TERCEIRA PARTE A CONQUISTA

I — O JULGAMENTO

Sem mais implicações, os doze sobreviventes se alinharam sobre o gramado, com as mãos atrás da nuca e as armas no chão. Os últimos haviam levado Honneger, ainda inconsciente, que foi cuidadosamente vigiado.

Com uma metralhadora na mão, penetrei com Michel no castelo, guiado por um dos prisioneiros. O interior estava em um estado lastimável. Nas paredes do salão, telas de grandes mestres, suntuosamente emolduradas, haviam sido destroçadas pelas balas. Dois extintores de gás carbônico vazios testemunhavam que havia sido sufocado um início de incêndio. No vestíbulo, com a lona e paredes cheias de metralha, encontramos, quase partido em dois, o cadáver de Charles Honneger. Por uma escadaria de pedra em caracol descemos ao porão, cuja porta de ferro tremia por golpes dados no seu interior.

Apenas entreaberta, saiu Ida Honneger. Michel a agarrou pelos pulsos.

— Aonde vais?

— E meu pai? e meu irmão?

— Teu irmão está morto. Teu pai… ainda vive.

— Não vai matá-lo, vai?

— Senhorita, — disse eu — dez dos nossos homens morreram por sua causa, sem contar os vossos.

— Oh, é espantoso! Porque fizeram isto? Porque? — disse, começando a chorar.

— É também um mistério para nós. — respondeu Michel — Onde estão as moças que eles levaram? E a Senhorita… Enfim, a estrela!

— Magda Ducher? Aqui no porão. As demais estão encerradas em outra cave, à esquerda, parece.

Penetramos no subterrâneo. Uma lâmpada a petróleo iluminava vagamente. Magdalena Ducher estava sentada em um canto, muito pálida.

— Não deve ter a consciência muito tranquila: — disse Michel — Levante-se e saia.

Libertamos as três camponesas.

De novo no térreo, encontrei Louis, que havia chegado com o resto do Conselho.

— O velho Honneger já se reanimou. Vem, vamos interrogá-lo.

Estava sentado sobre o gramado, com sua filha ao lado. Quando nos viu chegar, se levantou.

— Eu os menosprezei, senhores. Devia ter pensado em ter técnicos comigo. Haveríamos dominado esse mundo.

— Para que? — disse.

— Para que? Você não vê que era uma ocasião única para dirigir a evolução humana?

Dentro de algumas gerações teríamos produzido super-homens — Com seu material Humano? — disse sarcástico.

— Ao meu material humano não faltavam qualidades: valor, obstinação, desprezo pela vida. Porém vocês jogaram um grande papel em meus projetos. Meu erro foi ter acreditado que podia tomar o poder contra vocês. Devia tê-lo feito com vocês…

Inclinou-se para sua filha, que chorava.

— Não sejam duros com ela. Ignorava todos meus projetos e até tentou fazê-los fracassar. E agora, adeus, Senhores.

Com um gesto rápido levou algo à boca.

— Cianureto. — disse, caindo.

— Bem, um homem a menos par julgar. — disse Michel à guisa de oração fúnebre.

Nossos homens já estavam carregando os despojos nos caminhões: 4 metralhadoras, 6 fuzis-metralhadora, 150 fuzis, 50 pistolas e munição em abundância. Esta casa era um verdadeira arsenal. Fizemos um achado precioso: encontramos uma pequena impressora,intacta.

— Eu me pergunto que queria fazer na Terra, com todo este material.

— Segundo um dos prisioneiros, Honneger liderava uma liga fascista. — disse Louis.

— Em resumo, tanto melhor para nós. Assim poderemos lutar contra as hidras.

— A propósito, elas não voltaram a ser vistas. Vandal está dissecando, com a ajuda de Breffort, a pequena hidra conservada em um tonel de álcool. É formidável, este rapaz. Já ensinou, a uns quantos garotos, a arte da cerâmica, à maneira dos índios sul-americanos Voltamos ao povoado. Eram quatro da tarde. A batalha havia durado menos de um dia! Esgotado, adormeci.

Sonhei com meu velho laboratório em Bordeaux, a cara do «patrão» desejando-me boas férias. («Estou certo de que haverá algumas pequenas coisas para estudar no lugar em que você for» Oh, ironia! Tenho todo um planeta!). A compleição robusta do meu primo Bernard na entrada da porta, depois, umas centenas de metros mais abaixo, a montanha cortada a pico.

Às seis da tarde, meu irmão me despertou e fui ver Vandal. Estava em uma sala da escola; sobre uma mesa, diante dele, a hidra empesteando o ar com álcool, meio dissecada. Desenhava esquemas na ardósia e, sobre o papel, Breffort e Massacre o ajudavam.

— Ah, já estás aqui, Jean. — disse-me — Daria dez anos da minha vida para poder apresentar este espécime na Academia. Seria uma sessão extraordinária!

Me conduziu ante seus esquemas.

— Iniciei, não mais que primariamente, o estudo da anatomia destes animais, porém já se deduzem algumas coisas importantes. Sob certos aspectos, não posso deixar de compará-los a animais muito inferiores. Têm algo de nossos celentérios, embora não seja mais do que pelo grande número de nematocistos, de células urticantes, contidas em seu tegumento. Sistema circulatório muito simples: coração de duas grandes válvulas, sangue azulado. Uma só artéria se ramifica, e o resto da circulação é lagunar. Possui unicamente uma grande artéria aferente ao coração. As lagunas têm uma grande importância. Mesmo desinfladas, a densidade destas hidras é notavelmente débil. Aparelho digestivo de digestão externa, mediante a injeção de sucos digestivos na presa, e aspiração por um estômago-faringe. Intestino muito simples.

Porém existem duas coisas curiosas: 1ª A dimensão e complexidade dos centros nervosos.

Têm um autêntico cérebro, situado em uma cápsula quitinosa, detrás da coroa de tentáculos, estes completamente inervados. Têm também um curioso órgão, situado sob o cérebro, que se parece um pouco com o aparelho elétrico de um peixetorpedo.

Os olhos são tão perfeitos como os dos nossos mamíferos. Não estranharia, portanto, que este animal fosse, em um certo grau, inteligente. 2ª Os sacos de hidrogênio, que ocupam o setor superior do corpo, e ocupam as quatro quintas partes do seu volume. E este hidrogênio provem da decomposição catalítica da água a baixa temperatura. A água é conduzida por um tupo hidróforo, de um tentáculo especial, onde deve realizar-se a decomposição. Imagino que o oxigênio passa para o sangue, pois este órgão está rodeado de múltiplas arteríolas capilares. Se um dia dominássemos o segredo desta catálise da água!

«Uma vez inchados os sacos de hidrogênio, a densidade do animal é inferior à do ar e flutua na atmosfera. A poderosa cauda plana serve de leme, porém especialmente de timão. O principal sistema de propulsão reside em um dos sacos contráteis, que projetam para trás ar misturado com água, com uma violência inusitada, através de verdadeiros encanamentos. No espécime que conservamos, excitei eletricamente os músculos contráteis; coloquei no interior um anel de ferro. Olha como ficou!

Me estendeu um grande anel, dobrado em forma de um oito.

— A potência destas fibras musculares é prodigiosa!

No dia seguinte, pela manhã, fui despertado por pancadas na porta. Era Louis, para me avisar que o julgamento dos prisioneiros ia começar e que, como membro do Conselho, eu formava parte do Tribunal. O Sol azul se levantava.

O tribunal foi constituído em um grande hangar transformado em sala de justiça.

Compreendia o Conselho, reforçado por algumas representações. Entre eles, Valdez, Breffort, meu irmão Paul, Massacre, cinco camponeses, Beauvin, Estranges e seis operários. Nós ocupamos um estrado ante uma mesa e as representações sentaramse em ambos os lados. Adiante, um espaço vazio para os acusados e depois um lugar com bancos reservado ao público. Todas as saídas estavam guardadas por homens armados.

Antes de introduzir aos acusados, meu tio, que por sua idade e ascendência moral havia sido designado presidente, levantou-se e disse: Nenhum de nós teve antes que julgar a seus semelhantes. Formamos um tribunal marcial extraordinário. Os acusados não terão advogados, pois não temos tempo a perder em discussões intermináveis. Por outro lado, temos o dever de ser tão justos e imparciais, como seja possível. Os dois principais criminosos estão mortos. E eu devo recordar-lhes que os homens são preciosos neste planeta. Porém não esqueçamos tampouco que doze dos nossos foram mortos por culpa dos acusados, e que três de nossas jovens foram odiosamente maltratadas. Introduzam os acusados.

Eu sussurrei-lhe: — Onde está Menard?

— Está trabalhando com Martina em uma teoria sobre o cataclismo. É muito interessante.

Já voltaremos a falar disto.

Um a um, entre guardas armados, entraram os trinta e um sobreviventes. Ida Honneger e Magdalena Ducher foram os últimos.

Meu tio tomou novamente a palavra: — Sois coletivamente acusados de assassinatos, raptos e ataques a mão armada.

Subsidiariamente, de atentado contra a segurança do Estado. Existe um chefe entre vós?

Titubearam um momento, depois, empurrado pelos demais, um homem ruivo, enorme, avançou.

— Eu mandava, na ausência dos «patrões».

— Teu nome, idade e profissão?

— Biron, Jean. Trinta e dois anos. Antes eu era mecânico.

— Reconheces os fatos dos quais sois acusados?

— Que os reconheça ou não, dá no mesmo, vão fuzilar-nos do mesmo jeito.

— Não é certo. Poderiam ter sido enganos. Façam avançar os demais! Como pode atuar desta forma?

— Bem, depois da hecatombe, o patrão nos fez um discurso, dizendo que o povoado estava em mãos (desculpe-me) de uma chusma, que era necessário defender a civilização, e — ele titubeou um momento — que se tudo seguisse bem, nós seríamos como os senhores de outros tempos.

— Participaste do ataque ao povoado?

— Não. Podem perguntar aos demais. Todos os que tomaram parte foram mortos.

Eram os guarda-costas do filho do patrão. Claro que o patrão ficou furioso. Charles Honneger afirmou ter capturado uns reféns. Na realidade, fazia muito tempo que ele queria esta moça. O patrão não estava de acordo. Eu tampouco. Foi Levrain quem o incentivou.

E quais eram os objetivos do vosso patrão?

— Já lhe disse. Queria ser dono deste mundo. Tinha um monte de armas no castelo (na Terra ele fazia contrabando de armas) e também nos tinha presos a ele. Tentou o golpe. Estávamos presos a ele. Em outros tempos havíamos feito muitas coisas erradas.

Ele sabia que vocês não tinha armamento. Não imaginava que fabricariam tão depressa!

— Bem. Retire-se! O seguinte.

O seguinte foi o rapaz ruivo que havia agitado a bandeira branca.

— Teu nome, idade e profissão?

— Beltaire, Enrique. Vinte e três anos. Estudante de ciências.

— Que diabos fazias nesse antro?

— Eu conhecia Charles Honneger. Uma noite havia perdido todo meu salário do mês no poker. Ele pagou minhas dívidas. Me convidou para o castelo e durante uma excursão pela montanha me salvou a vida. Depois ocorreu o cataclismo. Eu não aprovei nunca os projetos do seu pai, nem sua conduta. Porém não podia abandoná-lo.

Devo-lhe a vida. Não disparei uma só vez contra vocês!

— Isto comprovaremos. Outro. Ah! Uma pergunta mais. Quais eram teus projetos?

— Queria ser técnico em aeromodelismo.

— Isto poderia servia mais adiante. Quem sabe?

— Queria dizer também… que Ida Honneger… fez todo o possível para preveni-los.

— Já sabemos e levaremos isto em conta.

O desfile continuou. Estavam mescladas todas as profissões. A grande maioria dos acusados haviam pertencido mais ou menos a uma liga fascista.

Eu não sei o que os outros pensavam naquele momento, porém eu estava confuso.

Muitos daqueles homens tinham um aspecto sincero e, inclusive alguns, honesto. Era evidente que os principais culpados haviam morrido. Beltaire teve minha simpatia pela fidelidade ao seu amigo. Nenhum dos outros acusados o imputou de falta alguma.

Ao contrário, haviam confirmado, em sua maioria, que ele não havia tomado parte no combate. O acusado número vinte e nove entrou. Declarou chamar-se Juillet Levrain, jornalista, de 47 anos de idade. Era um homem de compleição reduzida, delgado, traços duros.

Louis consultou seus papeis.

— Pela declaração das testemunhas, se depreende que voce não fazia parte dos homens de Honneger. Você era um convidado, e alguns supõem que era, inclusive, o grande chefe. Você não pode negar haver disparado contra nós. Ademais, as testemunhas se lamentam de… emfim, digamos, violências da sua parte.

— Isto é falso. Nos os via jamais. E eu era alheio a toda esta questão. Não era mais que um simples convidado.

— Que falta de vergonha! — exclamou o guarda da porta — Eu o vi na metralhadora do centro, a que matou Salavin e Robert. Apontei-lhe três vezes sem conseguir liquidá— lo. Este canalha!

Na sala, muitos dos guardas, reunidos como espectadores, aprovaram suas palavras.

Apesar dos protestos, foi conduzido para fora da sala.

— Introduzam a Senhora Ducher.

Entrou com ar abatido, apesar da maquilagem. Parecia inquieta, desorientada.

— Magdalena Ducher, vinte e oito anos, atriz. Mas eu não fiz nada!

— Você era a amante de Honneger pai, não é correto?

— Sim, — exclamou uma voz na sala, que desencadeou uma tempestade de risos — dos dois.

— É mentira. — exclamou ela — Oh, é odioso! Permitir que me insultem desta forma.

— Está bem, está bem! Silêncio na sala! Isto veremos depois. A seguinte.

— Ida Honneger, dezenove anos, estudante.

Seus olhos avermelhados não a impediam de eclipsar completamente à atriz.

— Estudante de que?

— De direito.

— Temo que isto não vai ser-lhe útil aqui. Sabemos que fez todo o possível para evitar o drama. Por desgraça não conseguiu. Ao menos pôde suavizar o cativeiro de nossas três jovens. Pode voce informar-nos sobre os que vamos julgar?

— À maioria não conheço. Biron não era má pessoa. E Enrique Beltaire merece vossa indulgência. Me disse que não havia disparado. E eu acredito. Era amigo do meu irmão… Reprimiu um soluço. «Meu pai e meu irmão não eram maus, no fundo. Eram violentos e ambiciosos. Quando eu nasci éramos muito pobres. A riqueza veio de uma vez e foi o que os fez se perderem. Oh! Este homem, este Levrain, ele foi a causa de tudo! Foi ele quem fez meu pai ler Nietzsche, e isto o fez acreditar no superhomem.

Foi ele também o culpado dos antecedentes desse projeto insensato de conquistar um mundo! É capaz de tudo! Eu o odeio!

Desfez-se em lágrimas.

— Sente-se senhorita, — disse gravemente meu tio — Vamos deliberar. Não tema.

Nós a consideramos mais como uma testemunha.

Nos retiramos, detrás de uma tela, assistidos pelo corpo de representantes.

A discussão foi prolongada. Louis e os camponeses eram partidários de penas severas.

Michel, meu tio, o pároco e eu mesmo defendíamos a moderação. Os homens eram tão escassos. Não compreendendo o que lhes havia ocorrido, os acusados haviam, como é lógico, acompanhados a seus chefes. Finalmente chegamos a um acordo.

Meu tio levou o veredito aos acusados reunidos.

— Juillet Levrain: nós o consideramos culpado de assassinato, rapto e violências com premeditação. Foste condenado à morte pela forca. A sentença será executada na próxima hora.

O bandido manteve sua postura, porém empalideceu horrivelmente. Um murmúrio percorreu a fila dos acusados.

— Enrique Beltaire: te consideramos inocente de toda atividade nefasta para com a comunidade. Porém como nada fizeste para prevenir-nos…

— Eu não podia de maneira alguma.

— Silêncio! Repito: como não nos preveniste, serás classificado como cidadão inferior, sem direito a voto, até que, por tua conduta, te achemos reabilitado.

— Aparte isto, sou livre?

— Sim, como todos nós. Porém se quiseres permanecer no povoado, terás que trabalhar.

— Eu não peço nada mais que isto!

— Ida Honneger: te consideramos inocente. Porém será inelegível durante dez anos.

— Magdalena Ducher: nada existe contra você, excetuando uma duvidosa moralidade e relações, digamos… sentimentais, — risos entre o público — com os principais criminosos.

Silêncio! Fica privada de todos os direitos políticos e restrita ao serviço de cozinha.

— Quanto aos demais: sois condenados a trabalhos forçados por um período de tempo que não poderá exceder a cinco anos terrestres, que podereis reduzir por vossa conduta. Ficais privados, à perpetuidade, de todo direito político, salvo destacada atuação em benefício da comunidade.

Produziu-se uma onda de alegria no grupo dos acusados, os quais temiam ser castigados com maior dureza.

— Vós sois pessoas extraordinárias. — gritou-nos Biron.

— Está encerrada a seção. Conduzi aos condenados.

O Senhor cura foi ao encontro de Levrain, por petição deste. Os espectadores, uns aprobatórios, outros furiosos, se dispersaram. Eu desci do estrado, dirigindo-me para Beltaire. Quando o encontrei, ele estava consolando Ida.

— Bem. — disse meu tio — agora compreendo porque se defendiam tanto, mutuamente.

— Onde vais alojá-la? A Ducher irá para a cozinha, queira ou não. Para voce é diferente.

Não pode nem sonhar em voltar ao castelo, que será destruído à mercê das hidras. Por aqui a habitação é escassa, com todas estas casas destruídas. Será necessário também procurar-lhe um trabalho. A lei agora proíbe a preguiça.

— Onde está esta lei? — perguntou Ida — Queremos ser bons cidadãos. E para isto devemos conhecê-la.

— Ah Senhorita! Não está redigida ainda. Há um monte de textos nos procedimentos verbais e sessões do Conselho. A propósito, não é jurista?

— Acabava de terminar meu segundo ano.

— Há aqui um trabalho feito na medida para você. Redigirá nosso Código. Falarei disto com o Conselho. E quanto a ti, — disse a Beltaire — ficarás comigo. Me ajudarás no trabalho de ministro das Minas. Com tua formação científica será muito em breve um excelente perito. Veja bem, alimentação na cantina e um teto como o meu sobre tua cabeça.

Michel se uniu a nós.

— Se queres contratar Beltaire, — disse-lhe — chegaste tarde, acabo de fazê-lo — Tanto pior. Ficarei com minha irmã. A astronomia terá que aguardar. Com certeza ela desceu com Menard. Vai-nos explicar suas teorias esta noite.

Observei Helios no alto.

— Tem tempo ainda. Ouve Michel, tua irmã se incomodaria em compartilhar seu alojamento com esta jovem enquanto encontramos outro lugar?

— Ela está aqui. Podes perguntar a ela.

— Faz isso por mim. Me intimida o astrônomo que há em tua irmã!

— Estás errado. É uma garota estupenda, e que te tem muita simpatia!

— Como tu sabes disto?

— Ela me disse muitas vezes. (E partiu rindo.)

II — A ORGANIZAÇÃO

À tarde, a Academia de Ciências de Tellus se reuniu na sala da escola. Menard ia fazer sua comunicação. Estavam presentes Michel e Martina, Massacre, Vandal, Breffort, meu tio, os engenheiros, o Senhor cura, o mestre, Enrique e Ida, Louis, meu irmão, eu mesmo, e alguns curiosos.

Menard subiu na tribuna.

— Vou explicar-lhes o resultado de minhas observações e cálculos. Nos encontramos, como todos sabem, em outro mundo. Chamemo-lo Tellus, já que este nomeprevaleceu.

Seu equador deve aproximar-se dos 50.000km. A intensidade da gravidade na superfície é de uns 0,9g terrestres;Tellus possui três satélites a distâncias que anda não conheço com precisão. A uns 100.000 quilômetros, o menor deles Febo, que aparenta ser o maior, devido à menor distância. A 530.000 quilômetros, Selenio, maior que nossa antiga Lua e a uns 780.000 quilômetros, e Ártemis, na que é três vezes maior. Eu acreditava a princípio que nos encontrávamos em um sistema de duplo astro solar. Nada disto. Na realidade, Sol, o pequeno sol vermelho, não é nada mais que um grande planeta exterior, todavia em estado estelar. Porém, mais distantes, situam-se ainda outros planetas que giram ao redor de Helios e não de Sol. Por outro lado, este possui pelo menos onze satélites. Atualmente nos achamos em um regime de oposição: quando Helios se põe, Sol se levanta. Porém, dentro de algum tempo, talvez em um quarto de ano de Tellus, nos encontraremos no quadrante. Teremos então dois sois, simultaneamente, ou somente um, ou nenhum, o que será mais cômodo para as observações. — terminou com satisfação.

«Os dias e as noites são, e permanecem, iguais. Estamos pois em um planeta cujo eixo tem muito pouca inclinação em relação ao plano da sua órbita. Como por outra parte, a temperatura é moderada, creio que devemos estar situados a cerca de 45º de latitude Norte. Admitindo-se a hipótese de uma obliquidade nula, a latitude do observatório seria de 45º 12'.

«Vou comunicar-lhes a única hipótese, não demasiado absurda, a que consegui chegar. A ideia, juntamente com outra, tive nas horas que se seguiram à nossa chegada.

«Sabeis sem dúvida que certos astrônomos consideram o Universo como uma hiperesfera (ou melhor, um hiper-esferoide) de quatro dimensões, curvo e espesso segundo a última delas, com o volume de uma molécula, flutuando em um hiperespaço que só podemos conceber muito vagamente e por analogia. A maioria dos técnicos consideram inclusive, que fora da composição tempo-espaço não existe nada, nem mesmo o vazio, pois o vazio pertence ao espaço. Esta concepção sempre me pareceu muito pobre, e agora, no entanto, creio ter a prova contrária. Segundo esta teoria, haveria, no espaço, hiperesferas-universos flutuando, como as balões de festa fariam dentro desta casa. Tomemos dois desses balões. Um é o nosso velho Universo, perdido em sua imensidão, com nossa Galáxia e nosso sistema solar. O outro é o Universo que inclui Tellus, em sua própria galáxia. Por uma razão desconhecida estes universos se chocaram. Houve uma interpenetração parcial das composições, e Tellus e a Terra se encontraram no mesmo lugar, no mesmo tempo, em ambos os universos. Por causas igualmente desconhecidas, um fragmento da Terra foi capturado pelo novo universo: pode ser que Tellus também tenha perdido algumas «penas» no encontro, e talvez nossos colegas na Terra estejam agora caçando hidras nas planícies do Ródano. Existe uma suposição certa: que os universos estavam animados de uma velocidade aproximadamente igual e no mesmo sentido, como também eram aproximadamente iguais as velocidade em suas respectivas órbitas. Sem isto seria pouco provável que houvéssemos sobrevivido. É o que explica também porque a missão interplanetária na qual figurava o primo de Jean Bournat, aqui presente, pôde suspeitar do cataclisma no lado de Netuno, e superá-lo em velocidade no seu regresso para terra. É possível que os planetas exteriores do nosso antigo sistema solar tenham sido «aspirados» para este universo e, neste caso, eu me divirto imaginando a cara que estão fazendo meus colegas na Terra. Porém não creio que isto seja provável.

«Restam muitas coisas misteriosas. Como não houve, devem vocês se perguntarem, interpenetração dos espaços ao nível do átomo, o que teria originado provavelmente uma grande explosão? Como o cataclisma se limitou à transferência de um fragmento da Terra a este novo universo? Não sabemos. Saberemos algum dia? É também uma circunstância perturbadora que, por uma sorte inconcebível, tenha caído em um planeta onde a vida protoplasmática á possível. O Senhor cura vê nisto a mão da Providência. Quem sabe?…

«Eu lhes disse que por um momento concebera outra hipótese ainda mais fantástica.

Pensei que talvez houvéssemos realizado uma viagem através do tempo e que houvéssemos caído no próprio passado do nosso planeta, no pré-cambriano, por exemplo. Que houvesse acontecido uma espécie de nó no tempo, e Sol fosse Júpiter Porém, além do fato desta hipótese levantar múltiplas dificuldades físicas e metafísicas, as características de Tellus e dos outros planetas desmentem-na categoricamente.

«Pode ser também, como imaginaram Michel e Martina Sauvage, que tenha topado com nosso velho universo, com uma dobra da quarta dimensão. Neste caso, poderíamos nos encontrar no sistema de uma estrela da nebulosa de Andrômeda, por exemplo, ou simplesmente no outro extremo da nossa antiga galáxia. Talvez as observações futuras nos confirmem.

«Para terminar, e render homenagem ao espírito profético de alguns novelistas, recordarei o que J. H. Rosny, pai, havia previsto em sua «Força Misteriosa» um cataclismo análogo a este. Porém travava-se de um universo de uma matéria diferente da nossa. Aqueles a quem interessam as implicações matemáticas, podem vir falar comigo.

Menard desceu da tribuna e, no mesmo instante, travou-se uma viva discussão com meu tio, Michel e Martina. Fui para perto deles, mas ao ouvi-los falar de tensores, de campos de gravitação, et cétera, bati rapidamente em retirada.

Louis me arrastou para um canto.

— A teoria do Senhor Menard é totalmente apaixonante, porém, do ponto de vista prático, não resolve nada. É evidente que devemos viver e morrer neste planeta. Trata— se de nos organizarmos. Muitas coisas estão ainda por fazer. Me dizias outro dia que poderia haver hulha não distante daqui. É correto isto?

— É possível. Me surpreenderia muito se a subversão não tivesse trazido á superfície hulha estefaniana ou westfaliana; não te assustes, trata-se simplesmente de estratos carboníferos que podemos encontrar em nossa região. De toda forma, não vai ser coisa do outro mundo! Alguns veios de cinco centímetros, ou talvez até de trinta, de hulha inferior ou antracita — Sempre é alguma coisa. É primordial para nós que a fábrica possa fornecer eletricidade.

Já sabes que a fabricação das granada devorou quase toda nossa reserva de carvão. Afortunadamente, temos alguns lingotes de alumínio e duralumínio. Na falta do aço…

Os dias seguintes foram para mim um período de intensa atividade. No Conselho tomamos uma série de medida de proteção. A alguns quilômetros do povoado foram instalados seis postos de vigilância, cobertos por proteção hermética. Foram aprovisionados como se para uma assédio, com comunicação com o posto central através de um telefone rudimentar, encarregados de dar o alarma à menor tropa de hidras.

Os habitantes das quatro granjas excessivamente isoladas foram evacuados para o povoado, juntamente com seu gado. Os trabalhos do campo se efetuaram sob a proteção de caminhões armados com metralhadoras. Para economizar combustível, eram arrastados ao local do trabalho pelos próprios animais a que deveriam proteger.

Aperfeiçoamos nossas granadas e tivemos, assim, uma artilharia anti-aérea que fez seus ensaios por motivo de uma incursão de umas cinquenta hidras, das quais trinta foram abatidas.

Uma manhã, fui com Beltaire e dois guardas armados à busca de carvão. Como havia imaginado, o campo carbonífero estava perto. Uma parte na zona intacta e o resto na zona morta, aflorando carvão em algum lugar.

— Aqui será melhor de começar. — disse Beltaire.

— Sim, mas os veios serão impossíveis de seguir neste caos. Vejamos no setor não deslocado.

Como já havia previsto, poucos veios passavam dos 15cm de espessura. Entretanto, uma delas alcançava os 55cm.

— Trabalho difícil em perspectiva para os mineiros. — disse.

Graças ao meu cargo de Ministro das Minas, consegui trinta homens e mandei-os limpar a via férrea que conduzia, em outros tempos, à próxima estação, assim como também o canteiro de argila que fornecia oa matéria prima para o alumínio. Apesar da descoberta de Moissac e Wilson, em 1964, se extraia o alumínio da argila e não só da bauxita, como anteriormente. Agora voltamos a este velho processo, cômodo para nós que possuíamos em Tellus depósitos enormes de bauxita, de uma pureza admirável. Tudo isto não foi feito sem que Estranges protestasse.

— Como levarei o mineral à fábrica?

— Primeiro: eu lhe cedo uma das duas vias. Segundo: no momento não temos necessidade de uma grande quantidade de alumínio. Terceiro: como a fábrica vai funcionar sem carvão? E quarto: fundimos ferro, quando encontrarmos o mineral. Entretanto, temos um monte ferro velho que voce pode transformar em trilhos. É este o seu ofício.

Requisitei igualmente duas pequenas locomotivas, das seis que a fábrica dispunha, e vagões em número suficiente. Nos canteiros de argila peguei três perfuradoras e um compressor.

Dias depois a mina estava em pleno funcionamento e o povoado dispunha de eletricidade.

Empregava dezessete «forçados» com guardas, cuja missão era não tanto a vigiá-los e sim protegê-los contra as hidras. Eles deixaram muito em breve de ser considerados como prisioneiros, e deixamos de considerá-los como tal. Converteramse nos «mineiros» e, sob a direção de um antigo capataz de minas, foram capazes em pouco tempo de cavar as galerias.

Desta forma se passaram sessenta dias, ocupados em trabalhos de organização.

Michel e meu tio, ajudados pelo relojoeiro, fabricaram uns pêndulos telurianos. Estávamos irritados com o fato de dia bisolar compreender 29 horas. Cada vez que consultávamos nossos relógios, tínhamos que fazer complicados cálculos. Fabricaram-se dois tipos de relógio, uns divididos em 24 «horas grandes» e os outros em 29 horas terrestres. Finalmente, anos mais tarde, adotamos o sistema ainda em uso hoje em dia, o único que nos é familiar: divisão do dia em 10 horas de 100 minutos, cada minuto, por sua vez, dividido em 100 segundos de dez décimos cada um. Estes segundos diferem muito pouco dos antigos. (um dos primeiros resultados do cataclisma foi o de desregular os relógios de pêndulo, ante o pasmo dos camponeses, por causa da diminuição do valor de «g».) Nossa reserva de provisões, somando às encontradas nos porões do castelo, nos permitiriam sustentar-nos durante uns dez meses terrestres. Encontrávamo-nos na zona temperada de Tellus, a zona da primavera eterna, e podíamos contar com várias colheitas por ano, se o trigo se aclimatasse. A superfície do vale que permaneceu cultivável bastaria enquanto a população não aumentasse demasiado. O solo de Tellus parecia fértil.

Havíamos consertado um grande número de casas e já não estávamos mais amontoados.

A escola havia aberto suas portas e o grande Conselho havia se estabelecido em um hangar metálico. Ida reinava na sala dos arquivos e eu estava certo de contar com Beltaire ali, quando tinha necessidade dele. Havíamos iniciado a redação de um embrião de Código, alterado o menos possível o direito usual na Terra, porém simplificando— o e adaptando-o. Este Código tem estado sempre em vigor. Havia também ali uma sala comum e uma biblioteca.

A estrada de ferro da mina de carvão estava funcionando, assim como também a do canteiro de argila, a fábrica funcionava à medida dos nosso desejos. Estávamos todos ocupados, pois a mão de obra não era abundante. O povoado era ativo e alguem poderia imaginar que se encontrava em uma animada vila terrestre e não na superfície de um mundo perdido no espaço infinito. Ou talvez seria melhor dizer: nos espaços?

Tivemos nossas primeiras chuvas em forma de tempestades, o que tornou o tempo confuso por uma dúzia de dias. Tivemos também as primeiras noites totais, embora breves. Não posso descrever a impressão que em mim produziram as constelações que iam ser as nossas para sempre.

Nós, os membros do Conselho, havíamos tomado como costume nos reunirmos em sessções privadas na casa do meu tio, ou na do povoado, ou, mais frenquentemente, na do observatório, novamente restaurado. Ali encontrávamos Vandal e Massacre, absorvidos no estudo das hidras, com Breffort de ajudante, Martina, Beauvin, sua mulher, meu irmão e Menard, quando conseguíamos arrancá-lo da sua máquina de calcular. Se nos Conselhos oficiais Louis usava a batuta nas coisas práticas, aqui, onde se falava muito mais de ciência ou de filosofia, meu tio, com sua ampla erudição, era o chefe indiscutível do grupo. Menard, de vez em quando, falava tambem, e todos ficávamos assombrados pela amplitude das concepções que desenvolvia esse homenzinho com barba de criança. Guardo excelentes recordações dessas reuniões, pois foi ali onde realmente conheci Martina.

Uma tarde, eu regressava muito satisfeito, pois a uns quilômetros da zona morta, em solo teluriano, havia encontrado excelente minério de ferro no fundo de um barranco.

Para dizer a verdade, não fui eu mesmo que descobri. Um dos homens da minha escolta me trouxe um pedaço, perguntando-me o que era.

Em uma curva do caminho encontrei Martina.

— Eu vinha precisamente te buscar.

— Estou voltando atrasado?

— Não, os outros estão no Observatório, onde Menard lhes explica uma descoberta.

— E tu vieste buscar-me? — perguntei lisonjeado — Ah! Não tem graça. É que aquilo não me interessa, fui eu quem descobriu.

— De que se trata?

— Trata-se de…

Naquele dia não devia me inteirar do assunto. Enquanto falava, Martina havia levantado a vista. Ficou de boca aberta e com um indizível horror no seu rosto. Me voltei: uma hidra gigantesca lançava-se sobre nós!

No último instante recobrei o controle próprio, joguei Martina no solo, jogando-me ao seu lado. A hidra roçou por nós, mas falhou o golpe. Levada por sua velocidade, voou ainda mais cem metros antes de poder voltar-se. Me pus em pé de um salto.

— Corre para o povoado! Há árvores ao lado da estrada!

— E tu?

— Vou distraí-la. Eu a acertarei, com certeza, com minha pistola.

— Não, eu fico também!

— Santo Deus, corre!

Era muito tarde para fugir. Eu sabia que com minha pistola tinhas poucas probabilidades de matar o monstro. Em uma rocha se abria uma cavidade. Empurrei Martina com força para lá e me pus diante dela. Antes que a hidra tivesse tempo de projetar seu dardo, disparei cinco balas: devem ter surtido efeito, pois o animal ondulou com um silvo e afastou-se. Me restavam três balas e minha faca, uma longa faca sueca, que eu conservava afiada como uma navalha. A hidra se colocou na nossa frente: seus tentáculos se moviam como os de um polvo, seus seis olhos glaucos e fixos nos observavam. A uma ligeira contração do cone central, tive a sensação de que o dardo ia partir. Fiz uso de minhas três últimas balas e, depois, faca na mão, cabeça abaixada, ataquei entre os tentáculos. Da parte inferior do monstro, agarrei um dos braços e puxei com força. Apesar da atroz queimadura em uma mão, eu segurei-a. Desequilibrado, o animal lançou seu dardo, que não alcançou Martina, e sua extremidade córnea bateu contra a rocha. No mesmo instante, agarrado ao flanco do monstro, eu o salpicava de golpes de faca. Depois disso minhas recordações são confusas. Só me recordo da raiva crescente, dos pedaços de carne ignóbeis contra meu rosto, a sensação de desequilíbrio, uma queda lenta, um choque. Isto é tudo.

Despertei em uma cama, na casa do meu tio. Massacre e meu irmão cuidavam de mim. Minhas mãos estavam vermelhas e inchadas e o lado esquerdo do meu rosto coçava.

— E Martina? — perguntei.

— Não sofreu nada. Uma ligeira comoção nervosa. — respondeu Massacre — Administrei— lhe um soporífero.

— E eu?

— Queimaduras, o ombro esquerdo deslocado, não tem grandes contusões. Um arbusto amortizou o choque. Recoloquei seu ombro durante o desmaio do qual agora se acordou. Na melhor das hipóteses voce tem duas semanas para recuperar-se.

— Quinze dias! Com tantas coisas para fazer! Acabo de encontrar minério de ferro.

Uma violenta dor me atravessou as mãos.

— Ouça doutor, não tem nada contra este veneno? Isto está queimando muito.

A porta abriu-se com violência. Michel precipitou-se dentro do quarto. Vinha em minha direção com as mãos estendidas. Quando viu minhas mãos vendadas, se deteve de chofre.

— Doutor?

— Não será nada.

— Querido amigo! Sem ti eu teria perdido minha irmã!

— Não querias que nos deixássemos comer por aquela espécie de polvo que se equivocou de ambiente, não é verdade? — disse eu tentando brincar — A propósito, ela está morta?

— Morta? Eu creio que sim. A transformaste em lama. Realmente, não sei com te agradecer.

— Não se preocupe. Neste mundo terás certamente ocasiões para corresponder.

— E agora, — disse Massacre — Deve dormir. Provavelmente terás um pouco de febre.

Saíram silenciosamente.

Quanto Michel estava abrindo a porta, pedi-lhe: — Amanhã pela manhã, chama-me Beltaire.

Caí em um sono agitado, do qual só saí umas horas mais tarde, esgotado porém sem febre. Voltei a dormir aprazivelmente e despertei muito tarde na manhã seguinte.

A dor das minhas mãos e do meu rosto haviam diminuído muito. Na cadeira, Michel dormia, dobrado em dois.

— Te velei a noite toda, — disse a voz do meu irmão, da porta. — Como estás?

— Melhor, muito melhor. Quando achas que poderei me levantar?

— Massacre disse que dentro de dois ou três dias, se a febre não voltar.

Por trás de Paul, apareceu de súbito Martina, trazendo um bule onde o café fumegava.

— Isto é para Hércules! O doutor disse que já podias comer!

— Deixou o bule, ajudou-me a sentar e, acomodando-me as costas com uns almofadões, me deu um beijo rápido na testa.

— Eis aqui uma insignificante prova de agradecimento. E pensar que sem voce eu seria um cadáver informe! Brrr!

Sacudi Michel.

— Querido irmão, de pé. Louis está te esperando.

— Michel se levantou, bocejou e, depois de haver-se informado da minha saúde, seguiu com Paul.

— Louis virá à tarde. E agora, Senhor Hércules, vou fazê-lo comer.

— Porque Hércules?

— Senhor! Quando alguem combate as hidras corpo a corpo…

— E eu que pensei que falava do meu físico. — disse com um tom comicamente dolorido.

— Muito bem, brinca, estarás bom muito em breve.

Me fez comer como a uma criança e depois tomamos uma xícara de café.

— É excelente. — disse.

— Muito cortês, porque eu mesma preparei. Acreditaria se te dissesse que tive que me dirigir ao Conselho para obter uma insignificante ração de café? Está classificado como medicamento! Temo que será necessários nos acostumarmos a prescindir dele.

A existência de plantas de café em Tellus é improvável. E, o que é ainda mais grave, do açúcar também.

— Ah! Com certeza encontraremos uma planta açucarada. Se não… temos colmeias.

Utilizaremos mel.

— Sim, porém embora tenhamos flores em nosso rincão de terra, a vegetação teluriana me parece, até o momento, completamente desprovida delas.

— Isso veremos depois. Por minha parte sou otimista. Tínhamos uma única possibilidade de sair com vida e aqui estamos.

Umas batidas na porta a interromperam. Eram os dois inseparáveis Ida e Enrique.

— Viemos ver o herói — disse ela.

— Oh! Herói! Quando alguem se encontra entra a espada e a parede, o heroísmo é inevitável.

— Não creio. Imagino que eu teria me deixado comer. — disse Enrique.

— E se estivesse com Ida?

— Como?

Me ruborizei.

— Não, não quis dizer isto. Suponhamos que estivesses com Martina ou outra moça.

— Francamente, não sei.

— Estás mentindo! Porém não foi para isto que te mandei chamar. Va, com os dois homens que me escoltavam, reconhecer com detalhes o depósito de ferro. E me trarás diversas amostrar. Como quando o encontramos já era tarde, não fiz mais que dar uma olhada. De qualquer forma, se o depósito valer a pena, levanta um traçado para uma via férrea. E desconfia das hidras: Elas não voam sempre em bandos! Aqui tens a prova! Duas ou três podem cair-te em cima. Leva, inclusive, dez homens de escolta e um caminhão. E tu Ida, como vai teu trabalho?

— Comecei a codificar seus decretos. É curioso estudar o direito no nascimento. Seu Conselho se arrogou com poderes ditatoriais. Espero que será provisório.

— Há alguma novidade?

— Louis está furioso com os observadores que deixaram passar tua hidra sem assinalá— la, sob pretexto de que era isolada. São os do posto 3.

— Que sem-vergonhas!

— Louis fala em fuzilar-los — Isto é excessivo. E não temos sobra de homens.

De fato, a primeira vez que saí, cinco dias depois, apoiando-me em Michel e Martina, me inteirei de que eles haviam sido simplesmente expulsos da guarda e condenados a dois anos de trabalho nas minas.

Pouco a pouco me reincorporei à vida normal.

Construímos uma via férrea até o depósito de ferro e um alto-forno rudimentar. O mineral — de óxido de ferro — era rico, porém pouco abundante, embora fosse suficiente para nossas reduzidas necessidades. Apesar dos conhecimentos de Estranges, a primeira fornada se produziu com dificuldade. A fundição de má qualidade, sem carvão suscetível de ser transformado em coque, foi refinado com aço. Para dizer a verdade, foi com o fim de medir nossas possibilidades que começamos aquela primeira fornada, já que para o futuro imediato não estávamos com falta de ferro.

Fundimos trilhos e rodas de vagão. Perto da mina, construímos guaritas de obra, para os trabalhadores, para o caso de ataque de hidras. Foram modificadas as cabines da locomotivas, com o fim de que pudessem ser fechadas hermeticamente, à vontade.

A temperatura era sempre a mesma, um doce clima de primavera quente. As «noites negras» aumentavam singularmente de duração.

No Observatório, meu tio e Menard já haviam descoberto cinco planetas exteriores, dos quais, o mais próximo aparecia com um atmosfera jaspeada de nuvens.

Através das aberturas nas nuvens podiam-se contemplar mares e continentes. O espectroscópio indicava a presença de oxigênio e vapor de água. Tinha dimensões substancialmente iguais à da Terra e possuía satélites. O desejo de estender os domínios está ancorado tão profundamente no coração humano, que nós, pobre fragmento de humanidade, ainda incerto da sua sobrevivência, nos alegramos de ter como vizinho um planeta habitável.

Perto da mina, sob a proteção da guarnição, aproximadamente um hectare de solo telúrico havia sido arroteado para experimentação. Era uma terra leve, rica em húmus formado pela decomposição das plantas acinzentadas. Imediatamente, mandei semear trigo de diferentes variedades, apesar da desaprovação dos camponeses que argumentavam que «não era a época». Michel teve que empregar toda sua eloquência para convencê-los de que em Tellus não havia épocas no sentido terrestre da palavra, e que produziria tanto agora quanto mais tarde.

Durante o trabalho de limpeza, tivemos que lutar contra as serpentes chatas, das quais havíamos encontrado um cadáver quando da nossa primeira exploração. Os camponeses as chamaram «víboras» e por este nome ficaram conhecidas, mesmo não tendo nenhum ponto de contato com as víboras terrestres Seu comprimento oscilava entre 50cm e 3m, e embora não fossem venenosas, falando com propriedade, sim eram muito perigosas. Suas poderosas mandíbulas côncavas injetavam na presa um líquido digestivo muito ativo, que causava, se o socorro não era imediato, uma espécie de gangrena, com liquefação dos tecidos o que produzia a morte ou pelo menos a perda do membro atacado. Afortunadamente, esses animais muito agressivos e ágeis eram raros. Um boi foi picado e morreu, um homem deveu sua salvação à presença de Massacre e Vandal que praticaram imediatamente a amputação do pé atacado. Foram as únicas vítimas.

Os primeiros animais que emigraram à superfície de Tellus foram as formigas.

Vandal descobriu um ninho de grandes formigas marrons de cujo nome esqueci, perto da mina de ferro. Eram apaixonadas por uma goma que exsudavam as plantas cinzentas. As colônias se multiplicaram rapidamente e nosso trigo, apenas aparecia sua cabeça verde e já as encontrávamos por toda parte. Na luta que se fez aos pequenos «insetos tellusianos», ganharam com facilidade.

Foi uma temporada aprazível, depois do nosso áspero começo. O trabalho absorvia nossos dias. Passaram-se vários meses. Tivemos nossa colheita de trigo, magnífica, no hectare arroteado em Tellus, boa nos campos terrestres. O trigo pareceu aclimatar— se muito bem. Nosso gado aumentava e ainda não havia problema de pastos. As plantas terrestres pareciam ganhar a partida contra as autóctones. Já existiam pradarias mistas, e era algo muito curioso ver nossas plantas rodearem um arbusto empoeirado com folhas de zinco.

Tive então ocasião de refletir sobre meu novo destino. Imediatamente após o cataclismo fiquei mergulhado na mais absoluta confusão, tive a impressão de ter sido exilado para sempre, separado dos meus amigos por uma distância ao lado da qual as terrestres não eram absolutamente nada. Depois o horror de haver caído em um mundo desconhecido e povoado de monstros. A urgência da ação, a guerra civil, a organização necessária, o papel de dirigente que havia sido forçado a assumir, haviam ocupado inteiramente meu ânimo. E agora, me apercebia disto com espanto: o que dominava dentro de mim era a alegria da aventura, um desejo frenético de ir olhar além do horizonte.

Explicava tudo isto a Martina, um dia em que estava indo ao Observatório. Michel e ela já não trabalhavam muito ali. Distribuíam seu tempo entre os «trabalhos sociais»

e o ensino de ciências a um pequeno pastor, Jaime Vidal, que se havia revelado de uma inteligência muito acima do normal. Por minha parte, eu lhe ensinava geologia, Vandal biologia e meu irmão a história da Terra. Depois, ele chegou a ser um grande sábio. E, como sabeis, vice-presidente da República. Porem não nos antecipemos.

— E pensar, — disse — que meu primo Bernard queria levar-me em seu projétil interplanetário e que eu recusei sempre, alegando que queria antes terminar meus estudos.

Na realidade eu tinha medo! Eu, que teria ido até o final do mundo para procurar um fóssil, experimentava um verdadeiro horror ante a ideia de sair da Terra. E eis-me aqui em Tellus, tão contente. É curioso.

— Quanto a mim é ainda mais curioso. Já estava tentando refutar, em minha tese, a teoria do espaço curvo. E foi aqui que sofri uma prova esmagadora da sua veracidade.

Estávamos na metade do caminho, quando soou a sirene.

— Cuidado! Ainda esses animais imundos. Ao refugio!

Havíamos construído refúgios, um pouco por toda parte. Nesta ocasião eu tinha, além da minha pistola e da minha faca, uma metralhadora. O refúgio mais próximo estava a uns trinta metros. Corremos até lá sem falsa vergonha. Obriguei Martina a entrar, permanecendo eu junto à porta, disposto a atirar. Rolaram umas pedras e uma silhueta curva, vestida de negro, apareceu: o Senhor cura.

— Ah! É voce Senhor Bournat? De onde vêm as hidras?

— Creio que do norte. A sirene soou somente uma vez. Entre voce.

— Meu Deus… quando vamos desembaraçar-nos destes animais infernais?

— Temo que não seja logo. Ah! Elas já estão aqui. Passe. Você não está armado.

Sobre nós, a grande altura, uma nuvem verde se movimentava. Perto, porém ligeiramente baixo, uns pequenos flocos negros apareceram no céu: as granadas.

— Muito curto! Ah, agora está melhor!

A salva seguinte havia acertado em cheio. Segundo mais tarde uns pedaços de carne verde caíram como uma chuva ao redor do refúgio. Deixando a porta entreaberta, voltei a entrar. Mesmo quando estavam mortas, o contato com as hidras era urticante. No interior, Martina, observando pela vigia de vidro grosso, falava com o Senhor cura. Compreendendo o perigo que corriam se permanecessem agrupadas, as hidras se deixavam cair em grupos de duas ou três Da minha porta, as vi circulando ao redor de uma locomotiva cerrada hermeticamente. Soltei uma gargalhada: o mecânico havia deixado escapar um jato de vapor ante o espanto das hidras.

Ainda estava rindo, enquanto olhava ao redor. Ao sul do povoado, os disparos crepitavam e na praça do poço algumas hidras mortas jaziam por terra. Subitamente, pareceu que o céu escurecia: saltei para o interior, fechando a porta. Uma hidra passou roçando no teto. Antes que tivesse tempo de introduzir o cano da minha escopeta no disparador, o monstro já estava longe. Um grito de Martina me sobressaltou.

— Jean! Aqui, depressa!

Saltei para a janela. Fora, a cento e cinquenta metros, um garotinho de uns doze anos corria com toda suas forças para o refugio. Uma hidra o perseguia. O garoto, apesar do perigo de morte, não estava assustado, e utilizava com inteligência as árvores, que atrapalhavam a seu perseguidor. Vi a cena e me precipitei para fora, ao seu encontro. A hidra havia tomado altura e mergulhava.

— Abaixe-se!

O garoto compreendeu e se jogou contra o solo e a hidra falhou. Eu lancei uma rajada de uma dez balas a cinquenta metros. O animal se sobressaltou, virando, e voltou à carga. Eu apontei de novo, a trinta metros desta vez. Na terceira bala a arma travou. O tempo que levaria em trocar o cano pelo de recambio que tinha guardado e o garoto estaria morto. Joguei minha arma e preparei a pistola. A hidra chegava.

Então, resfolegando, sublime e ridículo, passou o Senhor cura com a sotaina levantada.

E quando a hidra atacou ele estava ali, braços em cruz, fazendo do seu corpo uma proteção para o garoto. Ele foi atingido. Com minha arma, afinal destravada, atirei no monstro numa distância de dez metros, que caiu sobre o corpo da sua vítima.

Não havia mais hidras à vista. Os disparos haviam cessado no povoado. Algumas manchas verde flutuavam altas no céu. Afastei o cadáver do Senhor cura, — um centímetro cúbico do veneno da hidra matava um boi, e o animal injetava dez vezes mais.

— Martina levantou o garoto em seus braços robustos, desmaiado, e descemos ao povoado.

Os habitantes limpavam suas portas. Quando estávamos chegando, o garoto se reanimou. E quando Martina o devolveu à sua mãe já podia andar.

Encontrei Louis, sombrio, na praça do poço.

— Mau dia. Dois mortos: Pierre Evreus e Jean Claude Chart. Não quiseram esconder— se, para poder atirar melhor.

— Três mortos. — eu disse.

— Quem foi o terceiro?

O pus ao corrente.

— Bem, não gosto muito dos curas. Porém esse foi morto como um homem! Proponho que os três homens que caíram tenham funerais solenes.

— Como queiras.

— É preciso levantar o moral, Há demasiados homens que têm medo! Embora tenhamos derrubado trinta e duas hidras!

Da sala do Conselho, telefonei ao meu tio para dizer-lhe que estávamos a salvo.

No dia seguinte teve lugar o enterro. Louis pronunciou um breve discurso sobre as hidras, exaltando o sacrifício dos três homens.

Eu regressei do cemitério com Michel e Martina. Tomamos um atalho, através do campo, e encontramos o cadáver de uma hidra que obstruía o caminho. O animal era enorme, de uns seis metros de comprimento, sem os tentáculos. O contornamos.

Martina estava muito pálida.

— Que está acontecendo, pequena? — perguntou-lhe Michel — Já não há perigo!

— Michel, tenho medo! Este mundo é desapiedado, demasiado selvagem para nós.

Esses monstros verdes matarão a todos nós.

— Não creio. — disse — Nosso armamento cada dia se aperfeiçoa. Ontem, com um pouco mais de prudência, não teria havido vitimas. No fundo, não corremos mais perigo que os indus com os tigres e as serpentes…

— Para as serpentes existem os soros. Os tigres, bem, são tigres, animas não muito diferentes de nós. Porém ser digerido dentro da própria pele por estes pólipos verdes…

Oh! Que horror! — muito baixo repetiu — Tenho medo!

Nós a confortamos como melhor pudemos. Porém ao chegar ao povoado vimos que não era a única. O trem de minério de ferro estava parado, o maquinista falava com um granjeiro: — Tu, — dizia este último — tu ris, Com tua cabine bem fechada, assunto resolvido.

Porém nós, antes que algum haja soltado os bois e entrado num refugio, tem tempo de morrer dez vezes. A sirene pode tocar, toca sempre muito tarde. Te asseguro que cada vez que vou ao campo faço minhas orações. Não estou mais tranquilo que em casa. E ainda assim!

Ouvimos não poucas conversas neste estilo, aquele dia. Alguns elementos da fábrica, não obstante trabalharem cobertos, fraquejavam. Se as hidras chegassem a atacar todo dia, não sei como haveríamos terminado. Afortunadamente, antes da grande batalha, não fizeram mais incursões e pouco a pouco a tensão dos espíritos se relaxou, até o ponto em que tivemos que castigar algum observador negligente.

III — A EXPLORAÇÃO

Naqueles dias ultimei meu projeto de exploração, uma vez que me dei conta que gostava de Martina. Cada noite subíamos juntos para a casa do meu tio para a ceia.

Michel nos acompanhava, porém na maioria das vezes ele ia adiante. Eu confiava a Martina meus projetos, e ela se manifestava como uma excelente conselheira. Desta forma, trocávamos nossos pontos de vista sobre os respectivos trabalhos e, pouco a pouco, chegamos à troca de recordações pessoais.

Me inteirei então de que ela era órfã desde os três anos, e que Michel a havia educado.

Como era astrônomo, e como ela também era muito bem dotada para as ciências exatas, ele a havia incentivado neste sentido. Por minha parte, eu havia tido a sorte, como primo irmão de Bernard Verillae, de conhecer os membros da primeira expedição Terra-Marte, e pude fornecer muitos detalhes inéditos sobre eles. Havia sido, inclusive, fotografado por um jornalista entusiasta, entre Bernard e Sigmund Olsson, como o «membro mais jovem da expedição», o que me valeu muitas brincadeiras na Faculdade. Em troca, quando se tratou de incluir-me a bordo, para o segundo «raid», eu recusei, em parte com o fim de não afligir minha mãe, ainda viva naquele tempo, o que era honorável, e em parte por simples medo, o que era o de menor importância. Encontrei os jornais da época na biblioteca do meu tio e expliquei a Martina a famosa fotografia. Ela me mostrou outro clichê, que reproduzia os assistentes em uma conferência do chefe da missão Paul Bernadac. Com um traço de lápis, enquadrou a um jovem e uma moça na quinta fila.

— Michel e eu. Tivemos, em sua qualidade de astrônomo, um bom lugar. Para mim foi uma jornada gloriosa!

— Talvez eu tenha me encontrado contigo naquele dia. — disse — Eu ajudava Bernard a passava os clichês no aparelho de projeção.

Com o auxilio de uma lupa, pude reconhecer o rosto de Martina, um pouco acriançado.

Assim conversamos, noite após noite.

Um dia em que Michel nos aguardava na porta, chegamos de mãos dadas. Cômicamente ele colocou as suas sobre as nossas cabeças.

— Meus queridos filhos, como chefe de família, dou-lhes minha bênção.

Nos olhamos, incomodados.

— Então, terei eu me equivocado?

Respondemos ao mesmo tempo: — Pergunta a Martina.

— Pergunta a Jean.

Os três rompemos numa gargalhada.

No dia seguinte, tendo meditado conscienciosamente sobre meus projetos, expus ao Conselho meu plano de exploração.

— Você poderia — perguntei a Estranges — transformar um caminhão em uma espécie de tanque ligeiro, blindado com duralumínio e armado de uma metralhadora?

Servirá para explorar uma parte da superfície de Tellus.

— Isto é necessário? — perguntou Louis.

— Certamente. Não ignora que nossos recursos são bastante precários e o resto de minério de ferro da mina é suficiente apenas para dois anos, se não o utilizarmos em demasia. A planície e os pântanos que nos rodeiam são muito pouco propícios para a descoberta de depósitos de minérios. Seria necessário ir até as montanhas. Talvez ali encontremos também árvores suficientes, para fornecer-nos madeira de construção sem que tenhamos que destruir os bosques que nos restam, os que não estão sobrando.

Talvez ali descubramos animais úteis, carvão. Quem sabe? Talvez também um local sem hidras. É pouco provável que se afastem dos pântanos.

— Quanto diesel pensas em gastar?

— Quanto consome o menor caminhão?

— Vinte e dois litros a cada cem Km. Carregado e em terreno desigual, pode chegar a gastar trinta.

— Suponhamos que eu leve 1.200 litros. Isto me proporcionará um raio de ação de 2.000 quilômetros. Não me distanciarei tanto, porém tenho que contar com os desvios.

— De quantos homens precisas?

— Sete, contando comigo. Penso em levar Beltaire, a quem ensinei a reconhecer os principais minerais. Michel, se quiser ir.

— Com certeza! Sou voluntário. Afinal farei astronomia «sobre o terreno».

— Tu me serás útil, especialmente para marcar o lugar com os dados topográficos.

No que respeita aos outros membros, verei depois.

O projeto foi aceito por unanimidade, exceto por um voto, o de Charnier.

No dia seguinte, Estranges pôs os operários a trabalhar para transformar o caminhão convenientemente. Escolhemos um caminhão de plexiglas, provenientes da reserva do observatório. O sistema de fechamento das portas foi reforçado com placas de duralumínio, podendo-se, em caso necessário, obstruir as janelas. Uniu-se a plataforma com a cabine, sendo aquela alargada e transformada em moradia. Os arcos de aço foram recobertos de espessas placas de duralumínio Uma cúpula superior albergou uma metralhadora de 20mm, cuja abertura era feita com um sistema de pedais.

Devíamos levar, além disso: 30 foguetes de 1.10m, de longo alcance, dois fuzismetralhadora e quatro fuzis de repetição. A metralhadora foi aprovisionada com 800 cartuchos, os fuzis_metralhadora com 600 e os fuzis de repetição com 400. Seis tambores de 200 litros continham nosso diesel. Seis catres subrepostos em séries de três, uma pequena mesa dobrável, umas caixas cheias de víveres, utilizadas também como assentos; instrumentos explosivos, ferramentas,um tambor de água potável, um pequeno aparelho de radio emissor-receptor, acabaram de obstruir o reduzido espaço, no interior, até o teto.

O habitáculo estava iluminado por duas lâmpadas e três janelas obturáveis. Uns disparadores permitiam atirar deste o interior. No teto, ao redor da cúpula, colocaram seis pneus novos. O motor foi totalmente revisado, e assim tive à minha disposição um veículo temível, bem armado, capaz de desafiar às hidras, possuindo, em combustível, uma autonomia de 4.000 quilômetros, e em víveres, de vinte e cinco dias.

No teste na estrada, obtivemos facilmente uma média de 60km/h. Em terreno desigual não se podia contar com mais de 30.

Também me ocupei da composição da equipe. Deveria compreender:

Chefe da missão e geólogo: Jean Bournat.

Chefe de campo: Breffort.

Zoólogo e botânico: Vandal.

Navegador: Michel Sauvage.

Exame de terrenos e minerais: Beltaire.

Mecânico e radio: Paul Schoeffer.

Este último, antigo mecânico aviador, era um amigo de Louis.

Não sabia como escolher o último expedicionário. Havia pensado em Massacre, mas sua presença era igualmente indispensável no povoado. Deixei minha lista incompleta em cima da mesa. Quando regressei encontrei-a concluída com a atrevida letra de Martina: Cozinheiro e enfermeiro: Martina Sauvage.

Apesar de todos meus pedidos e os do seu irmão, foi impossível dissuadi-la. Como era robusta, valente e excelente atiradora, não fiquei muito preocupado em ceder.

Por outro lado, eu estava convencido de que nosso «tanque» nos oferecia o máximo de segurança.

Realizamos nosso últimos preparativos. Cada um colocou como pôde alguns livros ou objetos pessoais que queria levar. Tomamos posse dos nossos catres. Havia mais de 60cm de separação entre eles. Martina ficou no mais alto à direita, eu no mais alto à esquerda. Abaixo de mim, Vandal e Breffort e abaixo dela, Michel e Beltaire.

Schoeffer teria que deitar no banco do condutor, sendo a cabine suficientemente larga para seus 1,60m. Instalamos também um ventilador, por causa da temperatura, que prometia ser incomodativa. Um tampa se abria em um dos lados da cúpula, o que nos permitia subir ao teto. Porém, ao menor perigo, todo mundo deveria entrar imediatamente.

Cada um tomou seu lugar, numa madrugada azul. Eu empunhei o volante, com Michel e Martina ao meu lado. Vandal, Breffort e Schoeffer subiram ao teto. Beltaire estava no posto da metralhadora, na torre, em comunicação comigo por telefone. Eu me havia assegurado de que cada um de nós, inclusive Martina, era capaz de dirigir, atirar com a metralhadora e reparar as avarias mais frequentes.

Depois de haver estreitado a mão de nossos amigos e abraçado ao meu tio e ao meu irmão, pus o motor em marcha. Rodamos em direção ao castelo. Na torre, Beltaire agitou a mão por longo tempo, em resposta ao lenço de Ida. Eu estava exultante e feliz, cantando a plena voz. Passamos sobre as ruínas, bordejamos a via férrea e, por uma nova estrada que havíamos construído, — uma pista melhor — chegamos à mina de ferro. Tive a satisfação de encontrar os observadores nos seus postos. Alguns operários iam e vinham antes de começar o trabalho, outros comiam algo. Trocamos sinais amistosos. Depois começamos a rodar na planície, entre as ervas telurianas.

A princípio, espaçadamente, vimos algumas plantas terrestres. Desapareceram logo. Uma hora mais tarde passamos sobre os últimos vestígios dos meus reconhecimentos.

E adentramos o desconhecido.

Um ligeiro vento do Oeste ondulava a vegetação que passava soba o caminhão, com um suave rumor. O solo era firme e muito plano. A savana cinzenta estendia-se até o infinito. Algumas nuvens brancas — nuvens «normais», falou Michel — flutuavam para o Sul.

— Em que direção vamos? — perguntou Michel, que havia disposto sobre uma pequena prateleira os instrumentos de que precisava para seu papel de navegante inverso, com relação à Terra — a ponta do compasso que na Terra indica o Norte, aqui aponta para o Sul. — O magnetismo de Tellus é constante, e nossas bússolas funcionavam perfeitamente.

— Primeiro em frente, para o Sul depois para o Sudoeste. Com isto rodearemos o pântano. Ao menos assim espero. Depois para as montanhas.

Ao meio-dia fizemos alto. Tomamos nossa primeira refeição «à sombra do caminhão», como disse Paul, sombra é coisa inexistente. Afortunadamente soprava um vento suave. Enquanto bebíamos alegremente uma garrafa de bom vinho, as ervas ondularam, e uma enorme víbora apareceu. Sem duvidar um momento, seguiu reta e afundou suas mandíbulas no pneu esquerdo dianteiro, que emitiu um chiado característico.

— Santo Deus! — exclamou Paul, que saltou para o caminhão, saindo com um machado.

Incentivado pelo «Esquarteja-a» de Vandal, assestou na besta um golpe tão furioso que a partiu em duas e o metal do machado afundou no solo até a empunhadura.

Nós morríamos de rir.

— Acho que esta víbora não achou esta presa suculenta, — disse Michel, esforçandose em abrir-lhe as mandíbulas.

Foi necessário empregar uma pinça. Desmontado o pneu, verificamos que os sucos digestivos do animal eram tão poderosos que a câmara de ar esta dissolvida e a borracha corroída — Minhas desculpas, — disse Michel, voltando-se para os restos do animal. — Acho que ela poderia comer a borracha!

Novamente em marcha, rodamos a 25 ou 30km em média.

Quando entardeceu, eu ainda estava ao volante, havíamos feitos 300km e uns picos situados à esquerda nos haviam convencido de que o pântano continuava.

Foi somente ao cabo de três horas do dia seguinte, depois de uma boa noite, que pudemos mudar de direção, sem haver encontrado outra coisa mais que ervas cinzentas, raras árvores pequenas e algum barranco que tivemos que evitar. Ao longe se perfilavam as montanhas para as quais seguíamos Pouco antes das dez, o tempo mudou e ao meio-dia a chuva tamborilava sobre as chapas de duralumínio. Comemos, apertados no interior. A chuva era tão violenta que dificultava a visão, e decidi deter-nos até que parasse. Entreabrimos as janelas para deixar entrar ar fresco e, uns estirados nos catres e os demais sentados na mesa, ficamos discutindo. Eu estava em um lugar intermediário na banqueta dianteira, com Michel e sua irmã ao meu lado, sentados na soleira da porta de comunicação.

Michel e eu fumávamos nossos cachimbos e os demais fumavam cigarros. Graças a Deus ou ao azar, havia plantas de tabaco no povoado, além de uma abundante provisão, e havíamos podido plantá-las. Ao abrigo das incursões dos inspetores da Tabacaria!

A chuva durou dezessete horas. Quando despertamos ainda persistia, embora mais fraca, e os turnos de guarda afirmaram que não havia cessado um instante. Toda a planície estava coberta por uma película de água, absorvida lentamente pelo húmus Quando Michel o pôs em marcha, o caminhão derrapou antes de avançar.

Ao final do terceiro dia, havíamos percorrido 650 quilômetros, chegamos perto das montanhas. As colinas, orientadas no sentido SO-NO, reduziam o horizonte, e entre duas delas eu faria um achado capital.

Era noite. Nós havíamos nos detido ao pé de um montículo avermelhado, onde a vegetação permitia ver uma terra desnuda, argilosa. Levando minha arma, havia me distanciado um pouco. Vagando, vigiando o céu de vez em quando, eu refletia. Me perguntava se as leis da geologia terrestre eram aplicáveis a Tellus. Acabara de decidir— me pela afirmativa, quando notei que há algum tempo experimentava uma sensação indefinível, porém conhecida. Me detive. Estava diante de um pequeno pântano oleoso, onde a vegetação era muito pobre, apenas umas manchas amareladas rodeados de reflexos iridescentes. Tive um sobressalto: aquilo cheirava a petróleo!

Aproximei-me. Umas bolhas negras subiam à superfície, por uma pequena fenda.

Inflamaram-se sem dificuldade, o que não significava nada, pois podia tratar-se de simples gás Porém, e as iridescências? Aparentemente, ali havia um depósito petrolífero, provavelmente a pouca profundidade. Estudei o local detidamente. A capa argilosa que cobria a colina era substituída aqui por uma rocha escura, ardósia. A uns cem metros, esta terminava em uma beirada de calcário branco. Todas as aparências de uma fissura. O petróleo podia ser rastreado através dessa fissura, caso em que era provável que se perdesse. Ou talvez permanecesse próximo à superfície. De toda forma, havia petróleo em Tellus, e encontraríamos uma maneira de explorá-lo.

Anotamos cuidadosamente aquele lugar no nosso itinerário e rodeamos uma cadeia de montanhas pelo sul. — seria melhor chamá-las colinas altas, pois não ultrapassavam os 800 metros de altura. — Eram elevações calcárias, pouco erodidas, provavelmente geologicamente jovens. Em um bloco desmoronado descobri uma concha fóssil, muito parecida a um braquípodo terrestre. Isso provava que nem todos os seres de Tellus estavam — ou não haviam estado — tão absolutamente desprovidos de armação, como as hidras. A vegetação continuava igualmente monótona: ervas cinzas e «árvores» cinzas. Durante as paradas, Vandal transformava a mesa em laboratório, e o micrótomo não deixava de funcionar. Porém até o momento não havia conseguido nenhum descobrimento sensacional. As células das plantas eram análogas às dos vegetais terrestres, embora frenquentemente polinucleadas. Estas plantas não tinham inflorescências, e sim uns grãos semelhantes ao dos pteridospermos da era Primaria da Terra.

Assim que rodeamos as colinas vimos ao longe uma poderosa cadeia de montanhas coroadas de picos nevados. A mais alta era particularmente bela. Chocava-nos por sua enorme altitude. Levantava-se negra como a noite sob seu chapéu de neve, cônico, regular, caindo reto sobre a planície. Era provavelmente vulcânica. Batizamos de «Monte Tenebroso».

Dirigimos direto para ela. Michel tomou alguns dados e, com um simples cálculo, deduziu sua altura. Sussurrou: — Aproximadamente 12.700m!

— Doze quilômetros! Superior ao Everest…

— Mais de 3.000 metros.

— Porque conseguimos distinguir claramente o pico? Não deveria estar acima das nuvens?

— Acontece que não há nuvens. São bastante raras em Tellus. Porém quando chove!…

Lembra de anteontem!

— Entretanto, deve chover mais frequentemente do que pensas. Esta vegetação não vive sem água!

Antes de chegarmos ao pé do pico, topamos com um difícil obstáculo. O solo começou a descer. E no fundo de um amplo vale avistamos um rio. Estava rodeado de uma vegetação dendriforme, que mostrou-se mais próxima das árvores terrestre que todas as que conhecíamos até o momento. Existiam inclusive inflorescências, que Vandal comparou com os cones de determinados gimnospermos Como atravessar o rio? Não era muito largo, — uns 200 metros — mas era rápido e profundo. As águas eram negras. Como recordação do meu país natal, o batizei de «Dordogne». Parecia pouco provável que umas águas tão rápidas pudessem agradar às hidras, porém tomamos nossas precauções. Seguimos o fluxo da corrente, na esperança de encontrar um vau fácil. À noite, nos pareceu que chegáramos à nascente.

O rio parecia saltar de um penhasco. Não foi fácil passar com o caminhão pela espécie de ponte que formava essa paragem rochosa: estava obstruída pela vegetação e por blocos de pedra e cortado pelas torrentes. Rio abaixo, pela outra margem, seguimos até o «Monte Tenebroso». Por uma ilusão de ótica, parecia formar parte da cadeia de montanhas. Na realidade, erguia-se muito antes, como uma gigantesca mesa recoberta de lava negra, basalto e outras rochas. Ele nos pareceu a prova de uma mudança recente na origem profunda do magma expelido pelo vulcão, pois as lavas, fluidas, não formam um relevo escarpado. Grande quantidade de obsidiana pontilhavam a base.

Perto de uma delas fiz um surpreendente achado: em um monte de lascas encontrei uma ponta finamente cinzelada, em forma de folha de louro, totalmente análoga às que nossos antepassados fabricaram na Terra ao longo do período solutrense.

IV — OS SSWIS

Mostrei meu achado, em particular, a Michel e Breffort.

— Estás certo — perguntou Michel — que não pode ser uma forma natural?

— De modo algum. Considera a forma geral, os retoques. É exatamente a réplica de uma ponta solutrense.

— Ou de algumas peças, igualmente em obsidiana, provenientes da América, que terias podido contemplar no museu do Homem, se o houvesse frequentado. — acrescentou Breffort.

— Portanto, — repôs Michel — é forçoso admitirmos que existem homens em Tellus.

— Não necessariamente. — disse Vandal — A inteligência pode florescer sob formas distintas da nossa. Até o momento, a fauna teluriana não tem nada de terrestre.

— Certo. O fato de meu primo e seus companheiros terem encontrado humanoides em Marte, não é razão para que devam existir aqui também.

— Não poderia tratar-se — respondeu Michel — de terrestres como nós que, não tendo à sua disposição nossos meios, tenham retrocedido à Idade da Pedra?

— Não creio. Na Terra eu conhecia muitos poucos homens capazes de cortar a pedra à maneira pré-histórica. E podes acreditar, a fabricação de semelhante peça supõe uma habilidade que não se adquire senão por uma treinamento de muitos anos.

De qualquer forma, abramos os olhos e ponhamos os outros ao corrente.

Assim foi feito. Mandei revisar os faróis e o refletor conectado na cúpula móvel.

Para fazer frente a qualquer eventualidade, foi dobrada a guarda noturna e eu assumi o primeiro turno com Michel. Subi a torre e eu me coloquei na frente, na banqueta, e passei o cano de uma fuzil-metralhadora por um disparador. Com os carregadores prontos, aguardei. Ao cabo de um momento chamei Michel por telefone.

— É melhor que nos comuniquemos de vez em quando; isto nos impedirá de dormir.

Se quiseres fumar teu cachimbo, tem cuidado para que a luz do teu isqueiro não se filtre para fora.

— De acordo. Se eu observar alguma coisa, te advirto logo, e…

Fora, muito perto, retumbou um estranho e poderoso grito. Parecia um berro gutural, que terminou em um sibilo horrível que crispava os nervos. Tive uma estranha impressão de rigidez. Os sáurios gigantes do secundário deviam ter umas vozes deste tipo. Estaríamos em uma região povoada de tiranossauros?

Michel me sussurrou pelo microfone: — Ouviste?

— Claro que sim.

— Que diabo pode ser? Ilumino?

— Não, por Deus! Cala-te.

O estranho grito foi ouvido novamente, mais perto ainda. Atras de uma barreira de árvores vi, à pálida lus de Selenio, uma coisa enorme que se movia. Suspendendo a respiração, pus o carregador na metralhadora. O ruido me pareceu ensurdecedor.

Com um ligeiro chiado a torre moveu-se. Sem dúvida Michel o havia visto também e apontava sua arma.

No silêncio que se seguiu, pude ouvir os roncos de Vandal. Deviam estar todos muito fatigados para não haver despertado com esses gritos!

Quando me perguntava se era preciso tocar a campainha de combate, a forma se moveu e saiu de trás das árvores. Com tão pouca luz, só entrevi um dorso denteado, umas patas gordas e grossas, uma cabeça chifruda, chata, muito larga. Devia medir uns 25 ou 30 metros de comprimento e 5 ou 6 de altura. Com o dedo eu tateava a segurança da arma, comprovando que esta estivesse pronta para atirar, mas não me atrevi a colocar o indicador no gatilho, temendo lançar uma rajada por nervosismo.

— Atenção. Preparado, porém não dispares — disse — Mas o que é essa porcaria?

— Não sei! Atenção!

O monstro se movia. Estava avançando para nós. Sua cabeça tinha uns chifres enramados como os de um cervo, e reluziam soba a lua. A pouca velocidade, meio deslizando, meio trepando, foi para a sombra da barreira de árvores e o perdi de vista.

Foram uns minutos terríveis. Quando reapareceu, estava mais distante e se fundiu gradualmente na noite. Um Ufa! Me chegou pelo telefone. Eu respondi da mesma maneira.

— Dá uma olhada — disse.

Pelo chiado dos pedais, compreendi que Michel obedecia. De repente escutei um Ah! apagado.

— Vem cá!

Subi pela escada até perto de Michel, no outro lado da metralhadora — Na tua frente, distante.

Ao entardecer havíamos visto, naquela direção um penhasco. Agora piscavam uns pontos luminosos que às vezes, ante algum obstáculo, desapareciam.

— Fogo nas grutas! É ali que vivem os talhadores da obsidiana!

Permanecemos ali hipnotizados, observando de vez em quando.

Quando, algumas horas mais tarde, levantou-se o sol vermelho, ainda estávamos ali.

— Porque não nos despertaram? — lamentou-se Vandal — E pensar que não pude ver este animal!

— Não foi muito amável da vossa parte. — acrescentou Martina.

— Pensei nisto. — disse — Porém, enquanto o animal esteve ali não quis produzir confusão com um despertar sobressaltado, e ele foi logo embora. Agora Michel e eu vamos dormir um pouco. Vandal e Breffort ficam encarregados da guarda. É desnecessário recomendar que estejam alertas. Só disparem em caso de absoluta necessidade.

Tu Charles, — disse a Breffort — pega outro fuzil-metralhadora e sobe á torre.

Só usem a metralhadora como último recurso. As munições são relativamente escassas.

Porém, se for necessário, não te detenhas. Proibição absoluta de sair. Despertem— me quando Helios sair.

Não dormimos mais que uma hora! Uns disparos e a brusca partida do caminhão me despertaram. Em um abrir e fechar de olhos eu estava fora da cama, recebendo Michel ainda meio desnudo, acima da minha cabeça. Através da porta de comunicação vi Paul ao volante e as costas de Vandal inclinada sobre um fuzil-metralhadora Atrás, Beltaire, com outro fuzil-metralhadora, observava, os olhos fixos no disparador A torre girava em todas direções e a metralhadora pesada disparava rajadas de quatro ou cinco balas.

— Michel, aprovisiona a metralhadora!

Passei para a parte dianteira.

— Que está acontecendo? Porque estamos estamos nos movendo?

— Tocaram fogo na erva.

— Sobre quem disparam?

— Sobre os que a incendiaram. Olha, ali estão!

— Através de umas ervas altas entrevi uma silhueta vagamente humana que corria a toda velocidade.

— Estão montados a cavalo?

— Não! São «Centauros»!

Como que para confirmar a expressão que Vandal havia usado, uma daquelas criaturas apareceu a uns cem metros, sobre um monte liso. À primeira vista evocava claramente a lenda: Media aproximadamente dois metros de altura, um corpo quadrúpede, com umas pernas finas e compridas. Perpendicularmente ao corpo, crescia um torso quase humano, com dois longos braços. A cabeça era calva. Um tegumento moreno reluzia como uma castanha da índia recém descascada. Aquele ser tinha na mão um feixe de varas. Pegou um com sua mão direita, correu até nós e lançou.

— Uma azagaia. — eu disse, surpreendido.

A arma cravou-se no solo, a alguns metros, desaparecendo sob as rodas. Uma exclamação de angústia chegou do fundo do caminhão: — Mais rápido, mais rápido! O fogo está nos alcançando!

— Estamos na velocidade máxima, 55 por hora. — disse — O fogo está longe?

— Somente a 300 metros. O vento o empurra para nós!

Seguimos direto. Os «centauros» haviam desaparecido.

— O que aconteceu? — perguntei a Martina.

— Estávamos falando do animal que viste esta noite, quando Breffort mostrou a Vandal que apareciam uns corpos detrás de nós. Apenas falei isto, quando apareceu uma centena destes seres, que começaram a lançar-nos azagaias. Creio inclusive que alguns teles tinham arcos. Respondemos ao ataque e nos pusemos em marcha. Isto é tudo.

— O fogo progride. — gritou Beltaire — Está a cem metros!

A fumarada obscurecia a paisagem à nossa direita. Algumas chispas superavam o caminhão, acendendo fogos secundários, que tínhamos que evitar.

— Tenta forçar um pouco, Paul.

— Estamos a toda velocidade! Sessenta por hora. E se um pneu rebenta…

— Então nos assaremos. Porém aguentarão!

— À esquerda, Paul, à esquerda, — gritou Breffort — terreno limpo!

Schoeffer virou e, instantes depois, rodávamos através de uma vasta e nua extensão de argila avermelhada. As montanhas estavam perto e Helios se levantava. Consultei meu relógio; do momento em que havia me deitado até aquele instante, haviam passado uma hora e meia.

Nossa posição naquele momento era boa. Nos encontrávamos sobre uma superfície desolada, de vários quilômetros de circunferência, provavelmente. Com nosso armamento intacto, éramos temíveis. No nosso caminhão, não corríamos perigo de ser atingidos, excetuando os pneus, nem por flechas, nem por azagaias.

Pouco a pouco, o fogo rodeou nossa ilhota de salvação e passou pela esquerda.

Adiante do fogo corriam todos tipos de bestas curiosas. Vandal desceu à terra e capturou algumas. De formas e tamanhos variados, — desde o de um musaranho à de um cachorro grande — apresentavam todas elas uma característica pouco comum: a presença de seis patas. O número de olhos variava entre três e seis.

À nossa direita, o fogo, tendo encontrado talvez uma vegetação mais úmida, deteve— se. À esquerda tinha nos empurrado um pouco. Alcançou um grupo de árvores, que crepitaram e se inflamaram com violência, como se estivessem impregnadas degasolina.

Ouviu-se um ruido terrível. Uma forma enorme saiu de entre as árvores abrasadas e correu direto para nós a grande velocidade. Tratava-se do animal que vimos à noite, ou de um irmão da mesma raça, que devia ter seu esconderijo naquele bosque. A uns 500 metros de nós, em terreno limpo, deteve-se. Com os binóculos pude examiná— lo em detalhe. Sua forma geral — excetuadas as seis patas, — era de um dinossauro.

O dorso denteado se prolongava através de uma comprida cauda eriçada. Sua pele verde brilhante era calosa. A cabeça, de uns três ou quatro metros, estava dotada de numerosos chifres, dois deles ramificados; possuía olhos, dois laterais e um frontal. Virou-se para lamber uma ferida e pude ver uns dentes enormes, agudo,s e uma comprida língua roliça em uma boca violácea.

Então apareceram dez «centauros» armados com arcos, que começaram a atirar suas flechas no monstro. O animal lançou-se sobre eles. Com uma maravilhosa presteza, eles o contornaram; seus movimentos eram vivos e precisos e sua velocidade ultrapassava à de um cavalo a galope, o que era absolutamente necessário, uma vez que o monstro exibia uma ágil atividade, muito notável com relação ao seu peso.

Todos nós observávamos aquela apaixonante caça épica, temendo intervir. Teria sido difícil disparar sem alcançar os próprios caçadores, dançando em torno da sua presa. Eu ia ordenar que nos puséssemos a caminho, quando aconteceu um drama.

Um dos «centauros» escorregou. A enorme mandíbula do monstro o agarrou, triturando— o.

— Adiante! Prontos para disparar!

Avançamos, a velocidade moderada, para poder manobrar melhor. Por estranho que possa parecer, não creio que os «centauros» tivessem notado nossa presença antes que estivéssemos a cem metros deles. Então nos viram, e abandonaram imediatamento o ataque ao monstro, reagrupando-se de três em três À medida que avançávamos, eles retrocediam, deixando-nos frente à frente com o animal. Tínhamos que evitar a tudo custo um choque com ele, o que nos teria esmagado.

— Fogo! — gritei.

O monstro nos atacava. Embora crivado pelas balas e pelos obuses perfurantes, não se deteve. Schoeffer, com uma rápida manobra do volante, inclinou à esquerda.

Me pareceu que o animal escorregava para a direita, quando um golpe de cauda amassou a blindagem. A metralhadora continuou disparando. A besta quis voltar-se para nós, tropeçou e se deteve imóvel, morta. À distância, os «centauros» observavam.

O monstro já não se movia. Com a metralhadora em punho, desci do caminhão com Michel e Vandal. Martina quis vir porém a proibi. Com razão. Apenas pusemos os pés em terra, os «centauros» nos atacaram, acompanhados de gritos sibilantes: «Sswis! Sswis! Um fuzil-metralhadora crepitou, calando-se em seguida, talvez travado.

A metralhadora disparou por duas vezes. Mas os assaltantes já estavam sobre nós. Nossa rajadas foram mais eficazes. Três «centauros» mortos, rolaram por terra; mais dois feridos fugiram. Uma chuva de flechas caiu ao nosso redor, enrrando-nos.

Depois, foi corpo a corpo. Com nossas metralhadoras descarregas, empunhamos as pistolas. Apenas peguei a minha, quando me senti preso e içado pelas costas. Havia sido agarrado por uns braços poderosos contra um torso oleoso, do qual se desprendia um acre cheiro de gordura rançosa. Eu tinha os braços apertados contra o corpo e minha pistola na mão esquerda. Pude ouvir uns disparos, mas não podia me virar.

A terra seca ressoava sob os pés do meu atacante.

Me dei conta de que se não me desprendesse rapidamente estaria perdido. Uns trinta «centauros» chegaram como reforço. Com um violento esforço pude afrouxar o abraço do meu inimigo, virar-me e soltar meu braço direito. Fiz passar minha pistola para a mão direita e disparei cinco balas na cabeça do ser que estava me arrastando.

Rolei por terra, maltratado e quase desmaiado. Quando me levantei, os outros não estavam a mais de 300 metros e o caminhão chegava a toda velocidade, com as armas caladas. Me pus a correr para ele sem grandes esperanças de escapar. Estava inundado de um líquido alaranjado e viscoso, o sangre do centauro. Ouvia cada vez mais perto o galope dos meus perseguidores. Minha respiração era entrecortada. Minhas costas doíam Vi Michel fazendo sinais com o braço através da abertura da torre.

— Muito tarde. — pensei — Porque não disparam? — De repente compreendi: não podiam atirar sem risco de me acertar. Brutalmente, me lancei ao solo voltando-me em direção ao inimigo. Ainda tinha três balas na minha arma. Apenas cai ao chão, quando os primeiros obuses sibilaram sobre minha cabeça, alcançado uns10 inimigos. Se assustaram e detiveram-se. Não obstante, dois deles continuavam me perseguindo; derrubei-os a uns cem metros. Com um chiado de freios, o caminhão se deteve muito perto, com a porta aberta. Saltei para o interior. Uma chuva de flechas bateu contra a porta, arranhando o plexiglas da portinhola. Um dos dardos passou através de um disparador, cravando-se, vibrando, em um encosto. Respondemos ao fogo e os sobreviventes fugiram. Éramos dono do campo de batalha.

Michel desceu da torre.

— Certo rapaz, escapaste de uma boa! Porque diabos não de abaixastes antes?

— Foi o que estive pensando. Não houve feridos?

— Vandal recebeu uma flechada no braço, no meio do alvoroço. Não há de ser nada… se não estiver envenenada. Breffort examinou a ponta e afirma que não está.

— Que seres infernais!

— Aonde vamos agora?

— Voltemos para ver o Golias que abatemos.

Michel, Vandal e eu descemos pela segunda vez para examinar o monstro, assim como os cadáveres dos «centauros» que haviam ficado no primeiro campo de batalha.

Segundo Vandal, a couraça do Golias, como chamávamos ao monstro, era um material semelhante à quitina dos insetos terrestres, embora distinta. Em todo caso, era muito dura, e para conseguir arrancar um dos chifre ramificados, que Vandal queria levar, arrumamos uma serra para metais. Fotografamos o animal e os «centauros» mortos. Tínhamos ainda alguns carretéis de filme que usávamos com parcimônia.

São realmente seres estranhos esses «centauros», ou «Sswis» — como também os chamamos por causa do seu grito — Um corpo quase cilíndrico, quatro patas finas, cascos duros e pequenos, uma cauda córnea e curta. Na parte anterior, este corpo acaba bruscamente, e se inicia um torso quase humano, com dois longos braços que terminam em mãos de seis dedos opostos e iguais, por pares. A cabeça esférica, calva, desprovida de aparelho auditivo externo, — que é substituído por uma membrana sobre uma concavidade — possui três olhos de um cinza pálido, o maior dos quais está situado na frente. Uma boca ampla com uns dentes agudos, como de répteis. O nariz comprido, mole, movendo-se como uma tromba, cai sobre a boca.

Vandal dissecou sumariamente a um deles. O cérebro é complexo e volumoso, protegido por uma cápsula quitinoide. A armação óssea é mineralizada, porém flexível.

Embora diferentes, são muito mais próximos a nós que as hidras. Alguns cadáveres ainda estavam quentes. O torso não encerra mais que dois vastos pulmões, análogos aos nossos, embora mais simples, o coração, com quatro concavidades, e o estômago.

As vísceras localizam-se na parte horizontal do corpo. O sangue, espesso, era de uma cor alaranjada.

— São seres que forçosamente temos que chamar humanos. — disse afinal Vandal — Conhecem o fogo, talham a pedra, fabricam arcos. São definitivamente inteligentes.

Que lástima termos entrado em relação com eles desta forma!

Partimos, não sem antes haver observado que além das suas armas — arco, ou as azagaias com pontas de obsidiana finamente talhada — os Sswis levavam ao redor da parte vertical do corpo uma espécie de cinta de vegetais artisticamente trançados, que sustentava umas pequenas bolsas da mesma natureza, cheias de objetos de obsidiana, que lembravam notavelmente as ferramentas no nosso Paleolítico Superior humano.

Escolhemos, para passa a noite, uma extensão de terreno completamente desprovido de vegetação. Esses curiosos espaços nus eram bastante frequentes e me convenci de que se deviam à natureza do solo, uma espécie de laterita completamente estéril. Seja qual fosse a causa, servia aos nossos propósitos. Detivemos o caminhão no alto de uma grande elevação, como precaução, para o caso de uma falha no motor quando tentássemos dar a partida. Todas as precauções foram inúteis. A noite transcorreu sem qualquer alarme, turvada apenas pelo grito distante de um Golias.

Não obstante, pela manhã, Michel me despertou com uma cara preocupada.

— Olha. — disse ele, mostrando-me o barômetro.

Este marcava exatamente 76 centímetros de mercúrio, em lugar dos de 91 que nos são habituais.

— Tenho a impressão de que vamos desfrutar, dentro em pouco, de um tempo divertido.

— Estás certo de que não se deve à altitude?

— Ontem à noite assinalava 90.

Levou-me ao vidro da esquerda.

— Olha as montanhas.

Os «Montes desconhecidos» desapareciam na bruma. A oeste, o céu se cobria de nuvens cinza.

— Não podemos permanecer aqui. — decidi. — Em frente. É necessário encontramos um refugio natural.

Paul tomou o volante. Ao instalar-se, observou o horizonte e deixou escapar um assobio significativo.

— Vejam isso! Não tinha vista nada igual desde aquela tempestade no Atlântico Sul!

O setor oeste tinha um cinza-chumbo sinistro. Produzia um contraste surpreendente, o sol nascente brilhando com todo seu esplendor e com essa cor espantosa que ascendia com rapidez pelo céu — À esquerda. — disse — Há uma maior elevação de terras, ao menos não teremos que temer uma inundação.

Seguimos para Sudoeste, através da planície deserta. As nuvens quase haviam alcançado o zênite. De súbito, caíram as primeiras gotas de chuva, grandes e barulhentas.

O vento, que no alto arrastava as nuvens, era nulo ao nível do solo. Fazia um calor agoniante.

Deixando Michel ao lado do condutor, subi, seguido de Martina, para a torre, de onde esperava divisar um refugio. Com o objetivo de chegarmos mais depressas às montanhas, derivamos completamente para o Sul e depois para Sudeste. O sol ascendia lentamente. A chuva, pouco nutrida, persistia. A tempestade se desencadeava a Oeste, com um rumor surdo. Estávamos chegando a uns penhascos, que sob aquela luz cada vez mais pálida, me parecia coalhada de cavernas. Ainda nos faltavam dois bons quilômetros. De repente se desencadeou a tempestade O vento alcançou o caminhão, desviando-o da rota. Paul soltou uma exclamação, ao mesmo tempo em que, com um golpe de volante, restabelecia nossa direção primitiva. A chuva ficou mais pesada, as flechas liquidas eram varridas pelo vento e o penhasco parecia mais distante ou mais próximo, segundo a direção do vento que separava ou precipitava a cortina da chuva. Retumbou um trovão com um ruido ensurdecedor. A escuridão era quase total, iluminada de vez em quando por brilhantes relâmpagos de um violeta deslumbrante. Tive que recolher a metralhadora para o interior do veículo e fechar a portinhola. Logo tive que fazer-me compreender à força de gritos, por causa do continuo fragor.

O caminhão avançava com dificuldade. O solo, viscoso, não oferecia resistência aos pneus, que derrapavam. O vento não era continuo, soprava em rajadas bruscas, dificultando a condução. Não podíamos ultrapassar os 10 quilômetros por hora, por causa do perigo. Os relâmpagos pareciam palpitar durante longos minutos; depois aquilo se converteu em um espetáculo fantasmal de luz e trevas, de onde emergia e desaparecia, ao meu lado, o rosto pálido e um pouco assustado de Martina.

Quando me abaixava, via sob meus pés o interior do caminhão. Sobre a mesa, Breffort escrevia o diário de bordo e Vandal passava suas anotações a limpo. Não conseguia descobrir Beltaire. Vi, finalmente, uma perna balançando no catre. Quando levantava a cabeça, o universo, contrastando com a calma do interior, parecia ainda mais desencadeado. O vento e a chuva se intensificavam. Os relâmpagos mostravam a capota e o teto gotejando como se tivessem saído do mar. A antena vibrava, dobrava, com perigo de quebrar-se. No intervalo que deixava o trovão, percebi um canto agudo.

— Bem, bem. — gritei — é uma senhora tempestade — É magnífico. — respondeu Martina.

Era realmente um espetáculo magnifico, embora pavoroso. Anteriormente, na Terra, eu havia sido surpreendido por tempestades na montanha, porém jamais havia visto nada que pudesse comparar-se a esta, em violência e beleza. Caiu um raio a 200 escassos metros de nós e eu gritei para Michel: — O que marca o barômetro?

— Ainda baixando.

— Estamos chegando. Vejo vários refúgios Acende os faróis O penhasco estava muito perto. Rodamos durante dois ou três minutos antes de encontrar uma abertura capaz de abrigar o caminhão, e de fácil acesso.

Temendo um novo encontro dom os Sswis, — ou com os Golias — dispus a metralhadora em bateria, e um sopro de ar frio e úmido penetrou com o rumor da chuva.

A caverna estava vazia, e logo o caminhão estava em terreno seco, protegido por mais de trinta metros de rocha. Nós o colocamos de frente para o exterior e descemos.

Beltaire, a quem cabia o turno, permaneceu na metralhadora.

A caverna media uns cinquenta metros de comprimento por vinte de altura e vinte e cinco de profundidade. A água resvalava pela abóbada formando goteiras. Não obstante, o solo estava seco, graças às saliências da rocha, que faziam as vezes de cornijas. Em um local, cinzas, ferramentas de obsidiana e resíduos de ossos, testemunhavam a recente presença dos Sswis. Portanto era prudente manter vigília. Encontramos também, cuidadosamente guardados em uma anfractuosidade, blocos de obsidiana e reservas de madeira seca.

Talvez fosse imprudência, porém acendemos um fogo detrás do caminhão. Almoçamos perto dele ao meio-dia e as latas de conserva vazias aumentaram o monte de lixo deixado pelos Sswis — Me pergunto que cara farão nossos amigos «centauros» quando encontrarem estes curiosos recipientes — disse.

— Principalmente se olharem para as ilustrações das latas. — acrescentou Michel.

— Um pote de salsicha tinha uma efigie policromática da «Tia Irma», representação de uma opulenta cozinheira.

— Vão ter uma pobre impressão da nossa arte — interveio Martina.

Falávamo-nos aos gritos, para dominar o ruido tempestuoso das águas.

Com Beltaire, ajudado por Michel e Breffort, abrimos uma pequena vala para pesquisar o solo da morada. Queria saber se havia sido habitado em outras épocas. Nosso trabalho se viu recompensado pela descoberta, na terra arenosa, de duas camadas de cinzas e resíduos, cada uma delas de uma espessura de vinte centímetros As duas nos mostravam trabalhos idênticos; diferentes, pelo que pudemos observar, dos que realizavam os Sswis atuais. Eram mais primárias; talhadas somente em um lado e não em forma de folhas de louro. Encontramos também o esqueleto de um Sswis bem conservado, porém não pudemos comprovar se havia sido voluntariamente envolto em mortalha. Descobrimos igualmente uma boa quantidade de variados esqueletos, alguns dos quais podiam ter pertencido aos Golias.

Três desses animais, de uma envergadura relativamente pequena — não passavam de uns dez metros de comprimento — vieram fazer-nos uma visita ao entardecer.

Com muito pouca amabilidade nos negamos a recebe-los, mandando-os de volta para a chuva. Insistiram, disparamos e derrubamos um, os demais fugiram.

A chuva, com certas intermitências, durou seis dias. Não podendo fazer mais nada, nos dedicamos às nossas buscas. Aprofundei minha vala. Em vez da areia das capas superiores, encontrei leitos de escombros calcários formados em um clima diferente do atual, bastante mais frio. Tellus deve ter conhecido, como a Terra, um período glacial, e me propus a procurar nas montanhas, antigas peles protetoras. Levamos para o caminhão uma boa quantidade de ossos e pedras talhadas, germen do futuro museu.

No terceiro dia pela manhã, o sol se levantou em um céu limpo. Entretanto era necessário aguardar. A terra baixa estava encharcada, e a chuva a havia convertido em um barreiro. Afortunadamente levantou-se um vento forte, o que acelerou a evaporação.

Aproveitamos este repouso forçado para por-nos em comunicação, por rádio, com o Conselho.

Estabelecemos contato. Foi meu tio quem respondeu. Comuniquei a ele o descobrimento da existência dos Sswis, e os indícios de petróleo. Por sua parte, ele me disse que há alguns dias as hidras voavam com frequência sobre o território, sem atacar. As granadas haviam abatido a mais de cinquenta. Avisei ao Conselho que íamos seguir ainda um pouco mais para o Sudoeste, para depois então voltar.

O caminhão estava em bom estado, restava ainda a metade do combustível e as munições e os víveres ainda eram abundantes. Havíamos percorrido 1.070 quilômetros.

Quando o solo ficou bastante seco, partimos.

Pouco adiante encontramos outro rio, que eu chamei «Vecera». Menos importante que o Dordogne, estreitava-se, em alguns trechos, a cinquenta metros. O problema de atravessá-lo era difícil, porque suas águas, agitadas pelo recente temporal, corriam rápidas e eram profundas. Não obstante teríamos que atravessá-lo, mesmo em condições que produziam calafrios.

Seguindo seu curso, encontramos uma catarata. O Vecera se precipitava de uma altura de mais de trinta metros. O exame dos arredores me fez pensar em uma falha do terreno, o que resultou, além da queda d'água, em um penhasco. Tivemos a sorte de encontrar, uns quilômetros à frente, um declive praticável para nosso veículo e seguimos perpendicularmente ao rio, justamente acima da catarata. Nos perguntávamos que iriamos fazer para franqueá-la. Então uma ideia audaz e horripilante germinou no cérebro de Michel: Indicando-me uma ampla rocha plana que emergia, a dez metros da margem, e outras mais que chegavam quase até à outra borda, espaçadas de cinco a seis metros, me disse: — Aqui temoss os pilares para a ponte. Só falta colocarmos a passarela.

Olhei para ele aturdido.

— Como?

— Por aqui há árvores de dez a vinte metros de altura. Temos machados, pregos e cordas. Alguns arbustos são bastante flexíveis para servir de cipós.

— Não achas um pouco arriscado.?

— E nossa expedição? Não é arriscada?

— Bem, consultemos os outros Breffort opinou que a coisa era factível.

— É preciso coragem, certamente, mas já fizemos coisas mais difíceis!

Sob a proteção do caminhão, com Vandal na metralhadora e Martina ao volante, nos convertemos em lenhadores. Os troncos abatidos, limpos e grosseiramente aplainados, foram arrastados pelo caminhão a uns cinquenta metros além da queda.

Tratava-se de alcançar, com os extremos dos troncos, a primeira rocha. Estava pensando em como fazer isto quando vi Michel tirar a roupa.

— Não estás pensando em ir a nado?

— Sim. Amarra-me com uma corda. Vou lançar-me aqui e vou derivando até a rocha.

— Estás louco! Vais te afogar!

— Não se assuste. Fui campeão universitário dos 100 metros em 58. Rápido, antes que minha irmã me veja. Estou seguro de mim mesmo, porém não é necessário proporcionar— lhe emoções inúteis Já na água, nadou vigorosamente até o centro, cerca de dez metros da margem.

Depois se deixou levar. Breffort e eu sustentávamos o extremo da corda que estava atada na sua cintura. A poucos metros da rocha, lutou energicamente com a corrente que o aspirava para o abismo. Entretanto, e sem grande esforço, conseguiu agarrarse e içou-se com um esforço final.

— Brrr! Está fria! — vociferou — Liguem uma extremidade do tronco, com minha corda, e a outra extremidade com outra corda que vocês segurarão. Isso! Agora lancem— no à agua. — Segurem, não o deixem escapar.

A tábua enorme bateu de ponta contra a rocha. A outra extremidade, que nós segurávamos, roçava na margem. Levantamo-lo com dificuldade. Depois, Paul, Breffort e eu atravessamos; paul e eu a cavalo sobre a madeira com as pernas na água; Breffort em pé, a cinco metros da catarata. Ele tinha, conforme nos disse, «horror de molhar os pés». Fixamos uma extremidade da árvore sobre a rocha, com ganchos de aço. Havíamos colocado a primeira viga da nossa ponte!

Recomeçamos a manobra com a segunda. Ao entardecer havíamos colocado três O crepúsculo interrompeu nossos esforços. Eu estava fatigado, Michel e Paul estavam um lixo; Breffort, ao contrário, se encontrava relativamente descansado. Fiz a primeira guarda com ele até meia-noite. A segunda foi feita por Vandal e Beltaire e a terceira por Martina, sozinha, após o alvorecer.

Pela manhã voltamos ao trabalho. Enfim todas as vigas foram colocadas no lugar e pudemos pisar o solo da outra margem. Levamos quatro dias para colocar a passarela.

Era sumamente pitoresca. Fazia um tempo excelente, fresco. A luz nova e viva, inclusive no crepúsculo. Estávamos contentes. No último dia, enquanto comíamos, abri duas ou três garrafas, o que aumentou o otimismo.

Já estávamos comendo a sobremesa sobre a erva cinza, distante do caminhão, quando caiu em cima de nós uma chuva de flechas. Por sorte ninguém foi ferido, porém, em troca, acertaram um pneu. Eu tinha um fuzil-metralhadora ao meu lado e me deitei no solo. Lancei um fogo do inferno na direção das flechas: uma fileira de árvores a uns quarenta metros de nós. Tive a satisfação de ver que um bom número de Sswis, que saíram dali, estavam feridos. O ataque acabou logo em seguida.

Não mais tão alegres, — pois poderíamos ter sido todos mortos — terminamos rapidamente a passarela, e o caminhão, pilotado prudentemente por Paul, subiu na ponte.

Não houve jamais engenheiros, depois de haverem construído o maior viaduto do mundo, que estivessem tão orgulhosos de si mesmos como nós, ao desembarcar na outra margem… Nem tão aliviados!

A noite chegou sem mais incidentes. Antes do sol se por, escolhi a rota do dia seguinte.

Seguiríamos para o sul, até uma montanha que, embora mais baixa que o Monte Tenebroso, alcançava os 3.000 metros.

À meia-noite, enquanto montava guarda, divisei um ponto luminoso perto do cume. Seria um vulcão? A luz apagou. Ao acender novamente, um pouco mais baixo, compreendi seu significado. Era um sinal de fogo! Me voltei. Atras do Vecera, nas colinas, brilhava outro fogo. Inquieto, comuniquei minhas observações a Michel, que me substituiu.

— É realmente inquietante. Se os Sswis fizerem uma mobilização geral, estaremos em uma má situação, mesmo com nosso armamento superior. Já observaste que eles não temem as armas de fogo? E nossas munições não são inesgotáveis.

— Entretanto, insisto que temos que chegar até esse «Monte-sinal». Somente na montanha, ou perto dela, encontraremos minério. Faremos um «raid» rápido Pela manhã, antes de nos pormos em marcha, tivemos que trocar o pneu, atravessado na véspera por uma flecha, e cuja fenda aumentava. Uma vez já a caminho — o sol subia insensivelmente — o terreno ondulou-se, cortado por pequenos arroios, os quais atravessamos penosamente. Em um pequeno buraco notei alguns veios esverdeados.

Tratava-se de garnierita, um bom minério de níquel. O vale revelou-se de uma riqueza mineral prodigiosa, e à noite eu tinha amostras de níquel, cromo, cobalto, manganês e ferro, e igualmente, coisa inestimável, excelente hulha que aflorava em espessos veios.

— Aqui estabeleceremos nosso centro metalúrgico. — disse.

— E os Sswis? — objetou Paul.

— Faremos como os americanos nos tempos heroicos. O solo parece fértil. Se for preciso, combateremos enquanto cultivamos a terra e exploramos as minas. De qualquer forma, desde o segundo dia da nossa viagem não temos mais visto hidras. Uma coisa compensa a outra.

— Concordo. — disse Michel — Hurra por «Cobalt City». A dificuldade se limitará em transportar todo nosso material para cá.

— Tudo se resolverá. Primeiro, será mister explorar o petróleo, e isto não será fácil.

Viramos para o Norte, e depois para o Oeste. A 60 quilômetros dali descobri um depósito de bauxita.

— Decididamente esta região é o paraíso dos investigadores geológicos. — disse Martina.

— Temos sorte. Esperemos que dure — respondi, pensando em outa coisa.

A manhã toda eu estive me perguntando se não seria possível fazer uma aliança com os Sswis, ou ao menos com alguns deles. Era provável que se existissem várias tribos, elas guerreavam entre si. Poderíamos aproveitar estas rivalidades. Era questão de entrar em contato de outra forma que não fosse à base de escopetas.

— Se tivermos que combater os Sswis, — disse em voz alta — necessitaríamos ao menos de um prisioneiro.

— Porque? — perguntou Paul.

— Para aprender sua língua e ensinar-lhe a nossa. Isto nos poderia ser útil.

— Acreditas que vale a pena arriscar nossas vidas? — perguntou Vandal, que evidentemente não desejava outra coisa.

Expus o meu plano.

A sorte serviu aos nossos desígnios. No dia seguinte tivemos que parar por causa de uma avaria, pouco depois de nossa partida. Enquanto Paul estava reparando, assistimos uma escaramuça entre três Sswis vermelhos e morenos, da especie que já conhecíamos, e outros dez menores, de uma pele negra e reluzente. Apesar de uma defesa heroica que custou a vida a cinco dos atacantes, os vermelhos sucumbiram sob o número. Os vencedores se dispunham a despedaçá-los, ignorando nossa presença.

Com uma rajada do fuzil-metralhadora os pus em fuga, deixando três mortos.

Atravessei a vegetação que dissimulava nossa presença. Um dos Sswis vermelhos, que ainda vivia, tentou fugir. Caiu novamente: tinha cinco flechas cravadas nos membros.

— Tenta salvá-lo, Vandal!

— Farei o possível. Porém meu conhecimento de sua anatomia é muito rudimentar.

Entretanto, — continuou após um exame — as feridas me parecem leves.

O Sswis estava imóvel, com os três olhos fechados. Somente a dilatação rítmica do seu peito nos indicava que ainda vivia. Vandal se dispôs a extrair as flechas com a ajuda de Breffort que, antes de especializar-se em antropologia, havia sido estudante de medicina.

— Não me atrevo a anestesiá-lo. Não sei se resistiria.

Durante a operação o Sswis não se moveu. Somente estremecia de vez em quando.

Breffort limpou as feridas, que se tingiram de amarelo. Depois o transportamos para o caminhão. Não pesa muito — talvez uns 70 quilos, comentou Michel — Preparamos uma espécie de maca com ervas e mantas. Enquanto o transportávamos, permaneceu com os olhos fechados.

Reparada a avaria do caminhão, partimos novamente. Com o ronco do motor o Sswis agitou-se horrorizado e falou pela primeira vez. Eram umas sílabas sonoras, ricas em consoantes e lábio-dentais, curiosamente rítmicas. Quis levantar-se e tivemos que segurá-los, fomos três a fazê-lo, tanta era sua força. Sua carne dava a impressão de dureza e flexibilidade. Pouco a pouco se acalmou e o soltamos, e eu, sentandome perto da porta, tomei algumas notas para meu diário pessoal. Tive sede e me servi de um vaso de água. Me voltei ao ouvir uma apagada exclamação de Vandal; meio levantado, o Sswis me estendeu a mão.

— Quer beber — disse Vandal Estendi-lhe o vaso. Ele observou por um instante com desconfiança. Tentei um experimento.

Verti um pouco mais e disse: — Água Com surpreendente agilidade de espirito, ele me compreendeu e em seguida repetiu: — Água.

Mostrei-lhe um vaso vazio.

— Vaso.

— Vaso — repetiu.

Bebi um gole e disse: — Beber.

— Beber — repetiu ele.

Recostei-me no catre, simulei um sono profundo e disse: — Dormir.

— «Tormir» — disse ele, deformando a palavra.

Apontei para mim mesmo.

— Eu.

— Vzlik — E imitou o gesto.

Fiquei um pouco confuso. Ele estava me dando uma tradução de «eu» ou se trava do seu nome? Me inclinei em favor da segundo hipótese. Penso que ele devia pensar que eu me chamava «eu»

Então, querendo levar a experiência mais longe, disse: — Vzlik dormir.

— Água beber. — repôs ele.

Estávamos estupefatos Este ser mostrava uma inteligência extraordinária. Bebeu um vaso d'água que lhe servi. Eu teria continuado com a lição se Vandal não observasse que o Sswis estava ferido, e provavelmente esgotado. De fato, ele mesmo disse: — Vzlik «tormir» — adormecendo logo em seguida.

Vandal exultava: — Com a capacidade que têm, logo poderemos ensinar-lhes nossas técnicas.

— Sei… — disse — e dentro de cinquenta anos eles estariam em cima de nós a tiros!

Mas realmente nos seriam muito úteis se pudéssemos aliar-nos com eles.

— Afinal de contas — interveio Vandal — Lhe salvamos a vida.

— Depois de termos matado vários indivíduos da sua raça, talvez da sua própria tribo.

— Mas eles nos atacaram!

— Estávamos em seu território. Se querem a guerra nós a teremos, mutatis mutandis na situação de Cortês, se os astecas não tivessem temido as suas armas nem os seus cavalos. Enfim, cuidemos bem dele. Representa uma oportunidade que não podemos desperdiçar.

Passei para a frente do caminhão. Michel dirigia e Martina estava ao seu lado.

— Que pensa disto tudo, Martina?

— Que são terrivelmente inteligentes.

— Esta também a minha opinião. Por outra parte me sinto aliviado: já não somos os únicos seres pensantes deste mundo.

— Para mim tanto faz. — disse Martina — Eles não são humanos.

— Evidentemente. Qual tua opinião, Michel?

— Não sei, Temos que esperar. À esquerda temos outra cortina de árvores. Provavelmente também um rio para atravessar.

— Pela direita também. Se unem. Isto nos permite supor que é uma confluência.

Efetivamente, nos encontrávamos sobre uma língua de terra entre dois rios. O da esquerda, novo para nós, foi denominado o Dron. O da direita era o Vecera ou o Dordogne?

Devido à sua largura, me inclinei pela segunda hipótese: trezentos metros, no mínimo. Parecia profundo. As águas desciam perigosamente, cinzentas e opacas.

A noite se avizinhava.

— Acamparemos aqui. O lugar é fácil de defendermos.

— Pode-se também se considerar como uma armadilha — disse Breffort — Com efeito — acrescentou Vandal — não há saída alguma.

— Uma força capaz de cortar-nos a retirada também o seria para destruir-nos. Aqui não haverá mais que um lado para vigiar, o que, se for o caso, nos permitirá concentrar o fogo de nossas armas. Amanhã estudaremos as possibilidade de atravessar.

Aquela noite ficou nas minhas lembranças como a mais tranquila da nossa expedição, ao menos na sua primeira parte. Ceamos sobre a erva antes do sol se ocultar. O tempo era agradável. Se não tivéssemos as armas do nosso lado, e sem a estranha presença do Sswis, poderíamos acreditar que estávamos na Terra, em um camping.

Como no nosso planeta natal, o Sol, antes de desaparecer, apresentou uma fantasia em ouro, púrpura e âmbar. Algumas nuvens rosas, muito altas, vagavam lentamente no céu Todos, incluindo Vzlik, havíamos comido com excelente apetite. Suas feridas estavam em vias de cura. Pareceu apreciar particularmente os biscoitos e o boi assado; entretanto quis provar o vinho e o devolveu com asco.

— Não parece um aficionado como os nosso selvagens. — observou Vandal.

O sol se ocultou. As três luas, reunidas no céu, davam luz suficiente para podermos ler. Com uma lona da tenda, enrolada como um colchão, me estirei no solo com os olhos perdidos nas constelações que já nos eram familiares. O céu era muito mais rico em estrelas que o da Terra. Com o cachimbo aceso, deixei voar minha imaginação, escutando distraído a lição de francês que Vandal e Breffort davam ao Sswis.

Martina se deitou à minha esquerda e Vandal à minha direita. Beltaire e Schoeffer, que haviam descoberto sua coincidente paixão pelo xadrez, jogavam em um tabuleiro desenhado sobre um cartão e com umas peças que eles mesmos havia talhado.

Um pouco adormecido, puxei a cabeça de Martina sobre meu braço. Ouvia vagamente a voz sibilante do Sswis repetindo as palavras, as jogadas espaçadas dos jogadores de xadrez e também os roncos de Michel.

Ressoaram uns roncos. Me levantei. A vinte metros, um numeroso grupo de animais iam beber. Sem alcançar o tamanho dos Golias, tinham seus bons oito metros de comprimento por quatro de altura. Um focinho muito largo e pendente, a curvatura do seu dorso, a curta cauda e, apesar do seu número, umas patas maciças que lembravam, pelos seus gritos, os elefantes. Alinharam-se na margem e beberam dobrando as patas dianteiras. Vandal apontou com o dedo, adotando uma atitude interrogativa para o Sswis.

— «Assek» — disse este. Depois, abrindo a boca, fez o gesto de mastigar.

— Imagino que ele quer dizer que são bons para comer — disse o biólogo.

Ficamos contemplando enquanto eles bebiam. O espetáculo, sob a luz das luas, era esplêndido. Pensei que o destino me havia oferecido o que sempre sonhara na calma do laboratório, a visão das grandes energias primitivas. Martina observava também, emocionada. Ouvi-a sussurrar: — Uma terra virgem…

Após uns minutos os animais se foram.

— Que é isto? — perguntou de repente Beltaire, abandonando o xadrez pela primeira vez.

Voltei-me para o ponto indicado. Uma curiosa silhueta passeava por uma colina.

Por seu andar poderoso e contido, felino, parecia uma fera. De tamanho pequeno — talvez 1,50m de altura — dava a impressão de uma extraordinária força. Mostrei-o ao Sswis. Este se pôs a falar excitado, presa de uma febril agitação. Ao notar que não o compreendíamos, simulou disparar seu arco, ao mesmo tempo que mostrava nossas armas, dizendo: — Bisir! Bisir!

Da sua mímica tirei a conclusão de que o animal era perigoso. Sem pressa — a fera estava ainda a duzentos metros — coloquei um carregador no meu fuzil-metralhadora.

O que aconteceu então foi de uma rapidez inconcebível. O animal saltou, ou melhor, parecia voar. No primeiro salto diminuiu a distância em trinta e cinco metros, e já se preparava para saltar novamente, sobre nós. Martina gritou. Os demais se levantaram precipitadamente. Disparei uma rajada ao azar, falhando no meu objetivo.

A fera se preparou para um terceiro salto. Perto de mim crepitou outro fuzil-metralhadora.

Disparei novamente sem êxito, esvaziando o carregador. Michel que estava ao meu lado, trocou imediatamente.

— Para o caminhão! — gritei em seguida.

Entrevi Beltaire e Vandal levando o Sswis.

— Cuidado, Michel!

Uma rajada rasante de projéteis de 20mm passou por cima de nós, na direção do monstro. Devem tê-lo acertado, pois se deteve. Eu estava só, em terra. Saltei para o caminhão, fechando a porta traseira. Michel pegou o fuzil-metralhadora das minhas mãos e passou o cano pela fenda. As cápsulas vazias tilintavam sobre o solo. Observei o interior do caminhão. Todos estavam ali, exceto Martina.

— Martina!

— Aqui — respondeu, entre rajadas de metralhadora.

Michel retrocedeu precipitadamente.

— Segurem-se! — exclamou Um choque terrível sacudiu o caminhão. As telas racharam-se, curvando-se para o interior. Fui projetado sobre Vandal, recebendo por minha vez, nas costelas, os 85 quilos de Michel. O piso vacilou e pensei que nosso refugio ia virar. A metralhadora havia se calado e as luzes se apagaram.

Michel, penosamente, levantou-se e acendeu uma lanterna portátil.

— Martina! — gritou.

— Estou aqui. Está tudo terminado, vem. A porta traseira está bloqueada.

O cadáver do animal jazia contra o caminhão Havia recebido vinte e um disparos da metralhadora, cinco deles explosivos, e deve ter morrido em pleno salto. A cabeça destroçada oferecia um aspecto horrível, com brechas de trinta centímetros.

— O que ocorreu? Tu foste a única que viu.

— Muito simples. Quando tu entraste por último, o animal havia se detido. Disparei nele várias vezes. Então ele saltou. Estava sob a escadinha. Voltei a subir e o vi, morto, contra o caminhão.

Vzlik se arrastou até a porta.

— Vzlik, — disse — Depois fingiu disparar um arco e mostrou dois dedos.

— O que? Ele pretende ter morto dois desses animais com suas flechas?

— Não é de todo impossível, especialmente se as flechas fossem temperadas com um veneno bastante forte. — replicou Breffort.

— Mas eles não usam veneno! Por sorte, claro, pois senão Vandal talvez não estaria aqui.

— Pode ser que envenenem unicamente as flechas de caça. Existem tribos na Terra que consideram desleal o emprego de veneno na guerra.

— Bem, — disse Beltaire com um pé sobre o monstro caído — me parece que se houverem muitos destes em «Cobalt City», teremos problemas. Queria ver aqui os nossos caçadores de tigres. Que saltos e que vitalidade! Isto sem mencionar os dentes e as garras. — continuou, examinando as patas.

— Não devem brilhar precisamente por sua inteligência. — disse Vandal — Me pergunto como pode caber um cérebro nesse crânio deprimido.

— E tu dizias há pouco: — sussurrei a Martina — uma terra virgem, com seus atrativos…

e seus riscos. A propósito, tenho que felicitar-te por tua pontaria com a metralhadora.

— Transfere o cumprimento para Michel. Foi ele quem me fez praticar sob o pretexto de que sempre é útil, embora não seja mais que para educar os nervos.

— Nunca pude imaginar que tivesse que utilizá-la nestas circunstâncias — disse sorrindo.

V — O REGRESSO

Na manhã do dia seguinte, depois de uma curta e tranquila noite vermelha, decidimos atravessar o rio. Construímos uma grande balsa, o que levou seis dias inteiros, durante os quais vimos numerosos animais, porém nenhuma fera. Provamos pela primeira vez a carne teluriana. Um pequeno animal, uma espécie de miniatura dos «elefantes»

da primeira noite, nos forneceu a carne para o assado. Comemos muito pouco, apreensivos, temendo que talvez a carne fosse tóxica ou inassimilável para nós.

Seu gosto lembrava o da vitela, um pouco mais dura. Vzlik, já quase restabelecido, comeu gulosamente. Não houve transtornos digestivos e, até o regresso à zona das hidras, variamos um pouco nossa minuta, sempre em pequenas quantidades. Porém não nos atrevemos a provar os frutos das árvores que derrubamos para a fabricação da balsa, com os quais o Sswis se deleitava. Seu vocabulário começava a permitirlhe expressar ideias simples.

A travessia foi feita sem dificuldade. Recuperamos as cordas e os cravos que havíamos empregado na balsa, e depois descemos, durante dois dias, ao longo do rio, o qual rapidamente aumentava, formando locais estagnados, quase lacustres, enquanto corria entre as colinas. Observei que permanecia sempre manso e profundo.

Suas margens formigavam de vida. Divisamos sucessivos bandos de «elefantes», de Golias isolados ou em pares, e de outras numerosas formas, gigantes ou minúsculas.

Por duas vezes vimos ao longe os «Tigressauros». Este nome, inventado por Beltaire para a fera que nos havia atacado, foi adotado apesar dos protestos de Vandal, que, muito atinadamente, fez-nos observar que ele não tinha nada do tigre nem do sáurio Porém, como observou Michel, o essencial era se fazer entender, e no fundo pouco importava que o nome vulgar do animal fosse Tigressauros, Leviatã, ou Tartempão…

As águas alojavam numerosas formas aquáticas, das quais nenhuma se aproximou o bastante da margem pra que pudéssemos vê-la com clareza.

Quando se aproximava a noite do segundo dia, choveu. Rodávamos pela planície, com fileiras de árvores ao longo dos rios e riachos. A temperatura, que durante o meio-dia se aproximava do 35º à sombra, refrescava à noite, descendo a 10 graus.

Na madrugada do terceiro dia, depois de uma noite agitada por causa dos rugidos dos Golias, divisamos uma coluna de fumo, distante, ao Sul, noutro lado do Dordogne.

Acampamento Sswis ou fogo na grama? O terreno tornou-se acidentado, umas colinas baixas nos obrigavam a fazer rodeios. Quando passamos a última delas, sentimos o ar penetrado de um perfume acre e violento. Como o do Atlântico.

— O mar está próximo. — disse Beltaire.

Logo o assinalou do alto da torre. Instantes depois todos o vimos, verde e agitado.

O vento soprava do Oeste, as ondas formavam cristas de espuma. A costa era rochosa, porém, a alguns quilômetros ao Sul, o Dordogne terminava em um estuário arenoso.

Detivemo-nos em uma praia pedregosa, a poucos metros das ondas. Vandal saltou em terra e começou a explorar este paraíso dos biólogos que era uma costa marinha.

Nos manguezais havia uma fauna inédita, algumas formas que se pareciam com as terrestres, outras totalmente diferentes. Descobrimos conchas vazias, que pareciam enormes pectens, ou, como diziamos na Terra, conchas de Santiago. Algumas mediam mais de três metros. Outras, bem menores, ainda estavam penduradas nas rochas.

Michel arrancou uma com dificuldade e a levou para Vandal. O animal era mais próximo dos branquiópodos terrestres que dos moluscos lamelibrânquios. Longe, no mar, apareceu um dorso negro entre as ondas, depois mergulhou — Estou com vontade de tomar banho — disse Martina.

— Não. — decidi — Quem sabe que monstros habitam essas águas. É muito arriscado.

Entretanto, detrás de um promontório, Schoeffer descobriu um grande lago de mais de cem pés de comprimento e uns seis de profundidade. Uma água transparente mostrava um fundo de cantos arredondados. Ali viviam unicamente algumas pequenas algas e conchas. Desfrutamos como crianças.

Enquanto Vandal montava guarda com a metralhadora, eu organizei uma competição.

Michel, nadador incomparável, ganhou facilmente, seguido de Martina, Schoeffer e Breffort. Eu fui o penúltimo, ganhando de Beltaire por uma cabeça. Descobri depois uma pedra esférica, de uns cinco quilos, com o qual venci facilmente no levantamento de peso. Vzlik tinha ficado nos observando. Lançou-se por sua vez na água. Ele utilizava apenas seus membros, nadando com ondulações do sol corpo totalmente estendido. Na minha opinião, ele poderia dar uns bons dez metros de vantagem a Michel na travessia do lago.

Dispensei Vandal, que partiu imediatamente para fazer uma ampla provisão de formas animais e vegetais. Depois seguimos nossa rota para o Norte. Seguimos a costa a uns cem metros no interior. O terreno oferecia bastantes dificuldades. Uma série de velhos anticlinais erodidos terminavam em ponta de lança no mar.

Três horas e media depois da nossa partida, voltamos a encontrar os pântanos e as hidras. Eram escuras, pequenas, não ultrapassando os cinquenta centímetros. Não nos atacaram. Continuamos no pântano para o Leste. Ao declinar o dia, alcançamos o final e tomamos novamente o rumo Oeste. A costa agora era arenosa e baixa. Contrariamente ao nosso costume, rodamos à luz das luas sobre um terreno ideal, a cinquenta por hora. Pouco antes da alvorada vermelha, a costa tornou-se caótica novamente e outra vez tivemos que andar pelo interior. Foi assim que descobrimos o lago.

Abordamos pela margem baixa no Sudoeste. No Leste era protegido por uma cadeia de colinas. Uma abundante vegetação o envolvia em um círculo sombrio. Por sua superfície, sob a luz do luar, corriam pequenas ondas fosforescentes. O espetáculo era suave a aprazível, quase irreal. Temendo que houvesse hidras entre suas margens, — só soubemos mais tarde que estes animais necessitam de charcos pantanosos para seu desenvolvimento — não nos aproximamos. Durante cerca de um quilômetro deslizamos sobre um deserto.

Cedi a guarda a Michel e fui dormir. Estava fatigado e lembrei que não havia repousado mais que uns segundos. Não obstante, quando abri os olhos, a alvorada azul penetrava pela janela.

Michel estava inclinado para mim, com um dedos nos lábios. Despertou também sua irmã sem fazer o menor ruido.

Ao sair, escapou-nos um grito de admiração. O lago era de um azul profundo, um azul glacial, enquadrado em uma moldura de ouro e púrpura. As rochas do rio eram de um vermelho magnífico e a vegetação, as árvores e as ervas, de uma cor que oscilava entre o metálico brilhante e o ouro velho. Aqui e ali apontavam folhas pontiagudas Ao Leste, as colinas apareciam ainda tocadas por Helios.

— É formoso — disse.

— É um lago magnífico. — disse Martina — Jamais vi nada semelhante.

— «Lago Magnífico». Seria um bonito nome. — disse Michel.

— Assim será — decidi. — Despertemos os demais.

Seguimos o lago o dia todo. A superfície ondulava docemente sob a brisa marinha.

A pouca distância da sua extremidade norte, porém separado dele por uma poderosa barreira rochosa, encontramos outro pântano que se comunicava com o mar. Enquanto dávamos a volta, decidi entrar em contato com o Conselho. Ao mesmo tempo, Breffort assinalou a presença das hidras. Eram da espécie pequena e reduzida, e muito numerosas. Imediatamente, um verdadeiro enxame rodeou o caminhão, sem tentar atacar, contentando-se em seguir-nos. Depois de havê-las observado um momento, tentei me comunicar com o Conselho pelo rádio. Foi impossível, e não porque o aparelho estivesse mudo. Jamais em toda minha vida havia escutado tal quantidade de assobios e sons. Não sabendo a que atribuir semelhante resultado, renunciei momentaneamente aos meus projetos. Bruscamente, e aparentemente sem razão alguma, o enxame de hidras escuras parou de nos acompanhar.

Rodávamos noite e dia. Na alvorada azul seguinte não estávamos a mais de cinquenta quilômetros da ilhota terrestre. Não tínhamos a intenção de chegar antes da noite, pois eu desejava examinar os arredores imediatos.

De repente, o Conselho nos chamou pelo rádio e nos comunicou umas notícias que mudaram completamente meus projetos.

VI — A BATALHA DAS HIDRAS

Era Louis quem nos chamava. Já estavam a três dias em constante luta com as hidras.

Na véspera haviam sido mortos três homens e dois bois. Deixavam-se cair sem ordem, dispersamente, atacando ao rés do solo onde as granadas não podiam alcançá— las. A situação era crítica.

— Creio que a melhor solução será a evacuação deste rincão de terra. — falei — Fora da zona pantanosa não encontramos traços de hidras.

— Não será fácil, mas, enfim… Um momento, estas estão voltando!

Através do alto-falante, percebi claramente a sirene.

— Aguarda no microfone. — disse Louis — Tentarei deixá-los ao corrente. Talvez fosse melhor…

Uma série de violentas detonações afogaram suas palavras, depois as escopetas crepitaram. Salvo Michel, que estava ao volante, e Breffort na torre, todos estavam ao meu redor, perto do rádio. O Sswis, muito admirado, escutava também. Ao cabo de um momento não pudemos ouvir nada mais que o chiado do receptor. Inquieto, lancei uma chamada. Houve o ruido de uma porta se abrindo; depois Louis falou arquejante: — Forcem a marcha! Se for possível, cheguem aqui antes do anoitecer. Estas porcarias estão entrando pelas aberturas e é muito difícil tirá-las do interior das casas. Sair seria suicídio! Há ao menos três mil! Marchando pela rua poderão caçá-las. Depressa!

Em algum lugares já estão levantando as telhas!

— Ouviste, Michel? Depressa!

— A todo vapor. Sessenta por hora!

— Estaremos no povoado dentro de duas horas. — anunciei — Ânimo!

— Foi uma sorte estarem tão perto. Tenho duas ou três aqui sobre o teto, mas o telhado do celeiro é sólido. O pior é que não posso me comunicar por telefone com todos os grupos.

— Estás sozinho?

— Não, tem seis guardas e Ida, comigo. Diz a Beltaire que não se inquiete.

— E o meu tio?

— Encerrado no Observatório com Menard. Não corre perigo algum. Teu irmão está com os engenheiros no refúgio 7. Têm uma metralhadora leve, e parece que a utilizam bem. Vou te deixar. Preciso entrar em contato com os outros grupos.

— Sobretudo, não saia!

— Não te preocupes…

Breffort apareceu e gritou: — Alerta! Hidras!

— Subi até onde ele estava. Diante de nós, aproximadamente a um quilômetro, e a cinco ou seis metros de altura, uma centena de hidras da espécie verde planavam formando uma nuvem.

— Rápido, as granadas, antes que se dispersem!

Os tubos lança-granadas apontaram. Agachando-me, vi Vandal e Martina por um lado, e Beltaire por outro, que introduziam as granadas nas entradas móveis.

— Desce, Breffort. Ocupa-te do controle das granadas. Eu me encarrego da metralhadora.

— Fogo!

Traçando sua trajetória, nossas granadas se lançaram sobre as hidras, seguidas por seu rastro branco. Afortunadamente explodiram no meio das nuvens. Os pedaços delas caíram, a contraluz, como uma chuva escura. As hidras se projetaram sobre nós. A partir deste momento, tive que atuar sozinho. Derrubei uma duzia. As demais circularam um momento ao nosso redor; depois, dando-se conta da sua impotência, se afastaram rente ao solo.

Sem mais incidentes, chegamos à mina de ferro. Estava deserta. Ao cabo de um momento, a porta de um refugio se abriu e um homem nos fez sinal. Michel aproximou o caminhão e reconheci José Amar, o contramestre.

— Onde estão os outros?

— Foram embora no trem transformado em tanque, levaram todas as armas.

— E você?

— Fiquei aqui para avisá-los. O Conselho telefonou que vocês estavam chegando.

Os rapazes do trem construíram uma bomba de água fervente.

— Muito bem. Suba no caminhão. Faz muito tempo que eles se foram?

— Uma hora.

— Adiante, Michel.

Amar contemplou Vzlik com assombro.

— Quem é este cavalheiro?

— Um nativo. Explicaremos mais tarde.

Dez minutos depois, começamos a ouvir as detonações. Afinal avistamos o povoado.

Todas as portas e janelas estavam fortificadas, e o telhado de algumas casas estava coalhado de hidras. Os monstros revoluteavam a pouca altura. O trem da mina de ferro estava parado na «estação», e sua metralhadora pesada disparava contra qualquer hidra que se separasse das casas.

— Aos postos de combate! Paul ao volante. Michel, Breffort, aos postos das metralhadoras Martina, Vandal, passem-me a munição. Beltaire e Amar, carreguem os fuzis— metralhadoras. Vzlik, fica em um local onde ninguém o moleste. Pronto? Bem, Paul, aproxima-te do trem.

Os mineiros haviam trabalhado bem. Com placas de metal, pranchas e madeiros, haviam transformado o trem em uma fortaleza. Uma centena de hidras, inchadas, jaziam no solo, ao seu redor.

— Como diabo as atingiram? — perguntei ao mecânico, que se encontrava ao lado de Biron.

— Foi uma ideia minha. Nós as fervemos. Olha, outras voltam à carga. Vocês vão ver. Não disparem — gritou aos da metralhadora situada no primeiro vagão.

— Não disparem — repeti aos do caminhão.

Umas trinta hidras se acervavam.

— Quando te avisar, põe a bomba em funcionamento, disse Biron ao condutor Levantou uma espécie de mangueira, em cuja extremidade de couro, com uma manga de madeira, passou através de um buraco.

— Afastem o caminhão!

Os monstros estavam a trinta metros, aproximando-se a toda velocidade. Foram acolhidas por um jorro de água fervendo que derrubou a uma duzia. As demais bateram em retirada. Então, a metralhadora do trem disparou, e eu me uni ao fogo.

— Como vê, é muito simples. — disse Biron — Teríamos derrubado muitas mais, se na primeira vez eu tivesse tido a serenidade de aguardar que elas estivessem mais perto.

Porém não me atrevi, e agora estão desconfiadas.

— Quem teve esta ideia?

— Eu, com já disse. Porém Cipriano, meu chofer, me ajudou a pô-la em prática.

— É uma invenção excelente, que nos permitirá economizar munições. Seria necessário, talvez, aperfeiçoá-la. Falarei dela ao Conselho. Estou certo de que isto servirá de reabilitação aos vossos direitos políticos. Agora, vamos ao povoado. Em que casa está Mauriere?

— Me parece que na emissora.

— Começaremos por lá. Todomundo em seus postos? Adiante, depressa. Mirem bem, e disparem pouco!

Chegamos à praça do poço sem ser atacados. O telhado da casa que albergava a emissora estava coberto de hidras. Todos os disparos acertavam no alvo, porém era necessário mais de um para derrubá-las. Por medo de ferir nossos amigos, não me atrevia a usar as granadas nem a metralhadora. Os monstros permaneciam, estupidamente, imóveis sobre o telhado, removendo as telhas. Sua imobilidade, dadas suas anteriores demonstrações de inteligência, nos surpreendeu um pouco. Pudemos dar tiros precisos, apontando ao cérebro. Ao cabo de um tempo a casa estava desembaraçada da sua cobertura viva.

De vez em quando soava uma detonação no povoado. Duas ou três vezes ouvi o silvo da locomotiva, saudando uma nova vitória da água fervente. Desembaraçada a porta, Louis saiu e saltou no caminhão.

— Como vais?

— Melhor, já que estão aqui. Porém estes porcos desses animais penetraram em três casas. Tivemos uma dezena de baixas.

— Quem?

— Alfred Charnier, sua mulher, e uma de suas filhas. Cinco mais do povoado, cujos nomes ainda não sei. Magdalena Ducher, a atriz, e três operários. A comunicação telefônica está interrompida em algum lugar entre a central e a fábrica. Tenta dar uma olhada, Ignoro como estão por lá. Bem, volto à central.

Seguindo o fio telefônico, encontramos o ponto de rutura. A cinquenta metros, três hidras se acachapavam sobre o telhado. Saltei em terra com um fio de cobre e reparei o fio condutor. Apenas havia terminado, quando a metralhadora disparou. As hidras decolavam. Usando minha tática habitual, me lancei ao solo, depois, tão logo elas passaram, saltei do caminhão. Duas vezes recomecei este pequeno jogo singular, com risco da minha vida.

Depois empreendemos a limpeza dos telhados. Metodicamente, começamos pela praça do poço, que estava limpa uma hora depois. Atacamos então a rua principal.

Apenas fizemos os primeiros disparos, todas as hidras elevaram-se, como se obedecendo a um sinal. Imediatamente, foi como um alude de homens e mulheres saindo das casas, armados de lança-granadas. Nos minutos seguintes, ao menos cento e cinquenta delas se elevaram. O céu estava repleto de manchas verdes — as hidras — e negras — as explosões das granadas. — Reagrupadas como uma nuvem, muito alto, as hidras fugiram.

— Comprovei uma fato curioso. Disse Louis. Desde que as hidras chegaram, ouvia tuas mensagens com muita dificuldade. Uma algaravia formidável.

— É curioso, eu observei algo similar, quando estávamos rodeados pelas pequenas hidras escuras. — disse — Será que esses animais emitem ondas hertzianas? Isto poderia explicar sua extraordinária precisão de movimentos. Temos que falar com Vandal.

O Conselho se reuniu nesta mesma noite. Por causa da morte do Senhor cura e de Charnier, não éramos mais que sete. Prestei contas da nossa missão e apresentei Vzlik, na presença dos outros membros da expedição que estavam ali a título de consultores.

Louis nos pôs ao corrente dos problemas que haviam ocorrido na nossa ausência, dos quais o mais grave era a nova tática das hidras. Chegavam à noite e se emboscavam no matagal, atacando os passantes. Não se podia sair mais sem que fosse em grupos armados.

— Tu nos propuseste por rádio — acrescentou — emigrar até a região do Monte Sinal.

Não desejo nada melhor. Porém, como? Se tivermos que fazer o trajeto em caminhão, nossa reserva de combustível não será suficiente, e se fizermos a pé, lá estão as hidras e os Sswis… E deveríamos, ademais, abandonar nosso material! Mesmo com os caminhões, não sei de que forma poderíamos transportar as locomotivas, as máquinas, utensílios, et cétera.

— Não foi assim que eu havia projetado a coisa.

— Como então? Talvez em avião?

— Não, de barco.

— E de onde vais tirar este barco?

— Penso que Estranges poderia fazer os planos. Não peço um super destroier de 30 nós de velocidade Não, um pequeno cargueiro convém melhor à nossa empresa. Estamos perto do mar. Por outro lado, seguimos o Dordogne a partir de um ponto situado a duzentos quilômetros de Cobalt-City até a sua embocadura. É perfeitamente navegável. Cada vez que pude, verifiquei com uma sonda e encontrei mais de dez metros. O mar parece tranquilo. Afinal de contas, não seria mais que uma viagem de escassos setecentos quilômetros por mar e duzentos pelo rio.

— E como andará este barco? Perguntou meu tio.

— Com um grande Diesel da fábrica, ou com uma máquina a vapor. Se tivéssemos material para sondas, para ver se o petróleo é profundo!

— Isto nós temos. — disse Estranges — Tudo o que é preciso. O material que se empregou na sondagem da segunda represa que devia construir-se ficou depositado na fábrica. Quando aconteceu o cataclismo, eu acabava de receber uma carta advertindo— me que viriam buscá-lo.

— Isto está melhor quena história do Robinson Suiço! Até que profundidade podem chegar as máquinas?

— Chegaram até 600 ou 700 metros.

— Caramba! Isto é muito para uma represa!

— Tenho a impressão de que a companhia que efetuou a sondagem procurava algo mais. Enfim, não podemos queixar-nos. Ademais, tenho entre os operários três homens que, em outros tempos, trabalharam nos poços de petróleo de Aquitânia — Melhor ainda. A partir de amanhã, todos ao trabalho. Todo mundo está de acordo em que abandonemos este lugar?

— Peço uma votação. — disse Marie Presle — Compreendo que é difícil permanecer aqui, porém ir a um lugar com essa gente… — Apontou para o Sswis, que escutava em silêncio.

— Imagino que poderemos entendermo-nos com eles. — interveio Michel — Mas é melhor que votemos.

O resultado do escrutínio foi de dois votos contra — Marie Presles e o mestre — e cinco votos a favor.

— Sabe, tio, não lhe garanto que possamos trasladar o Observatório. — disse — Ao menos imediatamente.

— Eu sei, eu sei. Mas se ficarmos aqui vamos todos perecer.

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