Milan fez que sim com a cabeça, e ela convidou-o para sentar em sua mesa. Pediu seu coquetel de frutas, e estava esperando o convite para dançar, quando o homem se apresentou:
- Meu nome é Terence, e trabalho em uma companhia de discos na Inglaterra. Como sei que estou em um lugar onde posso confiar nas pessoas, penso que isso irá ficar entre nós.
Maria ia começar a falar do Brasil, quando ele a interrompeu:
- Milan disse que você entende o que eu quero.
- Não sei o que você quer. Mas entendo do que faço.
O ritual não foi cumprido; ele pagou a conta, pegou-a pelo braço, e lhe estendeu mil francos. Por um momento, no táxi, ela lembrou-se do árabe com quem tinha ido jantar no restaurante cheio de pinturas famosas; era a primeira vez que voltava a receber a mesma quantia, e, em vez de ficar contente, isso a deixou nervosa.
O táxi parou em um dos hotéis mais caros da cidade. O homem disse boa-noite ao porteiro, demonstrando uma imensa familiaridade com o local. Subiram direto ao seu quarto, uma suíte com vista para o rio. Ele abriu uma garrafa de vinho - possivelmente muito raro - e lhe ofereceu uma taça.
Maria olhava-o enquanto bebia; o que um homem como ele, rico, bonito, desejava de uma prostituta? Como ele quase não falava, ela também permaneceu a maior parte do tempo em silêncio, procurando descobrir o que podia deixar um cliente especial satisfeito.
Entendeu que não devia tomar a iniciativa, mas uma vez que o processo começasse, pretendia acompanhá- lo com a velocidade que fosse necessária; afinal de contas, não era toda noite que ganhava mil francos.
- Temos tempo - disse Terence. - Todo o tempo que quisermos. Pode dormir aqui, se assim desejar.
A insegurança voltou. O homem não parecia intimidado, e falava com uma voz calma, diferente de todos os outros. Sabia o que desejava; colocou uma música perfeita, na altura perfeita, no quarto perfeito, com a janela perfeita, que dava para o lago de uma cidade perfeita. Seu terno era bem cortado, a mala estava em um canto, pequena, como se não precisasse de muita coisa para viajar - ou como se tivesse vindo a Genève apenas por aquela noite.
- Vou dormir em casa - respondeu Maria.
O homem à sua frente mudou por completo. Seus olhos de cavalheiro ganharam um brilho frio, glacial.
- Sente-se ali - disse, apontando para uma cadeira ao lado da escrivaninha.
Era uma ordem! Uma verdadeira ordem. Maria obedeceu e, estranhamente, aquilo a excitou.
- Sente-se direito. Estique as costas, como uma mulher de classe. Se não fizer isso, vou castigá - la.
Castigar! Cliente especial! Em um minuto ela entendeu tudo, tirou os mil francos da bolsa e colocou-os na escrivaninha.
- Eu sei o que você quer - disse, olhando para o fundo daqueles gelados olhos azuis. -
E não estou disposta.
O homem pareceu voltar ao normal, e viu que ela falava a verdade.
- Tome seu vinho - disse. - Não vou forçá- la a nada. Pode ficar mais um pouco, ou pode sair se quiser.
Aquilo a deixou mais tranqüila.
- Tenho um emprego. Tenho um patrão que me protege e acredita em mim. Por favor, não comente nada com ele.
Maria disse isso sem nenhum tom de autopiedade, sem implorar nada - era simplesmente a realidade de sua vida.
Terence também voltara a ser o mesmo homem - nem doce, nem duro, apenas alguém que, ao contrário dos outros clientes, dava a impressão de saber o que desejava. Agora parecia sair de um transe, de uma peça de teatro que ainda não tinha começado.
Valia a pena ir embora assim, sem jamais descobrir o que significa um "cliente especial"?
- O que você queria, exatamente?
- Você sabe. Dor. Sofrimento. E muito prazer.
"Dor e sofrimento não combinam com muito prazer", pensou Maria. Embora quisesse desesperadamente acreditar que sim, e desta maneira transformar em positiva uma grande parte das experiências negativas de sua vida.
Ele pegou-a pelas mãos e levou-a até a janela: do outro lado do lago podiam ver a torre de uma catedral - Maria lembrava-se que passara por ali enquanto percorria com Ralf Hart o Caminho de Santiago.
- Você está vendo este rio, este lago, estas casas, aquela igreja? Há quinhentos anos, era tudo mais ou menos igual.
"Só que a cidade estava completamente vazia; uma doença desconhecida havia se espalhado por toda a Europa, e ninguém sabia por que morria tanta gente. Começaram a chamar a doença de peste negra, uma punição que Deus havia enviado ao mundo por causa dos pecados do homem.
"Então, um grupo de pessoas resolveu sacrificar-se pela humanidade. Ofereceram aquilo que mais temiam: a dor física. Passaram a caminhar dia e noite por estas pontes, estas ruas, açoitando o próprio corpo com chicotes ou correntes. Sofriam em nome de Deus, e louvavam a Deus com sua dor. Em pouc o tempo, descobriram que eram mais felizes fazendo isso do que cozinhando o pão, trabalhando na lavoura, alimentando os animais. A dor já não era mais o sofrimento, mas o prazer de resgatar a humanidade dos seus pecados.
A dor se transformara em alegria, no sentido da vida, no prazer."
Seus olhos voltaram a ter o mesmo brilho frio que vira alguns minutos antes. Pegou o dinheiro que ela havia deixado em cima da escrivaninha, retirou cento e cinqüenta francos e colocou-os em sua bolsa.
- Não se preocupe com o seu patrão. Aqui está a comissão dele, e prometo que não direi nada. Pode ir embora.
Ela agarrou todo o dinheiro.
- Não!
- Sabe por que aceito isso? Porque não há maior prazer do que iniciar alguém em um mundo desconhecido. Tirar a virgindade, não do corpo, mas da alma, está entendendo?
Estava entendendo.
- Hoje você poderá fazer perguntas. Mas da próxima vez, quando a cortina do nosso teatro se abrir, a peça começa e não pode parar. Se parar, é porque nossas almas não se combinaram. Lembre-se: é uma peça de teatro. Você tem que ser aquele per de ser. Aos poucos, você vai
descobrir que tal personagem é você mesma, mas até conseguir
Não existe dor, existe algo que se transforma em delícia,
em mistério. Faz parte da peça pedir: "Não me trate assim, está ferindo muito." Faz parte pedir: "Pare, eu não agüento mais!" E
por isso, para evitar o perigo... abaixe a cabeça e não me olhe!
Maria, ajoelhada, abaixou a cabeça e fitava o chão.
- Para evitar que esta relação cause danos físicos sérios, teremos dois códigos. Se um de nós disser "amarelo", isso significa que a violência deve ser reduzida um pouco. Se disser "verme
Os papéis se alternam. Não existe um sem o outro, e nin
guem saberá humilhar se não for também humilhado.
Eram palavras terríveis, vindas de um mundo que não conhecia, cheio de sombra, de lama, de podridão. Mesmo assim, ela sentia vontade de ir adiante - seu corpo estava tremendo, de
A mão de Terence tocou em sua cabeça com uma ternura inesperada.
- Fim.
Pediu que se levantasse. Sem um carinho especia l, mas sem a agressividade seca que demonstrara. Maria vestiu o casaco, ainda tremendo. Terence notou o seu estado.
- Fume um cigarro antes de ir.
- Não aconteceu nada.
- Não precisa. Começará a acontecer em sua alma, e da próxima vez que nos encontrarmos, estará pronta.
- Essa noite valeu mil francos?
Ele não respondeu. Acendeu também um cigarro, e terminaram o vinho, escutaram a música perfeita, saborearam juntos o silêncio. Até que chegou o momento de dizer alguma coisa, e Maria se surpreendeu com suas próprias palavras.
- Não entendo por que tenho vontade de pisar nesta lama.
- Mil francos.
- Não é isso.
Terence parecia contente com a resposta.
-Eu também já me perguntei a mesma coisa. O Marquês de Sade dizia que as mais importantes experiências do homem são aquelas que o levam ao extremo. Só assim aprendemos, porque isso requer toda a nossa coragem.
"Quando um patrão humilha um empregado, ou um homem humilha sua mulher, ele está apenas sendo covarde, ou vingando-se da vida, são pessoas que jamais ousaram olhar no fundo de suas almas, jamais procuraram saber de onde vem o desejo de soltar a fera selvagem, entender que o sexo, a dor, o amor são experiências limite do homem.
"E só quem conhece essas fronteiras conhece a vida; o resto é apenas passar o tempo, repetir uma mesma tarefa, envelhecer e morrer sem ter realmente sabido o que se estava fazendo aqui."
De novo a rua, de novo o frio, de novo a vontade de andar. O homem estava errado, não era preciso conhecer seus demônios para encontrar Deus. Cruzou com um grupo de estudantes que saía de um bar; estavam alegres, tinham bebido um pouco, eram bonitos, cheios de saúde, em breve terminariam a universidade e começariam aquilo que chamam de
"a verdadeira vida". Trabalho, casamento, filhos, televisão, amargura, velhice, sensação de muita coisa perdida, frustrações, doença, invalidez, dependência dos outros, solidão, morte.
O que estava acontecendo? Maria também procurava tranqüilidade para viver sua
"verdadeira vida"; o tempo passado na Suíça, fazendo algo que jamais imaginara fazer em sua vida, era apenas um período difícil, que todas as pessoas enfrentam cedo ou tarde.
Neste período difícil, freqüentava o Copacabana, saía com os homens por dinheiro, vivia a Menina Ingênua, a Mulher Fatal e a Mãe Compreensiva, dependendo do cliente. Era apenas um trabalho, ao qual se dedicava com o máximo de profissionalismo - por causa das gorjetas - e o mínimo de interesse com medo de acostumar-se com ele. Passara nove meses controlando o mundo ao seu redor, e pouco tempo antes de voltar para sua terra, estava se descobrindo capaz de amar sem exigir nada em troca, e sofrer sem motivo. Como se a vida tivesse escolhido este meio sórdido, estranho, para ensinar- lhe algo sobre seus próprios mistérios, sua luz e suas trevas.
Do diário de Maria na noite em que encontrou Terence pela primeira vez: Ele citou Sade, de quem eu nunca tinha escutado uma só palavra, apenas os comentários tradicionais sobre sadismo: "só nos conhecemos quando encontramos nossos próprios limites", o que está certo. Mas também está errado, porque não é importante conhecer tudo a respeito de nós mesmos; o ser humano não foi feito só para buscar a sabedoria, mas também para arar aterra, esperara chuva, plantar o trigo, colher o grão, fazer o pão.
Sou duas mulheres: uma deseja ter toda a alegria, a paixão, as aventuras que a vida pode dar. A outra quer ser escrava de uma rotina, da vida familiar, das coisas que podem ser planejadas e cumpridas. Sou a dona de casa e a prostituta, ambas vivendo no mesmo corpo, e uma lutando contra a outra.
O encontro de uma mulher consigo mesma é uma brincadeira com sérios riscos. Uma dança divina. Quando nos encontramos, somos duas energias divinas, dois universos que se chocam. Se o encontro não tem a reverência necessária, um universo destrói o outro.
Estava de novo na sala de estar da casa de Ralf Hart, o fogo na lareira, o vinho, os dois sentados no chão, e tudo o que experimentara no dia anterior com aquele executivo inglês não passava de um sonho ou um pesadelo - dependendo de seu estado de espírito.
Agora voltava a buscar sua razão de viver - melhor dizendo, a entrega mais louca possível, aquela em que a pessoa oferece seu coração e nada pede em troca.
Crescera muito enquanto esperava este momento. Descobrira, finalmente, que o amo r real nada tinha a ver com o que imaginava, ou seja, uma cadeia de acontecimentos provocados pela energia amorosa - namoro, compromisso, casamento, filhos, espera, cozinha, parque de diversões aos domingos, mais espera, velhice juntos, a espera acabou e em seu lugar veio a aposentadoria do marido, as doenças, a sensação de que já é muito tarde para viver juntos o que sonhavam.
Olhou para o homem a quem decidira se entregar, e a quem decidira jamais contar o que sentia, porque o que sentia agora estava longe de qualquer forma, inclusive a física. Ele parecia mais à vontade, como se estivesse começando um período interessante de sua existência. Estava sorrindo, contava histórias de sua recente viagem a Munique, para encontrar-se com um importante diretor de museu.
- Perguntou se a tela sobre as faces de Genève estava pronta. Eu disse que tinha encontrado uma das principais pessoas que gostaria de pintar. Uma mulher cheia de luz.
Mas não quero falar de mim, quero abraçá- la. Eu a desejo.
Desejo. Desejo? Desejo! Isso, esse era o ponto de partida para aquela noite, porque era algo que ela conhecia muito bem!
Por exemplo: desperta-se o desejo não entregando logo o seu objeto.
- Então: me deseje. Estamos fazendo isso, neste momento. Você está a menos de um metro de mim, foi até uma boate, pagou por meus serviços, sabe que tem o direito de tocar-me. Mas não ousa. Olhe- me. Olhe- me, e pense que talvez eu não queira que você me olhe.
Imagine o que está escondido debaixo de minha roupa.
Sempre usava vestidos pretos para trabalhar, e não entendia por que as outras meninas do Copacabana tentavam ser provocantes com seus decotes e cores agressivas. Para ela, excitar um homem era vestir-se como qualquer mulher que ele pudesse encontrar no escritório, no trem, ou na casa de uma amiga da mulher.
Ralf olhou-a, Maria sentiu que ele a despia, e gostou de ser desejada daquela maneira
- sem contato, como em um restaurante ou na fila do cinema.
- Estamos em uma estação - continuou Maria. - Estou esperando o trem junto com você, você não me conhece. Mas os meus olhos cruzam com os seus, por acaso, e não se desviam. Você não sabe o que estou tentando dizer, porque, embora seja um homem inteligente, capaz de ver a "luz" das pessoas, não é sensível o bastante para ver o que esta luz está iluminando.
Tinha aprendido o "teatro". Quis esquecer rápido o rosto do executivo inglês, mas ele estava ali, guiando sua imaginação.
- Meus olhos estão fixos nos seus, e posso estar perguntando a mim mesma: "Será que o conheço de algum lugar?" Ou posso estar distraída. Ou posso estar com medo de ser antipática, talvez você me conheça, vou dar-lhe o benefício da dúvida por alguns segundos, até concluir que é um fato, ou um malentendido.
"Mas também posso estar querendo a coisa mais simples do mundo: encontrar um homem. Posso estar tentando fugir de um amor que sofri. Posso estar procurando vingar-me de uma traição que acabou de acontecer, e resolvi ir até a estação de trem em busca de um desconhecido. Posso desejar ser sua prostituta só por uma noite, só para fazer algo diferente em minha vida aborrecida. Posso, inclusive, ser uma prostituta de verdade, que está ali para conseguir trabalho."
Um rápido silêncio; Maria havia se distraído de repente. Voltara para o hotel, a humilhação - "amarelo", "vermelho", dor e muito prazer. Aquilo havia mexido com sua alma, de uma maneira que não estava gostando.
Ralf notou, e procurou puxá-la de novo para a estação de trem:
- Neste encontro, você também me deseja?
- Não sei. Não nos falamos, você não sabe.
Outros segundos de distração. De qualquer maneira, a idéia do "teatro" ajudava muito; fazia surgir o verdadeiro personagem, afastava as muitas pessoas falsas que habitam em nós mesmos.
- Mas o fato é que eu não desvio meus olhos, e você não sabe o que fazer. Deve aproximar-se? Será rejeitado? Chamarei um guarda? Ou o convidarei para tomar café?
- Estou voltando de Munique - disse Ralf Hart, e seu tom de voz era diferente, como se estivessem realmente se encontrando pela primeira vez. - Estou pensando em uma coleção de quadros sobre as personalidades do sexo. As muitas máscaras que as pessoas usam para jamais viverem o verdadeiro encontro.
Ele conhecia o "teatro". Milan dissera que era também um cliente especial. O alarme tocou, mas ela precisava de tempo para pensar.
- O diretor do museu me disse: "Em que você pretende basear o seu trabalho?" Eu respondi: "Em mulheres que se sentem livres para fazer amor por dinheiro." Ele comentou:
"Não dá, chamamos estas mulheres de prostitutas." Eu respondi: "Bem, são prostitutas, vou estudar a história delas e farei algo mais intelectual, mais a gosto das famílias que irão freqüentar o seu museu. Tudo é uma questão de cultura, sabia? De apresentar de uma maneira agradável aquilo que custa a ser digerido." O diretor insistiu: "Mas o sexo não é mais tabu. É uma coisa tão explorada, que fica difícil fazer um trabalho com este tema." Eu respondi: "E você sabe de onde vem o desejo sexual?" "Do instinto", disse o diretor. "Sim, do instinto", afirmei, "mas isso todo mundo sabe. Como fazer uma bela exposição, se estamos apenas falando de ciência? Eu quero falar de como o homem explica essa atração.
Como um filósofo, por exemplo, contaria isso." O diretor pediu que eu desse um exemplo.
Eu disse que, quando tomasse o trem de volta para casa e alguma mulher me olhasse, eu iria falar com ela; diria que, por ser uma estranha, poderíamos ter a liberdade de fazer tudo que tínhamos sonhado, viver todas as nossas fantasias, e depois ir para nossas casas, nossas mulheres e nossos maridos, sem que jamais nos cruzássemos novamente. E então, nesta estação de trem, eu a vejo."
- Sua história é tão interessante, que está matando o desejo.
Ralf Hart riu, e concordou. O vinho tinha acabado, ele foi até a cozinha pegar mais uma garrafa, e ela ficou olhando o fogo, já sabendo qual seria o próximo passo, mas ao mesmo tempo saboreando o ambiente acolhedor, esquecendo o executivo inglês, voltando a entregar-se.
Ralf serviu os dois copos.
- Apenas como curiosidade, de que maneira você acabaria esta história com o diretor?
- Citaria Platão, já que estaria diante de um intelectual. Segundo ele, no início da criação, os homens e mulheres não eram como são hoje; havia apenas um ser, que era baixo, com um corpo e um pescoço, mas sua cabeça tinha duas faces, cada uma olhando para uma direção. Era como se duas criaturas estivessem grudadas pelas costas, com dois sexos opostos, quatro pernas, quatro braços.
"Os deuses gregos, porém, eram ciumentos, e viram que uma criatura que tinha quatro braços trabalhava mais, duas faces opostas esta vam sempre vigilantes e não podia ser atacada por traição, quatro pernas não exigiam tanto esforço para ficar de pé ou andar por longos períodos. E, o que era mais perigoso: tal criatura tinha dois sexos diferentes, não precisava de ninguém mais para continuar se reproduzindo na terra.
"Então disse Zeus, o supremo senhor do Olimpo: `Tenho um plano para fazer com que estes mortais percam sua força.'
"E, com um raio, cortou a criatura em dois, criando 0 homem e a mulher. Isso aumentou muito a população do mundo, e ao mesmo tempo desorientou e enfraqueceu os que nele habitavam - porque agora tinham que buscar de novo sua parte perdida, abraçá-la de novo, e nesse abraço recuperar a força antiga, a capacidade de evitar a traição, a resistência para andar longos períodos e agüentar o trabalho cansativo. O abraço em que os dois corpos se confundem de novo em um, nós o chamamos de sexo."
- Essa história é verdade?
- Segundo Platão, o filósofo grego.
Maria olhava-o fascinada, e a experiência da noite anterior tinha desaparecido por completo. Ela via o homem à sua frente cheio da mesma "luz" que ele enxergara nela, contando aquela estranha história com entusiasmo, os olhos brilhando não mais de desejo, mas de alegria.
- Posso lhe pedir um favor?
Ralf respondeu que podia pedir qualquer coisa.
- Pode descobrir por que, depois que os deuses separaram a criatura com quatro pernas, algumas delas resolveram que o abraço podia ser apenas uma coisa, um negócio como outro qualquer, que, em vez de acrescentar, retira a energia das pessoas?
- Você está falando de prostituição?
- Isso. Pode descobrir quando o sexo deixou de ser sagrado?
- Farei isso se você quiser - respondeu Ralf. - Mas nunca pensei nisso, e creio que ninguém mais pensou; talvez não haja material a esse respeito.
Maria não agüentou a pressão:
- já lhe ocorreu pensar que as mulheres, principalmente as prostitutas, são capazes de amar? - Sim, me ocorreu. Me ocorreu no primeiro dia, quando estávamos na mesa do café, quando vi sua luz. Então, quando pensei em convidá-la para um café, escolhi acreditarem tudo, inclusive na possibilidade de que você me devolvesse ao mundo, de onde parti faz muito tempo.
Agora não havia mais retorno. Maria, a mestra, precisava vir imediatamente em seu socorro, ou ela iria beijá- lo, abraçá-lo, pedir que não a deixasse.
- Vamos voltar para a estação de trem - disse. - Melhor dizendo, vamos voltar para esta sala, para o dia em que viemos aqui pela primeira vez, e você reconheceu que eu existia, e me deu um presente. Foi a primeira tentativa de entrar na minha alma, e você não sabia se era bem- vindo. Mas, como diz a sua história, os seres humanos foram divididos e agora buscam de novo este abraço que os una. Esse é o nosso instinto. Mas também a nossa razão para agüentar todas as coisas difíceis que acontecem durante esta busca.
"Eu quero que você me olhe, e quero, ao mesmo tempo, que evite fazer com que eu note. O primeiro desejo é importante porque ele é escondido, proibido, não consentido.
Você não sabe se está diante da sua metade perdida, ela tampouco sabe, mas algo os atrai -
e é preciso acreditar que seja verdade."
De onde estou tirando tudo isso? Estou tirando tudo isso do fundo do meu coração, porque gostaria que sempre tivesse sido assim. Estou tirando estes sonhos do meu próprio sonho de mulher.
Ela abaixou um pouco a alça do seu vestido, de modo que uma parte, apenas uma ínfima parte do bico do seu seio ficasse descoberto.
- O desejo não é o que você vê, mas aquilo que você imagina.
Ralf Hart olhava uma mulher de cabelos negros, e roupa igual aos cabelos, sentada no chão de sua sala de visitas, cheia de desejos absurdos, como ter uma lareira acesa em pleno verão. Sim, queria imaginar o que aquela roupa escondia, podia ver o tamanho de seus seios, sabia que o sutiã que ela usava era desnecessário, embora talvez fosse uma obrigação do ofício. Seus seios não eram grandes, não eram pequenos, eram jovens. Seu olhar não demonstrava nada; o que ela estava fazendo ali? Por que ele estava alimentando esta relação perigosa, absurda, se não tinha nenhum problema em arranjar uma mulher? Era rico, jovem, famoso, de boa aparência. Adorava seu trabalho, tinha amado as mulheres com que se casara, tinha sido amado. Enfim, era uma pessoa que, por todos os padrões, deveria gritar bem alto: "Eu sou feliz."
Mas não era. Enquanto a maioria dos seres humanos se matava por um pedaço de pão, um teto onde morar, um emprego que lhe permitisse viver com dignidade, Ralf Hart tinha tudo isso, o que o tornava mais miserável. Se fizesse um balanço recente de sua vida, talvez tivesse vivido dois, três dias em que tenha acordado, olhado o sol - ou a chuva - se sentido alegre por ser de manhã, apenas alegre, sem desejar nada, sem planejar nada, sem pedir nada em troca. Afora esses poucos dias, o resto de sua existência tinha sido gasto em sonhos, frustrações e realizações, desejo de superar a si mesmo, viagens além dos seus limites; não sabia exatamente a quem, ou o quê, o certo é que passara a sua vida tentando provar algo.
Olhava a bela mulher à sua frente, discretamente vestida de negro, alguém que encontrara por acaso, embora já a tivesse visto antes em uma boate, e reparado que não combinava com o lugar. Ela pedia que a desejasse, e ele a desejava muito, muito mais do que podia imaginar - mas não eram os seus seios, ou o seu corpo; era a sua companhia.
Queria abraçá- la, ficarem silêncio olhando o fogo, bebendo vinho, fumando um ou outro cigarro, isso era o suficiente. A vida era feita de coisas simples, estava cansado de todos estes anos buscando algo que não sabia
o que era.
Entretanto, se fizesse isso, se a tocasse, tudo estaria perdido. Porque, apesar de sua
"luz", não estava certo se ela entendia como era bom estar ao seu lado. Estava pagando?
Sim, e continuaria pagando o tempo que fosse necessário, até poder sentarse com ela à beira do lago, falar de amor - e escutar a mesma coisa de volta. Melhor não arriscar, não precipitar as coisas, não dizer nada.
Ralf Hart parou de se torturar e voltou a concentrar-se no jogo que acabavam de criar juntos. A mulher à sua frente estava certa: não bastava o vinho, o fogo, o cigarro, a companhia; era preciso outro tipo de embriaguez, outro tipo de chama.
A mulher estava com um vestido de alças, tinha deixado um seio à mostra, ele podia ver sua carne, mais para morena que branca. Desejou-a. Desejou-a muito.
Maria notou a mudança nos olhos de Ralf. Saber-se desejada a excitava mais do que qualquer outra coisa. Nada tinha a ver com a receita convencional - quero fazer amor com você, quero casar, quero que você tenha um orgasmo, quero ter um filho, quero compromissos. Não, o desejo era uma sensação livre, solta no espaço, vibrando, enchendo a vida com a vontade de ter algo - e isso bastava, essa vontade empurrava tudo para a frente, desmoronava as montanhas, deixava úmido seu sexo.
O desejo era a fonte de tudo - de sair de sua terra, de descobrir um novo mundo, aprender francês, superar seus preconceitos, sonhar com uma fazenda, amar sem pedir nada em troca, sentir-se mulher apenas por causa do olhar de um homem. Com uma lentidão calculada, abaixou a outra alça, e o vestido escorregou por seu corpo. Em seguida, desabotoou o sutiã. Ali ficou, com a parte superior do corpo completamente despida, imaginando se ele iria saltar sobre ela, tocá- la, fazer juras de amor - ou se era sensível o suficiente para sentir, no próprio desejo, o mesmo prazer do sexo.
As coisas em volta dos dois começaram a mudar, os ruídos já não existiam mais, a lareira, os quadros, os livros foram desaparecendo, substituídos por uma espécie de transe, em que apenas 0 obscuro objeto do desejo existe, e nada mais tem importância.
O homem não se mexeu. No início sentiu uma certa timidez em seus olhos, mas não durou muito. Ele a olhava, e no mundo de sua imaginação ele a acariciava com sua língua, faziam amor, suavam, abraçavam-se, misturavam ternura e violência, gritavam e gemiam juntos.
No mundo real, porém, nada diziam, nenhum dos dois se movia, e isso a deixava mais excitada ainda, porque também ela estava livre para pensar o que quisesse. Pedia que a tocasse com suavidade, abria as pernas, masturbava-se diante dele, dizia frases românticas e vulgares como se fossem a mesma coisa, tinha vários orgasmos, acordava os vizinhos, acordava o mundo inteiro com seus gritos. Ali estava seu homem, que lhe dava prazer e alegria, com quem podia ser quem era, falar dos seus problemas sexuais, contar o quanto gostaria de continuar junto com ele pelo resto da noite, da semana, da vida.
O suor começou a pingar da testa de ambos. Era a lareira, um dizia mentalmente para o outro. Mas tanto o homem como a mulher naquela sala tinham chegado ao seu limite, usado toda a imaginação, vivido juntos uma eternidade de momentos bons. Precisavam parar. Mais um passo e aquela magia seria desfeita pela realidade.
Com muita lentidão - porque o final é sempre mais difícil que o princípio, ela recolocou o sutiã e escondeu os seios. O universo voltou ao seu lugar, as coisas em volta tornaram a surgir, ela levantou o vestido que tombara até sua cintura, sorriu, e com suavidade tocou-lhe o rosto. Ele pegou a sua mão e apertou-a contra a face, sem saber até onde devia mantê- la ali, ou com que intensidade devia agarrá- la.
Ela sentiu vontade de dizer que o amava. Mas isso estragaria tudo, podia assustá-lo ou
- o que era pior - podia fazer com que respondesse que também a amava. Maria não queria isso: a liberdade do seu amor era não ter nada o que pedir ou esperar.
- Quem é capaz de sentir sabe que é possível ter prazer antes mesmo de tocar outra pessoa. As palavras, os olhares, tudo isso contém o segredo da dança. Mas o trem chegou, cada um vai para o seu lado. Espero poder acompanhá-lo nesta viagem até... até onde?
- De volta a Genève - respondeu Ralf.
- Quem observa, e descobre a pessoa com quem sempre sonhou, sabe que a energia sexual acontece antes do próprio sexo. O maior prazer não é o sexo, é a paixão com que ele é praticado. Quando esta paixão é intensa, o sexo vem para consumar a dança, mas ele nunca é o ponto principal.
- Você está falando de amor como uma professora.
Maria resolveu falar, porque esta era a sua defesa, sua maneira de dizer tudo sem comprometer-se com nada:
- Quem está apaixonado está fazendo amor o tempo todo, mesmo quando não está fazendo. Quando os corpos se encontram, é apenas o transbordar da taça. Podem ficar juntos por horas, até dias. Podem começar a dança em um dia e acabar em outro, ou até mesmo não acabar, de tanto prazer. Nada a ver com onze minutos.
- O quê?
- Eu te amo.
- Eu também te amo.
- Perdão. Não sei o que estou dizendo.
- Nem eu.
Levantou-se, deu-lhe um beijo e saiu. Ela mesma podia abrir a porta, já que a superstição brasileira dizia que o dono da casa só precisava fazê- lo na primeira vez que fosse embora.
Do diário de Maria, na manhã seguinte:
Ontem à noite, quando Ralf Hart me olhou, abriu uma porta, como se fosse um ladrão; mas, ao ir embora, não levou nada de mim; ao contrário, deixou o cheiro de rosas -
não era um ladrão, mas um noivo que me visitava.
Cada ser humano vive seu próprio desejo; faz parte do seu tesouro, e, embora seja uma emoção que pode afastar alguém, geralmente traz quem é importante para perto. É
uma emoção que minha alma escolheu, e tão intensa que pode contagiar tudo e todos à minha volta.
Cada dia escolho a verdade com a qual pretendo viver. Procuro ser prática, eficiente, profissional. Mas gostaria de poder escolher, sempre, o desejo como meu companheiro.
Não por obrigação, nem para atenuar a solidão de minha vida, mas porque é bom. Sim, é muito bom.
Copacabana tinha, em média, trinta e oito mulheres que freqüentavam a casa com regularidade, embora apenas uma, a filipina Nyah, pudesse ser considerada por Maria como uma relação próxima à amizade. A média de permanência ali era de no mínimo seis meses, e no máximo três anos - porque logo recebiam um convite para casar, ser amante fixa ou, se já não conseguiam mais atrair a atenção dos fregueses, Milan pedia delicadamente que procurassem um outro lugar de trabalho.
Por isso, era importante respeitar a clientela de cada uma, e jamais procurar seduzir os homens que ali entravam e iam direto para determinada moça. Além de ser desonesto, podia ser muito perigoso; na semana anterior, uma colombiana tirara delicadamente uma lâmina de barbear do bolso, colocara em cima do copo de uma iugoslava e dissera com a voz mais tranqüila do mundo que a iria desfigurar, se insistisse em aceitar de novo o convite de um certo diretor de banco que costumava ir ali com regularidade. A iugoslava alegara que o homem era livre, e se a tinha escolhido, não podia recusar.
Naquela noite, o homem entrou, cumprimentou a colombiana e foi para a mesa onde estava a outra. Tomaram o drink, dançaram e - Maria achou que era provocação demais - a iugoslava piscou para a outra, como se estivesse dizendo: "Está vendo? Ele me escolheu!"
Mas aquela piscadela de olho continha muitas outras coisas não ditas: ele me escolheu porque sou mais bela, porque estive com ele na semana passada e ele gostou, porque sou jovem. A colombiana não disse nada. Quando a sérvia voltou, duas horas depois, ela sentou-se ao seu lado, tirou a lâmina de barbear do bolso e cortou o rosto da outra perto da orelha: nada profundo, nada perigoso, apenas o suficiente para deixar uma pequena cicatriz que a lembrasse para sempre daquela noite. As duas se atracaram, o sangue espirrou para todo lado, os fregueses saíram assustados.
Quando a polícia chegou querendo saber o que se passava, a iugoslava disse que havia cortado o seu rosto em um copo que caíra de uma estante (não existiam estantes no Copacabana). Essa era a lei do silêncio, ou a "omertà", como gostavam de chamar as prostitutas italianas: tudo que tivesse que ser resolvido na Rue de Berne, do amor à morte, seria resolvido - mas sem a interferência da lei. Ali, eles faziam a lei.
A polícia sabia da "omertà", viu que a mulher estava mentindo, mas não insistiu no assunto - ia custar muito dinheiro ao contribuinte suíço se resolvesse prender, processar e alimentar uma prostituta durante o tempo em que estivesse na prisão. Milan agradeceu aos policiais pela pronta interferência, disse que era um mal-entendido, ou alguma intriga de um concorrente.
Assim que eles saíram, pediu que as duas nunca mais voltassem ao seu bar. Afinal de contas, o Copacabana era um lugar familiar (uma afirmativa que Maria custava a entender) e tinha uma reputação a zelar (o que a deixava mais intrigada ainda). Ali não havia brigas, porque a primeira lei era respeitar o cliente alheio.
A segunda lei era a total discrição, "semelhante à de um banco suíço", dizia ele.
Principalmente porque ali se podia confiar nos clientes, que eram selecionados como um banco seleciona os seus - baseado na conta corrente, mas também na folha corrida, ou seja, nos bons antecedentes.
Às vezes havia algum equívoco, alguns raros casos de nãopagamento, de agressão ou de ameaças às moças, mas nos muitos anos em que criara e desenvolvera com esforço a fama de sua boate, Milan já sabia identificar quem devia ou não freqüentar a casa.
Nenhuma das mulheres sabia exatamente qual era o seu critério, porém mais de uma vez já tinham visto alguém bem- vestido ser informado de que a boate estava cheia na quela noite (embora estivesse vazia) e nas noites seguintes (ou seja: por favor, não volte). Também tinham visto pessoas de roupa esporte e barba por fazer serem entusiasticamente convidadas por Milan para um copo de champanha. O dono do Copacabana não julgava pelas aparências e, no final das contas, sempre tinha razão.
Em uma boa relação comercial, todas as partes precisam estar satisfeitas. A grande maioria dos clientes era casada, ou tinha uma posição importante em alguma empresa.
Também algumas daquelas mulheres que trabalhavam ali eram casadas, tinham filhos, e freqüentavam as reuniões de pais nas escolas, sabendo que não corriam nenhum risco: se um dos pais aparecesse no Copacabana, também estaria comprometido, e não poderia dizer nada: assim funcionava a "omertà".
Havia camaradagem, mas não havia amizade. Ninguém falava muito da própria vida.
Nas poucas conversas que tivera, Maria não descobrira amargura, ou culpa, ou tristeza entre suas companheiras: apenas uma espécie de resignação. E também um estranho olhar de desafio, como se estivessem orgulhosas de si mesmas, enfrentando o mundo, independentes e confiantes. Depois de uma semana, qualquer moça recém-chegada já era considerada
"profissional", e recebia instruções para sempre ajudar a manter os casamentos (uma prostituta não pode ser uma ameaça à estabilidade de um lar), jamais aceitar convites para encontros fora do horário de trabalho, escutar confissões sem dar muita opinião, gemer na hora do orgasmo (Maria descobrira que todas faziam isso, e que no início não lhe tinham contado porque era um dos truques da profissão), cumprimentar a polícia na rua, manter atualizada a carteira de trabalho e os exames de saúde e, finalmente, não se indagar muito sobre os aspectos morais ou legais do que faziam; eram o que eram, e ponto final.
Antes que o movimento começasse, Maria sempre podia ser vista com um livro, e logo passou a ser conhecida como a "intelectual" do grupo. No início queriam saber se eram histórias de amor, mas ao ver que se tratava de assuntos áridos e desinteressantes como economia, psicologia e - recentemente - administração de fazendas, logo a deixavam sozinha para que continuasse sossegada sua pesquisa e suas anotações.
Por ter muitos clientes fixos, e por ir ao Copacabana todos os dias, mesmo quando o movimento era pequeno, Maria ganhou a confiança de Milan e a inveja das companheiras; comentavam que a brasileira era ambiciosa, arrogante, e só pensava em ganhar dinheiro.
Esta última parte não deixava de ser verdade, embora ela tivesse vontade de perguntar se todas as outras não estavam ali pelo mesmo motivo.
De qualquer maneira, comentários não matam - fazem parte da vida de qualquer pessoa bem-sucedida. Era melhor ignorá-los, concentrando a atenção em seus dois únicos objetivos: voltar para o Brasil na data marcada e comprar uma fazenda.
Ralf Hart agora estava em seu pensamento de manhã à noite, e pela primeira vez era capaz de ser feliz com um amor ausente - embora um pouco arrependida de ter confessado isso, arriscando-se a perder tudo. Mas o que tinha a perder, se não estava pedindo nada em troca? Lembrou-se de como o seu coração batera mais rápido quando Milan mencionara que ele era ou já tinha sido - um cliente especial. O que significava aquilo? Sentiu-se traída, ficou com ciúmes.
Claro que o ciúme é normal, embora a vida já lhe tivesse ensinado que era inútil pensar que alguém pode possuir outra pessoa - quem acredita que isso é possível está querendo enganar a si mesmo. Apesar disso, não se pode reprimir a idéia do ciúme, ou ter grandes idéias intelectuais a respeito, ou, ainda, achar que é uma demonstração de fragilidade.
O amor mais forte é aquele que pode demonstrar sua fragilidade. De qualquer maneira, se meu amor for verdadeiro (e não apenas uma maneira de me distrair, me enganar, passar o tempo que não passa nunca nesta cidade), a liberdade irá vencer o ciúme, e a dor que ele provoca - já que também a dor é parte de um processo natural. "Quem pratica esporte sabe disso: quando queremos atingir nossos objetivos, precisamos estar prontos para uma dose diária de dor ou mal-estar. A princípio, é incômodo e desmotivante, mas com o decorrer do tempo entendemos que faz parte do processo de sentir-se bem, e chega um momento em que, sem a dor, temos a sensação de que o exercício não está tendo o efeito desejado.
O perigoso é focalizar esta dor, dar- lhe um nome de pessoa, mantê-la sempre presente no pensamento; e disso, graças a Deus, Maria já conseguira se livrar.
Mesmo assim, às vezes descobria-se pensando em onde estaria ele, por que não a procurava, se a havia achado estúpida com aquela história de estação de trem e desejo reprimido, se fugira para sempre porque ela confessara seu amor. Para evitar que sentimentos tão belos se transformassem em sofrimento, ela desenvolveu um método: quando algo de positivo ligado a Ralf Hart viesse à sua mente - e isso podia ser a lareira e o vinho, uma idéia que gostaria de discutir com ele, ou simplesmente a ansiedade gostosa de saber quando voltaria -, Maria parava o que estava fazendo, sorria para o céu e agradecia por estar viva e não esperar nada do homem que amava.
Entretanto, se o seu coração começasse a reclamar da ausência, ou das coisas erradas que dissera quando estavam juntos, ela dizia para si mesma: "Ah, você quer pensar nisso?
Então tudo bem; co ntinue fazendo o que deseja, enquanto eu me dedico a coisas mais importantes."
Continuava a ler, ou, se estivesse na rua, começava a prestar atenção a tudo que estava a sua volta: cores, pessoas, sons, principalmente sons -dos seus passos, das páginas que se viravam, dos carros, dos fragmentos de conversas, e o pensamento incômodo terminava por desaparecer. Se voltasse cinco minutos depois, ela repetia o processo, até que estas lembranças, ao serem aceitas mas gentilmente rejeitadas, se afastassem por um tempo considerável.
Um destes "pensamentos negativos" era a possibilidade de não tornar a vê-lo. Com um pouco de prática e muita paciência, ela conseguiu transformá- lo em um "pensamento positivo": quando partisse, Genève seria um rosto de homem com cabelos muito grandes e fora de moda, sorriso infantil, voz grave. Se alguém lhe perguntasse, muitos anos depois, como era o lugar que conhecera em sua juventude, ela poderia responder: "Bonito, capaz de amar e ser amado."
Do diário de Maria, em um dia de pouco movimento no Copacabana: De tanto conviver com as pessoas que vêm aqui; chego à conclusão de que o sexo tem sido utilizado como qualquer outra droga: para fugir à realidade, para esquecer dos problemas, para relaxar. E, como todas as drogas, é uma prática nociva e destruidora.
Se uma pessoa quer se drogar, seja com sexo ou com qualquer coisa, isso é problema dela; as conseqüências de seus atos serão melhores ou piores de acordo com aquilo que ela escolheu para si mesma. Mas se falamos em avançar na vida, temos que entender que o que é "bonzinho" é bem diferente do que é "melhor".
Ao contrário do que os meus clientes pensam, o sexo não pode ser praticado a qualquer hora. Há um
relógio escondido em cada um de nós, e para fazer amor os ponteiros de ambas as pessoas têm que estar marcando a mesma hora ao mesmo tempo. Isso não acontece todos os dias. Quem ama não depende do ato sexual para sentir-se bem. Duas pessoas que estão juntas, e se querem bem, precisam acertar seus ponteiros, com paciência e perseverança, com jogos e representações "teatrais", até entender que fazer amor é muito mais que um encontro; é um "abraço" das partes genitais.
Tudo tem importância. Uma pessoa que vive intensamente sua vida goza o tempo todo e não sente a falta de sexo. Quando ela faz sexo, é por abundância, porque o copo de vinho está tão cheio que transborda naturalmente, porque é absolutamente inevitável, porque ela aceita o apelo da vida, porque neste momento, apenas neste momento, ela consegue perder o controle.
PS. - Acabo de reler o que escrevi: meu Deus do céu, estou ficando intelectual demais!!!
Pouco depois de ter escrito isso, e quando se preparava para viver mais uma noite de Mãe Compreensiva ou Menina Ingênua, a porta do Copacabana abriu-se e entrou Terence, o executivo da gravadora de discos, um dos clientes especiais.
Milan pareceu satisfeito por trás do bar: a menina não o havia decepcionado. Maria lembrou na mesma hora das palavras que diziam tantas coisas, e ao mesmo tempo não diziam nada: "Dor, sofrimento, e muito praze r."
- Vim de Londres especialmente para vê -Ia. Pensei muito em você.
Ela sorriu, tentando fazer com que seu sorriso não fosse um encorajamento. Mais uma vez ele não seguiu o ritual, não a convidou para nada - apenas sentou-se.
- Quando se faz uma pessoa descobrir qualquer coisa, o professor também termina descobrindo algo novo.
- Sei do que está falando - respondeu Maria, lembrando-se de Ralf Hart, e irritando-se com sua própria lembrança. Estava diante de outro cliente, precisava respeitá- lo e fazer o possível para deixá-lo contente.
- Quer ir adiante?
Mil francos. Um universo escondido. Um patrão que a olhava. A certeza de que poderia parar quando quisesse. A data marcada para a volta ao Brasil. Um outro homem, que não aparecia nunca.
- Você está com pressa? - perguntou Maria.
Ele disse que não. O que ela queria?
- Quero o meu drink, a minha dança, o respeito pela minha profissão.
Ele hesitou por alguns minutos, mas era parte do teatro, de dominar e ser dominado.
Pagou o drink, dançou, pediu um táxi, entregou- lhe o dinheiro enquanto cruzavam a cidade, e foram para o mesmo hotel. Entraram, ele cumprimentou o porteiro italiano da mesma maneira que fizera na noite em que se conheceram, subiram para o mesmo quarto com vista para o rio.
Terence riscou um fósforo, e só então Maria se deu conta de que havia dezenas de velas espalhadas. Ele começou a acendê- las.
- O que você quer saber? Por que sou assim? Se não me engano, você adorou a noite que passamos juntos. Quer saber por que você também é assim?
- Estou pensando que no Brasil temos a superstição de acender mais de três coisas com o mesmo fósforo. E você não está respeitando isso.
Ele ignorou o comentário.
- Você é como eu. Não está aqui pelos mil francos, mas pelo sentimento de culpa, de dependência, pelos seus complexos e sua insegurança. E isso não é bom nem ruim, é a natureza humana.
Pegou o controle remoto da TV e mudou várias vezes de canal, até parar em um noticiário, em que refugiados procuravam escapar de uma guerra.
- Está vendo isso? Já viu os programas em que as pessoas vão discutir seus problemas pessoais diante de todo mundo? Já foi até a banca de jornal e viu as manchetes? O mundo se alegra no sofrimento e na dor. Sadismo ao olhar, masoquismo ao concluir que não precisamos saber tudo isso para sermos felizes, e mesmo assim assistimos à tragédia alheia e, às vezes, sofremos com ela.
Ele serviu outros dois copos de champanha, desligou a TV e continuou a acender as velas, sem respeitar a superstição que Maria mencionara.
- Repito: é a condição humana. Desde que fomos expulsos do paraíso, ou estamos sofrendo, ou estamos fazendo alguém sofrer, ou estamos olhando o sofrimento dos outros.
É incontrolável.
Começaram a escutar o estrondo dos trovões lá fora, uma gigantesca tempestade estava se aproximando.
- Mas eu não consigo - disse Maria. - Me parece ridículo achar que você é o meu mestre e sou sua escrava. Não precisamos de nenhum "teatro" para nos encontrarmos com o sofrimento; a vida já nos oferece muitas oportunidades.
Terence tinha acabado de acender todas as velas. Pegou uma delas, colocou-a no centro da mesa, tornou a servir champanha e caviar. Maria bebia rápido, pensando nos mil francos que estavam em sua carteira, no desconhecido que a fascinava e amedrontava, na maneira de controlar seu pavor. Sabia que, com aquele homem, uma noite jamais seria como a outra, não podia ameaçá- lo.
- Sente-se.
A voz alternava entre doce e autoritária. Maria obedeceu, e uma onda de calor percorreu seu corpo; aquela ordem era familiar, ela sentia-se mais segura.
"Teatro. Preciso entrar na peça de teatro."
Era bom receber ordens. Não precisava pensar, apenas obedecer. Suplicou por mais champanha, ele lhe trouxe vodca; subia mais rápido, libertava com mais facilidade, combinava mais com o caviar.
Abriu a garrafa, Maria praticamente bebeu sozinha, enquanto escutava os trovões.
Tudo colaborava para o momento perfeito, como se a energia dos céus e da terra mostrasse também seu lado violento.
Em um dado momento, Terence pegou uma pequena maleta no armário e colocou-a sobre a cama.
- Não se mexa.
Maria ficou imóvel. Ele abriu a maleta e tirou dois pares de algemas de metal cromado.
-Sente-se de pernas abertas.
Ela obedeceu. Impotente por vontade própria, submissa porque assim desejava.
Percebeu que ele olhava entre suas pernas, podia ver a calcinha preta, as meias longas, as coxas, podia imaginar os cabelos, o sexo.
- Fique de pé!
Ela saltou da cadeira. Seu corpo custou a equilibrar-se, e viu que estava mais embriagada do que imaginara.
- Não me olhe. Abaixe a cabeça, respeite seu dono!
Antes que pudesse abaixar a cabeça, um chicote fino foi retirado da mala e estalou no ar - como se tivesse vida própria.
- Beba. Mantenha a cabeça baixa, mas beba.
Entornou mais um, dois, três copos de vodca. Agora não era apenas um teatro, mas a realidade da vida: não tinha controle. Sentia-se um objeto, um simples instrumento, e por incrível que pareça, aquela submissão lhe dava a sensação de completa liberdade. Não era mais a mestra, a que ensina, a que consola, a que escuta as confissões, a que excita; era apenas a menina do interior do Brasil, diante do poder gigantesco do homem.
-- Tire a roupa.
A ordem veio seca, sem desejo - e, no entanto, nada mais erótico. Mantendo a cabeça baixa em sinal de reverência, Maria desabotoou o vestido e deixou que escorregasse até o chão.
- Você não está se comportando bem, sabia?
De novo o chicote estalou no ar.
- Precisa ser castigada. Uma menina da sua idade, como ousa me contrariar? Você devia estar de joelhos diante de mim!
Maria fez menção de ajoelhar-se, mas o chicote a interrompeu; pela primeira vez tocava a sua carne - nas nádegas. Ardia, mas parecia não deixar marcas.
- Eu não disse para ajoelhar-se. Disse?
- Não.
Outra vez o chicote tocou suas nádegas.
- Diga: "Não, meu senhor."
E mais uma chibatada. Mais ardor. Por uma fração de segundo ela pensou que podia parar com aquilo tudo imediatamente; ou podia escolher ir até o fim, não pelo dinheiro, mas pelo que ele dissera na primeira vez - um ser humano só se conhece quando vai até seus limites.
E aquilo era novo; era a aventura, podia decidir mais tarde se gostaria de continuar, mas naquele instante ela deixou de ser a moça que tinha três objetivos na vida, que estava ganhando dinheiro com seu corpo, que conhecera um homem com uma lareira e histórias interessantes para contar. Ali ela não era ninguém - e por não ser ninguém, era tudo que sonhava.
- Tire toda a roupa. E ande de um lado para o outro, para que eu possa vê-Ia.
Mais uma vez obedeceu, mantendo a cabeça baixa, sem dizer uma só palavra. O
homem que a olhava estava vestido, impassível, não era a mesma pessoa com quem tinha vindo conversando desde a boate - era um Ulisses que vinha de Londres, um Teseu que chegava do céu, um seqüestrador que invadia a cidade mais segura do mundo, e o coração mais fechado da terra. Tirou a calcinha, o sutiã, sentiu-se indefesa e protegida ao mesmo tempo. O chicote de novo estalou no ar, desta vez sem tocar seu corpo.
- Mantenha a cabeça baixa! Você está aqui para ser humilhada, para ser submetida a tudo que eu desejar, entende?
- Sim, senhor.
Ele agarrou seus braços e colocou o primeiro par de algemas em seus pulsos.
- E vai apanhar muito. Até aprender a comportar-se.
Com a mão aberta, deu-lhe um tapa nas nádegas. Maria gritou, desta vez tinha doído.
- Ah, e está reclamando, não é? Pois vai ver o que é bom.
Antes que ela pudesse reagir, uma mordaça de couro estava prendendo sua boca. Não a impedia de falar, podia dizer "amarelo" ou "vermelho", mas sentia que era seu destino deixar que aquele homem pudesse fazer dela o que quisesse, e não tinha como escapar dali.
Estava nua, amordaçada, algemada, com vodca correndo no lugar de sangue.
Outro tapa nas nádegas.
- Ande de um lado para o outro!
Maria começou a andar, obedecendo aos comandos "pare", "vire para a direita",
"sente-se", "abra as pernas". Vez por outra, mesmo sem nenhum motivo, levava uma palmada, e sentia a dor, sentia a humilhação - que era mais poderosa e forte que a dor - e sentia-se em outro mundo, onde não existia mais nada, e isso era uma sensação quase religiosa, anular-se por completo, servir, perder a idéia do ego, dos desejos, da própria vontade. Estava completamente molhada, excitada, sem compreender o que acontecia.
- Coloque-se de novo de joelhos!
Como mantinha sempre a cabeça baixa, em sinal de obediência e humilhação, Maria não podia ver exatamente o que estava se passando; mas notava que, em um outro universo, outro planeta, aquele homem estava ofegante, cansado de estalar o chicote e espancar- lhe as nádegas com a palma da mão aberta, enquanto ela se sentia cada vez mais cheia de força e energia. Agora tinha perdido a vergonha, e não se incomodava de mostrar que estava gostando, começou a gemer, pediu que ele lhe tocasse o sexo, mas o homem, em vez disso, agarrou-a e atirou-a na cama.
Com violência - mas uma violência que ela sabia não ia lhe causar nenhum mal -
abriu suas pernas e amarrou cada uma delas em um lado da cama. As mãos algemadas nas costas, as pernas abertas, a mordaça na boca, quando ele iria penetrá- la? Não via que ela já estava pronta, que queria servir- lhe, era sua escrava, seu animal, seu objeto, faria qualquer coisa que ele mandasse?
- Você gostaria que eu a arrebentasse toda?
Ela viu que ele encostava o cabo do chicote em seu sexo. Esfregou-o de cima a baixo, e na hora em que tocou em seu clitóris, ela perdeu o controle. Não sabia havia quanto tempo estavam ali, não imaginava quantas vezes tinha sido espancada, mas de repente veio o orgasmo, o orgasmo que dezenas, centenas de homens, em todos aqueles meses, jamais conseguiram despertar. Uma luz explodiu, ela sentia que entrava em uma espécie de buraco negro em sua própria alma, onde a dor intensa e o medo se misturavam com o prazer total, aquilo a empurrava além de todos os limites que conhecera, e Maria gemeu, gritou com a voz sufocada pela mordaça, sacudiu-se na cama, sentindo que as algemas lhe cortavam os pulsos e as tiras de couro lhe machucavam os tornozelos, mexeu-se como nunca justamente porque não podia se mexer, gritou como jamais tinha gritado, porque tinha uma mordaça na boca e ninguém poderia escutá-la. Aquilo era a dor e o prazer, o cabo do chicote pressionando o clitóris cada vez mais forte, e o orgasmo saindo pela boca, pelo sexo, pelos poros, pelos olhos, por toda a sua pele.
Entrou em uma espécie de transe, e pouco a pouco foi descendo, descendo, já não havia mais o chicote entre as pernas, apenas os cabelos molhados pelo suor abundante, e mãos carinhosas que lhe retiravam as algemas e desatavam as tiras de couro dos seus pés.
Ela ficou ali deitada, confusa, incapaz de olhar o homem porque estava com vergonha de si mesma, de seus gritos, de seu orgasmo. Ele lhe acariciava os cabelos, e também arfava
- mas o prazer tinha sido exclusivamente seu; ele não tivera nenhum momento de êxtase.
O seu corpo nu abraçou aquele homem co mpletamente vestido, exausto de tantas ordens, tantos gritos, tanto controle da situação. Agora não sabia o que dizer, como continuar, mas estava segura, protegida, porque ele a convidara a ir até uma parte sua que não conhecia, era seu protetor e seu mestre.
Começou a chorar, e ele pacientemente esperou que terminasse.
- O que você fez comigo? - dizia entre lágrimas.
- O que você queria que eu fizesse.
Nada disso fazia sentido, porque não é o que contam as histórias, não é assim na vida real. Mas ali era um mundo de fantasia, ela estava cheia de luz, e ele parecia opaco, exaurido.
- Pode ir quando quiser - disse Terence.
- Não quero ir, quero entender.
- Não há o que entender.
Ela levantou-se, na beleza e intensidade de sua nudez, e serviu duas taças de vinho.
Acendeu dois cigarros, e lhe deu um os papéis estavam trocados, era a senhora que servia o escravo, recompensando-o pelo prazer que lhe dera.
- Vou me vestir, e vou embora. Mas gostaria de conversar um pouco.
- Não há o que conversar. Era isso que eu queria, e você foi maravilhosa. Estou cansado, tenho que voltar amanhã para Londres.
Ele deitou-se e fechou os olhos. Maria não sabia se estava fingindo dormir, mas não importava; fumou o cigarro com prazer, bebeu lentamente seu copo de vinho com o rosto colado na vidraça, olhando o lago em frente e desejando que alguém, na outra margem, a visse assim - nua, plena, satisfeita, segura.
Vestiu-se, saiu sem dizer adeus, e sem se importar se abria ou não a porta, porque não tinha certeza se queria voltar.
Terence escutou a porta bater, esperou para ver se ela não voltava dizendo que tinha esquecido alguma coisa, e só depois de alguns minutos levantou-se e acendeu outro cigarro.
A menina tinha estilo, pensou. Soubera agüentar o chicote, embora este fosse o mais comum, o mais antigo, e o menor de todos os suplícios. Por um momento, lembrou-se da primeira vez que experimentara esta misteriosa relação entre dois seres que desejam se aproximar, mas só conseguem isso infligindo sofrimento aos outros.
Lá fora, milhões de casais praticavam sem se dar conta, todos os dias, a arte do sadomasoquismo. Iam para o trabalho, voltavam, reclamavam de tudo, agrediam ou eram agredidos pela mulher, sentiam-se miseráveis - mas profundamente ligados à própria infelicidade, sem saber que bastava um gesto, um "até nunca mais", para se libertarem da opressão. Terence experimentara isso com sua primeira esposa, uma famosa cantora inglesa; vivia torturado por ciúmes, criando cenas, passando dias sob o efeito de calmantes, e noites embriagado de álcool. Ela o amava, não entendia por que agia assim, ele a amava -
tampouco entendia seu próprio comportamento. Mas era como se a agonia que um infligia ao outro fosse necessária, fundamental para a vida.
Certa vez, um músico - que ele considerava muito estranho, porque parecia normal demais naquele meio de gente exótica esqueceu um livro no estúdio. A Vênus Castigadora, de Leopold von Sacher-Masoch. Terence começou a folheá- lo e, à medida que lia, compreendia melhor a si mesmo:
A linda mulher despiu-se e pegou um longo chicote, com um pequeno cabo, que prendeu ao pulso. "Você pediu", disse ela. "Então vou chicoteá- lo." "Faça isso'; sussurou seu amante. "Eu lhe imploro."
Sua mulher estava do outro lado da divisória de vidro do estúdio, ensaiando. Tinha pedido que desligasse o microfone que permitia aos técnicos escutarem tudo, e fora obedecida. Terence pensava que talvez estivesse marcando um encontro com o pianista, e deu-se conta: ela o levava à loucura, mas parecia que ele já tinha se acostumado a sofrer, e não podia viver sem aquilo.
"Vou chicoteá-lo", dizia a mulher despida, no romance que inha em mãos. "Faça isso, eu lhe imploro."
Ele era bonito, tinha poder na gravadora, por que precisava levar a vida que estava levando?
Porque gostava. Merecia sofrer muito, já que a vida tinha sido muito boa para ele, e não era digno de todas aquelas bênçãos - dinheiro, respeito, fama. Achava que sua carreira o estava levando a um ponto em que passaria a depender do sucesso, e aquilo o assustava, porque já tinha visto muita gente despencar das alturas.
Leu o livro. Começou a ler tudo que lhe caía nas mãos a respeito da misteriosa união entre dor e prazer. A mulher descobriu os vídeos que alugava, os livros que escondia, perguntou o que era aquilo, se ele estava doente. Terence respondeu que não, era uma pesquisa para o visual de um novo trabalho que ela devia fazer. E sugeriu, como quem não quer nada:
"Talvez devêssemos experimentar."
Experimentaram. No começo com muita timidez, baseados apenas nos manuais que encontravam em lojas pornográficas. Aos poucos foram desenvolvendo novas técnicas, indo até os limites, correndo riscos - mas sentindo que o casamento estava cada vez mais sólido. Eram cúmplices de algo escondido, proibido, condenado.
A experiência dos dois transformou-se em arte: criaram novos figurinos, couro e tachas de metal. A mulher entrava em cena com um chicote, ligas, botas, e levava a platéia ao delírio. O novo disco foi para o primeiro lugar das paradas de sucesso na Inglaterra, e dali seguiu uma carreira vitoriosa em toda a Europa. Terence se surpreendia ao ver como a juventude aceitava seus delírios pessoais com tanta naturalidade, e sua única explicação era que desta maneira a violência contida podia se manifestar de forma intensa, mas inofensiva.
O chicote passou a ser o símbolo do grupo, começou a ser reproduzido em camisetas, tatuagens, adesivos, cartões-postais.
A formação intelectual de Terence o fez buscar a origem daquilo tudo, para entender melhor a si mesmo.
Não eram, como disse ra para a prostituta em seu encontro, os penitentes que procuravam afastar a peste negra. Desde a noite dos tempos, o homem entendera que o sofrimento, uma vez encarado sem temor, era seu passaporte para a liberdade.
Egito, Roma e Pérsia já tinham a noção de que, se um homem se sacrifica, ele salva o país e seu mundo. Na China, se acontecia uma catástrofe natural, o imperador era castigado, por ser ele o representante da divindade na terra. Os melhores guerreiros de Espana, na antiga Grécia, eram chicoteados uma vez por ano, da manhã até a noite, em homenagem à deusa Diana enquanto a multidão gritava palavras de incentivo, pedindo que agüentassem a dor com dignidade, pois ela os prepararia para o mundo das guerras. No final do dia, os sacerdotes examinavam as feridas deixadas nas costas dos guerreiros, e através delas previam o futuro da cidade.
Os padres do deserto, uma antiga comunidade cristã do século IV que se reunia em torno de um mosteiro na Alexandria, usavam a flagelação como meio de afastar os demônios, ou demonstrar a inutilidade do corpo durante a busca espiritual. A história dos santos estava cheia de exemplos - Santa Rosa corria pelo jardim, enquanto os espinhos feriam sua carne; São Domingos Loricatus chicoteava-se regularmente todas as noites antes de dormir; os mártires se entregavam voluntariamente à lenta morte na cruz ou nos dentes de animais selvagens. Todos diziam que a dor, uma vez superada, era capaz de levar ao êxtase religioso.
Estudos recentes, não confirmados, indicavam que certo tipo de fungo com propriedades alucinógenas se desenvolvia nas feridas, o que causava as visões. O prazer parecia ser tanto, que a prática logo deixou os conventos e começou a ganhar o mundo.
Em 1718, foi publicado o Tratado de autoflagelação, que ensinava como descobrir o prazer através da dor, mas sem causar dano ao corpo. No final daquele século, existiam dezenas de lugares em toda a Europa onde as pessoas sofriam para chegar à alegria. Há registros de reis e princesas que se faziam flagelar por seus escravos, até descobrirem que o prazer estava não apenas em apanhar, mas também em aplicar a dor - embora fosse mais exaustivo e menos gratificante.
Enquanto fumava seu cigarro, Terence experimentava um certo prazer em saber que a maior parte da humanidade jamais podia compreender o que ele estava pensando.
Não tinha importância: pertencer a um clube fechado, só os eleitos tinham acesso.
Lembrou-se de novo de como o tormento de ser casado se transformou na maravilha de ser casado. Sua mulher sabia que visitava Genève com este propósito, e não se incomodava -
pelo contrário, neste mundo doente, ela ficava feliz por seu marido conseguir a recompensa que desejava depois de uma semana de trabalho árduo.
Enquanto fumava seu cigarro olhando o lago diante da janela, estava sentindo de novo a vontade de viver. A menina que acabara de sair do quarto havia entendido tudo. Sentia que sua alma estava próxima dela, embora não estivesse ainda pronto para se apaixonar, porque amava sua mulher. Mas gostou de pensar que era livre e podia sonhar com um novo relacionamento.
Faltava apenas fazê- la experimentar o que havia de mais difícil: transformá - la na Vênus Castigadora, na Dominatrix, na Senhora, capaz de humilhar e punir sem piedade. Se passasse na prova, estaria pronto para abrir o seu coração e deixá- la entrar.
Do diário de Maria, ainda embriagada pela vodca e pelo prazer: Quando eu não tinha nada a perder, eu recebi tudo. Quando deixei de ser quem era, encontrei a mim mesma.
Quando conhecia humilhação e a submissão total fiquei livre. Não sei se estou doente, se tudo aquilo foi um sonho, ou se acontece apenas uma vez. Sei que posso viver sem isso, mas gostaria de encontrá-lo de novo, de repetir a experiência, ir mais longe do que fui.
Estava um pouco assustada com a dor, mas ela não era tão forte quanto a humilhação
- era apenas um pretexto. No momento em que tive o primeiro orgasmo em muitos meses, apesar dos muitos homens e das muitas coisas diferentes que fizeram com meu corpo, sentime - será que isso é possível? - mais perto de Deus. Lembrei- me do que ele disse a respeito da peste negra, do momento em que os flagelantes, ao oferecerem sua dor pela salvação da humanidade, encontravam nela o prazer. Eu não queria salvara humanidade, ou a ele, ou a mim mesma. Estava apenas ali.
O sexo é a arte de controlar o descontrole.
Não era um teatro, estavam na estação de trem de verdade, a pedido de Maria, que gostava de uma pizza só encontrada ali. Não fazia mal ser um pouco caprichosa. Ralf devia ter aparecido um dia antes, quando então ainda era uma mulher em busca de amor, lareira, vinho, desejo. Mas a vida escolhera de maneira diferente, e hoje passara o dia inteiro sem precisar fazer o seu exercício de concentrar-se nos sons e no presente, simplesmente porque não pensara nele, havia descoberto coisas que lhe interessavam mais.
O que fazer com o homem ao seu lado, comendo uma pizza de que talvez não gostasse, apenas para passar o tempo, e aguardar o momento de irem até sua casa? Quando ele entrara na boate e lhe oferecera um drínk, Maria pensara em dizer que já não tinha mais interesse, que procurasse outra pessoa; por outro lado, tinha uma imensa necessidade de conversar com alguém sobre a noite anterior.
Tentara com uma ou outra prostituta que também servia aos "clientes especiais", mas nenhuma lhe dera maior atenção, porque Maria era esperta, aprendia rápido, havia se transformado na grande ameaça do Copacabana. Ralf Hart, de todos os homens que conhecia, era talvez o único que poderia entender, pois Milan o considerava um "cliente especial". Mas ele a enxergava com os olhos iluminados de amor, e isso tornava as coisas mais difíceis, melhor não dizer nada.
- O que você sabe de sofrimento, humilhação, e muito prazer?
Mais uma vez ela não tinha conseguido se controlar.
Ralf parou de comer a pizza.
- Sei tudo. E não me interessa.
A resposta viera rápida, e Maria ficou chocada. Então, todo mundo sabia tudo, menos ela? Que mundo era aquele, meu Deus?
- Conheci meus demônios e minhas trevas - continuou Ralf. - Fui até o fundo, experimentei tudo, não apenas nesta área, mas em muitas outras. Entretanto, na última vez em que nos encontramos, fui aos meus limites através do desejo, e não da dor. Mergulhei no fundo da minha alma, e sei que ainda quero coisas boas, muitas coisas boas desta vida.
Teve vontade de dizer: "Uma delas é você, por favor, não siga este caminho." Mas não teve coragem; em vez disso, chamou um táxi e pediu que os levasse até a beira do lago
- onde, uma eternidade antes, tinham andado juntos no dia em que se conheceram. Maria estranhou o pedido, ficou quieta - o instinto lhe dizia que tinha muito a perder, embora sua mente ainda estivesse embriagada com o que acontecera na véspera.
Só acordou de sua passividade quando chegaram ao jardim à beira do lago; embora ainda fosse verão, já começava a fazer muito frio durante a noite.
- O que fazemos aqui? - perguntou, quando saltaram. -Está ventando, vou pegar um resfriado.
- Estive pensando muito em seu comentário na estação de trem. Sofrimento e prazer.
Tire os sapatos.
Ela lembrou-se de que certa vez um dos seus fregueses pedira a mesma coisa, e ficara excitado apenas por olhar seus pés. Será que a aventura não a deixava em paz?
- Vou pegar um resfriado - insistiu.
- Faça o que estou dizendo - insistiu ele. - Não vai pegar nenhum resfriado, se não demorarmos muito. Acredite em mim, como eu acredito em você.
Sem nenhuma razão aparente, Maria entendeu que ele estava querendo ajudá-la; talvez porque já tivesse bebido de uma água muito amarga, e achava que ela corria o mesmo risco. Não queria ser ajudada; estava contente com seu novo mundo, onde descobria que o sofrimento não era mais um problema. Entretanto, pensou no Brasil, na impossibilidade de encontrar um parceiro para compartilhar este universo diferente, e como o Brasil era mais importante que tudo em sua vida, ela tirou os sapatos. O chão estava cheio de pequenas pedras, que logo rasgaram suas meias, mas isso não tinha importância, compraria outras.
- Tire o casaco.
Ela podia ter dito que "não" mas, desde a noite anterior, acostumara-se à alegria de poder dizer "sim" a tudo que estava no seu caminho. Tirou o casaco, o corpo ainda quente não reagiu logo, mas aos poucos o frio começou a incomodá- la.
- Vamos andar. E vamos conversar.
- Aqui é impossível: o chão está cheio de pedras.
- Justamente por isso; quero que você sinta estas pedras, quero que lhe provoquem dor, que a machuquem, porque você deve ter experimentado, assim como eu experimentei, o sofrimento aliado ao prazer, e preciso arrancar isso de sua alma.
Maria sentiu vontade de dizer: "Não precisa, eu gosto." Mas começou a caminhar sem pressa, as solas dos pés começaram a arder, devido ao frio e às pontas das pedras.
- Uma das minhas exposições me levou ao Japão, justamente quando eu estava totalmente envolvido naquilo que você chamou de "sofrimento, humilhação, e muito prazer". Naquela época, eu achava que não havia um caminho de volta, que iria cada vez mais fundo, e nada mais restava na minha vida, exceto a vontade de punir e ser punido.
"Afinal, somos seres humanos, nascemos cheios de culpa, ficamos com medo quando a felicidade se transforma em algo possível, e morremos querendo castigar os outros porque sempre nos sentimos impotentes, injustiçados, infelizes. Pagar seus pecados, e poder castigar os pecadores - ah, isso não é uma delícia? Sim, é ótimo."
Maria andava, a dor e o frio tornavam difícil prestar atenção nas palavras dele, mas ela se esforçava.
- Hoje notei as marcas em seus pulsos.
As algemas. Tinha colocado várias pulseiras para disfarçar; entretanto, os olhos acostumados sempre sabem o que estão buscando.
- Enfim, se tudo aquilo que você experimentou recentemente a está conduzindo a dar este passo, não sou eu que vou impedi-Ia; mas nada disso tem relação com a verdadeira vida.
- Passo?
- Dor e prazer. Sadismo e masoquismo. Chame como quiser, mas se estiver convencida de que este é o seu caminho, sofrerei, lembrarei do desejo, dos encontros, do passeio pelo Caminho de Santiago, de sua luz. Terei guardado em um lugar especial uma caneta, e cada vez que acender aquela lareira me lembrarei de você. Entretanto, não a procurarei mais.
-
- Maria sentiu medo, achou que era hora de recuar, falar a verdade, deixar de fingir que sabia mais que ele.
-
- - O que experimentei recentemente, melhor dizendo, ontem, jamais tinha experimentado. E me assusta que, no limite da degradação, eu pudesse encontrar a mim mesma.
-
- Estava ficando difícil continuar conversando - seus dentes batiam de frio, e seus pés doíam muito.
-
- - Na minha exposição, em uma região chamada Kumano, apareceu um lenhador -
continuou Ralf, como se não tivesse escutado o que ela dizia. - Não gostou dos meus quadros, mas foi capaz de decifrar, através da pintura, o que eu estava vivendo e sentindo.
No dia seguinte, me procurou no hotel, e perguntou se eu estava contente; se estivesse, devia continuar fazendo 0 que gostava. Se não estivesse, deveria acompanhá- lo e passar uns dias com ele.
"Me fez andar nas pedras, como estou fazendo com você agora. Me fez sentir frio. Me obrigou a entender a beleza da dor, só que era uma dor aplicada pela natureza, não pelo homem. Chamava isso de Shugen-do, uma prática milenar.
"Disse- me que era um homem que não tinha medo da dor, e isso era bom, porque para dominar a alma, você tem que aprender também a dominar o corpo. Disse-me também que estava usando a dor de maneira errada, e isso era muito ruim.
"Aquele lenhador, ignorante, achava que me conhecia melhor do que eu, e isso me irritava, ao mesmo tempo que me deixava orgulhoso de saber que os meus quadros eram capazes de expressar exatamente o que eu estava sentindo."
Maria sentiu que uma pedra mais pontiaguda lhe cortara o pé, mas o frio era mais forte, seu corpo estava ficando dormente, e não conseguia acompanhar direito as palavras de Ralf Hart. Por que os homens, neste mundo santo de Deus, só tinham interesse em mostrar- lhe a dor? A dor sagrada, a dor com prazer, a dor com explicações ou sem explicações, mas era sempre dor, dor...
O pé machucado tocou em outra pedra, ela reprimiu o grite e continuou andando. No começo tinha procurado manter sus integridade, seu autodomínio, aquilo que ele chamava de "luz" Mas agora estava andando devagar, enquanto seu estômago seu pensamento davam voltas: pensou em vomitar. Pensou em parar, nada daquilo fazia sentido, e não parou.
Não parou em respeito a si mesma; podia agüentar aquela caminhada descalça pelo tempo que fosse necessário, porque ela não ia durar toda a sua vida. E de repente outro pensamento cruzou o espaço: e se não pudesse comparecer ao Copacabana no dia seguinte, por caus a de um sério problema nos pés, ou por uma febre causada pela gripe que, tinha certeza, iria instalar-se em seu corpo pouco
agasalhado? Pensou nos fregueses que a esperavam, em Milan, que confiava tanto nela, no dinheiro que deixaria de ganhar, na fazenda, nos pais orgulhosos. Mas o sofrimento logo afastou qualquer tipo de reflexão, e ela colocava um pé diante do outro, louca para que Ralf Hart reconhecesse seu esforço, e lhe dissesse que bastava, podia calçar os sapatos.
Entretanto ele parecia indiferente, longe, como se aquela fosse a única maneira de livrá- la de algo que não conhecia direito, que a seduzia, mas que terminaria por deixar marcas mais fundas que as das algemas. Embora sabendo que ele tentava ajudá- la, e por mais que se esforçasse para ir adiante e mostrar a luz de sua força de vontade, a dor não permitia que ela tivesse pensamentos profanos ou nobres - era apenas dor, que ocupava todo o espaço, a assustava, e a obrigava a pensar que tinha um limite, e que não iria conseguir.
Mas deu um passo.
E outro.
A dor agora parecia invadir a alma e enfraquecê- la espiritualmente, porque uma coisa é fazer um pouco de teatro em um hotel cinco estrelas, nua, com vodca, caviar, e um chicote entre as pernas; outra coisa é estar no frio, descalça, com pedras lhe cortando os pés. Estava desorientada, não conseguia trocar uma só palavra com Ralf Hart, tudo que existia em seu universo eram as pedras pequenas e cortantes que marcavam a trilha por entre as árvores.
Então, quando pensava que ia desistir, um estranho sentimento a invadiu: tinha atingido o seu limite, e além dele estava um espaço vazio, onde parecia flutuar acima de si mesma, e ignorar o que estava sentindo. Seria esta a sensação que os penitentes experimentavam? Na outra extremidade da dor, descobria uma porta para um nível diferente de consciência, e já não havia espaço para mais nada, apenas para a natureza implacável - e para ela mesma, invencível.
Tudo a sua volta transformou-se em um sonho: o jardim mal iluminado, o lago escuro, o homem em silêncio, um casal ou outro que passeava, sem perceber que ela estava descalça, andando com dificuldade. Não sabia se era o frio ou o sofrimento, mas de repente deixou de sentir seu corpo, entrou em um estado em que não existe qualquer desejo ou medo, apenas uma misteriosa - como poderia chamar isso? -, uma misteriosa "paz". O
limite da dor não era o seu limite; podia ir além dele.
Pensou em todos os seres humanos que sofriam sem pedir, e ali estava ela, provocando seu próprio sofrimento - mas aquilo não importava mais, havia cruzado as fronteiras do corpo, e agora lhe restava apenas a alma, a "luz", uma espécie de vazio - que alguém, algum dia, chamou de Paraíso. Existem certos sofrimentos que só podem ser esquecidos quando podemos flutuar acima de nossas dores.
A próxima coisa de que se lembrou foi de Ralf pegando-a no colo, tirando a jaqueta e a colocando em seu ombro. Devia ter desmaiado de frio, mas pouco importava; estava contente, não tinha medo - havia vencido. Não se humilhara diante daquele homem.
Os minutos se transformaram em horas, ela devia ter dormido em seus braços, porque quando acordou, embora ainda fosse noite, estava em um quarto com um aparelho de TV
em um dos cantos, e mais nada. Branco, vazio.
Ralf apareceu com um chocolate quente.
- Tudo bem - disse ele. - Você chegou aonde devia chegar.
- Não quero chocolate, quero vinho. E quero descer para nosso lugar, a lareira, os livros espalhados por todo canto.
Tinha dito "nosso lugar". Não era o que havia planejado.
Olhou os seus pés; afora um pequeno corte, havia apenas marcas vermelhas, que deviam desaparecer em algumas horas. Com certa dificuldade, desceu as escadas sem prestar muita atenção a nada; foi para o seu canto, no tapete ao lado da lareira - descobrira que sempre que estava ali ela se sentia bem, como se fosse o seu "sítio", seu lugar naquela casa.
- O tal lenhador me disse que, quando se faz um tipo de exercício físico, quando se exige tudo de seu corpo, a mente ganha uma força espiritual estranha, que tem a ver com a
"luz" que vi em você. O que sentiu?
- Que a dor é amiga da mulher.
- Esse é o perigo.
- Que a dor tem um limite.
- Essa é a salvação. Não se esqueça disso.
A mente de Maria ainda estava confusa; experimentava a tal
"paz", quando fora além do seu limite. Ele lhe mostrara outro tipo de sofrimento, e também esse lhe dera um estranho prazer.
Ralf pegou uma grande pasta, e abriu-a na sua frente. Eram desenhos.
- A história da prostituição. Foi o que você me pediu, quando nos encontramos.
Sim, havia pedido, mas era apenas uma maneira de passar o tempo, de tentar ser interessante. Isso não tinha a menor importância agora.
- Durante todos estes dias, estive navegando em um mar desconhecido. Não achei que houvesse uma história, pensava apenas que era a profissão mais antiga do mundo, como dizem as pessoas. Mas existe uma história; melhor dizendo, duas histórias.
- E estes desenhos?
Ralf Hart pareceu um pouco decepcionado porque ela não o compreendia, mas logo controlou-se e seguiu adiante.
- São as coisas que coloquei no papel enquanto lia, pesquisava, aprendia.
- Falaremos disso outro dia; hoje não quero mudar de assunto, preciso entender a dor.
- Você a sentiu ontem, e descobriu que ela a conduzia ao prazer. Você a sentiu hoje, e encontrou a paz. Por isso eu lhe digo: não se acostume, porque é muito fácil poder viver com ela, é uma droga poderosa. Está no nosso cotidiano, no sofrimento escondido, na renúncia ao amor, quando o culpamos pela derrota de nossos sonhos. A dor assusta quando mostra sua verdadeira face, mas é sedutora quando está vestida de sacrifício, renúncia. Ou covardia. O ser humano, por mais que a rejeite, sempre encontra um meio de estar com ela, namorá- la, fazer com que seja parte da sua vida.
- Não acredito. Ninguém deseja sofrer.
- Se você conseguir entender que pode viver sem sofrimento, já é um grande passo, mas não creia que outras pessoas irão compreendê- la. Sim, ninguém deseja sofrer, e mesmo assim quase todos procuram a dor, o sacrifício, e sentem-se justificados, puros, merecedores do respeito dos filhos, dos maridos, dos vizinhos, de Deus. Não pensemos nisso agora, saiba apenas que o que move o mundo não é a busca do prazer, mas da renúncia a tudo que é importante.
"O soldado vai para a guerra matar o inimigo? Não: vai morrer por seu país. A mulher gosta de mostrar ao marido 0 quanto está contente? Não: quer que ele veja o quanto se dedica, o quanto sofre para vê-lo feliz. O marido vai para o trabalho achando que encontrará sua realização pessoal? Não: está dando seu suor e suas lágrimas pelo bem da família. E por aí vai: filhos que renunciam aos sonhos para alegrar os pais, pais que renunciam à vida para alegrar os filhos, dor e sofrimento justificando aquilo que devia trazer apenas alegria: amor."
- Pare.
Ralf parou. Era o momento certo para mudar de assunto, e come çou a mostrar um desenho após o outro. No início, tudo parecia confuso, havia contornos de pessoas - mas também rabiscos, cores, traços nervosos ou geométricos. Aos poucos, porém, ela começou a entender o que ele dizia, porque cada palavra sua era acompanhada de um gesto de mão, e cada frase a colocava no mundo de que até então se negara a fazer parte dizendo para si mesma que tudo não passava de um período em sua vida, uma maneira de ganhar dinheiro e nada mais.
- Sim, descobri que não há apenas uma, mas duas histórias sobre a prostituição. A primeira você conhece muito bem porque é também a sua: uma moça bonita, por diversas razões que ela escolheu, ou que escolheram por ela, descobre que a única maneira de sobreviver é vender o seu corpo. Algumas terminam dominando nações, como Messalina fez com Roma, outras se transformam em mitos, como Madame Du Barry, outras ainda namoram a aventura e a desgraça ao mesmo tempo, como a espiã Mata Hari. Mas a maioria jamais irá encontrar um momento de glória ou um grande desafio: serão para sempre meninas do interior que vêm em busca de fama, marido, aventura, e acabam descobrindo uma outra realidade, mergulham nela por algum tempo, se acostumam, acham que estão sempre no controle, e não conseguem fazer mais nada.
"Os artistas continuam fazendo suas esculturas, pinturas, e escrevendo seus livros há mais de três mil anos. Da mesma maneira, as prostitutas continuam seu trabalho através do tempo como se nada tivesse mudado muito. Quer saber detalhes?"
Maria fez que sim com a cabeça. Precisava ganhar tempo, entender a dor, começava a ter a sensação de que algo muito ruim havia saído de seu corpo enquanto caminhava no parque.
- Aparecem prostitutas nos textos clássicos, nos hieróglifos egípcios, na escrita suméria, no Antigo e no Novo Testamento. Mas a profissão só começa a se organizar no século VI a.C., quando o legislador Sólon, na Grécia, institui bordéis controlados pelo Estado, e inicia a cobrança de impostos pelo "comércio da carne". Os homens de negócios atenienses se alegram porque o que antes era proibido agora passa a ser legal. As prostitutas, por seu lado, começam a ser classificadas segundo os impostos que pagam.
"A mais barata é chamada de pornai, escrava que pertence aos donos do estabelecimento. Em seguida, vem a peripatética, que consegue seus fregueses na rua.
Finalmente, no nível mais alto de preço e de qualidade, está a hetaira, à companhia feminina', que acompanha os homens de negócios em suas viagens, freqüenta os restaurantes chiques, é dona de seu próprio dinheiro, dá conselhos, interfere na vida política da cidade. Como você vê, o que aconteceu ontem, acontece também hoje.
"Na Idade Média, por causa das doenças sexualmente transmissíveis..."
Silêncio, medo de gripe, calor da lareira - agora necessária para aquecer seu corpo e sua alma. Maria não quer mais ouvir aquela história - dava- lhe a sensação de que o mundo havia parado, que tudo se repetia, e o homem jamais seria capaz de dar ao sexo o respeito merecido.
- Você não parece interessada.
Ela fez um esforço. Afinal de contas, era o homem a quem decidira entregar seu coração, embora já não estivesse tão segura.
- Não estou interessada naquilo que conheço; isso me entristece. Você me disse que havia outra história.
- A outra história é exatamente o oposto: a prostituição sagrada.
De repente, ela saíra do seu estado sonolento e o escutava com atenção. Prostituição sagrada? Ganhar dinheiro com sexo, e ainda assim aproximar-se de Deus?
- O historiador grego Heródoto escreve a respeito de Babilônia: "Existe ali um costume muito estranho: toda mulher que nasceu na Suméria é obrigada, pelo menos uma vez na vida, a ir até o templo da deusa Ishtar e entregar seu corpo a um desconhecido, como símbolo de hospitalidade, e por um preço simbólico."
Depois iria perguntar quem era esta deusa; talvez também ela a ajudasse a recuperar algo que havia perdido, e não sabia o que era.
- A influência da deusa Ishtar espalhou-se por todo o Oriente Médio, atingiu a Sardenha, Sicília, e os portos do mar Mediterrâneo. Mais tarde, durante o Império Romano, outra deusa, Vesti, exige a virgindade total, ou a entrega total. Para manter o fogo sagrado, mulheres do seu templo se encarregavam de iniciar os jovens e os reis no caminho da sexualidade: cantavam hinos eróticos, entravam em transe, e entregavam seu êxtase ao universo, numa espécie de comunhão com a divindade.
Ralf Hart mostrou uma fotocópia de algumas letras antigas, com a tradução em alemão no pé da página. Declamou-a devagar, traduzindo cada verso: Quando estou sentada à porta de uma taverna, eu, Ishtar, a deusa, sou prostituta, mãe, esposa, divindade. Sou o que chamam de Vida Embora vocês chamem de Morte. Sou o que chamam de Lei Embora vocês chamem de Marginal. Eu sou o que vocês buscam E aquilo que conseguiram. Eu sou aquilo que vocês espalharam E agora recolhem meus pedaços.
Maria soluçou um pouco, e Ralf Hart riu; sua energia vital estava voltando, a "luz"
começava de novo a brilhar. Era melhor continuar com a história, mostrar os desenhos, fazê-la sentir-se amada.
- Ninguém sabe por que a prostituição sagrada desapareceu, depois de haver durado pelo menos dois milênios. Talvez por causa das doenças, ou de uma sociedade que mudou suas regras quando as religiões também mudaram. Enfim, isso não existe mais, e não voltará a existir. Hoje em dia, os homens controlam o mundo, e o termo serve apenas para criar um estigma, e chamar de prostituta qualquer mulher que ande fora da linha. - Você pode ir ao Copacabana amanhã?
Ralf não entendeu a pergunta, mas concordou imediatamente.
Do diário de Maria, na noite em que caminhou descalça pelo jardim Inglês em Genève:
Não me interessa se algum dia já foi sagrado ou não, mas EU ODEIO O QUE FAÇO.
Está destruindo minha alma, me fazendo perder o contato comigo mesma, me ensinando que a dor é uma recompensa, o dinheiro compra tudo, justifica tudo.
Ninguém é feliz à minha volta; os clientes sabem que precisam pagar por aquilo que deveriam ter de graça, e isso é deprimente. As mulheres sabem que precisam vender aquilo que gostariam de entregar apenas por prazer e carinho, e asso é destruidor. Lutei muito antes de escrever isso, aceitar que estava infeliz, descontente - precisava e ainda preciso resistir mais algumas semanas.
Entretanto, não dá mais para ficar quieta, fingir que está tudo normal, que é um período, uma época da minha vida. Quero esquecê- la, preciso amar - só isso, preciso amar.
A vida é curta - ou longa demais - para que eu possa me dar ao luxo de vivê-la tão mal. 194
Não é a casa dele. Não é a sua casa. Não é nem Brasil, nem Suíça, mas um hotel - que pode estar em qualquer lugar do mundo, sempre com os mesmos móveis, e aquele ambiente que pretende ser familiar, o que o faz ainda mais distante.
Não é o hotel com a bela vista para o lago, a lembrança da dor, do sofrimento, do êxtase; suas janelas dão para o Caminho de Santiago, uma rota de peregrinação mas não de penitência, um lugar onde as pessoas se encontram nos cafés à beira da estrada, descobrem a "luz", conversam, ficam amigas, se apaixonam. Está chovendo, e a essa hora da noite ninguém anda por ali, mas andaram durante muitos anos, décadas, séculos - talvez o caminho precise respirar, descansar um pouco dos muitos passos que todos os dias se arrastam por ele.
Apagar a luz. Fechar as cortinas.
Pedir que tire a roupa, tirar também a sua. A escuridão física nunca é total, e quando os olhos já estão acostumados, poder ver, no contorno de uma pequena luz que entra não se sabe de onde, a silhueta do homem. Da outra vez que se encontraram, apenas ela havia deixado parte do seu corpo nu.
Tirar dois lenços, cuidadosamente dobrados, lavados, e enxaguados várias vezes, de modo a não deixar nenhum traço de perfume ou de sabão. Aproximar-se dele e pedir que vende seus olhos. Ele hesita por um momento, e comenta sobre alguns dos infernos por que já passou. Ela diz que não se trata disso, que precisa apenas da escuridão total, que agora é sua vez de ensinar-lhe algo, como ontem ele lhe havia ensinado sobre a dor. Ele se entrega, coloca a venda. Ela faz o mesmo; agora já não há fresta de luz, estão no verdadeiro escuro, um precisa da mão do outro para chegar até a cama.
Não, não devemos nos deitar. Vamos nos sentar como sempre fizemos, frente a frente, só que um pouco mais perto, de modo que meus joelhos toquem os seus joelhos.
Sempre quis fazer isso. Mas nunca tinha o que precisava: tempo. Nem com o seu primeiro namorado, nem com o homem que a penetrou pela primeira vez. Nem com o árabe que pagou mil francos, talvez esperando mais do que ela foi capaz de dar embora mil francos não bastassem para ela comprar o que desejava. Nem com os muitos homens que passaram pelo seu corpo, entraram e saíram de suas pernas, às vezes pensando apenas em si mesmos, às vezes pensando também nela, às vezes com sonhos românticos, às vezes apenas com o instinto de repetir algo porque lhes disseram que é assim que um homem age, e se não agir assim, não é homem.
Lembra-se do seu diário. Está farta, quer que as semanas que faltam passem rapidamente, e por isso entrega-se a este homem, porque ali está a luz de seu próprio amor escondido. O pecado original não foi a maçã que Eva comeu, foi achar que Adão precisava compartilhar exatamente o que ela havia experimentado. Eva tinha medo de seguir o seu caminho sem a ajuda de alguém, então quis dividir o que sentia.
Certas coisas não se dividem. Não devemos ter medo dos oceanos em que mergulhamos por nossa livre vontade; o medo atrapalha o jogo de todo mundo. O homem está passando por infernos para entender isso. Amemos uns aos outros, mas não tentemos possuir uns aos outros.
Eu amo este homem que está diante de mim, porque eu não o possuo, e ele não me possui. Somos livres em nossa entrega, preciso repetir isso dezenas, centenas, milhões de vezes, até que termine por acreditar em minhas próprias palavras.
Pensa um pouco nas outras prostitutas que trabalham com ela. Pensa na sua mãe, nas suas amigas. Todas acreditam que o homem deseja apenas onze minutos por dia, e pagam um dinheirão por isso. Não, não é assim; o homem também é uma mulher; quer encontrar alguém, descobrir um sentido para sua vida.
Será que sua mãe se comporta como ela, e finge ter orgasmo com seu pai? Ou será que, no interior do Brasil, ainda é proibido mostrar que uma mulher tem prazer no sexo?
Sabe tão pouco da vida, do amor, e agora - com os olhos vendados e todo 0 tempo do mundo - vai descobrindo a origem de tudo, e tudo começa onde e como ela gostaria de ter começado.
O toque. Esquece as prostitutas, os clientes, sua mãe e seu pai, agora está na escuridão total. Passou a tarde inteira procurando o que poderia dar para um homem que lhe devolvia a dignidade, lhe fazia entender que a busca da alegria é mais importante do que a necessidade da dor.
Eu gostaria de lhe dar a felicidade de ensinar- me algo novo, como ontem me ensinou sobre sofrimento, prostitutas de rua, prostitutas sagradas. Vi que é feliz quando está me fazendo aprender algo, então que me faça aprender, que me guie. Eu gostaria de saber como se chega até o corpo, antes de se chegar na alma, na penetração, no orgasmo.
Estende o braço em sua direção, e pede que ele faça o mesmo. Sussurra poucas palavras, dizendo que aquela noite, naquele lugar de ninguém, gostaria que ele descobrisse sua pele, a fronteira entre ela e o mundo. Pede que a toque, que a sinta com suas mãos, porque os corpos se entendem, embora nem sempre as almas estejam de acordo. Ele começa a tocá- la, ela também o toca, e ambos, como se tivessem combinado tudo antes, evitam as partes do corpo em que a energia sexual aflora mais rapidamente.
Os dedos tocam o seu rosto, ela sente um pouco o cheiro de tinta, um cheiro que sempre permanecerá ali, por mais que ele lave aquelas mãos milhares, milhões de vezes, que estava ali quando nasceu, quando ele deve ter visto a primeira árvore, a primeira casa, e ter decidido desenhá - la em seus sonhos. Também ele deve estar sentindo algum cheiro em sua mão, mas ela não sabe o que é, e não quer perguntar, porque neste momento tudo é corpo, o resto é silêncio.
Acaricia, e sente-se acariciada. Poderia ficar assim a noite inteira, porque é gostoso, não vai terminar necessaria mente em sexo - e neste momento, justamente porque não tem obrigação, ela sente um calor entre as pernas, e sabe que ficou úmida. Vai chegar a hora em que ele tocará o seu sexo, descobrirá que está molhado, não sabe se é bom ou ruim, mas é assim que seu corpo está reagindo, e não pretende dizer para ir por aqui, ir por ali, mais devagar, mais rápido. As mãos do homem agora estão tocando as suas axilas, os pêlos de seus braços se eriçam, ela tem vontade de empurrá- las dali - mas é bom, embora talvez seja dor o que esteja sentindo. Faz o mesmo nele, nota que as axilas têm uma textura diferente, talvez por causa do desodorante que ambos usam, mas no que está pensando? Não deve pensar. Deve tocar, isso é tudo.
Os dedos dele traçam círculos em torno do seu seio, como um animal que espreita.
Ela quer que se movam mais rápido, que toque logo os bicos, porque o seu pensamento está indo mais veloz que as mãos dele, mas, talvez sabendo disso, ele provoca, delicia-se, e tarda uma infinidade até chegar ali. Estão duros, ele brinca um pouco, e aquilo deixa o seu corpo mais arrepiado, e seu sexo mais quente e mais úmido. Agora ele passeia por seu ventre, desvia-se e vai até as pernas, os pés, sobe e desce as mãos pelo lado interno de suas coxas, sente o calor, mas não se aproxima, é um toque doce, leve, e quanto mais leve, mais alucinante.
Ela faz o mesmo, mantendo as mãos quase flutuando, tocando apenas os cabelos das pernas, e também sente o calor, quando se aproxima do sexo. De repente é como se tivesse recuperado misteriosamente a virgindade, como se descobrisse pela primeira vez o corpo de um homem. Toca-o. Não está duro como imaginava, e ela está toda molhada, isso é injusto, mas talvez o homem precise de mais tempo, sei lá.
E começa a acariciá- lo como só as virgens sabem fazer, porque as prostitutas já se esqueceram. O homem reage, o sexo começa a crescer em suas mãos, e ela aumenta lentamente a pressão, sabendo agora onde deve tocar, mais na parte de baixo que na de cima, deve envolvê- lo com os dedos, puxar a pele para trás, em direção ao corpo. Agora ele está excitado, muito excitado, toca os lábios de sua vagina, mantendo a suavidade, e ela tem vontade de pedir que seja mais forte,, coloque os dedos lá dentro, na parte de cima. Mas ele não faz isso, espalha no clitóris um pouco do líquido que jorra de seu ventre, e de novo faz os mesmos movimentos circulares que fez nos seus mamilos. Aquele homem a toca como se fosse ela mesma.
Uma das mãos dele subiu de novo para o seu seio, como é bom, como gostaria que ele a abraçasse agora. Mas não, estão descobrindo o corpo, têm tempo, precisam de muito tempo. Podiam fazer amor agora, seria a coisa mais natural do mundo, e possivelmente seria bom, mas tudo aquilo é tão novo, precisa controlar-se, não quer estragar tudo.
Lembra-se do vinho que tomaram na primeira noite, lentamente, sorvendo cada gole, sentindo que a esquentava, a fazia ver o mundo diferente, a deixava mais solta e mais em contato com a vida.
Deseja também beber aquele homem, e então poderá esquecer para sempre o mau vinho, que se toma de um gole, dá uma sensação de embriaguez, mas termina em dor de cabeça e um buraco na alma.
Ela pára, suavemente entrelaça seus dedos nas mãos dele, escuta um gemido e tem vontade de gemer também, mas se controla, sente que aquele calor se espalha por todo o seu corpo, o mesmo deve estar acontecendo com ele. Sem orgasmo a energia se dispersa, vai até o cérebro, não a deixa pensar em mais nada a não ser em ir até o final, mas é isso que ela quer - parar, parar no meio, espalhar o prazer por todo o corpo, invadir a mente, renovar o compromisso e o desejo, voltar a ser virgem.
Tira suavemente a venda dos seus próprios olhos, e faz o mesmo com ele. Acende a luz da mesa-de-cabeceira. Os dois estão nus, e não sorriem, apenas se olham. Eu sou o amor, eu sou a música, pensa ela. Vamos dançar.
Mas não diz nada disso: conversam alguma coisa trivial, quando vamos nos encontrar de novo, ela marca uma data, talvez daqui a dois dias. Ele diz que gostaria que o acompanhasse em uma exposição, ela vacila. Isso significaria conhecer seu mundo, seus amigos, e o que vão dizer, o que vão pensar.
Diz que não. Mas ele percebe que sua vontade era dizer sim, então insiste, usando alguns argumentos tolos, mas que fazem parte da dança que estão dançando agora, ela termina por ceder, porque era isso que queria. Marca um lugar para se encontrarem, no mesmo café a que foram no primeiro dia. Ela diz que não, os brasileiros são supersticiosos, e não devem se encontrar no lugar onde se viram no primeiro dia, porque aquilo pode fechar um ciclo, e acabar tudo.
Ele diz que está contente, porque ela não quer fechar este ciclo. Decidem por uma igreja de onde se pode ver a cidade, e que está no Caminho de Santiago, parte da misteriosa peregrinação que os dois têm feito desde que se encontraram.
Do diário de Maria, na véspera de comprar sua passagem de avião para o Brasil: Era uma vez um pássaro. Adornado com um par de asas perfeitas e plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas. Enfim, um animal feito para voar livre e solto do céu, alegrar quem o observasse.
Um dia, uma mulher viu este pássaro e se apaixonou por ele. Ficou olhando o seu vôo com a boca aberta de espanto, o coração batendo mais rápido, os olhos brilhando de emoção. Convidou-o para voar com ela, e os dois viajaram pelo céu em completa harmonia.
Ela admirava, venerava, celebrava o pássaro.
Mas então pensou: talvez ele queira conhecer algumas montanhas distantes! E a mulher sentiu medo. Medo de nunca mais sentir aquilo com outro pássaro. E sentiu inveja, inveja da capac idade de voar do pássaro.
E sentiu-se sozinha.
E pensou: "Vou montar uma armadilha. A próxima vez que o pássaro surgir, ele não mais partirá."
O pássaro, que também estava apaixonado, voltou no dia seguinte, caiu na armadilha, e foi preso na gaiola.
Todos os dias ela olhava o pássaro. Ali estava o objeto de sua paixão, e ela mostrava para suas amigas, que comentavam: Mas você é uma pessoa que tem tudo." Entretanto, uma estranha transformação começou a processar-se: como tinha o pássaro, e já não precisava conquistá- lo, foi perdendo o interesse. O pássaro, sem poder voar e exprimir o sentido de sua vida, foi definhando, perdendo o brilho, ficou feio - e a mulher já não prestava mais atenção nele, apenas na maneira como o alimentava e como cuidava de sua gaiola.
Um belo dia, o pássaro morreu. Ela ficou profundamente triste, e vivia pensando nele.
Mas não se lembrava da gaiola, recordava apestas o dia em que o vira pela primeira vez, voando contente entre as nuvens.
Se ela observasse a si mesma, descobriria que aquilo que a emocionava tanto no pássaro era a sua liberdade, a energia das asas em movimento, não o seu corpo físico.
Sem o pássaro, sua vida também perdeu o sentido, e a morte veio bater à sua porta.
"Por que você veio perguntou à morte.
"Para que você possa voar de novo com ele nos céus'; respondeu a morte. "Se o tivesse deixado partir e voltar sempre, você o amaria e o admiraria ainda mais, - entretanto, agora você precisa de mim para poder encontrá-lo de novo."
Começou o dia fazendo algo que ensaiara durante todos aqueles meses: entrar em uma agência de viagens e comprar uma passagem para o Brasil, na data que marcara em seu calendário.
Agora faltavam apenas mais duas semanas na Europa. A partir daquele momento, Genève seria o rosto de um homem que amo u, e por quem fora amada. A Rue de Berne seria um nome, homenagem à capital da Suíça. Lembraria do seu quarto, do lago, da língua francesa, das loucuras que uma menina de vinte e três anos (seu aniversário fora na véspera) é capaz de fazer - até entender que há um limite.
Não iria prender o pássaro, ou pedir que a acompanhasse ao Brasil; ele era a única coisa verdadeiramente pura que lhe havia acontecido. Um pássaro como esse tem que voar livre, alimentar-se da saudade de um tempo em que voou junto com alguém. E ela também era um pássaro; ter Ralf Hart ao seu lado seria lembrar para sempre dos dias no Copacabana. E isso era seu passado, não o seu futuro.
Decidiu que ia dizer "adeus" apenas uma vez, quando chegasse o momento da partida; não ficaria sofrendo a cada lembrança de que "em breve já não estarei mais aqui". Portanto, enganou seu coração e caminhou por Genève naquela manhã como tivesse sempre passeado por aquelas ruas, a colina, o Caminho de Santiago, a ponte de Montblanc, os bares que costumava frequentar. Acompanhou o vôo das gaivotas no rio, os comerciantes recolhendo as barracas, as pessoas saindo dos seus escritórios para almoçar, a cor e o gosto da maçã que estava comendo, os aviões pousando a distância, o arco-íris na coluna de água que subia do meio do lago, a alegria tímida e escondida de todos que passavam por ela, os olhares de desejo, os olhares sem expressão, os olhares. Vivera quase um ano em uma cidade pequena, como tantas outras cidades pequenas no mundo, e se não fosse pela arquitetura peculiar e pelo excesso de letreiros de bancos, ela podia estar no interior do Brasil. Havia feira. Havia mercado. Havia donas de casa discutindo o preço. Havia estudantes que haviam deixado a aula antes da hora, talvez com alguma desculpa sobre pai e mãe doentes, e agora passeavam e se beijavam nas margens do rio. Havia gente que se sentia em casa, e gente que se sentia estrangeira. Havia jornais que falavam de escândalos, e respeitáveis revistas para homens de negócios que, por sinal, só eram vistos lendo jornais sobre escândalos.
Foi até a biblioteca devolver o manual sobre administração de fazendas. Não tinha entendido nada, mas o livro lhe recordara, nos momentos em que pensava ter perdido o controle de si mesma e de seu destino, qual era o objetivo de sua vida. Tinha sido um companheiro silencioso, com sua capa amarela sem desenhos, uma série de gráficos, mas, sobretudo, tinha sido um farol nas noites escuras das semanas mais recentes.
Sempre fazendo planos para o futuro. E sempre sendo surpreendida pelo presente, dizia a si mesma. Pensava em como havia descoberto a si mesma através da independência, do desespero, do amor, da dor, para logo encontrar-se com o amor de novo - e gostaria que as coisas terminassem por ali.
O mais curioso disso tudo é que, enquanto algumas de suas companheiras de trabalho falavam das virtudes e do êxtase por estar com certos homens na cama, ela jamais tinha se descoberto melhor ou pior através do sexo. Não resolvera seu problema, era incapaz de ter um orgasmo com a penetração, e vulgarizara tanto o ato sexual que talvez não conseguisse nunca mais encontrar no "abraço do reencontro" -como Ralf Hart o chamava - o fogo e a alegria que buscava.
Ou talvez (como costumava pensar de vez em quando) sem amor fosse impossível ter qualquer prazer na cama, como diziam as mães, os pais, os livros românticos.
A bibliotecária, normalmente séria (e sua única amiga, embora jamais lhe tivesse dito isso), estava de bom humor. Atendeu-a na hora do almoço e convidou-a para compartilhar um sanduíche. Maria agradeceu e disse que tinha acabado de almoçar.
- Você demorou muito para ler.
- Não entendi nada.
- Você se lembra do que me pediu uma vez?
Não, não lembrava, mas depois que viu o sorriso malicioso no ar da mulher à sua frente, imaginou o que teria sido. Sexo.
- Sabe, desde que você veio aqui procurando por este tipo de assunto, eu resolvi fazer um levantamento do que tínhamos. Não era muito, e como precisamos educar nossa juventude, eu encomendei alguns. Assim, não precisam aprender da pior maneira possível, com prostitutas, por exemplo.
A bibliotecária apontou para uma pilha de livros em um canto, todos cuidadosamente encapados com papel pardo.
- Ainda não tive tempo de classificá-los, mas andei dando uma olhada e fiquei horrorizada com o que descobri.
Bem, já podia adivinhar o que a mulher diria: posições constrangedoras, sadomasoquismo, e coisas deste tipo. Melhor dizer que tinha que voltar a trabalhar (não sabia onde tinha dito que trabalhava, se em um banco, ou em uma loja - mentira dava muito trabalho, ela se esquecia sempre).
Agradeceu, fez sinal de que ia sair, mas a outra comentou:
- Você também ia ficar horrorizada. Por exemplo: sabia que o clitóris é uma invenção recente?
Invenção? Recente? Ainda esta semana alguém tinha tocado no seu, como se sempre estivesse ali, e como se aquelas mãos conhecessem bem o terreno que estava sendo explorado - apesar da escuridão completa.
- Foi oficialmente aceito em 1559, depois que um médico, Realdo Columbo, publicou um livro chamado De re anatomica. Durante mil e quinhentos anos da era cristã, ele foi oficialmente ignorado. Columbo o descreve, em seu livro, como "uma coisa bonita e útil", você acredita?
As duas riram.
- Dois anos depois, em 1561, outro médico, Gabrielle Fallopio, disse que a
"descoberta" tinha sido dele. Veja só! Dois homens, italianos, claro, que entendem do assunto, discutindo quem havia oficialmente colocado o clitóris na história do mundo!
Aquela conversa era interessante, mas Maria não queria pensar no assunto, principalmente porque sentia de novo 0 líquido escorrendo, e o sexo ficando molhado -só de lembrar do toque, das vendas, das mãos que passeavam no seu corpo. Não, não estava morta para o sexo, aquele homem a havia resgatado de alguma maneira. Que bom continuar viva.
A bibliotecária, porém, estava entusiasmada:
- Mesmo depois de "descoberto", continuou a ser desrespeitado - disse ela, parecendo uma perita em clitoriologia, ou seja lá qual fosse o nome desta ciência. -As mutilações que lemos hoje nos jornais, praticadas por certas tribos da África que ainda tiram da mulher o direito ao prazer, não são nenhuma novidade. Aqui mesmo na Europa, no século XIX, ainda se faziam operações para eliminar o clitóris, acreditando que naquela pequena e insignificante parte da anatomia feminina estava toda a fonte de histeria, epilepsia, tendência ao adultério e incapacidade de ter filhos.
Maria estendeu a mão para despedir -se, mas a bibliotecária não dava sinais de cansaço.
- Pior ainda, nosso querido Freud, o descobridor da psicanálise, dizia que o orgasmo feminino, em uma mulher normal, deve mover-se do clitóris para a vagina. Seus mais fiéis seguidores, desenvolvendo esta tese, passaram a afirmar que o fato de manter o prazer sexual concentrado no clitóris era um sinal de infantilidade, ou, o que é pior, de bissexualidade.
"E no entanto, como rodas nós sabemos, é muito difícil ter um orgasmo apenas com a penetração. É bom ser possuída por um homem, mas o prazer está naquele grãozinho ali, descoberto por um italiano!"
Distraída, Maria reconheceu que tinha o problema diagnosticado por Freud: ainda era infantil, seu orgasmo não tinha se deslocado para a vagina. Ou será que Freud estava errado?
- E o ponto G, o que você acha?
- A senhora sabe onde fica?
A mulher ficou corada, tossiu, mas teve coragem de responder:
- Logo que você entra, no primeiro andar, janela dos fundos.
Genial! Descrevera a vagina como um edifício! Talvez tivesse lido aquela explicação em um livro para meninas: depois que alguém bater à porta e entrar, vai descobrir todo um universo dentro do próprio corpo. Sempre que se masturbava, preferia o tal ponto G ao clitóris, já que este lhe dava uma certa aflição, um prazer misturado com agonia, algo angustiante.
Ia sempre para o primeiro andar, janela dos fundos!
Vendo que a mulher não ia parar de falar - talvez tivesse acabado de descobrir nela uma cúmplice de sua própria sexualidade perdida -, acenou com a mão, saiu, e procurou continuar se concentrando em qualquer bobagem, porque não era dia de pensar em despedidas, clitóris, virgindade refeita, ou ponto G. Prestou atenção nos ruídos - sinos que tocavam, cachorros latindo, o tram (que era como eles chamavam os bondes locais) rangendo nos trilhos, os passos, a respiração, os letreiros que ofereciam tudo.
Já não tinha vontade de voltar ao Copacabana. Mesmo assim sentia-se na obrigação de levar seu trabalho até o final, embora desconhecesse a verdadeira razão - afinal de contas, já tinha conseguido economizar o suficiente. Durante aquela tarde, podia fazer algumas compras, conversar com um ge rente de banco que era seu cliente mas que havia prometido ajudá- la com suas economias, tomar um café, mandar pelo correio algumas roupas que não caberiam na bagagem. Estranho, estava um pouco triste, não conseguia entender; talvez porque ainda faltassem duas semanas, precisava fazer passar o tempo, olhar a cidade com outros olhos, alegrar-se por ter vivido tudo aquilo.
Chegou a um cruzamento que já atravessara centenas de vezes; dali podia ver o lago, a coluna de água e - no meio do jardim que se estendia do outro lado da calçada - o belo relógio de flores, um dos símbolos da cidade, e ele não a deixava mentir, porque...
De repente, o tempo, o mundo ficou imóvel.
Que história era aquela de virgindade recém-recuperada, que pensava desde que acordara?
O mundo parecia congelado, aquele segundo não passava nunca, ela estava diante de algo muito sério e muito importante em sua vida, não podia esquecer, não podia fazer como os seus sonhos noturnos; sempre prometia anotá-los, e nunca se lembrava...
"Não pense em nada. O mundo parou. O que está acontecendo?"
CHEGA!
O pássaro, a linda história do pássaro que acabara de escrever, era sobre Ralf Hart?
Não, era sobre ela mesma!
PONTO FINAL!
Eram 11:11h da manhã, e ela estava parando naquele momento. Era uma estrangeira em seu próprio corpo, estava redescobrindo a virgindade recém-recuperada, mas seu renascer era tão frágil, que se continuasse ali estaria perdida para sempre. Experimentara o céu talvez, o inferno com certeza, mas a aventura chegava ao final. Não podia esperar duas semanas, dez dias, uma semana - precisava ir embora correndo - porque, ao olhar aquele relógio cheio de flores, com turistas tirando fotografias e crianças brincando ao redor, acabara de descobrir o motivo de sua tristeza.
E o motivo era o seguinte: não queria voltar.
E a razão não era Ralf Hart, a Suíça, a aventura. A verdadeira razão era simples demais: dinheiro.
Dinheiro! Um pedaço de papel especial, pintado com cores sóbrias, que todo mundo dizia valer alguma coisa - e ela acreditava, todos acreditavam nisso - até o momento em que fosse com uma montanha daquele papel a um banco, um respeitável, tradicional, secretíssimo banco suíço, e pedisse: "Posso adquirir um pouco de horas para minha vida?"
"Não, senhora, não vendemos isso; só compramos."
Maria foi despertada de seu delírio pela freada de um carro, a reclamação de um motorista, e um velhinho sorridente, falando inglês, e pedindo que recuasse - o sinal estava fechado para pedestres.
"Bem, acho que descobri algo que todo mundo deve saber."
Mas não sabiam: olhou à sua volta, pessoas andando de cabeça baixa, correndo para ir ao trabalho, à escola, a uma agência de empregos, à Rue de Berne, sempre dizendo: "Posso esperar um pouco mais. Tenho um sonho, mas ele não precisa ser vivido hoje, porque preciso ganhar dinheiro." Claro, seu emprego era amaldiçoado - mas no fundo tratava-se apenas de vender seu tempo, como todo mundo. Fazer coisas de que não gostava, como todo mundo. Aturar gente insuportável, como todo mundo. Entregar seu precioso corpo e sua preciosa alma em nome de um futuro que nunca chegava, como todo mundo. Dizer que ainda não tinha o bastante, como todo mundo. Aguardar só mais um pouquinho, como todo mundo. Esperar mais um pouco, ganhar algo mais, deixar para realizar seus desejos depois, no momento estava muito ocupada, tinha uma oportunidade diante de si, clientes que a esperavam, que eram fiéis, que podiam pagar de trezentos e cinqüenta até mil francos por noite.
E pela primeira vez na vida, apesar de todas as coisas boas que podia comprar com o dinheiro que ganhasse - quem sabe, apenas mais um ano? -, ela resolveu consciente, lúcida e propositadamente deixar passar uma oportunidade.
Maria esperou que o sinal abrisse, atravessou a rua, parou diante do relógio de flores, pensou em Ralf, sentiu de novo o seu olhar de desejo na noite em que abaixara parte de seu vestido, sentiu suas mãos lhe tocando os seios, o sexo, o rosto, ficou molhada, olhou para a imensa coluna de água a distância, e sem precisar tocar uma só parte de seu corpo - teve um orgasmo ali, na frente de todo mundo.
Ninguém notou; todos estavam muito, muito ocupados.
Nyah, a única de suas colegas com que tinha uma relação próxima do que se poderia chamar de amizade, chamou-a assim que entrou. Estava sentada com um oriental, e os dois riam. - Veja isso - disse a Maria. - Veja o que quer que eu faça com ele!
O oriental, fazendo um olhar cúmplice e mantendo o sorriso nos lábios, abriu a tampa de uma espécie de caixa de charutos. De longe, Milan espichou o olho para ver se não se tratava de seringas ou drogas. Não, era apenas aquela coisa que nem ele entendia direito como funcionava, mas não era nada de especial.
- Parece coisa do século passado! - disse Maria.
- É coisa do século passado - concordou o oriental, indignado com a ignorância do comentário. - Este aí tem mais de cem anos, e custou uma fortuna.
O que Maria via era uma série de válvulas, uma manivela, circuitos elétricos, pequenos contatos de metal, pilhas. Parecia o interior de um antigo aparelho de rádio, com dois fios saindo, em cujas extremidades estavam pequenos bastões de vidro, do tamanho de um dedo. Nada que pudesse custar uma fortuna.
- Como funciona?
Nyah não gostou da pergunta de Maria. Embora confiasse na brasileira, as pessoas mudam de uma hora para outra, e ela podia estar de olho no seu cliente.
- Ele já me explicou. É o Bastão Violeta.
E, virando-se para o oriental, sugeriu que saíssem, porque decidira aceitar o convite.
Mas o homem parecia entusiasmado com o interesse que seu brinquedo despertava.
- Por volta de 1900, quando as primeiras pilhas começaram a circular no mercado, a medicina tradicional começou a fazer experiências com eletricidade, para ver se curava doenças mentais ou histeria. Também foi usada para combater espinhas e estimular a vitalidade da pele. Está vendo estas duas extremidades? Elas eram colocadas aqui -apontou para suas têmporas - e a bateria provocava a mesma descarga estática que sofremos quando o ar está muito seco.
Aquilo era uma coisa que jamais acontecia no Brasil, mas na Suíça er a muito comum, Maria descobrira quando certo dia, ao abrir a porta de um táxi escutara um estalido e levara um choque. Achou que tinha sido um problema do carro, reclamou, disse que não ia pagar a corrida, e o chofer quase a agrediu, chamando-a de ignorante. Ele tinha razão; não era o carro, era o ar muito seco. Depois de vários choques, passou a ter medo de tocar em qualquer coisa de metal, até que descobriu em um supermercado uma pulseira que descarregava a eletricidade acumulada no corpo.
Virou-se para o oriental:
- Mas é extremamente desagradável!
Nyah estava cada vez mais impaciente com os comentários de Maria. Para evitar futuros conflitos com sua única possível amiga, mantinha o braço em torno do ombro do homem, de modo a não deixar nenhuma dúvida sob re a quem ele pertencia.
- Depende de onde você colocar - o oriental riu alto.
Em seguida, girou a pequena manivela, e os dois bastões pareceram ficar da cor violeta. Em um movimento rápido, ele encostou-os nas duas mulheres; houve o estalido, mas o choque parecia mais uma espécie de coceira que dor.
Milan aproximou-se.
- Por favor, não use isso aqui.
O homem tornou a colocar os bastões na caixa. A filipina aproveitou a oportunidade e sugeriu que fossem logo para o hotel. O oriental pareceu um pouco decepcionado, a recémchegada estava muito mais interessada no Bastão Violeta do que a mulher que agora o convidava para sair. Vestiu seu casaco, guardou a caixa dentro de uma pasta de couro, comentando:
- Hoje em dia estão fabricando de novo, virou uma espécie de moda entre pessoas que procuram prazeres especiais. Mas este que você viu aí só pode ser encontrado em raras coleções médicas, museus ou antiquários.
Milan e Maria ficaram parados, sem saber o que dizer.
- Você já tinha visto isso?
- Deste tipo, não. Deve realmente custar uma pequena fortuna, mas este homem é um alto executivo de uma companhia petrolífera. Já vi outros, modernos.
- E o que fazem?
- Enfiam no corpo... e pedem que a mulher gire a manivela. Levam o choque lá dentro.
- Não podiam fazer isso sozinhos?
- Qualquer coisa em sexo você pode fazer sozinho. Mas é melhor que continuem achando que tem mais graça quando estão com outra pessoa, ou meu bar iria à falência e você teria que trabalhar em uma loja de verduras. Por falar nisso, o seu cliente especial disse que virá hoje à noite. Por favor, recuse qualquer convite.
- Recusarei. Inclusive o dele. Porque vim apenas despedirme, estou indo embora.
Milan pareceu não acusar o golpe.
- O pintor?
- Não. O Copacabana. Existe um limite, e cheguei a ele esta manhã, enquanto olhava aquele relógio de flores perto do lago.
- Qual é o limite?
- O preço de uma fazenda no interior do Brasil. Sei que posso ganhar mais, trabalhar mais um ano, que diferença faria, não é verdade?
"Pois eu sei a diferença: estaria para sempre nesta armadilha, como você está, e estão os clientes, os executivos, os comissários de bordo, os caçadores de talento, os executivos de companhias de discos, os muitos homens que conheci, a quem vendi meu tempo, e que não podem me vendê- lo de volta. Se eu ficar mais um dia, fico mais um ano, e se ficar mais um ano, não sairei nunca."
Milan fez um discreto sinal afirmativo, como se entendesse e concordasse com tudo, embora não pudesse dizer nada - porque podia contagiar todas as meninas que trabalhava m para ele. Mas era um homem bom, e embora não tivesse dado sua bênção, tampouco fez menção de tentar convencer a brasileira de
Do diário de Maria, ao voltar para casa:
Não me lembro mais quando foi, mas em um domingo desses, resolvi entrar numa igreja para assistir à missa. Depois de muito tempo esperando, foi que me dei conta de que estava no lugar errado - era um templo protestante.
Ia sair, mas o pastor começou o sermão, achei que seria indelicado levantar- me - e isso foi uma bênção, porque naquele dia escutei coisas que precisava muito ouvir.
O pastor disse algo como:
"Em todas as línguas do mundo existe um mesmo ditado: o que os olhos não vêem, o coração não sente. Pois eu afirmo que não há nada mais falso do que isso; quanto mais longe, mais perto do coração estão os sentimentos que procuramos sufocar e esquecer. Se esta era uma estrangeira em uma terra estrangeira, e agradeci por ter me lembrado de que o que os olhos não vêem, o coração sente. E por ter sentido tanto, hoje vou embora.
Pegou as duas malas e colocou-as em cima da cama; sempre estiveram ali, esperando o dia em que tudo chegaria ao final. Imaginava que iria enchê - las de muitos presentes, vestidos novos, fotos na neve e nas grandes capitais européias, lembranças de um tempo feliz em que havia conhecido o país mais seguro e mais generoso do mundo. Tinha alguns vestidos novos, era verdade, e algumas fotos na neve que um dia caíra em Genève mas, afora isso, nada mais seria como havia imaginado.
Chegara com o sonho de ganhar muito dinheiro, aprender sobre a vida e sobre quem era, comprar uma fazenda para os pais, encontrar um marido, e trazer a família para conhecer onde morava. Voltava com o dinheiro exato para realizar um sonho, sem ter visitado as montanhas, e - o que era pior - uma estranha para si mesma. Mas estava contente, sabia que era chegado o momento de parar.
Pouca gente no mundo reconhece esse momento.
Vivera apenas quatro aventuras - ser dançarina em um cabaré, aprender francês, trabalhar como prostituta e amar perdidamente um home m. Quantas pessoas podem vangloriar-se de tanta emoção em um ano? Estava feliz, apesar da tristeza, e aquela tristeza tinha um nome, não se chamava prostituição, nem Suíça, nem dinheiro, mas Ralf Hart.
Embora jamais tenha reconhecido, no fundo do coração gostaria de ter se casado com ele, o homem que agora a esperava em uma igreja, pronto para levá-la a conhecer seus amigos, sua pintura, seu mundo.
Pensou em faltar ao encontro, hospedar-se em um hotel perto do aeroporto, já que o vôo saía na manhã seguinte; a partir de agora, cada minuto passado ao seu lado seria um ano de sofrimento no futuro, por tudo aquilo que ela poderia ter dito e não diria, pelas lembranças da sua mão, de sua voz, de seu apoio, de suas histórias.
Abriu de novo a mala, retirou o pequeno vagão do trem elétrico que ele lhe dera na primeira noite em seu apartamento. Contemplou-o por alguns minutos e jogou-o no lixo; aquele trem não merecia conhecer o Brasil, tinha sido inútil e injusto para com a criança que sempre o desejara.
Não, não iria à igreja; talvez ele lhe perguntasse algo, e se respondesse a verdade -
"estou indo embora" - ele iria pedir que ficasse, prometeria tudo para não perdê- la naquele momento, declararia seu amor já demonstrado em todo o tempo que passaram juntos. Mas tinham aprendido a conviver em liberdade, e nenhuma outra relação iria dar certo - talvez esta fosse a única razão pela qual ambos se amavam, porque sabiam que um não precisava do outro. Os homens sempre se assustam quando uma mulher diz "eu quero depender de você", e Maria gostaria de levar consigo a imagem de um Ralf Hart apaixonado, entregue, pronto a qualquer coisa por ela.
Ainda tinha tempo de decidir se ia ou não ao encontro; no momento precisava concentrar-se em coisas mais práticas. Viu quantas coisas tinha deixado fora das malas, sem saber onde colocá-las. Resolveu que o dono do imóvel tomaria a decisão, quando entrasse no apartamento e encontrasse os eletrodomésticos na cozinha, os quadros comprados em um mercado de segunda mão, as toalhas e as roupas de cama. Não poderia levar nada disso para o Brasil, mesmo que seus pais necessitassem mais do que qualquer mendigo suíço; elas sempre iriam lembrá-la de tudo a que se aventurou.
Saiu, foi até o banco e pediu para retirar todo o dinheiro que tinha ali depositado. O
gerente - que já freqüentara sua cama disse que era uma má idéia, aqueles francos poderiam continuar rendendo, e ela receberia os juros no Brasil. Além do mais, caso fosse roubada, seriam muitos meses de trabalho perdido. Maria hesitou por um momento, achando - como sempre achava - que estavam querendo ajudá- la de verdade. Mas, depois de refletir um pouco, concluiu que o objetivo daquele dinheiro não era transformar-se em mais papel, mas em uma fazenda, uma casa para seus pais, algumas cabeças de gado e muito mais trabalho.
Retirou cada centavo, colocou em uma pequena bolsa que comprara especialmente para a ocasião, e amarrou-a na cintura, por baixo da roupa.
Foi até a agência de viagens, rezando para que tivesse coragem de ir adiante; quando quis mudar a passagem, lhe disseram que o vôo do dia seguinte tinha uma escala em Paris, para troca de avião. Não tinha importância - o que precisava era estar longe dali antes que pudesse pensar duas vezes.
Caminhou até uma das pontes, comprou um sorvete embora já começasse a esfriar de novo - e olhou Genève. Então tudo lhe pareceu diferente, como se tivesse acabado de chegar e precisasse ir aos museus, aos monumentos históricos, aos bares e restaurantes da moda. Engraçado que, quando se mora em uma cidade, se mpre se deixa para conhecê-la depois - e geralmente acabamos não a conhecendo nunca.
Pensou em ficar contente porque estava voltando a sua terra, mas não conseguiu.
Pensou em ficar triste por estar deixando uma cidade que a tratara tão bem, e tampouco conseguiu. A única coisa que pôde fazer foi derramar algumas lágrimas, com medo de si mesma, uma moça inteligente, que tinha tudo para ser bem-sucedida, mas que geralmente tomava decisões erradas.
Torceu para que desta vez estivesse certa.
A igreja estava completamente vazia quando entrou, e ela pôde contemplar em silêncio os lindos vitrais, iluminados pela luz exterior, a luz de um dia lavado pela tempestade da noite anterior. Diante dela, um altar com uma cruz vazia; não estava diante de um instrumento de tortura, com um homem ensangüentado à beira da morte - mas de um símbolo de ressurreição, onde o instrumento de suplício perdia todo o seu significado, seu terror, sua importância.
Ficou também contente porque não viu imagens de santos sofrendo, com marcas de sangue e feridas abertas - ali era apenas um lugar onde os homens se reuniam para adorar algo que não podiam compreender.
Parou diante do sacrário, onde estava guardado o corpo de um Jesus em que ela ainda acreditava, embora havia muito tempo não pensasse nele. Ajoelhou-se e prometeu a Deus, à Virgem, a Jesus, e a todos os santos, que acontecesse o que acontecesse durante aquele dia, ela jamais mudaria de idéia, e iria embora de qualquer maneira. Fez esta promessa porque conhecia bem as armadilhas do amor e de como são capazes de transformar a vontade de uma mulher.
Pouco depois ela sentiu a mão que a tocava no ombro, e inclinou seu rosto para que tocasse a mão.
Saíram de mãos dadas, como se fossem dois namorados que haviam se encontrado depois de muito tempo. Beijaram-se em público, algumas pessoas olharam escandalizadas, ambos sorriam pelo mal-estar que estavam causando, e pelos desejos que despertavam com o escândalo - porque sabiam que, na verdade, eles queriam estar fazendo a mesma coisa. O
escândalo era só isso.
Entraram em um café igual a todos os outros, mas que naquela tarde era diferente, porque os dois estavam ali, e se amavam. Conversaram sobre Genève, as dificuldades da língua francesa, os vitrais da igreja, os males do cigarro - já que ambos fumavam e não tinham a menor intenção de abandonar o vício.
Ela fez questão de pagar o café, e ele aceitou. Foram à exposição, ela conheceu seu mundo, os artistas, os ricos que pareciam mais ricos ainda, os milionários que pareciam pobres, as pessoas que perguntavam coisas sobre as quais jamais tinha ouvido falar. Todos gostaram dela, elogiaram sua maneira de falar francês, perguntaram sobre o carnaval, o futebol, a música de seu país. Educados, gentis, simpáticos, envolventes.
Quando saíram, ele disse que iria à boate naquela noite, encontrá-la. Ela pediu que não fizesse isso, tinha a noite livre, gostaria de convidá-lo para jantar.
Ele aceitou, despediram-se, marcaram de encontrar-se na casa dele para jantar em um restaurante simpático na pequena praça de Cologny, onde sempre passavam de táxi, e ela jamais pedira que parassem para conhecer o lugar.
Então Maria lembrou-se da única amiga, e resolveu ir até a biblioteca para dizer que não voltaria mais.
Ficou presa no trânsito por um tempo que parecia uma eternidade, até que os curdos terminassem de se manifestar (de novo!) e os carros pudessem voltar a circular normalmente. Mas agora era de novo dona do seu tempo, isso não tinha importância.
Chegou quando a biblioteca estava quase fechando.
- Pode ser que eu esteja querendo ser íntima demais, mas não tenho nenhuma amiga a quem confiar certas coisas - disse a bibliotecária, assim que Maria entrou.
Aquela mulher não tinha amiga? Depois de viver sua vida inteira no mesmo lugar, encontrar várias pessoas durante o dia, será que não tinha ninguém com quem conversar?
Enfim, descobria alguém como ela - ou melhor dizendo, alguém como todo mundo.
viver na ignorância, achando que um marido fiel, um apartamento com vista para o lago, três filhos e um emprego público era tudo que uma mulher podia sonhar. Agora, desde que você chegou aqui, e desde que li o primeiro livro, ando muito preocupada com aquilo em que transformei minha vida. Será que todo mundo é assim?
- Posso lhe garantir que é - e Maria sentiu-se uma jovem sábia diante daquela mulher que lhe pedia conselhos.
- Gostaria que eu entrasse em detalhes?
Maria acenou positivamente com a cabeça.
- É claro que você ainda é muito jovem para compreender essas coisas, mas justamente por isso gostaria de compartilhar um pouco da minha vida, para que não cometa os mesmos erros que cometi.
"Mas o clitóris, por que será que meu marido nunca prestou atenção a isso? Achava que o orgasmo é na vagina, e me custava muito, mas muito mesmo, fingir algo que ele imaginava que eu deveria estar sentindo. Claro, eu tinha prazer, mas um prazer diferente.
Apenas quando a fricção era na parte superior... você está entendendo?"
- Estou entendendo.
- E agora descobri por quê. Está ali - ela apontou para um livro na sua mesa, cujo título Maria não conseguia ver. - Existe um feixe de nervos que vai do clitóris ao ponto G, e que é predominante. Mas os homens pensam que não, que penetrar é tudo. Você sabe o que é o ponto G?
- Conversamos sobre isso outro dia - disse Maria, desta vez como a Menina Ingênua. -
Logo depois de entrar, primeiro andar, janela dos fundos.
- Claro, claro! - os olhos da bibliotecária se iluminaram. Verifique por você mesma quantos de seus amigos já ouviram falar disso: nenhum ouviu! Que absurdo! Mas assim como o clitóris foi uma invenção do tal italiano, o ponto G é uma conquista do nosso século! Em breve ocupará todas as manchetes, e ninguém mais poderá ignorá- lo! Pode imaginar que momento revolucionário estamos vivendo?
Maria olhou para o relógio, e Heidi se deu conta de que precisava falar rápido, ensinar àquela menina bonita à sua frente que as mulheres tinham todo direito de serem felizes, realizadas, para que uma próxima geração pudesse se beneficiar de todas estas conquistas científicas extraordinárias.
- O Dr. Freud não estava de acordo porque não era mulher, e como tinha seu orgasmo no pênis, achava que éramos obrigadas a ter o prazer na vagina. Temos que voltar à origem, aquilo que sempre nos deu prazer: o clitóris e o ponto G! Muito poucas mulheres conseguem ter uma relação sexual satisfatória, de modo que, se você tiver dificuldades em conseguir a alegria que merece, vou lhe sugerir algo: inverta a posição. Deite o seu namorado, e fique sempre por cima; o seu clitóris vai bater com mais força no corpo dele, e você, não ele, estará conseguindo o estímulo de que precisa. Melhor dizendo, o estímulo que merece!
Maria, no entanto, estava apenas fingindo que não prestava atenção na conversa.
Então não era apenas ela! Não tinha nenhum problema sexual, era tudo uma questão de anatomia! Sentiu vontade de beijar a mulher à sua frente, enquanto um peso imenso, gigantesco, saía do seu coração. Que bom ter descoberto isso ainda jovem! Que dia magnífico estava vivendo!
Heidi deu um sorriso conspirador.
- Eles não sabem, mas a gente tamb ém tem uma ereção! O clitóris fica ereto!
"Eles" deviam ser os homens. Maria tomou coragem, já que a conversa estava tão íntima.
- Você já teve alguém fora do casamento?
A bibliotecária levou um choque. Os olhos emitiram uma espécie de fogo sagrado, a pele ficou vermelha, não podia dizer se de raiva ou de vergonha. Depois de algum tempo, porém, a luta entre contar ou fingir terminou. Bastava mudar de assunto.
- Voltemos à nossa ereção: o clitóris! Ele fica rígido, você sabia?
- Desde criança.
Heidi parecia desapontada. Talvez não tivesse prestado muita atenção naquilo.
- E parece que, se você circular o dedo em torno, sem mesmo tocar sua ponta, o prazer pode surgir de maneira mais intensa ainda. Aprenda isso! Os homens que respeitam o corpo de uma mulher vão logo tocando no topo do clitóris, sem saber que isso às vezes pode ser doloroso, você não concorda? Por isso, depois do primeiro ou segundo encontro, logo assuma o controle da situação: fique por cima, decida como e onde a pressão deve ser aplicada, aumente e diminua o ritmo a seu critério. Além disso, uma conversa franca é sempre necessária, segundo o livro que estou lendo.
- A senhora teve uma conversa franca com o seu marido?
Mais uma vez Heidi fugiu da pergunta direta, dizendo que eram outros tempos. Agora estava mais interessada em compartilhar suas experiências intelectuais.
- Procure ver seu clitóris como um ponteiro de relógio, e peça ao seu companheiro para movê- lo entre 11 e 1 hora, está compreendendo?
Sim, sabia do que a mulher estava falando e não concordava muito, embora o livro tampouco estivesse longe da verdade total. Mas assim que ela falou em relógio, Maria olhou o seu, disse que tinha vindo apenas se despedir, pois seu estágio havia terminado. A mulher pareceu não escutá- la.
- Não quer levar este livro sobre o clitóris?
- Não, obrigada. Tenho que pensar em outras coisas.
- E não vai levar nada novo?
- Não. Estou voltando para o meu país, mas queria agradecer por sempre ter me tratado com respeito e compreensão. Até qualquer dia.
Apertaram-se as mãos e se desejaram mutuamente felicidade.
Heidi esperou que a moça saísse, antes de perder o controle e dar um soco na mesa.
Por que não havia aproveitado 0 momento para dividir algo que, do jeito que as coisas iam, terminaria morrendo com ela? Já que a moça tivera coragem de perguntar se algum dia traíra seu marido, por que não responder, agora que estava descobrindo um mundo novo, onde finalmente as mulheres aceitavam que era muito difícil um orgasmo vaginal?
"Bem, isso não é importante. O mundo não é apenas sexo."
Não era a coisa mais importante do mundo, mas era importante, sim. Olhou a sua volta; a grande parte daqueles milhares de livros que a cercavam contava uma história de amor. Sempre a mesma história - alguém que se apaixona, encontra, perde, e volta a encontrar de novo. Almas que se comunicam, lugares distantes, aventura, sofrimento, preocupações, e raramente alguém dizendo "olhe, meu caro senhor, entenda melhor o corpo da mulher". Por que os livros não falavam abertamente disso?
Talvez ninguém estivesse realmente interessado. Porque, para o homem, ele continuaria a buscar a novidade - ainda era o troglodita caçador, que seguia o instinto de reprodutor da raça humana. E para a mulher? Por sua experiência pessoal, a vontade de ter um bom orgasmo com seu companheiro durava apenas os primeiros anos; depois a freqüência diminuía, e nenhuma mulher falava disso, porque achava que era apenas com ela. E mentiam, fingindo que não agüentavam mais o desejo do marido, que pedia para fazer amor todas as no ites. E, ao mentirem, deixavam todas as outras preocupadas.
Logo se dedicavam a pensar em algo diferente: filhos, cozinha, horários, manutenção da casa, contas a pagar, tolerância com as escapadas do marido, viagens nas férias durante as quais ficavam mais preocupadas com os filhos do que consigo mesmas, cumplicidade -
ou até mesmo amor, mas nada de sexo.
Devia ter sido mais aberta com a jovem brasileira, que lhe parecia uma moça inocente, com idade para ser sua filha, e ainda incapaz de compreender o mundo direito.
Uma imigrante, vivendo longe da sua terra, dando duro em um trabalho sem graça, esperando um homem com quem pudesse casar, fingir alguns orgasmos, encontrar a segurança, reproduzir esta misteriosa raça humana, e logo esquecer estas coisas chamadas orgasmo, clitóris, ponto G (descoberto apenas no século XX!!!). Ser uma boa esposa, uma boa mãe, cuidar para que nada faltasse em casa, masturbar-se escondido de vez em quando, pensando no homem que cruzara com ela na rua e a olhara com desejo. Manter as aparências - por que será que o mundo estava tão preocupado com as aparências?
Por isso não respondera à pergunta:
"Você já teve alguém fora do casamento?"
Estas coisas morrem com a gente, pensou. Seu marido sempre fora o homem de sua vida, embora o sexo fosse coisa do passado remoto. Era um excelente companheiro, honesto, generoso, bem- humorado, lutava para sustentar a família, e procurava deixar felizes todos aqueles que estavam sob sua responsabilidade. O homem ideal, com que todas as mulheres sonham, e justamente por isso sentia-se tão mal em pensar que um dia desejara
- e estivera - com outro homem.
Lembrava-se de como o havia encontrado. Estava voltando da cidadezinha de Davos, nas montanhas, quando uma avalanche de neve interrompeu por algumas horas a circulação dos trens. Telefonou, para que ninguém ficasse preocupado; comprou algumas revistas e preparou-se para uma longa espera na estação.
Foi quando viu um homem ao seu lado, com uma mochila e um saco de dormir. Tinha os cabelos grisalhos, a pele queimada de sol, era o único que parecia não estar preocupado com a ausência do trem; muito pelo contrário, sorria e olhava em volta, procurando alguém para conversar. Heidi abriu uma das revistas mas - ah, vida misteriosa! -seus olhos cruzaram rapidamente com os dele, e não conseguiu desviar rápido o bastante para evitar que se aproximasse.
Antes que ela pudesse - educadamente - dizer que realmente precisava terminar um artigo importante, ele começou a falar. Disse que era um escritor, estava voltando de um encontro na cidade, e que o atraso dos trens faria com que perdesse o vôo de volta para o seu país. Quando chegassem a Genève, podia ajudá- lo a encontrar um hotel?
Heidi o olhava: como é que alguém podia estar tão bemhumorado depois de perder um vôo e ter que ficar esperando numa desconfortável estação de trem até que as coisas se resolvessem?
Mas o homem começou a conversar como se fossem velhos amigos. Contou sobre suas viagens, sobre o mistério da criação literária e, para seu espanto e horror, sobre todas as mulheres que havia amado e encontrado ao longo de sua vida. Heidi apenas fazia que
"sim" com a cabeça, e ele continuava. Vez por outra, pedia desculpas por estar falando muito e lhe pedia que contasse um pouco de si mesma, mas tudo que ela tinha para dizer era "sou uma pessoa comum, sem nada de extraordinário".
De repente, ela viu-se torcendo para que o trem não chegasse nunca, aquela conversa era muito envolvente, estava descobrindo coisas que só haviam entrado em seu mundo através dos romances de ficção. E como jamais tornaria a vê-lo, tomou coragem (mais tarde não saberia explicar por quê) e começou a perguntar sobre temas que lhe interessavam.
Vivia um momento difícil em seu casamento, o marido reclamava muito a sua presença, e Heidi quis saber o que podia fazer para deixá- lo feliz. O homem deu algumas explicações interessantes, contou uma história, mas não parecia muito contente em ter que falar do marido.
"Você é uma mulher muito interessante", disse, usando uma frase que fazia muitos anos ela não escutava.
Heidi não soube como reagir, ele percebeu seu embaraço, e logo começou a falar sobre desertos, montanhas, cidades perdidas, e mulheres cobertas com véu, ou de cintura desnuda, guerreiros, piratas e sábios.
O trem chegou. Sentaram-se lado a lado, e agora ela já não era mais a mulher casada, com um chalé em frente ao lago, três filhos para criar, mas uma aventureira, que estava chegando a Genève pela primeira vez. Olhava as montanhas, o rio, e sentiase contente de estar ao lado de um homem que a queria levar para a cama (porque os homens só pensam nisso), que estava fazendo o possível para impressioná-la. Pensou em quantos outros homens tinham sentido a mesma coisa, sem que jamais lhes desse qualquer oportunidade -
mas naquela manhã o mundo havia mudado, era uma adolescente de trinta e oito anos, assistindo deslumbrada às tentativas de sedução; era a melhor coisa do mundo.
No outono prematuro da sua vida, quando pensava que já tinha tudo que podia esperar, aparecia aquele homem na estação de trem e entrava sem pedir licença.
Desembarcaram em Genève, ela indicou um hotel (modesto, ele insistira, porque devia partir naquela manhã e não estava prevenido para um dia a mais na caríssima Suíça), ele pediu que fosse até o quarto com ele, para ver se estava tudo em ordem. Heidi sabia o que a aguardava, e mesmo assim aceitou a proposta. Fecharam a porta, beijaram-se com violência e desejo, ele arrancou suas roupas, e meu Deus! - conhecia o corpo de uma mulher, porque conhecera o sofrimento ou a frustração de muitas.
Fizeram amor a tarde inteira, e só quando a noite começou a chegar foi que o encanto se dissipou, e ela falou a frase que jamais gostaria de ter pronunciado:
"Preciso voltar, meu marido está me esperando."
Ele acendeu um cigarro, ficaram em silêncio por alguns minutos, e nenhum dos dois disse "adeus". Heidi levantou-se e saiu sem olhar para trás, sabendo que, não importa o que dissessem, nenhuma palavra ou frase teria sentido.
Nunca mais tornaria a vê- lo, mas, no outono de sua desesperança, por algumas horas, tinha deixado de ser esposa fiel, dona de casa, mãe amorosa, funcionária exemplar, amiga constante e voltado a ser simplesmente mulher.
Durante alguns dias o marido comentava que ela tinha mudado, estava mais alegre ou mais triste - ele não sabia exatamente descrever. Uma semana depois, as coisas tinham voltado ao normal.
"Que pena que não contei isso para a menina", pensou. "De qualquer maneira, ela não entenderia nada, ainda vive num mundo onde as pessoas são fiéis e as juras de amor são eternas."
Do diário de Maria:
Não sei o que ele deve ter pensado quando abriu a porta, naquela noite, e me viu com duas malas.
- Não se assuste - comentei logo. - Não estou me mudando para cá. Vamos jantar.
Ajudou-me, sem nenhum comentário, a colocar minha bagage m para dentro. Em seguida, antes de dizer "o que é isso" ou "que alegria você aparecer"; simplesmente me agarrou e começou a beijar-me, tocar meu corpo, meus seios, meu sexo, como se tivesse esperado por tanto tempo e agora pressentisse que talvez o momento não chegasse nunca.
Tirou meu casaco, meu vestido, deixou- me nua, e foi ali no hall de entrada, sem qualquer ritual ou preparação, sem mesmo tempo para dizer o que seria bom ou ruim, com o vento frio entrando por baixo da fresta da porta, que fizemos amo r pela primeira vez. Eu pensei que talvez fosse melhor dizer que parasse, que procurássemos um lugar mais confortável, que tivéssemos tempo de explorar o imenso mundo de nossa sensualidade, mas ao mesmo tempo eu o queria dentro de mim, porque era o homem que eu nunca possuíra, e nunca mais iria possuir. Por isso eu podia amá- lo com toda a minha energia, ter pelo menos, por uma noite, aquilo que jamais tivera antes, e que possivelmente nunca teria depois.
Deitou-me no chão, entrou em mim antes que eu estivesse completamente molhada, mas a dor não me incomodou - ao contrário, gostei que fosse assim, porque devia entender que eu era sua, e não precisava pedir licença. Não estava ali para ensinar mais nada, ou para mostrar como minha sensibilidade era melhor ou mais intensa que a das outras mulheres, apenas para dizer-lhe que sim, que era bem-vindo, que eu também estava esperando por isso, que me alegrava muito seu total desrespeito às regras que havíamos criado entre nós, e agora exigia que apenas nossos instintos macho e fêmea, nos guiassem. Estávamos na posição mais convencional possível - eu embaixo, de pernas abertas, e ele em cima, entrando e saindo, enquanto eu o olhava, sem vontade de fingir, de gemer, de nada - apenas querendo manter os olhos abertos, para lembrar cada segundo, ver seu rosto se transformando, suas mãos que agarravam meus cabelos, sua boca que me mordia, me beijava. Nada de preliminares, de carícias, de preparações, de sofisticações, apenas ele dentro de mim, e eu em sua alma.
Entrava e saía, aumentava e diminuía o ritmo, parava às vezes para me olhar também, mas não perguntava se eu estava gostando, porque sabiá que esta era a única maneira de nossas almas se comunicarem naquele momento. O ritmo aumentou, e eu sabiá que os onze minutos estavam chegando ao fim, queria que continuassem para sempre, porque era tão bom - ah, meu Deus, como era bom - ser possuída e não possuir! Tudo de olhos bem abertos, e notei que quando já não enxergávamos direito, parecíamos ir para uma dimensão onde eu era a grande mãe, o universo, a mulher amada, a prostituta sagrada dos antigos rituais que ele havia me explicado com um copo de vinho e uma lareira acesa. Vi seu orgasmo chegando, e seus braços seguraram os meus com força. Os movimentos aumentaram de intensidade, e foi então que ele gritou - não gemeu, não mordeu os dentes, mas gritou! Berrou! Urrou como um animal! No fundo da minha cabeça passou rápido o pensamento de que a vizinhança talvez chamasse a polícia, mas isso não tinha importância, e eu senti um incenso prazer, porque era assim desde o início dos tempos, quando o primeiro homem encontrou a primeira mulher e fizeram amor pela primeira vez: eles gritaram.
Depois seu corpo desabou sobre mim, e não sei quanto tempo ficamos abraçados um ao outro, eu acariciei seus cabelos como só havia feito na noite em que nos trancamos no escuro do hotel, vi seu coração disparado ir aos poucos voltando ao normal, suas mãos começaram delicadamente a passear pelos meus braços, e aquilo fez com que todos os cabelos de meu corpo ficassem arrepiados.
Deve ter pensado em algo prático - como o peso de seu corpo em cima do meu ; porque rolou para o lado, segurou minhas mãos, e ficamos os dois olhando o teto e o lustre de três lâmpadas acesas.
- Boa-noite - eu lhe disse.
Ele me puxou, e fez com que apoiasse a cabeça no seu peito. Ficou me acariciando por um longo tempo, antes de dizer "boa-noite" também.
- A vizinhança deve ter escutado tudo - comentei, sem saber como íamos continuar, porque dizer "eu te amo" naquele momento não fazia muito sentido, ele já sabiá, e eu também.
- Está entrando uma corrente de ar frio por baixo da porta - foi sua resposta, quando poderia ter dito "que maravilha!"
- vamos para a cozinha.
Nos levantamos, e vi que ele nem sequer havia tirado a calça, estava vestido como quando o encontrei, apenas com o sexo do lado de fora. Coloquei meu casaco sobre o corpo nu. Fomos para a cozinha, ele preparou um café, fumou dois cigarros, eu fumei um.
Sentados na mesa, ele dizia "obrigado" com os olhos, eu respondia "também quero agradecer", mas nossas bocas se mantinham fechadas.
Finalmente ele tomou coragem e perguntou pelas malas.
- Estou voltando para o Brasil amanhã ao meio-dia.
Uma mulher entende quando um homem é importante para ela. Será que eles também são capazes deste tipo de compreensão? Ou eu teria que dizer "te amo", "gostaria de continuar aqui com você", "peça- me que fique".
- Não vá - sim, ele havia compreendido que podia me dizer isso.
- vou. Fiz uma promessa.
Porque, se não tivesse feito, talvez acreditasse que aquilo tudo ali era para sempre. E
não era, era parte de um sonho de uma moça do interior de um país distante, que vai para a cidade grande (não tão grande assim, para falar a verdade), passa por mil dificuldades, mas encontra o homem que a ama. Então, este era o final feliz para todos os momentos difíceis que passei, e sempre que eu me lembrasse de minha vida na Europa, terminaria com a história de um homem apaixonado por mim, que seria sempre meu, já que eu visitara sua alma.
Ah, Ralf, você não sabe o quanto te amo. Penso que talvez nos apaixonemos sempre no momento em que olhamos o homem de nossos sonhos pela primeira vez, embora a razão naquele momento diga que estamos errados, e passemos a lutar - sem vontade de vencer-contra este instinto. Até que chega o momento em que nos deixamos vencer pela emoção, e isso aconteceu naquela noite, quando eu caminhei descalça pelo parque, sofrendo dor e frio, mas entendendo o quanto você me queria.
Sim, eu te amo muito, como nunca amei outro homem, e justamente por isso vou embora, porque se ficasse o sonho se transformaria em realidade, vontade de possuir, de desejar que sua vida seja minha... enfim, de todas estas coisas que terminam transformando 0 amor em escravidão. Melhor assim: o sonho. Temos que ser cuidadosos com aquilo que levamos de um país - ou da vida.
- você não teve um orgasmo - disse ele, tentando mudar de assunto, ser cuidadoso, não forçar uma situação. Estava com medo de me perder, e pensava que ainda tinha a noite inteira para me fazer mudar de opinião.
- Não tive orgasmo, mas tive um imenso prazer.
- Mas seria melhor se tivesse um orgasmo.
- Eu podia ter fingido, apenas para deixá- lo contente, mas você não merece. Você é um homem, Ralf Hart, em tudo o que esta palavra pode ter de belo e intenso. Soube me apoiar e me ajudar, aceitou que eu o apoiasse e ajudasse, sem que isso significasse humilhação. Sim, eu gostaria de ter tido um orgasmo, mas não tive. Entretanto, adorei o chão frio, o seu corpo quente, a violência consentida com que entrou em mim.
"Hoje eu fui devolver os livros que ainda tinha comigo, e a bibliotecária perguntou se eu conversava com meu parceiro a respeito de sexo. Fiquei com vontade de dizer.- Qual parceiro? Qual tipo de sexo? Mas ela não merecia, foi sempre um anjo comigo.
"Na verdade, tive apenas dois parceiros desde que cheguei em Genève: um que despertou o pior de mim mesma, porque permiti - e até mesmo implorei. O outro, você, que me fez sentir de novo parte do mundo. Eu gostaria de poder ensiná-lo onde tocar meu corpo, qual a intensidade, por quanto tempo, e sei que entenderia isso não como uma recriminação, mas como uma possibilidade de que nossas almas se comunicassem melhor.
A arte do amor é como a sua pintura, requer técnica, paciência, e sobretudo prática entre o casal. Requer ousadia, é preciso ir além daquilo que as pessoas convencionaram chamar de fazer amor'."
Pronto. A professora tinha voltado, e eu não queria aquilo, mas Ralf soube contornar a situação. Em vez de aceitar o que eu dizia, acendeu seu terceiro cigarro em menos de meia hora:
- Em primeiro lugar, você hoje vai passar a noite aqui.
Não era um pedido, era uma ordem.
- Em segundo lugar faremos amor de novo, com menos ansiedade, e mais desejo.
"Finalmente, eu gostaria que você também entendesse melhor os homens."
Entender melhor os homens? Eu passava todas as noites com eles, brancos, negros, asiáticos, judeus, muçulmanos, católicos, budistas. Ralf não sabia disso?
Senti- me mais leve; que bom que a conversa caminhava para uma discussão. Em determinado momento eu chegara a pensar em pedir perdão a Deus e romper com minha promessa. Mas ali estava a realidade de volta, para me dizer que não esquecesse de conservar meu sonho intacto, e não me deixasse cair nas armadilhas do destino.
- Sim, entender melhor os homens - repetiu Ralf, ao ver o meu ar de ironia. - Você fala em expressar sua sexualidade feminina, em me ajudar a navegar por seu corpo, a ter paciência, tempo. Estou de acordo, mas já lhe ocorreu que nós somos diferentes, pelo menos em matéria de tempo? Por que você não reclama com Deus?
"Quando nos encontramos, pedi que me ensinasse sobre sexo, porque meu desejo havia desaparecido. Sabe por quê? Porque depois de certos anos de vida, toda e qualquer relação sexual minha terminava em tédio ou frustração, já que eu entendera que era muito difícil dar às mulheres que amei o mesmo prazer que elas me davam."
Não gostei dèás mulheres que amei", mas fingi indiferença, acendendo um cigarro.
- Eu não tinha coragem de pedira me ensine seu corpo. Mas quando a encontrei; vi sua luz, e a amei imediatamente, pensei que a esta altura da vida lã não tivesse nada a perder se fosse honesto comigo, e com a mulher que queria ter ao meu lado.
Meu cigarro ficou delicioso, e eu gostaria muito que ele me oferecesse um pouco de vinho, mas não queria deixar o assunto morrer.
- Por que os homens, em vez de fazerem isso que você fez comigo, descobrir como me sinto, só ficam pensando em sexo?
- Quem disse que só pensamos em sexo? Ao contrário: passamos anos de nossa vida tentando nos fazer acreditar que o sexo é importante para nós. Aprendemos o amor com prostitutas ou com virgens, contamos nossos casos a todos que queiram escutar, desfilamos com amantes jovens quando já estamos mais velhos, tudo para mostrar aos outros que sim, somos aquilo que as mulheres esperavam que fôssemos.
"Mas quer saber de uma coisa? Não é nada disso. Não entendemos nada. Achamos que sexo e ejaculação são a mesma coisa, e como você acabou de dizer, não são. Não aprendemos porque não temos coragem de dizer à mulher: ensine- me seu corpo. Não aprendemos porque a mulher tampouco tem coragem de dizer: aprenda como sou. Ficamos no primitivo instinto de sobrevivência da espécie, e isso é tudo. Por mais absurdo que pareça, sabe o que é mais importante do que o sexo para um homem?"
Eu pensei que talvez fosse dinheiro ou poder, mas não disse nada.
- Esporte. E sabe por quê? Porque um homem entende o corpo de outro homem. Ali, no esporte, a gente está vendo o diálogo de corpos que se entendem.
- Você está louco.
- Pode ser. Mas fax sentido. você já parou para ver o que os homens com que esteve na cama sentiam?
- Sim, parei: todos estavam inseguros. Sentiam medo.
- Pior que medo. Eram vulneráveis. Não entendiam direito o que estavam fazendo, sabiam apenas o que a comunidade, os amigos, as próprias mulheres diziam que era importante. "Sexo, sexo, sexo", essa é a base da vida, grita a propaganda, as pessoas, os filmes, os livros. Ninguém sabe do que está falando. Sabem já que o instinto é mais forte que todos nós - que aquilo tem que ser jeito. Pronto.
Chega. Eu tentara dar lições de sexo para me proteger, ele fazia o mesmo, e por mais que nossas palavras fossem sábias - já que um sempre queria impressionar 0 outro ; isso era tão estúpido, tão indigno de nossa relação! Eu o puxe i até mim porque - independentemente do que ele tinha para dizer, ou do que eu pensasse a respeito de mim mesma - a vida já me ensinara muita coisa. No início dos tempos, tudo era amor, era entrega. Mas logo em seguida, a serpente aparece para Eva e diz: o que você entregou, você irá perder. Assiras foi comigo - fui expulsa do paraíso ainda na escola, e desde então procurei uma maneira de dizer à serpente que ela estava errada, que viver era mais importante do que guardar para si.
Mas a serpente estava certa, e eu estava errada.
Me ajoelhei, tirei aos poucos suas roupas, e vi que seu sexo estava ali, dormente, sem reagir. Ele parecia não se incomodar com isso, e eu beijei a parte interior de suas pernas, começando dos pés. O sexo começou a reagir lentamente, e eu o toquei, depois o coloquei em minha boca, e - sem pressa, sem que ele interpretasse isso como "vamos, prepare-se para agir!" - beijei-o com o carinho de quem não espera nada, e justamente por isso, consegui tudo. Vi que ficava excitado, e começou a tocar o bico de meus seios, girando-os como naquela noite de total escuridão, me deixando com vontade de tê- lo de novo entre minhas pernas, ou em minha boca, ou como desejasse ou quisesse me possuir.
Ele não retirou meu casaco; fez com que eu me inclinasse de bruços sobre a mesa, com as pernas ainda
apoiadas no chão. Penetrou-me lentamente, desta vez sem ansiedade, sem medo de me perder - porque no fundo também ele já tinha entendido que aquilo era um sonho, e ia permanecer para sempre como um sonho, jamais como realidade.
Ao mesmo tempo em que sentia seu sexo dentro de mim, sentia também sua mão nos seios, nas nádegas, e tocando- me como só uma mulher sabe fazer. Então entendi que éramos feitos um para o outro, porque ele conseguia ser mulher como agora, e eu conseguia ser homem como quando conversamos ou nos iniciamos mutuamente no encontro das duas almas perdidas, dos dois fragmentos que faltavam para completar o universo.
À medida que ele me penetrava e me tocava ao mesmo tempo, senti que não estava fazendo isso apenas a mim, mas a todo o universo. Tínhamos tempo, ternura e conhecimento um do outro. Sim, tinha sido ótimo chegar com duas malas, o desejo de partir, ser imediatamente jogada no chão e penetrada com violência e medo; mas também era bom saber que a noite não acabaria nunca, e agora ali, na mesa da cozinha, o orgasmo não era o fim em si, mas o início deste encontro.
Seu sexo ficou imóvel dentro de mim, enquanto seus dedos moviam-se rapidamente, e eu tive o primeiro, depois o segundo, e o terceiro orgasmo seguidos. Tinha vontade de empurrá-lo, a dor do prazer é tão grande que machuca, mas agüentei firme, aceitei que era assim, que eu podia agüentar mais um orgasmo, ou mais dois, ou mais ...
... e de repente, uma espécie de luz explodiu dentro de mire. Não era mais eu mesma, mas um ser infinitamente superior a tudo que eu conhecia. Quando sua mão me levou ao quarto orgasmo, entrei em um lugar onde tudo parecia em paz, e no meu quinto orgasmo conheci Deus. Então senti que ele recomeçava a mexer o seu sexo dentro do meu, embora sua mão não tivesse parado, e disse "meu Deus", me entreguei a qualquer coisa, o inferno ou o paraíso.
Mas era o paraíso. Eu era a terra, as montanhas, os tigres, os rios que corriam até os lagos, os lagos que se transformavam em mar. Ele se movia cada vez mais rapidamente, e a dor se misturava com prazer, eu podia dizer "não agüento mais", mas não seria justo -
porque a esta altura, eu e ele éramos a mesma pessoa.
Deixei que me penetrasse pelo tempo que fosse necessário, suas unhas agora estavam cravadas nas minhas nádegas, e eu ali de bruços, na mesa da cozinha, pensando que não existia melhor lugar no mundo para fazer amor. De novo o barulho da mesa, a respiração cada vez mais rápida, as unhas machucando, e o meu sexo batendo com força no sexo dele, carne com carne, osso com osso, eu ia de novo para um orgasmo, ele ia também, e nada disso - nada disso era MENTIRA!
- Vamos!
Ele sabia o que estava falando, e eu sabia que era o momento, senti que meu corpo todo se afrouxava, eu deixava de ser eu mesma - já não escutava, via, provava o gosto de nada - apenas sentia.
- Vamos!
E eu fui, junto com ele. Não foram onze minutos, mas uma eternidade, era como se os dois saíssemos do corpo e caminhássemos, em profunda alegria, compreensão e amizade, pelos jardins do paraíso. Eu era mulher e homem, ele era homem e mulher. Não sei quanto tempo durou, mas tudo parecia estar em silêncio, em oração, como se o universo e a vida deixassem de existir e se transformassem em algo sagrado, sem nome, sem tempo.
Mas logo o tempo voltou, eu escutei seus gritos e gritei com ele, os pés da mesa batiam com força no chão, e a nenhum de nós dois ocorreu perguntar ou saber o que o resto do mundo estava pensando.
E ele saiu de mim sem nenhum aviso, e ria, senti meu sexo se contrair, me virei para ele e ria também, nos abraçamos como se fosse a primeira vez que tivéssemos feito amor em nossa vida.
- Abençoe- me - pediu.
Eu o abençoei, sem saber o que estava fazendo. Pedi que fizesse o mesmo, e ele fez, dizendo "abençoada seja esta mulher, que muito amou". Suas palavras eram lindas, tornamos a nos abraçar e ali ficamos, sem entender como onze minutos podem levar um homem e uma mulher a tudo isso.
Nenhum dos dois estava cansado. Fomos até a sala, ele colocou um disco, e fez exatamente o que eu estava esperando: acendeu a lareira e serviu- me vinho.
Em seguida abriu um livro e leu:
"Tempo de nascer, tempo de morrer tempo de plantar, tempo de arrancar a planta tempo de matar, tempo de curar tempo de destruir, tempo de construir tempo de chorar, tempo de rir tempo de gemer, tempo de bailar tempo de atirar pedras, tempo de recolher pedras tempo de abraçar, tempo de separar tempo de buscar, tempo de perder tempo de guardar, tempo de jogar fora tempo de rasgar, tempo de costurar tempo de calar, tempo de falar tempo de amar, tempo de odiar tempo de guerra, tempo de paz."
Aquilo soava como uma despedida. Mas era a mais linda de todas que eu podia experimentar em minha vida.
Eu o abracei, ele me abraçou, deitamos no tapete ao lado da la reira. A sensação de plenitude ainda continuava, como se eu sempre tivesse sido uma mulher sábia, feliz, realizada na vida.
- Como é que você pode se apaixonar por uma prostituta?
- Na época, não entendi. Mas hoje, pensando um pouco, acredito que ao saber que seu corpo jamais seria apenas meu, eu podia me concentrar em conquistar sua alma.
- E o ciúme?
- Não se pode dizer para a primavera: "Tomara que chegue logo e que dure bastante."
Pode-se apenas dizer: "venha, me abençoe com sua esperança, e fique o máximo de tempo que puder."
Palavras soltas ao vento. Mas eu precisava escutar, e ele precisava dizer. Dormi sem saber exatamente quando. Sonhei, não com uma situação ou com uma pessoa, mas com um perfume, que inundava tudo.
Quando Maria abriu os olhos, alguns raios de sol já começavam a entrar pelas persianas abertas.
"Fiz duas vezes amor com ele", pensou, olhando para o homem adormecido ao seu lado. "E, no entanto, parece que sempre estivemos juntos, e que ele sempre conheceu minha vida, minha alma, meu corpo, minha luz, minha dor."
Levantou-se para ir até a cozinha e fazer um café. Foi então que viu as duas malas no corredor e lembrou-se de tudo: da promessa, da oração na igreja, da sua vida, do sonho que insiste em transformar-se em realidade e perder seu encanto, do homem perfeito, do amor em que corpo e alma eram a mesma coisa, e prazer e orgasmo eram coisas diferentes.
Podia ficar; não tinha nada mais a perder na vida, apenas mais uma ilusão. Lembrou-se do poema: tempo de chorar, tempo de rir.
Mas havia outra frase: tempo de abraçar, tempo de separar. Preparou o café, fechou a porta da cozinha, telefonou e chamou um táxi. Reuniu sua força de vontade, que a levara tão longe, a fonte de energia de sua "luz", que lhe dissera a hora exata de partir, que a protegia, que a faria guardar para sempre a lembrança daquela noite. Vestiu-se, pegou as malas e saiu, torcendo para que ele acordasse antes e lhe pedisse que ficasse.
Mas ele não acordou. Enquanto esperava o táxi, do lado de fora, uma cigana passou, com um buquê de flores.
- Quer comprar uma?
Maria comprou; era o sinal de que o outono havia chegado, o verão ficava para trás.
Genève já não teria, por muito tempo, as mesas nas calçadas e os parques cheios de gente passeando e banhando-se de sol. Não fazia mal; estava indo embora porque essa era a sua escolha, e não havia o que lamentar.
Chegou ao aeroporto, tomou outro café, ficou quatro horas esperando o vôo para Paris, sempre pensando que ele iria entrar a qualquer momento, já que, em algum momento antes de dormir, dissera a hora de sua partida. Assim acontecia nos filmes: no momento final, quando a mulher está quase entrando no avião, o homem aparece desesperado, a agarra, dá- lhe um beijo, e a traz de volta para o seu mundo, sob o olhar risonho e complacente dos funcionários da companhia aérea. Entra o letreiro "Fim", e todos os espectadores sabem que, a partir dali, viverão felizes para sempre
"Os filmes nunca contam o que acontece depois", dizia a si mesma, tentando se consolar. Casamento, cozinha, filhos, um sexo cada vez mais inconstante, a descoberta do primeiro bilhete da amante, decidir fazer um escândalo, escutar promessas de que isso não se repetirá de novo, o segundo bilhete de uma outra amante, outro escândalo e a ameaça de separar, desta vez o homem não reage com tanta segurança, apenas diz que a ama. O
terceiro bilhete, da terceira amante, e então escolher o silêncio, fingindo que não sabe, porque pode ser que ele diga que não a ama mais, que é livre para partir.
Não, os filmes não contam isso. Acabam antes que o verdadeiro mundo comece.
Melhor não ficar pensando.
Leu uma, duas, três revistas. Finalmente chamaram seu vôo, depois de quase uma eternidade naquele saguão de aeroporto, e embarcou. Ainda imaginou a famosa cena em que, assim que aperta os cintos, sente-se a mão no ombro, olha para trás, e ali está ele, sorrindo.
E nada aconteceu.
Dormiu durante o curto trecho que separava Genève de Paris. Não teve tempo de pensar no que diria em casa, que história contaria - mas com toda certeza seus pais ficariam contentes, sabendo que tinham uma filha de volta, uma fazenda, e uma velhice confortável.
Acordou com o solavanco da aterrissagem. O avião taxiou por muito tempo, a aeromoça veio dizer que ela precisava trocar de terminal, pois o vôo para o Brasil sairia do terminal F e ela estava no terminal C. Mas que não se preocupasse, não havia atrasos, ainda tinha muito tempo, e se tivesse alguma dúvida o pessoal de terra poderia ajudá- la a encontrar seu caminho.
Enquanto o aparelho se aproximava do local do desembarque, pensou se valia a pena passar um dia naquela cidade, apenas para tirar umas fotos e contar aos outros que conhecera Paris. Precisava de tempo para pensar, estar sozinha consigo mesma, esconder bem fundo as lembranças da noite anterior, de modo que pudesse usá- las sempre que precisasse se sentir viva. Sim, Paris era uma excelente idéia; perguntou à aeromoça quando sairia o próximo vôo para o Brasil, se resolvesse não embarcar naquele dia.
A aeromoça pediu seu bilhete, lamentou muito, mas era uma tarifa que não permitia este tipo de escalas. Maria consolou a si mesma, pensando que ver uma cidade tão linda sozinha iria deixá-la deprimida. Estava conseguindo manter o sangue- frio, a força de vontade, não ia estragar tudo com uma bela paisagem e as saudades de alguém.
Desembarcou, passou pelos controles de polícia; sua bagagem iria diretamente para o outro avião, não havia com que se preocupar. As portas se abriram, os passageiros saíam e se abraçavam com alguém que os esperava, a mulher, a mãe, os filhos. Maria fingiu que nada daquilo era com ela, ao mesmo tempo que pensava de novo em sua solidão; só que desta vez tinha um segredo, um sonho, não era tão amarga, e a vida seria mais fácil.
- Sempre haverá Paris.
Não era um guia turístico. Não era um motorista de táxi. Suas pernas tremeram quando escutou a voz.
- Sempre haverá Paris?
- É a frase de um filme que adoro. Gostaria de ver a Torre Eiffel?
Gostaria, sim. Gostaria muito. Ralf tinha um buquê de rosas, e os olhos cheios de luz, a luz que ela vira no primeiro dia, quando a pintava enquanto o vento frio fazia com que se sentisse incomodada por estar ali.
- Como você chegou aqui antes de mim? - perguntou apenas para disfarçar a surpresa, a resposta não tinha o menor interesse, mas precisava de algum tempo para respirar.
- Vi você lendo uma revista. Podia ter chegado perto, mas sou romântico, incuravelmente romântico, e achei que seria melhor tomar a primeira ponte-aérea para Paris, passear um pouco pelo aeroporto, esperar três horas, consultar um semnúmero de vezes os horários dos vôos, comprar suas flores, dizer a frase que Ricky diz para sua amada em Casablanca, e imaginar sua cara de surpresa. E ter certeza de que isso é o que você queria, que me esperava, que toda a determinação e vontade do mundo não bastam para impedir que o amor mude as regras do jogo de uma hora para outra. Não custa nada ser romântico como nos filmes, você não acha?
Não sabia se custava ou não, mas o preço agora era o que menos lhe importava -
mesmo sabendo que acabara de conhecer aquele homem, tinham feito amor pela primeira vez havia poucas horas, fora apresentada aos seus amigos na véspera, sabia que ele já havia freqüentado a boate onde trabalhava, e que fora casado duas vezes. Não eram credenciais impecáveis. Por outro lado, ela tinha dinheiro para comprar uma fazenda, a juventude pela frente, uma grande experiência de vida, uma grande independência de alma. Mesmo assim, como sempre o destino escolhia por ela, achou que mais uma vez podia correr o risco.
Beijou-o, sem nenhuma curiosidade de saber o que se passa depois que escrevem
"Fim" nas telas de cinema. Apenas, se algum dia alguém decidisse contar sua história, ia pedir que começasse como os contos de fadas, em que se diz:
Era uma vez...
NOTA FINAL
Como todas as pessoas do mund o - e neste caso não tenho o menor receio de generalizar -, demorei até descobrir o sentido sagrado do sexo. Minha juventude coincidiu com uma época de extrema liberdade, com descobertas importantes e muitos excessos, seguida de um período conservador, repressivo, preço a ser pago por exageros que realmente deixaram seqüelas um pouco duras.
Na década dos excessos (estamos falando dos anos 70), o escritor Irving Wallace escreveu um livro sobre a censura americana, usando para isso as manobras jurídicas visando impedir a publicação de um texto sobre sexo: Os sete minutos.
No romance de Wallace o livro, que é motivo da discussão sobre a censura, é apenas insinuado, e o tema da sexualidade raramente aparece. Fiquei imaginando o que conteria o livro proibido; que m sabe poderia tentar escrevê-lo?
Acontece que, durante o seu romance, Wallace faz muitas referências ao livro inexistente, e isso terminou por limitar - e impossibilitar - a tarefa que eu havia imaginado.
Ficou apenas a lembrança do título (acho que Wallace foi muito conservador com relação ao tempo, e resolvi ampliá- lo) e a idéia de que era importante abordar a sexualidade de uma maneira séria - o que, aliás, já foi feito por muitos escritores.
Em 1997, logo após terminar uma conferência em Mantova (Itália), encontrei no hotel onde estava hospedado um manuscrito que haviam deixado na portaria. Não leio manuscritos, mas li aquele - a história real de uma prostituta brasileira, seus casamentos, suas dificuldades com a lei, suas aventuras. Em 2000, passando por Zurique, entrei em contato com a prostituta - cujo nome de guerra é Sonia - e disse que tinha gostado do seu texto. Recomendei que enviasse à minha editora brasileira, que decidiu não publicá-lo.
Sonia, que então tinha fixado residência na Itália, pegou um trem e foi me encontrar em Zurique. Convidou-nos - a mim, um amigo e uma repórter do jornal Blick, que acabara de me entrevistar - para ir até Langstrasse, a zona de prostituição local. Eu não sabia que Sonia já havia prevenido suas colegas da nossa visita, e para minha surpresa, terminei dando vários autógrafos em livros meus, em diversas línguas.
A esta altura, eu já estava decidido a escrever sobre sexo, mas ainda não tinha nem o roteiro, nem o personagem principal; pensava em algo muito mais dirigido para a busca convencional do sagrado, mas aquela visita a Langstrasse me ensinou: para escrever sobre o lado sagrado, era necessário entender por que ele tinha sido tão profanado.
Conversando com um jornalista da revista L'Ilustrée (Suíça), contei a história da improvisada noite de autógrafos em Langstrasse, e ele publicou uma grande reportagem a respeito. O resultado foi que, durante uma tarde de autógrafos em Genève, várias prostitutas apareceram com seus livros. Uma delas me chamou especial atenção, saímos - com minha agente e amiga Mônica Antunes - para tomar um café, que se transformou em jantar, que se transformou em outros encontros nos dias que seguiram. Ali nascia o fio condutor de Onze minutos.
Quero agradecer a Arma von Planta, minha editora suíça, que me ajudou com dados importantes sobre a situação legal das prostitutas em seu país. As seguintes mulheres em Zurique (nomes de guerra): Sonia, que encontrei pela primeira vez em Mantova (quem sabe alguém um dia se interesse pelo seu livro!), Manha, Antenora, Isabella. Em Genève (também nomes de guerra): Amy, Lucia, Andrei, Vanessa, Patrick, Therése, Anna Christina.
Agradeço também a Antonella Zara, que me permitiu usar trechos de seu livro A ciência da paixão, para ilustrar algumas partes do diário de Maria.
Finalmente, agradeço a Maria (nome de guerra), hoje residindo em Lausanne, casada e com duas belas filhas, que em nossos vários encontros dividiu comigo e com Mônica sua história, na qual este livro é baseado.
Paulo Coelho
PAULO COELHO é hoje um fenômeno da cultura de massa reconhecido em todo o mundo.
Traduzido em 56 idiomas, publicado em 150 países, o escritor tornou-se referencial obrigatório para quem queira entender idéias e aspirações de nosso tempo.
Onde quer que sua obra tenha sido editada, a acolhida dos leitores surpreendeu, superando todas as possíveis expectativas.
Foi assim quando a HarperCollins lançou em 1993 O alquimista nos EUA, com uma tiragem de 50 mil exemplares, a maior já oferecida para um livro de origem brasileira. Hoje o livro é considerado um dos maiores sucessos da editora em sua história recente.
O triunfo excepcional se repete em todos os lugares onde o livro é lançado. Na França, onde é publicado pela Anne Carrère e alcançou o topo da lista de mais vendidos, por cinco anos consecutivos. Na Itália, onde sai pela Bompiani e ganhou os prestigiosos prêmios Super Grinzane Cavour e Flaiano, na Alemanha, onde o selo é Diogenes e permaneceu por 306 semanas na lista de best-sellers da revista Der Spiegel.
A carreira de Paulo Coelho, no entanto, não se resume ao bom desempenho nacional e internacional de um livro só. O diário de um mago, Brada, As valkírias, Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei, O monte cinco, Manual do guerreiro da luz, Veronika decide morrer, O demônio e a srta. Prym são livros que vêm provando a solidez do talento de seu autor e a fidelidade de seus leitores. Uma combinação de rara felicidade a ponto de merecer um dos mais famosos prêmios alemães, o Bambi 2001, concedido a quem "acredita no destino e nos dons do ser humano, e em sua capacidade de manter acesa a chama humanista, num mundo de trevas".
Em 28 de outubro de 2002, Paulo Coelho assumiu sua cadeira de imortal na Academia Brasileira de Letras. A conquista é natural numa trajetória literária incomparável e o atestado definitivo do potencial modificador de suas palavras, que podem ser encontradas, hoje, não só em seus muitos livros, como nas páginas de jornais para os quais colabora regularmente, entre eles Corriere della Sera (Itália), EL Semanal (Espanha), Welt am Sonntag (Alemanha), The China Times Daily (Taiwan).