E a orquestra continuava.
Por todo o restaurante as pessoas e coisas relaxavam e batiam papo. O ar estava repleto de conversas sobre isso e sobre aquilo e as essências mescladas de plantas exóticas, comidas extravagantes e vinhos insidiosos. Por um número infinito de quilômetros em todas as direções o cataclisma universal aproximava-se de um clímax estupefaciente. Dando uma olhada no relógio, Max voltou ao palco num floreio.
— E agora, senhoras e senhores — exclamou, radiante —, estão todos passando últimos momentos maravilhosos?
— Estamos — gritou o tipo de gente que grita "estamos" quando o comediante pergunta se estão passando momentos maravilhosos.
— Isso é maravilhoso — disse Max, entusiasmado —, absolutamente maravilhoso! E enquanto as tempestades de fótons se juntam em turbilhões, preparando-se para romper em pedaços o último dos sóis vermelhos, sei que todos nos acomodaremos e apreciaremos aquilo que sei que cada um de nós achará uma experiência imensamente empolgante e terminal. Fez uma pausa. Olhou para a platéia vividamente.
— Acreditem, senhoras e senhores, não há nada agora que seja apenas penúltimo.
Fez outra pausa. Esta noite seu senso de oportunidade estava irretocável. Diversas vezes tinha conduzido esse espetáculo, noite após noite. Não que a palavra noite tivesse qualquer significado ali, na extremidade do tempo. Tudo o que havia era a incessante repetição do momento final, enquanto o Restaurante seguia lentamente além da margem do tempo, e mais uma vez voltava. Esta "noite" estava boa, a platéia se contorcia na palma da sua mão, sua voz sumia e eles tinham que esforçar-se para ouvi-lo.
— Isto, senhoras e senhores, é realmente o fim absoluto, a gélida desolação final, extingue-se o sopro majestático da criação. Baixou ainda mais a voz. Na quietude, nem uma mosca ousaria tossir.
— Após isto — continuou — não há nada. Vazio. Olvido. Esquecimento. Absolutamente nada.
Seus olhos brilharam mais uma vez — ou teriam piscado?
— Nada... a não ser, é claro, a música para dançar e uma fina seleção de licores de Alderbar!
A orquestra lhe deu um acorde de estímulo. Ele preferia que não dessem, não precisava disso, não um artista de seu calibre. Podia tocar a platéia como seu próprio instrumento. Eles riam, aliviados. Ele seguiu em frente.
— E pelo menos — gritou animadamente — vocês não têm que se preocupar com uma ressaca de manhã. Não haverá mais manhãs!
Sorriu, radiante, para sua platéia feliz e risonha. Deu uma olhada para o céu, que seguia toda noite a mesma rotina de morte, mas a olhada não durou mais que uma fração de segundo. Ele confiava que o céu faria sua parte como um profissional confia no outro.
— E agora — disse ele, pavoneando pelo palco —, arriscando colocar um abafador sobre o maravilhoso clima de frivolidade e apocalipse desta noite, gostaria de saudar algumas caravanas.
Tirou um cartão do bolso.
— Temos... — ergueu uma mão para acalmar os ânimos. — Temos uma caravana do Clube de Bridge Zansellquasure Flamarion, de Vortvoid de Qvarne? Estão aqui?
Um pessoal animado se manifestou lá no fundo, mas ele fingiu que não tinha ouvido. Olhou pelo salão tentando encontrá-los.
— Estão aqui? — perguntou de novo, para conseguir uma animação mais alta. Conseguiu, como sempre conseguia.
— Ah, lá estão eles. Bem, o último lance, rapazes; e sem trapaças, lembrem-se que este é um momento muito solene.
Sorveu as gargalhadas com prazer.
— E temos também, temos... uma caravana das divindades menores de Asgard?
à sua direita ecoou um trovão. Um relâmpago cortou o palco. Um pequeno grupo de homens cabeludos de capacetes estavam sentados felizes da vida e levantaram seus copos para ele.
Decadentes, pensou com seus botões.
—
Cuidado
com
esse
martelo,
cavalheiro
—
disse.
Fizeram
sua
brincadeirinha do raio de novo. Max sorriu para eles com os lábios.
— E em terceiro — disse —, em terceiro, uma caravana dos Jovens Conservadores de Sírius B. Estão aqui?
Um grupo de cães jovens elegantemente vestidos parou de jogar papéis amassados uns nos outros e começou a jogar papéis amassados no palco. Latiam e ganiam ininteligivelmente.
— Sim — disse Max —, é tudo culpa sua. Vocês se dão conta?
— E finalmente — disse Max, aquietando a platéia e assumindo uma expressão solene —, finalmente creio que temos aqui conosco uma caravana de crentes, crentes muito devotos, da Igreja da Segunda Vinda do Grande Profeta Zarquon.
Havia cerca de vinte deles, sentados na última fileira, vestidos asceticamente, bebendo água mineral nervosamente e permanecendo alheios às festividades. Piscaram, ressentidos, quando o holofote foi apontado para eles.
— Lá estão eles — disse Max —, sentados ali, pacientemente. Ele disse que voltaria, e deixou vocês esperando por muito tempo, então vamos esperar que ele se apresse, pessoal, porque ele só tem mais oito minutos!
O grupo de seguidores de Zarquon permaneceu rígido, recusando-se a ser esbofeteado pelas gargalhadas impiedosas que se derramavam sobre eles. Max conteve sua platéia.
— Não, mas falando sério agora, pessoal, sem intenção de ofender. Não, sei que não deveríamos brincar com crenças profundamente arraigadas. Uma salva de palmas para o Grande Profeta Zarquon...
A platéia aplaudiu respeitosamente.
— ... onde quer que esteja!
Mandou um beijo para o grupo de rostos empedernidos e retornou ao centro do palco. Pegou um banco alto e se sentou.
— É maravilhoso — continuou — ver todos vocês aqui esta noite, não é
mesmo? Sim, absolutamente maravilhoso. Porque sei que tantos de vocês vêm aqui várias e várias vezes, o que eu acho realmente maravilhoso, vir aqui e assistir à finalização de tudo, e então retornar para casa, para suas próprias eras... e construir famílias, lutar por sociedades novas e melhores, combater em guerras terríveis por aquilo que sabem que é o certo... isso realmente dá esperança no futuro de toda espécie viva. A não ser, é claro — apontou para o redemoinho relampejante acima e ao redor deles
— pelo fato de sabermos que isso não existe...
Arthur voltou-se para Ford. Ainda não tinha conseguido fazer esse lugar entrar direito na sua cabeça.
— Olha — disse—, se o Universo está para acabar... a gente não vai junto?
Ford dirigiu-lhe um olhar de três Dinamites Pangalácticas, ou, em outras palavras, um olhar bastante incerto.
— Não — respondeu. — Olha — disse —, assim que você cai neste mergulho você fica preso nessa coisa fantástica de campo de força temporal. Eu acho.
— Ah — disse Arthur. Voltou sua atenção para o prato de sopa que tinha conseguido pedir ao garçom em troca do bife.
— Olha — disse Ford. — Vou te mostrar.
Pegou um guardanapo da mesa e começou a tentar fazer algo com ele, sem esperanças.
— Olha — disse outra vez. — Imagine este guardanapo, certo, como sendo o Universo temporal, certo? E esta colher como o módulo transduccional na curvatura da matéria...
Levou um tempo para ele dizer esta última parte, e Arthur detestou ter que interrompê-lo.
— Essa é a colher com que eu estava comendo — disse.
— Tá bom — disse Ford. — Imagine então esta colher... — encontrou uma colher de madeira num pote de picles — esta colher... — mas achou que era bagunça demais pegar aquela colher — não, melhor ainda, este garfo...
— Ei, quer largar meu garfo — disse Zaphod, asperamente.
— Tá bom — disse Ford —, tá bom, tá bom. Então vamos supor que este copo de vinho é o Universo temporal...
— Qual? Esse que você acabou de derrubar no chão? ç, — Eu derrubei?
— Derrubou.
— Tá bom — disse Ford —, esquece. Quer dizer... quer dizer, olha, você
sabe realmente como o Universo começou?
— Provavelmente não — disse Arthur, que preferia nunca ter começado com isso.
— Tá bom — disse Ford —, imagine isso. Certo. Você tem uma banheira. Uma banheira rosada bem grande. Feita de ébano.
— Feita onde? — disse Arthur. — A Casa Harrods foi destruída pelos vogons.
— Não importa.
— Então continua
— Escuta.
— Tudo bem.
— Você tem essa banheira, certo? Imagine que você tem essa banheira. E é
de ébano. E é cônica.
— Cônica? — disse Arthur. — Que tipo de...
— Psiu — disse Ford. — É cônica. Então o que você faz, entende, você
enche a banheira de areia branca e fina, certo? Ou açúcar. Areia branca e fina e/ou açúcar. Tanto faz. Não importa. Pode ser açúcar. E quando estiver cheia, você destampa o ralo... tá ouvindo?
— Estou ouvindo.
— Você destampa o ralo, e tudo vai escorrendo num redemoinho, vai escorrendo, entende, pelo ralo.
— Entendi.
— Você não entendeu. Você não entendeu nada. Eu ainda não cheguei na parte importante. Quer ouvir a parte importante?
— Me conta a parte importante.
— Vou te contar a parte importante.
Ford pensou por um momento, tentando lembrar qual era a parte importante.
— A parte importante — disse — é essa. Você filma o que está acontecendo.
— Importante — concordou Arthur.
— Você pega uma câmera de filmar e filma o que está acontecendo.
— Importante.
— Essa não é a parte importante. A parte importante é essa, agora eu lembrei qual é a parte importante. A parte importante é que depois você liga o projetor... de trás para frente!
— De trás para frente?
— É. Ligar o projetor de trás para frente é definitivamente a parte importante. E aí, você senta e fica assistindo, e parece que está tudo subindo em espiral pelo ralo e enchendo a banheira. Entendeu?
— E foi assim que o Universo começou? — disse Arthur.
— Não — disse Ford —, mas é um jeito maravilhoso de espairecer. Procurou seu copo de vinho.
— Cadê meu copo de vinho? — perguntou.
— No chão.
— Ah.
Ao afastar a cadeira para trás para procurar o copo, Ford colidiu com o garçonzinho verde que vinha chegando à mesa carregando um telefone portátil. Ford pediu desculpas ao garçom explicando que era porque ele estava extremamente bêbado.
O garçom disse que tudo estava bem e que entendia perfeitamente. Ford agradeceu ao garçom por sua simpática indulgência, tentou puxá-lo pelo topete, mas errou por vinte centímetros, e deslizou para debaixo da mesa.
— Sr. Zaphod Beeblebrox? — perguntou o garçom.
— Ahn, o quê? — disse Zaphod, levantando-se de seu terceiro bife.
— Telefone para o senhor.
— Ei, o quê?
— Um telefonema, senhor.
— Para mim? Aqui? Ei, mas quem é que sabe que eu estou aqui?
Uma de suas mentes acorreu. A outra ainda se refestelava com a comida.
— Você não liga se eu continuar, não é? — disse sua cabeça que comia, e continuou.
Havia agora tantas pessoas atrás dele que já tinha perdido a conta. Não devia ter feito uma entrada tão chamativa. Droga, e por que não, pensou. Como você vai saber se está se divertindo se não tem ninguém olhando você se divertir?
— Talvez alguém aqui tenha dado o toque para a Polícia Galáctica — disse Trillian. — Todo mundo te viu entrando.
— Quer dizer que eles querem me prendei pelo telefone? — disse Zaphod. —
Pode ser. Sou muito perigoso quando encurralado.
— É — disse uma voz debaixo da mesa. — Você se despedaça tão rápido que todo mundo tem medo de ser atingido pelos estilhaços.
— Ei, o que é isso? O dia do Juízo Final? — disse Zaphod.
— Nós não vamos vê-lo, de qualquer forma? — disse Arthur, nervoso.
— Não tenho pressa — murmurou Zaphod. — OK, então quem é esse cara no telefone? — Deu um chute em Ford. — Ei, levanta aí, meu, pode ser que eu precise de você.
— Não conheço — disse o garçom — pessoalmente, o cavalheiro metálico em questão, senhor...
— Metálico?
— Sim, senhor.
— Você disse metálico?
— Sim, senhor. Disse que não conheço pessoalmente o cavalheiro metálico em questão...
— OK, vá em frente.
— Mas tenho a informação de que ele está aguardando sua volta há um número considerável de milênios. Parece que o senhor saiu daqui um tanto precipitadamente.
— Saí daqui? — disse Zaphod. — Você está louco? Acabamos de chegar.
— Certamente, senhor — persistiu obstinadamente o garçom —, mas, antes de chegar, senhor, creio que o senhor havia saído.
Zaphod tentou entender com um cérebro e depois com o outro.
— Você está dizendo que antes de chegarmos aqui, tínhamos saído daqui?
Vai ser uma longa noite, pensou o garçom.
— Precisamente, senhor — disse ele.
— Arranje um analista com o dinheiro para emergências — aconselhou Zaphod.
— Não, espere um minuto — disse Ford, emergindo para cima do nível da mesa mais uma vez. — Onde estamos, exatamente?
— Para ser absolutamente exato, senhor, este é o Planeta Astrossapo B.
— Mas nós saímos de lá — protestou Zaphod. — Saímos de lá e viemos ao Restaurante do Fim do Universo.
— Sim, senhor — disse o garçom, sentindo que agora estava no curso normal e indo bem —, um foi construído sobre as ruínas do outro.
— Oh — disse Arthur, brilhantemente —, quer dizer que viajamos no tempo, mas não no espaço.
— Escute, símio semi-evoluído — cortou Zaphod —, por que você não vai trepar numa árvore?
Arthur encolerizou-se.
— Vá arrebentar suas duas cabeças, quatro-olhos — recomendou a Zaphod.
— Não, não — disse o garçom a Zaphod —, o macaco está certo, senhor. Arthur gaguejou e não disse nada adequado ou mesmo coerente.
— Vocês saltaram... creio que quinhentos e setenta e seis bilhões de anos permanecendo no mesmo lugar — explicou o garçom. Ele sorria. Tinha a maravilhosa sensação de que vencera finalmente contra todas as evidências, que pareciam insuperáveis.
— É isso! — exclamou Zaphod. — Entendi. Mandei o computador nos mandar para o lugar mais próximo onde se pudesse comer e foi exatamente o que ele fez. Quinhentos e setenta e seis bilhões de anos a mais ou a menos, não saímos do lugar. Simples.
Todos concordaram que era muito simples.
— Mas quem — disse Zaphod — é esse cara no telefone?
— O que será que aconteceu com Marvin? — disse Trillian. Zaphod bateu com as mãos nas cabeças.
— O Andróide Paranóide! Eu o deixei caído de desânimo em Astrossapo B.
— Quando foi isso?
— Bom, ahn, quinhentos e setenta e seis bilhões de anos atrás, eu acho —
disse Zaphod. — Ei, passe o aparelho, capitão.
O garçonzinho girou suas sobrancelhas pela testa, confuso.
— Perdão, senhor?
— O telefone, garçom — disse Zaphod, arrancando-o de sua mão. — Xi, vocês são tão bunda-mole, que não sei como não escorregam das cadeiras.
— Certamente, senhor.
— Ei, Marvin, é você? — disse Zaphod no telefone. — Como você está, cara. Houve uma longa pausa até que uma voz baixa começasse a falar.
— Acho que você deveria saber que estou me sentindo muito deprimido. Zaphod tampou o fone com a mão.
— É o Marvin.
— Ei, Marvin — disse ao telefone de novo —, estamos nos divertindo muito. Comida, vinho, um pouco de abuso pessoal e o Universo indo às picas. Onde podemos te encontrar?
Outra pausa.
— Você não precisa fingir que está interessado em mini, sabe — disse Marvin, por fim. — Sei perfeitamente bem que não passo de um robô
desprezível.
— OK, OK, mas onde você está?
— "Reverta o empuxo, Marvin", é o que me dizem, "abra a câmara de compressão número três, Marvin", "Marvin, pode pegar aquele papel?". Se posso pegar aquele papel! Aqui estou eu, um cérebro do tamanho de um planeta e me pedem para...
— Certo, certo — solidarizou-se Zaphod, com alguma dificuldade.
— Mas estou bastante acostumado a ser humilhado — disse Marvin, monótono.
— Posso até enfiar a cabeça num balde d'água, se você quiser. Quer que eu enfie a cabeça num balde d'água? Já tenho um prontinho. Espere um minuto.
— Ahn, ei, Marvin... — interrompeu Zaphod, mas já era tarde. Tristes ruídos de lata encharcada vieram do outro lado da linha.
— O que ele está dizendo? — perguntou Trillian.
— Nada — disse Zaphod —, só ligou para lavar a cabeça diante da gente.
— Pronto — disse Marvin ao voltar ao aparelho, borbulhando um pouco. —
Espero que esteja satisfeito...
— Tá bom, tá bom — disse Zaphod —, agora quer fazer o favor de dizer onde você está?
— Estou no estacionamento — disse Marvin.
— No estacionamento? — disse Zaphod. — Fazendo o quê?
— Estacionando os carros, o que mais se pode fazer num estacionamento?
— OK, agüenta aí que a gente está indo.
Num único movimento, Zaphod levantou-se, desligou o telefone e escreveu
"Hotblack Desiato" na conta.
— Vamos, pessoal — disse. — Marvin está no estacionamento. Vamos descer lá.
— O que ele está fazendo no estacionamento? — perguntou Arthur.
— Estacionando os carros, o que mais? Pergunta idiota.
— Mas e o Fim do Universo? Vamos perder o grande momento.
— Eu já vi. È palha — disse Zaphod. — Nada além de um gnab gib.
— Um quê?
— O contrário de um big bang. Vamos, depressa. Poucos dos outros fregueses prestaram atenção neles
enquanto atravessavam a aglomeração de mesas do Restaurante em direção à
saída. Seus olhos estavam fixos nos horrores do céu.
— Um efeito interessante de se notar — dizia-lhes Max — é no quadrante superior esquerdo do céu, onde se vocês olhares com atenção podem ver o sistema estelar de Hastromil derretendo-se em ultravioleta. Tem alguém aqui de Hastromil?
Houve uma ou duas manifestações hesitantes vindas de algum lugar, lá do fundo.
— Bem — disse Max, sorrindo animadamente para eles —, tarde demais para se preocupar se deixaram o gás aberto.
O saguão de recepção estava praticamente vazio, mas mesmo assim Ford teve dificuldades em atravessá-lo.
Zaphod puxou-o pelo braço e o enfiou num cubículo que ficava ao lado do hall de entrada.
— O que você está fazendo com ele? — perguntou Arthur.
— Pondo-o sóbrio — disse Zaphod, introduzindo uma moeda. Piscaram umas luzes e uns gases rodopiaram.
— Oi — disse Ford, saindo logo em seguida —, aonde vamos?
— Para o estacionamento, venha.
— Por que não tomamos os tempoteleportadores pessoais? — disse Ford. —
Levam a gente direto para a Coração de Ouro.
— É, mas eu já desencanei daquela nave. Zarniwoop pode ficar com ela. Não quero entrar no jogo dele. Vamos ver o que a gente pode arranjar. Um Transportador Vertical Feliz de Pessoas da Companhia Cibernética de Sírius levou-os até o substrato debaixo do Restaurante. Ficaram contentes ao ver que ele tinha sido depredado e não quis, assim, fazê-los felizes além de levá-los para baixo.
No fundo do poço abriram-se as portas e um bafo de ar viciado atingiu-os. A primeira coisa que viram ao sair do elevador foi uma longa parede de concreto com mais de cinqüenta portas oferecendo instalações sanitárias para as cinqüenta formas de vida principais. Mesmo assim, como em todo estacionamento da Galáxia, em toda a história dos estacionamentos, este cheirava a impaciência.
Viraram uma esquina e encontraram-se de repente sobre uma esteira rolante que atravessava um vasto espaço cavernoso que se estendia numa distância que parecia infinita.
Era dividida em compartimentos, cada qual abrigando uma nave que pertencia a um freguês lá em cima, algumas eram modelos pequenos e utilitários, produzidos em massa; outras, enormes espaçosines, os brinquedos dos muitos ricos.
Os olhos de Zaphod faiscavam de algo que podia ser ou não ser cobiça conforme iam passando por eles. Na verdade, é melhor deixar clara esta questão — cobiça é exata-mente do que se tratava.
— Lá está ele — disse Trillian. — O Marvin, ali embaixo. Olharam para onde ela estava apontando. Puderam ver, indistintamente, uma pequena figura metálica esfregando apaticamente um pedaço de pano num canto remoto de uma nave prateada.
A curtos intervalos no percurso da esteira rolante, largos tubos transparentes levavam ao nível do chão. Zaphod entrou num deles e deslizou suavemente até lá embaixo. Os outros o seguiram. Pensando nisso mais tarde, Arthur Dent achou que essa tinha sido a única experiência realmente agradável em suas viagens pela Galáxia.
— Ei, Marvin — disse Zaphod, andando a passos largos em sua direção. —
Ei, cara, fico feliz em vê-lo.
Marvin virou, e na medida em que é possível a um rosto metálico totalmente inerte parecer reprovador, foi o que fez.
— Não, não fica — respondeu. — Ninguém nunca fica.
— Faça o que bem entender — disse Zaphod, virando-se para ir cobiçar as naves. Ford foi com ele.
Apenas Arthur e Trillian realmente foram até Marvin.
— Não, nós ficamos, de verdade — disse Trillian, dando-lhe tapinhas de um modo que ele detestava intensamente. — Ficar aqui, assim, esperando a gente todo esse tempo.
— Quinhentos e setenta e seis bilhões, três mil quinhentos e setenta e nove anos — disse Marvin. — Eu contei.
— Bom, estamos aqui agora — disse Trillian, sentindo (com razão, segundo Marvin) que essa era uma coisa meio boa de se dizer.
— Os primeiros dez milhões de anos foram os piores — disse Marvin —, os segundos dez milhões de anos, esses também foram os piores. Os terceiros dez milhões de anos não foram nada agradáveis. Depois disso eu entrei numa fase de decadência.
Fez uma pausa longa o bastante para que eles sentissem que deviam dizer alguma coisa, e então interrompeu.
— São as pessoas que a gente encontra neste serviço que realmente deixam a gente mal — disse, e fez outra pausa.
Trillian pigarreou.
— E esse...
— A melhor conversa que eu tive foi há mais de quarenta milhões de anos —
continuou Marvin.
Outra vez a pausa.
— Ah, v...
— E foi com uma máquina de fazer café. Esperou.
— Isso é...
— Vocês não gostam de conversar comigo, não é? disse Marvin num tom desolado.
Trillian começou a conversar com Arthur.
Um pouco além dali, Ford Prefect encontrara uma coisa de cuja aparência ele gostou muito, muitas coisas assim, aliás.
— Zaphod — disse em voz baixa —, dá só uma olhada nestas máquinas das estrelas...
Zaphod olhou e gostou.
O aparelho que estavam olhando era na verdade bem pequeno, mas extraordinário, um verdadeiro brinquedo de criança rica. Não era grande coisa na aparência. Não parecia nada além de um dardo de papel de dez metros de comprimento feito de lâminas metálicas finas, mas resistentes. Na ponta de trás havia uma cabine para duas pessoas. Tinha um pequeno motor charmoso, mas que não podia movê-lo a grande velocidade. Uma coisa que ele tinha, porém, era um tanque de calor. O tanque de calor tinha uma massa de uns dois mil bilhões de toneladas e ficava acondicionado num buraco negro instalado num campo eletromagnético situado na metade do comprimento da nave, e esse tanque de calor permitia que a nave fosse manobrada a até alguns quilómetros de um sol amarelo, e ali agarrar e montar as labaredas solares que emanavam de sua superfície. Montar labaredas é um dos esportes mais exóticos e estimulantes da existência, e aqueles que têm o dinheiro e a ousadia para praticá-lo situamse entre
os
homens
mais
admirados
da
Galáxia.
É
também,
claro,
estupendamente perigoso — aqueles que não morrem montando, morrem invariavelmente de exaustão sexual em uma das festas Après - Labaredas do Clube Dédalo.
Ford e Zaphod olharam e seguiram em frente.
— E esta gracinha — disse Ford —, este buggy estelar cor-de-tangerina?
Mais uma vez, o buggy estelar era uma nave pequena — um nome completamente impróprio, a propósito, porque uma coisa que ele não era capaz de fazer era cobrir distâncias interestelares. Era basicamente um jipe planetário enfeitado para parecer o que não era. Seguiram em frente. A nave seguinte era das grandes, quarenta e cinco metros de comprimento —
uma nave-limusine estilo carruagem planejada obviamente com um único objetivo em mente, que era deixar o observador doente de inveja. A pintura e os acessórios diziam claramente: "Não apenas sou rico o bastante para ter esta nave, como também sou bastante rico para não levá-la a sério". Era maravilhosamente abominável.
— Olhe só para isto — disse Zaphod. — Câmbio multi-ramalhetado, mostradores perispulécticos. Deve ser uma das jóias de Lazlar Lyricon. Examinou cada centímetro.
— Só! — exclamou. — Olhe, o emblema do lagarto infracor-de-rosa na capota de neutrino. A marca registrada de Lazlar. O cara não tem vergonha.
— Já fui ultrapassado por uma dessas uma vez, na Nebulosa de Axel — disse Ford. — Eu estava no maior pau, e essa coisa me passou como se estivesse passeando. Inacreditável.
Zaphod assobiou, apreciando.
— Dez segundos depois — disse Ford — espatifou-se contra a terceira lua de Jaglan Beta.
— Ah, verdade?
— Uma nave linda, de qualquer forma. Parece um peixe, move-se como um peixe, dirige-se como uma vaca.
Ford olhou o outro lado.
— Ei, venha ver — chamou —, tem uma pintura deste lado. Um sol explodindo
— a marca registrada do Disaster Área. Esta deve ser a nave de Hotblack. Cara de sorte. Eles têm essa música terrível, sabe, que termina com uma nave duble arrebentando-se contra o sol. É para ser um espetáculo espantoso. As naves dubles saem caras, no entanto. A atenção de Zaphod estava, porém, em outro lugar. Sua atenção estava fixa na nave estacionada ao lado da limusine de Hotblack Desiato. Estava de queixos caídos.
— Isso... — disse — isso... realmente impressiona a vista... Ford olhou. Ele também ficou maravilhado.
Era uma nave de linhas simples, clássicas, como um salmão, trinta e cinco metros de comprimento, muito harmoniosa, muito lisa. Tinha apenas uma coisa de notável.
— Ê tão... negra! — disse Ford Prefect. — Quase não dá para distinguir suas linhas... parece que a luz cai para dentro dela!
Zaphod não disse nada. Estava simplesmente apaixonado.
Sua negrura era tão extrema que era quase impossível dizer a que distância se estava dela.
— O olhar simplesmente desliza sobre ela... — dizia Ford, em êxtase. Era um momento de emoção. Ele mordia os lábios.
Zaphod caminhou na direção dela, lentamente, como um homem possuído —, ou, mais exatamente, como um homem que quer possuir. Estendeu a mão para tocá-la. Sua mão parou. Estendeu a mão para tocá-la. Sua mão parou outra vez.
— Venha sentir esta superfície — disse, num sussurro. Ford estendeu a mão para tocá-la. Sua mão parou.
— Não... não dá — disse.
— Viu? — disse Zaphod. — É totalmente desprovida de atrito. Deve ser uma máquina e tanto...
Voltou-se para Ford para olhá-lo seriamente. Pelo menos foi o que fez uma de suas cabeças — a outra continuou contemplando a nave, deslumbrada.
— O que você acha, Ford?
— Você diz... ahn... — Ford olhou por sobre os ombros. — Você diz sair daqui com ela? Você acha que a gente deve?
— Não.
— Eu também não.
— Mas nós vamos, não vamos?
— Como não?
Admiraram um pouco mais, até que Zaphod se recompôs.
— É melhor sair fora rapidinho — disse. — Daqui a pouco o Universo já vai ter acabado e o pessoal vai jorrar aqui embaixo para pegar suas banheiras.
— Zaphod — disse Ford.
— Que?
— Como a gente vai fazer?
— Simples — disse Zaphod. Virou-se. — Marvin! — gritou.
Vagarosamente, laboriosamente, e com um milhão de rangidos e estalos que ele tinha aprendido a simular, Marvin voltou-se para responder ao chamado.
— Venha cá — disse Zaphod —, temos um trabalho para você. Marvin arrastou-se em direção a eles.
— Eu não vou gostar — disse ele.
— Vai sim — disse Zaphod, entusiástico —, toda uma nova vida estende-se à
sua frente.
— Ah, não. Mais uma — resmungou Marvin.
— Cale a boca e escute! — disse Zaphod. — Desta vez vai haver emoção e aventura e coisas realmente bárbaras.
— Parece horrível.
— Marvin! Estou tentando pedir para você...
— Suponho que você queira que eu abra esta espaço-nave para você.
— O quê? Bom... é. Ê, é isso — disse Zaphod, apreensivo. Mantinha pelo menos três olhos nas portas de entrada. O tempo era curto.
— Bom, preferia que você tivesse me dito simplesmente, em vez de tentar conseguir meu entusiasmo — disse Marvin —, porque isso eu não tenho. Caminhou até a nave, tocou-a, e uma escotilha se abriu.
Ford e Zaphod olharam assombrados.
— Não há de quê — disse Marvin. — Ah, vocês não disseram que houvesse. —
Foi embora, arrastando-se.
Arthur e Trillian juntaram-se a eles.
— O que está havendo? — perguntou Arthur.
— Olhe para isso — disse Ford —, olhe para o interior desta nave.
— Fabuloso, fabuloso — murmurava Zaphod.
— É preto — disse Ford. — Tudo nela é totalmente preto.
No Restaurante, as coisas se aproximavam cada vez mais do momento após o qual não haveria mais momentos.
Os olhos de todos estavam fixos no domo, com exceção dos do guarda-costas de Hotblack Desiato, que estavam fixos em Hotblack Desiato, e os do próprio Hotblack Desiato, que o guarda-costas tinha fechado respeitosamente. O guarda-costas estava inclinado sobre a mesa. Se Hotblack Desiato estivesse vivo, provavelmente teria considerado esse um bom momento para inclinar-se para trás, ou mesmo sair para dar uma volta. Seu guarda-costas não era exatamente o tipo de homem que inspirasse proximidade. Devido a sua desafortunada condição, porém, Hotblack Desiato permanecia totalmente inerte.
— Senhor Desiato? — sussurrou o guarda-costas. Sempre que ele falava parecia que os músculos dos dois lados de sua boca ficavam se acotovelando, para que um ou outro saísse da frente.
— Senhor Desiato? O senhor está me ouvindo? Hotblack Desiato naturalmente não disse nada.
— Hotblack? — sussurrou o guarda-costas.
Mais
uma
vez,
naturalmente,
Hotblack
Desiato
não
respondeu.
Sobrenaturalmente, no entanto, ele respondeu.
Na mesa à sua frente, um copo de vinho tremeu, e um garfo ergueu-se uns dois centímetros e bateu no copo.
O guarda-costas rosnou satisfeito.
— É hora de ir, senhor Desiato — murmurou o guarda-costas. — Não queremos pegar o rush, não com o senhor na sua condição. O senhor deve estar bem e descansado para a próxima apresentação. Havia uma platéia realmente grande. Uma das melhores. Kakrafoon. Quinhentos e setenta e seis bilhões de anos atrás. O senhor não terá estado estando pós-ansioso por isso?
O garfo ergueu-se mais uma vez, parou, balançou evasivamente e caiu de novo.
— Ah, que é isso — disse o guarda-costas. — Vai ser ótimo. Você arrasou com eles. — O guarda-costas teria causado um ataque apoplético no Dr. Dan Streetmentioner.
— A nave negra indo de encontro ao sol sempre os empolga, e a nova está
uma beleza. Vai ser uma pena vê-la ir embora. Vamos descer, aí eu ligo o piloto automático da nave negra e a gente vai com a limusine, OK?
O garfo bateu uma vez, concordando, e o copo de vinho esvaziou-se misteriosamente.
O guarda-costas empurrou a cadeira de rodas de Hotblack Desiato para fora do Restaurante.
— E agora — gritou Max do centro do palco —, o momento por que todos estávamos esperando! — Ergueu os braços para o ar. Atrás dele a orquestra veio com um frenesi de percussão e cordas. Max tinha discutido com eles quanto a isso, mas eles alegavam que estava no contrato que era isso o que iam fazer. O agente dele teria que ver isso.
— Os céus começam a ferver! — gritou. — A natureza entra em colapso em meio ao vazio vociferante! Dentro de vinte segundos o próprio Universo terá
seu fim! Vejam onde explode a luz do infinito!
A horrenda fúria da destruição resplandecia acima deles — e nesse momento uma pequena trombeta soou como que de uma distância infinita. Max lançou olhares dardejantes sobre a orquestra. Nenhum deles parecia estar tocando trombeta. Subitamente uma nuvem de fumaça surgiu em redemoinhos no palco ao lado dele. Outras trombetas juntaram-se à primeira. Por mais de quinhentas vezes Max tinha conduzido esse espetáculo e nunca nada semelhante acontecera. Afastou-se, assustado, da fumaça rodo-piante, e, quando o fez, uma figura materializou-se lentamente dentro dela, a figura de um velho barbudo, vestindo um manto e rodeado de luz. Tinha estrelas nos olhos e uma coroa de ouro na testa.
— O que é isso? — murmurou Max, de olhos arregalados. — O que está
acontecendo?
No fundo do Restaurante, o grupo empedernido da Igreja da Segunda Vinda do Grande Profeta Zarquon ajoelhou-se em êxtase entoando cânticos e chorando.
Max piscou, maravilhado. Levantou os braços para a plateia.
— Uma salva de palmas, senhoras e senhores — conclamou — para o Grande Profeta Zarquon! Ele veio! Zarquon voltou!
Um aplauso tonitroante explodiu enquanto Max atravessou o palco e entregou o microfone nas mãos do Profeta.
Zarquon tossiu. Espiou a audiência reunida. As estrelas em seus olhos piscavam, pouco à vontade. Segurava o microfone, confuso.
— Ahn — disse ele — ... olá. Ahn... olha, desculpem por eu ter vindo um pouco atrasado. Eu andei com uns
problemas bem desagradáveis, todo tipo de coisa aparecendo de última hora.
Parecia nervoso com o silêncio reverente dos espectadores. Pigarreou.
— Ahn, como nós estamos com o tempo? — disse.— Ele disse que só tínhamos um min...
E assim acabou o Universo.
CAPITULO 19
Um dos principais fatores de vendagem do livro de viagens inteiramente notável Guia da Galáxia para Caronas, além do fato de ser relativamente barato e de trazer as palavras NÃO ENTRE EM PÂNICO em amigáveis letras garrafais na capa, é seu glossário conciso e eventualmente preciso. As estatísticas relativas à natureza geosocial do Universo, por exemplo, encontram-se habilmente colocadas entre as páginas novecentos e trinta e oito mil, trezentos e vinte e quatro e novecentos e trinta e oito mil, trezentos e vinte e seis; e o estilo simples em que estão escritas deve-se em parte ao fato de os editores, tendo que cumprir um determinado prazo de entrega, copiaram as informações do verso de uma caixa de cereais para a refeição matinal, acrescentando algumas notas de rodapé para evitar um processo baseado nas incompreensivelmente tortuosas leis de copyright da Galáxia.
É interessante lembrar que mais tarde um editor mais astuto enviou o livro de volta no tempo, e acionou com sucesso a companhia de cereais por infringir as referidas leis.
Eis um exemplo:
O Universo — algumas informações para ajudá-lo a viver nele. 1 — Ãrea: Infinita
O Guia da Galáxia para Caronas oferece a seguinte definição para a palavra "Infinito":
Infinito: Maior que a maior de todas as coisas e mais um pouco. Muito maior que isso, aliás, fantasticamente imenso, de um tamanho totalmente estonteante, um verdadeiro tamanho tipo "puxa, como é grande!". O infinito é
tão grande que em comparação a ele a própria grandeza parece uma titica. Gigantesco multiplicado por colossal multiplicado por exorbitantemente enorme é o tipo de conceito a que estamos tentando chegar.
2 — Importações: Nenhuma.
Ê impossível importar coisas para uma área infinita, pois não há exterior de onde importá-las.
3 — Exportações: Nenhuma.
Vide Importações.
4 — População: Nenhuma.
Sabe-se que há um número infinito de mundos, simplesmente porque há um espaço infinito para que os haja. Todavia, nem todos são habitados. Assim, deve haver um número finito de mundos habitados. Qualquer número finito dividido pelo infinito é tão perto de zero que não faz diferença, de forma que a população de todos os planetas do Universo pode ser considerada igual a zero. Daí segue que a população de todo o Universo também é zero, e que quaisquer pessoas que você possa encontrar de vez em quando são meramente produtos de uma imaginação perturbada.
5 — Unidades Monetárias: Nenhuma.
Na realidade há três moedas livremente correntes na Galáxia, mas nenhuma delas conta. O Dólar Altairiense entrou em colapso recentemente, a Baga Flainiana só é intercambiável por outras Bagas Flainianas, e o Pu Trigânico tem seus próprios problemas muito específicos. Sua taxa de câmbio de oito Ningis por cada Pu é bastante simples, mas como cada Ningi é uma moeda triangular de borracha de seis mil e oitocentos quilômetros de lado, ninguém jamais as juntou em número suficiente para possuir um Pu. Ningis não são moedas negociáveis, porque os Bancos Galácticos recusam-se a lidar com trocados. Partindo-se dessa premissa básica, é muito simples provar que os Bancos Galácticos também são produto de uma imaginação perturbada. 6 — Arte: Nenhuma.
A função da arte é portar o espelho da natureza, e simplesmente não existe um espelho que seja grande o bastante — vide ponto um. 7 — Sexo: Nenhum.
Bem, para dizer a verdade tem uma porção, amplamente devido à total falta de dinheiro, comércio, bancos, arte ou qualquer outra coisa que pudesse man- ter ocupadas todas as pessoas não-existentes do Universo. Todavia, não vale a pena embarcar numa discussão sobre isso porque seria terrivelmente complicada. Para maiores informações veja os capítulos do Guia de números sete, nove, dez, onze, catorze, dezesseis, de-zessete, dezenove, vinte e um e oitenta e quatro inclusive, e a bem da verdade quase todo o resto do Guia.
CAPÍTULO 20
O Restaurante continuou a existir, mas todo o resto parou. A relaestática temporal o mantinha e o protegia dentro de um nada que não era meramente um vácuo, era simplesmente nada — nada havia em que se pudesse dizer que havia um vácuo.
O domo, protegido pelo campo de força, tornara-se novamente opaco, a festa terminara, os comensais se retiravam, Zarquon desaparecera junto com o resto do Universo, as Turbinas do Tempo se preparavam para puxar o Restaurante de volta por sobre a margem do tempo para a hora de servir o almoço, e Max Quordlepleen estava de volta a seu camarim acortinado tentando falar com seu agente ao tempofone.
No estacionamento estava a nave negra, fechada e silenciosa. Entrou no estacionamento o falecido Sr. Hotblack Desiato, empurrado pela esteira rolante por seu guarda-costas.
Desceram por um dos tubos. Ao se aproximarem da nave-limusine uma escotilha se abriu, acoplou-se às rodas da cadeira de rodas e a puxou para dentro. O guarda-costas acompanhou, e depois de ver seu patrão seguramente instalado em seu sistema de manutenção de morte, dirigiu-se à cabine. Dali operou o sistema de controle remoto que ativava o piloto automático da nave negra, estacionada ao lado da limusine, propiciando assim um grande alívio a Zaphod Beeblebrox, que vinha tentando dar a partida há mais de dez minutos. A nave negra deslizou suavemente para fora de sua vaga. Virou, e moveu-se pelo corredor central do estacionamento silenciosamente. No final dele, acelerou rapidamente, mergulhou na câmara de lançamento temporal e iniciou a longa viagem de volta ao passado distante.
O Cardápio do Milliways cita, com a autorização devida, um trecho do Guia da Galáxia para Caronas. O trecho é o seguinte: A história de toda civilização galáctica tende a atravessar três fases distintas
e
identificáveis,
as
da
Sobrevivência,
Interrogação
e
Sofisticação, também conhecidas como as fases do Como, a do Porquê e a do Onde.
Por exemplo, a primeira fase é caracterizada pela pergunta: "Como vamos poder comer?". A segunda pela pergunta: "Por que comemos?". E a terceira, pela pergunta: "Onde vamos almoçar? ". O cardápio segue em frente sugerindo que o Milliways, o Restaurante do Fim do Universo, seria uma resposta agradável e sofisticada para a terceira pergunta.
O que ele não diz é que embora uma grande civilização leve milênios para passar pelas fases do Como, do Porquê e do Onde, pequenos agrupamentos sociais podem passar por elas com extrema rapidez.
— Como estamos? — perguntou Arthur.
— Mal — disse Ford Prefect.
— Para onde estamos indo? — perguntou Trillian.
— Não sei — disse Zaphod Beeblebrox.
— Por que não? — inquiriu Arthur Dent.
— Cale a boca — sugeriram Zaphod Beeblebrox e Ford Prefect.
— Basicamente, o que vocês estão tentando dizer — disse Arthur Dent, ignorando a sugestão — é que estamos fora de controle.
A nave sacudia e balançava nauseantemente enquanto Ford e Zaphod tentavam tomar o controle do piloto automático. Os motores gemiam e choramingavam como crianças cansadas num supermercado.
— Ê esse sistema absurdo de cores que me incomoda
— disse Zaphod, cujo caso de amor com a nave não tinha durado mais do que três minutos depois de começar o vôo.
— Toda vez que você tenta operar um desses misteriosos controles pretos, rotulados em preto contra um fundo preto, acende uma luzinha preta para dizer o que você fez. O que que é isso? Alguma espécie de hipernave funerária galáctica?
As paredes da cabine sacolejante também eram pretas, os assentos — que eram rudimentares, uma vez que a única viagem importante para que essa nave fora projetada não seria tripulada — eram pretos, o painel de controle era preto, os instrumentos eram pretos, os parafusos que os prendiam eram pretos, o fino carpete de náilon que cobria o chão era preto, e quando eles levantaram uma ponta dele, descobriram que o forro por baixo também era preto.
— Talvez a pessoa que a desenhou tivesse olhos que respondessem a outros comprimentos de onda — propôs Trillian.
— Ou não tinha muita imaginação — murmurou Arthur.
— Talvez — disse Marvin — estivesse muito desanimada.
A verdade, embora eles não pudessem saber, era que a decoração tinha sido escolhida em homenagem à condição triste, lamentável e dedutível de imposto de seu proprietário.
A nave deu uma guinada particularmente nauseante.
— Vão com calma — implorou Arthur —, estou ficando enjoado com as ondas do espaço.
— Com as ondas do tempo — corrigiu Ford. — Estamos mergulhando'no tempo.
— Obrigado — disse Arthur. — Agora eu acho que eu realmente vou passar mal.
— Vá em frente — disse Zaphod. — Seria bom um pouco de cor neste lugar.
— Isto é uma conversa educada para depois do jantar? — cortou Arthur. Zaphod deixou os controles para Ford tentar adivinhar, e foi para cima de Arthur.
— Olha, terráqueo — disse, furioso —, você tem um serviço a prestar, certo? A Pergunta referente à Resposta Fundamental, certo?
— O quê, essa estória? — disse Arthur. — Pensei que a gente já tinha esquecido.
— Eu, não, cara. Como disseram os ratos, vale uma fortuna nos canais certos. E está tudo trancado nessa cabeça sua.
— É, mas...
— Mas nada! Pense nisso. O Sentido da Vida! Se a gente puser as mãos nisso, a gente vai ter cada centímetro do Universo sob nosso resgate, e isso vale uma nota. Um manancial de riqueza!
Arthur deu um longo suspiro, sem muito entusiasmo.
— Certo — disse —, mas por onde a gente começa? Como eu posso saber? Eles dizem que a Resposta Fundamental é Quarenta e dois, como é que eu vou saber qual é a pergunta? Pode ser qualquer coisa. Quero dizer, quanto são seis vezes sete?
Zaphod o encarou seriamente por um instante. Então seus olhos brilharam, empolgados.
— Quarenta e dois! — exclamou. Arthur passou a mão na testa.
— É — disse pacientemente —, eu sei disso. Zaphod baixou os rostos.
— Só estou dizendo que a pergunta podia ser qualquer coisa — disse Arthur. — Não vejo como se espera que eu saiba.
— Porque — disse Zaphod — você estava lá quando seu planeta virou fogos de artifício.
— Temos uma coisa na Terra... — começou Arthur.
— Tínhamos — corrigiu Zaphod.
— ... chamada tato. Ah, não importa. Olhe, eu simplesmente não sei. Uma voz baixa ecoou sombriamente pela cabine.
— Eu sei — disse Marvin.
Ford gritou dos controles, com os quais continuava empreendendo uma guerra derrotada.
— Fique fora disso, Marvin — disse ele. — Isso é conversa orgânica..
— Está impresso nos padrões de ondas cerebrais do terráqueo — prosseguiu Marvin —, mas não creio que vocês estejam muito interessados em saber.
— Quer dizer — disse Arthur —, quer dizer que você pode ver dentro de minha mente?
— Posso — disse Marvin. Arthur olhou para ele, assombrado.
— E...?
— Me espanta que você consiga viver num lugar tão pequeno.
— Ah — disse Arthur. — Ultraje.
— Sim — confirmou Marvin.
— Ah, ignore-o — aconselhou Zaphod —, ele só está fazendo estória.
— Fazendo estória? — disse Marvin, girando a cabeça num simulacro de espanto. — Por que eu haveria de querer fazer estória? A vida já é bastante ruim sem que eu queira ainda inventar mais.
— Marvin — disse Trillian, com a voz gentil e doce que só ela ainda era capaz de assumir para falar com a bastarda criatura —, se você sabia o tempo todo, por que não nos contou?
Marvin girou a cabeça para ela.
— Vocês não perguntaram — disse, simplesmente.
— Bom, estamos perguntando agora, homem metálico — disse Ford, virando-se para olhar para ele.
Nesse momento a nave parou de sacolejar e o ruído dos motores passou para um suave zunido.
— Ei, Ford — disse Zaphod —, pelo barulho parece que está bem. Você
conseguiu mexer nos controles desta barca?
— Não — disse Ford —, eu só parei de mexer com eles. Acho que a gente vai ter que ir para onde quer que essa nave esteja indo e cair fora rapidinho.
— É, tá certo — disse Zaphod.
— Eu sabia que vocês não estavam realmente interessados — murmurou Marvin para si mesmo, e sentou num canto e se desligou.
— O problema — disse Ford — é que o instrumento desta nave que está
fornecendo alguma informação está me deixando preocupado. Se for o que eu estou achando que é, e se estiver dizendo o que eu acho que está, então a gente já voltou demais no tempo. Talvez uns dois milhões de anos antes da nossa era.
Zaphod sacudiu os ombros.
— Tempo é bobagem — disse.
— Queria saber de quem é essa nave, de qualquer modo — disse Arthur.
— Minha — disse Zaphod.
— !Não. De quem ela é de verdade.
— Minha, de verdade — insistiu Zaphod. — Olhe, propriedade é roubo, certo? Logo, roubo é propriedade. Logo, esta nave é minha, OK?
— Diga isso à nave.
Zaphod inclinou-se sobre o painel.
— Nave — disse, batendo nos controles —, este é o seu novo dono falando...
Não foi adiante. Muitas coisas aconteceram de repente.
Todos os controles do painel, que tinham sido desligados para a viagem no tempo, acenderam-se agora.
Uma imensa tela abriu-se sobre o painel revelando uma ampla paisagem cósmica e um imenso sol solitário bem na frente deles.
Nenhuma dessas coisas, porém, foi responsável pelo fato de Zaphod ter sido arremessado violentamente para o fundo da cabine, assim como os demais. Foram arremessados por um estrondo emitido subitamente pelos monitores de som em volta da tela.
CAPÍTULO 21
No planeta vermelho e seco de Kakrafoon, no meio do Deserto Escarlate, os técnicos de palco estavam testando o sistema de som.
Ou melhor, o sistema de som estava no deserto, não os técnicos. Eles estavam recolhidos na segurança da nave de controle gigante do Disaster Área, em órbita a uns quatrocentos quilômetros acima da superfície do planeta, e de lá estavam testando o som. Qualquer pessoa situada a menos de dez quilômetros dos silos de som não teria sobrevivido à afinação. Se Arthur Dent tivesse estado a menos de dez quilômetros dos silos de som, seu derradeiro pensamento teria sido de que tanto na forma quanto no tamanho, a aparelhagem de som se parecia muito com Manhattan. Erguidas sobre os silos, os postes das caixas de som neutronfásicas levantavam-se monstruosamente em direção ao céu, ocultando os reatores de plutônio e os amplificadores sísmicos atrás deles.
Enterrados em profundos bunkers de concreto sob a selva de caixas de som estavam os instrumentos que os músicos controlariam de sua nave, a poderosa guitarra de fótons, o baixo detonador e o complexo Megabang de percussão. Ia ser um show barulhento.
A bordo da gigantesca nave de controle, tudo era atividade e correria. A limusine de Hotblack Desiato, um girino comparado com ela, já tinha chegado e atracado, e o finado cavalheiro estava sendo transportado pelos altos corredores abobadados para ir encontrar-se com o médium que interpretaria os impulsos psíquicos no transmissor da guitarra.
Um médico, um filósofo e um oceanógrafo tinham também acabado de chegar. Tinham vindo, com uma despesa fenomenal, de Maximegalon, para tentar argumentar com o vocalista que se trancara no banheiro com um frasco de comprimidos
e
se
recusava
a
sair
até
que
alguém
pudesse
provar
conclusivamente que ele não era um peixe. O baixista estava ocupado metralhando seu quarto de dormir e o baterista não se encontrava a bordo. Frenéticos inquéritos levaram a descobrir que ele estava numa praia em Santraginus V a mais de cem anos-luz dali. Alegava que já fazia meia hora que estava feliz e que tinha descoberto uma pequena pedra que seria sua amiga.
O empresário da banda ficou profundamente aliviado. Significava que pela décima sétima vez nessa turnê a bateria seria tocada por um robô e que portanto o tempo dos pratos estaria correto.
O rádio subéter zunia com as comunicações dos técnicos de palco testando os canais de som, e era isso que estava sendo transmitido para o interior da nave negra.
Seus ocupantes, aturdidos, espremiam-se na parede de trás da cabine e ouviam as vozes nos monitores.
— OK, canal nove funcionando — disse uma voz —, testando canal quinze... Outro estrondo ecoou dentro da nave.
— Canal quinze OK — disse uma outra voz. Uma terceira voz interrompeu.
— A nave duble negra está em posição — disse. — Parece que está bem. Vai ser um grande mergulho solar. Computador de palco, mantendo contato?
Uma voz de computador respondeu.
— Mantendo contato — disse.
— Assuma o controle da nave negra.
— Nave negra fixa na trajetória programada, preparada.
— Testando canal vinte.
Zaphod saltou através da cabine para mexer nos botões de freqüência do subéter antes que outro ruído pulverizador de mentes os atingisse. Ficou ali, tremendo.
— O que — perguntou Trillian com uma vozinha calma — quer dizer mergulho solar?
— Quer dizer — disse Marvin — que a nave vai mergulhar no sol. Mergulho... Solar. É muito fácil de entender. O que você espera, roubando a nave duble de Hotblack Desiato?
— Como você sabe... — disse Zaphod, com uma voz que gelaria um lagarto polar de Vega — que esta é a nave duble de Hotblack Desiato?
— Simples — disse Marvin —, eu a estacionei para ele.
— Então... por que... você... não... nos disse?
— Você disse que queria emoção, aventura e coisas realmente bárbaras.
— É horrível — disse Arthur desnecessariamente na pausa que se seguiu.
— Foi o que eu disse — confirmou Marvin.
Numa freqüência diferente, o receptor subéter captara uma transmissão pública, que agora ecoava por toda a cabine.
— ... Tempo bom para o concerto esta tarde. Estou aqui, em frente ao palco — mentia o repórter —, no meio do Deserto Escarlate, e com a ajuda de hiperbinóculos posso vislumbrar a imensa audiência agrupando-se no horizonte à minha volta. Atrás de mim os postes de som erguem-se como penhascos escarpados, e acima de mim o sol brilha sem saber o que vai atingi-lo. Os grupos ecologistas de pressão sabem o que vai atingi-lo, e alegam que o show causará terremotos, maremotos, furacões, danos irreparáveis na atmosfera e todas essas coisas de ecologista. Mas acabo de ler um informe de que um representante do Disaster Area encontrou-se com os ecologistas para um almoço e atirou em todos eles, de forma que não restam empecilhos para... Zaphod desligou. Voltou-se para Ford.
— Sabe o que estou achando? — disse.
— Acho que sim — disse Ford.
— Me diz o que você acha que eu estou achando.
— Acho que você está achando que está na hora da gente sair desta nave.
— Acho que você está certo — disse Zaphod.
— Acho que você está certo — disse Ford.
— De que jeito? — disse Arthur.
— Quieto — disseram Ford e Zaphod. — A gente acha.
— Então é isso — disse Arthur —, nós vamos morrer.
— Gostaria que você parasse de ficar dizendo isso — disse Ford. Vale repetir a esta altura as teorias que Ford arrumou, em seu primeiro contato com os humanos, para explicar seu peculiar hábito de ficar continuamente afirmando e reafirmando o óbvio, como em "Lindo dia", ou "Você
é alto" ou "Então é isso, nós vamos morrer". Sua primeira teoria era que se os seres humanos deixassem de exercitar seus lábios, suas bocas provavelmente selariam.
Após alguns meses de observação, arrumou uma outra teoria, que era a seguinte — "Se os seres humanos deixarem de exercitar seus lábios, seus cérebros começarão a funcionar".
Em verdade, esta segunda adapta-se mais literalmente ao povo Belcerebon de Kakrafoon.
O povo Belcerebon causava um grande ressentimento e insegurança entre as raças vizinhas por ser uma das civilizações mais desenvolvidas, iluminadas, e acima de tudo uma das mais quietas da Galáxia.
Como punição para tal comportamento, que foi considerado arrogante e provocativo, um Tribunal Galáctico impôs a eles o mais cruel dentre os males sociais, a telepatia. Conseqüentemente, para se prevenirem de transmitir cada leve pensamento que atravesse suas mentes a qualquer um num raio de dez quilômetros, têm agora que conversar muito alto e continuamente sobre o tempo, sobre suas pequenas dores, o jogo daquela tarde e sobre como Kakrafoon ficou barulhento de repente.
Outro método de*bloquearem suas mentes momentaneamente é acolher um show do Disaster Área. A cronometragem do concerto era crítica. A nave tinha que iniciar seu mergulho antes de começar o show de forma a atingir o sol seis minutos e trinta e sete segundos antes do clímax da música a que se relacio-nava, para que a luz das labaredas solares tivesse tempo de viajar até
Kakrafoon.
A nave já estava mergulhando a vários minutos no momento em que Ford Prefect terminou sua busca pelos outros compartimentos. Voltou à cabine. O sol de Kakrafoon avultava assustadoramente grande na tela, seu ardejante inferno branco de fusão de núcleos de hidrogênio crescendo a cada momento enquanto a nave se precipitava em sua direção, sem ligar para os socos de Zaphod sobre o painel. Arthur e Trillian tinham a expressão fixa dos coelhos numa estrada à noite que acham que a melhor forma de lidar com faróis que se aproximam é ficar olhando para eles.
Zaphod deu uma volta, com os olhos arregalados.
— Ford — disse —, quantas cápsulas de salvamento temos?
— Nenhuma — disse Ford.
— Você contou direito? — gritou Zaphod.
— Duas vezes — disse Ford. — Você conseguiu falar com a equipe do palco pelo rádio?
— Consegui — disse Zaphod, amargo. — Disse que tinha todo um grupo de pessoas a bordo e eles mandaram um "oi" para todo mundo. Ford revirou os olhos.
— Você não disse quem você era?
— Ah, eu disse. Disseram que era uma grande honra. Isso e também sobre uma conta de restaurante.
Ford empurrou Arthur para o lado grosseiramente e debruçou sobre o painel de controle.
— Nenhum funciona? — disse, selvagem.
— Todos anulados.
— Destrua o piloto automático.
— Encontre-o antes. Nada conecta. Houve um momento frio de silêncio. Arthur estava passeando pelo fundo da cabine. Parou de repente.
— Não é por nada — disse —, mas o que significa teleporte?
Passou um outro momento.
Lentamente os demais foram virando-se para ele.
— Provavelmente este é o momento errado de perguntar — disse Arthur. — É
que eu lembro de ter ouvido vocês usarem essa palavra faz pouco tempo e só
estou falando nisso porque...
— Onde — disse Ford Prefect calmamente — está escrito teleporte?
— Bom, logo aqui, na verdade — disse Arthur, indicando uma caixa escura no fundo da cabine —, logo acima da expressão "de emergência" e abaixo da palavra "sistema", ao lado de um sinal que diz "não funciona". No pandemônio que se seguiu instantaneamente, a única ação a se acompanhar foi a de Ford Prefect investindo contra a caixinha preta que Arthur indicara e apertando repetidamente o pequeno botão preto que havia sobre ela. Um painel quadrado de três metros por três abriu-se diante deles revelando um compartimento que parecia um compartimento múltiplo de chuveiros que tinha arrumado uma nova função na vida como depósito de eletricista. Fios desencapados parcialmente caíam do teto, uma porção de componentes estavam espalhados numa bagunça pelo chão, e o painel de programação caía pendurado na cavidade da parede onde deveria ter sido instalado.
Um jovem contador do Disaster Area, visitando o estaleiro onde estava sendo construída a nave, perguntara ao mestre de obras por que diabos estavam instalando um teleporte extremamente caro numa nave que só tinha uma viagem importante a fazer, e sem tripulação. O mestre de obras explicara que o teleporte tinha saído com dez por cento de desconto e o contador explicara que isso era imaterial; o mestre de obras explicara que aquele era o mais fino, o mais poderoso e o mais sofisticado teleporte que o dinheiro podia comprar e o contador explicara que o dinheiro não queria comprá-lo; o mestre de obras explicara que as pessoas ainda teriam que entrar e sair da nave e o contador explicara que a nave dispunha de uma porta perfeitamente utilizável; o mestre de obras explicara que o contador podia ir estourar os miolos e o contador explicara ao mestre de obras que aquela coisa que estava voando em sua direção era um sanduíche de dedos. Após as explicações terem sido concluídas, os trabalhos no teleporte foram interrompidos e este passou despercebido no item "desp. gerais" a cinco vezes o preço.
— Mulas do inferno — murmurou Zaphod, enquanto ele e Ford tentavam se virar com aqueles fios.
Após um momento, Ford lhe disse para se afastar. Enfiou uma moeda no teleporte e girou um botão no painel dependurado. Com um ruído e um raio de luz a moeda desapareceu.
— Essa parte funciona — disse Ford —, mas não tem sistema de direção. Um teleporte de transferência de matéria sem um sistema de direção poderia mandar você para... para qualquer lugar.
O sol de Kakrafoon assomava enorme na tela.
— Quem se importa — disse Zaphod. — A gente vai para onde for.
— E também — disse Ford — não tem funcionamento automático. Não poderíamos ir todos. Alguém teria que ficar para operar. Um momento solene se passou. O sol ficava cada vez maior.
— Ei, Marvin, garoto — disse Zaphod, brilhantemente —, como vai?
- Muito mal, eu suspeito — murmurou Marvin.
Um pequeno instante depois, o concerto de Kakrafoon atingiu um clímax inesperado.
A nave negra com seu único moroso ocupante mergulhara pontualmente na fornalha nuclear do sol. Gigantescas labaredas se levantaram a milhões de quilômetros de sua superfície, empolgando e eventualmente derrubando a dúzia de Montadores de Labaredas que vinham cavalgando próximo à superfície à
espera do grande momento.
Instantes antes da luz das labaredas atingir Kakrafoon, o triturante deserto abriu-se ao meio numa falha. Um imenso rio subterrâneo até então não detectado jorrou na superfície, sendo seguido segundos depois pela erupção de milhões de toneladas de lava fervente que subiram vários metros no ar, vaporizando instantaneamente o rio tanto acima quanto abaixo da superfície numa explosão que ecoou até o outro lado do planeta.
— Aqueles — muito poucos — que testemunharam o evento e sobreviveram juram que os cem mil quilômetros quadrados de deserto subiram de uma vez para o ar como uma panqueca de um quilômetro de espessura, virou-se e caiu com o outro lado para cima. Nesse momento preciso a radiação solar das labaredas filtradas pelas nuvens de vapor atingiu o solo. Um ano depois, o deserto de cem mil quilômetros quadrados estava coberto de flores. A estrutura da atmosfera ao redor do planeta estava sutilmente alterada. O sol queimava menos no verão, o frio incomodava menos no inverno, chuvas agradáveis caíam com mais frequência, e lentamente o deserto de Kakrafoon foi-se tornando um paraíso. Até a telepatia com que o povo tinha sido amaldiçoado foi permanentemente dispersa pela explosão. Um porta-voz do Disaster Área — o que tinha matado os ecologistas — foi citado mais tarde como tendo dito que aquilo tinha sido "um monstro bom". Muitas pessoas falaram coisas comoventes sobre os poderes de cura da música. Alguns cientistas céticos examinaram os informes do evento com maior cuidado e alegaram ter descoberto tênues vestígios de um vasto Campo de Improbabilidade artificialmente induzido proveniente de uma região próxima no espaço.
CAPITULO 22
Arthur acordou e arrependeu-se imediatamente. Já tinha tido ressacas, mas nunca nada nessa escala. Essa era demais, a maior de todas, o fundo do poço. Raios de transferência de matéria não eram, decidiu, tão agradáveis como um bom chute na cabeça.
Indisposto a levantar-se devido a um desagradável latejo que estava sentindo, ficou deitado, pensando. O problema com a maioria das formas de transporte, pensou, é que basicamente não valem a pena. Na Terra — quando havia a Terra, antes de ser demolida para dar lugar a uma via expressa hiperespacial — o problema tinha sido com os carros. As desvantagens envolvidas em arrancar montes de lodo preto viscoso do subsolo onde tinha estado escondido em segurança longe de todo mal, transformá-lo em piche para cobrir o chão, fumaça para infestar o ar e espalhar o resto pelo mar, tudo isso parecia descompensar as vantagens aparentes de se poder chegar mais rápido a um outro lugar — especialmente quando o lugar a que se chegava tinha ficado, como resultado, muito parecido com o lugar de que se tinha saído, ou seja, coberto de piche, cheio de fumaça e sem peixe. E os raios de transferência de matéria então! Qualquer meio de transporte que envolva dividir a pessoa em pedaços, átomo por átomo, lançar esses átomos no subéter, e então montá-los de novo logo quando estavam sentindo seu primeiro sabor de liberdade em anos, certamente não podia ser coisa boa. Muitas pessoas tinham pensado exatamente a mesma coisa antes de Arthur Dent e tinham chegado até ao cúmulo de compor canções a respeito. Eis aqui uma que era entoada regularmente por grandes concentrações em frente à
fábrica de Sistemas de Teleporte da Companhia Cibernética de Sírius, no Mundo-Alegre III:
Aldebaran é demais
Algol é o máximo,
OK As moças de Betelgeuse
São de enlouquecer, eu sei.
Me darão o que eu quiser
Me farão o que eu pedir
Mas se é preciso me desintegrar
Então prefiro não ir.
Todo mundo:
Desintegrar, desintegrar
Essa viagem me arrasa
E se é preciso me desintegrar
Prefiro ficar em casa.
Sírius tem ruas de ouro
Foi o que ouvi dizer
Dos que foram e voltaram:
"Ver Tau antes de morrer"
Irei feliz às estrelas,
Planetas, luas e sóis
Mas se é preciso me desintegrar
Eu fico nos meus lençóis.
Todo mundo:
Desintegrar, desintegrar
Acho que você pirou
E se é preciso me desintegrar
Então, meu caro, eu não vou.
... e por aí afora. Uma outra canção muito popular era bem mais curta:
Nos teleportamos juntos
Eu, Ronaldo, Laura e Zé
José roubou o coração de Laura
E o Ronei ficou com meu pé.
Arthur sentiu que as ondas de dor estavam recuando, embora o latejo desagradável continuasse. Devagar e com cuidado ele se levantou.
— Você está ouvindo um latejo desagradável? — disse Ford Prefect. Arthur virou-se e cambaleou. Ford Prefect vinha vindo, de olhos vermelhos e abatido.
— Onde estamos? — perguntou Arthur, engolindo em seco.
Ford olhou ao redor. Estavam num longo corredor em curva que se estendia em ambas as direções até se perder de vista. A parede exterior de aço —
pintada com aquele tom enjoativo de verde que usam nas escolas, nos hospitais e nos asilos psiquiátricos para manter os internos submissos —
curvava-se sobre suas cabeças para ir de encontro à parede interior perpendicular que era esquisitamente coberta de lambris marrom-escuro. Ford foi até um escuro painel transparente muito grosso instalado na parede externa. Tinha várias camadas, mas ainda assim era possível ver os pontinhos luminosos de estrelas distantes.
— Acho que estamos em algum tipo de nave espacial — disse. Do corredor vinha o ruído de um latejo monótono e desagradável.
— Trillian? — chamou Arthur. — Zaphod? Ford sacudiu os ombros.
— Não estão por aqui — disse —, eu procurei. Podem estar em qualquer lugar. Um teleporte sem programação pode mandar você a anos-luz de distância em qualquer direção. A julgar por como me sinto devemos ter viajado um bocado.
— Como você se sente?
— Mal.
— Você acha que eles...
— Onde estão, como estão, não temos como saber e nao temos o que fazer a respeito. Faça como eu.
— Como?
— Não pense nisso.
Arthur trabalhou a idéia em sua cabeça, relutantemente viu a sabedoria que ela encerrava, e a assumiu. Respirou profundamente.
— Passos! — exclamou Ford de repente.
— Onde?
— Esse barulho. O latejo. Alguém andando pesadamente. Ouça!
Arthur
ouviu.
O
ruído
ecoava
pelo
corredor
de
uma
distância
indeterminada.
Era
o
som
abafado
de
passadas
duras,
e
estava
perceptivelmente ficando mais alto.
— Vamos sair daqui — disse Ford. Ambos saíram, cada um em uma direção.
— Por aí não — disse Ford —, é daqui que vêm vindo.
— Não é, não — disse Arthur. — Estão vindo daí.
— Não, estão...
Ambos pararam. Ambos se viraram. Ambos ouviram com atenção. Ambos concordaram um com o outro. Ambos saíram, cada um em uma direção novamente. O medo os acometeu.
De ambas as direções o barulho ia ficando mais alto.
A poucos metros à sua esquerda um outro corredor entrava em ângulo reto pela parede interna. Correram para ele e seguiram correndo por ele. Era escuro, imensamente comprido, e, conforme iam passando, tinham a sensação de que ia ficando cada vez mais frio. Outros corredores desembocavam nele, à
direita e à esquerda, todos muito escuros, e todos os sujeitando a baforadas de ar gelado quando passavam por eles.
Pararam um instante, alarmados. Quanto mais entravam corredor adentro, mais alto o som das passadas.
Apertaram-se contra a parede e tentaram desesperadamente ouvir. O frio, a escuridão e os passos de pés sem corpo lhes faziam mal. Ford tremia, em parte pelo frio, mas em parte pela lembrança das estórias que sua mãe predileta lhe contava quando ele não passava de um pingo de betelgeusiano: estórias de naves fantasmas, naves assombradas que percorriam sem descanso as mais obscuras regiões do espaço profundo infestadas de demônios ou de fantasmas de tripulações esquecidas; e também estórias de viajantes incautos que encontravam e entravam nessas naves; estórias de... — e aí Ford se lembrou dos lambris marrom-escuro no primeiro corredor e se recompôs. Mesmo que demônios e fantasmas resolvessem decorar suas naves assombradas, ele podia apostar o quanto fosse que não iriam escolher lambris marrons. Puxou Arthur pelo braço.
— Vamos voltar por onde viemos — disse com firmeza, e eles retomaram o caminho.
Pouco depois, pularam como lagartos assustados para o corredor mais próximo quando viram os donos dos pés surgirem à vista diretamente à frente deles.
Escondidos no canto assistiram, espantados, a cerca de duas dúzias de homens e mulheres passarem pisando duro, vestindo abrigos e ofegando de uma tal maneira que excitaria um cardiologista.
Ford Prefect ficou olhando para eles.
— São praticantes de jogging! — cochichou, enquanto o som de seus passos ecoava na distância.
— Praticantes de jogging? — sussurrou Arthur.
— Praticantes de jogging — disse Ford Prefect sacudindo os ombros. O corredor em que estavam escondidos não era como os outros. Era bem curto e terminava numa grande porta de aço. Ford a examinou, descobriu o mecanismo de abrir e empurrou.
A primeira coisa que viram foi o que se revelou ser um caixão. E as quatro mil novecentas e noventa e nove coisas seguintes que viram também eram caixões.
CAPITULO 23
A câmara mortuária tinha o teto baixo, era mal iluminada e gigantesca. No fundo distante, a uns quinhentos metros, uma passagem em arco parecia levar a uma câmara similar, similarmente ocupada.
Ford Prefect deixou escapar um alto assobio quando pisou no chão da câmara.
— Bárbaro — disse.
— O que há de tão formidável em pessoas mortas? — perguntou Arthur Dent, que entrava nervoso atrás dele.
— Sei lá — disse Ford. — Vamos descobrir?
Numa inspeção mais detalhada, os caixões pareciam mais propriamente ser sarcófagos. Ficavam suspensos em lugares altos e eram construídos do que parecia ser mármore branco, e é quase certo que fosse exatamente isso — algo que apenas parecia ser mármore branco. Os tampos eram semitranslúcidos, e através deles podiam-se ver vagamente as feições de seus falecidos e presumivelmente lamentados ocupantes. Eram humanóides, e tinham claramente deixado os problemas de seja lá que mundo viessem muito para trás, mas além disso muito pouco podia ser discernido.
Rolava lentamente pelo chão entre os sarcófagos um gás pesado e viscoso que Arthur a princípio achou que estava lá para dar um pouco de atmosfera ao lugar até que descobriu que também gelava seus tornozelos. Os sarcófagos também eram intensamente frios ao tocar.
Ford agachou de repente ao lado de um deles. Puxou um canto de sua toalha para fora da mochila e começou a esfregar alguma coisa furiosamente.
— Olhe, tem uma placa neste aqui — explicou a Arthur. — Está coberta de gelo.
Esfregou até tirar todo o gelo e examinou os caracteres inscritos. Para Arthur pareciam pegadas de alguma aranha que tivesse tomado umas doses a mais de seja lá o que for que as aranhas tomam quando saem à noite, mas Ford instantaneamente reconheceu uma antiga forma de alfabeto galáctico.
— Diz "Frota de Arcas de Golgafrincham, Nave B, Compartimento Sete, limpador de telefones, Segunda Classe" e um número de série.
— Limpador de telefones? — disse Arthur. — Um limpador de telefones morto?
— Da melhor espécie.
— Mas o que ele está fazendo aqui?
Ford espiou pela tampa para ver a figura ali dentro.
— Não muita coisa — disse, arreganhando um daqueles seus sorrisos que faziam as pessoas acharem que ele andava muito ocupado ultimamente e devia procurar repousar.
Disparou para um outro sarcófago. Um momento esfregando a toalha e anunciou:
— Este é um cabeleireiro morto. Opa!
O sarcófago seguinte revelou-se como o último lugar de descanso de um executivo de publicidade; o outro continha um vendedor de carros de segunda mão, terceira classe.
Uma portinhola de inspeção no assoalho chamou subitamente a atenção de Ford, e ele abaixou-se para tentar abri-la, afastando as nuvens de gás gelado que ameaçavam envolvê-lo.
Uma idéia ocorreu a Arthur.
— Se são apenas caixões — disse — por que são guardados tão frios?
— Ou, de qualquer modo, por que são guardados? — disse Ford, que acabava de conseguir abrir a portinhola. O gás desceu por ela. — Por que alguém se daria todo esse trabalho e despesa para carregar cinco mil cadáveres pelo espaço afora?
— Dez mil — disse Arthur, apontando a passagem em arco, através da qual a outra câmara era obscuramente visível.
Ford enfiou a cabeça na portinhola do chão. Olhou para cima novamente.
— Quinze mil — disse —, tem outro lote ali embaixo.
— Quinze milhões — disse uma voz.
— Isso é muito — disse Ford —, muito muito.
— Virem-se devagar — disse a voz — e ponham as mãos para cima. Qualquer outro movimento e eu os estouro em pedacinhos.
— Alo? — disse Ford, virando-se lentamente, pondo as mãos para cima e não fazendo qualquer outro movimento.
— Por que — disse Arthur — ninguém nunca fica contente em nos ver?
De pé, com a silhueta recortada na porta por onde tinham entrado na câmara mortuária, estava o homem que não tinha ficado contente em vê-los. Seu desprazer era em parte comunicado pela qualidade de latidos valentões de sua voz e em parte pelo modo depravado com que apontava sua longa Matazap prateada para eles. A pessoa que projetara esta arma tinha claramente sido instruída para não usar de rodeios. — Faça-a cruel — lhe teriam dito. —
Deixe totalmente claro que esta arma tem um lado certo e um lado errado. Deixe totalmente claro para qualquer um que esteja do lado errado que as coisas vão indo mal para ele. Se for preciso pregar todo tipo de ferrões e dentes à sua volta, que seja assim. Esta não é uma arma para ser pendurada em cima da lareira ou enfiar no balde de guarda-chuvas, é uma arma para sair e fazer as pessoas miseráveis.
Ford e Arthur olharam infelizes para a arma.
O homem armado saiu da porta e deu uma volta ao redor deles. Quando ele apareceu na luz, puderam ver seu uniforme preto e dourado cujos botões brilhavam com tal intensidade que teriam feito um motorista que se aproximasse piscar o farol alto, irritado. Fez um gesto em direção à porta.
— Para fora — disse. Pessoas que dispõem daquele poder de fogo não precisam dispor de verbos. Ford e Arthur foram para fora, seguidos de perto pelo lado errado da Matazap e dos botões.
Ao virar o corredor esbarraram em vinte e quatro joggers que vinham vindo, agora de banho tomado e roupa trocada, e que passaram por eles e entraram na câmara. Arthur virou-se para olhar para eles, confuso.
— Andando — gritou seu capturador. Arthur andou.
Ford mexeu os ombros e andou.
Na câmara, os joggers foram a vinte e quatro sarcófagos vazios ao longo da parede lateral, abriram, subiram para dentro deles e mergulharam em vinte e quatro sonos sem sonhos.
CAPITULO 24
— Ahn, Capitão...
— O que é, Número Um?
— Nada, é que eu tenho um informe do Número Dois.
— Ai, meu Deus.
Na ponte de comando da nave o Capitão observava o espaço infinito com certa irritação. Do lugar onde estava, sob um amplo domo, podia ver atrás de si e à sua frente o vasto panorama de estrelas que estavam atravessando — um panorama que ia ficando perceptivelmente mais rarefeito conforme seguia a viagem. Voltando-se e olhando para trás além do vasto corpo de três quilômetros de comprimento da nave, ele via a distante massa mais densa de estrelas que formavam quase um aglomerado sólido. Esta era a vista do centro da Galáxia, de onde vinham, e de onde estavam viajando há anos, a uma velocidade que ele não se lembrava exatamente no momento, mas sabia que era terrivelmente alta. Era qualquer coisa parecida com alguma coisa, ou três vezes a velocidade de uma outra coisa? Muito impressionante, de qualquer maneira. Espiou na distância brilhante atrás da nave, procurando algo. Fazia isso de poucos em poucos minutos mas nunca achava o que estava procurando. Não deixava que isso o preocupasse, no entanto. Os rapazes cientistas tinham insistido em que tudo correria perfeitamente bem contanto que ninguém entrasse em pânico e que todo mundo fizesse tudo de maneira ordeira. Ele não estava em pânico. No que lhe dizia respeito tudo estava correndo esplendidamente. Esfregou os ombros com uma grande esponja espumante. Voltou à sua mente a lembrança de quê estava levemente irritado com alguma coisa. Mas o que era mesmo? Uma tossidela o alertou para o fato de que o primeiro oficial da nave ainda estava ali em pé.
Bom rapaz, o Número Um. Não era dos mais brilhantes, tinha uma estranha dificuldade em amarrar os cordões dos sapatos, mas um oficial muito bom e importante. O Capitão não era um homem que chutasse um rapaz agachado tentando amarrar os sapatos, por mais tempo que levasse. Não como aquele horrível Número Dois, andando empoado de um lado para o outro, lustrando seus botões, transmitindo informes a cada hora: "A nave continua em movimento, Capitão", "Prosseguimos em curso, Capitão", "Os níveis de oxigênio continuam sendo mantidos, Capitão". "Dá uma folga" era a sugestão do Capitão. Ah, sim, era isso que o vinha deixando irritado. Olhou para o Número Um.
— Sim, Capitão, ele estava gritando qualquer coisa a respeito de ter encontrado uns prisioneiros...
O Capitão pensou sobre o caso. Parecia-lhe um tanto improvável, mas ele não era homem de se intrometer nos assuntos de seus oficiais.
— Bem, isso talvez o deixe satisfeito por algum tempo, é o que ele sempre quis.
Ford Prefect e Arthur Dent foram levados pelos corredores aparentemente intermináveis
da
nave.
Número
Dois
marchava
atrás
deles
latindo
ocasionalmente a ordem de não fazerem nenhum movimento em falso ou tentarem qualquer gracinha. Pareciam ter passado pelo menos um quilômetro de lambris marrons. Chegaram finalmente a uma grande porta de aço que se abriu com um grito de Número Dois.
Entraram.
Aos olhos de Ford Prefect e Arthur Dent, a coisa mais notável na ponte de comando da nave não era o domo hemisférico de cem metros de diâmetro que a cobria, e através do qual brilhava o deslumbrante conjunto de estrelas: para pessoas que comeram no Restaurante do Fim do Universo tais maravilhas são lugar-comum. Também não era o atordoante aparato de instrumentos que ocupavam toda a parede circular em torno deles. Para Arthur era exatamente assim que naves espaciais tradicionalmente deviam ser, e para Ford parecia totalmente antiquada: confirmava suas suspeitas de que a nave duble do Disaster Área os tinha levado para pelo menos um milhão de anos, se não dois, antes de sua época.
Não, a coisa que realmente os aturdiu foi a banheira.
A banheira ficava sobre um pedestal de cristal azul talhado e era de uma monstruosidade barroca raramente vista fora do Museu de Imaginação Doentia de Maximegalon. Uma miscelânea intestinal de encanamentos tinha sido folhada a ouro em vez de ser enterrada à meia-noite numa sepultura anônima; as torneiras e o chuveiro teriam feito um gárgula pular.
Como peça central dominante da ponte de comando de uma espaçonave era terrivelmente inadequada, e foi com o ar amargo de um homem que tem consciência disso que Número Dois se aproximou dela.
— Senhor Capitão! — gritou entre os dentes cerrados — um truque difícil, mas ele tinha tido anos para aperfeiçoar.
Uma face afável e um afável braço coberto de espuma apareceram acima da borda da monstruosa banheira.
— Ah, olá, Número Dois — disse o Capitão, acenando com uma simpática esponja —, está tendo um bom dia?
Número Dois empertigou-se ainda mais.
— Trouxe-lhe os prisioneiros que localizei na câmara de congelamento número sete, senhor — ganiu ele.
Ford e Arthur tossiram, confusos.
— Ahn... oi — disseram.
O Capitão sorriu para eles. Então o Número Dois tinha mesmo achado prisioneiros. Bom para ele, pensou o Capitão, é bom ver um rapaz fazendo aquilo em que se dá melhor.
— Oh, olá — disse a eles. — Desculpe por não me levantar, estou tomando um banho rápido. Bem, jimtonnik para eles. Veja na geladeira, Número Um.
— Certamente, senhor.
É um fato curioso, e ao qual é difícil saber quanta importância atribuir, que algo como 85% de todos os mundos conhecidos na Galáxia, sejam primitivos ou altamente avançados, tenham inventado uma bebida chamada jimtonnik, ou gind ônic ou j'nt'nik ou qualquer outra dos milhares de variações sobre o mesmo tema fonético. As bebidas em si não são as mesmas e variam entre o
"chinto mnig" sivolviense, que é água comum servida a uma temperatura um pouco acima da temperatura ambiente e o "tzjin-antonio-cah" de Gagrakacka, que mata vacas a distância; e de fato, o que têm em comum entre si, além dos nomes terem sons semelhantes, é o fato de terem todas sido inventadas antes que os mundos em questão tivessem estabelecido contato com outros mundos. O que se pode fazer com este fato? Encontra-se totalmente isolado. No que diz respeito a qualquer teoria de linguística estruturalista, é totalmente fora
dos
padrões,
e
no
entanto
persiste.
Os
velhos
lingüistas
estruturalistas
ficam
muito
irritados
quando
os
jovens
lingüistas
estruturalistas prosseguem com esta questão. Os jovens lingüistas estruturalistas ficam profundamente empolgados e vão até tarde da noite convencidos de que estão muito perto de algo de profunda importância, e acabam se tornando velhos lingüistas estruturalistas antes da hora, ficando muito irritados com os jovens. A linguística estruturalista é uma disciplina amargamente dividida e infeliz, e um grande número de seus adeptos passa noites demais afogando seus problemas em Uizghezodahs.
Número Dois postava-se diante da banheira do Capitão tremendo de frustração.
— O senhor não vai querer interrogar os prisioneiros, Capitão? —
guinchou.
O Capitão olhou para ele, confuso.
— Por que, por Golgafrincham, deveria fazê-lo? — perguntou.
— Para obter informações, senhor! Para descobrir por que vieram para cá!
— Oh, não, não, não — disse o Capitão. — Suponho que eles apenas deram uma passada para tomar um jimtonnik, você não acha?
— Mas, senhor, são prisioneiros! Eu preciso interrogá-los!
O Capitão olhou para eles, em dúvida.
— Ah, está bem — disse —, se você precisa. Pergunte o que querem beber. Um brilho agudo e frio veio aos olhos de Número Dois. Avançou vagarosamente sobre Ford Prefect e Arthur Dent.
— Muito bem, escória — grunhiu. — Seu verme... — cutucou Ford com a Matazap.
— Vá com calma — advertiu o Capitão delicadamente.
— O que vocês querem beber??? —: berrou Número Dois.
— Bom, acho que jimtonnik parece uma boa idéia para mim — disse Ford. — E
você, Arthur?
Arthur piscou.
— O quê? Ah, ahn, certo — disse.
— Com ou sem gelo? — urrou Número Dois.
— Ah, com, por favor — disse Ford.
— Limão??!!
— Sim, por favor — disse Ford. — E será que tem umas bolachinhas? Sabe, daquelas de queijo?
— Quem faz as perguntas aqui sou eu!!!! — uivou Número Dois, que tiritava com uma fúria apoplética.
— Ahn, Número Dois... — disse suavemente o Capitão.
— Sim, senhor?
— Caia fora, está bem, esse é um bom rapaz. Estou tentando tomar um banho relaxante.
Número Dois apertou os olhos e assumiu o que é chamado pelo Sindicato das Pessoas que Gritam e Matam de olhar gélido, cuja idéia, ao que se pode presumir, é dar ao oponente a idéia de que você perdeu os óculos ou está
tendo dificuldade em manter-se acordado. Por que isso é assustador continua, por enquanto, um problema sem solução.
Avançou em direção ao Capitão, estreitando sua (de Número Dois) boca. Mais uma vez, difícil saber por que este é considerado um comportamento de combate. Se, ao vagar pelas florestas de Traal, você de repente deparasse com a fabulosa Fera Voraz Papona, teria razões para agradecer se ela estreitasse a boca em vez de, como faz normalmente, escancará-la num bocejo exibindo afiados dentes salivantes.
— Posso lembrá-lo, senhor — sibilou Número Dois ao Capitão —, que o senhor está no banho há mais de três anos?! — Dado este último golpe, Número Dois girou sobre os calcanhares e encaminhou-se a um canto para praticar olhares dardejantes diante do espelho.
O Capitão contorceu-se em sua banheira. Dirigiu um sorriso sem graça.
— Bom, a gente precisa de muito relaxamento num serviço como o meu —
disse ele.
Ford foi baixando as mãos devagar. Não provocou nenhuma reação. Arthur baixou as suas.
Movendo-se lentamente e com cuidado, Ford foi até o pedestal da banheira. Deu uns tapinhas nela.
— Bacana — mentiu.
Pensou se seria seguro abrir um sorriso. Foi abrindo devagar e com cuidado. Era seguro.
— Ahn... — disse ao Capitão.
— O quê? — disse o Capitão.
— Eu queria saber — disse Ford —, eu poderia perguntar qual é exatamente seu serviço?
Uma mão lhe tocou no ombro, por trás. Ele virou. Era o primeiro oficial.
— Sua bebida — ele disse.
— Ah, obrigado — disse Ford. Ele e Ford pegaram seus jimtonniks. Arthur deu um gole e ficou surpreso ao descobrir que o sabor era muito parecido com o de uísque com soda.
— Quero dizer, não pude deixar de notar — disse Ford, também dando um gole — os corpos. No compartimento de carga.
— Corpos? — disse o Capitão, surpreso.
Ford parou e pensou consigo próprio. Nunca tomar algo por certo, pensou. Seria possível que o Capitão não soubesse que tinha quinze milhões de cadáveres a bordo de sua nave?
O Capitão balançava a cabeça simpaticamente para ele. Parecia também que estava brincando com um pato de borracha.
Ford olhou ao redor. Número Dois o estava encarando pelo espelho, mas só
por um instante: seus olhos estavam em constante movimento. O primeiro oficial só estava ali segurando a bandeja e sorrindo bondosamente.
— Corpos? — disse o Capitão de novo. Ford lambeu os lábios.
— Sim — disse. — Todos aqueles limpadores de telefone e executivos de contabilidade, sabe, lá no compartimento de carga.
O Capitão olhou para ele. De repente deitou a cabeça para trás e começou a rir.
— Ah, não estão mortos — disse. — Santo Deus, não, estão congelados. Serão reanimados.
Ford fez algo que muito raramente fazia. Pestanejou. Arthur parecia estar saindo de um transe.
— Quer dizer que você tem um porão cheio de cabeleireiros congelados? —
disse.
— Oh, sim — disse o Capitão. — Milhões deles. Cabeleireiros, produtores de TV fatigados, vendedores de apólices de seguro, funcionários graduados, guardas de segurança, executivos de relações públicas, assessores de gerência, é só dizer. Vamos colonizar um outro planeta. Ford cambaleou de leve.
— Emocionante, não? — disse o Capitão.
— O quê? Com essa turma? — disse Arthur.
— Ah, não me entenda mal — disse o Capitão —, somos apenas uma das naves da Frota. Somos a Arca "B", entende? Desculpe, será que posso lhe pedir para ligar um pouco a água quente?
Arthur atendeu, e urna cascata de água cor-de-rosa espumante rodopiou pela banheira. O Capitão emitiu um suspiro de prazer.
— Muito obrigado, meu caro. Sirvam-se à vontade de mais bebidas, claro. Ford bebeu seu drinque de um gole, pegou a garrafa da bandeja do primeiro oficial e encheu seu copo até a boca.
— O que — disse — é uma Arca "B"?
— É esta — disse o Capitão, sacudindo alegremente a água com o pato de borracha.
— Certo — disse Ford —, mas...
— Bem, o que ocorreu, sabe — disse o Capitão — foi que o nosso planeta, o mundo de onde estamos vindo, estava, por assim dizer, condenado.
— Condenado?
— Oh, sim. De forma que o que todos pensaram foi, vamos colocar toda a população em algumas espaçonaves gigantes e vamos nos instalar em outro planeta.
Tendo contado esta parte da estória, recostou-se com um gemido de satisfação.
— Você diz um planeta menos condenado?
— O que você disse, meu caro?
— Um planeta menos condenado. Onde vocês iam se instalar.
— Onde vamos nos instalar, sim. Então decidiu-se que seriam construídas três naves, entenderam, três Arcas do Espaço, e... espero não os estar aborrecendo? -
— Não, não — disse Ford com firmeza. — É fascinante.
— Sabem, é delicioso — refletiu o Capitão — ter mais alguém com quem conversar para variar.
Os olhos de Número Dois dardejaram fervorosamente pela sala mais uma vez e então voltaram ao espelho, como um par de moscas brevemente distraídas de seu pedaço favorito de carne de um mês atrás.
— O problema com uma viagem assim longa — prosseguiu o Capitão — é que você acaba conversando muito consigo próprio, o que se torna terrivelmente aborrecido; na metade das vezes você sabe o que vai dizer em seguida.
— Só metade das vezes? — perguntou Arthur, surpreso.
O Capitão pensou por um momento.
— É, mais ou menos metade, eu diria. De qualquer modo... onde está o sabão? — Procurou pela banheira e acabou achando.
— Então — retomou —, a idéia foi de que na primeira nave, a nave "A", iriam todos os líderes brilhantes, os cientistas, os grandes artistas, sabe, todos os realizadores; e então na terceira nave, ou nave "C", iriam todas as pessoas que fazem o trabalho real, que fazem e constroem coisas; e na nave
"B" — que somos nós — iriam todos os outros, os homens médios, entende?
Sorriu feliz para eles.
— E fomos mandados em primeiro lugar — concluiu, e começou a cantarolar uma cançãozinha de banheira.
A cançãozinha de banheira, que tinha sido feita para ele por um dos compositores de jingles mais interessantes e prolíficos de seu planeta (que no momento se encontrava adormecido no compartimento trinta e seis a uns seiscentos metros atrás deles), cobriu o que de outra forma teria sido um desconfortável momento de silêncio. Ford e Arthur trocavam os pés de lugar e evitavam furiosamente os olhares um do outro.
— Ahn... — disse Arthur depois de um tempo — o que exatamente havia de errado com seu planeta?
— Ah, estava condenado, como disse — disse o Capitão. — Aparentemente ia de encontro ao sol ou coisa assim. Ou era a lua que vinha de encontro a nós. Alguma coisa assim. Prospectos absolutamente tenebrosos de qualquer modo.
— Ah — disse o primeiro oficial de repente —, eu pensei que era porque o planeta ia ser invadido por um enxame gigantesco de abelhas-piranhas de seis metros. Não era isso?
Número Dois virou-se, com um olhar flamejante de uma aguda luminosidade fria que só vem com a porção de prática que ele estava preparado para pôr em ação.
— Não foi o que me disseram — disse sibilante. — Meu oficial comandante disse que o planeta inteiro estava sob o perigo iminente de ser comido por um enorme bode mutante das estrelas!
— Ah, verdade?... — disse Ford Prefect.
— Verdade! Uma criatura monstruosa do poço do inferno de dentes cortantes de dez mil quilômetros de comprimento, um hálito que ferveria os oceanos, patas que arrancariam os continentes de suas raízes, mil olhos que queimariam como o sol, mandíbulas de um milhão de quilômetros, um monstro que você, nunca, jamais, em tempo algum...
— E eles tomaram o cuidado de mandarem vocês na frente, certo? — indagou Arthur.
— Ah, sim — disse o Capitão. — Todos disseram, muito gentilmente, achei, que era muito importante para o moral sentir que iam chegar a um planeta onde teriam certeza de que poderiam ter um bom corte de cabelo e onde os telefones estariam limpos.
— Ah, é mesmo — concordou Ford. — Vejo que seria muito importante. E as outras naves... ahn... partiram em seguida?
Por um momento o Capitão não respondeu. Virou-se em sua banheira e fitou além do imenso corpo da nave na direção do brilhante centro da Galáxia. Apertou os olhos para olhar na distância inconcebível.
— Ah. É engraçado que você mencione isso — disse, permitindo-se um franzir de sobrancelhas a Ford Prefect — porque curiosamente não ouvimos o menor sinal deles desde que deixamos o planeta há cinco anos... Mas devem estar atrás da gente, em algum lugar.
Espiou através da distância mais uma vez. Ford espiou com ele e franziu as sobrancelhas, pensativo.
— A não ser, é claro — disse suavemente —, que tenham sido comidos pelo bode...
— Ah, sim... — disse o Capitão com um leve tom de hesitação na voz — o bode... — Seu olhar passou pelas formas sólidas dos instrumentos e computadores que se alinhavam na ponte. Piscavam inocentemente para ele. Olhou para as estrelas, mas nenhuma lhes dizia nada. Deu uma olhada em seus oficiais primeiro e segundo, mas eles pareciam perdidos em seus próprios pensamentos. Olhou para Ford Prefect que ergueu as sobrancelhas para ele.
— É uma coisa engraçada, sabe — disse por fim o Capitão —, mas agora que estou contando a estória para uma outra pessoa... Quero dizer, não lhe parece esquisita, Número Um?
— Ahnnnrinnnnnnnn... — disse Número Um.
— Bom — disse Ford —, vejo que vocês têm uma porção de coisas para conversar, então, obrigado pelos drinques, e agora se vocês puderem nos deixar no próximo planeta que convier...
— Ah, isso vai ser um pouco difícil, sabe — disse o Capitão —, porque nossa trajetória foi preestabelecida quando deixamos Golgafrincham, acho que em parte porque eu não sou muito bom em cifras...
— Quer dizer que estamos presos aqui nesta nave? — exclamou Ford, perdendo de súbito a paciência com toda a charada. — Quando vocês devem chegar ao planeta que vão colonizar?
— Ah, estamos perto, eu acho — disse o Capitão. — A qualquer segundo, agora. Na verdade já é hora de eu sair desta banheira, provavelmente. Oh, se bem que não sei, por que sair agora que está tão bom?
— Então nós vamos mesmo aterrissar num minuto?— — disse Arthur.
— Bem, não aterrissar exatamente, não tanto aterrissar, mas... ahn...
— Do que você está falando? — perguntou Ford asperamente.
— Bem — disse o Capitão, escolhendo as palavras com cuidado —, acho que se bem me lembro, fomos programados para trombarmos com o planeta.
— Trombar? — gritaram Ford e Arthur.
— Ahn, é — disse o Capitão —, é, faz tudo parte do plano, eu acho. Havia um motivo terrivelmente bom para isso, mas não consigo me lembrar no momento. Era qualquer coisa com... ahn... Ford explodiu:
— Vocês são um bando de malditos malucos inúteis!
— gritou.
— Ah, é, era isso — disse o Capitão com um sorriso radiante —, era esse o motivo.
CAPITULO 25
O Guia da Galáxia para Caronas diz isso a respeito do planeta de Golgafrincham: é um planeta com uma história antiga e misteriosa. Rico em lendas, vermelho, e às vezes verde, com o sangue daqueles que lutaram em tempos idos para conquistá-lo; terra de paisagens áridas e ressequidas, de ar doce e estonteante com o aroma das fontes perfumadas que brincam entre suas pedras quentes e poeirentas e nutrem os liquens escuros abaixo delas; terra de mentes febris e imaginações intoxicadas, particularmente entre os que experimentam esses liquens; terra também de idéias frescas, à sombra, entre os que aprenderam a amaldiçoar os liquens e achar uma árvore para sentar embaixo; terra também de sangue, aço e heroísmo; terra do corpo e do espírito. Esta era sua história.
Em toda esta história antiga e misteriosa, as figuras mais misteriosas eram sem dúvida as dos Grandes Poetas do Círculo de Arium. Estes Poetas do Círculo viviam nos caminhos de montanhas remotas, onde ficavam à espera de pequenos grupos de viajantes incautos para fazer um círculo em torno deles e apedrejá-los.
E quando os viajantes gritavam, perguntando por que eles não iam embora escrever poemas em vez de ficar importunando as pessoas com essa estaria de jogar pedras, eles paravam subitamente e entravam com uma das setecentas e noventa e quatro grandes Canções dos Ciclos de Vassilian. Tais canções eram de extraordinária beleza, e de comprimento ainda mais extraordinário, e todas se encaixavam exatamente no mesmo padrão.
A primeira parte de cada canção narrava como havia deixado a Cidade de Vassilian um grupo de cinco príncipes sábios com quatro cavalos. Os príncipes, que são naturalmente bravos, nobres e judiciosos, viajam a terras distantes, combatem ogres gigantes, seguem filosofias exóticas, tomam chá
com deuses sobrenaturais e salvam lindos monstros de princesas vorazes antes de anunciarem que atingiram a luz e que suas andanças portanto estão con- cluídas.
A segunda parte, muito mais comprida, de cada canção falava sobre todas as brigas para quem ia voltar a pé.
Tudo isso repousava no passado remoto do planeta. Foi, no entanto, um desses excêntricos poetas quem inventou as estarias espúrias sobre uma catástrofe iminente, que permitiram ao povo de Golgafrincham livrar-se de todo um terço inútil de sua população. Os outros dois terços permaneceram firmemente em casa e levaram vidas cheias, ricas e felizes até que foram todos subitamente exterminados por uma doença virulenta contraída de um telefone sujo.
CAPÍTULO 26
Aquela
noite
a
nave
colidiu
com
um
planetinha
azul-esverdeado
completamente insignificante que dava voltas em torno de um pequeno sol amarelo nos confins inexplorados da extremidade do braço espiral ocidental da Galáxia.
Nas
horas
que
antecederam
a
colisão
Ford
Prefect
tinha
lutado
furiosamente, mas em vão, para destravar os controles da nave e tirá-la de sua rota preestabelecida. Tornara-se rapidamente aparente para ele que a nave tinha sido programada para entregar a carga em segurança, ainda que sem muito conforto, ao seu novo lar, mas estraçalhar-se irreparavelmente no processo.
Sua descida em chamas através da atmosfera destruíra a maior parte da superestrutura e da blindagem exterior, e o inglório mergulho de barriga num pântano lodacento deixou à população apenas algumas horas de escuridão para reviver e desembarcar a carga congelada e indesejada, pois a nave começava a afundar, enrijecendo seu corpo vagarosamente na lama estagnada. De vez em quando, durante a noite, sua silhueta aparecia recortada quando meteoros flamejantes — detritos de sua queda — riscavam o céu.
Na luz cinzenta antes do alvorecer, com um ruído obsceno, a nave afundou para sempre nas malcheirosas profundezas.
Quando o sol se levantou aquela manhã, lançou sua luz aguada e rarefeita sobre uma vasta área tomada por cabeleireiros, executivos de relações públicas, pesquisadores de opinião e os demais, todos gemendo e arrastandose desesperadamente para a terra seca. Um sol menos decidido teria provavelmente voltado di-reto para trás, mas este continuou seu caminho céu acima e após um tempo a influência de seus raios quentes começou a ter um efeito restaurador naquelas criaturas rastejantes.
Como não é de surpreender, um número incontável deles perdera-se no pântano durante a noite, e milhões de outros foram engolidos juntos com a nave, mas os que sobreviveram ainda se contavam às centenas de milhares e conforme o dia avançava, arrastavam-se para as terras dos arredores à
procura de alguns metros quadrados de chão firme onde cair e se recuperar do pesadelo.
Duas figuras moveram-se mais para diante. De uma colina próxima Ford Prefect e Arthur Dent assistiram ao horror do qual não se sentiam parte.
— Que golpe imundo de se aplicar — murmurou Arthur.
Ford riscava o chão com uma vareta e sacudiu os ombros.
— Uma solução criativa para um problema, eu diria.
— Por que as pessoas não podem simplesmente aprender a viver juntas em paz e harmonia? — disse Arthur.
Ford deu uma gargalhada muito alta.
— Quarenta e dois! — disse, com um sorriso malicioso. — Não, não serve. Deixa pra lá.
Arthur olhou para ele como se ele tivesse enlouquecido e, não vendo nada que indicasse o contrário, concluiu que seria perfeitamente razoável assumir que isto tinha de fato ocorrido.
— O que você acha que vai acontecer com eles? — disse, depois de um instante.
— Num Universo infinito tudo pode acontecer — disse Ford. — Até a sobrevivência. Estranho, mas verdadeiro.
Um olhar curioso apareceu em seus olhos ao passarem pela paisagem e retornarem à cena de miséria abaixo deles.
— Acho que eles vão se dar bem por um tempo — disse. Arthur dirigiu-lhe um olhar aguçado.
— Por que você diz isso? — perguntou. Ford sacudiu os ombros.
— Só um palpite — disse, recusando-se a ser levado por outras perguntas.
— Olhe — disse ele de repente.
Arthur
seguiu
seu
dedo
indicador.
Lá
embaixo,
entre
as
massas
escarrapachadas, uma figura se movimentava — ou cambaleava talvez fosse uma expressão mais exata. Parecia estar carregando algo sobre os ombros. Conforme cambaleava de uma forma prostrada para outra, parecia acenar com o que quer que estivesse carregando, como um bêbado. Após um tempo, desistiu do esforço e desmaiou num tombo.
Arthur não tinha idéia do que isso queria dizer.
— Câmera de filmar — disse Ford. — Registrando o momento histórico.
— Bom, não sei quanto a você — disse Ford mais uma vez, após um instante
— mas eu estou perdido.
Ficou em silêncio por um tempo. Depois de um tempo, isso parecia requerer um comentário.
— Ahn, quando você diz que está perdido, o que quer dizer exatamente? —
disse Arthur.
— Boa pergunta — disse Ford. — Estou captando silêncio total. Olhando por cima dos ombros Arthur viu que ele estava mexendo nos botões de uma caixa preta. Ford já tinha apresentado a caixa para Arthur como um Receptor Sensomático de Subéter, mas Arthur tinha meramente balançado a cabeça, absorto, e não tinha ligado para o assunto. Na sua mente o Universo ainda se dividia em duas partes — a Terra, e todo o resto. Como a Terra tinha sido demolida para dar lugar a uma via expressa hiperespacial, sua visão das coisas estava um pouco desequilibrada, mas Arthur tendia a agarrar-se a esse desequilíbrio como o último contato restante com o lar. O
Receptor Sensomático de Subéter pertencia firmemente à categoria de "todo o resto".
— Nada, nem uma salsicha — disse Arthur, sacudindo o aparelho. Salsicha, pensou Arthur enquanto contemplava indiferentemente o mundo primitivo à sua volta, o que não daria por uma boa salsicha da Terra.
— Você acredita — disse Ford, exasperado — que não há nenhuma transmissão de nenhum tipo a anos-luz deste lugar obscuro? Você está me ouvindo?
— O quê? — disse Arthur.
— Estamos com problemas — disse Ford.
— Ah — disse Arthur. Isso parecia notícia velha de um mês para ele.
— Até a gente captar alguma coisa neste aparelho — disse Ford — nossas chances de sairmos deste planeta são nulas. Pode ser algum efeito de interferência no campo magnético do planeta e, nesse caso, é só a gente viajar e viajar até encontrar uma área de boa recepção. Vamos?
Apanhou o aparelho e se levantou.
Arthur olhou colina abaixo. O homem com a filmadora tinha acabado de erguer-se num esforço a tempo de filmar um de seus colegas desmaiando. Arthur arrancou uma folha de capim e levantou-se atrás de Ford.
CAPITULO 27
— Creio que tiveram uma refeição agradável — disse Zarniwoop a Zaphod e Trillian quando se rematerializaram na ponte de comando da nave Coração de Ouro e ficaram estirados no chão.
Zaphod abriu alguns olhos e olhou-o ameaçadora-mente.
— Você — disse, asperamente. Levantou-se com dificuldade e cambaleou à
busca de uma cadeira em que mergulhar. Achou uma e mergulhou.
—
Programei
o
computador
com
as
Coordenadas
de
Improbabilidade
pertinentes a nossa viagem — disse Zarniwoop. — Chegaremos lá muito em breve. Por enquanto, por que vocês não descansam e se preparam para o encontro?
Zaphod não disse nada. Levantou-se de novo e caminhou até um pequeno armário de onde tirou uma garrafa da velha aguardente Janx. Tomou um demorado gole.
— E quando tudo isso terminar — disse Zaphod como um selvagem — estará
terminado, certo? Estarei livre para ir fazer o que eu quiser e ficar deitado nas praias e tudo o mais?
— Depende do que decorrer do encontro — disse Zarniwoop.
— Zaphod, quem é esse homem? — perguntou Trillian, levantando-se, tremula. — O que ele está fazendo aqui? O que está fazendo na nossa nave?
— É um homem muito estúpido — esclareceu Zaphod — que quer conhecer o homem que rege o Universo.
— Ah — disse Trillian, pegando a garrafa de Zaphod e servindo-se —, um cara atrás de ascensão social.
CAPÍTULO 28
O principal problema — um dos principais problemas, pois há vários —, um dos principais problemas em governar pessoas está em quem você arruma para fazê-lo; ou melhor, em quem consegue arrumar pessoas que lhe permitam fazer isso com elas.
Resumindo: é um fato bem conhecido que as pessoas que mais querem governar as pessoas são, por isso mesmo, as menos convenientes para isso. Resumindo o resumo: qualquer pessoa capaz de se fazer presidente não deveria, em nenhuma hipótese, ter permissão de receber esse emprego. Resumindo o resumo do resumo: as pessoas são um problema. E então esta é a situação que encontramos: uma sucessão de Presidentes Galácticos que curtem tanto as diversões e adulações que têm por estarem no poder que muito raramente percebem que não estão.
E alguém nas sombras atrás deles... quem?
Quem pode governar se ninguém que queira fazê-lo pode ter permissão para isso?
CAPITULO 29
Num pequeno mundo obscuro em algum lugar no meio de nenhum lugar em particular — ou seja, nenhum lugar que pudesse ser encontrado, já que estava protegido por um vasto campo de improbabilidade para o qual apenas seis homens na Galáxia tinham a chave — estava chovendo.
Chovia aos baldes, e já fazia horas. A chuva formava uma névoa sobre a superfície do mar, castigava as árvores, revolvia e chafurdava a faixa de terra junto ao mar transformando-a num lodaçal.
A chuva dançava e crivava o teto de zinco de uma pequena choupana que ficava no meio dessa faixa de terra. Destruiu o caminho rústico que levava da cabana à beira do mar, levando as caprichadas pilhas de conchas interessantes que tinham sido postas ali.
O barulho da chuva no telhado da choupana era ensurdecedor do lado de dentro, mas passava despercebido por seu ocupante, cuja atenção estava ocupada com outra coisa.
Era um homem alto e desajeitado de cabelos cor de palha, úmidos por causa das goteiras. Tinha roupas surradas, as costas arqueadas, e seus olhos, embora abertos, pareciam estar fechados.
Em sua choupana havia uma velha poltrona gasta, uma velha mesa riscada, um colchão velho, algumas almofadas e um aquecedor pequeno, mas quente. Havia também um gato velho e mais ou menos surrado, e era ele no momento o foco de atenção do homem. Inclinou seu corpo desajeitado sobre ele.
— Bichano, bichano, bichano — disse —, cutchicut-chicutchicutchicu... o bichano quer peixe? Um pedacinho gostoso de peixe... o bichano quer?
O gato parecia indeciso sobre o assunto. Estendeu a pata com certa condescendência para o pedaço de peixe que o homem estava segurando, e então distraiu-se com um chumaço de poeira no chão.
— Se o bichano não come peixe, o bichano fica magrinho e desaparece, eu acho — disse o homem. Transparecia dúvida em sua voz.
— Imagino que seja isso o que acontece — disse —, mas como posso saber?
Ofereceu o peixe outra vez.
— O bichano pensa — disse — se come o peixe ou se não come o peixe. Acho que é melhor se eu não me envolver
— suspirou.
— Eu acho que peixe é bom, mas acho também que a chuva é molhada, então quem sou eu para julgar?
Deixou o peixe no chão para o gato, e voltou para seu assento.
— Ah, parece que estou vendo você comer — disse, por fim, quando o gato exauriu as possibilidades de entretenimento do chumaço de poeira e lançou-se sobre o peixe.
— Gosto de ver você comendo peixe — disse o homem
— porque na minha mente você vai desaparecer se não comer. Apanhou na mesa um pedaço de papel e um toco de lápis. Segurou um numa mão e o outro na outra e experimentou os diferentes modos de colocá-los juntos. Tentou segurar o lápis embaixo do papel, e depois em cima, e então do lado. Experimentou embrulhar o lápis com o papel, experimentou esfregar o lado rombudo do lápis contra o papel e então experimentou esfregar o lado pontudo do lápis contra o papel. Fez uma marca, e ele ficou maravilhado com a descoberta, como ficava todo dia. Apanhou outro pedaço de papel na mesa. Este tinha um jogo de palavras-cruzadas. Estudou-o brevemente, preencheu alguns quadrinhos até perder o interesse.
Experimentou sentar sobre uma de suas mãos e ficou intrigado ao sentir os ossos do quadril.
— O peixe vem de longe — disse — ou é o que me dizem. Ou é o que imagino que me dizem. Quando os homens vêm, ou quando em minha mente os homens vêm em suas seis naves negras reluzentes, eles vêm em sua mente também? O que você vê, bichano?
Olhou para o gato, que estava mais preocupado em engolir o peixe o mais rápido que pudesse do que com estas especulações.
— È quando ouço as perguntas, você ouve as perguntas? O que significam as vozes deles para você? Talvez você só pense que estão cantando cantigas para você. — Refletiu sobre isso e viu a falha da suposição.
— Talvez eles estejam cantando cantigas para você — disse — e eu só penso que eles estão me fazendo perguntas.
Fez uma outra pausa. Às vezes fazia uma pausa que durava dias, só para ver como seria.
— Você acha que eles vieram hoje? — disse. — Eu acho. Tem barro no chão, cigarros e uísque em cima da mesa, peixe num prato para você e uma lembrança deles na minha mente. Evidências não muito conclusivas, eu sei, mas toda evidência é circunstancial. E olhe o que mais eles me deixaram. Alcançou algumas coisas sobre a mesa.
— Palavras-cruzadas, dicionários e uma calculadora.
Brincou com a calculadora durante uma hora, enquanto o gato foi dormir e a chuva lá fora continuava a cair. A uma certa altura pôs a calculadora de lado.
— Acho que devo estar certo em achar que eles me fazem perguntas — disse.
— Vir até aqui e trazer todas estas coisas só pelo privilégio de cantar cantigas para você seria um comportamento muito estranho. Ou assim me parece. Quem pode saber, quem pode saber?
Pegou um cigarro de cima da mesa e acendeu com uma brasa do aquecedor. Deu uma tragada profunda e recostou-se na poltrona.
— Acho que vi outra nave no céu hoje — disse por fim. — Uma nave grande. Eu nunca vi uma nave grande branca, só as seis pretas. E as seis verdes. E
as outras que dizem que vêm de muito longe. Nunca uma grande e branca. Talvez seis pretas pequenas possam parecer uma grande branca em certas ocasiões. Talvez eu queira um copo de uísque. É, parece mais provável. Levantou-se e achou um copo que estava no chão ao lado de seu colchão. Serviu uma dose da garrafa. Sentou-se de novo.
Talvez outras pessoas estejam vindo me ver — disse.
A cento e cinqüenta metros dali, golpeada pela chuva torrencial, encontrava-se a nave Coração de Ouro.
Ao abrir-se a escotilha emergiram três figuras, agarrados um ao outro para protegerem seus rostos da chuva.
— Ali? — gritou Trillian por sobre o barulho da chuva.
— É — disse Zarniwoop.
— Naquela choupana?
— É.
— Que esquisito — disse Zaphod.
— Mas fica no meio do nada — disse Trillian. — A gente deve ter vindo ao lugar errado. Não dá para reger o Universo de uma choupana. Correram pela chuva que caía e chegaram, completa-mente ensopados, à
porta. Bateram. Estavam tremendo. A porta se abriu.
— Olá? — disse o homem.
— Ah, desculpe — disse Zarniwoop —, tenho motivos para acreditar...
— Você rege o Universo? — disse Zaphod. O homem sorriu para ele.
— Tento não reger — disse. — Vocês estão molhados? Zaphod olhou para ele assombrado.
— Molhados? — gritou. — Não parece que estamos molhados?
— É o que me parece — disse o homem —, mas como vocês se sentem a esse respeito poderia ser uma questão completamente diferente. Se acharem que o calor os secará, é melhor entrarem.
Entraram.
Espiaram a cabana por dentro, Zarniwoop com aversão, Trillian com interesse, Zaphod deliciado.
— Ei, ahn... — disse Zaphod — qual é seu nome? O homem olhou para eles em dúvida.
— Não sei. Por que vocês acham que eu haveria de ter um? Parece-me muito estranho dar um nome a um amontoado de vagas percepções sensoriais. Convidou Trillian a sentar-se na poltrona. Ele se sentou na beirada, Zarniwoop recostou-se rigidamente contra a mesa e Zaphod estendeu-se no colchão.
— Uauí! — disse Zaphod. — O assento do poder! — Fez cócegas no gato.
— Ouça — disse Zarniwoop —, tenho que lhe fazer algumas perguntas.
— Está bem — disse gentilmente o homem. — Pode cantar para meu gato se quiser.
— Ele gostaria? — perguntou Zaphod.
— É melhor perguntar para ele — disse o homem.
— Ele fala? — perguntou Zaphod.
— Não tenho lembrança dele falando — disse o homem —, mas sou bastante falível.
Zarniwoop tirou algumas anotações do bolso.
— Agora — disse ele —, o senhor rege o Universo, não rege?
— Como posso saber? — disse o homem. Zarniwoop fez um sinal diante de uma anotação no papel.
— Há quanto tempo o senhor faz isso?
— Ah — disse o homem —, essa é uma pergunta sobre o passado, não?
Zarniwoop olhou para ele, confuso. Não era isso exata-mente o que esperava.
— Ê — disse.
— Como posso saber — disse o homem —, se o passado não é uma ficção projetada para explicar a discrepância entre minhas sensações físicas imediatas e meu estado de espírito?
Zarniwoop cravou os olhos nele. O vapor começava a subir de suas roupas encharcadas.
— Então você responde todas as perguntas desse jeito? — perguntou. O homem respondeu rápido.
— Digo o que me ocorre dizer quando acho que ouço as pessoas dizerem coisas. Mas eu não posso dizer.
Zaphod riu alegremente.
— Vou beber isso — disse, e pegou a garrafa de aguardente Janx. Levantouse de um salto e ofereceu a garrafa ao homem que rege o Universo, que a pegou com prazer.
— Muito bem, grande regente — disse. — Conte as coisas como as coisas são!
— Não, escute-me — disse Zarniwoop —, vêm pessoas ver você, não? Em naves...
— Acho que sim — disse o homem. Entregou a garrafa a Trillian.
— E eles lhe pedem — disse Zarniwoop — para tomar decisões para eles?
Sobre as vidas das pessoas, sobre os mundos, sobre economia, sobre guerras, sobre tudo o que se passa no Universo lá fora?
— Lá fora? — disse o homem. — Onde?
— Lá fora! — disse Zarniwoop apontando para a porta.
— Como você sabe que tem alguma coisa lá fora? — disse o homem educadamente. — A porta está fechada.
A chuva continuava a golpear o teto. Dentro da choupana estava quente.
— Mas você sabe que existe um Universo inteiro lá fora! — gritou Zarniwoop. — Você não pode esquivar-se de suas responsabilidades dizendo que elas não existem!
O homem que rege o Universo pensou por um longo tempo enquanto Zarniwoop trepidava de raiva.
— Você tem muita certeza de seus fatos — disse por fim. — Eu não confiaria num homem que conta com o Universo, se é que existe um, como algo certo.
Zarniwoop ainda trepidava, mas estava em silêncio.
— Eu apenas decido sobre o meu Universo — prosseguiu o homem calmamente.
— Meu Universo são meus olhos e meus ouvidos. Qualquer coisa fora disso é
boato.
— Mas você não crê em nada?
O homem sacudiu os ombros e apanhou seu gato.
— Não entendo o que você quer dizer — disse.
— Você não entende que o que decide nesta choupana afeta as vidas e os destinos de milhões de pessoas? Isto tudo está monstruosamente errado!
— Não sei. Nunca vi essas pessoas todas de que você fala. E nem você, suspeito. Elas existem apenas nas palavras que ouvimos. É loucura você dizer que sabe o que está acontecendo com as outras pessoas. Só elas sabem, se existirem. Elas têm seus próprios Universos de seus olhos e seus ouvidos. Trillian disse:
— Acho que vou dar uma saída lá fora por um momento.
Saiu e foi andar na chuva.
— Você acredita que existem outras pessoas? — insistiu Zarniwoop.
— Não tenho opinião. Como posso saber?
— É melhor eu ir ver o que há com Trillian — disse Zaphod, e saiu. Lá fora ele disse para ela:
— Acho que o Universo está em boas mãos, ehn?
— Muito boas — disse Trillian. Foram andando pela chuva. Lá dentro, Zarniwoop continuava.
— Mas você não entende que as pessoas vivem ou morrem pela sua palavra?
O homem que rege o Universo esperou o quanto pôde. Quando ouviu o som débil dos motores da nave sendo ligados, falou para encobri-lo.
— Não tem nada a ver comigo — disse —, não estou envolvido com as pessoas. Deus sabe que não sou um homem cruel.
— Ah — vociferou Zarniwoop —, você diz "Deus". Você acredita em alguma coisa!
— Meu gato — disse o homem benignamente, pegando-o e acariciando-o. — Eu o chamo de Deus. Sou bom pira ele.
— Muito bem — disse Zarniwoop, pressionando. — Como você sabe que ele existe? Como você sabe que ele sabe que você é bom, ou que ele gosta daquilo que ele acha que é sua bondade?
— Eu não sei — disse o homem com um sorriso —, não tenho idéia. Simplesmente me agrada agir de uma certa maneira com o que me parece ser um gato. Você se comporta de outro jeito? Por favor, acho que estou cansado. Zarniwoop suspirou completamente insatisfeito e olhou à sua volta.
— Onde estão os outros dois? — disse de repente.
— Que outros dois? — disse o homem que rege o Universo, recostando-se na poltrona e enchendo o copo de uísque.
— Beeblebrox e a garota! Os dois estavam aqui!
— Não me lembro de ninguém. O passado é uma ficção para explicar...
— Esqueça — rosnou Zarniwoop e saiu correndo na chuva. Não havia nave. A chuva continuava a revolver a lama. Não havia sinal que mostrasse onde tinha estado a nave. Ele gritou na chuva. Virou-se e correu de volta para a choupana e a encontrou trancada.
O homem que rege o Universo cochilava em sua poltrona. Depois de um tempo brincou com o lápis e o papel outra vez e ficou encantado ao descobrir como fazer uma marca com um no outro. Havia vários barulhos vindos do lado de fora mas ele não sabia se eram reais ou não. Ficou então falando com a mesa durante uma semana para ver como ela reagiria.
CAPITULO 30
As estrelas surgiram deslumbrantes aquela noite, em seu brilho e claridade. Ford e Arthur tinham percorrido mais quilômetros do que poderiam avaliar de algum modo e finalmente pararam para descansar. A noite estava fresca e balsâmica, o ar puro, o Receptor Sensomático de Subéter totalmente silencioso.
Uma quietude maravilhosa estendia-se sobre o mundo, e uma calma mágica combinava-se com as doces fragrâncias dos bosques, o barulho sossegado dos insetos e a luz brilhante das estrelas para aliviar seus espíritos agitados. Até Ford Prefect, que já tinha visto mais mundos do que poderia enumerar numa longa tarde, estava tentado a pensar se aquele não era o mais bonito em que já tinha estado. Durante todo aquele dia tinham passado por vales e montanhas verdes, ricamente cobertos de gramados, flores de essências exóticas e árvores altas repletas de folhas, o sol os tinha aquecido e brisas suaves os mantinham frescos, e Ford Prefect vinha observando seu Receptor Sensomático de Subéter a intervalos cada vez menos frequentes, e mostrava-se cada vez menos aborrecido com seu silêncio contínuo. Começava a achar que gostava dali.
Ainda que o ar da noite estivesse fresco eles dormiram profunda e confortavelmente a céu aberto e acordaram algumas horas depois com o orvalho sentindo-se repousados mas com fome. Ford tinha enfiado alguns pãezinhos em sua mochila, no Milliways, e eles os comeram no café da manhã, antes de continuarem a marcha.
Até agora vinham andando a esmo, mas então resolveram pôr-se firmes em direção ao leste, achando que se iam explorar aquele mundo, deviam ter uma idéia clara de onde tinham vindo e para onde estavam indo. Pouco antes do meio-dia, tiveram a primeira indicação de que o mundo em que o tinham pousado não era desabitado: o relance de um rosto observando-os por entre as folhas. Desapareceu no instante em que os dois o viram, mas a imagem que ambos tiveram era a de uma criatura humanóide, curiosa de vê-los mas não assustada. Meia hora depois tiveram o relance de outro rosto, e dez minutos mais tarde, mais um.
Um minuto depois encontraram uma grande clareira e pararam. A frente deles, no meio da clareira, estava um grupo de cerca de duas dúzias de homens e mulheres. Ficaram parados e quietos encarando Ford e Arthur. Em volta de algumas das mulheres amontoavam-se crianças pequenas e atrás do grupo, um decrépito aglomerado de habitações feitas de barro e galhos.
Ford e Arthur seguraram a respiração.
O mais alto dos homens tinha pouco mais de um metro e meio, todos andavam um pouco curvados para frente, tinham braços alongados e testas curtas, e claros olhos brilhantes com os quais olhavam fixamente para os estranhos. Ao ver que não carregavam armas nem faziam qualquer movimento em sua direção, Ford e Arthur ficaram um pouco mais tranquilos. Por um tempo os dois grupos ficaram se entreolhando, sem que ninguém se movesse. Os nativos pareciam confusos com os intrusos, e ao mesmo tempo que não mostravam nenhum sinal de agressividade, definitivamente não estavam emitindo nenhum convite. Nada acontecia.
Por dois minutos completos nada aconteceu. Após dois minutos, Ford achou que era hora de algo acontecer.
— Olá — disse.
As mulheres puxaram as crianças para mais perto delas.
Os homens não fizeram qualquer movimento compreensível, mas sua disposição no todo tornava claro que a saudação não era bem-vinda — não era hostilizada de maneira alguma, apenas não era bem-vinda. Um dos homens, que estava pouco à frente do restante do grupo e que portanto devia ser seu líder, deu um passo à frente. Seu rosto era calmo e tranqüilo, quase sereno.
— Ugghhhuuggghhhrrrr uh uh ruh uurgh — disse calmamente. Isso tomou Arthur de surpresa. Tinha se acostumado tanto a receber uma tradução instantânea e inconsciente de tudo que ouvia, através do peixebabel instalado em seu ouvido, que até já tinha esquecido disso, e só se lembrou agora pelo fato de parecer que não estava funcionando. Vagos significados nebulosos surgiram no fundo de sua mente, mas nada que ele pudesse agarrar com firmeza. Imaginou, corretamente a propósito, que aquele povo não tinha desenvolvido ainda mais do que os rudimentos da linguagem, e que o peixe-babel era portanto incapaz de ajudar. Deu uma olhada para Ford, que era infinitamente mais experiente nesses assuntos.
— Acho — disse Ford com um canto da boca — que ele está perguntando se não nos importaríamos em dar a volta ao redor da aldeia. Pouco depois, um gesto do homem-criatura pareceu confirmar isso.
— Ruurgggghhhh urrrgggh; urgh urgh (uh ruh) rruur-ruuh ug — prosseguiu o homem-criatura.
— O sentido geral — disse Ford —, pelo que posso entender, é que temos toda a liberdade de seguir viagem por onde quisermos, mas se déssemos a volta ao redor da aldeia em vez de atravessá-la, nós os deixaríamos muito felizes.
— Então, o que vamos fazer?
— Acho que vamos deixá-los felizes — disse Ford.
Devagar e atentos deram a volta no perímetro da clareira. Isso pareceu ir muito bem para os nativos que acenaram muito de leve para eles e voltaram para suas atividades.
Ford e Arthur continuaram sua viagem através da floresta. A umas centenas de metros da clareira depararam subitamente com uma pequena pilha de frutas colocada em seu caminho — frutinhas que se pareciam notavelmente com amoras e framboesas e umas frutas polpudas de casca verde que se pareciam impressionantemente com pêras.
Até o momento, tinham evitado todas as frutas que tinham visto, apesar das árvores estarem carregadas delas.
— Encare desta maneira — dissera Ford Prefect —, frutas em planetas estranhos podem fazer você viver ou fazer você morrer. Portanto, a questão, quando você se mete com elas, é saber quando você vai morrer enquanto não morre. Pensando assim você não cai na tentação de comê-las. O segredo da viagem de carona saudável é comer porcaria.
Olharam com suspeita para a pilha que estava posta em seu caminho. Parecia tão boa que quase lhes dava vertigem de fome.
— Encare desta maneira — disse Ford. —, ahn...
— Como? — disse Arthur.
— Estou tentando pensar numa maneira de encarar que queira dizer que no fim a gente acaba comendo.
A luz do sol atravessava as folhas e lançava um brilho sarapintado sobre as coisas que pareciam pêras. As coisas que pareciam framboesas e morangos eram mais rechonchudas e carnudas que quaisquer outros que Arthur já vira, mesmo em comerciais de sorvete.
— Por que a gente não come e deixa para pensar depois? — disse.
— Talvez seja isso que eles querem que a gente faça.
— Está bem, encare desta maneira...
— Começou bem — disse Ford.
— Estão aí para a gente comer. Não importa se são boas ou ruins, se eles estão querendo nos dar comida ou nos envenenar. Se forem venenosas e a gente não comer, eles simplesmente vão nos atacar de algum outro jeito. Se a gente não comer, a gente sai perdendo de qualquer forma.
— Gostei do seu jeito de pensar — disse Ford —, agora coma uma. Hesitante, Arthur apanhou uma das coisas que pareciam pêras.
— Foi o que eu sempre achei sobre o Jardim do Éden — disse Ford.
— O quê?
— O Jardim do Éden. A árvore. A maçã. Essa parte, lembra?
— Lembro, claro que eu lembro.
— Esse Deus põe uma macieira no meio de um jardim e diz "vocês façam o que vocês quiserem, ah, mas não comam a maçã". Surpresa surpresa, eles comem e ele pula de trás de uma moita gritando "Peguei vocês!". Não teria feito muita diferença se eles não tivessem comido.
— Por que não?
— Porque se você está lidando com alguém que tem o tipo da mentalidade de quem deixa um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem pode ter certeza que ele não vai desistir. No fim ele te pega.
— Do que você está falando?
— Esqueça, coma a fruta.
— Sabe, este lugar até que parece o Jardim do Éden.
— Coma a fruta.
— O que se ouve também é parecido.
Arthur deu uma mordida na coisa que parecia uma pêra.
— É uma pêra — ele disse.
Momentos depois, quando tinham comido tudo, Ford Prefect virou-se e gritou.
— Obrigado. Muito obrigado. Vocês são muito gentis.
Pelos oitenta quilômetros seguintes em sua marcha rumo ao leste eles continuaram encontrando os presentes de frutas estendidos em seu caminho, e uma vez ou outra perceberam um nativo os observando entre as árvores; não tornaram a fazer contato direto. Resolveram que gostavam de uma raça de pessoas que deixava bem clara sua gratidão por ser deixada em paz. As frutas acabaram após oitenta quilômetros porque era onde começava o mar.
Sem
pressa,
construíram
uma
jangada
e
atravessaram
o
mar.
Era
relativamente calmo, uns cem quilômetros de largura, e eles tiveram uma travessia razoavelmente agradável, aportando numa terra que era pelo menos tão bonita quanto a de onde tinham saído.
A vida era, resumindo, ridiculamente cômoda e eles puderam, pelo menos por um tempo, enfrentar os problemas da falta de objetivos e do isolamento simplesmente decidindo ignorá-los. Quando a ânsia por companhia fosse forte demais, sabia onde achá-la, mas no momento estavam felizes de saber que os Golgafrinchanos estavam a centenas de quilômetros atrás deles. Ford Prefect, todavia, começou a usar seu Receptor Sensomático de Subéter com mais freqüência de novo. Só uma vez captou um sinal, mas era tão tênue e vinha de uma distância tão enorme que o deprimiu mais do que o silêncio, que, fora isso, continuava inabalável.
Por um capricho, voltaram-se para o norte. Após semanas de viagem chegaram a um outro mar, construíram outra jangada e atravessaram. Desta vez a travessia foi mais difícil, o clima estava esfriando. Arthur suspeitou de uma crise de masoquismo de Ford Prefect — aumentar as dificuldades da viagem parecia lhe dar um senso de finalidade que de outra forma faltava. Galgava adiante implacavelmente.
A viagem para o norte os levou a um território de montanhas escarpadas de perfil e beleza de tirarem o fôlego. Os gigantescos picos recortados, cobertos de neve arrebatavam seus ouvidos. O frio começava a lhes morder os ossos.
Enrolaram-se em peles de animais que Ford Prefect conseguiu através de uma técnica que tinha aprendido certa vez com ex-monges pralitas que administravam uma estância de surf-mental nas Colinas de Hunian. A Galáxia está cheia de ex-monges pralitas, todos arrivistas, porque as técnicas de controle mental que a Ordem desenvolveu como forma de disciplina devocional são, francamente, sensacionais — e um número extraordinário de monges abandona a Ordem logo depois de terem terminado o treinamento devocional e logo antes de prestarem os votos finais de ficarem trancados em pequenas caixas metálicas para o resto de suas vidas.
A técnica de Ford parecia consistir sobretudo em ficar parado por um tempo, sorrindo.
Após uns instantes, um animal — um alce talvez — aparecia de trás das árvores e o observava com curiosidade. Ford continuava a sorrir, seus olhos tornavam-se mais dóceis e brilhantes, e ele parecia irradiar um amor profundo e universal, um amor que se expandia para abraçar toda a criação. Uma quietude maravilhosa tomava conta da região ao redor, uma quietude pacífica e serena, emanada do homem transfigurado. Lentamente o alce se aproximava, passo a passo, até tocá-lo com o focinho, momento em que Ford pulava e lhe quebrava o pescoço.
— Controle de feroma — disse que era —, você só precisa saber como gerar o cheiro certo.
CAPÍTULO 31
Alguns dias após terem aportado nessa terra montanhosa, atingiram um litoral que se atravessava diagonalmente diante deles do sudoeste para o nordeste, um litoral de grandiosidade monumental: majestosas ravinas profundas, píncaros de gelo que se elevavam — fiordes. Durante os dois dias que se seguiram, eles escalaram e subiram pelas pedras e glaciares, assombrados com a beleza.
— Arthur! — gritou Ford de repente.
Arthur olhou para o lugar de onde vinha a voz de Ford, carregada pelo vento.
Ford tinha ido examinar um glaciar, e Arthur o encontrou agachado diante da sólida parede de gelo azul. Estava tenso de excitação — seus olhos dardejavam à procura dos olhos de Arthur.
— Olhe! — disse. — Olhe!
Arthur olhou. Viu a parede sólida de gelo azul.
— É — disse —, é um glaciar. Eu já tinha visto.
— Não — disse Ford —, você olhou, não viu. Olhe. Ford apontava para o fundo, para o coração do gelo. Arthur deu uma espiada — não viu nada além de sombras nebulosas.
— Afaste-se um pouco — insistiu Ford —, olhe de novo.
Arthur afastou-se e olhou de novo.
— Não — disse, balançando os ombros. — O que eu tenho que procurar?
E de repente ele viu.
— Você está vendo? Ele estava.
Sua boca começou a falar, mas seu cérebro decidiu que ela não tinha nada a dizer e a fechou novamente. Seu cérebro começou então a enfrentar o problema do que seus olhos diziam que estavam olhando, mas ao fazê-lo relaxou o controle sobre a boca que prontamente caiu aberta. Levantando mais uma vez o maxilar, o cérebro perdeu o controle da mão esquerda que se agitava sem sentido. Por um ou dois segundos seu cérebro tentou segurar a mão esquerda sem soltar a boca, tentando simultaneamente pensar sobre aquilo que estava enterrado no gelo, e foi provavelmente por isso que as pernas se foram e Arthur caiu serenamente no chão.
O que estava causando todo esse transtorno neural era uma rede de sombras no gelo, cerca de quarenta e cinco centímetros abaixo da superfície. Olhadas do ângulo correto, elas formavam as formas sólidas das letras de um alfabeto alienígena, cada uma com um metro de altura; para aqueles que, como Arthur, não soubesse ler magratheano havia por sobre as letras o desenho do rosto de um homem suspenso no gelo.
Era um rosto velho, magro e distinto, sério mas não carrancudo. Era o rosto do homem que ganhara um prêmio pelo projeto do litoral em que agora eles sabiam estar pisando.
CAPÍTULO 32
Um silvo agudo encheu o ar. Rodopiou e penetrou nas árvores incomodando os esquilos. Alguns pássaros voaram para longe, enojados. O ruído dançava e deslizava pela clareira. Ululava num som áspero e agredia generalizadamente. O Capitão, no entanto, observava o solitário tocador de gaita de foles com um olhar indulgente. Quase nada era capaz de abalar sua serenidade; de fato, uma vez refeito da perda de sua esplêndida banheira naquela situação desagradável no pântano tantos meses atrás, começava a achar sua nova vida extraordinariamente agradável. Tinham escavado uma cavidade numa grande pedra que ficava no meio da clareira, e aí ele ficava lagarteando todos os dias enquanto assistentes derramavam água sobre ele. Não exatamente água quente, é preciso que se diga, pois ainda não tinham arrumado um meio de esquentá-la. Não importa, isso viria; por enquanto, equipes de busca exploravam a região atrás de uma fonte de água quente, de preferência numa clareira agradável e frondosa, e se fosse perto de uma mina de sabão —
perfeito. Àqueles que diziam que tinham a impressão de que sabão não se encontra em minas, o Capitão ousara sugerir que isso talvez se devesse a eles não terem procurado com o esforço necessário, e esta possibilidade fora relutantemente admitida.
Não, a vida era muito agradável, e o que tinha de melhor era que quando a fonte de água quente fosse descoberta, completa, com clareira frondosa en suite, e quando viesse o grito ecoando de trás das colinas de que a mina de sabão fora localizada e que estava produzindo quinhentas barras por dia, seria mais agradável ainda. Era muito importante ter coisas para esperar ansiosamente.
Lamentando, lamentando, esganiçando, gemendo, grasnando, guinchando, chiando, rangendo, lá ia o gaiteiro, aumentando ainda mais o já considerável prazer do Capitão só de pensar que ele poderia parar a qualquer momento. Esta era mais uma coisa que ele esperava ansiosamente.
O que mais era agradável, perguntava-se a si mesmo. Bem, tantas coisas: o vermelho e dourado das árvores, agora que se aproximava o outono; o barulho pacífico das tesouras a alguns metros de sua banheira onde dois cabeleireiros praticavam suas habilidades num diretor de artes que cochilava e em seu assistente; a luz do sol refletida nos seis telefones reluzentes alinhados aos pés de sua banheira escavada na pedra. A única coisa melhor que um telefone que não tocava o tempo todo (ou melhor, nunca) eram seis telefones que não tocavam o tempo todo (ou melhor, nunca). Melhor do que tudo era o alegre murmurar das centenas de pessoas que lentamente se reuniam na clareira à sua volta para assistir à reunião vespertina do comitê.
O Capitão apertou marotamente o bico de seu pato de borracha. As reuniões vespertinas do comitê eram suas favoritas.
Outros olhos espreitavam a massa que se reunia. No alto de uma árvore, na beira
da
clareira,
estava
Ford
Prefect,
recém-chegado
de
climas
estrangeiros. Após sua viagem de seis meses, estava magro e saudável, seus olhos brilhavam, vestia um casaco de pele de rena; sua barba estava tão dura e seu rosto tão bronzeado como de um cantor de country-rock. Ele e Arthur Dent vinham observando os golgafrichaneses há quase uma semana, e Ford decidira que era hora de agitar um pouco as coisas. A clareira estava cheia agora. Centenas de homens e mulheres andavam por ali, conversando, comendo frutas, jogando cartas, em geral relaxando. Seus macacões de viagem estavam a essa altura imundos e até rasgados, mas todos tinham cabelos impecavelmente penteados. Ford ficou curioso ao notar que alguns deles tinham recheado o macacão com folhas e ficou pensando se seria alguma forma de proteção contra o inverno que se aproximava. Ford apertou os olhos. Não poderiam ter de repente se interessado por botânica. No meio destas especulações a voz do Capitão elevou-se sobre o burburinho.
— Muito bem — disse ele —, gostaria de pedir alguma ordem para esta reunião, se for possível. Todo mundo de acordo? — sorriu cordialmente. — Num minuto. Quando todos estiverem prontos.
A conversa foi diminuindo gradativamente até a clareira ficar em silêncio, exceto pelo gaiteiro que parecia estar num mundo particular selvagem e desabitado. Alguns dos que estavam próximos a ele lhe atiraram algumas folhas. Se havia algum motivo para isso, escapou à compreensão de Ford Prefect.
Um pequeno grupo de pessoas tinha se reunido em torno do Capitão e um deles estava claramente se preparando para falar. Fez isso ficando em pé, limpando a garganta e então deitando o olhar na distância, como querendo dizer à multidão que estaria com ela num minuto.
A multidão naturalmente estava atenta e voltou os olhos para ele. Seguiu-se um momento de silêncio, que Ford julgou ser o exato momento dramático para fazer sua entrada. O homem virou-se para falar. Ford pulou da árvore.
— Oi, pessoal — disse.
A multidão girou para o seu lado.
— Ah, meu caro rapaz — disse o Capitão. — Tem fósforos com você? Ou isqueiro? Algo assim?
— Não — disse Ford, soando como se tivesse sido um pouco esvaziado. Não era o que tinha preparado. Decidiu que seria melhor ser mais efusivo no assunto.
— Não, não tenho — prosseguiu —, não tenho fósforos. Em vez disso trago notícias...
— Que pena — disse o Capitão. — Estamos todos sem, sabe. Há semanas que não tomo um banho quente.
Ford recusou-se a ser dirigido.
— Trago notícias — disse — de uma descoberta que poderia interessá-los.
— Está na pauta? — perguntou asperamente o homem que Ford tinha interrompido.
Ford abriu um largo sorriso de cantor de country-rock.
— Não, pêra aí — disse.
— Muito bem, lamento — disse o homem com arrogância —, mas enquanto consultor de gerência de muitos anos de experiência, devo insistir na importância de se observar a estrutura do comitê.
Ford olhou para a multidão.
— Ele está louco, sabem — disse. — Este é um planeta pré-histórico.
— Dirija-se à mesa — ralhou o consultor de gerência.
— Não tem mesa nenhuma — explicou Ford —, só uma pedra.
O consultor de gerência decidiu que o que a situação agora requeria era impaciência.
— Ora, chame de mesa — disse impacientemente.
— Por que não chamar de pedra? — perguntou Ford.
— Você obviamente não tem concepção — disse o consultor de gerência, sem abandonar a impaciência em favor da velha e boa soberba — dos modernos métodos de negócios.
— E você não tem concepção do lugar em que está — disse Ford. Uma garota de voz estridente levantou-se de um salto e usou-a.
— Calem-se, vocês dois — disse ela —, quero enviar uma moção ao plenário.
— Você quer enviar uma moção à clareira — disse um cabeleireiro, dando uma risadinha.
— Ordem, ordem! — gritou o consultor de gerência.
— Muito bem — disse Ford —, vamos ver como estão se saindo. — Agachou-se no chão para ver quanto tempo agüentava manter a calma.
O Capitão fez uma espécie de ruído conciliatório.
— Gostaria de pedir ordem — disse amavelmente. — A cinco centésima septuagésima terceira reunião do comitê de colonização de Flintevudlevix... Dez segundos, pensou Ford, e ergueu-se de um pulo.
— Isso é frívolo — exclamou. — Quinhentas e setenta e três reuniões de comitê e vocês ainda não descobriram o fogo!
— Se você se desse o trabalho — disse a garota da voz estridente — de consultar a folha de pauta da reunião...
— A pedra de pauta — gorjeou o cabeleireiro alegremente.
— Obrigado, eu coloquei essa questão — murmurou Ford.
— ... você... vai... ver... — continuou a garota com firmeza — que teremos
um
relatório
do
Subcomitê
de
Desenvolvimento
do
Fogo
dos
cabeleireiros esta tarde.
— Oh... ah — disse o cabeleireiros com um olhar encabulado, que é
reconhecido em toda a Galáxia como significando: "Ahn, será que dava pra ser pra terça-feira?".
— Muito bem — disse Ford, cercando-o. — O que você fez? O que você vai fazer? Quais são suas idéias a respeito do desenvolvimento do fogo?
Bom, não sei — disse o cabeleireiro —, só me deram uns pauzinhos...
— E então? O que você fez com eles?
Nervoso, o cabeleireiro procurou nos bolsos do seu macacão e entregou a Ford o fruto de seu trabalho. Ford os levantou para que todos vissem.
— Pinças para cachear cabelos — disse. A multidão aplaudiu.
— Não importa — disse Ford. — Roma não se fez num dia.
A multidão não tinha a mais remota idéia do que ele estava dizendo, mas mesmo assim adoraram. E aplaudiram.
— Bem, você está sendo totalmente ingênuo, obviamente — disse a garota. —
Quando você tiver trabalhado com marketing tanto quanto eu vai saber que antes que um novo produto possa ser desenvolvido ele tem que ser devidamente pesquisado. Precisamos descobrir o que as pessoas esperam do fogo, como se relacionam com ele, que tipo de imagem ele tem para elas. A multidão estava tensa. Esperavam algo de sensacional de Ford.
— Enfia no nariz — disse ele.
— O que é precisamente o tipo de coisa que precisamos saber — insistiu a garota. — As pessoas querem fogo que possa ser introduzido nasalmente?
— Vocês querem? — perguntou Ford à massa.
— Queremos! — gritaram alguns.
— Não! — gritaram outros alegremente. Não sabiam, só achavam ótimo.
— E a roda? — disse o Capitão. — Como vai essa roda? Parece um projeto terrivelmente interessante.
— Ah — disse a garota de marketing —, estamos encontrando alguma dificuldade aí.
— Dificuldade? — exclamou Ford. — Dificuldade? Como assim, dificuldade? É
a máquina mais simples de todo o Universo!
A garota de marketing olhou para ele com mau humor.
— Muito bem, Sabe-Tudo — disse. — Já que você é tão esperto, então diga de que cor ela deve ser.
A massa delirou. Um ponto para o time da casa, pensaram. Ford sacudiu os ombros e sentou-se de novo,
— Zarquon Todo-Poderoso — disse —, nenhum de vocês fez nada?
Como que em resposta a sua pergunta houve um repentino clamor na entrada da clareira. A multidão não acreditava na quantidade de diversão que estava tendo aquela tarde: uma tropa de cerca de uma dúzia de homens vestindo os restos de seus uniformes do terceiro regimento de Golgafrincham entrou marchando. Estavam bronzeados, saudáveis e totalmente exaustos e enlameados. Pararam a um "alto" e perfilaram-se atentos. Um deles desfaleceu e não se moveu mais.
— Capitão! — gritou Número Dois, que era o líder. — Permissão para informe, senhor!
— Tá, tudo bem, Número Dois, sejam bem-vindos e tudo o mais. Acharam alguma fonte de água quente? — disse o Capitão, desesperançado.
— Não, senhor!
— Foi o que pensei.
Número Dois atravessou a multidão é apresentou armas diante da banheira.
— Descobrimos um outro continente!
— Quando foi isso?
— Fica além do mar... — disse Número Dois, estreitando os olhos expressivamente — a leste!
— Ah.
Número Dois voltou o rosto para a multidão. Ergueu sua arma acima da cabeça. Essa vai ser ótima, pensou a massa.
— Declaramos guerra!
Aplausos desenfreados explodiram em todos os cantos da clareira. Isto superava todas as expectativas.
— Espere um minuto — disse Ford Prefect —, espere um minuto!
Levantou-se e pediu silêncio. Após um instante, conseguiu, ou pelo menos conseguiu
o
melhor
silêncio
que
podia
sob
as
circunstâncias:
as
circunstâncias eram que o tocador de gaita de foles estava espontaneamente compondo um hino nacional.
— Tem que ter esse gaiteiro? — indagou Ford.
— Ah, sim — disse o Capitão —, nós lhe demos uma subvenção. Ford considerou a idéia de colocar isso em debate mas rapidamente decidiu que a loucura prevaleceria. Em vez disso, atirou uma pedra no gaiteiro e virou-se para Número Dois.
— Guerra? — disse.
— É! — Número Dois olhava desdenhosamente para Ford.
— Contra o continente vizinho?
— É! Guerra total! A guerra que vai acabar com todas as guerras!
— Mas ainda nem tem ninguém morando lá!
Ah, interessante, pensou a multidão, um ponto importante. O olhar de Número Dois pairava sem se perturbar. A este respeito seus olhos eram como um par de pernilongos que pairam propositalmente cinco centímetros diante do seu nariz e se recusam a se desviar por golpes com as mãos, tapas de mata-moscas ou jornais enrolados.
— Eu sei disso — disse —, mas um dia vai ter! Por isso deixamos um ultimato com um espaço em branco para eles preencherem.
— O quê?
— E explodimos algumas instalações militares. O capitão debruçou em sua banheira.
— Instalações" militares, Número Dois? — disse. Os olhos tremularam por um momento.
— Sim, senhor, instalações militares em potencial. Tudo bem... árvores. Passou o momento de incerteza, seus olhos adejavam para a audiência.
— E também — vociferou — interrogamos uma gazela!
Posicionou elegantemente sua Matazap debaixo do braço e marchou através do pandemônio que irrompera pela multidão em êxtase. O máximo que conseguiu caminhar foram alguns passos antes de ser levantado e carregado para uma volta de honra ao redor da clareira.
Ford sentou-se e começou a bater negligentemente duas pedrinhas, uma contra a outra.
— Então, o que mais que vocês fizeram? — indagou, quando as celebrações tinham acabado.
— Começamos uma cultura — disse a moça de marketing.
— Ah, é? — disse Ford.
— É. Um dos nossos produtores de cinema já está fazendo um fascinante documentário sobre os homens das cavernas nativos da área.
— Não são homens das cavernas.
— Parecem homens das cavernas.
— Eles vivem em cavernas?
— Bom...
— Vivem em cabanas.
— Talvez estejam redecorando suas cavernas — gritou um gaiato na multidão.
Ford virou-se para ele, irritado.
— Muito engraçado — disse —, mas vocês notaram que eles estão morrendo?
Em sua viagem de volta, Ford e Arthur tinham deparado com duas aldeias abandonadas e pelos corpos de vários nativos na floresta, para onde tinham se arrastado para morrer. Os que ainda viviam pareciam doentes e apáticos, como se sofressem de uma doença do espírito e não do corpo. Andavam indolentemente e com uma tristeza infinita. Seu futuro lhes tinha sido tirado.
— Morrendo! — repetiu Ford. — Sabe o que isso significa?
— Ahn... que não devemos vender apólices de seguro para eles? — gritou o gaiato outra vez.
Ford ignorou-o e apelou para toda a multidão.
— Será que dá para vocês tentarem entender — disse
— que foi só depois da gente chegar aqui que eles começaram a morrer?
— Na verdade isso calha magnificamente no filme — disse a garota de marketing —, dá aquele toque pungente que é a marca característica de todo documentário realmente bom. O produtor é muito empenhado.
— Tem que ser — murmurou Ford.
— Eu soube — disse a garota voltando-se para o Capitão que começava a discordar com a cabeça — que ele quer fazer um sobre o senhor em seguida, Capitão.
— Ah, verdade? — disse ele animado. — Isso é maravilhoso.
— Ele tem um ângulo muito interessante sobre esse assunto, sabe, o fardo da responsabilidade, a solidão do comando...
O Capitão festejou por uns instantes.
— Bom, eu não acentuaria demais esse ângulo, sabe — disse finalmente. — A gente nunca está sozinho com um pato de borracha.
Ergueu o pato para o alto para a multidão apreciá-lo.
Por todo esse tempo o consultor de gerência tinha ficado sentado num silêncio de pedra, com as pontas dos dedos apertadas contra as têmporas para indicar que estava esperando e que esperaria o dia todo se fosse necessário. A esse ponto ele resolveu que não ia esperar o dia todo nada, ia só
fingir que a última meia hora não tinha acontecido.
Levantou-se.
— Se — disse sucintamente — pudéssemos por um momento passar para a questão da política fiscal...
— Política fiscal! — gritou Ford Prefect. — Política fiscal!
O consultor de gerência dirigiu-lhe um olhar que apenas uma pirambóia poderia imitar.
— Política fiscal... — repetiu — foi o que eu disse.
— Como vocês podem ter dinheiro — perguntou Ford — se nenhum de vocês produz efetivamente alguma coisa? Não nasce em árvores, sabia?
— Se você me permitisse continuar...
Ford consentiu com um sinal de cabeça, desanimado.
— Obrigado. Desde que decidimos há algumas semanas adotar a folha como moeda legal, todos nos tornamos, naturalmente, imensamente ricos. Ford assistia incrédulo à multidão, que murmurava apreciativamente e passava os dedos pelos montes de folhas que tinham entuchado em seus macacões.
— Mas também — prosseguiu o consultor de gerência — deparamos com um pequeno problema de inflação decorrente do alto nível de disponibilidade de folhas, o que significa, eu acho, que o valor atual de câmbio corresponderia a algo como três florestas caducas para a compra de um amendoim da nave. Murmúrios alarmados vieram da multidão. O consultor de gerência os aplacou.
— Então, com o objetivo de prevenir este problema — continuou --e efetivamente revalorizar a folha, estamos prontos a lançar uma campanha massiva de desfolhação e... ahn, queima de toda a floresta. Acredito que todos concordarão que é um passo sensato diante das circunstâncias. A massa parecia um pouco insegura quanto a isso por alguns segundos até que alguém lembrou o quanto isso elevaria o valor das folhas em seus bolsos, o que os fez dar pulos de alegria e ovacionar de pé o consultor de gerência. Os contadores entre eles previam um outono muito lucrativo.
— Vocês estão todos loucos — explicou Ford.
— Estão absolutamente apalermados — sugeriu.
— Vocês são um bando de otários delirantes — opinou.
O grosso das opiniões começou a voltar-se contra ele. O que tinha começado como excelente diversão tinha agora, na visão da massa, deteriorado em mero abuso, e já que este abuso era principalmente dirigido contra eles, eles ficaram fartos.
Sentindo essa mudança no ar, a garota de marketing voltou-se para ele.
— Talvez venha ao caso — disse ela — perguntar o que você andou fazendo todos estes meses então. Você e aquele outro intruso estão desaparecidos desde o dia em que chegamos.
— Estávamos viajando — disse Ford. — Fomos tentar descobrir alguma coisa sobre este planeta.
— Oh — disse a garota maliciosamente —, não me parece muito produtivo.
— Não? Pois bem, eu tenho notícias para você, meu amor. Nós descobrimos o futuro deste planeta.
Ford esperou que esta afirmação produzisse seu efeito. Não produziu nenhum. Não sabiam do que ele estava falando.
Continuou.
— Não importa um par de fígados fétidos de cães o que vocês resolverem fazer de agora em diante. Queimar as florestas ou o que for, não vai fazer nem um arranhão de diferença. Sua história futura já aconteceu. Vocês têm dois milhões de anos e pronto. Ao final desse tempo sua raça vai estar morta, passada e já vai tarde. Lembrem-se disso, dois milhões de anos!
A multidão murmurava entre si, incomodada. Pessoas ricas como eles tinham acabado de se tornar não deveriam ser obrigadas a ficar escutando tipo de pagação. Talvez se eles dessem uma ou duas folhas para o sujeito ele fosse embora.
Não precisaram se incomodar. Ford já estava caminhando para fora da clareira, parando apenas para sacudir a cabeça para Número Dois, que já
estava descarregando sua Matazap em algumas árvores das proximidades. Voltou-se uma vez.
— Dois milhões de anos! — disse, e deu uma risada.
— Bom — disse o Capitão com um sorriso reconfortante —, ainda há tempo para mais alguns banhos. Alguém podia me passar a esponja? Acabei de derrubar aqui do lado.
CAPITULO 33
Um quilômetro mais ou menos floresta adentro, Arthur Dent estava entretido demais no que estava fazendo para ouvir Ford Prefect aproximar-se. O que estava fazendo era um tanto curioso, e era o seguinte: sobre um pedaço largo de pedra chata ele tinha riscado um grande quadrado, subdividido em cento e sessenta e nove quadrados menores, treze por lado. Em seguida tinha juntado um monte de pedrinhas achatadas e riscado uma letra em cada uma. Sentados morosamente em torno da pedra estavam alguns homens nativos sobreviventes a quem Arthur estava tentando apresentar o curioso conceito encarnado nessas pedras.
Até agora não iam muito bem. Tinham tentando comer algumas, enterrar outras e jogar o resto fora. Arthur conseguira finalmente convencer um deles a colocar algumas sobre o quadro riscado na pedra, o que já era bem mais do que tinha atingido na véspera. Juntamente com a deterioração moral dessas criaturas, parecia haver uma deterioração correspondente em sua inteligência efetiva.
Com o intuito de instigá-los, Arthur colocou ele mesmo algumas pedras no quadro, e tentou encorajar os nativos a acrescentarem outras. Não estava dando certo.
Ford assistia, quieto, ao pé de uma árvore próxima.
— Não — disse Arthur a um dos nativos que acabava de espalhar algumas das pedras num acesso de abissal depressão —, o Q vale dez, está vendo, e está
num quadrinho de três vezes o valor da palavra, então... olha, eu expliquei as regras para você... não, não, olha, por favor, larga esse osso de maxilar... tudo bem, vamos recomeçar outra vez. E veja se se concentra desta vez.
Ford apoiou o cotovelo na árvore e a cabeça na mão.
— O que você está fazendo, Arthur? — perguntou calmamente. Arthur levantou o olhar, tomado de surpresa. Teve de repente a sensação de que aquilo tudo poderia parecer um pouco estúpido. Tudo o que sabia era que tinha funcionado como um sonho quando ele era criança. Mas as coisas eram diferentes naquela época, ou melhor, iam ser.
— Estou tentando ensinar os homens das cavernas a jogar palavras-cruzadas
— respondeu.
— Não são homens das cavernas — disse Ford.
— Parecem homens das cavernas. Ford deixou passar.
— Tá bom — disse.
— É um trabalho duro — disse Arthur, exausto. — A única palavra que eles sabem é grunhido e não sabem como escreve.
Suspirou e recostou-se.
— Aonde você quer chegar com isso? — perguntou Ford.
— Temos que encorajá-los a evoluírem! A se desenvolverem! — disse Arthur furiosamente. Esperava que o suspiro exausto e agora esta manifestação de fúria pudessem disfarçar a sensação de estupidez que estava sentindo no momento. Não disfarçou. Ele se levantou.
— Você pode imaginar como seria um mundo descendente daqueles... cretinos com que a gente chegou? — disse.
— Imaginar? — disse Ford erguendo as sobrancelhas. — A gente não precisa imaginar. A gente viu.
— Mas... — Arthur agitava os braços em vão.
— A gente viu — disse Ford —, não tem saída. Arthur chutou uma pedra.
— Você contou para eles o que a gente descobriu? — perguntou.
— Hmmmmmm? — disse Ford, sem estar realmente concentrado.
— A Noruega — disse Arthur —, a assinatura de Slartibartfast no glaciar. Você contou para eles?
— Qual é a questão? O que significaria para eles?
— O que significaria? — disse Arthur. — O que significaria? Você sabe perfeitamente bem o que significa. Significa que este é o planeta Terra! É a minha casa! Foi aqui que eu nasci?
— Foi? — disse Ford.
— Tudo bem, vai ser.
— Sim, dentro de dois milhões de anos. Por que você não diz isso para eles? Vai lá e diz pra eles: "Dá licença, eu só queria colocar que dentro de dois milhões de anos eu vou nascer a alguns quilômetros daqui". Vamos ver o que vão dizer. Vão te encurralar no alto de uma árvore e colocar fogo. Arthur absorveu essa com tristeza.
— Encare os fatos — disse Ford. —Aqueles boçais são seus antepassados, e não estas pobres criaturas aqui.
Foi até onde os homens-macaco remexiam apaticamente nas pedrinhas. Balançou a cabeça.
— Deixa pra lá estas palavras-cruzadas, Arthur. Isto não vai salvar a raça humana, porque esta turma não vai ser a raça humana. A raça humana está
no momento sentada em torno de uma pedra do outro lado deste morro fazendo documentários sobre si mesma.
Arthur estremeceu.
— Deve haver alguma coisa que a gente possa fazer — disse ele. Uma sensação terrível de desolação arrepiou seu corpo por ele estar ali, na Terra, na Terra que tinha perdido seu futuro numa horrenda catástrofe arbitrária e que agora parecia perder seu passado da mesma maneira.
— Não — disse Ford —, não há nada que a gente possa fazer. Isso não muda a história da Terra, percebe, isto é a história da Terra. Ame-os ou deixeos, os golgafrichaneses são o povo de que você descende. Dentro de dois milhões de anos serão destruídos pelos vogons. A História nunca é alterada, está vendo, encaixa-se como num quebra-cabeça. A vida é uma coisa velha e engraçada, não?
Apanhou a letra Q e a atirou numa moita, onde ela atingiu um coelho jovem. O coelho começou a correr aterrorizado e não parou até ser capturado e comido por uma raposa que engasgou-se com um osso seu e morreu à margem de um riacho que em seguida a levou.
Durante as semanas que se sucederam Ford Prefect engoliu seu orgulho e engatou um relacionamento com uma garota que tinha sido funcionária graduada em Golgafrincham, e ficou tremendamente chateado quando ela veio a falecer subitamente por beber água de um tanque que tinha sido contaminado pelo cadáver de uma raposa. A única moral possível a se tirar desta estória é que nunca se deve atirar a letra Q numa moita, mas infelizmente há momentos em que é inevitável.
Como a maioria das coisas cruciais da vida, esta corrente de eventos foi completamente invisível a Ford Prefect e Arthur Dent. Estavam observando com tristeza um dos nativos que mexia morosamente com as letras.
— Pobres homens das cavernas — disse Arthur.
— Não são...
— O quê?
— Ah, esquece — disse Ford.
A desgraçada criatura emitiu um patético ruído de lamúria e deu uma pancada numa pedra.
— Tudo está sendo uma perda de tempo para eles, não? — disse Arthur.
— Uh uh urghhhhh — murmurou o nativo e deu outra pancada na pedra.
— Foram ultrapassados por limpadores de telefones.
— Urgh, grr grr, gruh! — insistiu o nativo, continuando a bater na pedra.
— Por que ele fica batendo na pedra? — disse Arthur.
— Acho que ele provavelmente quer jogar palavras-cruzadas com você outra vez — disse Ford. — Está apontando para as letras.
— Ele provavelmente escreveu crzjgrdwldiwdc outra vez, coitado. Eu vivo dizendo para ele que só tem um G em crzj gr dwldiwdc.
O nativo deu outra pancada na pedra. Olharam por sobre os ombros dele. Seus olhos saltaram.
Ali, no meio das letras embaralhadas havia treze dispostas numa clara linha reta. Eram três palavras escritas. As palavras eram estas: "QUARENTA E
DOIS".
— Grrrurgh guh guh — explicou o nativo. Espalhou as letras, furioso, e foi ficar sem fazer nada debaixo de uma árvore próxima com um colega seu. Ford e Arthur ficaram olhando para ele. E então ficaram olhando um para o outro.
— Estava escrito o que eu achei que estava escrito? — perguntaram um ao outro.
— Estava — responderam ambos.
— Quarenta e dois — disse Arthur.
— Quarenta e dois — disse Ford. Arthur correu para os dois nativos.
— O que vocês estão tentando nos dizer? — gritou. — O que isso quer dizer?
Um deles rolou no chão, levantou as pernas para o ar, rolou de novo e foi dormir.
O outro trepou na árvore e atirou castanhas-da-índia em Ford Prefect. O
que quer que tivessem a dizer, já tinham dito.
— Você sabe o que isso significa — disse Ford.
— Não complètamente.
— Quarenta e dois é o número que Pensador Profundo deu como sendo a Resposta Fundamental.
— Certo.
— E a Terra é o computador que Pensador Profundo projetou e construiu para calcular a Pergunta da Resposta Fundamental.
— É o que somos levados a crer.
— E a vida orgânica era parte da programação do computador.
— Se você está dizendo.
— Eu estou dizendo. Isto significa que estes nativos, estes homensmacaco, são parte integrante do programa do computador, e que nós e os golgafrichaneses não somos.
— Mas os homens das cavernas estão morrendo e os golgafrichaneses vão obviamente tomar seu lugar.
— Exatamente. Então você sabe o que isto significa.
— O quê?
— Adivinha — disse Ford Prefect. Arthur olhou para ele.
— Que este planeta está dançando nessa — disse. Ford raciocinou por uns momentos.
— Ainda assim, alguma coisa deve ter saído — disse por fim —, porque Marvin disse que podia ver a Pergunta impressa em suas ondas cerebrais.
— Mas...
— Provavelmente a pergunta errada, ou uma distorção dela. Poderia nos dar uma pista, de qualquer forma, se a gente tivesse como descobri-la. Não vejo como, porém.
Ficaram deprimidos por um tempo. Arthur sentou-se no chão e começou a arrancar montinhos de capim, mas achou que essa era uma atividade em que ele não poderia ficar profundamente entretido. Não era capim em que ele pudesse acreditar, as árvores lhe pareciam sem sentido, as colinas onduladas pareciam ondular para lugar nenhum de o futuro parecia um túnel através do qual era preciso passar arrastando-se.
Ford mexeu no seu Receptor Sensomático de Subéter. Estava em silêncio. Suspirou e deixou-o de lado.
Arthur apanhou uma das letras de seu jogo rústico de palavras-cruzadas. Era um A. Suspirou e a recolocou no tabuleiro. A letra ao lado da qual ele a colocou era um D. Estava escrito DA. Pegou outras três letras e juntou a estas. Eram, por acaso, um M, um E e um R. Por uma curiosa coincidência, a palavra resultante expressava perfeitamente o que Arthur sentia a respeito das coisas naquela hora. Olhou a palavra por uns instante. Não a tinha escrito deliberadamente, era apenas um acaso. Seu cérebro lentamente engatou a primeira.
— Ford — disse ele subitamente —, olhe, se essa Pergunta está impressa nas minhas ondas cerebrais e eu não tenho consciência dela, ela deve estar em algum lugar do meu inconsciente.
— É, acho que sim.
— Deve haver um jeito de trazer para fora esta anotação inconsciente.
— Ah, é?
— É, introduzindo algum elemento de acaso que possa ser moldado por minhas ondas cerebrais.
— Como o quê?
— Como por exemplo tirar letras de palavras-cruzadas de um saco fechado. Ford levantou-se.
— Brilhante! — disse. Tirou a toalha de sua mochila e com alguns nós cegos transformou-a num saco.
— Totalmente absurdo — disse —, completo delírio. Mas vamos fazer porque é um delírio brilhante. Vamos aí.
O sol passou respeitosamente por trás de uma nuvem. Umas poucas gotinhas de chuva caíram.
Juntaram todas as letras restantes e as jogaram no saco. Chacoalharam.
— Certo — disse Ford. — Feche os olhos. Vai tirando. Vai, vai, vai. Arthur fechou os olhos e mergulhou a mão na toalha de pedras. Mexeu, remexeu e tirou quatro, entregando-as a Ford. Ford as foi estendendo no chão na ordem que ia recebendo.
— Q— disse Ford—, U, A, L... Qual! Piscou os olhos.
— Acho que está funcionando! — disse. Arthur lhe entregou mais três,
— E, O, R... Eor. Bom, talvez não esteja funcionando — disse Ford.
— Toma mais estas três.
— E, S, U... Eoresu... acho que não está fazendo sentido. Arthur tirou mais três e depois mais duas. Ford as colocou em seus lugares.
— L, T, A... D, O... Eoresultado... É o resultado! — gritou Ford. — Está
funcionando! É fantástico, está funcionando mesmo!
— Tem mais aqui — disse Ford, arrancando-as febrilmente o mais rápido que podia.
— D, E — disse Ford —, S, E, I, S... Qual é o resultado de seis... V, E, Z, E, S... Qual é o resultado de seis vezes... N, O, V, E... seis vezes nove... — fez uma pausa. —Vamos, cadê a próxima?
— Ahn, isso é tudo — disse Arthur —, eram todas que tinha. Recostou-se, perplexo.
Vasculhou com as pontas dos dedos mais uma vez dentro da toalha mas não havia mais letras.
— Quer dizer que é isso? — disse Ford.
— É isso.
— Seis vezes nove. Quarenta e dois.
— É isso. Está tudo aí.
CAPITULO 34
O sol surgiu brilhando radiante sobre eles. Um passarinho cantou. Uma brisa morna soprava por entre as árvores e as flores levando seu aroma para todo o bosque. Um inseto passou zumbindo e foi fazer seja lá que for que fazem os insetos no final da tarde. Um som de vozes veio da floresta seguido um momento depois por duas garotas que pararam surpresas à vista de Ford Prefect e Arthur Dent aparentemente agonizantes no chão, mas na verdade levados por uma silenciosa gargalhada.
— Não, não vão embora — gritou Ford Prefect engasgando-se —, vamos estar com vocês num minuto.
— Qual é o problema? — perguntou uma das garotas. Era a mais alta e esbelta das duas. Tinha sido funcionária pública em Golgafrincham, mas não gostava muito.
Ford se recompôs.
— Desculpe — disse. — Olá. Eu e o meu amigo só estávamos contemplando o sentido da vida. Um exercício frívolo.
— Ah, é você — disse a garota. — Você fez um belo espetáculo de si mesmo hoje à tarde. Você foi engraçado no começo, mas depois começou a exagerar.
— Exagerei? Ah, é?
— 6 sim. Para que tudo aquilo? — perguntou a outra garota, uma menina mais baixa, de rosto redondo, que tinha sido diretora de arte numa pequena companhia de publicidade em Golgafrincham. Por maiores que fossem as privações daquele novo mundo, ela ia dormir toda noite profundamente agradecida pelo fato de que fosse o que fosse que ela teria que ver de manhã, não seria uma centena de fotografias mal tiradas de tubos de pasta de dentes quase idênticos.
— Para quê? Para nada. Nada é para alguma coisa — disse Ford Prefect alegremente. — Venham, fiquem com a gente, eu sou Ford, este é Arthur. A gente estava ocupado em não fazer nada, mas dá para deixar isso para depois. As garotas olharam para eles em dúvida.
— Eu sou Agda — disse a mais velha. — Esta é Mella.
— Olá, Agda, olá, Mella — disse Ford.
— Você fala? — perguntou Mella a Arthur.
— Ah, às vezes — disse Arthur sorrindo —, mas não tanto quanto Ford.
— Ótimo.
Houve uma pequena pausa.
— O que você quis dizer — perguntou Agda — com essa estória de que só
temos dois milhões de anos? Eu não consegui ver sentido no que você estava falando.
— Ah, aquilo — disse Ford — não tem importância.
— É só que o mundo vai ser demolido para dar lugar a uma via expressa hiperespacial — disse Arthur sacudindo os ombros —, mas isso é daqui a dois milhões de anos, e de qualquer modo são apenas vogons fazendo o que os vogons fazem.
— Vogons? — disse Mella.
— É. Você não deve conhecê-los.
— De onde vocês tiraram essa idéia?
— Realmente não importa. É como um sonho do passado, ou do futuro —
Arthur sorriu e olhou na distância.
— Você não se incomoda por não falar nada que faça sentido? — perguntou Agda.
— Escute, esqueça — disse Ford —, esqueçam tudo. Nada importa. Olhem que dia bonito, vamos aproveitar. O sol, o verde dos montes, o rio no vale, as árvores em chamas.
— Mesmo sendo só um sonho é uma idéia bem horrível — disse Mella. —
Destruir um mundo só para fazer uma via expressa.
— Ah, eu já ouvi coisa pior — disse Ford. — Eu li sobre um planeta da sétima dimensão que foi usado como bola num jogo de bilhar intergaláctico. Foi encaçapado direto num buraco negro. Morreram dez bilhões de pessoas.
— Isso é absurdo — disse Mella.
— Pois é, e só marcou trinta pontos.
Agda e Mella trocaram olhares.
— Olha — disse Agda —, vai ter uma festa hoje à noite depois da reunião do comitê. Vocês podem aparecer se quiserem.
— Tá, OK — disse Ford.
— Eu gostaria — disse Arthur.
Horas depois, Arthur e Mella estavam sentados assistindo à lua nascendo por trás do brilho vermelho das árvores.
— Essa estória do mundo ser destruído... — começou Mella.
— Dentro de dois milhões de anos, ahn.
— Você diz como quem realmente acha que é verdade.
— E, eu acho que é. E acho que eu estava lá. Ela sacudiu a cabeça, confusa.
— Você é muito estranho — disse.
— Não, eu sou muito comum — disse Arthur —, mas algumas coisas muito estranhas aconteceram comigo. Pode-se dizer que eu sou mais diferenciado do que diferente.
— E aquele outro mundo de que falou o seu amigo, aquele que foi atirado num buraco negro?
— Ah, esse eu não sei. Parece coisa do livro.
— De que livro? Arthur fez uma pausa.
— O Mochileiro das Galáxias, Guia da Galáxia para Caronas — disse por fim.
— O que é isso?
— Ah, é só uma coisa que eu joguei no rio esta noite. Acho que eu não vou querer mais — disse Arthur Dent.
Sobre o Autor
Nasceu em Cambridge, Inglaterra, em 1952. Embora hoje seja extremamente culto, só aprendeu a falar com quatro anos e foi considerado retardado aos cinco. Mesmo assim estudou na Brentwood School, em Essex, e no St. John's College, em Cambridge.
Trabalhou como porteiro de hospital, limpador de galinheiros, redatorprodutor de rádio e editor-roteirista da série de TV Doctor Who. Escreveu, além deste O Restaurante no Fim do Universo, outros três livros: O
Mochileiro das Galáxias (Brasiliense), Life, the Universe and Everything (Vida, o Universo e Tudo) e So Long and Thanks for All the Fish (Adeus e Obrigado por Todo Aquele Peixe). Criou com Graham Chapman, durante um ano e meio, os episódios para a TV do grupo Monty Python. Após romper com Chapman, foi ser guarda-costas de uma família árabe.