser um pouco mais prático — acrescentou, sem jeito.

Leu isso num livro, foi? — perguntou Rincewind, com azedume. — Algum múnus?

— Mas faz sentido — defendeu Conina. — Não tenho nada contra os magos, mas não servem para muita coisa. São mais como objetos decorativos, na verdade. Até agora eram, pelo menos.

Rincewind tirou o chapéu. Estava amassado, manchado e coberto de poeira. Faltavam pedaços, a ponta encontrava-se cortada, e a estrela soltava lantejoulas como se fosse pólen, mas ainda dava para ler a palavra “Maggo” sob a fuligem.

— Estão vendo isso aqui? — perguntou ele, com o rosto vermelho. — Estão vendo? O que quer dizer?

— Que você escreve errado? — sugeriu Nijel.

— O quê? Não! Quer dizer que sou mago! Vinte anos na profissão, e com orgulho! Cumpri meu tempo! Pass… fiz um monte de provas! Se juntássemos todos os feitiços que já li… teríamos uma porção de feitiços!

— Está bem, mas… — começou Conina.

Pensou um pouco mais e acrescentou:

— É isso o que dá tanto poder aos fonticeiros. O importante é saber o que se é.

Houve uma pausa filosófica.

— Rincewind? — chamou Conina, com delicadeza.

— Hummm? — soltou o mago, que ainda tentava entender — como as palavras haviam entrado em sua cabeça.

Você é realmente maluco. Sabia disso?

Todos parados.

O vizir Abrim surgiu de uma arcada. Usava o chapéu de arqui-reitor.


O deserto fritava ao calor do sol. Nada se movia, à exceção do ar tremeluzente, quente como um vulcão, seco como uma caveira.

O basilisco descansava à sombra de uma rocha, transpirando um muco amarelo e corrosivo. Durante os últimos cinco minutos, seus ouvidos haviam detectado o ruído de centenas de perninhas avançando pelas dunas, o que parecia indicar que o jantar se encontrava a caminho.

O animal piscou os olhos legendários e desenroscou seis metros de corpo faminto, serpenteando para a areia feito morte fluida.

A Bagagem parou e ergueu a tampa ameaçadoramente. O basilisco sibilou, mas um pouco incerto, porque jamais vira uma arca que andasse e principalmente, que tivesse dentes de jacaré presos à tampa. Também havia pedaços de couro animal pendurados ali, como se ela tivesse brigado numa fábrica de bolsas. E ela parecia fitá-lo de um modo que, mesmo se soubesse falar, o basilisco não saberia explicar.

Tudo bem, pensou o réptil, se é assim que você quer.

Dirigiu à Bagagem um olhar fixo de furador de diamantes, um olhar que atravessava o globo ocular e esfolava o cérebro por dentro, um olhar que rasgava as cortinas frágeis da janela da alma, um olhar que…

O basilisco se deu conta de que alguma coisa estava errada. Uma sensação completamente nova e inconveniente começou a crescer atrás de seus olhos. Principiou devagar, como uma coceirinha naqueles poucos centímetros quadrados das costas que não há contorcionismo que nos faça alcançar, e aumentou até virar um segundo sol, interno e abrasador.

O basilisco estava sentindo uma vontade medonha e irresistível de piscar…

Então fez uma coisa muito imprudente. Piscou.


— Ele está falando através do chapéu! — exclamou Rincewind.

— Hã? — perguntou Nijel, que já começava a perceber que o mundo bárbaro não era o lugar simples e direitinho que ele havia imaginado nos tempos em que a coisa mais animadora que já havia feito eram arranjos florais.

— O chapéu está falando através dele — corrigiu Conina, e recuou, como se costuma recuar na presença do hediondo.

— Hã?

— Não vou machucá-los. Vocês me foram úteis — disse Abrim, avançando com os braços estendidos. — Mas estão certos. Ele achou que teria poder, me usando. E óbvio que é o contrário. Uma mente extraordinariamente pervertida e arguta.

— Você experimentou a cabeça dele? — alarmou-se Rincewind.

O mago encolheu os ombros. Ele havia usado o chapéu. Era evidente que não possuía o tipo certo de mente. Abrim tinha o tipo certo de mente e agora também tinha olhos cinzentos, pele descorada e andava como se o corpo fosse suspenso pela cabeça.

Nijel havia tirado o livro da bolsa e virava as páginas, em desatino.

— O que está fazendo? — perguntou Conina, sem despregar os olhos do ser horripilante.

— Estou consultando o índice de Monstros Errantes — respondeu Nijel. — Você acha que é um morto-vivo? São dificílimos de matar, precisa de alho e…

— Não vai achar aí — avisou Rincewind, devagar. — É um… chapéu vampiro.

— Claro, talvez seja um zumbi — propôs Nijel, correndo o dedo pela página. — Aqui diz que precisa de pimenta-do-reino e sal marinho, mas…

— A gente só quer derrotar a criatura, não comer — protestou Conina.

— E o tipo de mente que posso usar — continuou o chapéu. — Agora, vou revidar, restaurar a magia dos magos. Só há lugar para um tipo de magia nesse mundo, e eu o represento. Atenção, fonticeria!

— Ah, não — murmurou Rincewind.

— A magia dos magos aprendeu muito nos últimos vinte séculos.

Essa presunçosa vai ver só. Vocês três, sigam-me.

Não era um pedido. Não era nem uma ordem. Era uma espécie de previsão do futuro. A voz do chapéu ia direto ao cérebro, sem se incomodar em lidar com a consciência. As pernas de Rincewind começaram a se mexer por conta própria.

Os outros dois também avançaram, andando com os estranhos movimentos de boneco a sugerir que também eles eram conduzidos por fios invisíveis.

— Por que “ah, não”? — indagou Conina. — Quer dizer, eu entendo “Ah, não” no sentido geral, mas tinha algum motivo particular?

— Na primeira oportunidade, temos de fugir — advertiu Rincewind.

— Sabe para onde?

— Provavelmente não vai fazer diferença. Estamos condenados, mesmo…

— Por quê? — perguntou Nijel.

— Bem — respondeu Rincewind. — Vocês já ouviram falar das Guerras Mágicas?

Muitas coisas no Disco deviam sua origem às Guerras Mágicas. A sábia madeira de pereira estava entre elas.

A árvore original era perfeitamente normal e passava os dias absorvendo água do solo e luz do sol, em estado de abençoada inconsciência, quando as guerras mágicas estouraram e levaram seus genes a um estado de grande lucidez.

Também a deixaram entranhada de mau humor. Mas a sábia madeira de pereira não se saiu tão mal.

Antigamente, quando o nível de magia no Disco era alto e aproveitava qualquer oportunidade para irromper no mundo, os magos mostravam-se todos tão poderosos quanto os fonticeiros, e erguiam torres no alto de cada montanha. E, se há uma coisa que mago não suporta, é outro mago. Suas investidas diplomáticas consistiam em lançar feitiços até que o outro explodisse, depois lançar maldições até que o tempo fechasse.

Isso só podia resultar em uma coisa. Tudo bem, duas coisas. Três coisas. Guerra. Taumatúrgica. Geral.

É claro que não havia alianças, lados, tratos, negociações, misericórdia nem trégua. O céu revolvia, mares fervilhavam. Raios de fogo transformavam a noite em dia, mas não havia problema, porque as decorrentes nuvens de fumaça negra transformavam o dia em noite. A terra subia e descia feito cobertor de lua-de-mel, e o tecido do próprio espaço criava nós multidimensionais e batia na pedra plana a margem do rio do Tempo. Um feitiço comum naquele tempo era o Compressor Temporal de Pelepel, que uma vez resultou numa espécie de répteis gigantescos que surgiram, evoluíram, reproduziram-se, prosperaram e foram destruídos no período de cinco minutos, deixando apenas ossadas no solo para iludir as gerações seguintes. Arvores nadavam, peixes andavam, montanhas iam às lojas comprar cigarros, e a mutabilidade da existência era tão grande que a primeira coisa que qualquer pessoa precavida fazia ao acordar era contar braços e pernas.

Na verdade, esse foi o problema. Todos os magos se igualavam em termos de poder e viviam em torres altas para se proteger dos feitiços. O que significa que a maioria das armas mágicas atingia as pessoas normais, que apenas tentavam tirar sustento do que era, temporariamente, a terra, e levar uma vida decente e comum (embora curta).

Mas a luta continuava, comprometendo a própria estrutura do universo, enfraquecendo os muros da realidade e ameaçando empurrar todo o fraco edifício do tempo e do espaço para o breu do Calabouço das Dimensões…

Uma versão da história dizia que os deuses intervieram, mas os deuses não costumam se meter com o homem, a menos que isso os divertisse. Outra versão — e era essa a que os magos contavam e escreviam em seus livros — era que os próprios magos decidiram se unir e resolver suas diferenças, em prol da humanidade. Essa explicação geralmente era aceita como verdadeira, embora fosse tão plausível quanto um colete salva-vidas de chumbo.

A verdade não se deixa prender facilmente. Na banheira da história, a verdade é mais difícil de segurar do que sabonete, e muito mais difícil de achar…

— E então, o que aconteceu? — perguntou Conina.

— Não importa — respondeu Rincewind. — Vai começar tudo de novo. Estou sentindo. Minha intuição é boa. Tem magia demais rondando o mundo. Vai estourar uma guerra pavorosa! E o Disco está velho demais para resistir. Tudo já foi usado à exaustão. A ruína, o breu absoluto e a destruição vão se abater sobre nós. O apocralipse está próximo.

— O Morte mora ao lado — acrescentou Nijel, tentando ajudar.

— O quê? — perguntou Rincewind, irritado por se ver interrompido.

— Eu disse que o Morte mora ao lado — repetiu Nijel.

— Ao lado, eu não ligo — decidiu Rincewind. — Os vizinhos que se danem. O problema é que ele também vem aqui.

— É só uma metáfora — justificou Conina.

— Você é que pensa. Eu o conheci.

— Como era ele? — quis saber Nijel.

— Digamos que…

— Sim?

— Não precisa de cabeleireiro.


O sol, agora, parecia um maçarico suspenso no céu, e a única diferença entre a areia e cinzas quentes era a cor.

A Bagagem vagava pelas dunas ardentes. Vestígios de muco amarelo secavam rapidamente na tampa.

A pequena arca solitária era observada do alto de um penedo, com a forma e a temperatura de um tijolo refratário, por uma quimera. Para a descrição da quimera, vamos recorrer ao famoso bestiário de Nevoassoura, Anima Antinaturale: “Possui pernas de serheia, pêlo de thartaruga, dente de ghalinha e asa de cobra. Obviamente, não posso dar nadha além de minha palavra, uma vez que a criathura tem hálito de fhornalha e themperamento de balão de gás em vhendaval”.

A quimera era um animal extremamente raro, e aquela ali não estava a ponto de fazer nada que contribuísse para a preservação da espécie.

Com cautela, escolheu o melhor momento, deu impulso com as presas, dobrou as asas rijas e mergulhou em direção à vítima.

A técnica da quimera era descer bem baixo sobre a presa, cozinhando-a ligeiramente com o bafo flamejante, e rasgar o jantar com os dentes. Ela se saiu bem na parte do fogo, mas, no momento em que a experiência lhe dizia que deveria estar diante de uma vítima ferida e apavorada, descobriu-se em pleno chão, no caminho de uma Bagagem chamuscada e furiosa.

A única coisa incandescente na Bagagem era a raiva. Ela vinha sentindo dor de cabeça havia várias horas, durante as quais lhe parecera que o mundo todo tentara atacá-la. Pois bastava!

Depois de esmagar a quimera, transformando-a numa pequena poça engordurada na areia, ela se deteve por um instante, aparentemente pensando no futuro. Estava ficando claro que não pertencer a ninguém era mais difícil do que havia imaginado. Experimentou vagas e reconfortantes lembranças de remendos, consertos e um armário para chamar de seu.

Virou-se vagarosamente, parando várias vezes, a fim de abrir a tampa. Talvez farejasse o ar — se tivesse nariz. Por fim, chegou a uma conclusão.


O chapéu e seu usuário também avançavam, decididos, pelo chão de pedras que outrora fora o legendário Rhoxie, em direção à torre da fonticeria, com a relutante comitiva logo atrás.

Havia portas no pé da torre. Ao contrário das portas da Universidade Invisível, que viviam escancaradas, aquelas se encontravam trancadíssimas. Pareciam reluzir.

— Vocês três têm o privilégio de estar aqui — disse o chapéu, através da boca mole de Abrim. — Esse é o momento em que a magia dos magos pára de fugir — lançou um olhar fulminante para Rincewind — e começa a revidar. Vão se lembrar disso para o resto de suas vidas.

— Então, até a hora do almoço? — murmurou Rincewind.

— Observem com atenção — pediu Abrim.

Ele estendeu as mãos.

— Na primeira oportunidade — cochichou Rincewind —, a gente foge.

— Para onde?

— De onde — corrigiu Rincewind. — O que importa é de onde.

— Não confio nesse sujeito — observou Nijel. — Tento não julgar ninguém à primeira impressão, mas, realmente, acho que ele não é do bem.

— Ele atirou você na cova das serpentes!

— Talvez eu devesse ter lido os sinais.

O vizir começou a sussurrar. Nem Rincewind, cujos poucos talentos incluíam o dom para línguas, reconheceu o idioma, mas parecia o tipo de língua especialmente criada para sussurros, com as palavras se curvando feito foices à altura do tornozelo, escuras, vermelhas e inclementes. Elas traçavam rodopios complexos no ar e então se deixavam levar suavemente em direção à porta da torre.

O mármore branco ficou preto e esfacelou-se.

Enquanto os destroços caíam no chão, um mago apareceu e olhou Abrim, de alto a baixo.

Rincewind estava acostumado com a maneira espalhafatosa de os magos se vestirem, mas aquele ali era impressionante, com o manto tão acolchoado, ababadado e reforçado com dobras e pregas incríveis que provavelmente fora desenhado por um arquiteto. O chapéu que acompanhava o traje parecia a conjunção de um bolo de casamento com uma árvore de Natal.

O rosto, surgindo na pequena brecha aberta entre o colarinho rebuscado e a franja filigranada da aba, decepcionava um pouco. Em algum momento do passado, o mago havia achado que sua aparência melhoraria com um bigode fino. Estava enganado.

— Essa porta era nossa! — exclamou. — Você vai se arrepender!

Abrim dobrou os braços. Isso pareceu enfurecer ainda mais o mago. Ele ergueu os braços, desvencilhou as mãos da renda das mangas e lançou um raio pelo vão da porta.

O raio atingiu o peito de Abrim e estourou numa bolha incandescente, mas, quando os rastilhos de imagens azuis deixaram Rincewind ver novamente, Abrim estava incólume.

Em desatino, o adversário bateu a última das chamas de sua própria roupa e levantou o rosto, com olhar assassino.

— Você não está entendendo — vociferou. — Isso aqui é fonticeria. Não se pode lutar contra a fonticeria.

— Eu posso usar a fonticeria — afirmou Abrim.

O mago rosnou e arremessou uma bola de fogo, que explodiu inofensivamente a alguns centímetros do sorriso medonho do vizir.

O ar de perplexidade instaurou-se no rosto do mago. Ele tentou mais uma vez, enviando raios fumegantes de magia em direção ao coração de Abrim. Abrim os aparou.

— Você tem duas opções — anunciou o vizir. — Junta-se a mim ou morre.

Foi a essa altura que Rincewind se deu conta de um ruído baixo próximo ao seu ouvido. Tinha uma ressonância metálica.

Ele deu meia-volta e experimentou a desagradável e familiar sensação de que o Tempo desacelerava à sua volta.

Morte parou de passar a pedra de amolar na lâmina da foice e cumprimentou-o com a cabeça, como entre profissionais.

Então pôs um dedo de osso sobre os lábios, ou melhor, sobre o lugar onde deveriam ficar os lábios, caso os tivesse.

Todo mago vê Morte, mas não necessariamente quer vê-lo.

Os ouvidos de Rincewind estalaram, e o espectro desapareceu.

Abrim e o outro mago estavam cercados por uma coroa de magia aleatória, e era evidente que aquilo não surtia nenhum efeito sobre o vizir. Rincewind voltou para o mundo dos vivos a tempo de vê-lo estender o braço e agarrar o mago pelo colarinho de péssimo gosto.

— Você não me vence — disse ele, com a voz do chapéu. — Há 2 mil anos junto forças para atingir meus objetivos. Posso colher meu poder do seu. Renda-se, ou não terá nem tempo de se arrepender.

O mago se agitou e, infelizmente, deixou o orgulho falar mais alto do que a cautela.

— Nunca! — respondeu.

— Então morra! — disse Abrim.

Rincewind já tinha visto muitas coisas estranhas na vida, a maioria das quais com extrema relutância, mas jamais testemunhara alguém ser, de fato, morto pela magia.

Os magos não matavam pessoas comuns porque: a) raramente as notavam, b) isso não era de bom-tom, e c) quem é que plantaria, cozinharia e tudo o mais? E matar um colega mago com a magia era impossível, por causa das camadas de feitiços preventivos que qualquer mago cauteloso sempre mantinha em torno de si.[17]

Algumas pessoas acham que é paranóia, mas não é. O paranóico só acha que todo o mundo está atrás dele. O mago sabe disso.

O mago baixote usava o equivalente psíquico de um metro de aço temperado, e aquilo derretia como manteiga sob a ação de um maçarico. Evaporava, desaparecia.

Se existem palavras para descrever o que aconteceu ao mago em seguida, elas estão encerradas em algum dicionário hediondo da biblioteca da Universidade Invisível. Talvez seja melhor deixar isso para a imaginação. Qualquer pessoa capaz de imaginar o tipo de forma que Rincewind viu se contorcer dolorosamente, durante alguns segundos antes de sumir, deve ser candidata à famosa camisa de lona branca com mangas fechadas.

— Que assim pereçam todos os inimigos — disse Abrim.

Ele voltou a mirar o alto da torre.

— Lanço o desafio — continuou. — Segundo a Doutrina, quem não me enfrentar deve me seguir.

Houve um silêncio longo e pesado, provocado por muitas pessoas que ouviam com atenção. Por fim, do alto da torre, uma voz hesitante perguntou:

— Em que parte da Doutrina?

— Eu personifico a Doutrina.

Ouviram-se cochichos distantes e, então, a mesma voz:

— A Doutrina já era. A fonticeria está acima da Dou…

A frase acabou num grito, porque Abrim suspendeu a mão esquerda e mandou um raio fino de luz verde na direção exata de quem falava.

Foi mais ou menos nesse instante que Rincewind se deu conta de que conseguia mexer os membros. O chapéu havia temporariamente perdido o interesse nos três. Ele olhou de esguelha para Conina. Num acordo tácito e imediato, cada qual pegou um braço de Nijel, deu meia-volta, saiu correndo e só parou quando havia deixado vários muros para trás. Rincewind corria esperando que alguma coisa lhe atingisse a nuca, a qualquer momento. Talvez o mundo.

Os três caíram no chão e ficaram ali, arfantes.

— Não precisavam fazer isso — murmurou Nijel. — Eu estava me preparando para cuidar dele. Como é que vou…

Houve uma explosão, e setas de fogo multicolorido zuniram pelo céu, soltando faíscas do prédio. Depois, ouviu-se um ruído semelhante a uma rolha imensa sendo tirada de uma garrafa pequena, e o estrépito de uma risada que, por algum motivo, não era nada agradável. O chão estremeceu.

— O que está acontecendo? — perguntou Conina.

— Guerra mágica — respondeu Rincewind.

— Isso é bom?

— Não.

— Mas você quer que a magia dos magos vença? — indagou Nijel.

Rincewind encolheu os ombros e agachou quando uma coisa grande passou zunindo pelo ar como uma perdiz.

— Nunca vi mago brigar! — exclamou Nijel.

O rapaz começou a subir nas pedras e soltou um grito quando Conina lhe agarrou a perna.

— Acho que não é boa idéia — observou ela. — Rincewind?

Sem ânimo, o mago sacudiu a cabeça e pegou um cascalho.

Jogou-o sobre o muro em ruína, onde o negócio virou um pequeno bule azul. Quebrou, ao bater no chão.

— Os feitiços reagem uns aos outros — explicou. — Não há como saber no que vão dar.

— Mas estamos seguros atrás desse muro? — perguntou Conina.

Rincewind animou-se um pouco.

— Estamos? — ele indagou.

— Eu estava perguntando — disse a moça.

— Ah. Não. Acho que não. Isso aqui é pedra comum. O feitiço certo e… bumba!

— Bumba?

— É.

— Devemos correr mais?

— Vale a pena tentar.

Chegaram a outro muro alguns segundos antes de uma bola de fogo amarelo cair onde haviam estado e transformar o chão numa coisa pavorosa. Toda a área em volta da torre era um tornado de lampejos.

— Precisamos de um plano — sugeriu Nijel.

— Podemos tentar correr de novo — propôs Rincewind.

— Isso não resolve nada!

— Resolve muita coisa — rebateu Rincewind.

— Que distância temos de percorrer para estarmos seguros? — quis saber Conina.

Rincewind passeou os olhos pelo muro.

— Uma pergunta filosófica interessante — disse. — Já andei muito e nunca estive seguro.

Conina suspirou e fitou o amontoado de pedras próximas. Olhou mais uma vez. Havia algo estranho ali, mas ela não conseguia precisar o quê.

— Posso atacá-los — propôs Nijel.

E olhou as costas de Conina.

— Não adiantaria-objetou Rincewind. — Nada funciona contra magia. Só magia mais forte. E a única coisa que vence magia mais forte é magia ainda mais forte. Aí, quando menos se espera…

— Bumba? — sugeriu Nijel.

— Já aconteceu uma vez — lembrou Rincewind. — Durou milhares de anos, até que não houvesse mais nenhum…

— Sabe o que é estranho naquele monte de pedras? — cortou Conina.

Rincewind olhou para o local. Apertou os olhos.

— O que, fora o fato de ele ter pernas? — perguntou.

Foram necessários vários minutos para desencavar o xerinfe. Ele ainda segurava uma garrafa de vinho, quase vazia, e piscou para os três com ar de vago reconhecimento.

— Negocinho… — disse ele e, depois de algum esforço, acrescentou: — forte, esse vinho. Parecia — continuou ele — que o palácio tinha caído em cima de mim.

— E caiu — confirmou Rincewind.

— Ah. Então foi isso.

Depois de várias tentativas, Creosoto fixou os olhos em Conina e se jogou para trás.

— Nossa — disse. — A moça, outra vez. Fantástico.

— Ei… — começou Nijel.

— Seu cabelo — entoou o xerinfe, voltando a sentar — é como, como um rebanho de cabras a subir a encosta do Monte Gebra.

— Escute aqui…

— Seus seios são como, como… — o xerinfe balançou um pouco para o lado e deu uma olhadela pesarosa na garrafa vazia — são como os melões adornados de jóias do jardim encantado do alvorecer.

Conina arregalou os olhos.

— São? — alarmou-se.

— Não — respondeu o xerinfe. — Duvido. Conheço melões adornados de jóias. Como cavalos brancos à beira do rio são suas coxas, que…

— Hã, com licença… — interveio Nijel, pigarreando propositadamente.

Creosoto voltou-se para ele.

— Hummm? — perguntou.

— Onde eu nasci — resmungou Nijel —, não se fala assim com mulher.

Conina suspirou quando ele avançou para a sua frente, protegendo-a. Era verdade, refletiu a garota.

— Aliás… — prosseguiu ele, erguendo o queixo o máximo possível, o que, ainda assim, só fazia com que se assemelhasse a uma covinha —, estou…

— Aberto ao debate — cortou Rincewind, dando um passo à frente. — Hã, precisamos sair daqui. O senhor não saberia o caminho?

— É que tem milhares de cômodos — respondeu o xerinfe. — E não saio há anos — deu um soluço. — Décadas. Uma eternidade. Aliás, nunca saí — os olhos se vidraram, no ato da criação poética.

— O animal do Tempo tem um breve caminho para andar e, veja, o animal fica de pé.

— Se bobear, são múnus — murmurou Rincewind.

Creosoto voltou-se para ele.

— Abrim cuida de tudo. Uma trabalheira danada.

— No momento, não está fazendo um bom serviço — advertiu Rincewind.

— A gente meio que gostaria de ir embora — resumiu Conina, ainda remoendo a frase sobre as cabras.

— E eu tenho o meu múnus — disse Nijel, olhando para Rincewind.

Creosoto deu-lhe tapinhas no braço.

— Muito bem — animou-se. — Todo mundo deveria ter um bicho de estimação.

— O senhor sabe se existe algum estábulo, ou coisa assim? — indagou Rincewind.

— Centenas — afirmou Creosoto. — Tenho os maiores… os cavalos mais velozes do mundo — ele franziu a testa. — Pelo menos é o que me dizem.

— Mas o senhor sabe onde ficam?

— Não sei — admitiu o xerinfe.


Um jato de magia aleatória transformou o muro próximo num merengue de arsênio.

— Acho que estaríamos mais seguros na cova das serpentes — considerou Rincewind, virando-se.

Creosoto deu outra olhada triste na garrafa de vinho vazia.

— Sei onde tem um tapete mágico — anunciou.

— Não — protestou Rincewind, erguendo as mãos. — De jeito nenhum. Nem pense…

— Era do meu avô…

— Um tapete mágico de verdade? — admirou-se Nijel.

— Escute aqui — apressou-se em dizer Rincewind. — Tenho vertigem só de ouvir falar nisso.

— Ah, de verdade — confirmou o xerinfe, soluçando. — Um desenho lindo. — Ele olhou mais uma vez para a garrafa e suspirou:

— Era de um azul belíssimo.

— E sabe onde está? — perguntou Conina devagar, como quem avança em direção ao animal selvagem que, a qualquer momento, pode se assustar.

— No depósito de tesouros. Lá eu sei chegar. Sou muito rico, entendem? Pelo menos, é o que me dizem. — Ele baixou a voz e tentou piscar um olho para Conina, conseguindo apenas piscar os dois. — A gente bem poderia sentar no tapete — sugeriu, começando a suar. — E você talvez pudesse me contar uma história…

Rincewind tentou gritar por entre os dentes cerrados. Já estava entrando em pânico.

— Não vou subir em tapete mágico nenhum! — sussurrou. — Tenho medo de chão!

— É de altura — corrigiu Conina. — E deixe de ser bobo.

— Sei do que estou falando! E o chão que mata!

A guerra de Al Khali era uma nuvem negra em cujo interior se podiam ouvir formas estranhas e ver ruídos esquisitos. Disparos perdidos atingiam toda a cidade. No local onde caíam, as coisas ficavam… diferentes.

Boa parte do pântano, por exemplo, virou uma floresta impenetrável de cogumelos amarelos gigantescos. Ninguém sabia que efeito aquilo havia surtido nos habitantes, embora eles possivelmente não tivessem notado.

O templo de Offler, o Deus Crocodilo, divindade padroeira da cidade, era agora um negócio tenebroso de açúcar, construído em cinco dimensões. Mas este não era o problema. O problema era que ele estava sendo devorado por uma colônia de formigas gigantes.

Por outro lado, não havia sobrado muita gente para testemunhar essa manifestação contra o descontrole das mudanças municipais, porque a maioria das pessoas estava fugindo. Elas avançavam em cortejo pelos campos férteis. Algumas haviam recorrido aos barcos, mas esse método de fuga chegou ao fim quando a maior parte da área portuária se transformou num brejo onde, sem nenhum motivo aparente, um casal de pequenos elefantes cor-de-rosa construiu seu ninho.

Distante do pânico das estradas, a Bagagem seguia vagarosamente por uma das valas dos canaviais. Pouco adiante, um mar de jacarés, ratos e tartarugas saía da água e subia em desatino para a margem, impulsionado por algum instinto animal vago mas objetivo.

A tampa da Bagagem estava semi-aberta, em expressão de cega determinação. Ela não queria muita coisa no mundo além da extinção completa de todas as outras formas de vida. Mas o que mais precisava, agora, era de seu dono.


Foi fácil ver que o lugar era um depósito de tesouros, por se encontrar inacreditavelmente vazio. Portas pendiam abertas. Alcovas, outrora trancadas, mostravam-se devassadas. Havia muitas arcas quebradas, e isso fez Rincewind sentir uma ponta de culpa. Por cerca de dois segundos, ele imaginou onde a Bagagem teria se metido.

Houve um silêncio solene, como sempre acontece quando quantias vultosas de dinheiro acabam de desaparecer. Seguindo as instruções do capítulo onze, Nijel vasculhou algumas arcas em busca de gavetas secretas.

Conina agachou-se e pegou uma pequena moeda de cobre.

— Que horror! — exclamou Rincewind, afinal. — Um depósito de tesouros, sem tesouros!

O xerinfe sorriu.

— Não se preocupem — disse.

— Mas roubaram todo o seu dinheiro! — surpreendeu-se Conina.

— Devem ter sido os empregados — imaginou Creosoto. — Muito desleal da parte deles.

Rincewind dirigiu-lhe um olhar espantado.

— Você não está preocupado?

— Não muito. Nunca usei o dinheiro, mesmo. E sempre imaginei como seria ser pobre.

— Agora vai ter uma grande oportunidade de descobrir.

— Vou precisar de aulas?

— O aprendizado se dá naturalmente — respondeu Rincewind.

— A pessoa vai assimilando aos poucos.

Houve uma explosão distante, e parte do teto virou gelatina.

— Hã… com licença — interveio Nijel. — Aquele tapete…

— E — lembrou Conina. — O tapete.

Creosoto dirigiu-lhes um olhar benévolo, ligeiramente embriagado.

— Ah, sim. O tapete. Empurre o nariz da estátua atrás de você, ó curvilínea jóia rara da alvorada desértica.

Enrubescendo, Conina realizou o ato um tanto sacrílego na grande estátua verde de Offler, o Deus Crocodilo.

Não aconteceu nada. Compartimentos secretos não se abriram.

— Hum. Tente a mão esquerda.

Ela arriscou torcê-la. Creosoto cocou a cabeça. — Talvez seja a direita…

— Se eu fosse você, começaria a me esforçar para lembrar — avisou Conina, quando isso também não funcionou. — Não existem mais muitas partes que eu queira puxar.

— O que é aquilo? — perguntou Rincewind.

— Você vai ouvir muito, se não for o rabo — respondeu Conina, dando-lhe um pontapé.

Ouviu-se um longínquo ruído metálico rangente, feito panela gemendo de dor. A estátua estremeceu. Seguiram-se algumas pancadas fortes no interior da parede, e Offler, o Deus Crocodilo, moveu-se pesadamente para o lado. Havia uma passagem atrás dele.

— Meu avô criou essa parte para os tesouros mais interessantes — comentou Creosoto. — Ele era muito… — procurou a palavra certa — criativo.

— Se vocês acham que eu vou entrar aí… — começou Rincewind.

— Afastem-se — pediu Nijel, com altivez. — Eu vou primeiro.

— Pode haver armadilhas… — advertiu Conina.

Ela olhou para o xerinfe.

— Ah, provavelmente, ó gazela do paraíso — respondeu. — Não entro aí desde que tinha 6 anos. Acho que existiam umas pedras em que a gente não podia pisar.

— Não se preocupem — garantiu Nijel, dando uma olhada no túnel escuro. — Não há armadilha que eu não consiga localizar.

— Muita experiência na área? — resmungou Rincewind.

— Bom, conheço o capítulo catorze de cor. Tinha ilustrações — informou Nijel, e se enfiou nas sombras.

Os demais aguardaram, durante vários minutos, no que teria sido um silêncio medonho, não fossem os grunhidos abafados e baques ocasionais que vinham do túnel. Por fim, a voz de Nijel ecoou a distância.

— Não tem absolutamente nada — disse. — Vasculhei tudo. É firme como pedra. Talvez tenha emperrado.

Rincewind e Conina entreolharam-se.

— Ele não sabe a primeira regra sobre armadilhas — observou a moça. — Quando eu tinha 5 anos, meu pai me obrigou a andar por um túnel que ele havia improvisado, só para me ensinar…

— Ele chegou lá, não chegou? — cortou Rincewind.

Houve um barulho como de um dedo molhado roçando em vidro, mas mil vezes amplificado, e o chão tremeu.

— Seja como for, não temos muita escolha — acrescentou, e se meteu na passagem.

Os outros o seguiram. Muitas pessoas que conheciam Rincewind consideravam-no uma espécie de canário de duas patas[18], e achavam que, se Rincewind ainda não tinha fugido, então havia esperança.

— E engraçado — notou Creosoto. — Eu, roubando meu próprio depósito de tesouros. Se eu me pegar, posso me jogar na cova das serpentes.

— Mas também pode ter misericórdia — sugeriu Conina, correndo os olhos paranóicos pela parede de pedras empoeiradas.

— Ah, não. Acho que eu teria de me ensinar uma lição, como um exemplo para mim mesmo.

Ouviu-se um clique acima. Uma pequena laje escorregou para o lado, e um gancho de metal enferrujado desceu devagar. Outra laje desprendeu-se da parede e bateu no ombro de Rincewind. Quando ele se virou, o gancho prendeu um cartaz amarelado em suas costas e voltou para o teto.

— O que aconteceu? O que foi que ele fez? — gritou Rincewind, tentando ler as próprias costas.

— Está escrito “Me dê um chute” — respondeu Conina.

Uma parte da parede ergueu-se ao lado do mago apavorado. Uma bota enorme, na extremidade de uma complicada série de juntas de metal, vibrou e se espatifou no chão. Os três contemplaram-na em silêncio. Então Conina disse:

— Estamos lidando com uma mente doentia.

Com cuidado, Rincewind desprendeu o cartaz e atirou-o longe. Conina passou por ele e avançou pelo túnel com um misto de prudência e irritação. Quando uma grande mão de metal se estendeu do nada, mexendo-se amistosamente, ela não se dignou a apertá-la, mas apenas seguiu a fiação até um par de eletrodos oxidados, numa grande jarra de vidro.

— Seu avô tinha senso de humor? — indagou ela.

— Ah, tinha. Adorava uma boa risada — lembrou Creosoto.

— Que ótimo — disse Conina.

Com cuidado, ela tateou uma laje que, aos olhos de Rincewind, não parecia diferente de nenhuma das outras. Com um rangido triste, um espanador de penas saiu da parede, na altura das axilas.

— Acho que eu teria gostado muito de conhecer o velho xerinfe — disse ela, com os dentes cerrados. — Mas não para cumprimentá-lo. Mago, é melhor você me dar uma ajuda aqui.

— O quê?

Conina apontou o vão entreaberto acima deles.

— Quero olhar lá em cima — avisou ela. — Junte as mãos para eu subir. Como é que você consegue ser tão inútil?

— Ser útil sempre me traz problema — murmurou Rincewind, tentando ignorar a pele quente a lhe roçar o nariz.

Era possível ouvi-la investigando o local.

— Como imaginei — observou.

— O que é? Um mar de lanças diabolicamente pontiagudas, suspensas no teto e prontas para despencar?

— Não.

— Uma grelha denteada para nos espetar…?

— Um balde — informou Conina, empurrando-o.

— De veneno?

— De cal. Só um monte de cal seco e velho.

Conina saltou para baixo.

— Esse era meu avô — orgulhou-se Creosoto. — Sempre espirituoso.

— Bem, para mim, chega — disse Conina, e apontou o fim do túnel. — Vamos, vocês dois.

Eles estavam a cerca de um metro do fim do túnel quando Rincewind sentiu algo se mexer no alto. Conina empurrou-o para o cômodo à frente. Ele rolou ao cair no chão, e alguma coisa agarrou-lhe o pé, ao mesmo tempo que um estrondo o ensurdeceu.

O teto inteiro — um bloco enorme de pedra, com um metro e meio de espessura — havia caído no túnel.

Rincewind engatinhou pela nuvem de poeira e, com um dedo trêmulo, examinou a inscrição na lateral da laje.

— “Ria dessa” — leu em voz alta.

E se recostou.

— É meu avô — alegrou-se Creosoto. — Sempre…

Ele se deparou com o olhar de Conina, que tinha a força de uma barra de chumbo, e sabiamente se calou.

Nijel surgiu da nuvem de poeira, tossindo.

— Ei, o que houve? — perguntou. — Está tudo bem? Não aconteceu nada disso quando eu vim.

Rincewind procurou uma resposta e não achou nada melhor que:

— Não?

A luz entrava no cômodo filtrada por minúsculas janelas gradeadas próximas ao teto. Não havia saída, a menos que se atravessasse as centenas de toneladas de pedra que bloqueavam o túnel, ou, para dizer de outra forma — que era a forma que Rincewind usaria —, eles estavam indubitavelmente presos. O mago relaxou um pouco.

Pelo menos, o tapete estava ali. Encontrava-se enrolado sobre uma laje erigida no meio do cômodo. Ao seu lado, havia uma pequena e lustrosa lâmpada de azeite e — Rincewind esticou o pescoço para ver melhor — um anel de ouro. Ele gemeu. Uma leve coroa octarina pairava sobre as três peças, indicando que eram mágicas.

Quando Conina desenrolou o tapete, inúmeros objetos caíram no chão, inclusive um arenque de bronze, uma orelha de madeira, algumas lantejoulas quadradas, grandes, e uma caixa de chumbo com uma bolha de sabão no interior.

— O que é essa tralha? — perguntou Nijel.

— Bem — respondeu Rincewind —, antes de tentarem comer o tapete, provavelmente eram traças.

— Nossa!

— É isso o que vocês não entendem — disse Rincewind, fatigado. — Vocês acham que a magia não passa de um troço que a gente pega e usa como uma… como uma…

— Pastinaga? — sugeriu Nijel.

— Garrafa de vinho? — propôs o xerinfe.

— Algo assim — respondeu Rincewind, vacilante. Mas logo se animou e prosseguiu: — Só que a verdade, a verdade…

— Não é essa?

— E mais como uma garrafa de vinho? — insistiu o xerinfe, esperançoso.

— A magia usa as pessoas — apressou-se em explicar Rincewind. — Ela nos afeta da mesma maneira como nós a afetamos. É impossível lidar com artigos mágicos sem que eles também nos afetem. Só achei melhor avisar.

— Como uma garrafa de vinho — ilustrou Creosoto — que…

— … nos bebesse — completou Rincewind. — Então, para começar, largue a tampa e o anel e, pelo amor dos deuses, não esfregue em nada.

— Meu avô montou a fortuna da família com isso aqui — segredou Creosoto, pensativo. — O tio mal prendeu-o numa gruta. Ele teve de se virar com o que encontrou. Não tinha nada no mundo, além de um tapete mágico, uma lâmpada mágica, um anel mágico e uma gruta cheia de pedras preciosas.

— Subiu na vida por esforço próprio, foi? — resmungou Rincewind.

Conina abriu o tapete no chão. Ele apresentava um complexo desenho de dragões dourados, num fundo azul. Eram dragões extremamente complicados, com asas, orelhas e barbas compridas, e pareciam estar congelados, surpreendidos na transição de um estado a outro, sugerindo que a tela possuía mais dimensões do que as três de praxe. Mas o pior era que, se nos demorássemos olhando, a tela se convertia no desenho de dragões azuis, num fundo dourado, e sobrevinha a terrível sensação de que, se tentássemos ver ambos os tipos de dragão de uma só vez, nosso cérebro sairia pelas orelhas.

Com alguma dificuldade, Rincewind desviou o olhar quando outra explosão distante estremeceu o prédio.

— Como funciona? — perguntou.

Creosoto deu de ombros.

— Nunca usei — respondeu. — Acho que basta dizer “sobe”, “desce”, e assim por diante.

— Que tal “atravesse a parede”? — propôs Rincewind.

Todos os três olharam a parede alta, escura e, sobretudo, sólida.

— A gente podia experimentar sentar nele e dizer “levanta” — sugeriu Nijel. — Antes de bater no teto, a gente fala “pára”. — Ele pensou um pouco e acrescentou: — Se for essa a palavra.

— Ou “abaixa” — lembrou Rincewind. — Ou “cai”, “afunda”, “desmorona”, “tomba”. Ou “mergulha”.

— “Para o chão” — propôs Conina, sombria.

— É claro que, com toda essa magia flutuando ao redor, você bem poderia tentar usar um pouco — observou Nijel.

— Ah… — disse Rincewind. — Bem…

— Está escrito “maggo” no seu chapéu — lembrou Creosoto.

— Qualquer um pode escrever o que quiser no próprio chapéu — gracejou Conina. — Não acredite em tudo o que lê.

— Esperem um minuto — irritou-se Rincewind.

Eles esperaram um minuto.

Esperaram mais dezessete segundos.

— E muito mais difícil do que vocês imaginam — desculpou-se o mago.

— O que foi que eu falei? — perguntou Conina. — Vamos lá, temos de cavar a argamassa à unha.

Rincewind acenou para que ela se calasse, tirou o chapéu, soprou o pó da estrela, pôs o chapéu novamente, ajustou a aba, arregaçou as mangas, dobrou os dedos e entrou em pânico. Na falta de coisa melhor a fazer, encostou na parede. Ela vibrava. Não que estivesse sendo balançada. Parecia que a trepidação vinha de dentro da pedra.

Era muito parecido com o tremor que ele havia sentido na Universidade, pouco antes da chegada da fonticeria. A pedra, sem dúvida, estava muito insatisfeita com alguma coisa.

Ele avançou rente à parede e colou o ouvido à pedra seguinte, que era uma pedra menor, cortada para se encaixar num ângulo tal da parede, não uma pedra grande e notável, mas pequenina, apenas fazendo seu quinhão para o bem maior da parede como um todo. Ela também estava tremendo.

— Psiu! — pediu Conina.

— Não estou ouvindo nada — disse Nijel, em voz alta.

Nijel era uma dessas pessoas que, se dizemos “não olhe agora”, imediatamente viram a cabeça, como coruja em mesa giratória. São essas mesmas pessoas que, quando apontamos, digamos, para uma flor diferente ao seu lado, viram-se distraídas e pisam nela. Se estão perdidas no deserto, podemos achá-las colocando, em qualquer ponto do vasto mar de areia, algum objeto pequeno e frágil, como a antiga caneca valiosa que há gerações faz parte de nossa família, e voltar correndo ao escutá-la sendo esmigalhada. Enfim.

— A questão é essa! O que aconteceu com a guerra?

Uma pequena cascata de argamassa caiu do teto no chapéu de Rincewind.

— Alguma coisa vem agindo sobre as pedras — cochichou. — Elas querem se libertar.

— Estamos bem debaixo de uma porção delas — observou Creosoto.

Ouviu-se um rangido no alto, e um raio de luz do dia entrou no lugar. Para surpresa de Rincewind, não se fez acompanhar de morte súbita por esmagamento. Houve outro estrondo, e o buraco aumentou. As pedras estavam caindo, e estavam caindo para cima.

— Acho que agora vale a pena arriscar o tapete — disse.

A parede ao lado sacudiu-se como um cachorro e despedaçou-se, com as lascas açoitando Rincewind, ao voar pelos ares.

Os quatro sentaram-se no tapete azul e dourado, sob uma tempestade de pedras voadoras.

— Temos de sair daqui — percebeu Nijel, mantendo sua reputação de grande observador.

— Esperem aí — pediu Rincewind. — Eu vou dar a ordem…

— Você, não — protestou Conina, ajoelhando-se ao seu lado. — Eu vou dar a ordem. Não confio em você.

— Mas…

— Cale a boca — cortou Conina.

Ela bateu no tapete.

— Tapete… levante! — ordenou.

Houve uma pausa.

— Suba.

— Talvez ele não entenda essa língua — sugeriu Nijel.

— Ascenda. Levite. Voe.

— Ou, talvez, só seja sensível a determinada voz…

— Cale a boca.

— Não me parece um bom comando para fazê-lo voar — considerou Nijel. — Tente eleve-se.

— Ou plane — propôs Creosoto.

Várias toneladas de laje despencaram a poucos centímetros da cabeça dele.

— Se fosse obedecer a essas ordens, já teria obedecido — irritou-se Conina.

O ar ficava cada vez mais carregado de poeira, à medida que as pedras voadoras se agitavam. Ela deu um murro no tapete.

— Decole, esteira maldita! Arrgh!

Um pedaço de cornija atingiu-lhe o ombro. Nervosa, ela passou a mão pela ferida e virou-se para Rincewind, que estava sentado com o queixo apoiado nos joelhos e o chapéu caído sobre os olhos.

— Por que não funciona? — perguntou.

— Você não está dizendo as palavras certas — respondeu o mago.

— Ele não entende nossa língua?

— A língua não tem nada a ver com isso. Você se esqueceu de uma coisa fundamental.

— Sim?

— Sim, o quê? — provocou o mago.

— Olhe aqui, não é hora para orgulho ferido!

— Você pode ficar tentando, não me incomodo.

— Ponha esse negócio para voar!

Rincewind puxou o chapéu sobre as orelhas.

— Por favor — pediu Conina.

O chapéu ergueu-se um pouco mais.

— Vamos todos morrer aqui dentro — argumentou Nijel.

— É verdade, por favor — suplicou Creosoto.

O chapéu subiu ainda mais.

— Têm certeza? — indagou Rincewind.

— Temos!

O mago pigarreou.

— Desça — ordenou.

O tapete levantou-se do chão e pairou a alguns centímetros da nuvem de poeira.

— Como foi que… — começou Conina, mas Nijel a cortou.

— Os magos possuem conhecimentos ocultos, deve ser isso — disse. — Talvez o chapéu tenha um múnus para fazer o contrário do que é pedido. Podemos subir mais?

— Podemos, mas não vamos — disse Rincewind.

O tapete avançou vagarosamente e, como sempre acontece nessas horas, uma pedra caiu exatamente no local em que ele estivera um minuto antes.

Pouco depois estavam todos ao ar livre, e a tempestade de pedras ficava para trás.

O palácio estava caindo aos pedaços, e os pedaços irrompiam no ar como uma erupção vulcânica às avessas. A torre da fonticeria havia desaparecido. As pedras lançavam-se para o local em que ela estivera e…

— Estão construindo outra torre! — exclamou Nijel.

— Com material do meu palácio — reclamou Creosoto.

— O chapéu venceu — concluiu Rincewind. — E, por isso, está construindo sua própria torre. E uma espécie de reação. Os magos sempre ergueram torres, como aqueles… qual é o nome daquele negócio que fica nos rios?

— Sapo?

— Pedra?

— Gângster mal sucedido.

— Eu estava falando de frigana — esclareceu Rincewind. — Quando qualquer mago se preparava para brigar, a primeira coisa que fazia era construir uma torre.

— E enorme — comentou Nijel.

Rincewind assentiu.

— Para onde vamos? — perguntou Conina.

O mago estremeceu.

— Para longe — respondeu.

O muro do palácio estendia-se logo abaixo. Ele começou a tremer, e os tijolos puseram-se a avançar em direção à tempestade de pedras voadoras que zuniam ao redor da nova torre.

Por fim, Conina perguntou:

— Como conseguiu botar o tapete para voar? Ele realmente faz o contrário do que é pedido?

— Não. Só prestei atenção a alguns detalhes fundamentais do arranjo espacial.

— Não entendi — admitiu.

— Quer que eu explique sem usar o jargão mágico?

— Quero.

— Você abriu o tapete de cabeça para baixo — resumiu Rincewind.

Conina permaneceu quieta durante algum tempo. Depois disse:

— Que desconforto! E a primeira vez que viajo de tapete.

— É a primeira vez que eu dirijo — comentou Rincewind, distraído.

— Está indo muito bem — elogiou a moça.

— Obrigado.

— Você disse que tinha medo de altura.

— Pavor.

— Não parece.

— Não estou pensando no assunto.

Rincewind virou-se e olhou para a torre. Ela havia crescido um bocado no último minuto, criando no topo um jogo complicado de torreões e ameias. Um enxame de ladrilhos pairava próximo. As peças desciam e se encaixavam no lugar certo. A torre era absurdamente alta: as pedras da base teriam se partido, não fosse a magia que crepitava dentro delas.

Bem, aquele era o fim da magia organizada. Dois mil anos de paz mágica haviam escoado pelo ralo. As torres erguiam-se novamente e, com toda aquela magia em estado bruto, alguém se sairia muito mal. Provavelmente o universo. Magia demais pode comprometer o tempo e o espaço, e isso não é nada bom para as pessoas que cresceram acostumadas com coisas do tipo efeito vindo depois da causa.

Mas é claro que seria impossível explicar isso para os seus companheiros. Eles pareciam não captar as idéias de maneira adequada. Mais exatamente, pareciam não entender o conceito de ruína. Sofriam da terrível ilusão de que alguma coisa sempre poderia ser feita. Pareciam dispostos a transformar o mundo, ou morrer tentando. E o problema de morrer tentando era que se morria tentando.

Todo o objetivo da antiga organização da Universidade era manter algum tipo de paz entre os magos, que se relacionavam uns com os outros com a mesma docilidade de gatos enfiados num saco. Agora que as luvas haviam sido retiradas, qualquer um que tentasse se intrometer acabaria terrivelmente arranhado. Aquela não era a velha magia suave, e um tanto tola, com que o mundo estava acostumado. Era a guerra mágica, incandescente e abrasadora.

Rincewind não era muito bom em premonição. Aliás, mal conseguia ver o presente. Mas tinha certeza absoluta de que, num futuro bem próximo, como dali a trinta segundos, alguém diria: “Deve ter alguma coisa que a gente possa fazer”.

O deserto abria-se lá embaixo, iluminado pelos raios do poente.

— Parece que não tem muitas estrelas — comentou Nijel. — Pode ser que elas estejam com medo de sair.

Rincewind olhou para cima. Havia uma névoa prateada no alto.

— E a magia em estado bruto, caindo da atmosfera — informou. — Está saturada.

Vinte e sete, vinte e oito, vinte e…

— Deve ter alguma… — começou Conina.

— Não tem — cortou Rincewind, rispidamente, mas com uma ponta de satisfação. — Os magos vão brigar entre si até que haja apenas um vencedor. Não tem nada que ninguém possa fazer.

— Eu gostaria de uma bebida — suspirou Creosoto. — Será que não podemos parar em algum lugar para eu comprar uma taverna?

— Com o quê? — indagou Nijel. — Você agora é pobre, esqueceu?

— A pobreza não me incomoda — garantiu o xerinfe. — É a lucidez que me mata!

Conina cutucou Rincewind.

— Você está conduzindo esse negócio? — perguntou.

— Não.

— Então, para onde ele está indo?

Nijel olhou para baixo.

— Pelo jeito, está indo para o Meio — disse ele. — Em direção ao Mar Círculo.

— Alguém deve estar conduzindo.

Oi, soou uma voz amistosa na cabeça de Rincewind.

Não é minha consciência de novo, é?, imaginou ele.

Estou péssima.

Sinto muito, pensou Rincewind, mas nada disso é culpa minha. Sou apenas vítima das circunstâncias. Não sei por que deveria me sentir responsável.

Tudo bem, mas você poderia tomar alguma atitude.

Como o quê?

Destruir o fonticeiro. Tudo isso viria abaixo.

Eu não teria nem chance.

Poderia, ao menos, morrer tentando. Seria melhor do que deixar estourar uma guerra mágica.

— Cale a boca, está bem? — irritou-se Rincewind.

— O quê? — perguntou Conina.

— Hein? — indagou o mago, distraído. Ele olhou para o desenho azul e dourado, e acrescentou: — Você está guiando, não está? Através de mim! Isso é traição!

— Do que está falando?

— Ah. Desculpe. Pensando alto.

— Acho melhor a gente pousar — sugeriu Conina.

Eles voaram para uma praia em meia-lua, onde o deserto encontrava o mar. A luz normal, a praia teria sido de um branco ofuscante, com a areia composta de bilhões de minúsculos fragmentos de concha, mas, àquela hora do dia, mostrava-se avermelhada e primordial. Muitos pedaços de madeira, desgastados pelas ondas e embranquecidos pelo sol, amontoavam-se na margem, como a ossada de peixes antigos ou a maior bancada de acessórios de arte floral no mundo. Nada se mexia, além das ondas. Havia algumas rochas ao redor, mas estavam quentíssimas e não serviam de lar para nenhum molusco ou alga marinha.

Até o mar parecia árido. Se qualquer anfíbio primitivo houvesse chegado a uma praia daquelas, teria desistido no ato, voltado para a água e avisado aos parentes que esquecessem a idéia de ter patas, que não valia a pena. O ar parecia cozido.

Ainda assim, Nijel insistiu para que acendessem uma fogueira.

— É mais simpático — argumentou. — Além do mais, pode haver monstros.

Conina mirou as ondinhas fracas, atingindo a praia no que parecia uma tentativa desanimada de sair do mar.

— Naquilo? — perguntou.

— A gente nunca sabe.

Rincewind vagava pela margem, distraidamente pegando pedras e jogando-as no mar. Uma ou duas voltaram.

Depois de algum tempo, Conina conseguiu acender a fogueira, e um pedaço de madeira seca e salgada soltava chamas azuis e verdes, sob uma cascata de faíscas. O mago sentou-se nas sombras dançantes, encostado numa pilha de madeiras embranquecidas e envolto numa tristeza tão impenetrável que até Creosoto parou de reclamar de sede e se calou.

Conina acordou depois da meia-noite. Havia uma lua crescente no horizonte, e uma névoa fina e fria cobria a areia. Creosoto roncava, deitado de costas. Nijel, que teoricamente estaria de guarda, ressonava.

Conina permaneceu imóvel, com todos os sentidos voltados para o que a havia despertado.

Por fim, ouviu novamente. Era um tinido baixo, quase inaudível sob o barulho abafado do mar.

Ela se levantou, ou melhor, deslizou para a vertical como se tivesse menos ossos do que uma água-viva e tirou a espada das mãos inertes de Nijel. Avançou por entre a névoa, sem perturbá-la.

O fogo minguava, em meio às cinzas. Depois de algum tempo, Conina voltou ao acampamento e acordou os outros dois.

— Guivoi?

— Acho que vocês precisam ver isso — sussurrou. — Talvez seja importante.

— Só fechei os olhos por um segundo… — desculpou-se Nijel.

— Não tem problema. Venham.

Creosoto passou a vista no acampamento improvisado.

— Cadê o mago?

— Vocês vão ver. E não façam barulho. Pode ser perigoso.

Eles seguiram a menina em direção ao mar, afundados até o joelho na névoa.

Por fim, Nijel perguntou:

— Por que perigoso…?

— Psiu! Escutaram?

Nijel aguçou os ouvidos.

— Meio que um tinido?

— Olhem…

Rincewind caminhava aos trancos pela praia, carregando uma enorme pedra redonda nas mãos. Passou por eles sem dizer palavra, com os olhos fixos à frente.

Os três seguiram-no pela praia fria, até ele alcançar uma área vazia entre as dunas, onde parou e, ainda se movendo com a elegância de um cabide de pé, largou a pedra. Ela soltou um tinido.

Havia um grande círculo de pedras. Pouquíssimas, de fato, encontravam-se em cima umas das outras.

Os três se agacharam e observaram-no.

— Ele está dormindo? — perguntou Creosoto.

Conina assentiu.

— O que está tentando fazer?

— Acho que uma torre.

Rincewind voltou ao círculo de pedras e, com grande cuidado, soltou outra pedra no ar. Ela caiu.

— Não é muito bom no negócio — considerou Nijel.

— Uma tristeza — confirmou Creosoto.

— Talvez devêssemos acordá-lo — sugeriu Conina. — Só que eu ouvi dizer que, quando acordamos o sonâmbulo, ele perde as pernas. Ou algo assim. O que vocês acham?

— Com os magos, pode ser arriscado — advertiu Nijel.

Os três tentaram se acomodar melhor na areia fria.

— É lamentável — rebateu Creosoto. — Ele nem é exatamente mago.

Conina e Nijel tentaram evitar o olhar um do outro. Por fim, o rapaz tossiu e falou:

— Também não sou exatamente um herói bárbaro. Vocês já devem ter notado.

Eles observaram o vulto diligente de Rincewind durante algum tempo, e Conina admitiu:

— Se a questão é essa, acho que me falta talento para cabeleireira.

Ambos fitaram o sonâmbulo, entretidos em pensamentos e corados de constrangimento mútuo. Creosoto pigarreou.

— Se isso ajuda — disse ele —, às vezes acho que minha poesia deixa muito a desejar.

Com cuidado, Rincewind tentou equilibrar uma pedra enorme num pequeno calhau. Ela tombou, mas o mago se mostrou satisfeito com o resultado.

— Falando como poeta — perguntou Conina, com tato —, o que você diria sobre essa situação?

Creosoto se mexeu, pouco à vontade.

— Negocinho engraçado, a vida — respondeu.

— Bem apropriado.

Nijel deitou-se e olhou as estrelas anuviadas. Depois, sentou-se ereto.

— Viram aquilo? — perguntou.

— O quê?

— Era uma espécie de relâmpago, meio…

O horizonte explodiu num mar silencioso de cores, que atravessou rapidamente todos os matizes do espectro convencional, depois reluziu numa octarina cintilante.

Durante algum tempo, ouviu-se um trovão longínquo.

— Algum tipo de arma mágica — imaginou Conina.

Uma lufada de vento quente agitou a névoa.

— Chega! — decidiu Nijel. — Vou acordá-lo, mesmo que isso signifique ter de carregá-lo depois.

Ele estendeu o braço em direção ao ombro de Rincewind no momento exato em que alguma coisa passava voando no céu, fazendo o barulho de uma revoada de gansos sob efeito de oxido nitroso. A coisa desapareceu no deserto. Seguiram-se um ruído que teria mexido até com nervos de aço, um raio de luz verde e um estrondo.

— Eu o acordo — decidiu Conina. — Vocês pegam o tapete.

Ela se dirigiu ao círculo de pedras e tomou o mago suavemente pelo braço. Aquele teria sido um modo exemplar de acordar um sonâmbulo, não fosse Rincewind deixar cair no próprio pé a pedra que vinha segurando. Ele abriu os olhos.

— Onde estou? — perguntou.

— Na praia. Você estava… hã… sonhando.

Rincewind olhou a névoa, o céu, o círculo de pedras, Conina, novamente o círculo de pedras, e outra vez o céu.

— O que aconteceu? — perguntou.

— Uns fogos de artifício mágicos.

— Ali. Então começou.

Ele saiu cambaleante do círculo, dando a entender que talvez ainda não estivesse completamente acordado, e avançou para onde se encontravam os restos da fogueira. Arriscou alguns passos e pareceu se lembrar de alguma coisa.

Olhou o pé e disse:

— Ai!

Quase havia chegado até a fogueira quando a rajada do último feitiço os alcançou. O alvo havia sido a torre de Al Khali, que ficava a trinta quilômetros de distância, e a essa altura a frente de onda já se mostrava extremamente difusa. Mal afetava a natureza das coisas ao avançar pelas dunas com um leve ruído de sucção. A fogueira ardeu vermelha e verde por um segundo, uma das sandálias de Nijel virou um pequeno texugo nervoso, e um pombo saiu voando do turbante do xerinfe.

Depois, a rajada avançou para o mar.

— O que foi aquilo? — perguntou Nijel.

Ele chutou o texugo, que lhe cheirava o pé.

— Hein? — indagou Rincewind.

— Aquilo!

— Ah, aquilo — disse Rincewind. — O recuo de um feitiço. Provavelmente atingiu a torre de Al Khali.

— Deve ter sido enorme para nos alcançar aqui.

— Deve, sim.

— Ei, aquele palácio era meu — resmungou Creosoto. — Sei que era muito, mas era tudo que eu tinha.

— Que pena.

— Tinha gente na cidade!

— Devem estar bem — calculou Rincewind.

— Menos mal.

— Embora não necessariamente em forma de gente.

— O quê?

Conina pegou-lhe o braço.

— Não grite com ele — pediu. — Ele não é o mesmo.

— Ah — disse Creosoto. — Um progresso.

— Você está sendo um pouco injusto — protestou Nijel. — Quer dizer, ele me tirou da cova das serpentes e, bem, conhece muitas…

— E, os magos são excelentes para nos tirar do tipo de problema em que só eles conseguem nos meter — rebateu Creosoto. — E, depois, esperam que agradeçamos.

— Ah, eu acho…

— Alguém precisa dizer isso — insistiu Creosoto, agitando as mãos, irritado.

Por um instante, ele se viu iluminado pela passagem de outro feitiço no céu turbulento.

— Olhem só! — continuou. — Ah, ele é bonzinho. Todos são muito bonzinhos. Devem achar que o Disco seria um lugar melhor se eles estivessem no comando. Vão por mim, não tem nada pior do que gente querendo ajudar. Magos! No fim, servem para quê? Vocês podem me dizer alguma coisa de útil que eles tenham feito?

— Você está sendo cruel — contestou Conina, mas com uma inflexão de voz que sugeria que ela estava disposta a se deixar persuadir.

— Eles me enojam — murmurou Creosoto, que estava sóbrio e não gostava da sensação.

— Acho que vamos nos sentir melhor se tentarmos dormir um pouco mais — propôs Nijel, diplomaticamente. — Tudo sempre parece melhor à luz do dia. Enfim, quase sempre.

— Minha boca está com um gosto horrível — disse Creosoto em voz baixa, determinado a não largar o resto de sua raiva.

Conina voltou-se para a fogueira e notou uma ausência na paisagem. A ausência tinha o formato de Rincewind.

— Ele se foi!

De fato, Rincewind já estava a um quilômetro dali, sentado como um buda irritado no tapete, sobre o oceano escuro. Sua mente era um misto de ódio, humilhação, fúria e afronta.

Ele nunca quis muito da vida. Havia persistido na magia dos magos, muito embora não tivesse talento. Sempre fizera o melhor que podia, e agora o mundo todo conspirava contra sua pessoa. Bem, mostraria a eles. Quem exatamente eram “eles” e o que lhes seria mostrado não passavam de detalhes.

Ergueu o braço e tocou o chapéu a fim de ganhar confiança, embora a peça viesse perdendo suas últimas lantejoulas ao vento.


A Bagagem também andava tendo problemas.

A área ao redor da torre de Al Khali, sob implacável bombardeio mágico, já passava daquele limite em que o tempo, o espaço e a matéria perdem a identidade própria e começam a vestir as roupas uns dos outros. Era impossível descrever a cena.

Aqui vai uma tentativa:

Parecia o som de um piano que acabasse de cair num poço. Tinha gosto de amarelo e textura de tecido xadrez. Cheirava a eclipse de lua. É claro que, mais perto da torre, tudo ficava muito mais estranho.

Esperar que qualquer criatura desprotegida sobrevivesse dentro daquilo seria o mesmo que esperar neve em supernova. Por sorte, a Bagagem não sabia disso, e atravessou todo o turbilhão, com magia em estado bruto cristalizando-se na tampa e nas dobradiças. Ela estava de mau humor, mas não havia nada de novo nisso, a não ser pelo fato de o redemoinho desatinado, que envolvia a Bagagem numa coroa multicolorida, dar a ela o aspecto de um anfíbio primitivo muito nervoso, arrastando-se para fora de um pântano em chamas.

Fazia calor dentro da torre. Não existiam pavimentos internos, apenas uma série de corredores. Havia muitos magos, e a área central era uma coluna de luz octarina que estalava alto à medida que eles jogavam poder ali dentro. Na base, estava Abrim, com as pedras octarinas do chapéu reluzindo tanto que mais pareciam buracos abertos para um universo diferente.

O vizir mantinha as mãos estendidas, os dedos abertos, os olhos fechados e a boca numa linha fina de concentração, equilibrando todas as forças. Em geral, os magos controlavam o poder apenas até onde ia sua capacidade física, mas Abrim estava aprendendo rapidamente.

Bastava fazer de si mesmo o vértice da ampulheta, o suporte da balança, o rolo em volta da lingüiça.

Fazer certo, e ser o poder…

Já foi mencionado que os pés dele estavam vários centímetros acima do chão? Os pés dele estavam vários centímetros acima do chão.

Abrim vinha reunindo energia para um feitiço que subiria ao céu e envolveria a torre de Ankh com milhares de demônios quando escutou uma batida vigorosa na porta.

Existe um mantra que sempre é dito nessas ocasiões. Não interessa se a porta é a aba de uma barraca, o pedaço de couro de uma tenda açoitada pelo vento, três centímetros de madeira dura, com excelentes pregos de ferro, ou um retângulo de papelão, com folha de mogno e uma pequena luminária feita de pedaços horrorosos de vidro colorido, além de uma campainha que toca até vinte melodias famosas que nenhum amante de música gostaria de ouvir, mesmo depois de cinco anos de privação auditiva.

Um mago virou-se para outro e perguntou:

— Quem será, a essa hora?

Houve mais uma série de batidas na madeira.

— Não pode haver ninguém vivo lá fora — falou o outro mago, e falou em pânico, porque, se eliminássemos a possibilidade de ser alguém vivo, isso sempre nos deixava a suspeita de que talvez fosse alguém morto.

Desta vez, as batidas estremeceram as dobradiças.

É melhor um de nós ir até lá — propôs o primeiro mago.

— Hã… Ah. Certo.

Ele atravessou, sem muita pressa, o corredor arqueado.

— Só vou ver quem é — disse.

— Excelente.

O vulto hesitante que se dirigia a porta era estranho. Mantos comuns não eram proteção suficiente no campo energizado da torre. Por isso, sobre o brocado e o veludo, o mago usava um macacão grosso e acolchoado, forrado com aparas de sorva e bordado com desenhos cabalísticos. Ele havia prendido uma viseira de vidro fume ao chapéu pontudo, e as luvas enormes sugeriam que era goleiro numa partida de críquete jogada em velocidade supersônica. As vibrações e os raios actínicos do grande trabalho realizado no salão produziam sombras escabrosas ao redor, à medida que ele virava os ferrolhos.

Abaixou a viseira e abriu uma fresta na porta. — Não queremos nenhum… — começou ele, e deveria ter escolhido melhor as palavras, porque foram suas últimas.

Passou-se algum tempo até que o colega notasse a demora de sua ausência e atravessasse o corredor, atrás dele. A porta estava aberta, e o inferno taumatúrgico do mundo exterior rugia contra a teia de feitiços que o reprimia. Na verdade, a porta não estava totalmente aberta. Ele puxou a madeira para ver por que, e soltou um gemido.

Ouviu um barulho a suas costas. Deu meia-volta. — Que… — começou ele. Que é uma sílaba bem fraca para se terminar a vida.

Sobrevoando o Mar Círculo, Rincewind sentia-se ridículo.

Mais cedo ou mais tarde, isso acontece com todo mundo.

No bar, por exemplo, alguém nos empurra, e então nos viramos rapidamente e dirigimos algumas injúrias para — aos poucos nos damos conta — a fivela do cinto de um homem que, mais do que nascido, parece ter sido talhado.

Ou um carro minúsculo corta o nosso, e aceleramos para mostrar o punho ao motorista que, e isso fica evidente à medida que ele se levanta, provavelmente estava sentado no banco traseiro.

Ou, então, lideramos os colegas rebeldes até a cabine do capitão e batemos na porta. Ele mete para fora a cabeça enorme, com uma faca em cada mão, e dizemos: “Vamos assumir o comando do navio, seu bosta, e os rapazes estão comigo!”. Ele pergunta: “Que rapazes?”. De repente, sentimos um grande vazio atrás de nós, e dizemos “Hum…”

Em outras palavras, é a famosa sensação de calor experimentada por qualquer pessoa que já tenha deixado as ondas da raiva levá-la à praia da desforra, metendo-se, na linguagem poética do dia-a-dia, numa grande enrascada.

Rincewind ainda estava irritado, humilhado e tudo o mais, mas essas emoções haviam cedido um pouco, e parte de sua personalidade normal retornara. Não ficou nada satisfeita de se ver sobre alguns fios de lã azul e dourada, acima das ondas fosforescentes.

Ele estava a caminho de Ankh-Morpork. Tentou lembrar por quê.

Obviamente, era onde tudo havia começado. Talvez fosse a presença da Universidade, que era tão carregada de magia, que parecia uma bala de canhão sobre a delicada realidade do universo. Ankh era onde tudo começava e terminava.

Também era sua casa, por pior que fosse, e clamava por ele.

Já foi mencionado que Rincewind parecia ter roedores em sua árvore genealógica e, em momentos de estresse, sentia uma vontade terrível de correr para a toca.

Ele deixou o tapete deslizar ao sabor das correntes de ar, enquanto a alvorada — que, segundo Creosoto, provavelmente teria dedos cor-de-rosa — criava um círculo de fogo ao redor do Disco. Ela lançava vagarosos raios de luz sobre um mundo ligeiramente diferente.

Rincewind piscou. Era uma luz esquisita. Não. Agora, que parava para pensar, não era esquisita, mas exquisita, palavra que encerra muito mais esquisitice. Era como olhar o mundo através de uma neblina de calor, mas uma neblina que tinha vida própria. Ela vibrava e se alongava, e sugeria que não se tratava de mera ilusão de ótica, mas que a própria realidade vinha se distendendo, como uma bola de gás tentando conter gás demais.

A oscilação era maior na direção de Ankh-Morpork, onde raios e chafarizes de ar contorcido indicavam que a luta não havia abrandado. Uma coluna semelhante erguia-se sobre Al Khali. Rincewind se deu conta de que não era a única.

Aquilo não era uma torre sobre Quirm, onde o Mar Círculo desembocava no grande Oceano Periférico? E havia outras.

Tudo ia de mal a pior. A magia dos magos se dissolvia. Adeus Universidade, níveis e ordens. No fundo do coração, todos os magos sabiam que o número natural da magia dos magos era 1. As torres se multiplicariam e brigariam até sobrar apenas uma delas. Daí os magos lutariam até que restasse somente um.

A essa altura, ele certamente lutaria consigo mesmo.

Toda a estrutura que funcionava como estabilizadora da magia estava ruindo. Rincewind sentia-se péssimo. Nunca havia sido bom em mágica, mas a questão não era essa. Ele conhecia o seu lugar. Era no fundo, lá embaixo, mas pelo menos tinha o seu lugar. Podia erguer os olhos e ver toda a delicada máquina funcionar, suavemente absorvendo a magia natural gerada pela rotação do Disco.

Tudo que ele tinha não era nada, mas era alguma coisa. Agora, lhe tiravam aquilo.

Rincewind voltou o tapete para o brilho distante de Ankh-Morpork, que não passava de um pontinho cintilante à luz da manhã, e uma parte de sua mente, que não vinha fazendo nada, perguntou-se por que estaria tão claro. Também parecia haver lua cheia, e até Rincewind, cujo conhecimento de ciências naturais era bastante vago, estava certo de que houvera lua cheia poucos dias antes.

Bem, não importa. Chega! Ele não tentaria entender mais nada. Apenas voltaria para casa.

Só que mago nunca volta para casa.

Esse é um dos antigos ditados que mago algum jamais conseguiu entender. Eles não podiam ter esposas, mas podiam ter pais, e muitos voltavam para a cidade natal na noite de Reveillon dos Porcos, ou na Quinta-Feira Tamanca, para cantar um pouco e ver todos os valentões da infância tratando de evitá-los na rua.

É como o outro ditado que nunca conseguiram entender, que diz que não se cruza o mesmo rio duas vezes. Experiências com um mago de pernas compridas e um rio estreito revelaram que é possível cruzar o mesmo rio 30, 35 vezes por minuto.

Os magos não gostam muito de filosofia. No que lhes diz respeito, é possível aplaudir com uma única mão, mas o som sai pela metade.

Neste caso em particular, porém, Rincewind não podia voltar para casa porque ela não estava mais lá. Havia uma cidade cortada pelo Rio Ankh, mas o mago jamais havia deitado olhos nela. Era branca, limpa e não cheirava a latrina cheia de arenques mortos.

Em estado de choque, ele pousou no que outrora fora a Praça das Luas Partidas. Havia chafarizes. É claro que, antes, também havia chafarizes, mas eles apenas gotejavam, e a água parecia sopa rala. O chão, agora, era composto de lajes leitosas, com partículas brilhantes. E, embora o sol estivesse no horizonte como uma metade de laranja, quase não havia ninguém ali. Em geral, Ankh estava sempre abarrotada, e a cor do céu era mero detalhe de fundo.

Longas espirais de fumaça desprendiam-se da coroa fumegante, acima da Universidade. Era o único movimento no local, além dos chafarizes.

Rincewind sempre sentira orgulho do fato de estar só, no meio da cidade apinhada, mas era muito pior se sentir só quando se estava de fato sozinho.

Enrolou o tapete, botou-o no ombro e avançou, por entre ruas assombradas, em direção à Universidade.

O portão estava aberto, ao sabor do vento. Grande parte do prédio parecia arruinada por disparos perdidos e ricochetes. A torre da fonticeria, alta demais para ser de verdade, parecia ilesa. Não era o caso da antiga Torre de Arte. Metade da magia destinada à torre vizinha parecia ter repercutido nela. Pedaços haviam derretido.

Algumas partes fulguravam, outras tinham se cristalizado. Outras pareciam ter se torcido para além das três dimensões normais. Fazia a gente sentir pena das pedras por sofrerem aquele tipo de tratamento. Na verdade, havia acontecido quase tudo com a torre, menos o colapso propriamente dito. Ela estava tão devastada que parecia que até a gravidade tinha desistido dela.

Rincewind suspirou e contornou a base da torre, em direção à biblioteca.

Em direção ao lugar onde, um dia, havia sido a biblioteca.

Lá estava o arco do vão da porta, e a maior parte das paredes ainda se encontrava de pé, mas o teto havia caído e tudo estava preto de fuligem.

Rincewind limitou-se a olhar durante algum tempo.

Largou o tapete e correu, tropeçando no entulho que quase bloqueava a entrada. O chão de pedras ainda estava quente. Aqui e ali, restos de alguma estante ardiam em chamas.

Rincewind corria para a frente e para trás, por entre os montes reluzentes, subindo desesperadamente neles, jogando longe móveis carbonizados, livrando-se dos pedaços de teto caído com força menos que sobre-humana.

Parou uma ou duas vezes para recuperar o fôlego, mas logo mergulhava novamente nos escombros, cortando as mãos em cacos de vidro da cúpula do telhado. Ele parecia soluçar.

Por fim, os dedos ávidos tocaram uma coisa quente e macia.

O mago jogou para o lado uma viga queimada do telhado, avançou aos trancos por uma porção de azulejos partidos e olhou para baixo.

Naquele local, meio esmagado pela viga e queimado pelo fogo, havia um grande cacho de bananas maduras.

Com muito cuidado, pegou uma das frutas, sentou-se e olhou-a durante um bom tempo. Então, comeu-a.


— Não deveríamos tê-lo deixado ir assim — disse Conina.

— Como poderíamos impedir, ó formosa águia dos olhos de corça?

— Ele pode fazer uma besteira!

— Isso é bem provável — ironizou Creosoto.

— Enquanto a gente mostra que é inteligente e fica aqui nessa praia quente sem nada para comer nem beber. É isso?

— Você poderia me contar uma história — sugeriu Creosoto, tremendo ligeiramente.

— Cale a boca.

O xerinfe correu a língua pelos lábios.

— Imagino que uma piadinha rápida esteja fora de questão? — insistiu.

Conina suspirou.

— A vida é mais do que narrativa, sabia?

— Desculpe. Perdi o controle.

Agora, com o sol alto, a praia de conchas esmigalhadas reluzia como uma salina. O mar não tinha melhor aspecto à luz do dia. Movia-se feito óleo.

Para ambos os lados, a praia estendia-se em longas curvas planas, sem apresentar nada, além de uns poucos tufos de grama seca que viviam da umidade vaporizada. Não havia nem sinal de sombra.

— Estamos numa praia — observou Conina. — E, na minha opinião, isso significa que, mais cedo ou mais tarde, vamos dar num rio. Tudo que temos de fazer é seguir em uma direção.

— Por outro lado, adorável neve das encostas do Monte Eritor, não sabemos qual.

Nijel suspirou e enfiou a mão na bolsa.

— Hã — disse. — Desculpe. Será que isso aqui não pode ajudar? Eu roubei. Sinto muito.

Ele estendeu a lâmpada que estava no depósito de tesouros.

— E mágica, não é? — perguntou, cheio de esperanças. — Já ouvi falar. Não vale a pena tentar?

Creosoto sacudiu a cabeça.

— Mas você disse que o seu avô a usou para fazer fortuna! — protestou Conina.

— Uma lâmpada — advertiu o xerinfe. — Usou uma lâmpada. Não esta. A lâmpada verdadeira era um objeto velho, amassado. Um dia, surgiu um vendedor ambulante malvado, oferecendo lâmpadas novas em troca de velhas, e minha bisavó trocou-a por esta aí. A família guardou-a no cofre como uma espécie de recordação dela. Uma mulher terrivelmente burra. É claro que não funciona. — Já tentou?

— Não, mas o sujeito não teria se desfeito dela se funcionasse.

— Esfregue — pediu Conina. — Mal não pode fazer.

— Eu não esfregaria — avisou Creosoto.

Nijel suspendeu a lâmpada com cuidado. A peça tinha uma aparência estranhamente lisa, como se alguém houvesse se disposto a criar uma lâmpada que agisse depressa.

Ele esfregou-a.

O resultado não foi nada espetacular. Houve um clique fraco e um sopro de fumaça perto dos pés de Nijel. Depois, apareceu uma linha na praia, a alguns metros da fumaça. Ela se estendeu rapidamente para delinear um quadrado na areia, que sumiu.

Um vulto surgiu do chão, deteve-se e resmungou.

Trazia um turbante, um bronzeado aristocrático, um pequeno medalhão de ouro, short brilhoso e modernos sapatos de corrida com biqueira recurva.

Disse:

— Quero esclarecer algumas coisas. Onde estou?

Conina foi a primeira a se recuperar.

— Numa praia — respondeu.

— Tudo bem — disse o gênio. — O que estou perguntando é em que lâmpada, em que mundo.

— Você não sabe?

O gênio tirou a lâmpada das mãos de Nijel.

— Ah, esse negócio velho — disse. — Só divido as despesas. E tenho direito a duas semanas em agosto, mas é claro que nem sempre dá para escapar.

— São muitas lâmpadas? — perguntou Nijel.

— Estou meio sobrecarregado — confirmou o gênio. — Aliás, ando pensando em variar um pouco com anéis. Anel é o boom do momento. Desculpe, pessoal, o que posso fazer por vocês?

A última frase foi pronunciada com aquela voz especial que usamos para parodiar a nós mesmos, na vã esperança de que nos faça parecer menos idiotas.

— A gente… — começou Conina.

— Eu quero uma bebida — interrompeu Creosoto. — E você tem de dizer que meu desejo é uma ordem.

— Ah, ninguém mais diz isso — contestou o gênio, e fez surgir um copo.

Em seguida, dirigiu a Creosoto um sorriso fulgurante que durou uma pequena porcentagem de segundo.

— Queremos que você nos leve a Ankh-Morpork — afirmou Conina.

O gênio pareceu confuso. Ele fez surgir um livro grosso[19], e consultou-o.

— Parece uma ótima idéia — disse, afinal. — Vamos almoçar juntos na terça-feira, tudo bem?

— Fazer o quê?

— Estou um pouco apressado, agora.

— Você está um pouco…?, — começou Conina.

— Ótimo — considerou o gênio, e olhou para o próprio pulso.

— Ei, é essa hora mesmo?

Ele sumiu.

Os três miraram a lâmpada, em silêncio meditativo, até que Nijel perguntou:

— O que terá acontecido com aqueles sujeitos gordos, de calças largas, que diziam “Ouço e Obedeço, Ó Mestre”?

Creosoto resmungou qualquer coisa. Havia acabado de tomar a bebida. Era água com borbulhas, e tinha gosto de ferro quente.

— Não vou admitir isso — rosnou Conina.

Ela pegou a lâmpada e esfregou o objeto, como se lamentasse não ter uma pedra nas mãos.

O gênio reapareceu num lugar diferente, ainda a alguns metros da explosão fraca e da obrigatória nuvem de fumaça.

Ele trazia um aparelho recurvo e brilhoso na orelha, e parecia ouvi-lo atentamente. Olhou apressado para o rosto enfurecido de Conina e, mexendo as sobrancelhas e agitando a mão livre com urgência, deu um jeito de sugerir que, no momento, encontrava-se inconvenientemente preso a assuntos desagradáveis que, infelizmente, impediam-no de dar atenção a ela naquele instante. Mas que, tão logo se desvencilhasse daquela pessoa inoportuna, ela poderia ter certeza de que seu desejo, que sem dúvida era um desejo de brilho e esplendor, seria uma ordem.

— Vou arrebentar a lâmpada — avisou ela, em voz baixa.

O gênio abriu-lhe um sorriso rápido e falou, rispidamente, para o aparelho que mantinha preso entre o queixo e o ombro:

— Ótimo — disse. — Excelente. Está fechado. Pede para o seu pessoal ligar para o meu. Manteremos contato, certo? Tchau.

Ele abaixou o negócio.

— Imbecil — murmurou.

— Vou mesmo arrebentar a lâmpada — advertiu Conina.

— Que lâmpada é essa? — perguntou o gênio, às pressas.

— Quantas você tem? — quis saber Nijel. — Sempre achei que os gênios só tivessem uma.

Exausto, o gênio explicou que, na verdade, possuía várias lâmpadas. Havia uma lâmpada pequena mas bem montada, onde ele passava a semana. Outra, um tanto notável, no campo, uma lamparina rústica cuidadosamente restaurada, num imaculado distrito produtor de vinho próximo a Quirm. E, mais recentemente, ele comprara um conjunto de lâmpadas abandonadas na região portuária de Ankh-Morpork, que tinha grande potencial para virar o equivalente oculto de um complexo de escritórios e bar, quando o pessoal mais antenado descobrisse o local.

Os três ouviram admirados, como peixes que de repente se deparassem com uma palestra sobre como voar.

— Quem é o seu pessoal, para quem o outro pessoal tem de ligar? — perguntou Nijel, que estava impressionado, embora não soubesse por que nem pelo quê.

— Na verdade, ainda não tenho pessoal — admitiu o gênio, e fez uma careta com os lábios. — Mas vou ter.

— Todos quietos! — exigiu Conina. — E você nos leve a Ankh-Morpork.

— Se eu fosse você, eu levaria — opinou Creosoto. — Quando a boca da moça vira uma caixa de correio, é melhor fazer o que ela manda.

O gênio hesitou.

— Não sou muito bom em transporte — advertiu.

— Aprenda — ordenou Conina, jogando a lâmpada de uma mão para a outra.

— Telecinesia é uma dor de cabeça — insistiu o gênio, em desespero. — Por que não almoçamos…

— Chega! — irritou-se Conina. — Só preciso de duas pedras grandes.

— Tudo bem, tudo bem. Dêem as mãos. Vou fazer o possível, mas talvez seja um grande erro…

Uma vez, os astrofilósofos de Krull conseguiram provar, de maneira definitiva, que todos os lugares são um só, e que a distância entre eles não passava de ilusão. Mas a notícia foi um grande constrangimento para os filósofos pensantes, porque não explicava, entre outras coisas, as placas de trânsito. Após anos de brigas, tudo foi entregue a Yin Gha No, discutivelmente o maior filósofo do Disco (Ele sempre discutia, afirmando que era), que depois de muito pensar proclamou que, embora fosse verdade que todos os lugares eram um só, esse lugar era muito grande.

E, assim, restabeleceu-se a ordem psíquica. A distância, no entanto, é um fenômeno completamente subjetivo, e os seres mágicos podem ajustá-la para a sua conveniência.

Não são necessariamente bons nisso.


Rincewind estava sentado nos escombros enegrecidos da biblioteca, tentando entender o que havia de errado com eles.

Bem, para começar, tudo. Era impensável que a biblioteca pudesse ser queimada. Tratava-se do maior acúmulo de magia do Disco. Aquele era o sustentáculo da magia dos magos. Todos os feitiços já usados estavam escritos ali, em algum lugar. Queimá-los era, era, era…

Não havia cinzas. Muita madeira queimada, muitas correntes, muita pedra escurecida, muita bagunça. Mas milhares de livros não queimam facilmente. Eles teriam deixado pedaços de capa e uma enorme quantidade de cinzas. E não havia nada disso.

Rincewind mexeu no entulho com a ponta do pé. Só havia uma porta de entrada para a biblioteca. Havia os porões — dava para ver a escada que levava até eles, entupida de lixo —, mas seria impossível esconder todos os livros lá embaixo. Tampouco se poderia transportá-los por telecinesia. Eles resistiriam àquele tipo de magia. Qualquer pessoa que tentasse algo assim acabaria usando o cérebro em cima do chapéu.

Houve uma explosão no céu. Um círculo de fogo laranja formou-se na metade da altura da torre da fonticeria, subiu rapidamente e partiu na direção de Quirm.

Rincewind deslizou no banco improvisado e fitou a Torre de Arte. Teve a nítida sensação de que ela retribuía o olhar. Não havia nenhuma janela, mas por um instante ele pensou ver movimento entre os torreões em ruína.

Tentou imaginar a idade da torre. Com certeza, era mais velha do que a Universidade. Mais velha do que a cidade, que havia se formado à sua volta como biombo em torno de montanha. Talvez mais velha do que a própria geografia. Houve um tempo em que os continentes eram isolados, Rincewind bem sabia, e depois eles, de alguma forma, se acomodaram uns aos outros com mais conforto, como filhotes de cachorro numa cesta. Talvez a torre tivesse sido banhada por ondas de outro lugar. Talvez estivesse ali antes do próprio Disco, mas Rincewind não gostava de pensar assim, porque isso levantava perguntas incômodas sobre quem a teria construído e para quê.

Ele examinou a própria consciência.

Ela disse: Não tenho opções. Faça o que quiser.

Rincewind levantou-se e bateu a poeira e as cinzas do manto, tirando também bastante do veludo vermelho queimado. Ergueu o chapéu, fez uma tentativa preocupada de endireitar a ponta e botou-o de volta à cabeça.

E seguiu vacilante para a Torre de Arte.

Havia uma porta muito velha e pequena na base. O mago não ficou nem um pouco surpreso quando ela se abriu à sua chegada.


— Que lugar estranho! — exclamou Nijel. — Que engraçada essa curvatura das paredes!

— Onde estamos? — perguntou Conina.

— E tem bebida alcoólica? — indagou Creosoto. — Provavelmente não — acrescentou.

— E por que está tremendo? — insistiu Conina. — Nunca estive em nenhum lugar que tivesse paredes de metal.

Ela fungou o ar.

— Estão sentindo cheiro de óleo? — perguntou, desconfiada.

O gênio ressurgiu, embora dessa vez sem os efeitos da fumaça e do alçapão errante. Era evidente que se mantinha o mais longe de Conina que lhe permitia a educação.

— Estão todos bem? — quis saber.

— Isso aqui é Ankh? — inquiriu. — Só que, quando pedimos para chegar à cidade, esperávamos que você nos botasse num lugar com porta.

— Vocês estão a caminho — informou o gênio.

— Em quê?

Alguma coisa na maneira como o gênio hesitou fez a mente de Nijel saltar para uma conclusão improvável. Ele olhou a lâmpada em suas mãos. Experimentou dar uma sacudidela. O chão tremeu.

— Ah, não — lamentou. — É fisicamente impossível.

— Estamos dentro da lâmpada? — surpreendeu-se Conina.

O lugar tremeu novamente quando Nijel tentou espiar pelo gargalo.

— Não se preocupem — garantiu o gênio. — Aliás, tentem não pensar nisso.

Ele explicou — embora “explicou” provavelmente seja uma palavra positiva demais e, nesse caso, realmente signifique que “só conseguiu explicar até certo ponto” — que era perfeitamente possível viajar mundo afora numa pequena lâmpada, sendo carregada por uma pessoa do grupo, com a própria lâmpada se mexendo, por estar sendo levada ali dentro, por causa: a) da natureza fractal da realidade, o que significa que se pode pensar em tudo como estando dentro de tudo o mais, e b) de um marketing criativo. O truque dependia do fato de as leis da física não detectarem a irregularidade até o fim da viagem.

— Então, é melhor não pensar a respeito, sim? — pediu o gênio.

— Como não pensar em rinocerontes cor-de-rosa — disse Nijel, e soltou uma risada constrangida quando todos olharam para ele.

— Era meio uma brincadeira que a gente fazia — justificou o rapaz. — Não podia pensar em rinocerontes cor-de-rosa. — Ele tossiu. — Eu não falei que era uma brincadeira maravilhosa.

E espiou novamente pelo gargalo.

— Não — disse Conina. — Não parece.

— Bem — interveio o gênio. — Alguém quer café? Música? Uma partida rápida de Procura Essencial? (. Jogo muito popular entre deuses, semideuses, demônios e outros seres sobrenaturais, que se sentem à vontade com perguntas como “Qual é o sentido de tudo?” e “Como tudo acabará?”).

— Bebida? — propôs Creosoto.

— Vinho branco?

— Uma droga.

O gênio pareceu chocado.

— Tinto é ruim para… — começou.

— Mas em tempestade vale qualquer porto — apressou-se em corrigir Creosoto. — Até sidra. Mas sem guarda-sol.

Ocorreu ao xerinfe que aquilo não era jeito de falar com um gênio. Ele se empertigou um pouco.

— Sem guarda-sol, pelas Cinco Luas de Nasreem. Nem pedaços de fruta, azeitonas, canudos dobrados ou macacos de enfeite, peço a ti pelas Dezessete Sideritas de Sarudin.

— Não sou de botar guarda-sol em bebida — irritou-se o gênio.

— E bem espaçoso, aqui — notou Conina. — Por que você não mobília?

— O que eu não entendo — disse Nijel — é que, se estamos todos na lâmpada que venho segurando, então o eu da lâmpada está segurando uma lâmpada menor e, nessa lâmpada…

O gênio sacudiu as mãos.

— Não fale isso! — exasperou-se. — Por favor!

Nijel franziu a testa.

— Tudo bem — assentiu. — Mas, então, há muitos de mim?

— É cíclico, mas agora pare de chamar a atenção para isso… Ah, droga.

Ouviu-se o ruído sutil e desagradável do universo, de repente, se dando conta do fato.


Estava escuro na torre. Um breu antigo que se encontrava ali desde a aurora dos tempos e que não gostou nada da intrusão da luz diurna, impregnada ao redor de Rincewind.

Ele sentiu o ar mexer quando a porta se fechou. E a escuridão voltou, preenchendo com tamanha perfeição o espaço onde a luz estivera que não veríamos a junção, mesmo se a luz ainda estivesse ali.

O interior da torre cheirava a coisa antiga, com leve indício de excremento de corvo. Era preciso muita coragem para ficar ali dentro, no escuro. Rincewind não tinha essa coragem, mas ficou assim mesmo.

Alguma coisa começou a lhe cheirar os pés, mas o mago continuou imóvel. O único motivo de não ter se mexido era o medo de acabar pisando em algo pior.

Então, com muita delicadeza, uma grande mão, feito luva velha de couro, tocou a sua, e alguém disse:

— Oook.

Rincewind ergueu os olhos.

A escuridão cedeu a um clarão forte. E Rincewind viu.

Toda a torre estava abarrotada de livros. Eles se comprimiam em cada um dos degraus da apodrecida escada em caracol que serpenteava no interior. Estavam empilhados no chão, embora algo no modo como se empilhavam sugerisse que a palavra “amontoados” seria mais apropriada. Dispunham — se — tudo bem, empoleiravam-se — em cada uma das saliências putrefatas.

E observavam o mago de um jeito velado que não tinha nada a ver com os seis sentidos comuns. Os livros são ótimos para transmitir significado. Claro que não necessariamente seu próprio significado, e Rincewind entendeu que vinham tentando lhe dizer alguma coisa.

Houve outro clarão. Ele sabia que era a magia da torre da fonticeria, refletida no distante buraco do teto.

Pelo menos, permitiu que identificasse Wuffles, farejando seu pé direito. Foi um certo alívio. Mas se conseguisse dar nome ao ruído baixo e repetitivo, próximo à orelha esquerda…

Houve mais um clarão providencial, que o pegou fitando os olhinhos amarelos do Patrício, a arranhar pacientemente a lateral do vidro onde estava. Era uma raspagem leve, indiferente, como se o lagarto não estivesse propriamente tentando sair, mas apenas interessado em ver quanto tempo levaria para desgastar o vidro.

Rincewind fitou o bibliotecário.

— Há milhares! — sussurrou, a voz abafada pelas fileiras maciças de livros. — Como os trouxe para cá?

— Oook, oook.

— Eles o quê?

— Oook — repetiu o bibliotecário, agitando os cotovelos.

— Voaram?

— Oook.

— Eles sabem?

— Oook — confirmou o bibliotecário.

— Deve ter sido incrível. Eu adoraria ver.

— Oook.

Nem todos os livros haviam conseguido. A maioria dos importantes tinha saído, mas um herbário de sete volumes perdera seu índice entre as chamas, e uma das muitas trilogias estava de luto pelo volume desaparecido. Alguns livros apresentavam queimaduras, outros haviam perdido a capa e arrastavam linhas pelo chão.

Riscou-se um fósforo, e algumas páginas se agitaram nas paredes. Mas era apenas o bibliotecário, que acendeu uma vela e seguiu adiante, a base de uma sombra ameaçadora, grande o bastante para escalar arranha-céus. Ele havia armado uma mesa tosca contra a parede, e ela estava coberta de ferramentas secretas, potes de raras substâncias adesivas e também um torno de encadernador, que já trazia um fólio ferido. Alguns raios fracos de magia cruzavam o livro.

O macaco entregou o candelabro para Rincewind e pegou um bisturi e uma pinça. Em seguida, inclinou sobre o trêmulo volume. Rincewind ficou pálido.

— Hã… — disse. — Será que posso me afastar? Eu desmaio quando vejo cola.

O bibliotecário sacudiu a cabeça e apontou o polegar para uma bandeja de ferramentas.

— Oook — ordenou.

Em desalento, Rincewind assentiu e, obedientemente, passou-lhe uma tesoura comprida. E se encolheu quando duas páginas danificadas foram arrancadas e jogadas no chão.

— O que está fazendo com ele? — conseguiu perguntar.

— Oook.

— Apendectomia? Ah.

O macaco novamente estendeu o polegar, sem erguer as vistas. Rincewind pegou agulha e linha na bandeja, e entregou a ele. Sobreveio o silêncio, quebrado apenas pelo ruído da linha sendo puxada no papel, até que o bibliotecário se endireitou e disse:

— Oook.

— Não há de quê. Ele… vai ficar bem?

O bibliotecário assentiu. Houve um suspiro quase inaudível de alívio, na fileira de livros acima.

Rincewind sentou-se. Os livros estavam assustados. Na verdade, estavam apavorados. A presença do fonticeiro lhes dava frio na lombada, e a pressão da atenção deles se fechava sobre o mago como um torninho.

— Tudo bem — murmurou ele. — Mas o que eu posso fazer?

— Oook.

O bibliotecário dirigiu a Rincewind um olhar que teria sido exatamente o olhar irônico que se dá por cima de óculos em meia-lua, se estivesse usando óculos em meia-lua, e pegou outro livro.

— Quer dizer, você sabe que eu não sou bom em magia.

— Oook.

— A fonticeria que corre por aí é terrível. E o troço primitivo, lá da aurora dos tempos. Ou, pelo menos, por volta do café-da-manhã.

— Oook.

— Vai destruir tudo, não vai?

— Oook.

— Já é hora de alguém dar um fim a essa fonticeria, não é?

— Oook.

— Só que não pode ser eu. Quando vim para cá, pensei que pudesse fazer alguma coisa, mas aquela torre é enorme! Deve ser à prova de qualquer tipo de magia. Se os magos realmente poderosos não fazem nada a respeito, como é que eu poderia?

— Oook — concordou o bibliotecário, costurando uma lombada partida.

— Acho que alguma outra pessoa deve salvar o mundo, desta vez. Eu não sou bom nisso.

O bibliotecário assentiu, estendeu o braço e tirou o chapéu de Rincewind de sua cabeça.

— Ei! O macaco ignorou-o e pegou uma tesoura.

— Olhe aqui, esse chapéu é meu. Não ouse fazer isso no meu… Ele deu um salto e foi recompensado com um baque na lateral da cabeça, o que o teria deixado perplexo se tivesse tempo para pensar no assunto. O bibliotecário podia parecer um balão trôpego e benévolo, mas, por baixo de toda aquela pele, havia uma estrutura muito bem equilibrada de ossos e músculos, capaz de lançar um punho de dedos calejados através de uma prancha de grossa de madeira. madeira. Chocar-se contra o braço do bibliotecário era como bater numa barra peluda de ferro.

Wuffles começou a pular, latindo de animação.

Rincewind soltou um grito rouco e intraduzível de raiva, suspendeu uma pedra caída como se fosse um porrete, deu alguns passos adiante e ficou completamente imóvel.

O bibliotecário estava agachado, com a tesoura tocando — mas ainda não cortando — o chapéu.

E sorria para Rincewind.

Durante alguns segundos, os dois ficaram parados, como num quadro. O macaco largou a tesoura, limpou várias manchas de poeira imaginária do chapéu, endireitou a ponta e colocou-o na cabeça de Rincewind.

Alguns instantes de pânico depois, Rincewind se deu conta de que estava segurando uma pedra imensa e terrivelmente pesada. Conseguiu jogá-la para o lado antes que ela se recobrasse do susto e lembrasse de cair sobre ele.

— Entendi — disse o mago, encostando-se na parede e massageando o cotovelo. — Tudo isso é para me dizer alguma coisa, não é? Uma lição de moral, para que Rincewind confronte a si mesmo, para que descubra aquilo por que está realmente preparado para lutar. Hein? Foi um truque muito baixo. E vou lhe dizer uma coisa. Se acha que funcionou… — ele segurou a aba do chapéu — se acha que funcionou… Se você acha que eu… Escute aqui… Se acha…

A voz se perdeu no silêncio. Ele encolheu os ombros.

— Tudo bem. Mas o que eu poderia fazer?

O bibliotecário respondeu com um gesto amplo, a sugerir, tão claramente como se houvesse dito “oook”, que Rincewind tinha o chapéu, a biblioteca de livros mágicos e a torre. Isso poderia ser considerado tudo de que um mago necessitava. O macaco, o pequeno terrier com mau hálito e o lagarto no vidro eram extras opcionais.

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