O Restaurante do fim do Universo [Douglas Adams]


Tradução: Aguinaldo Anselmo

editora brasiliense

1987

Copyright© Douglas Adams, 1980. Publicado

em 1980 por Pan Books Lld.

Título original:

The restaurant at the end of the Universe.

Indicação editorial: Geraldo Galvão Ferraz

Revisão:

Mário R. Q. Moraes


A Jane e James

com muitos agradecimentos

a Geoffrey Perkins por realizar o Improvável

a Paddy Kingsland, Lisa Braun e Alick Hale Munro

por o ajudarem

a John Lloyd por sua ajuda com o scritp original dos Milliways a Simon Brett por começar a coisa toda ao álbum de Paul Simon One Trick Pony que toquei incessantemente enquanto escrevia este livro.

Cinco anos é tempo demais

E com agradecimentos muito especiais a Jacqui Graham por infinita paciência, bondade e comida nas adversidades


Há uma teoria que diz que se um dia alguém descobrir exatamente qual é o propósito do Universo e por que ele está aqui, ele desaparecerá

instantaneamente e será substituído por algo ainda mais bizarro e inexplicável.

Há uma outra teoria que diz que isso já aconteceu.

CAPITULO 1

A estória até aqui:

No princípio o Universo foi criado.

Isso irritou muitas pessoas e foi amplamente encarado como um passo errado.

Muitas raças acreditam que ele tenha sido criado por alguma espécie de deus, embora os Jatravartids, habitantes de Viltvodle VI, acreditem que o Universo inteiro escorreu do nariz de um ser chamado Grande Resfriado Verde. Os Jatravartids, que vivem sob o medo perpétuo do tempo que chamam de Vinda do Grande Lenço Branco, são pequenas criaturas azuis com mais de cinqüenta braços cada, o que os torna um povo singular, por ter sido o único na história a inventar o desodorante aerossol antes da roda. A Teoria do Grande Resfriado Verde, no entanto, não é amplamente aceita fora de Viltvodle VI e assim, sendo o Universo o enigmático lugar que é, outras explicações vivem sendo procuradas.

Por

exemplo,

uma

raça

de

seres

pandimensionais

hiperinteligentes

construiu certa vez um supercomputador gigantesco chamado Pensador Profundo para calcular de uma vez por todas a Resposta à Questão Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo.

Por sete milhões e meio de anos, Pensador Profundo computou e calculou, e por fim anunciou que a resposta de fato era Quarenta-e-dois — e assim outro computador ainda maior teve que ser construído para descobrir qual era a pergunta afinal.

E esse computador, que foi chamado de Terra, era tão grande que era frequentemente confundido com um planeta — especialmente pelos estranhos seres parecidos com macacos que perambulavam por sua superfície, totalmente ignorantes do fato de que eram simplesmente parte de um gigantesco programa de computador.

O que é muito estranho, pois sem o conhecimento desse fato básico e razoavelmente óbvio, nada do que acontecia na Terra poderia fazer o menor sentido.

Infelizmente, porém, pouco antes do momento crítico da conclusão do programa e leitura do resultado, a Terra foi inesperadamente demolida pelos vogons para dar lugar — era o que alegavam — a uma via expressa interestelar, e assim qualquer esperança de descoberta de um sentido para a vida se perdeu para sempre.

Ou era o que parecia.

Duas dessas estranhas criaturas parecidas com macacos sobreviveram. Arthur Dent escapou no último minuto graças a um velho amigo seu, Ford Prefect, que de repente se revelou proveniente de um pequeno planeta em algum lugar nas redondezas de Betelgeuse, e não de Guildford, como vinha alegando até então; e o que vinha mais ao caso, sabia pegar carona em discos voadores.

Tricia McMillan — ou Trillian — tinha dado o fora do planeta seis meses antes com Zaphod Beeblebrox, o então Presidente da Galáxia. Dois sobreviventes.

São tudo o que resta da maior experiência já conduzida — para descobrir a Questão Fundamental e a Resposta Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo. E a menos de meio milhão de quilômetros de onde sua nave espacial desliza suavemente através da escuridão do espaço, uma nave vogon move-se lentamente em direção a eles.


CAPITULO 2

Como toda nave vogon, esta parecia mais uma matéria amorfa coagulada do que

fruto

de

um

projeto.

Os

desagradáveis

caroços

amarelos

e

as

protuberâncias que se estendiam em ângulos repugnantes sobre ela teriam desfigurado a aparência da maioria das espaçonaves, mas neste caso isso era tristemente impossível. Coisas mais feias já foram vistas pelos céus, mas não por testemunhas confiáveis.

Na verdade, para ver algo bem mais feio que uma nave vogon, você teria que ir lá dentro e olhar para um vogon. Se você for esperto, porém, isso é

precisamente o que você vai evitar, porque um vogon comum não vai pensar duas vezes antes de lhe fazer alto tão terrivelmente hediondo que você vai desejar nunca ter nascido — ou (se você for uma pessoa mais esclarecida) que o vogon nunca tivesse nascido.

Na verdade, um vogon comum provavelmente não ia pensar nem uma única vez. São criaturas burras, de pensamento curto, cérebros de lesma, e pensar não é

exatamente algo para que tenham aptidão especial. Uma análise anatômica de um vogon revela que seu cérebro era originalmente um fígado dispéptico deformado, fora de lugar. A coisa mais simpática que se pode dizer a respeito deles, portanto, é que sabem do que gostam, o que geralmente envolve ferir pessoas e, sempre que possível, zangar-se muito. Uma coisa de que não gostam é deixar um trabalho por terminar — este vogon, em particular, e — por diversas razões — este trabalho em particular. Este vogon era o Capitão Prostetnic Vogon Jeltz, do Conselho de Planejamento do Hiperespaço Galáctico, e tinha sido ele o responsável pela demolição do assim chamado "planeta" Terra.

Suspendeu seu corpo monumentalmente vil de sua cadeirinha desajeitada e observou a tela do monitor em que a espaçonave Coração de Ouro estava constantemente focalizada.

Pouco lhe importava que a Coração de Ouro, que era movida a Improbabilidade Infinita, fosse a mais bela e revolucionária nave já

construída. Estética e tecnologia eram livros fechados para ele e, se fosse o caso, livros queimados e enterrados também.

Importava-lhe ainda menos que Zaphod Beeblebrox estivesse a bordo. Zaphod Beeblebrox era agora o ex-Presidente da Galáxia, e embora todas as forças policiais da Galáxia estivessem nesse momento na perseguição tanto dele quanto da nave que ele tinha roubado, o vogon não estava interessado. Seu problema era outro.

Diz-se que os vogons não estão acima de um pouco de suborno e corrupção da mesma forma que o mar não está acima das nuvens, o que era certamente verdadeiro no caso dele. Quando ouvia expressões como "integridade" ou

"retidão moral", corria para o dicionário, e quando ouvia o tilintar de dinheiro fácil em grande quantidade corria para o livro de regras e o jogava no lixo.

Ao esforçar-se tão implacavelmente pela destruição da Terra e do que havia nela, estava agindo um pouco acima e além de seu dever profissional. Havia inclusive alguma dúvida sobre se a tal via expressa ia ser mesmo construída, mas fizeram vista grossa para esse assunto.

Grunhiu um grunhido repelente de satisfação.

— Computador — grasnou —, ponha-me em contato com meu terapeuta cerebral. Dentro de poucos segundos o rosto de Gag Halfrunt apareceu na tela, com o sorriso de um homem que sabia estar a dez anos-luz de distância da cara do vogon que estava vendo. Misturando no sorriso havia também um toque de ironia. Embora o vogon persistisse em chamá-lo de "meu terapeuta cerebral" não havia cérebro bastante para ser tratado, e na verdade era Halfrunt que tinha contratado o vogon. Estava lhe pagando uma incrível soma de dinheiro para fazer um serviço bem sujo. Como um dos mais proeminentes e bemsucedidos psiquiatras da Galáxia, ele e um grupo de colegas estavam totalmente preparados e dispostos a gastar uma incrível soma de dinheiro quando todo o futuro da psiquiatria parecia estar em jogo.

— Bem — disse ele —, olá, meu Prostetnic, Capitão dos Vogons, como estamos nos sentindo hoje?

O capitão vogon lhe contou que nas últimas poucas horas tinha exterminado quase metade de sua tripulação num exercício disciplinar. O sorriso de Halfrunt permaneceu inalterado por um instante.

— Bem — disse ele —, creio que este é um comportamento perfeitamente normal para um vogon, sabe? O hábito natural e saudável de canalizar os instintos agressivos através de atos de violência sem sentido.

— Isso — resmungou o vogon — é o que você sempre diz.

— Outra vez bem — disse Halfrunt —, creio que este é um comportamento perfeitamente normal para um psiquiatra. Bom. Estamos ambos claramente muito bem ajustados em nossas atitudes mentais hoje. Agora conte-me, quais as notícias da missão?

— Localizamos a espaçonave.

— Maravilhoso — disse Halfrunt —, maravilhoso! E os ocupantes?

— O terráqueo está lá.

— Excelente! E...?

— Uma fêmea do mesmo planeta. São os últimos.

— Bom, muito bom — Halfrunt estava radiante. — Quem mais?

— OtalPrefect.

— Ê?

— E Zaphod Beeblebrox.

Por um instante o sorriso de Halfrunt se alterou.

— Ah, sim — disse ele —, eu esperava por isso. É realmente uma pena.

— Um amigo pessoal? — inquiriu o vogon, que tinha ouvido essa expressão em algum lugar e resolveu experimentá-la.

— Ah, não — disse Halfrunt —, em minha profissão, sabe, não fazemos amigos pessoais.

— Ah — grunhiu o vogon —, neutralidade profissional.

— Não — disse Halfrunt alegremente —, é só que a gente não tem jeito para essas coisas.

Fez uma pausa. Continuava sorrindo, mas franziu um pouco as sobrancelhas.

— Mas Beeblebrox, sabe, é um dos meus clientes mais lucrativos. Ele tem problemas de personalidade que ultrapassam os sonhos de qualquer analista. Entreteve-se um pouco com essa ideia antes de abandoná-la relutantemente.

— De qualquer forma — disse —, você está preparado para sua tarefa?

— Estou.

— Muito bem. Destrua a nave imediatamente.

— E Beeblebrox?

— Bom — disse Halfrunt com vivacidade—, Zaphod é só um cara, sabe?

Ele sumiu da tela.

O capitão vogon apertou um botão de comunicação que o colocava em contato com o que restava de sua tripulação.

— Atacar — disse.

Nesse exato instante Zaphod Beeblebrox estava em sua cabine xingando muito alto. Duas horas antes ele tinha dito que iam dar uma passada para comer qualquer coisa no Restaurante do Fim do Universo, quando teve um desentendimento caloroso com o computador da nave e foi explodindo para sua cabine gritando que ia calcular os fatores de Improbabilidade na ponta do lápis.

O Motor a Improbabilidade da Coração de Ouro a tornava a nave mais poderosa e imprevisível que jamais existira. Não havia nada que ela não pudesse fazer, contanto que se soubesse o quanto exatamente era improvável acontecer a coisa que se queria que ela fizesse.

Ele a tinha roubado quando, como Presidente, estava incumbido de inaugurá-la. Não sabia exatamente por que a tinha roubado, exceto que gostava dela.

Não sabia por que se tornara Presidente da Galáxia, exceto que era uma coisa divertida de ser.

O que ele sabia era que havia motivos melhores do que esses, mas que estavam enterrados na obscura seção trancafiada de seus dois cérebros. Ele gostaria que a obscura seção trancafiada de seus dois cérebros desaparecesse porque ela vinha momentaneamente à tona e colocava pensamentos estranhos nas seções iluminadas e divertidas de sua mente e tentava desviá-lo daquilo que ele considerava como sendo a ocupação principal de sua vida, que era esbaldar-se magnificamente.

Nesse momento ele não estava se esbaldando magnificamente. Já não tinha mais paciência nem lápis e estava com muita fome.

— Porra estelar! — exclamou.

Nesse mesmo exato instante, Ford Prefect estava suspenso no ar. Não que algo estivesse errado com o campo gravitacional artificial da nave, mas porque ele estava saltando da escada que levava às cabines individuais da nave. Era um pulo considerável, e ele chegou ao chão de maneira desajeitada, tropeçou, recobrou o equilíbrio, correu pelo corredor chutando para o espaço alguns robôs miniatura, derrapou quando virou no canto, entrando de supetão na cabine de Zaphod, e explicou o que tinha em mente.

— Vogons — disse ele.

Pouco antes disso Arthur Dent tinha saído de sua cabine para pegar um chá. Não era uma busca que ele empreendesse com otimismo, porque ele sabia que a única fonte de bebidas quentes em toda a nave era uma máquina ignorante produzida pela Companhia Cibernética de Sírius. Chamava-se Sintetizadora Nutrimática de bebidas, e ele já tinha tido contato com ela antes.

Dizia-se capaz de produzir a mais ampla variedade de bebidas, adaptadas individualmente ao paladar e ao metabolismo de quem quer que se aventurasse a utilizar-se dela. Quando posta para funcionar, no entanto, invariavelmente produzia uma xícara de plástico cheia de um líquido quase, mas não totalmente, inteiramente diferente do chá.

Tentou entrar em acordo com a máquina.

— Chá — disse ele.

— Sirva-se e aproveite — retrucou a máquina, servindo-lhe uma xícara do líquido insípido.

Ele a lançou longe.

— Sirva-se e aproveite — repetiu a máquina, produzindo mais uma xícara.

"Sirva-se e aproveite" era o lema da imensamente bem-sucedida divisão de reclamações da Companhia Cibernética de Sírius, que cobre atualmente as massas continentais de três planetas de tamanho médio e é a única parte da companhia que tem mostrado lucros consistentes nos últimos anos. Esse lema está escrito — ou melhor, estava — em letras luminosas de dois quilómetros de altura, perto do porto espacial do Departamento de Reclamações de Eadrax. Infelizmente o peso delas era tal que pouco depois de serem erigidas o chão abaixo delas cedeu, de forma que as letras afundaram na metade do seu comprimento, atravessando os escritórios de vários jovens executivos de reclamações — agora falecidos.

A metade saliente que ficou das letras agora parece dizer — na língua local — "Vá lamber sabão", e não está mais iluminada, a não ser em ocasiões especiais.

Arthur jogou fora a sexta xícara do líquido.

— Escuta, máquina — disse ele —, você diz que pode sintetizar qualquer bebida no universo, então por que fica me dando sempre essa coisa imbebível?

— Processamento de informação de paladar e nutrição — balbuciou a máquina. — Sirva-se e aproveite.

— O gosto é nojento.

— Se você gostou de experimentar essa bebida — prosseguiu a máquina — por que não compartilha esse prazer com os amigos?

— Porque — disse Arthur, mordaz — quero que continuem meus amigos. Tente entender o que eu estou tentando dizer. Essa bebida...

— Essa bebida — disse docemente a máquina — foi confeccionada individualmente para satisfazer suas necessidades pessoais de sabor e nutrição.

— Ah — disse Arthur — quer dizer que eu sou um masoquista de dieta?

— Sirva-se e aproveite.

— Ah, cala a boca.

— Está satisfeito? Arthur decidiu desistir.

— Estou — respondeu.

Aí ele resolveu que não ia desistir não, de jeito nenhum.

— Não — disse ele. — Olha, é muito simples, muito mesmo... tudo o que eu quero... é uma xícara de chá. Você vai fazer isso para mim. Fique quieta e escute.

Ele se sentou. Falou à Nutrimática sobre a índia, falou sobre a China, falou sobre o Ceilão. Falou de folhas estendidas secando ao sol. Falou de bules de prata. Falou dos gramados nas tardes de domingo. Falou de como se coloca o leite antes do chá para não talhar. Falou até (brevemente) sobre a história da Companhia das índias Orientais.

— Então é isso? — disse a Nutrimática quando ele terminou de falar.

— É — disse Arthur —, é isso que eu quero.

— Você quer o sabor de folhas secas fervidas em água?

— Bom, é. Com leite.

— Esguichado de uma vaca?

— De certo modo, é uma maneira de dizer, eu acho...

— Vou precisar de uma mãozinha para isso — disse a máquina sucintamente. Aquele balbucio animado tinha desaparecido de seu tom de voz, e ela falava de trabalho agora.

— No que eu puder ajudar... — disse Arthur.

— Você já fez o bastante — informou-lhe a Nutrimática.

Ela convocou o computador da espaçonave.

— Oi, gente! — disse o computador da espaçonave. A Nutrimática explicou ao computador da espaçonave a respeito do chá. O computador hesitou e então juntou seus circuitos lógicos aos da Nutrimática e juntos penetraram num silêncio severo.

Arthur ficou observando, à espera de alguma coisa por alguns instantes, mas nada mais aconteceu.

Deu uma pancada na máquina, e nada.

A uma certa altura desistiu e subiu à ponte de comando.

Nas imensidões vazias do espaço, a nave Coração de Ouro flutuava estacionária. A seu redor ardiam os bilhões de pontinhos luminosos da Galáxia. Em sua direção arrastava-se a horrenda massa amarela da nave vogon.


CAPITULO 3

— Alguém tem uma chaleira? — perguntou Arthur entrando na ponte de comando, e instantaneamente começou a se perguntar por que Trillian estava gritando com o computador para falar com ela, Ford estava espancando-o e Zaphod dando chutes, e também por que havia uma protuberância amarela asquerosa no visor.

Largou a xícara vazia que estava carregando e foi falar com eles.

— Olá — disse.

Nesse momento Zaphod arremessou-se sobre a superfície de mármore que continha os instrumentos que controlavam o motor convencional a fótons. Eles materializaram-se em suas mãos e ele virou a alavanca para controle manual. Empurrou, puxou, apertou e gritou impropérios. O motor a fótons deu uma sacudida fraca e morreu de novo.

— Algum problema? — disse Arthur.

— Ei! Ouviram essa? — resmungou Zaphod ao mesmo tempo que corria para os controles manuais do motor a Improbabilidade Infinita. — O macaco falou!

O motor a Improbabilidade zuniu duas vezes e também morreu.

Um

acontecimento,

cara

disse

Zaphod,

chutando

o

motor

a

Improbabilidade. — Um macaco que fala!

— Se você está chateado com alguma coisa... — disse Arthur.

— Vogons! — gritou Ford. — Estamos sendo atacados!

Arthur estremeceu.

— E o que a gente está esperando? Vamos dar o fora daqui!

— Não dá. O computador enguiçou.

— Enguiçou?

— Está dizendo que todos os circuitos estão ocupados. Não há energia em nenhum ponto da nave.

Ford afastou-se do terminal do computador, enxugou a testa com a manga da camisa e recostou-se contra a parede.

— Nada que a gente possa fazer — disse. Olhou para o nada e mordeu os lábios.

Quando Arthur era garoto, na escola, muito antes de a Terra ser destruída, ele costumava jogar futebol. Não era bom nisso de jeito nenhum, e sua especialidade era marcar gols contra em partidas importantes. Sempre que isso acontecia, experimentava a peculiar sensação de um formigamento ao redor da nuca, que subia lentamente pelas faces, até atingir-lhe o cenho. A imagem de terra e grama e um monte de garotinhos zombeteiros pulando para cima dele veio-lhe vívida à cabeça nesse momento.

Uma peculiar sensação de formigamento ao redor da nuca subiu lentamente pelas faces até atingir-lhe o cenho.

Começou a falar, e parou.

Começou a falar de novo, e parou de novo.

Por fim conseguiu falar.

— Ahn — disse ele. Limpou a garganta.

— Diga-me — prosseguiu, tão nervoso que todos os outros voltaram-se e se puseram a observá-lo. Ele deu uma olhada para a bolha amarela que se aproximava no visor.

— Diga-me — disse mais uma vez. — O computador chegou a dizer o que o estava mantendo ocupado? Estou perguntando só por perguntar... Zaphod estendeu uma das mãos e segurou Arthur pela nuca.

— O que foi que você fez, homem-macaco? — perguntou, ofegante.

— Bom — disse Arthur —, nada, na verdade. É só que agora há pouco eu estava tentando dar um jeito de conseguir. ..

— O quê?

— Fazer um chá.

— É isso aí, pessoal — disse o computador de repente. — Estou lutando com esse problema agora mesmo, e, puxa vida, é dos grandes! Falo com vocês mais tarde, — Mergulhou novamente num silêncio que só era igualado em intensidade pelo silêncio das três pessoas que olhavam para Arthur Dent. Como que para aliviar a tensão, os vogons escolheram esse momento para começar a atirar.

A nave sacolejava e retumbava. Do lado de fora, o campo de força de uma polegada de grossura que a envolvia encheu-se de bolhas, estalou e trincou sob o bombardeio de uma dúzia de Canhões Fotrazônicos Morte-Certa de 30

megalesões, e não parecia que ia agüentar por muito tempo. Quatro minutos foi quanto Ford Prefect avaliou.

— Três minutos e cinqüenta segundos — disse ele pouco depois.

— Quarenta-e-cinco segundos — acrescentou, na hora apropriada. Mexeu em vão em alguns botões inúteis, e dirigiu um olhar hostil a Arthur.

— Morrer por uma xícara de chá, ehn? — disse. — Três minutos e quarenta segundos.

— Você não vai parar de contar? — resmungou Zaphod.

— Vou — disse Ford Prefect. — Dentro de três minutos e trinta-e-cinco segundos.

A bordo da nave vogon, Prostetnic Vogon Jeltz estava confuso. Estava esperando uma caçada, um engalfinha-mento de raios de tração, estava esperando ter que usar o Assegurador Subcíclico de Normalidade especialmente instalado para combater o motor a Improbabilidade Infinita da nave Coração de Ouro; mas o Assegurador Subcíclico de Normalidade permanecia inativo enquanto a nave Coração de Ouro ficava ali parada, apanhando. Uma dúzia de Canhões Fotrazônicos Morte-Certa de 30 megalesões mantinha fogo contra a Coração de Ouro, e mesmo assim ela ficava ali parada, apanhando.

Testou cada um dos sensores em seu painel para ver se não havia algum truque sutil na jogada, mas nenhum truque sutil era detectado. Ele não sabia do chá, é claro.

Também não sabia como os ocupantes da nave Coração de Ouro estavam passando os três últimos minutos e trinta segundos de vida que tinham para passar.

Como exatamente Zaphod Beeblebrox chegou à idéia de fazer uma sessão espírita a essa altura é algo que ele nunca entendeu muito claramente. Obviamente o assunto morte estava no ar, mas mais como algo que devia ser evitado do que comentado repetidamente.

Possivelmente o horror que Zaphod sentia diante da idéia de reunir-se a seus parentes falecidos levou-o à idéia de que eles talvez sentissem o mesmo a seu respeito, e mais que isso, fossem capazes de fazer algo que ajudasse a adiar a reunião.

Ou talvez fosse de novo uma das estranhas inspirações que ocasionalmente vinham à tona provenientes da área obscura de sua mente, que ele tinha trancafiado inexplicavelmente antes de tornar-se Presidente da Galáxia.

— Você quer falar com seu bisavô? — perguntou Ford, espantado.

— Quero.

— Tem que ser agora?

A nave continuava sacolejando e retumbando. A temperatura aumentava. As luzes diminuíam — toda a energia que o computador não utilizava para pensar no chá estava sendo bombeada para o campo de força que estava rapidamente desaparecendo.

— Tem! — insistiu Zaphod. — Escuta, Ford, estou pensando que ele talvez possa nos ajudar.

— Tem certeza que o termo é pensando? Escolha as palavras com cuidado.

— Sugira outra coisa que a gente possa fazer.

— Ahn, bom...

— OK, todo mundo em volta do painel central! Já!. Venham! Trillian, homem-macaco, mexam-se!

Agruparam-se em torno do painel de controle central, confusos, sentaramse e, sentindo-se excepcionalmente babacas, deram-se as mãos. Com sua terceira mão, Zaphod apagou as luzes.

A escuridão tomou conta da nave.

Lá fora o rugido tonitroante dos canhões Morte-Certa continuava a ecoar no campo de força.

— Concentrem-se — sussurrou Zaphod — no nome dele.

— Qual é? — perguntou Arthur.

— Zaphod Beeblebrox Quarto.

— O que?

— Zaphod Beeblebrox Quarto. Concentrem-se!

— Quarto?

— É. Escuta, eu sou Zaphod Beeblebrox, meu pai era Zaphod Beeblebrox Segundo, meu avô, Zaphod Beeblebrox Terceiro...

— O quê?

— Houve um acidente envolvendo um anticoncepcional e uma máquina do tempo. Agora, concentrem-se!

— Três minutos — disse Ford Prefect.

— Por que — disse Arthur Dent — estamos fazendo isso?

— Cale a boca — sugeriu Zaphod.

Trillian não dizia nada. O que, pensou ela, havia para dizer?

A única luz na ponte de comando vinha de dois triângulos vermelhos num canto distante onde Marvin, o Andróide Paranóide, estava sentado, curvado, ignorando todos e ignorado por todos, num mundo particular privado e um tanto desagradável.

Em torno do painel de controle central quatro figuras estavam debruçadas em rígida concentração, tentando apagar de suas mentes o tremor apavorante da nave e o temível trovoar que ecoava por ela.

Concentraram-se.

Concentraram-se mais.

E concentraram-se mais.

Os segundos corriam.

Gotas de suor brotavam sobre as sobrancelhas de Zaphod, primeiro devido à

concentração, depois à frustração, e por fim ao embaraço. Finalmente, ele deixou escapar um grito furioso, largou as mãos de Trillian e de Ford e golpeou o interruptor de luz.

— Ah, estava começando a achar que vocês nunca iam acender a luz — disse uma voz. — Não, por favor, não muito claro, meus olhos não são mais os mesmos.

As quatro figuras sacudiram-se nas cadeiras. Viraram lentamente as cabeças para olhar, embora seus couros cabeludos mostrassem uma decidida propensão a ficar no lugar onde estavam.

— Agora, quem é que está me incomodando a essa hora? — disse a pequena figura esquálida e curvada que estava em pé junto aos vasos de samambaia na ponta da ponte de comando. Suas duas cabeças de cabelos ralos pareciam tão velhas como se pudessem guardar vagas lembranças do próprio nascimento das galáxias. Uma cochilava e a outra olhava-os de soslaio. Se seus olhos já não eram os mesmos, então deviam ter sido capazes de cortar diamantes. Zaphod gaguejou de nervoso por um momento. Fez o complexo aceno duplo de cabeças que é o gesto betelgeusiano tradicional de respeito familiar.

— Ah... ahn... oi, Bisavô... — disse, ofegante.

O velhinho moveu-se em direção a eles. Despontou em meio à luz turva. Apontou um dedo ossudo para seu bisneto.

— Ah — disse ele bruscamente —, Zaphod Beeblebrox. O último de nossa estirpe. Zaphod Beeblebrox Nadésimo.

— Primeiro.

— Nadésimo — disse a figura com veemência. Zaphod odiava sua voz. Sempre lhe parecia uma unha arranhando um quadro-negro de algo que ele gostava de pensar como sendo sua alma.

Ajeitou-se incomodamente em sua cadeira.

— Ahn, tá — resmungou. — Ahn, olha, desculpa pelas flores, eu ia mandar, sabe, mas é que não tinha mesmo nenhuma coroa na floricultura e aí...

— Você esqueceu! — cortou Zaphod Beeblebrox Quarto.

— Bom...

— Ocupado demais. Nunca pensa nos outros. Os vivos são todos iguais.

— Dois minutos, Zaphod — sussurrou Ford em tom de respeito. Zaphod estava nervoso e irrequieto.

— É, mas eu tinha intenção de mandá-las — disse. — E também vou escrever para minha bisavó, é só a gente sair dessa...

— Sua bisavó... — murmurou consigo mesmo a esquálida criatura.

— É — disse Zaphod. — Como ela está? Sabe de uma coisa, eu vou fazer uma visita para ela. Mas antes a gente tem que...

— Sua falecida bisavó e eu estamos muito bem, obrigado — ralhou Zaphod Beeblebrox Quarto.

— Ah. Oh.

— Mas muito desapontados com você, Zaphod, meu rapaz...

— Bom, né... — Zaphod sentia-se estranhamente sem poderes de tomar as rédeas da conversa, e a respiração ofegante de Ford a seu lado lhe dizia que o tempo estava correndo. O barulho e o sacolejo tinham assumido proporções assustadoras. Ele viu os rostos de Trillian e de Arthur, pálidos e sem piscar, desalentados.

— Ahn, bisavô...

— Temos acompanhado seu progresso com considerável desânimo...

— Certo, mas olha, é que no momento, entende...

— Para não dizer desprezo!

— Será que não dava para me ouvir um momento...

— Quero dizer, o que exatamente você está fazendo da sua vida?

— Estou sendo atacado por uma esquadra vogon! — gritou Zaphod. Era exagero, mas essa tinha sido sua primeira oportunidade até o momento de tocar na questão básica do encontro.

— Não me surpreende nem um pouco — disse o velho, sacudindo os ombros.

— Só que está acontecendo exatamente neste instante, entende? — insistiu Zaphod fervorosamente.

O ancestral espectral balançou a cabeça, apanhou a xícara que Arthur Dent tinha trazido e a observou com interesse.

— Ahn... bisavô...

— Sabia — interrompeu a figura fantasmagórica, fixando um olhar severo sobre Zaphod — que Betelgeuse V desenvolveu agora uma pequena excentricidade em sua órbita?

Zaphod não sabia e achou difícil concentrar-se na informação com todo aquele barulho, a iminência da morte e essas coisas.

— Bom, não... olha... — disse.

— E eu me virando no túmulo! — berrou o ancestral. Atirou a xícara no chão e apontou um dedo ameaçador para Zaphod.

— Culpa sua! — disse ele, num guincho.

— Um minuto e meio — murmurou Ford, com a cabeça entre as mãos.

— Tá, olha, bisavô, o senhor pode mesmo ajudar, porque...

— Ajudar? — exclamou o velho como se lhe tivessem pedido a coisa mais absurda do mundo.

— É, ajudar, e já, porque senão...

— Ajudar! — repetiu o velho como se lhe tivessem pedido a coisa mais absurda do mundo ao ponto acompanhada de uma porção de batatas fritas. —

Você fica passeando pela Galáxia com seus... — o velho fez um sinal de desprezo — com seus amigos desclassificados, ocupado demais para colocar umas flores no meu túmulo, de plástico que fossem, seria apropriado vindo de você, mas não. Ocupado demais. Moderno demais. Cético demais — até que de repente se encontra numa enrascada e vem todo cheio de boas intenções!

Sacudiu a cabeça, com cuidado para não acordar a outra que estava cochilando.

— Pois bem, não sei, Zaphod, meu jovem — prosseguiu —, acho que vou ter que pensar no assunto.

— Um minuto e dez — disse Ford numa voz cavernosa.

Zaphod Beeblebrox Quarto olhou para ele, curioso.

— Por que esse moço fica falando em números? — perguntou.

— Esses números — disse Zaphod sucintamente — são o tempo que ainda nos resta de vida.

— Ah — disse o bisavô. Falava consigo próprio. — Não se aplica a mim, é

claro — disse ele e foi até um canto menos iluminado da ponte de comando procurando um outro objeto para ficar brincando.

Zaphod sentia-se à beira da loucura, e pensava se não era melhor acabar tudo de uma vez.

— Bisavô — disse ele. — Aplica-se a nós! Nós ainda estamos vivos, e estamos prestes a perder nossas vidas!

— Um belo serviço, também.

— O quê?

— Para que serve a sua vida? Quando penso no que você fez dela a expressão "orelha de porco" me vem irresistivelmente à cabeça.

— Mas eu fui Presidente da Galáxia, cara!

— Oh — murmurou seu antepassado. — E que tipo de trabalho é esse para um Beeblebrox?

— O quê? Apenas o de Presidente, sabe? Da Galáxia inteira!

— Megacachorrinho convencido! Zaphod piscou atordoado.

— Eh, onde é que você está querendo chegar, cara? Diga, bisavô. O velhinho curvado arrastou-se até seu neto e deu-lhe uns tapinhas no joelho. Isso teve o efeito de lembrar Zaphod de que ele estava falando com um fantasma, pois não sentiu nada.

— Você sabe e eu sei o que significa ser Presidente. Zaphod, meu jovem. Você, porque já foi, e eu, porque estou morto, o que me dá um ângulo de visão maravilhosamente desobstruído. Temos aqui em cima um ditado: "A vida é

desperdiçada ao ser vivida".

— Tá bom — disse Zaphod amargamente. — Muito bom. Muito profundo. No momento estou precisando de máximas tanto quanto preciso de buracos nas cabeças.

— Cinqüenta segundos — disse Ford Prefect.

— Onde eu estava? — disse Zaphod Beeblebrox Quarto.

— Dando um sermão — disse Zaphod Beeblebrox.

— Ah, é mesmo.

— Esse cara pode mesmo — sussurrou Ford baixinho para Zaphod — ajudar a gente?

— Ninguém mais pode — respondeu Zaphod num cochicho.

Ford balançou a cabeça, sem esperanças.

— Zaphod! — era o fantasma falando. — Você se tornou Presidente da Galáxia por um motivo. Esqueceu?

— A gente não podia falar sobre isso mais tarde?

— Esqueceu? — insistiu o fantasma.

— É, esqueci! Tinha que esquecer. Eles vasculham seu cérebro quando você

pega esse emprego, sabe. Se eles achassem minha cabeça cheia de idéias sacanas eu estaria na rua sem nada a não ser uma gorda pensão, um secretariado, uma frota de espaçonaves e duas gargantas cortadas.

— Ah — disse o fantasma, sacudindo as cabeças de satisfação. — Então você

se lembra!

Fez uma pausa momentânea.

— Bom — disse ele, e o barulho parou.

— Quarenta-e-oito segundos — disse Ford. Olhou de novo para o relógio e deu umas pancadinhas. Ergueu então o olhar.

— Ei, parou o barulho — disse.

Um brilho malicioso reluziu nos olhinhos do fantasma.

— Eu diminuí a velocidade do tempo por uns instantes — disse —, só por uns instantes, vocês compreendem. Detestaria que vocês perdessem tudo o que eu tenho a dizer.

— Não, escuta aqui, morcego velho — disse Zaphod pulando da cadeira. — A: Obrigado por parar o tempo e essas coisas, jóia, maravilhoso, fantástico, mas B: dispenso o sermão, certo? Não sei que coisa grandiosa é essa a que eu estou destinado, e parece que não é para eu saber. E eu fico indignado com isso, certo? O eu antigo sabia. O eu antigo se preocupava com isso. Tudo bem, até aqui, tudo em cima. Mas acontece que o antigo eu se preocupava tanto que entrou dentro do seu próprio cérebro — meu próprio cérebro — e trancou as partes que sabiam e que se preocupavam, porque se eu soubesse e me preocupasse, não seria capaz de fazê-lo. Não seria capaz de ir ser Presidente, e não seria capaz de roubar esta nave, que deve ser a coisa mais importante. Mas esse meu antigo ego se matou, não, ao mudar meu cérebro? OK, essa era a minha escolha. Este novo eu tem suas próprias escolhas a fazer, e por uma estranha coincidência faz parte dessas escolhas não saber e não me preocupar com essa coisa grandiosa, seja ela qual for. É isso que ele queria, é isso que ele vai ter. A não ser pelo fato de que esse meu velho ego tentou manter-se no controle, deixando ordens na parte do meu cérebro que ele trancou. Pois bem, eu não quero saber, e não quero ouvi-las. Essa é

a minha escolha. Não vou ser fantoche de ninguém, principalmente de mim mesmo.

Zaphod deu um soco furioso no painel, sem notar os olhares atônitos que estava atraindo.

— O velho eu está morto! — exclamou. — Ele se matou! Os mortos não deviam ficar tentando interferir nas questões dos vivos!

— E ainda assim você me evocou para tentar tirá-lo de uma enrascada —

disse o fantasma.

— Ah — disse Zaphod, sentando-se novamente. — Aí é diferente, né?

Dirigiu um sorrisinho sem graça para Trillian.

— Zaphod — disse a aparição em voz áspera —, acho que a única razão de eu estar aqui gastando meu fôlego com você é que estando morto não tenho muito o que fazer com ele.

— OK — disse Zaphod. — Por que você não me conta qual é o grande segredo?

Tente-me.

— Zaphod, você sabia quando era Presidente da Galáxia, assim como também sabia Yooden Vranx antes de você, que o Presidente não é nada. Um zero à

esquerda. Em algum lugar nebuloso por trás de tudo há um outro homem, um ser, algo, com poder definitivo. Esse homem, ou ser, ou algo, você tem que descobrir — o homem que controla esta Galáxia, e — suspeitamos — outras. Talvez todo o Universo.

— Porquê?

— Por quê? — exclamou o fantasma pasmo. — Por quê? Olhe à sua volta, rapaz. Parece-lhe que está tudo em boas mãos?

— Está tudo bem.

O velho fantasma lançou-lhe um olhar ameaçador.

— Não vou discutir com você. Você vai pegar esta nave, a nave movida a Improbabilidade Infinita, e vai simplesmente levá-la até onde ela é

necessária. Você vai fazer isso. Não pense que pode escapar de seu propósito. O Campo de Improbabilidade controla você, você está sob seu domínio. O que é isso?

Ele se referia a Eddie, o Computador da Espaçonave, dando tapinhas em um de seus terminais. Zaphod disse isso a ele.

— O que ele está fazendo?

— Está tentando — disse Zaphod, com um maravilhoso autocontrole — fazer chá.

— Ótimo — disse o bisavô —, eu aprovo. Agora, Zaphod — ele virou-se sacudindo um dedo para ele. — Não sei se você é realmente capaz de sair-se bem no seu trabalho. Acho que você não será capaz de evitá-lo. Porém, já

estou morto há muito tempo e estou cansado demais para ficar me preocupando tanto como já me preocupei. O motivo principal de eu ter ajudado vocês é que eu não podia suportar a idéia de você e esses seus amigos moderninhos largados pelos cantos aqui em cima. Entendeu?

— Entendi. Valeu, obrigado.

— Ah, e, Zaphod...

— Que é?

— Se você alguma vez achar que precisa de ajuda novamente, se tiver algum problema, se precisar de uma mão salvadora num momento difícil...

— Sim?

— Por favor, não hesite em se danar.

Dentro do espaço de um segundo um raio de luz atravessou das mãos secas do velho fantasma até o computador, o fantasma desapareceu, a ponte de comando foi tomada por uma nuvem crepitante de fumaça, e a nave Coração de Ouro saltou através de dimensões desconhecidas do tempo e do espaço.


CAPITULO 4

A dez anos-luz dali, o sorriso de Gag Halfrunt abriu-se mais e mais. Vendo a imagem no seu visor, transmitida pelo subéter da ponte de comando da nave vogon, viu os últimos frangalhos do campo de força da nave Coração de Ouro serem destroçados, e a própria nave desaparecer em fumaça.

— Ótimo — pensou.

O fim dos últimos sobreviventes da demolição do planeta Terra que tinha encomendado, pensou.

O

fim

definitivo

dessa

experiência

perigosa

(para

a

profissão

psiquiátrica) e subversiva (também para a profissão psiquiátrica) para descobrir a Pergunta da Questão Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo, pensou.

Ia festejar essa noite com os colegas, e amanhã de manhã eles encontrariam novamente seus pacientes desnorteados, infelizes e lucrativos, seguros de que o Sentido da Vida não seria revelado agora de uma vez por todas, pensou.

— Essas coisas de família são sempre embaraçosas,

— disse Ford a Zaphod quando a fumaça começou a desvanecer. Ele parou e deu uma olhada à sua volta.

— Cadê o Zaphod? — disse.

Arthur e Trillian olharam à volta, confusos. Estavam pálidos e atrapalhados e não sabiam onde Zaphod estava.

— Marvin! — disse Ford. — Onde está Zaphod? Um momento mais tarde ele disse:

— Onde está Zaphod?

O canto do robô estava vazio.

A nave estava completamente silenciosa. Flutuava na escuridão do espaço. De vez em quando balançava e oscilava. Todos os instrumentos estavam sem funcionar e todos os visores estavam sem funcionar. Consultaram o computador. Ele disse:

— Lamento, mas estou temporariamente fechado para qualquer comunicação. Por enquanto, fiquem com um pouco de música suave.

Eles desligaram a música suave.

Procuraram em cada canto da nave, cada vez mais atônitos e alarmados. Todos os lugares estavam quietos e silenciosos. Não havia em parte alguma qualquer sinal de Zaphod ou de Marvin. Uma das áreas em que procuraram foi o corredorzinho onde ficava a máquina Nutrimática.

Na bandeja da Sintetizadora Nutrimática de Bebidas estavam três xícaras de porcelana, uma jarra de porcelana de leite, uma chaleira de prata contendo o melhor chá que Arthur já tinha experimentado, e um bilhetinho impresso onde estava escrito: "Sirvam-se".


CAPITULO 5

Beta da Ursa Menor é, segundo alguns, um dos lugares mais estarrecedores do Universo conhecido.

Embora seja torturantemente rica, pavorosamente ensolarada e cheia de pessoas magnificamente interessantes, não deixa de ser significativo o fato de que quando uma edição recente da revista Playbeing publicou um artigo com uma manchete que dizia "Quando você está cansado de Beta da Ursa Menor está

cansado da vida" a taxa de suicídios quadruplicou da noite para o dia. Não que haja noites em Beta da Ursa Menor.

É um planeta da zona ocidental que por um capricho inexplicável e algo suspeito da topografia consiste quase inteiramente de litorais subtropicais. Por um capricho igualmente suspeito do tempo, quase sempre é sábado à tarde pouco antes de fecharem os bares da praia.

Nenhuma explicação adequada para. isso pode ser obtida com as formas de vida dominantes de Beta da Ursa Menor, que passam a maior parte do tempo procurando atingir a iluminação espiritual correndo ao redor das piscinas, ou convidando inspetores do Departamento Geo-Temporal da Galáxia a

"compartilharem da agradável anomalia do dia". Há apenas uma cidade em Beta da Ursa Menor, e só é chamada de cidade porque aí as piscinas ficam mais próximas uma das outras do que nos outros lugares.

Se você chegar à Cidade Luz pelo ar — e não há outro meio de chegar, não há estradas nem instalações portuárias — se você não puder voar eles não querem que você veja a Cidade Luz — você vai entender por que ela tem esse nome. Lá o sol brilha mais, refletindo-se nas piscinas, reluzindo nas calçadas brancas com palmeiras, cintilando nos pontinhos bronzeados e saudáveis que passeiam por elas, fulgurando nas chácaras, nos bares da praia e tudo o mais.

Mais particularmente, ele reluz num prédio, um edifício bonito e alto que consiste de duas torres brancas de trinta andares ligadas por uma ponte na metade da altura.

O edifício é a sede de um livro, e foi construído ali com o dinheiro proveniente de um extraordinário processo judicial de copyright disputado entre os editores do livro e uma companhia de cereais para o café da manhã. O livro é um guia, um livro de viagem.

É um dos mais notáveis, certamente dos mais bem-sucedidos livros já

publicados pelas editoras da Ursa Menor

— mais popular do que A Vida Começa aos Quinhentos e Cinqüenta, mais vendido que A Teoria da Explosão Que Deu Origem ao Universo Uma Visão Pessoal de T. Eccentrica Gallumbits (a prostituta de três seios de Eroticon Seis) e mais controvertido do que o último livro arrasador de Oolon Colluphid, Tudo o Que Você Nunca Quis Saber Sobre o Sexo Mas Foi Forçado a Descobrir.

E em muitas das civilizações mais descontraídas da Orla Oriental Exterior da Galáxia, superou há muito tempo a grandiosa Enciclopédia Galáctica como depositário clássico de todo o conhecimento e sabedoria, pois apesar de apresentar muitas omissões e de conter muita coisa apócrifa, ou pelo menos tremendamente inexata, ele supera a outra obra mais antiga e corriqueira em pelo menos dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, é ligeiramente mais barato; em segundo lugar, traz estampada na capa, em letras garrafais e amigáveis, a frase NÃO ENTRE EM PÂNICO.

Trata-se, é claro, do indispensável companheiro de todos que desejam conhecer as maravilhas do Universo conhecido por menos de trinta dólares altairianos por dia — O Mochileiro das Galáxias Guia da Galáxia para Ca- ronas.

Se você se colocasse de costas para o saguão da entrada principal dos escritórios do Guia (presumindo que você já tivesse aterrissado e relaxado com um mergulho rápido e uma ducha) e fosse andando para o leste, você passaria pela sombra das folhagens do Bulevar da Vida, ficaria encantado com o dourado das praias estendendo-se à sua esquerda, espantado com os surfistas mentais flutuando descuidadamente um metro acima das ondas como se isso não fosse nada de especial, surpreso e talvez ligeiramente irritado com as gigantescas palmeiras que assobiam uma falta de melodia durante as horas do dia, ou seja, o tempo todo.

Se você então andasse até o fim do Bulevar da Vida, chegaria ao bairro Lalamantine de lojas, castanheiras e cafés na calçada, onde os ursamenorbetanos vão descansar após uma dura tarde de descanso na praia. O

bairro Lalamantine é uma das poucas áreas que não contam com uma tarde de sábado perpétua — conta, em vez disso, com um perpétuo frescor de um cair da tarde de sábado. Depois desse bairro ficam os clubes noturnos. Se, nesse dia em particular, ou nessa tarde, ou nesse anoitecer — chame como quiser — você chegasse ao segundo café na calçada da direita, você

veria a aglomeração costumeira de ursamenorbetanos batendo papo, bebendo, parecendo muito descontraídos, e olhando como quem não quer nada os relógios uns dos outros para ver quanto teriam custado.

Você veria também uma dupla de mochileiros de aparência um tanto desgrenhada provenientes de Algol que tinham acabado de chegar num megacargueiro arcturano a bordo do qual tinham passado maus bocados por alguns dias. Estavam furiosos e indignados em descobrir que ali, às barbas do prédio do Guia da Galáxia para Caronas, um simples copo de suco de frutas custava o equivalente a mais de sessenta dólares altairianos.

— Traição — disse um deles, amargamente.

Se nesse momento você olhasse então para a outra mesa pulando uma, você

veria Zaphod Beeblebrox sentado, parecendo bastante embaraçado e confuso. O motivo de sua confusão era que cinco segundos antes ele estava sentado na ponte de comando da nave Coração de Ouro.

— Traição absoluta — disse a mesma voz novamente. Zaphod olhava nervosamente com o canto dos olhos para os dois mochileiros desgrenhados na mesa ao lado. Onde é que ele estava? Como tinha ido parar ali? Onde estava sua nave? Apalpou o braço da cadeira em que estava sentado e a mesa à sua frente. Pareciam bastante sólidos. Ele ficou sentado, muito quieto.

— Como eles podem sentar e escrever um guia para mochileiros num lugar como este? — prosseguiu a voz. — Olha só para isso. Olha só!

Zaphod estava olhando só. Lugar agradável, pensou. Mas onde? E por quê?

Procurou seus dois pares de óculos no bolso. Sentiu dentro do bolso um pedaço duro, liso e não-identificado de um metal muito pesado. Ele o pegou e deu uma olhada. Piscou, surpreso. Onde teria arranjado aquilo? Colocou de volta no bolso e pôs os óculos, aborrecido ao descobrir que o objeto metálico tinha riscado uma das lentes. De qualquer forma, sentia-se muito mais

confortável

de

óculos.

Eram

dois

pares

de

Óculos

Escuros

Supercromáticos

Perigo-Sensitivos

Joo

Janta

200,

que

tinham

sido

especialmente desenvolvidos para ajudar as pessoas a assumirem uma atitude tranqüila diante do perigo. Ao primeiro sinal de distúrbio, as lentes ficam totalmente pretas evitando assim que a pessoa veja qualquer coisa que possa alarmá-la.

A não ser pelo arranhão, as lentes estavam claras. Ele relaxou, mas só um pouco.

O mochileiro furioso continuava a dardejar com os olhos seu suco de frutas monstruosamente caro.

— A pior coisa que aconteceu para o Guia foi mudar para Beta da Ursa Menor — resmungou. — Ficaram todos uns moles. Sabe, eu até ouvi dizer que eles criaram um Universo inteiro sintetizado eletronicamente num de seus escritórios para poderem fazer as pesquisas de dia e ainda freqüentarem festas à noite. Não que noite e dia queiram dizer alguma coisa neste lugar. Beta da Ursa Menor, pensou Zaphod. Pelo menos agora ele sabia onde estava. Presumiu que isso era coisa de seu bisavô, mas por quê?

Muito contra a sua vontade uma idéia lhe veio à mente. Era muito clara e distinta, e ele já tinha aprendido a reconhecer essas idéias pelo que elas eram. Seu instinto era de resistir a elas. Eram os estímulos pré-ordenados provenientes das partes obscuras e trancafiadas de sua mente. Ficou sentado e ignorou furiosamente a idéia. A idéia o provocou. Ele a ignorou. Ela o provocou. Ele a ignorou. Ela o provocou. Ele se entregou. Ao inferno, pensou. Acompanhar a corrente. Estava cansado demais, confuso demais e com muita fome para resistir. Ele nem sequer sabia o que significava aquela idéia.


CAPÍTULO 6

— Alo? Pois não? Editora Megadodo, sede do Mochileiro das Galáxias o Guia da Galáxia para Caronas, o livro mais completamente notável de todo o Universo conhecido, em que posso servi-lo? — disse o grande inseto de asas cor-de-rosa num dos setenta fones alinhados na vastidão cromada do balcão de recepção no térreo do edifício dos escritórios do Guia da Galáxia para Caronas. Ele agitava as asas e girava os olhos. Lançava olhares ferozes para todas aquelas pessoas encardidas que se atropelavam pelo saguão, enlameando o carpete e deixando marcas de mãos sujas nos estofados. Ele adorava trabalhar no Guia da Galáxia para Caronas, e só gostaria de que houvesse um jeito de manter os caronistas longe dali. Eles não deveriam estar andando por portos espaciais sujos ou coisa assim? Ele tinha certeza de ter lido em algum lugar do livro a respeito da importância de andar por portos espaciais sujos. Infelizmente a maioria deles parecia vir ficar andando por aquele lindo, limpo e reluzente saguão logo em seguida a ter ficado andando por portos espaciais extremamente sujos. E tudo o que eles faziam era reclamar. Ele sacudiu as asas.

— O quê? — disse ele ao telefone. — Sim, eu passei seu recado para o Sr. Zarniwoop, mas creio que ele está desocupado demais para vê-lo no momento. Está num cruzeiro intergaláctico.

Acenou com um tentáculo petulante para uma das pessoas encardidas, que estava desesperadamente tentando chamar sua atenção. O tentáculo petulante era para mandar a pessoa desesperada olhar para um aviso na parede à sua esquerda e não interromper um telefonema importante.

— Sim — disse o inseto —, ele está em seu escritório, mas está num cruzeiro intergaláctico. Muito obrigado por ter telefonado. — Bateu o telefone.

— Leia o aviso — disse ele ao homem desesperado e furioso que estava tentando fazer uma reclamação a respeito de uma das mais absurdas e perigosas das informações incorretas contidas no livro.

O Guia da Galáxia para Caronas é um companheiro indispensável para todos aqueles que estão interessados em dar sentido à vida num Universo infinitamente complexo e confuso, pois apesar de não ter esperanças de ser útil e informativo em todas as questões, ele pelo menos traz a alegação tranqüilizadora

de

que

onde

ele

está

incorreto,

está

pelo

menos

definitivamente incorreto. Em casos de maior discrepância, é sempre a realidade que está errada.

Era esse o âmago do que dizia o aviso. Ele dizia: "O Guia é definitivo. A realidade é frequentemente incorreta".

Isso tem levado a conseqüências interessantes. Por exemplo, quando os editores do Guia foram processados pelas famílias daqueles que tinham morrido em resultado de terem tomado literalmente o verbete sobre o planeta Traal (dizia: "As Feras Vorazes Paponas frequentemente fazem uma boa refeição para os turistas visitantes" em vez de "As Feras Vorazes Paponas frequentemente fazem uma boa refeição dos turistas visitantes"), eles alegaram que a primeira versão da frase era esteticamente mais agradável, intimaram um poeta qualificado para declarar sob juramento que beleza é

verdade e verdade é beleza e esperaram assim provar que a parte culpada no caso era a própria Vida por deixar de ser tanto bela quanto verdadeira. Os juizes concordaram, e num discurso comovente sustentaram que a própria Vida era um desacato àquele tribunal e confiscaram-na prontamente de todos os presentes antes de saírem para uma agradável partida de ultragolfe ao cair da noite.

Zaphod Beeblebrox entrou no saguão. Dirigiu-se a passos largos ao inseto recepcionista.

— OK — disse ele. — Onde está Zarniwoop? Leve-me até Zarniwoop.

— Perdão, cavalheiro? — disse o inseto friamente. Não gostava que se dirigissem a ele dessa maneira.

— Zarniwoop. Chame-o, entendeu? Chame-o já.

— Bem, cavalheiro — falou asperamente a frágil criatura —, se o senhor ficar frio...

— Olha aqui — disse Zaphod. — Eu estou por aqui de frio, entendeu? Estou tão fantasticamente frio que você poderia conservar um pedaço de carne dentro de mim durante um mês. Agora, quer se mexer antes que eu estoure?

— Bem, se o senhor me deixar explicar, cavalheiro — disse o inseto batendo na mesa com o mais petulante dos tentáculos à sua disposição —, lamento, mas não será possível no momento, pois o Sr. Zarniwoop está num cruzeiro intergaláctico.

Inferno, pensou Zaphod.

— Quando ele volta? — perguntou.

— Quando volta? Ele está em seu escritório. Zaphod parou para tentar arrumar essa idéia em sua mente. Não conseguiu.

— Esse cara está num cruzeiro intergaláctico... no escritório dele? —

exclamou inclinando-se e agarrando o tentáculo que batia na mesa. — Escuta, três olhos — disse —, não tente me enrolar, eu tomo coisas mais estranhas do que você pode imaginar no meu café da manhã.

— Bem, quem você pensa que é, querido? — estrebuchou o inseto batendo as asas com furor. — Zaphod Beeblebrox ou algo assim?

— Conte as cabeças — disse Zaphod num tom áspero. O inseto piscou para ele. Piscou novamente.

— Você é Zaphod Beeblebrox? — guinchou.

— Sou — disse Zaphod —, mas fala baixo senão todo mundo vai querer.

— Aquele Zaphod Beeblebrox?!

— Não apenas um Zaphod Beeblebrox, você não sabia que eu venho em seis embalagens?

O inseto chacoalhava os tentáculos agitado.

— Mas, senhor — gritou —, eu acabo de ouvir uma notícia no rádio subéter. Dizia que você estava morto...

— É, é verdade — disse Zaphod —, só que eu ainda não parei de me mexer. Agora, onde é que eu encontro Zarniwoop?

— Bem, senhor, o escritório dele fica no décimo quinto andar, mas...

— Mas ele está num cruzeiro intergaláctico, tá bom, mas como eu faço para encontrá-lo?

— Os Transportadores Verticais de Pessoas da Companhia Cibernética de Sírius ficam naquele canto, senhor. Mas, senhor...

Zaphod já ia se virando para lá. Voltou-se para o inseto.

— O que é?

— Posso lhe perguntar por que o senhor deseja ver o Sr. Zarniwoop?

— Pode — respondeu Zaphod, que também não tinha clareza quanto a esse ponto. — É que eu disse para mim mesmo que eu tinha que fazer isso.

— Como, senhor?

Zaphod inclinou-se para ele, como quem conspira.

— Acabo de me materializar a partir de ar rarefeito em um de seus cafés —

disse — como resultado de uma discussão com o fantasma do meu bisavô. Mal eu cheguei ali, o antigo eu, o que operou meu cérebro, apareceu na minha cabeça e disse: "Vai ver o Zarniwoop". Nunca tinha ouvido falar nesse cara. Isso é

tudo o que eu sei. Isso e o fato de que eu tenho que encontrar o homem que rege o Universo.

Deu uma piscada.

— Senhor Beeblebrox — disse o inseto com reverência — o senhor é tão esquisito que devia estar no cinema.

— É — disse Zaphod dando um tapinha na reluzente asa cor-de-rosa da criatura —, e você, menino, devia estar na vida real.

O inseto fez uma pausa momentânea para recuperar-se da agitação e então estendeu um tentáculo para atender um telefone que estava tocando. Uma mão metálica o conteve. — Perdão — disse o dono da mão metálica com uma voz que teria feito um inseto mais sentimental cair em lágrimas. Este não era um inseto desse tipo, e ele não tolerava robôs.

— Pois não, senhor — disse, rispidamente —, posso ajudá-lo?

— Duvido — disse Marvin.

— Bem, nesse caso, se o senhor me der licença... — Seis telefones estavam tocando agora. Um milhão de coisas esperavam a atenção do inseto.

— Ninguém pode me ajudar — entoou Marvin.

— Sim, cavalheiro, bem...

— Não que alguém tenha tentado, é claro. — Marvin deixou cair lentamente a mão de metal. Inclinou a cabeça para a frente, ligeiramente.

— Ah, é? — disse acidamente o inseto.

— Não vale muito a pena ajudar um robô desprezível, né?

— Lamento, senhor, mas...

— Quero dizer, qual é a vantagem em ajudar um robô se ele não tem circuitos de gratidão?

— E o senhor não tem? — disse o inseto, que não parecia capaz de escapar da conversa.

— Nunca tive oportunidade de descobrir — informou Marvin.

— Escuta, seu monte de metal desajustado...

— Você não vai me perguntar o que eu quero?

O inseto fez uma pausa. Lambeu os olhos com sua língua longa e fina e a recolheu novamente.

— Vale a pena? — perguntou.

— Alguma coisa vale? — disse Marvin imediatamente.

— O que... o... senhor... quer?

— Estou procurando uma pessoa.

— Quem? — sibilou o inseto.

— Zaphod Beeblebrox — disse Marvin. — Ele está ali adiante. O inseto se sacudia de raiva. Quase não conseguia falar.

— Então por que você perguntou para mim? — berrou.

— Só queria alguém com quem conversar — disse Marvin.

— O quê?!

— Patético, não?

Rangendo as engrenagens, Marvin virou-se e saiu sobre suas rodinhas. Alcançou Zaphod perto dos elevadores. Zaphod voltou-se surpreso.

— Hei... Marvin? — disse ele. — Marvin! Como você veio parar aqui?

Marvin foi forçado a dizer algo que era muito difícil para ele.

— Eu não sei — ele disse.

— Mas...

— Num momento eu estava sentado na sua nave sentindo-me deprimido, e no momento seguinte estava aqui sentindo-me totalmente miserável. Um Campo de Improbabilidade, espero.

— É — disse Zaphod. — Eu espero que meu bisavô o tenha mandado aqui para me fazer companhia.

— Valeu a intenção, vovô — acrescentou para si mesmo.

— E então, como vai? — disse em voz alta.

— Ah, bem — disse Marvin —, para quem por acaso gostar de ser eu, o que eu pessoalmente detesto.

— Tá, tá — disse Zaphod quando o elevador abriu as portas.

— Olá — disse o elevador docemente —, eu serei seu elevador durante esta viagem até o andar de sua preferência. Fui desenvolvido pela Companhia Cibernética de Sírius para levar você, visitante do Guia da Galáxia para Caronas, para seus escritórios. Se você apreciar o trajeto, que será rápido e agradável, talvez se interesse em experimentar alguns dos outros elevadores que foram instalados recentemente nos edifícios de escritórios do departamento de impostos da Galáxia, dos Alimentos Infantis Bubilu e do Hospital Psiquiátrico Estatal de Sírius, onde muitos dos antigos executivos da Companhia Cibernética de Sírius adorarão receber sua visita, solidariedade e estórias felizes do mundo lá fora.

— Tá bom — disse Zaphod. — Que mais você faz além de falar?

— Eu subo — disse o elevador — ou desço.

— Ótimo — disse Zaphod. — Nós vamos subir.

— Ou descer — lembrou o elevador.

— É, tá, mas vamos subir, por favor. Houve um momento de silêncio.

— Descer é muito bom — sugeriu o elevador esperançoso.

— Ah, é?

— Super.

— Que bom — disse Zaphod. — agora vamos subir.

— Posso perguntar — perguntou o elevador com sua voz mais doce e moderada

— se você já considerou todas as possibilidades que a descida pode lhe oferecer?

Zaphod bateu uma das cabeças contra a parede interna. Ele não precisava disso, pensou, dentre todas as coisas de que ele não precisava. Ele não tinha pedido para estar ali. Se lhe perguntassem o que gostaria de estar fazendo naquele momento, provavelmente responderia que gostaria de estar deitado numa praia com pelo menos cinqüenta mulheres bonitas e uma equipe de especialistas desenvolvendo novos métodos de serem agradáveis para ele, o que era sua resposta costumeira. A isso ele provavelmente acrescentaria alguma coisa apaixonada a respeito de comida.

Uma coisa que ele não queria estar fazendo era sair à procura do homem que rege o Universo, que estava apenas fazendo um serviço que poderia perfeitamente continuar fazendo, porque se não fosse ele seria outra pessoa. Acima de tudo ele não queria estar num prédio de escritórios discutindo com um elevador.

— Que outras possibilidades, por exemplo? — perguntou, exausto.

— Bom — a voz parecia mel escorrendo sobre biscoitos —, tem o porão, os arquivos de microfilmes, o sistema de aquecimento central... ahn;.. Fez uma interrupção.

— Nada particularmente interessante — admitiu —, mas são alternativas.

— Santo Zarquon — resmungou Zaphod —, por acaso eu pedi um elevador existencial? — Bateu com os punhos contra a parede. — Qual é o problema com essa coisa?

— Não quer subir — disse Marvin simplesmente. — Acho que está com medo.

— Medo? — gritou Zaphod. — De quê? Altura? Um elevador que tem medo de altura?

— Não — disse o elevador miseravelmente —, medo do futuro...

— Do futuro? — exclamou Zaphod. — Mas o que essa coisa desgraçada está

querendo? Um esquema de aposentadoria?

Nesse instante uma comoção irrompeu no saguão atrás deles. Das paredes à

sua volta vinha o ruído de maquinaria repentinamente posta em atividade.

— Todos podemos ver o futuro — sussurrou o elevador em tom que parecia aterrorizado —, faz parte da nossa programação.

Zaphod olhou para fora do elevador. Uma multidão agitada se reunira em torno da área dos elevadores, apontando e gritando.

Todos os elevadores do prédio estavam descendo em alta velocidade. Ele voltou para dentro.

— Marvin — disse ele —, dá para você dar um jeito deste elevador subir? A gente tem que encontrar Zarniwoop.

— Por quê? — perguntou Marvin pesarosamente.

— Não sei — disse Zaphod —, mas quando eu o encontrar espero que ele tenha um motivo muito bom para eu querer vê-lo.

Os elevadores modernos são entidades estranhas e complexas. Os antigos aparelhos elétricos com polia e "capacidade-máxima-oito-pessoas" têm tanta semelhança com um Transportador Vertical Feliz de Pessoas da Companhia Cibernética de Sírius quanto um saquinho de castanhas sortidas tem com toda a ala ocidental do Hospital Psiquiátrico Estatal de Sírius. Isso porque eles operam segundo o curioso princípio da "percepção temporal desfocalizada". Em outras palavras, são capazes de prever vagamente o futuro imediato, o que permite que o elevador esteja no andar correto para apanhar você antes mesmo de você saber que o desejava, eliminando assim toda essa estória entediante de bater papo, descontrair-se e fazer amigos a que as pessoas eram anteriormente forçadas enquanto esperavam o elevador. Não é de surpreender que muitos elevadores, imbuídos de inteligência e premonição, acabaram frustrando-se terrivelmente com o serviço estúpido de subir e descer, subir e descer, experimentaram brevemente a noção de ir para os

lados,

como

uma

espécie

de

protesto

existencial,

reivindicaram

participação no processo de tomada de decisão e finalmente deram para acocorar-se amuados nos porões.

Um mochileiro duro de visita a qualquer um dos planetas do sistema estelar de Sírius nos dias de hoje pode levantar um dinheiro fácil trabalhando como conselheiro de elevadores neuróticos.

No décimo quinto andar as portas do elevador abriram-se rapidamente.

— Décimo quinto — disse o elevador —, e lembre-se, só estou fazendo isso porque gosto do seu robô.

Zaphod

e

Marvin

pularam

para

fora

do

elevador,

que

fechou

instantaneamente as portas e desceu tão rápido quanto seu mecanismo permitiu.

Zaphod olhou ao redor cautelosamente. O corredor estava deserto e silencioso e não dava nenhuma pista de onde Zarniwoop poderia ser encontrado. Todas as portas que davam para o corredor estavam fechadas e não tinham nenhuma inscrição.

Estavam perto da ponte que levava de uma torre à outra. Através de uma grande janela o sol brilhante de Beta da Ursa Menor lançava blocos de luz onde dançavam pontinhos de poeira. Uma sombra passou por um momento.

— Abandonado por um elevador — murmurou Zaphod, que pelo menos estava se sentindo vivaz.

Os dois olharam em ambas as direções.

— Sabe de uma coisa? — disse Zaphod a Marvin.

— Mais do que você pode imaginar.

— Tenho certeza absoluta de que este prédio não devia estar balançando —

disse Zaphod.

Foi apenas um leve tremor na sola do pé, e depois outro. Nos raios de sol as partículas de poeira dançavam mais vigorosamente. Passou uma outra sombra.

Zaphod olhou para o chão.

— Das duas uma — disse, não muito confiante —: ou eles têm algum sistema vibratório para exercitar os músculos enquanto trabalham, ou... Foi andando em direção à janela e de repente tropeçou porque naquele momento seus Óculos Escuros Supercromáticos Perigo-Sensitivos Joo Janta 200

tinham ficado completamente pretos. Uma sombra imensa passou pela janela com um zumbido agudo.

Zaphod arrancou os óculos, e assim que o fez o edifício sacudiu com um ruído de trovão. Ele saltou para perto da janela.

— Ou então — disse — este prédio está sendo bombardeado!

Outro tremor ressoou pelo edifício.

— Quem na Galáxia ia querer bombardear uma -editora? — perguntou Zaphod, mas não ouviu a resposta de Marvin porque naquele momento o prédio sacudiu com outro bombardeio. Tentou ir cambaleando de volta ao elevador — uma manobra sem sentido, ele sabia, mas a única em que conseguiu pensar. De repente, no final de um corredor em ângulo reto, avistou uma figura, um homem. O homem o viu.

— Beeblebrox, aqui! — gritou o homem.

Zaphod o encarou, desconfiado, enquanto uma nova bomba atingia o edifício.

— Não — gritou Zaphod. — Beeblebrox aqui! Quem é você?

— Um amigo! — respondeu o homem. Ele veio correndo em direção a Zaphod.

— Ah, é? — disse Zaphod. — Amigo de alguém em particular, ou simplesmente bem disposto para com todas as pessoas?

O homem corria pelo corredor, com o chão enrugando-se a seus pés como um cobertor. Era baixo, atarracado, maltratado pelo tempo e suas roupas pareciam ter dado duas voltas pela Galáxia com ele dentro.

— Você sabia — gritou Zaphod em seu ouvido quando ele chegou — que seu prédio está sendo bombardeado?

O homem atestou seu conhecimento do fato.

De repente não estava mais claro. Olhando pela janela para descobrir por que, Zaphod ficou boquiaberto ao ver uma imensa nave espacial cinza-chumbo com uma consistência de lesma arrastando-se pelo ar em torno do edifício. Outras duas a seguiam.

— O governo que você desertou está em seu encalço, Zaphod — sussurrou o homem —, mandaram um esquadrão de Lutadores Astrossapos.

— Lutadores Astrossapos! — murmurou Zaphod. — Zarquon!

— Sentiu o drama?

— O que são Lutadores Astrossapos? — Zaphod tinha certeza de ter ouvido alguém falar sobre eles quando era presidente, mas nunca prestava muita atenção a assuntos oficiais.

O homem o estava puxando para uma porta. Ele o acompanhou. Com um gemido, um objeto em forma de aranha cortou chamuscando o ar e desapareceu no fim do corredor.

— O que foi isso? — sussurrou Zaphod.

— Um robô classe A da Patrulha Astrossapa à sua procura — disse o homem.

— Ah, é?

— Abaixe-se!

Da direção oposta veio um objeto maior em forma de aranha. Passou por eles zunindo.

— E isso foi...?

— Um robô classe B da Patrulha Astrossapa à sua procura.

— E aquilo? — disse Zaphod quando um terceiro vinha chamuscando pelo ar.

— Um robô classe C da Patrulha Astrossapa à sua procura.

— Ei — disse Zaphod consigo mesmo com um risinho de escárnio —, uns robôs bem estúpidos, ehn?

Do outro lado da ponte veio um estrondo retumbante. Uma gigantesca forma negra movia-se sobre ela, vinda do outro prédio, do tamanho e da forma de um tanque.

— Fóton Sagrado, o que é aquilo? — disse Zaphod, resfolegante.

— Um tanque — disse o homem —, um robô classe D da Patrulha Astrossapa que veio te pegar.

— Não é melhor irmos embora?

— Acho que sim.

— Marvin! — gritou Zaphod.

— O que você quer?

Marvin ergueu-se de uma pilha de entulho de alvenaria mais adiante no corredor e olhou para eles.

— Você está vendo aquele robô vindo em nossa direção?

Marvin olhou para a gigantesca forma negra que se dirigia em sua direção atravessando a ponte. Olhou para seu franzino corpo metálico. Olhou de novo para o tanque.

— Imagino que você quer que eu o detenha — disse.

— Isso.

— Enquanto vocês salvam suas peles.

— Isso — disse Zaphod —, faça isso!

— Apenas pelo tempo em que eu souber onde estou — disse Marvin. O homem deu um puxão no, braço de Zaphod, e Zaphod o seguiu pelo corredor.

Ocorreu-lhe uma questão a esse respeito.

— Onde estamos indo? — perguntou.

— Ao escritório de Zarniwoop.

— Isso é hora de manter um compromisso?

— Venha!


CAPITULO 7

Marvin ficou de pé no fim do corredor da ponte. Na verdade ele não era exatamente um robô pequeno. Seu corpo de prata reluzia nos raios de sol empoeirados e agitava-se com o contínuo bombardeio que o prédio continuava sofrendo.

Ele parecia, no entanto, miseravelmente pequeno diante do gigantesco tanque negro que parou na sua frente. O tanque o examinou detalhadamente com uma sonda. Retraiu a sonda.

Marvin ficou ali parado.

— Fora do meu caminho, robozinho — rugiu o tanque.

— Lamento — disse Marvin —, mas fui deixado aqui para detê-lo. A sonda estendeu-se de novo para uma rápida conferida. Retraiu-se outra vez.

— Você? Me deter? — urrou o tanque. — Qual é?

— Não, é verdade, realmente — disse Marvin simplesmente.

— Com o que você está armado? — urrou o tanque, incrédulo.

— Adivinha — disse Marvin.

Os motores do tanque retumbaram, as engrenagens rangeram. As peças eletrônicas do tamanho de moléculas no fundo de seu microcérebro vibravam para a frente e para trás de consternação.

— Adivinha? — disse o tanque.

Zaphod e o homem ainda sem nome viraram por um corredor, cambalearam por outro, correram por um terceiro. O prédio continuava a sacudir e balançar e isso Zaphod não entendia. Se eles queriam explodir o prédio por que estavam demorando tanto?

Com dificuldade chegaram a uma das várias portas anônimas e sem indicações e pararam arfando diante dela. Num solavanco repentino ela se abriu e eles caíram para dentro.

Toda essa estória, pensou Zaphod, toda essa encrenca, todo esse nãoestar-deitado-numa-praia-divertindo-se-pra-caramba, tudo isso para quê? Uma única cadeira, uma única mesa e um único cinzeiro sujo num escritório sem decoração. A mesa, a não ser por um pouco de poeira tremulante e um único clipe de papel de uma nova forma revolucionária, estava vazia.

— Onde — disse Zaphod — está Zarniwoop? — sentindo que a compreensão já

tênue que ele tinha de tudo aquilo começava a se desfazer.

— Está num cruzeiro intergaláctico — disse o homem. Zaphod procurou fazer uma avaliação do homem. Do

tipo austero, pensou, não um saco de risadas. Dedica provavelmente boa parte do seu tempo a correr para cima e para baixo por corredores sinuosos, arrombar portas e fazer comentários críticos em escritórios vazios.

— Permita-me que me apresente — disse o homem. — Meu nome é Roosta e esta é minha toalha.

— Olá, Roosta — disse Zaphod.

— Olá, toalha — acrescentou, quando Roosta estendeu-lhe uma toalha florida meio velha. Sem saber o que fazer com ela, cumprimentou-a sacudindo um dos cantos.

Do lado de fora da janela uma das imensas naves espaciais cinza-chumbo com consistência de lesma passou rugindo.

— É, vá em frente — disse Marvin à gigantesca máquina de guerra —, você

nunca vai adivinhar.

Ahhhhmmmm...

—,

disse

a

máquina,

vibrando

com

o

pensamento

desacostumado — raios laser?

Marvin balançou a cabeça solenemente.

— Não — murmurou a máquina com seu ronco gutural —, óbvio demais. Raio antimatéria? — arriscou.

— Obvio demais — advertiu Marvin.

— É — rosnou a máquina, meio desconcertada. — Ahnn... que tal um aríete de elétrons?

Essa era nova para Marvin.

— O que é isso? — perguntou.

— Destes aqui — disse a máquina, entusiasmada.

De sua torre emergiu um tubo que lançou uma única labareda de luz. Atrás de Marvin uma parede desmoronou como um monte de poeira. A poeira flutuou um pouco antes de assentar.

— Não — disse Marvin —, não é desses.

— Mas é bom, não é?

— Muito bom — concordou Marvin.

— Já sei — disse a máquina de guerra Astrossapa, após mais um instante de consideração. — Você deve ter um daqueles novos Emissores Xanticos Reestrutrônicos de Zênon Desestabilizado!

— Esses são bons, ehn? — disse Marvin.

— É desses que você tem? — disse a máquina com considerável respeito.

— Não — disse Marvin.

— Ah — disse a máquina, desapontada —, então deve ser...

— Você está pensando pelo lado errado — disse Marvin. — Você está

deixando

de

levar

em

consideração

uma

coisa

bastante

básica

no

relacionamento entre homens e robôs.

— Ahn, eu sei — disse a máquina de guerra —, deixa ver... — mergulhou novamente em pensamentos.

— Pense bem — instigou Marvin —, eles me deixaram aqui, eu, um robô comum e desprezível, para deter você, uma gigantesca máquina de guerra pesada, enquanto fugiam para salvar suas peles. O que você acha que iam deixar comigo?

— Aaah ahnn — murmurou a máquina, preocupada —, alguma coisa muito devastadora mesmo, imagino.

— Imagina! — disse Marvin. — Ah, tá, imagina mesmo. Vou te dizer o que eles me deram para me proteger, posso?

— Tá, tudo bem — disse a máquina de guerra, preparando-se.

— Nada — disse Marvin.

Nada? — urrou a máquina de guerra.

— Nadinha, nadinha — entoou Marvin lugubremente —, nem uma salsicha eletrônica.

A máquina arfava, furiosa.

— Mas isso é demais, passa dos limites! — urrava. — Nada, ehn? O que que eles pensam?

— E eu — disse Marvin com uma voz macia — com essa dor terrível nos diodos esquerdos.

— Dá vontade cuspir, né?

— Pois é — concordou Marvin com sentimento.

— Puxa, essas coisas me deixam nervoso! — berrou a máquina. — Acho que vou arrebentar com aquela parede!

O aríete de elétrons lançou mais uma flamejante labareda de luz e destruiu a parede do lado do tanque.

— Como você acha que eu me sinto? — disse Marvin amargamente.

— Simplesmente fugiram e deixaram você aí? — trovejou a máquina.

— Pois é — disse Marvin.

— Acho que vou arrebentar com o maldito teto deles também! — gritou o tanque, com raiva.

Destruiu o teto da ponte.

— Isso é muito impressionante — murmurou Marvin.

— Você ainda não viu nada — prometeu a máquina. — Posso destruir este chão também, sem problema!

Destruiu o chão também.

— Droga! — urrou a máquina enquanto despencava de quinze andares e espatifava-se no chão lá embaixo.

— Que máquina deprimentemente estúpida — disse Marvin e saiu caminhando penosamente.


CAPÍTULO 8

— E aí, a gente vai ficar aqui sentado? — disse Zaphod, irritado. — O que esses caras aí fora estão querendo?

— Você, Beeblebrox — disse Roosta —, eles estão tentando levar você para o Planeta Astrossapo, o mundo mais completamente maligno de toda a Galáxia.

— Ah, é? — disse Zaphod. — Primeiro eles vão ter que vir me pegar.

— Eles vieram te pegar — disse Roosta —, olhe pela janela. Zaphod olhou, e ficou estupefato.

— O chão está indo embora! — disse, engolindo em seco. — Para onde eles estão levando o chão?

— Eles estão levando o edifício — disse Roosta —, estamos sendo transportados pelo ar.

Nuvens velozes passaram pela janela do escritório.

Zaphod pôde ver mais uma vez do lado de fora o anel de Lutadores Astrossapos ao redor do edifício arrancado do solo. Uma rede de raios de força irradiava deles e mantinha a torre firmemente segura. Zaphod balançou as cabeças, perplexo.

— O que eu fiz para merecer isso? — disse. — Eu entro num prédio e eles vêm e o levam embora.

— Não é com o que você fez que eles estão preocupados — disse Roosta —, mas com o que você vai fazer.

— Bom, e eu não tenho direito de me manifestar nessa estória?

— Você já teve, anos atrás. É melhor você se segurar, estamos prestes a fazer uma viagem veloz e acidentada.

— Se algum dia eu me encontrar — disse Zaphod — vou me dar uma surra tão grande que eu vou aprender o que é apanhar.

Marvin entrou desconsolado pela porta, encarou Zaphod com olhos acusadores, agachou-se num canto e se desligou.

Na ponte de comando da nave Coração de Ouro, tudo estava em silêncio. Arthur olhava para o anteparo à sua frente e pensava. Percebeu o olhar de Trillian, que o observava inquisitivamente. Olhou de novo para o anteparo. Finalmente ele viu.

Pegou quatro quadrados pequenos de plástico e os colocou sobre o painel que estava diante do anteparo.

Os quatro quadrados continham as quatro letras E, X, C e E. Ele os colocou junto às letras, L, E, N, T e E.

— Excelente — disse ele —, valendo três vezes o valor da palavra. Acho que isso vai dar muitos pontos!

A nave sacolejou e espalhou algumas das letras pela enésima vez. Trillian suspirou e começou a arrumá-las de novo.

Pelos corredores ecoavam os passos de Ford Prefect que andava pela nave dando pancadas nos instrumentos parados.

Por que a nave continuava a sacolejar? — pensou.

Por que sacudia e balançava?

Por que ele não conseguia descobrir onde eles estavam? Onde, afinal, eles estavam?

A torre esquerda do edifício-sede do Guia da Galáxia para Caronas atravessou o espaço interestelar numa velocidade jamais igualada por qualquer outro edifício de escritórios no Universo.

Numa sala, na metade do edifício, Zaphod Beeblebrox andava nervosamente a passos largos.

Roosta estava sentado num canto da mesa fazendo a manutenção rotineira da toalha.

— Ei, para onde você falou que este prédio estava indo mesmo? — perguntou Zaphod.

— Para o Planeta Astrossapo — disse Roosta —, o lugar mais completamente maligno do Universo.

— Eles têm comida lá? — disse Zaphod.

— Comida? Você está indo para o Astrossapo e está preocupado se eles têm comida?

— Sem comida eu não vou para o Astrossapo.

Pela janela eles não viam nada além da luz tremulante dos raios de força, e vagas formas esverdeadas que deviam ser as imagens distorcidas dos Lutadores Astrossapos. A essa velocidade o espaço em si era invisível e de fato irreal.

— Tome, chupe — disse Roosta, oferecendo sua toalha a Zaphod. Zaphod o encarou como se esperasse que um cuco saltasse de sua testa, preso a uma mola.

— Está encharcada de nutrientes — explicou Roosta.

— Que espécie de cara é você, um comedor de porcaria ou coisa assim? —

disse Zaphod.

— As listas amarelas são ricas em proteínas, as verdes contêm vitaminas C

e complexo B, as florezinhas cor-de-rosa contêm extrato de germe de trigo. Zaphod pegou e observou, maravilhado.

— E essas manchas marrons? — perguntou.

— Molho de churrasco — disse Roosta —, para quando eu enjoar de germe de trigo.

Zaphod cheirou, desconfiado.

Mais desconfiado ainda, chupou um dos cantos. Cuspiu fora.

— Argh — declarou.

— Ê — disse Roosta —, quando eu chupo esse canto eu sempre tenho que chupar um pouquinho do outro canto também.

— Por que — perguntou Zaphod, cheio de suspeita —, o que tem?

— Antidepressivos — disse Roosta.

— Não quero saber dessa toalha — disse Zaphod, devolvendo-a. Roosta a pegou de volta, pulou da mesa, deu a volta e sentou na cadeira, levantando os pés.

— Beeblebrox — disse, colocando os braços atrás da cabeça —, você tem alguma idéia do que vai te acontecer no Planeta Astrossapo?

— Eles vão me dar de comer — arriscou Zaphod, esperançoso.

— Eles vão te dar de comer — disse Roosta — ao Vórtice de Perspectiva Total!

Zaphod nunca tinha ouvido falar nisso. Ele acreditava já ter ouvido falar de todas as coisas divertidas da Galáxia, de forma que calculou que o Vórtice de Perspectiva Total não devia ser divertido. Perguntou a Roosta o que era.

— Apenas — disse Roosta — a mais selvagem das torturas psíquicas a que se pode submeter um ser consciente.

Zaphod balançou a cabeça resignado.

— Quer dizer então — disse ele — que não tem comida, né?

— Ouça! — disse Roosta insistentemente — Você pode matar um homem, destruir seu corpo, quebrar seu espírito, mas apenas o Vórtice de Perspectiva Total pode aniquilar a alma de um homem! O tratamento dura alguns segundos, mas os efeitos duram o resto da vida!

— Você já tomou uma Dinamite Pangaláctica? — perguntou Zaphod vivamente.

— É pior.

— Urras!"— admitiu Zaphod, muito impressionado.

— Tem alguma idéia de por que esses caras estão querendo fazer isso comigo? — acrescentou um momento mais tarde.

— Eles acreditam que essa é a melhor maneira de destruir você para sempre. Eles sabem do que você está atrás.

— Será que eles não podiam me dar um toque e me deixar saber também?

— Você sabe, Beeblebrox — disse Roosta —, você sabe. Você quer encontrar o homem que rege o Universo.

— Ele sabe cozinhar? — disse Zaphod. Refletindo um pouco, acrescentou:

— Duvido. Se ele soubesse preparar uma boa refeição por que iria importar-se com o resto do Universo? Eu quero encontrar um cozinheiro. Roosta suspirou pesadamente.

— O que você está fazendo aqui, de qualquer forma? — perguntou Zaphod. —

O que você tem a ver com tudo isso?

— Sou apenas um dos que planejaram a coisa, junto com Zarniwoop, junto com Yooden Vranx, junto com seu bisavô, junto com você, Beeblebrox.

— Comigo?

— É, com você. Me disseram que você tinha mudado, eu não imaginava quanto.

— Mas...

— Estou aqui para fazer uma coisa. Vou fazer antes de deixar você.

— Que coisa, cara? Do que você está falando?

— Vou fazer antes de deixar você.

Roosta mergulhou num silêncio impenetrável. Zaphod ficou contentíssimo.


CAPITULO 9

O ar em torno do segundo planeta do sistema Astros-sapo era viciado e insalubre.

Os ventos úmidos que varriam constantemente sua superfície sopravam sobre pântanos salgados, charcos ressequidos, um emaranhado de vegetação putrefata e ruínas de cidades desmoronadas. Nenhuma forma de vida movia-se sobre sua superfície. O solo, como o de muitos planetas dessa região da Galáxia, estava deserto há muito tempo.

O uivo do vento era bastante desolador quando cortava as velhas casas decadentes das cidades; era ainda mais desolador quando dava lufadas nas bases das altas torres negras que oscilavam aqui e ali pela superfície desse mundo. No topo dessas torres viviam colônias de grandes aves descarnadas que cheiravam mal, os únicos sobreviventes da civilização que outrora vivera ali.

O uivo do vento era mais desolador do que nunca porém, quando passava sobre um lugarzinho de nada no meio de uma ampla planície cinzenta nos arredores da maior das cidades abandonadas.

Esse lugarzinho de nada era o que tinha dado a esse planeta a reputação de ser o lugar mais totalmente maligno da Galáxia. De fora era apenas um domo de aço de cerca do quinze metros de diâmetro. Por dentro era algo mais monstruoso do que a mente possa compreender.

A uns cento e cinqüenta metros dali, separado por uma faixa crestada e bexiguenta da terra mais infecunda que se possa imaginar, ficava o que talvez pudesse ser descrito como um sofrível campo de pouso. Isso para dizer que espalhados por uma área ampla estavam as carcaças desajeitadas de duas ou três dúzias de edifícios que tinham sofrido uma aterrissagem forçada. Uma mente esvoaçava em torno desses edifícios, uma mente que estava à

espera de alguma coisa.

A mente dirigiu sua atenção para o espaço, e dentro de pouco tempo surgiu um pontinho na distância rodeado por um anel de pontinhos menores. O pontinho maior era a torre esquerda do edifício de escritórios do Guia da Galáxia para Caronas penetrando na estratosfera do Planeta Astrossapo B. Enquanto ele descia, Roosta subitamente quebrou o longo e desconfortável silêncio que tinha crescido entre os dois.

Levantou-se e enfiou sua toalha numa mala. Disse:

— Beeblebrox, agora eu vou fazer a coisa para a qual eu fui mandado. Zaphod olhou para ele de onde estava, sentado num canto trocando idéias não enunciadas com Marvin.

— Ah, é? — disse ele.

— O edifício vai aterrissar em breve. Quando você for sair, não saia pela porta — disse Roosta —, saia pela janela.

— Boa-sorte — acrescentou, e saiu pela porta, desaparecendo da vida de Zaphod tão misteriosamente quanto tinha entrado.

Zaphod pulou e tentou abrir a porta, mas Roosta já a tinha trancado. Deu de ombros e voltou para o seu canto.

Dois minutos mais tarde o prédio espatifou-se no chão no meio dos outros destroços. A escolta de Lutadores Astrossapos desativou os raios de força e elevou-se no ar novamente, rumo ao Planeta Astrossapo A, um lugar completamente mais agradável. Eles nunca pousaram no Planeta Astrossapo B. Ninguém jamais pousava. Ninguém jamais andava por sua superfície a não ser as futuras vítimas do Vórtice de Perspectiva Total.

Zaphod ficou muito abalado com o choque da aterrissagem. Ficou deitado por um tempo no silencioso monturo de poeira a que se tinha reduzido a maior parte da sala. Sentiu que estava na fase mais decadente de sua vida. Sentiase desnorteado, sentia-se só, sentia-se sem amor. Por fim sentia que devia passar por cima do que quer que fosse.

Olhou pela sala quebrada e destruída. A parede em torno da porta tinha partido e a porta estava aberta, dependurada. A janela, por algum milagre, estava inteira e fechada. Hesitou por um instante e então pensou que se aquele seu estranho companheiro recente tinha passado por tudo aquilo por que tinha passado apenas para lhe dizer aquilo que lhe tinha dito, devia ter uma boa razão. Abriu a janela com a ajuda de Marvin. Do lado de fora, a nuvem de poeira levantada pela aterrissagem e os destroços dos outros edifícios ao redor efetivamente impediam que Zaphod pudesse ver qualquer coisa do mundo lá fora.

Não que isso lhe importasse muito. Sua principal preocupação foi com o que viu ao olhar para baixo. O escritório de Zarniwoop ficava no décimo quinto andar. O edifício tinha pousado numa inclinação de uns quarenta e cinco graus, mas ainda assim a descida era de apertar o coração. Finalmente, irritado com a série de olhares insolentes que Marvin lhe dirigia, respirou fundo e saiu para fora, para a parede íngreme do edifício. Marvin o seguiu e juntos começaram a arrastar-se devagar e penosamente para descer os quinze andares que os separavam do solo.

Enquanto descia, o ar putrefato sufocava os pulmões de Zaphod, seus olhos ardiam, e a terrível altura fazia suas cabeças girarem.

O comentário fortuito de Marvin do tipo "É esse o tipo de coisa que vocês, seres vivos, gostam de fazer? Estou perguntando apenas a título de informação" contribuiu muito pouco para melhorar seu estado de espírito. Na metade da descida pelo edifício estraçalhado pararam para descansar. Sentado ali, ofegante de medo e de cansaço, Zaphod achou que Marvin parecia um pouquinho mais animado do que de costume. Por fim, ele se deu conta de que não era bem isso. O robô apenas parecia mais animado em comparação com o ânimo de Zaphod.

Um imenso pássaro preto asqueroso surgiu batendo as asas através da nuvem de poeira que assentava lentamente e, estirando as garras esqueléticas, pousou sobre uma janela inclinada a alguns metros de Zaphod. Dobrou suas asas desajeitadas e ficou balançando desagradavelmente em seu poleiro. A envergadura das asas devia ser de cerca de três metros, e o pescoço e a cabeça pareciam curiosamente grandes para uma ave. A cara era achatada e o bico não muito desenvolvido, e na metade das asas vestígios de algo em forma de mãos podiam ser vistos claramente.

Para falar a verdade, tinha aparência quase humana.

Dirigiu os olhos pesados para Zaphod e bateu o bico de modo desconexo.

— Vá embora — disse Zaphod.

— OK — disse o pássaro morosamente e saiu voando em meio à nuvem de poeira.

Zaphod observou atordoado a sua partida.

— Aquele pássaro falou comigo? — perguntou a Marvin nervosamente. Estava preparado para crer na explicação alternativa, de que estava na verdade tendo alucinações.

— Falou — confirmou Marvin.

— Pobres almas — disse uma voz profunda e etérea no ouvido de Zaphod. Virando-se violentamente para descobrir de onde vinha a voz, Zaphod quase caiu do prédio. Agarrou-se desesperado na saliência de uma janela e cortou a mão. Segurou-se, respirando com dificuldade.

A voz não vinha de nenhum lugar visível que fosse — não havia ninguém ali. Mesmo assim, falou de novo.

— Uma trágica história por trás deles, sabe? Uma praga terrível. Zaphod olhou atordoado à sua volta. A voz era profunda e calma. Em outras circunstâncias poderia ser definida como reconfortante. Não há, no entanto, nada de reconfortante em ser chamado por uma voz sem corpo vinda do nada, principalmente quando se está, como Zaphod Beeblebrox, fora de sua melhor forma e pendurado num parapeito no oitavo andar de um edifício que se espatifou.

— Ei, ahn... — gaguejou.

— Quer que eu lhe conte a estória deles? — inquiriu calmamente a voz.

— Ei, quem é você — perguntou Zaphod, ofegante. — Onde você está?

— Talvez mais tarde, então — murmurou a voz. — Eu sou Gargravarr. Sou o Guardião do Vórtice de Perspectiva Total.

— Por que eu não o vejo?...

— Você terá sua descida enormemente facilitada — falou mais alto a voz —

se se dirigir a uns seis metros a sua esquerda. Por que não tenta?

Zaphod olhou e viu uma série de pequenas ranhuras horizontais que chegavam até o solo. Agradecido, arrastou-se até elas.

— Por que não nos encontramos lá embaixo? — disse a voz em seu ouvido, diminuindo enquanto falava.

— Ei — gritou Zaphod. — Onde está você?

— Você só vai levar alguns minutos... — disse a voz, quase sumindo.

— Marvin — disse Zaphod gravemente ao robô que se encontrava acocorado e deprimido próximo a ele —, por acaso... por acaso uma voz acabou de...

— Sim — respondeu Marvin sucintamente. Zaphod balançou a cabeça. Pegou seus óculos escuros perigo-sensitivos outra vez. As lentes estavam completamente pretas, e desta vez muito riscadas por causa do inesperado objeto de metal em seu bolso. Ele os colocou. Encontraria o caminho.para descer do prédio com mais conforto se não precisasse ver efetivamente o que estava fazendo.

Minutos mais tarde estava andando sobre os destroços da base do edifício. Tirou os óculos e pulou para o chão.

Marvin o alcançou logo em seguida e estendeu-se de bruços sobre a poeira e os entulhos, posição da qual não parecia muito inclinado a mudar-se.

— Ah, aí está você — disse de repente a voz no ouvido de Zaphod. —

Desculpe-me por tê-lo deixado sozinho daquele jeito, mas é que eu tenho um estômago péssimo para altura. Ou pelo menos — acrescentou melancolicamente —

eu tinha um estômago péssimo para altura.

Zaphod olhou ao redor com cuidado, vagarosamente, apenas para ver se tinha deixado de notar alguma coisa que pudesse ser a fonte da voz. Tudo o que viu, no entanto, foi poeira, entulho e as formas gigantescas dos prédios à sua volta.

— Ei, ahn, por que eu não te vejo? — perguntou. — Por que você não está

aqui?

— Eu estou aqui — disse a voz, devagar. — Meu corpo queria vir, mas estava meio ocupado no momento. Umas coisas para fazer, ver umas pessoas...

— Após algo que pareceu um suspiro etéreo acrescentou: — Você sabe como são os corpos.

Zaphod não tinha muita certeza a esse respeito.

— Eu pensava que sabia — respondeu.

— Só espero que ele esteja repousando — continuou a voz. — Do jeito que ele vem vivendo ultimamente, não vai muito para lá dos cotovelos.

— Cotovelos? — disse Zaphod. — Você não quer dizer pernas?

A voz não disse nada por alguns instantes. Zaphod olhou à sua volta, pouco à vontade. Não sabia se ela tinha ido embora, se ainda estava ali ou o que estaria fazendo. A voz falou de novo.

— Então você está para ser colocado no Vórtice, é?

— Ahn, bom... — disse Zaphod, num esforço muito pobre de mostrar indiferença — não tem muita pressa, sabe? Acho que primeiro vou relaxar e dar uma olhada na paisagem do lugar, sabe?

— Você viu a paisagem do lugar? — perguntou a voz de Gargravarr.

— Ahn, não.

Zaphod trepou pelos entulhos, e deu a volta num dos prédios que lhe impediam a vista.

Olhou a paisagem do Planeta Astrossapo B.

— Ah, OK — disse —, só vou relaxar, então.

— Não — disse Gargravarr. — O Vórtice está pronto para você já. Você tem que vir. Siga-me.

— Ahn, é? — disse Zaphod. — E como espera que eu o faça?

— Vou zunir para você — disse Gargravarr. — Você segue o zunido. Um suave ruído agudo cortou o ar. Um som pálido e triste que parecia não ter nenhuma espécie de foco. Só escutando com bastante cuidado Zaphod conseguiu detectar a direção de onde vinha. Devagar, aturdido, foi cambaleando em sua esteira. O que mais poderia fazer?


CAPÍTULO 10

O

Universo,

como

foi

observado

anteriormente,

é

um

lugar

desconcertantemente grande, fato este que pelo bem de uma vida tranqüila a maioria das pessoas tende a ignorar.

Muitos se mudariam contentes para lugares consideravelmente menores em suas próprias redondezas, e é aliás o que de fato a maioria dos seres faz. Por exemplo, num canto do Braço Oriental da Galáxia fica o planeta florestal

Oglaroon,

cuja

totalidade

da

população

"inteligente"

vive

permanentemente dentro de uma populosa e um tanto diminuta nogueira. Dentro de tal árvore nascem, vivem, apaixonam-se, entalham em sua casca minúsculos artigos especulando sobre o sentido da vida, a futilidade da morte e a importância do controle de natalidade, combatem em algumas guerras de pequena importância, e eventualmente morrem pendurados sob as ramagens de alguns dos galhos exteriores mais inacessíveis.

De fato, os únicos oglaroonienses que chegam a deixar sua árvore são aqueles que são atirados fora dela pelo abominável crime de imaginar se alguma das outras árvores poderia ser capaz de comportar vida, ou mesmo se as outras árvores são algo além de ilusões provocadas por comer ogla-nozes demais.

Por exótico que possa parecer este comportamento, não há uma única forma de vida na galáxia que não possa de algum modo ser acusada da mesma coisa, o que é a razão do Vórtice de Perspectiva Total ser tão horripilante. Pois quando você é posto no Vórtice você tem um vislumbre momentâneo de toda a inimaginável infinidade da criação, e em algum lugar, um marcador minúsculo, um ponto microscópico sobre um ponto microscópico, dizendo "Você

está aqui".

A planície cinzenta estendia-se diante de Zaphod, uma planície destroçada e em ruínas. O vento soprava ferozmente sobre ela.

Visível no meio dela estava a protuberância metálica do domo. Aquilo, percebeu Zaphod — era para onde estava indo. Aquilo era o Vórtice de Perspectiva Total.

Quando parou e contemplou friamente o domo, um súbito uivo desumano de terror emanou dele, como se um homem estivesse tendo sua alma arrancada a fogo de dentro de seu corpo. Gritou por sobre o vento e morreu no silêncio. Zaphod começou a ter medo e seu sangue parecia transformar-se em hélio líquido.

— Ei, o que foi isso?— murmurou sem voz.

— Uma gravação — disse Gargravarr — do último homem que foi posto no Vórtice. Sempre é tocada para a próxima vítima. Uma espécie de prelúdio.

— Ei, soa realmente mal... — gaguejou Zaphod — será que não dava para a gente dar uma saidinha, ir a uma festa, coisa assim, e conversar mais a respeito?

— Pelo que eu saiba — disse a voz etérea de Gargravarr — eu já estou numa. Ou seja, o meu corpo está. Ele vai a muitas festas sem mim. Diz que eu só atrapalho. Pois é.

— Como é isso que você tem com o seu corpo? — disse Zaphod, ansioso por fazer demorar o quanto pudesse o que quer que fosse aquilo que ia acontecer com ele.

— Bom, é meio... é complicado, sabe? — disse Gargravarr hesitante.

— Ele tem uma mente própria, é isso?

Houve uma pausa longa e um tanto gelada antes que Gargravarr voltasse a falar.

— Devo dizer — retrucou — que considero esse comentário um tanto de maugosto. Zaphod murmurou um pedido de desculpas confuso e embaraçado.

— Não tem importância — disse Gargravarr —, você não sabia. A voz vibrava, infeliz.

— A verdade é que — prosseguiu, num tom que sugeria que ela estava tentando com muito esforço manter o controle —, a verdade é que estamos atravessando um período de separação judicial. Suspeito que acabará em divórcio. A voz ficou quieta de novo, deixando Zaphod sem saber o que dizer. Resmungou qualquer coisa sem convicção.

— Acho que provavelmente nós não combinávamos bem um com o outro — disse Gargravarr finalmente — parece que nunca estávamos felizes fazendo as mesmas coisas. Sempre tínhamos as maiores discussões a respeito de sexo e pescarias. Eventualmente tentávamos combinar as duas coisas, mas isso só

acabava em desastre, como você pode provavelmente imaginar. E agora meu corpo se recusa a me deixar entrar. Não quer nem me ver... Fez outra pausa, tragicamente. O vento gemia na planície.

— Diz que eu só o restrinjo. Eu argumentei que lá era o meu lugar e ele disse que esse era exatamente o tipo de resposta espertinha que entrava por um ouvido e saía pelo outro. Provavelmente vai conseguir a custódia do meu primeiro nome.

— Oh...? — disse Zaphod, indistintamente. — E qual é?

— Pizpot — disse a voz. — Meu nome é Pizpot Gargravarr. Diz tudo não?

— Ahnnnn — disse Zaphod com compaixão.

— E é por isso que eu, uma mente sem corpo, tenho esse emprego, Guardião do Vórtice de Perspectiva Total. Ninguém jamais andará na superfície deste planeta. A não ser as vítimas do Vórtice — mas essas não contam.

— Ah...

— Vou contar a história. Gostaria de ouvi-la?

— Ahn...

— Há muitos anos este era um planeta próspero e feliz; pessoas, cidades, lojas, um mundo normal. Exceto pelo fato de que nas ruas altas dessas cidades havia mais sapatarias do que se creria necessário. E lentamente, insidiosamente, o número dessas sapatarias ia aumentando. É um fenômeno econômico bastante conhecido, mas trágico de se ver em operação, pois quanto mais sapatarias havia, mais sapatos tinham que ser feitos, e piores e mais imprestáveis iam ficando esses sapatos. E quanto piores ficavam, mais as pessoas tinham que comprar para se manterem calçadas, e mais as sapatarias proliferavam, até que toda a economia do lugar passou pelo que creio que foi chamado de Advento da Era do Sapato, e não foi mais possível economicamente construir qualquer outra coisa que não fosse sapataria. Resultado: colapso, ruína e fome. A maioria da população pereceu. Aqueles poucos que tinham o tipo certo de instabilidade genética transformaram-se por mutações em pássaros — você viu um deles — que amaldiçoaram seus pés, amaldiçoaram o chão e juraram que ninguém mais pisaria nele. Bando infeliz. Venha, preciso levá-lo ao Vórtice.

Zaphod balançou a cabeça estupefato e seguiu cambaleando pela planície.

— E você — perguntou —, você vem deste fundo do inferno?

— Não, não — disse Gargravarr recuando. — Eu sou do Planeta Astrossapo C. Um bonito lugar. Maravilhoso para pesca. Vôo de volta para lá à noitinha. Se bem que tudo que eu posso fazer agora é ficar olhando. O Vórtice de Perspectiva Total é a única coisa neste planeta que tem alguma função. Foi construído aqui porque ninguém mais o queria na porta de casa. Nesse instante outro grito lúgubre cortou o ar e Zaphod estremeceu.

— O que que isso faz com o cara? — perguntou ofegante.

— O Universo — disse Gargravarr com simplicidade —, todo o Universo infinito. Os sóis infinitos, as infinitas distâncias entre eles, e você um pontinho invisível sobre um pontinho invisível, infinitamente pequeno.

— Ei, eu sou Zaphod Beeblebrox, cara, sabia? — sussurrou Zaphod, tentando agitar os últimos restos do seu ego.

Gargravarr não retrucou, mas apenas retomou seu zunido pesaroso até que chegaram ao deslustrado domo de aço no meio da planície. Ao chegarem, a porta abriu de um lado, revelando uma pequena câmara escura no interior.

— Entre — disse Gargravarr. Zaphod sentiu medo.

— Ei, o quê, já? — disse.

— Já.

Zaphod observou o interior nervosamente. A câmara era muito pequena. Era de aço e quase não havia espaço para mais de um homem dentro dela.

— Ahn... não... não parece muito com um Vórtice para mim — disse Zaphod.

— E não é mesmo — disse Gargravarr. — É apenas o elevador. Entre. Com uma trepidação infinita, Zaphod deu um passo para dentro. Sabia que Gargravarr estava no elevador com ele, embora o homem sem corpo não estivesse falando naquele momento.

O elevador iniciou a descida.

— Preciso achar o estado de espírito certo para isso — murmurou Zaphod.

— Não há estado de espírito certo — disse Gargravarr duramente.

— Você sabe mesmo como fazer um cara se sentir inadequado.

— Eu não. O Vórtice sabe.

No fundo do poço, o elevador se abriu e Zaphod foi cair numa câmara de aço pequena e funcional.

Do outro lado havia uma única cabine vertical de aço, do tamanho exato para caber um homem em pé.

Era simples assim.

Estava conectada a uma pequena pilha de componentes e instrumentos através de um único fio grosso.

— É isso aí? — disse Zaphod, surpreso.

— É isso.

Não parecia tão ruim, pensou Zaphod.

— E eu entro aí dentro, é isso? — disse Zaphod.

— Entra — disse Gargravarr —, e creio que deve fazê-lo já.

— OK,OK —disse Zaphod. Abriu a porta da cabine e entrou. Dentro da cabine, ficou esperando.

Passados cinco minutos ouviu um clique, e o Universo estava na cabine com ele.


CAPÍTULO 11

O Vórtice de Perspectiva Total desenvolve sua imagem do Universo como um todo a partir do princípio da análise extrapolada da matéria. Explicando — uma vez que cada pedaço de matéria no Universo está de alguma maneira afetado por todos os outros pedaços de matéria do Universo, é

teoricamente possível extrapolar o todo da criação — cada sol, cada planeta, suas órbitas, sua composição e sua história econômica e social a partir de, digamos, um pedaço de pão-de-ló.

O homem que inventou o Vórtice de Perspectiva Total fez isso basicamente para irritar sua mulher.

Trin Tragula — esse era o nome dele — era um sonhador, um pensador, um filósofo especulativo ou, como sua mulher o definiria, um idiota. E ela o apoquentava incessantemente por causa do tempo completamente fora de propósito que ele dedicava a observar o espaço, ou a meditar sobre o mecanismo dos alfinetes de segurança, ou a fazer análises espectrográficas de pedaços de pão-de-ló.

— Tenha um pouco de senso de proporção! — dizia ela, às vezes trinta e oito vezes em um só dia.

E então ele construiu o Vórtice de Perspectiva Total — só para mostrar para ela.

E numa ponta ele ligou a totalidade da realidade, extrapolada de um pedaço de pão-de-ló, e na outra ponta ligou sua esposa: de modo que quando pôs a máquina para funcionar ela viu num instante toda a infinidade da criação e viu-se a si mesma em relação a isso.

Para horror de Trin Tragula o choque aniquilou completamente seu cérebro; mas

para

sua

satisfação

ele

se

deu

conta

de

que

tinha

provado

conclusivamente que se a vida há de existir num Universo deste tamanho, uma coisa que ela não pode ter é senso de proporção.

A porta do Vórtice abriu-se.

Gargravarr observava de sua mente sem corpo. Tinha gostado de Zaphod Beeblebrox de um modo bastante estranho. Era claramente um homem de muitas qualidades, mesmo sendo más em sua maioria.

Esperava que ele tombasse para fora, como todos.

Em vez disso, ele saiu andando.

— Oi! — disse ele.

— Beeblebrox... — arfou a mente de Gargravarr, maravilhada.

— Será que eu posso beber alguma coisa, por favor?

— disse Zaphod.

— Você... você... esteve no Vórtice? — gaguejou Gargravarr.

— Você me viu, cara.

— E estava funcionando?

— Claro que estava.

— E você viu toda a infinidade da criação?

— Claro. Realmente, um lugar muito arrumado, sabe? A mente de Gargravarr girava atordoada. Se seu corpo estivesse com ela, teria caído sentado de boca aberta.

— E você se viu — disse Gargravarr — em relação a tudo?

— Ah, vi, vi.

— Mas... o que você sentiu?

Zaphod deu de ombros, presunçosamente.

— Só vi o que sempre soube o tempo todo. Sou realmente um grande sujeito. Não disse, baby, eu sou Zaphod Beeblebrox!

Seu olhar passou pela maquinaria que fazia funcionar o Vórtice e parou subitamente, sobressaltado. Respirou pesadamente.

— Ei — disse —, aquilo é mesmo um pedaço de pão-de-ló?

Arrancou o pedaço de bolo dos sensores a que estava ligado.

— Se eu te dissesse o quanto eu estava precisando disso — falou vorazmente —, eu não teria tempo de comer.

Comeu.


CAPÍTULO 12

Pouco depois ele estava correndo pela planície em direção à cidade em ruínas.

O ar úmido chiava em seus pulmões e ele frequentemente tropeçava de cansaço. A noite também estava começando a cair, e o chão áspero era traiçoeiro.

A exaltação de sua experiência recente ainda estava com ele, no entanto. Todo o Universo. Tinha visto todo o Universo estender-se ao infinito à sua volta — tudo. E com isso viera o conhecimento claro e extraordinário de que ele era a coisa mais importante de todas. Ter um ego convencido é uma coisa. Ser realmente informado por uma máquina é outra.

Não tinha tempo para refletir sobre o assunto.

Gargravarr lhe havia dito que teria que alertar seus superiores sobre o que acontecera, mas que estava disposto a deixar um intervalo decente antes de fazê-lo. Tempo bastante para que Zaphod pudesse encontrar um lugar para se esconder.

O que ia fazer ele não sabia, mas sentindo-se a pessoa mais importante do Universo, tinha confiança em crer que alguma coisa ia pintar. Nada além disso naquele planeta empestado poderia lhe dar muita razão para otimismo.

Continuou correndo e logo atingiu a periferia da cidade abandonada. Andou por ruas tortuosas e destruídas, cobertas de ervas daninhas e sapatos em estado de putrefação. Os prédios por que ele passou estavam tão esfacelados e decrépitos que achou que não seria seguro entrar. Onde iria se esconder? Apressou-se.

Depois de um tempo, os restos de uma ampla avenida surgiram, saindo da rua por onde ele vinha andando, e no fim dela havia um prédio baixo e vasto rodeado de vários outros menores, sendo o conjunto circundado por uma paliçada perimetral. O prédio principal parecia razoavelmente sólido, e Zaphod resolveu ir ver se ele poderia lhe servir... bem se poderia lhe servir de alguma coisa.

Aproximou-se do prédio. Ao longo de um dos lados — a frente, ao que tudo indicava, já que dava para um largo pátio de concreto — havia três portas gigantescas, com talvez trinta metros de altura. A mais distante estava aberta e Zaphod entrou por ela.

No interior tudo era escuridão, poeira e confusão. Gigantescas teias de aranha cobriam todas as coisas. Parte da infra-estrutura do prédio tinha desabado, parte da parede dos fundos tinha desmoronado e uma grossa camada de poeira de vários centímetros de espessura cobria o chão. Por entre a escuridão formas enormes erguiam-se envoltas em brumas, cobertas de escombros.

Essas formas eram ora cilíndricas, ora bulbosas, às vezes ovais, ou melhor, em forma de ovos quebrados. A maioria delas estava partida ao meio ou caindo aos pedaços, algumas eram meros esqueletos.

Eram todas naves espaciais abandonadas.

Zaphod perambulou frustrado por entre os destroços. Não havia ali nada que se aproximasse ainda que remotamente do aproveitável. Até uma simples vibração de um passo seu fazia aqueles destroços precários desabarem mais ainda.

Na direção dos fundos do prédio havia uma velha nave, um pouco maior que as demais, e mergulhada sob uma camada ainda mais espessa de pó e teias de aranha. Seu exterior, no entanto, parecia intacto. Zaphod aproximou-se com interesse, e ao fazê-lo, tropeçou numa linha de alimentação. Tentou afastar o fio e, para sua surpresa, descobriu que ainda estava conectado com a nave.

Para seu total assombro, percebeu que a linha de alimentação estava fazendo um leve ruído.

Olhou para a nave, incrédulo, e então para o fio em suas mãos. Arrancou o paletó e jogou fora. Engatinhando, seguiu o fio até o ponto onde ele se conectava com a nave. A conexão estava em bom estado e o som da vibração do fio era mais perceptível.

Seu coração batia acelerado. Limpou um pouco do encardido e encostou o ouvido contra a parede da nave. Ouviu apenas um barulho apagado e indeterminado.

Vasculhou fervorosamente os escombros que estavam no chão à sua volta e encontrou um pequeno pedaço de cano e um copinho de plástico nãobiodegradável. Com isso montou um estetoscópio que colocou contra a parede da nave.

O que ele ouviu fez seus cérebros darem saltos mortais.

A voz dizia:

"As Linhas de Cruzeiro Transestelar gostariam de pedir desculpas aos passageiros pela demora em levantar vôo. Estamos no momento à espera do embarque do nosso suprimento de lencinhos umedecidos de limão para seu conforto, frescor e higiene durante a viagem. Por enquanto agradecemos sua paciência. A tripulação estará brevemente servindo café e biscoitos outra vez".

Zaphod deu um passo para trás olhando embasbacado para a nave. Andou ao redor por alguns instantes, perplexo. Nisso deparou subitamente com uma gigantesca plataforma de embarque ainda suspensa, mas só por um suporte, no teto acima dele. Estava encardida, mas algumas das cifras ainda podiam ser discernidas.

Os olhos de Zaphod investigaram as cifras e fizeram então uns breves cálculos. Arregalou os olhos.

— Novecentos anos... — murmurou para si mesmo. Isso era há quanto tempo a nave estava atrasada.

Dois minutos mais tarde ele estava a bordo.

Assim que passou pela cabine de descompressão o ar que o recebeu era fresco e agradável — o ar-condicionado ainda estava funcionando. As luzes ainda estavam acesas.

Da pequena câmara de entrada saiu num corredor estreito e foi andando por ele nervosamente.

De repente uma porta se abriu e apareceu uma figura diante dele.

— Por favor, retorne ao seu lugar, senhor — disse uma aeromoça andróide, que deu as costas para ele e prosseguiu pelo corredor.

Quando seu coração voltou a bater ele a seguiu. Ela abriu a porta no final do corredor e entrou.

Ele a seguiu porta adentro.

Estavam agora no compartimento de passageiros e o coração de Zaphod parou outra vez por um momento.

Em cada poltrona estava sentado um passageiro, atado a ela. Os cabelos dos passageiros eram longos e despenteados; suas unhas, compridas; os homens tinham barba.

Todos eles estavam claramente vivos — mas dormindo.

Zaphod sentiu calafrios de horror.

Caminhou pelo corredor entre as poltronas como num sonho. Quando ele estava no meio do caminho a aeromoça tinha chegado ao fim. Ela virou e disse:

— Boa-tarde, senhoras e senhores — falou suavemente —, agradecemos pela compreensão desta leve demora. Levantaremos vôo assim que pudermos. Se acordarem agora, servirei café e biscoitos. Houve um breve resmungar. Nesse momento todos os passageiros acordaram. Acordaram berrando e tentando arrancar os cintos e equipamentos de segurança que os mantinham presos às poltronas. Gritaram, berraram e se esganiçaram até Zaphod achar que seus ouvidos iam explodir.

Bufavam e se contorciam enquanto a aeromoça pacientemente vinha pelo corredor colocando uma bandeja de café e biscoitos em frente a cada um deles.

Então um deles ergueu-se de sua poltrona. Virou-se e olhou para Zaphod. A pele de Zaphod parecia querer sair-lhe do corpo. Ele também se virou e saiu correndo da confusão.

Atravessou a porta e voltou ao outro corredor. O homem o perseguiu. Correu num frenesi até o fim do corredor, atravessou a câmara de entrada e foi em frente. Chegou à cabine de comando, bateu e trancou a porta atrás de si. Apoiou-se na porta, ofegante.

Em questão de segundos, alguém começou a bater à porta.

De algum lugar na cabine de comando uma voz metálica o advertia.

— Os passageiros não têm permissão de permanecer na cabine de comando. Por favor, retorne ao seu assento e aguarde a decolagem. Café e biscoitos estão sendo servidos. Aqui quem fala é seu piloto automático. Por favor, retorne ao seu assento.

Zaphod não disse nada. Estava ofegante, atrás dele alguém continuava a bater à porta.

— Por favor, retorne ao seu assento — repetiu o piloto automático. — Os passageiros não têm permissão de permanecer na cabine de comando.

— Eu não sou passageiro — arquejou Zaphod.

— Por favor, retorne ao seu assento.

— Eu não sou passageiro! — gritou Zaphod mais uma vez.

— Por favor, retorne ao seu assento.

— Eu não sou... alô, está me ouvindo?

— Por favor, retorne ao seu assento.

— Você é o piloto automático? — perguntou Zaphod.

— Sou — disse a voz do painel de comando.

— É o encarregado desta nave?

— Sou — disse a voz novamente —, houve um atraso. Os passageiros devem ser mantidos entretidos para seu conforto e conveniência. Serve-se café e biscoitos a cada ano, após o quê os passageiros voltam ao entretenimento para seu conforto e conveniência. Decolaremos assim que os suprimentos de vôo estiverem completos. Pedimos desculpa pela demora.

Zaphod afastou-se da porta, a que tinham parado de bater. Aproximou-se do painel de comando.

— Demora? — gritou. — Você viu o mundo do lado de fora desta nave? É uma terra perdida, um deserto. A civilização apareceu e se foi, cara. Não há

lencinhos umedecidos em limão para chegar de lugar nenhum!

— Ao que indicam as estatísticas — prosseguiu o piloto automático empertigadamente —, outras civilizações hão de se formar. Um dia haverá

lencinhos de papel umedecidos em limão. Até lá teremos uma pequena demora. Por favor, retorne ao seu assento.

— Mas...

Mas nesse instante a porta se abriu. Zaphod voltou-se para ver o homem que o perseguira. Estava carregando uma grande mala. Estava vestido com elegância e tinha os cabelos curtos. Não tinha barba nem unhas compridas.

— Zaphod Beeblebrox — disse ele. — Meu nome é Zarniwoop. Creio que você

estava querendo me ver.

Zaphod Beeblebrox estremeceu. Suas bocas diziam frases desconexas. Caiu sentado numa cadeira.

— Cara, cara, de onde você apareceu, cara? — disse ele.

— Eu estava aqui a sua espera — disse, num tom de homem de negócios. Largou a mala e sentou-se em outra cadeira.

— Estou contente que tenha seguido as instruções — prosseguiu. — Estava um pouco preocupado que você tivesse saído de meu escritório pela porta e não pela janela. Nesse caso você teria entrado numa enrascada. Zaphod sacudiu as cabeças e balbuciou.

— Quando você entrou pela porta de meu escritório você penetrou em meu Universo sintetizado eletronicamente — explicou. — Se tivesse saído pela porta teria voltado ao real. O artificial é controlado daqui. Deu uns tapinhas na mala.

Zaphod o observou com ressentimento e aversão.

— Qual é a diferença? — murmurou.

— Nenhuma — disse Zarniwoop —, são idênticos. Oh, exceto que os Lutadores Astrossapos são cinza-claro no Universo real, se não me engano.

— O que está acontecendo? — bradou Zaphod.

— Simples — disse Zarniwoop. Sua autoconfiança e presunção faziam Zaphod ferver.

— Muito simples — repetiu Zarniwoop —, descobri as coordenadas onde esse homem pode ser encontrado — o homem que rege o Universo — e descobri que seu planeta está protegido por um Campo de Improbabilidade. Para proteger meu segredo — e a mim — retirei-me à segurança deste Universo totalmente artificial e me escondi numa linha esquecida de cruzeiro. Estava em segurança. Enquanto isso, você e eu...

— Você e eu? — disse Zaphod furioso. — Quer dizer que eu te conhecia?

— Conhecia — disse Zarniwoop. — Nós nos conhecíamos bem.

— Eu não tinha bom gosto — disse Zaphod, e assumiu um silêncio emburrado.

— Enquanto isso, eu e você combinamos que você roubaria a nave movida a Improbabilidade Infinita — a única que poderia alcançar o mundo do regente do Universo — e a traria a mim aqui. Isto você fez agora, acredito, e lhe dou meus parabéns. — Dirigiu-lhe um sorriso firme que Zaphod gostaria de ter acertado com um tijolo.

— Ah, e caso você esteja querendo saber — acrescentou Zarniwoop —, este Universo foi criado especificamente para que você viesse a ele. Você é

portanto a pessoa mais importante deste Universo. Você jamais — prosseguiu com um sorriso ainda mais tijolável — teria sobrevivido ao Vórtice de Perspectiva Total no Universo real. Vamos?

— Aonde? — disse Zaphod, emburrado. Sentia-se demolido.

— Ã sua nave. Coração de Ouro. Acredito que você a trouxe, não?

— Não.

— Onde está o seu paletó? Zaphod o encarou, misticamente.

— Meu paletó? Eu o tirei, está lá fora.

Zarniwoop levantou-se e fez um gesto para que Zaphod o acompanhasse. Na câmara de entrada, puderam ouvir os gritos dos passageiros sendo alimentados com café e biscoitos.

— Não vinha sendo uma experiência muito agradável esperar por você —

disse Zarniwoop.

— Não muito agradável para você! — berrou Zaphod. — O que você acha... Zarniwoop levantou um dedo pedindo silêncio enquanto abria a porta que dava para o exterior. A poucos metros dali acharam o paletó de Zaphod sobre os escombros.

— Uma nave muito notável e poderosa — disse Zarniwoop. — Observe. Enquanto observavam, o bolso do paletó inchou subitamente. Rasgou-se e rompeu-se. O pequeno modelo de metal do Coração de Ouro que Zaphod intrigara-se de achar no seu bolso estava crescendo.

Crescia, continuava a crescer. Após alguns minutos atingiu seu tamanho natural.

— A um Nível de Improbabilidade de... — disse Zarniwoop — de... ah, sei lá, mas algo muito alto.

Zaphod balançava.

— Quer dizer que eu a tinha comigo o tempo todo? Zarniwoop sorriu. Pegou sua mala e abriu.

Girou um único botão dentro dela.

— Adeus, Universo artificial — disse. — Olá. Universo real. O cenário diante deles desvaneceu vagamente c reapareceu exatamente como estava antes.

— Viu? — disse Zarniwoop. — Exatamente igual.

— Quer dizer — repetiu Zaphod por extenso — que eu a tinha comigo o tempo todo?

— Ah, sim — disse Zarniwoop —, claro. Essa era toda a questão.

— É o seguinte — disse Zaphod —, eu estou fora, daqui pra frente não conte comigo. Já tive o que queria com isso. Você brinque como quiser.

— Lamento, mas você não pode sair — disse Zarniwoop —, você está

entrelaçado no Campo de Improbabilidade. Você não pode escapar. Sorriu aquele sorriso que Zaphod desejara acertar e que desta vez acertou.


CAPITULO 13

Ford Prefect saltou para a ponte de comando do Coração de Ouro.

— Trillian! Arthur! — gritou. — Está funcionando! A nave foi reativada!

Trillian e Arthur estavam dormindo no chão.

— Venham, vocês, estamos indo, estamos saindo — disse, chutando-os para acordá-los.

— Oi, gente — gorjeou o computador —, é muito legal estar mais uma vez com vocês, puxa vida, e eu só queria dizer que...

— Cala a boca — disse Ford —, diga-nos apenas em que inferno a gente está.

— Planeta Astrossapo B, e, cara, é um monturo! — disse Zaphod, correndo para a ponte. — Oi, turma, vocês devem estar tão maravilhosamente felizes de me ver que não conseguem encontrar palavras para exprimir o quanto eu sou supimpa.

— O quanto é o quê? — disse Arthur, de olhos turvos, erguendo-se do chão e sem entender nada.

— Sei como vocês se sentem — disse Zaphod. — Sou tão sensacional que às vezes até eu fico sem palavras quando falo comigo mesmo. Ei, prazer em vêlos, Trillian, Ford, Homem-macaco. Ei, ahn, computador...?

— Oi, gente, sr. Beeblebrox, é realmente uma grande honra...

— Cale a boca e tire-nos daqui, rapidinho.

— Pra já, amigão, pra onde você quer ir?

— Qualquer lugar, não importa — gritou Zaphod. — Quer dizer, importa sim!

— disse de novo. — A gente quer ir para o lugar mais perto onde se possa comer!

— Pra já! — disse o computador feliz e uma massiva explosão chacoalhou a ponte.

Quando Zarniwoop entrou um minuto mais tarde, com um olho roxo, observou os quatro filetes de fumaça com interesse.


CAPITULO 14

Quatro

corpos

inertes

afundavam

num

redemoinho

de

escuridão.

A

consciência estava morta, o frio esquecimento arrastava os corpos para as profundezas do não ser. O troar do silêncio ecoava lugubremente a seu redor e eles afundaram por fim num mar escuro e amargo de um vermelho movediço que lentamente os engolfou, aparentemente para sempre.

Após o que pareceu uma eternidade o mar recuou e os deixou estendidos numa praia dura e fria, despojos da correnteza da Vida, do Universo e de Tudo.

Espasmos frios os sacudiam, luzes dançavam nauseantemente à sua frente. A praia dura e fria tombava e girava e então parava. Tinha um brilho escuro —

era uma praia fria e dura muito reluzente.

Um borrão esverdeado os observava com ar de reprovação.

Tossiu.

— Boa-noite, madame, cavalheiros — disse —, têm reserva?

A consciência de Ford Prefect ricocheteou de volta, como elástico, animando seu cérebro. Olhou para o borrão, confuso.

— Reserva? — perguntou debilmente.

— Sim, senhor — disse o borrão verde.

— É preciso reserva para o além-da-vida?

Na medida em que é possível a um borrão esverdeado arcaras sobrancelhas desdenhosamente, foi isso que ele fez.

— Além-da-vida, senhor? — disse.

Arthur Dent engalfinhava-se com sua consciência como alguém que se engalfinha com uma barra de sabão na banheira.

— Aqui é o além? — gaguejou.

— Bom, eu presumo que seja — disse Ford Prefect, tentando descobrir qual era o lado de cima. Testou a teoria de que deveria ficar na direção oposta ao chão frio e duro da praia em que estava deitado e cambaleou para ficar sobre o que esperava serem seus pés.

— Quero dizer — disse, balançando brandamente —, não tem jeito da gente ter sobrevivido àquela explosão, tem?

— Não — murmurou Arthur. Ele estava se apoiando sobre os cotovelos, mas isso não parecia melhorar as coisas. Deixou-se cair de novo.

— Não — disse Trillian, levantando-se —, não tem nenhum jeito. Um som surdo, rouco e gorgolejante emergiu do solo. Era Zaphod Beeblebrox tentando falar.

— Eu certamente não sobrevivi — gorgolejou ele. — Eu era um cara totalmente à beira da morte. Pá pum, e é isso aí.

— É, graças a você — disse Ford —, não tivemos a menor chance. Devemos ter sido transformados em pedacinhos. Braços, pernas por toda parte.

— É — disse Zaphod levantando-se barulhentamente.

— Se a senhorita e os cavalheiros desejarem algo para beber... — disse o borrão esverdeado, que permanecia impaciente ao lado deles.

— Caplan pá tabum — prosseguiu Zaphod —, e lá estão nossas moléculas instantaneamente desintegradas. Ei, Ford — disse, ao identificar um dos borrões que se solidificavam lentamente à sua volta —, bateu para você essa coisa de ver sua vida inteira desfilando à sua frente?

— Bateu assim para você? — disse Ford. — Sua vida inteira?

— É, ou pelo menos eu presumo que era minha. Eu passei muito tempo fora de mim, sabe.

Olhou à sua volta para as várias formas que estavam finalmente tomando forma propriamente em vez de vagas e vacilantes formas disformes.

— Então... — disse.

— Então o quê? — disse Ford.

— Então aqui estamos nós — disse Zaphod, hesitante —, deitados, mortos aqui...

— Estamos em pé — corrigiu Trillian.

— Ahn, em pé, mortos — continuou Zaphod — neste desolado...

— Restaurante — disse Arthur Dent, que tinha levantado e conseguia, para sua surpresa, ver claramente. Aliás, o que o surpreendia não era que ele pudesse ver, mas o que ele estava vendo.

— Aqui estamos nós — continuou Zaphod, obstinado —, em pé, mortos, neste desolado...

— Cinco estrelas — disse Trillian.

— Restaurante — concluiu Zaphod.

— Estranho, não? — disse Ford.

— Ahn, é.

— Belos candelabros, no entanto — disse Trillian. Olharam uns para os outros, estupidificados.

— Não é bem um além-da-vida —disse Arthur. — Está mais para um après vie. Os candelabros eram de fato um tanto espalhafatosos e o teto baixo abobadado não teria, num Universo ideal, sido pintado naquele tom particular de turquesa, e mesmo se fosse, não teria sido iluminado por aquele tipo de luz

indireta.

Este

não

é,

porém,

um

Universo

ideal,

como

ficou

posteriormente evidenciado pelos desenhos no parquete de mármore, e pelo modo como tinha sido feita a fachada do bar de cento e vinte metros cobertos de mármore. A fachada do bar de cento e vinte metros cobertos de mármore tinha sido feita juntando-se cerca de duas mil peles de Lagartos Mosaicos Antarenses, sem se ligar para o fato de que os dois mil lagartos envolvidos precisavam delas para manterem seus interiores do lado de dentro. Algumas criaturas elegantemente vestidas passeavam ociosamente pelo bar ou descansavam nos confortáveis assentos ricamente coloridos dispostos aqui e ali por todo o recinto do bar. Um jovem oficial Vl'Hurg e sua vaporosa dama verde atravessaram a porta de vidro fume no fundo do bar e penetraram na luz ofuscante do salão principal do Restaurante.

Atrás de Arthur havia uma grande janela de sacada com cortinas. Ele afastou um canto da cortina e olhou para fora, para uma paisagem árida e desolada, cinza, lúgubre, cheia de crateras, uma paisagem que em condições normais teria dado calafrios de terror em Arthur. Estas não eram, porém, condições normais, pois a coisa que gelava seu sangue e fazia sua pele tentar arrastar-se por suas costas e lhe sair pela nuca era o céu. O céu era...

Um criado de libré puxou educadamente a cortina de volta ao seu lugar.

— Tudo a seu tempo, cavalheiro — disse. Os olhos de Zaphod flamejaram.

— Ei, prestem atenção, defuntos — disse. — Acho que estamos perdendo alguma coisa ultra-importante aqui, sabe. Alguma coisa que alguém aqui disse e a gente perdeu.

Arthur estava profundamente aliviado em desviar sua atenção daquilo que acabara de ver.

— Eu disse que era uma espécie de après...

— É, e não preferia não ter dito? — disse Zaphod. — E você, Ford?

— Eu disse que era estranho.

— É, sagaz, mas sem graça, talvez tenha sido...

—Talvez — interrompeu o borrão esverdeado, que a essa altura tinha tomado a forma de um mirrado garçonzinho vestido de verde-escuro —, talvez os senhores queiram discutir a questão de algo para beber...

— Beber! — exclamou Zaphod, apaixonado. — Escute, pessoinha verde, meu estômago poderia levá-lo para casa e afagá-lo durante toda a noite simplesmente pela idéia.

— ... e o Universo — prosseguiu o garçom, determinado a não se desviar do seu curso — explodirá mais tarde, para seu prazer.

A cabeça de Ford inclinou-se lentamente em sua direção. Ele falou com sentimento.

— Urras — disse —, que espécie de bebida vocês servem neste lugar?

O garçom riu; um pequeno riso educado de garçom.

— Ah — disse ele —, creio que o cavalheiro talvez me tenha compreendido mal.

— Oh, espero que não — suspirou Ford.

O garçom tossiu; uma pequena tosse educada de garçom.

— Não é raro que nossos fregueses sintam-se um pouco desorientados com a viagem no tempo — disse. — De forma que eu sugeriria...

— Viagem no tempo? — disse Zaphod.

— Viagem no tempo? — disse Ford.

— Viagem no tempo? — disse Trillian.

— Quer dizer que isto não é o além? — disse Arthur.

O garçom sorriu; um pequeno sorriso educado de garçom. Tinha quase exaurido seu pequeno repertório educado de garçom e logo cairia em seu papel de garçom de lábios apertados e pequeno sorriso sarcástico.

— Além, cavalheiro? — disse. — Não, senhor.

— E não estamos mortos? — disse Arthur. O garçom apertou os lábios.

— Aha, ha — disse. — O cavalheiro está evidentissimamente vivo, caso contrário eu não tentaria atendê-lo, senhor.

Num gesto extraordinário que não faz sentido tentar descrever, Zaphod Beeblebrox bateu em suas duas cabeças com dois de seus braços e em uma de suas coxas com o outro.

— Ei, caras — disse. — Que louco! Conseguimos! Finalmente chegamos aonde estávamos indo! Aqui é o Milliways!

— Milliways! — disse Ford.

— Sim, senhor — disse o garçom, garimpando paciência —, aqui é o Milliways, o Restaurante do Fim do Universo.

— Fim do quê? — perguntou Arthur.

— Do Universo — repetiu o garçom, com muita clareza e desnecessária distinção.

— Quando ele acabou? — perguntou Arthur.

— Dentro de poucos minutos, senhor. — Respirou fundo. Não precisava fazêlo, uma vez que seu corpo era suprido com a variedade peculiar de gases de que necessitava através de um pequeno dispositivo intravenoso atado a sua perna.

Há momentos, porém, em que não importa que metabolismo se tenha, é

preciso respirar fundo.

— Agora, se os senhores quiserem pedir finalmente seus drinques — disse —

, eu lhes mostrarei sua mesa.

Zaphod arreganhou dois sorrisos maníacos, passeou pelo bar pedindo quase todas as coisas.


CAPÍTULO 15

O Restaurante do Fim do Universo é um dos acontecimentos mais extraordinários em toda a história do abastecimento. Foi construído a partir dos restos fragmentários do... será construído a partir dos restos... ou seja, terá sido construído a essa altura, e de fato foi... Um dos maiores problemas encontrados em viajar no tempo não é vir a se tornar acidentalmente seu pai ou sua mãe. Não há nenhum problema em tornarse seu próprio pai ou mãe com que uma família de mente aberta e bem ajustada não possa lidar. Não há tampouco problema em mudar o curso da história — o curso da história não muda porque todas as peças se juntam como num quebracabeça. Todas as mudanças importantes ocorreram antes das coisas que deveriam mudar e tudo dá na mesma no final.

O problema maior é simplesmente gramatical, e a principal obra a ser consultada sobre esta questão é o tratado do Dr. Dan Streetmentioner, Manual dos 1001 Tempos Gramaticais para o Viajante no Tempo. Ensina, por exemplo, a descrever algo que estava prestes a acontecer com você no passado antes de você evitá-lo pulando no tempo para dois dias depois com a intenção de evitá-lo. O evento é descrito distintamente conforme você esteja referindose a ele do seu ponto natural no tempo, de uma época no futuro posterior ou numa época no passado posterior ao evento e posteriormente vai ficando mais e mais complicado caso você esteja viajando de cá para lá no tempo na tentativa de tornar-se seu próprio pai ou sua própria mãe. A maioria dos leitores chega até o Futuro Semicondicional Subinvertido Plagal do Pretérito Subjuntivo Intencional antes de desistir; e de fato, em edição mais recente desse livro as páginas subseqüentes têm sido deixadas em branco para economizar custos de impressão.

O Guia da Galáxia para Caronas passa por cima desta abstração acadêmica, parando apenas numa nota lembrando que o termo "Futuro Perfeito" foi abandonado assim que se descobriu que não é.

Resumindo:

O Restaurante do Fim do Universo é um dos acontecimentos mais extraordinários em toda a história do abastecimento.

É

construído

a

partir

dos

restos

fragmentários

de

um

planeta

ocasionalmente destruído que é (seraria tendo a ser) fechado numa vasta bolha de tempo e projetado adiante no tempo até o momento preciso do Fim do Universo.

Isto é, diriam muitos, impossível.

Nele, os fregueses tomam (irão ter tomando) seus lugares nas mesas e comem (irão ter comendo) suntuosas refeições contemplando (a estarão tendo contemplarem) toda a criação explodir à sua volta.

Isto é, muitos diriam, igualmente impossível.

Pode-se chegar (irá poder-se ter-se então estado estando-se a chegar) a qualquer mesa que se deseje sem reserva prévia (pós-pré-quanda) porque se pode fazer a reserva retrospectivamente, ao se voltar para sua própria era (poder-se-á ter tido a reserva sendo a ser feita pospectivamente antes de se tivera havido de retorno ao retrolar).

Isto é, muitos agora insistiriam, absolutamente impossível. No Restaurante, pode-se encontrar e acompanhar numa refeição (vir a por ter encontrar-se e jantivera juntos) um fascinante corte transversal de toda a população do espaço e do tempo.

Isto, pode-se explicar pacientemente, também é impossível. Pode-se ir lá quantas vezes se desejar (ir reter ido desejar-se... e por aí afora — para mais informações de correção gramatical, consulte o livro do Dr. Streetmentioner) e se ter a certeza de que não se encontrará consigo próprio, por causa do embaraço que isso costuma ocasionar. Isto, mesmo se o resto fosse verdadeiro, o que não acontece, é

patentemente impossível, dizem os céticos.

Tudo o que você precisa fazer é depositar um centavo numa conta de poupança em sua própria era, e quando chegar ao Fim dos Tempos, o cômputo dos juros significará que o preço fabuloso de sua refeição já estará pago. Isto, alegam muitos, não só é meramente impossível como também claramente insano, e é por isso que os executivos de publicidade do sistema estelar de Bastablon vieram com o slogan: "Se você fez seis coisas impossíveis esta manhã, por que não arredondar com uma refeição no Milliways, o Restaurante do Fim do Universo?".


CAPÍTULO 16

No bar, Zaphod já estava ficando acabado como uma salamandra aquática. Já

estava batendo com uma cabeça na outra e seus sorrisos estavam fora de sincronismo. Estava miseravelmente feliz.

— Zaphod — disse Ford —, enquanto você ainda é capaz de falar, poderia me contar que fóton foi que aconteceu com você? Por onde você andou? Por onde você andou? É um assunto de menor importância, mas eu gostaria de vê-lo esclarecido.

A cabeça esquerda de Zaphod ficou sóbria, deixando a direita afundar na obscuridade da bebida.

— Pois é — disse —, eu estive por aí. Querem que eu encontre o homem que rege o Universo, mas eu não estou nem aí em encontrá-lo. Acho que esse homem não deve saber cozinhar.

Sua cabeça esquerda ficou olhando a direita dizer isso e concordou:

— Ê verdade, está certo, agora bebe mais um pouco. Ford tomou outra Dinamite Pangaláctica, o drinque descrito como o equivalente alcoólico do assalto — caro e faz mal à cabeça. O que quer que tivesse acontecido, Ford decidiu, não interessava tanto assim.

— Escuta, Ford — disse Zaphod —, está tudo em paz, tudo em cima.

— Quer dizer que está tudo sob controle.

— Não — disse Zaphod —, eu não quero dizer que está tudo sob controle. Senão não estaria tudo em cima e em paz. Se você quer saber o que ocorreu, digamos apenas que eu tinha toda a situação em meu bolso, OK?

Ford sacudiu os ombros.

Zaphod riu em cima de sua bebida. Ela despejou, desceu pelo copo e começou a escorrer pelo balcão de mármore.

Um cigano celestial de pele escura aproximou-se tocando violino elétrico para eles até que Zaphod lhe deu bastante dinheiro e ele concordou em h embora.

O cigano aproximou-se de Trillian e Arthur, que estavam sentados num outro ponto do bar.

— Não sei que lugar é este — disse Arthur —, mas me dá arrepios.

— Tome outro drinque — disse Trillian —, divirta-se.

— Qual dos dois? — disse Arthur. — São mutuamente excludentes.

— Pobre Arthur, você realmente não foi feito para esta vida, não?

— Você chama isto de vida?

— Você está começando a se parecer com Marvin.

— Marvin tem o pensamento mais claro que conheço. Como você acha que a gente se livra deste violinista?

O garçom aproximou-se.

— Sua mesa está pronta.

Visto de fora, de onde nunca é visto, o Restaurante se assemelha a uma reluzente estrela do mar sobre uma rocha esquecida. Os braços abrigam os bares, as cozinhas, os geradores de campo de força, que protegem toda a estrutura e o pedaço de planeta onde ela está instalada, e as Turbinas de Tempo, que movimentam lentamente todo o aparato de um lado para outro do momento crucial.

No centro fica o gigantesco domo de ouro, quase um globo completo, e foi para esta área que Zaphod, Ford, Arthur e Trillian se dirigiram agora. Pelo menos cinco toneladas de brilho puro haviam entrado ali antes deles e coberto toda superfície disponível. As outras superfícies não estavam disponíveis porque já estavam incrustadas de jóias, conchas marinhas preciosas de Santraginus, folhas de ouro, mosaicos de azulejos, peles de lagarto e um milhão de adornos e decorações inidentificáveis. O vidro brilhava, a prata reluzia, o ouro cintilava, Arthur Dent revirava os olhos.

— Uau — disse Zaphod —, urras.

— Incrível — suspirou Arthur —, as pessoas...! As coisas...!

— As coisas — disse Ford Prefect, com calma — também são pessoas.

— As pessoas... — corrigiu Arthur — as... outras pessoas...

— As luzes...! — disse Trillian.

— As mesas...! — disse Arthur.

— As roupas...! — disse Trillian.

O garçom achou que eles pareciam uma dupla de almoxarifes.

— O Fim do Universo é muito apreciado — disse Zaphod cambaleando por entre as mesas, algumas feitas de mármore, outras de rico ultramórgano, algumas até de platina, e em cada uma um grupo de exóticas criaturas conversando entre si e estudando o cardápio.

— As pessoas gostam de se arrumar para vir aqui — continuou Zaphod. — Dá

uma sensação de uma ocasião especial.

As mesas eram dispostas num grande círculo em torno de um palco central onde uma pequena orquestra tocava música suave. O palpite de Arthur era de pelo menos umas mil mesas, e intercaladas entre elas, palmeiras balouçantes, fontes murmurantes, estatuária bizarra, enfim, todo tipo de parafernália comum a todos os restaurantes em que se poupou alguma despesa para dar a impressão de que nenhuma despesa foi poupada. Arthur olhou ao redor, meio esperando avistar alguém fazendo um comercial do American Express. Zaphod tropeçou em Ford, que tropeçou de volta em Zaphod.

— Uauí — disse Zaphod.

— Urras — disse Ford.

— Meu bisavô deve ter realmente sacaneado com o trabalho do computador, sabe — disse Zaphod. — Eu disse para ele nos levar para o lugar mais perto para comer e ele nos manda para o Fim do Universo. Me lembre de ser legal com ele.

Fez uma pausa.

— Ei, está todo mundo aqui, sabia? Todo mundo que foi alguém.

— Foi? — disse Arthur.

— No Fim do Universo você tem que usar bastante o pretérito — disse Zaphod — porque tudo já foi feito, sabe. Oi, rapazes! — acenou para um grupo de iguanas gigantes. — Como foram?

— Esse é Zaphod Beeblebrox? — perguntou um iguana ao outro.

— Acho que sim — respondeu o outro iguana.

— Cada uma que aparece — disse o primeiro iguana.

— Assim é a vida — disse o segundo iguana.

— Assim vai indo — disse o primeiro e eles mergulharam de volta ao silêncio. Estavam esperando o maior show do Universo.

— Ei, Zaphod — disse Ford, tentando agarrar seu braço, e, devido à

terceira Dinamite Pangaláctica, não conseguindo. Apontou algo com um dedo oscilante.

— Ali está um velho colega meu — disse. — Hotblack Desiato! Está vendo aquele cara na mesa de platina, com um terno de platina?

Zaphod tentou acompanhar o dedo de Ford com os olhos, mas ficou tonto. Por fim ele viu.

— Ah, só! — disse, e o reconhecimento veio um momento depois. — Ei, esse cara realmente foi o megamáximo! Uau! Maior do que o mais máximo dos máximos. Além de mim.

— Quem é? — perguntou Trillian.

— Hotblack Desiato? — disse Zaphod, assombrado.

— Você não conhece? Você nunca ouviu falar do Disaster Area?

— Não — disse Trillian, que nunca tinha ouvido.

— A maior — disse Ford —, a mais barulhenta...

— A mais rica... — sugeriu Zaphod.

— ... banda de rock da história do... — procurou a palavra.

— ... da história em si — disse Zaphod.

— Não — disse Trillian.

— Uauí — disse Zaphod —, aqui estamos nós no Fim do Universo e você ainda nem viveu. Você está marcando.

Ele a acompanhou até a mesa onde o garçom estava esperando todo esse tempo. Arthur os seguiu, sentindo-se muito perdido e solitário. Ford enfrentou o mar de mesas para ir cumprimentar um velho conhecido.

— Ei, ahn, Hotblack — gritou —, como vai? Nem acredito que estou te vendo! E essa barriga? Fantástico!

— Deu uma palmada nas costas do homem e ficou um tanto surpreso ao não receber resposta. A Dinamite Pangaláctica correndo no seu sangue lhe disse para ir frente mesmo assim.

— Lembra dos velhos tempos? — disse. — A gente costumava pendurar, não é?

O Bistrô Ilegal, lembra? O Empório da Garganta Exígua? O Calamitódromo da Bebedeira? Grandes dias, ehn?

Hotblack Desiato não ofereceu nenhuma opinião quanto a se os dias tinham sido grandes ou não. Ford não se perturbou.

— E quando a gente tinha fome, a gente se fazia de fiscais da saúde pública, lembra disso? E saía por aí confiscando comidas e bebidas, ehn? Até

que a gente teve uma intoxicação alimentar. Ah, e então teve aquelas noites longas conversando e bebendo naqueles quartos malcheirosos em cima do Café

Lou em Vila Gretchen, Nova Betei, e você ficava sempre no quarto ao lado tentando compor umas músicas na sua guitarra e a gente achava péssimas. E

você dizia que não ligava, e a gente dizia que ligava porque eram muito péssimas. — O olhar de Ford começava a ficar embaçado.

— E você dizia que não queria ser uma estrela — continuou, viajando na nostalgia — porque despreza o sistema de estrelas. E a gente dizia, naquele tempo era eu, o Hadra, o Sulijoo, a gente dizia que não acreditava que você

tivesse mesmo essa opinião. E agora, o que você faz? Você compra sistemas de estrelas!

Virou-se e solicitou a atenção das mesas próximas.

— Eis aqui — disse — um homem que compra sistemas de estrelas!

Hotblack não fez qualquer tentativa de confirmar ou negar esse fato, e a atenção da audiência temporária desviou-se rapidamente.

— Acho que alguém está bêbado — murmurou um ser lilás em forma de arbusto para seu copo de vinho.

Ford cambaleou e sentou-se pesadamente na cadeira em frente a Hotblack Desiato.

— Como é aquele seu número? — disse, agarrando-se desajeitadamente a uma garrafa e a derrubando, por coincidência dentro de um copo que estava ali ao lado. Para não desperdiçar um acidente feliz, secou o copo.

— Aquele número quente — continuou —, como é mesmo? "Bwarrm! Bwarrm!

Baderr!" coisa assim, e no palco termina com a nave indo de encontro ao sol, e você faz isso de verdade!

Ford bateu um punho contra a palma da outra mão para ilustrar graficamente o feito. Derrubou a garrafa outra vez.

— Nave! Sol! Pápum! — gritou. — Quero dizer, pode esquecer essas coisas de laser, vocês estão nas labaredas solares e botando fogo! Ah, e músicas horríveis.

Seus olhos seguiram a trilha líquida escorrendo para fora da garrafa em cima da mesa. Algo precisava ser feito a esse respeito, pensou.

— Ei, você quer beber? — perguntou. Começou a penetrar em sua mente encharcada a impressão de que estava faltando algo naquela reunião e de que essa coisa que estava faltando tinha a ver com o fato de aquele gordo sentado à sua frente de terno de platina ainda não ter dito "Oi, Ford" ou "Que bom te ver depois de todo esse tempo", ou, na verdade, pelo menos alguma coisa. Para ser mais exato, ele não tinha nem se mexido.

— Hotblack? — disse Ford.

Uma imensa mão carnuda pousou sobre seu ombro pelas costas e o arrancou para o lado. Ele se ergueu sem graça de sua cadeira e olhou para cima para ver se podia localizar o dono daquela mão descortês. O dono não era difícil de se localizar, devido ao fato dele medir cerca de dois metros e meio de altura e não ter sido feito com outras medidas que não fossem proporcionais a essa. Na verdade ele fora feito como se faz um sofá de couro, lustroso, pesado e solidamente recheado. O terno em que o corpo do homem tinha sido enfiado parecia ter como único propósito na vida demonstrar como é difícil colocar um corpo desse tipo em um terno. O rosto tinha a textura de uma laranja e a cor de uma maçã, mas aí acabava qualquer semelhança com qualquer coisa doce.

— Ô, garoto... — disse uma voz que emergia da boca do homem como se tivesse passado por maus bocados em seu peito.

— Ahn, o quê? — disse Ford informalmente. Estava novamente sobre seus pés e ficou desapontado que sua cabeça não chegasse um pouco mais para cima com relação ao corpo do homem.

— Bate — disse o homem.

— Ah, é? — disse Ford, pensando se estaria sendo prudente. — E quem é

você?

O homem considerou a pergunta por um instante. Não estava acostumado a que lhe fizessem esse tipo de pergunta. Mesmo assim, depois de alguns momentos, veio com uma resposta.

— Eu sou o cara que está te dizendo para bater — disse — antes que batam para você.

— Agora, escute — disse Ford, nervoso; esperava que sua cabeça parasse de girar, ficasse quieta e tomasse o controle da situação —, agora, escute —

prosseguiu —, eu sou um dos amigos mais antigos de Hotblack e... Olhou de soslaio para Hotblack Desiato que ainda não tinha mexido nem uma pestana.

— ... e... — disse Ford outra vez, pensando no que seria uma boa palavra a dizer depois de "e".

O homem enorme tinha uma frase inteira para dizer depois de "e".

— E eu sou o guarda-costas do senhor Desiato — dizia a frase —, e sou responsável pelas costas dele, e não sou responsável pelas suas, então leveas embora antes que se danifiquem.

— Agora, espere um minuto — disse Ford.

— Nenhum minuto! — rugiu o guarda-costas. — Nenhuma espera! O senhor Desiato não fala com ninguém!

— Bom, talvez você possa deixar ele mesmo dizer o que acha do assunto —

disse Ford.

— Ele não fala com ninguém! — bramiu o guarda-costas.

Ford olhou ansiosamente para Hotblack outra vez e foi forçado a admitir para si mesmo que o guarda-costas estava com os fatos do lado dele. Continuava não havendo o menor movimento, o menor sinal de interesse quanto ao bem-estar de Ford.

— Por quê? — disse Ford. — Qual é o problema dele? O guarda-costas lhe disse.


CAPITULO 17

O Guia da Galáxia para Caronas diz que o Disaster Área, uma banda de rock plutoniano das Zonas Mentais de Gagrakacka, é geralmente tido não apenas como a mais barulhenta banda de rock da Galáxia, mas de fato a coisa mais barulhenta de todas. Os freqüentadores habituais de seus shows julgam que o lugar onde se ouve o som com o melhor equilíbrio é dentro de bunkers de concreto a uns sessenta quilômetros do palco, enquanto os próprios músicos tocam os instrumentos por controle remoto de uma espaçonave altamente isolada que fica em órbita em torno do planeta — ou, mais frequentemente, em torno de um planeta completamente diferente.

Suas músicas são no geral bastante simples e a maioria seguindo o velho tema familiar do rapaz que encontra a moça sob uma lua prateada que então explode por nenhuma razão adequadamente explorada.

Muitos mundos já baniram suas apresentações, algumas vezes por razões artísticas, mas mais comumente pelo fato da aparelhagem de som da banda infringir os tratados locais de limitação de armas estratégicas. Isso não os impediu, no entanto, de prosseguir com seus rendimentos por dilatar os limites da hipermatemática pura, e seu pesquisador-chefe de contabilidade

foi

recentemente

nomeado

Professor

Catedrático

de

Neomatemática da Universidade de Maximegalon, em reconhecimento a suas Teorias Geral e Especial das Devoluções dos Impostos do Disaster Área, em que prova que toda a estrutura do contínuo espaço-tempo não está meramente curva, mas completamente torta.

Ford foi cambaleando de volta à mesa, onde Zaphod, Arthur e Trillian esperavam começar a diversão.

— Preciso comer alguma coisa — disse Ford.

— E aí, Ford — disse Zaphod —, falou com o carinha barulhento?

Ford meneou a cabeça, evasivamente.

— Hotblack? É, eu falei mais ou menos com ele, sim.

— O que ele disse?

— Bom, não muita coisa. Ele... ahn...

— Ahn?

— Está passando um ano parado por questões de imposto. Preciso sentar. Sentou-se. Veio o garçom.

— Gostariam de olhar o cardápio? — disse ele. — Ou gostariam de conhecer o Prato do Dia?

— Uhm? — disse Ford.

— Uhm? — disse Arthur.

— Uhm? — disse Trillian.

— É isso aí — disse Zaphod. — Vamos ser apresentados a esse prato. Numa salinha num dos braços do complexo do Restaurante, uma figura alta, magra e desengonçada afastou uma cortina e o esquecimento o olhou no rosto. Não era um rosto bonito. Talvez porque o esquecimento o tivesse encarado tantas vezes. Era comprido demais, para começar; os olhos, fundos demais; as faces, cavernosas; os lábios, finos demais e compridos demais, e quando se abriam, seus dentes se pareciam demais com uma janela de sacada recentemente polida. As mãos que seguravam a cortina também eram longas e magras demais: eram frias, além disso. Pousavam levemente nas dobras da cortina e davam a impressão de que se ele não as vigiasse como um falcão, elas se arrastariam segundo sua própria vontade e fariam algo de indizível em um canto. Deixou cair a cortina e a luz terrível que pousara sobre seu rosto foi pousar em algum lugar mais saudável. Rondou furtivamente por sua pequena sala como um louva-a-deus à espreita de uma presa noturna, instalando-se por fim num banquinho diante de um cavalete, onde folheou algumas páginas de piadas.

Uma campainha tocou.

Empurrou o montinho de papéis para o canto e levantou-se. Passou as mãos nos milhões de lantejoulas com que seu paletó estava enfeitado e saiu pela porta.

As luzes do Restaurante diminuíram, a orquestra acelerou o ritmo, um único canhão de luz iluminou a escuridão da escadaria que levava ao centro do palco.

No alto da escada surgiu uma figura alta, cintilante-mente colorida. Precipitou-se em direção ao palco, foi até o microfone, arrebatou-o do pedestal com seu longo braço, e ficou por uns instantes curvando-se à

direita e à esquerda, agradecendo os aplausos da platéia e exibindo-lhe sua janela de sacada. Acenou para seus amigos particulares na platéia, embora não houvesse nenhum, e esperou acabarem os aplausos.

Levantou uma das mãos e abriu um sorriso que ia não apenas de uma orelha a outra, mas que parecia ultrapassar os confins de seu rosto.

— Obrigado, senhoras e senhores! — exclamou. — Muito obrigado! Muito, muito obrigado!

Olhava para eles com olhos lampejantes.

— Senhoras e senhores — disse —, o Universo, como todos sabemos, existe há mais de setenta mil milhões de bilhões de anos e acabará dentro de meia hora. Portanto, bem-vindos ao Milliways, o Restaurante do Fim do Universo!

Com

um

gesto,

arrancou

habilmente

mais

uma

rodada

de

aplausos

espontâneos. Com outro gesto, cortou os aplausos.

— Serei seu anfitrião esta noite — disse. — Meu nome é Max Quordlepleen... — (Todo mundo sabia disso, era famoso em toda a Galáxia conhecida, mas ele dizia pelo frescor do aplauso que desencadeava e que ele agradecia com um aceno e um sorriso de quem recusa tanto.) — ... e acabo de chegar diretamente do outro lado do tempo, onde estava comandando um espetáculo no Big Bang Burger Bar, onde, acreditem, senhoras e senhores, tivemos uma noite realmente empolgante, e estarei com vocês agora nesta ocasião histórica: o Fim do Universo!

Mais uma salva de palmas, que se interromperam assim que as luzes diminuíram ainda mais. Em cada mesa as velas foram se acendendo sozinhas, assombrando os comensais e envolvendo-os em milhares de luzinhas cintilantes e milhões de sombras íntimas. Um frenesi de expectativa percorreu o Restaurante escurecido quando o enorme domo dourado acima deles começou lentamente a se apagar, a desaparecer.

Max prosseguiu, impondo sua voz.

— Então, senhoras e senhores, as velas estão acesas, a orquestra toca suavemente, e enquanto o domo protegido por um campo de força vai tornandose transparente, revelando um céu escuro e soturno com a luz ancestral de lívidas estrelas engolidas, vejo que estamos prestes a ter uma fabulosa noite apocalíptica!

Até a suave melodia da orquestra desapareceu quando um choque atordoante tomou conta de todos aqueles que ainda não tinham contemplado essa visão. Uma luz medonha e monstruosa derramou-se sobre eles.

— uma luz abominável,

— uma luz fervente, pestilenta,

— uma luz que teria desfigurado o inferno. O Universo estava chegando ao fim.

Por alguns segundos intermináveis o Restaurante girou silenciosamente pelo vazio que se alastrava. Então Max tomou a palavra mais uma vez.

— Para todos vocês que alguma vez quiseram ver a luz no fim do túnel, aí

está.

A orquestra recomeçou.

— Obrigado, senhoras e senhores — gritou Max —, estarei de volta com vocês dentro de instantes, e por enquanto eu os deixarei com as talentosas mãos de Reg Nullify e seu Combo Cataclismático! Vamos aplaudir, senhoras e senhores, Reg e os rapazes!

O funesto turbilhão dos céus continuava.

Hesitante, a platéia começou a bater palmas e pouco depois a conversa normal foi retomada. Max iniciou sua volta pelas mesas, soltando piadas, dando gargalhadas, ganhando a vida.

Um imenso animal leiteiro aproximou-se da mesa de Zaphod Beeblebrox, um quadrúpede gordo e enorme, do tipo bovino, com grandes olhos d'água, chifres pequenos e um sorriso nos lábios que quase poderia ser insinuante.

— Boa-noite — abaixou-se e sentou-se pesadamente sobre suas ancas —, sou o principal Prato do Dia. Posso sugerir-lhes algumas partes do meu corpo? —

Rosnou e grunhiu um pouco, remexeu seus quartos traseiros buscando uma posição mais confortável e olhou pacificamente para eles. Seu olhar encontrou olhares de sobressaltada perplexidade da parte de Arthur e Trillian, um dar de ombros resignado de Ford Prefect e a fome descarada de Zaphod Beeblebrox.

— Alguma parte do ombro, talvez? — sugeriu o animal. — Assada com molho de vinho branco?

— Ahn, do seu ombro? — disse Arthur, num sussurro de horror.

— Mas naturalmente que do meu ombro, senhor — mugiu o animal, satisfeito

—, só tenho o meu para oferecer.

Zaphod levantou-se de um salto e pôs-se a apalpar e sentir os ombros do animal, apreciando.

— Ou a alcatra, que também é muito boa — murmurou o animal. — Tenho feito exercícios e comido cereais, de forma que há bastante carne boa ali. — Deu um grunhido brando, rosnou mais uma vez e começou a ruminar. Engoliu mais uma vez o bolo alimentar.

— Ou um ensopado de mim, quem sabe? — acrescentou.

— Você quer dizer que este animal realmente quer que a gente o coma? —

cochichou Trillian para Ford.

— Eu? — disse Ford com um olhar vidrado. — Eu não quero dizer nada.

— É absolutamente horrível — exclamou Arthur —, a coisa mais revoltante que já ouvi.

— Qual é o problema, terráqueo? — disse Zaphod, que agora transferia a atenção para o enorme traseiro do animal.

— Eu simplesmente não quero comer um animal que está aí me convidando para isso — disse Arthur. — É impiedoso!

— Melhor do que comer um animal que não quer ser comido — disse Zaphod.

— Não é essa a questão — protestou Arthur. Pensou então um pouco a respeito. — Está bem — disse —, talvez seja essa a questão. Não quero saber, não vou pensar sobre isso agora. Eu só... ahn...

O Universo à volta dele enfurecia-se em espasmos mortais.

— Acho que só vou querer uma salada — murmurou.

— Uma salada? — disse o animal virando os olhos em sua direção, em tom de reprovação.

— Você vai me dizer — disse Arthur — que eu não deveria comer salada?

— Bem — disse o animal —, conheço muitos legumes que têm essa questão muito clara. E é por isso, aliás, que foi decidido cortar esse problema complicado pela raiz e criar um animal que realmente quisesse ser comido e que fosse capaz de dizê-lo com tanta clareza e distinção. E eis-me aqui. Conseguiu uma leve mudança.

— Um copo d'água, por favor — disse Arthur.

— Olha — disse Zaphod —, nós queremos comer, não queremos uma discussão. Quatro bifes mal passados, e depressa. Faz quinhentos e setenta e seis bilhões de anos que não comemos.

O animal levantou-se. Deu um grunhido brando.

— Uma escolha muito acertada, senhor, se me permite. Muito bem — disse —, agora é só eu sair e me matar.

Voltou-se para Arthur e deu uma piscadela amigável.

— Não se preocupe, senhor", não serei cruel. Encaminhou-se gingando para a cozinha.

Em questão de minutos, o garçom apareceu com quatro filés fumegantes. Zaphod e Ford avançaram, sem vacilar duas vezes. Trillian parou, sacudiu os ombros, e se serviu.

Arthur olhou para o seu, sentindo-se levemente enjoado.

— Ei, terráqueo — disse Zaphod, com um sorriso malicioso no rosto que não estava se empanturrando —, que bicho te mordeu?

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