tecido.

- Arya, Arya, Arya - disse. - Isto não serve. Isto não serve de modo

nenhum.

Todas estavam a olhá-la. Era demais. Sansa era demasiado bem-

educada para sorrir da desgraça da irmã, mas havia o sorriso afetado

de Jeyne no seu lugar. Até a Princesa Myrcella parecia ter pena dela,

Arya sentiu que seus olhos se enchiam de lágrimas. Saltou da cadeira

e correu para a porta.

Septã Mordane a chamou.

- Arya, volte aqui! Nem mais um passo! A senhora vossa mãe saberá

disto. E na frente da nossa princesa real! Envergonha-nos a todos!

Arya parou à porta e voltou-se, mordendo o lábio. As lágrimas

corriam-lhe agora pelo rosto. Conseguiu fazer uma pequena

reverência rígida a Myrcella.

- Com a vossa licença, minha senhora.

Myrcella pestanejou e olhou para suas damas em busca de

orientação. Mas onde faltava segurança à princesa, não faltava à

Septã Mordane.

- Exatamente aonde pensa que vai, Arya? - quis saber a septã. Arya

lançou-lhe um olhar furioso.

- Tenho de ir ferrar um cavalo - disse com doçura, obtendo uma

breve satisfação da expressão chocada no rosto da septã. Então

rodopiou e saiu, correndo pelos degraus abaixo tão depressa quanto

os pés a conseguiam levar.

Não era justo. Sansa tinha tudo. Sansa era dois anos mais velha;

talvez, quando Arya nasceu, já nada restava. Era frequente sentir-se

assim. Sansa era capaz de costurar, dançar e cantar. Escrevia poesia.

Sabia como vestir-se. Tocava harpa e sinos. Pior: era bela. Sansa

recebera as belas maçãs do rosto altas da mãe e os espessos cabelos

arruivados dos Tully. Arya saía ao senhor seu pai. Os cabelos eram

de um castanho sem lustro, e o rosto, longo e solene. Jeyne

costumava chamá-la Arya Cara de Cavalo, e relinchava sempre que

ela se aproximava. A única coisa que Arya fazia melhor que a irmã

era andar a cavalo, e isso doía. Bem, andar a cavalo e gerir uma casa.

Sansa nunca tivera grande cabeça para números. Se se casasse com o

Príncipe Joff, Arya esperava, para o bem dele, que o príncipe tivesse

um bom intendente.

Nymeria estava à sua espera na casa da guarda que se erguia na base

da escadaria, e pôs-se em pé de um salto assim que a viu. Arya

sorriu. A cria de lobo a amava, mesmo se ninguém mais o fizesse.

Iam juntas para todo o lado, e Nymeria dormia no seu quarto, aos

pés da cama. Se a Mãe não o tivesse proibido, Arya teria levado de

bom grado a loba para a sala de costura. Gostaria de ver então Septã

Mordane queixar-se de seus pontos.

Nymeria mordiscou-lhe a mão, ansiosa, enquanto Arya a desatava. O

animal possuía olhos amarelos. Quando capturavam a luz do sol,

cintilavam como duas moedas de ouro. Arya dera-lhe o nome da

rainha guerreira dos roinares, que levara seu povo para atravessar o

mar estreito. Também isso fora um grande escândalo. Sansa,

naturalmente, chamara à sua cria "Lady". Arya fez uma careta e

abraçou a lobinha com força. Nymeria lambeu-lhe a orelha e ela

soltou um risinho.

Àquela altura, Septã Mordane já teria por certo mandado uma

mensagem à senhora sua mãe. Se fosse para o quarto, a

encontrariam. Arya não queria ser encontrada. Teve uma ideia

melhor. Os rapazes estavam treinando no pátio. Queria ver Robb

atirar o galante Príncipe Joffrey ao chão. "Anda", sussurrou a

Nymeria. Levantou-se e correu, com a loba a morder-lhe os

calcanhares.

Havia uma janela, na ponte coberta entre o armeiro e a Torre

Grande, de onde se podia ver rodo o pátio. Foi para lá que se

dirigiram.

Chegaram, coradas e sem fôlego, e foram encontrar Jon sentado no

parapeito, com um joelho onguidamente erguido até o queixo.

Observava a ação tão absorvido que pareceu não se dar conta da

aproximação da irmã até que o lobo branco foi ao encontro delas.

Nymeria aproximou-se em patas cautelosas. Fantasma, já maior que

os companheiros de ninhada, farejou-a, deu-lhe uma dentada

cuidadosa na orelha, e voltou a instalar-se.

Jon deitou-lhe uma olhadela curiosa.

- Não devia estar trabalhando nos seus pontos, irmãzinha? Arya fez-

lhe uma careta.

- Queria vê-los lutar.

Ele sorriu.

- Então vem para cá.

Arya trepou na janela e sentou-se ao lado do irmão, no meio de um

coro de estrondos e grunhidos vindos do pátio, lá embaixo.

Para sua desilusão, eram os rapazes mais novos que se exercitavam.

Bran estava tão almofadado que parecia que tinha se afivelado a um

colchão de penas, e Príncipe Tommen, que já era naturalmente

rechonchudo, parecia definitivamente redondo. Fanfarronavam,

ofegavam e atacavam-se um ao outro com espadas almofadadas de

madeira, sob o olhar vigilante de Sor Rodrik Cassei, o mestre de

armas, um robusto homem em forma de barril, com magníficas

suíças brancas. Uma dúzia de espectadores, homens e rapazes, os

encorajavam, e, entre todas, a voz de Robb era a mais forte. Arya

reconheceu Theon Greyjoy ao lado do irmão, de gibão negro orna-

mentado com a lula gigante dourada de sua Casa, ostentando no

rosto um ar de retorcido desprezo. Ambos os combatentes

cambaleavam. Arya concluiu que já lutavam havia algum tempo.

- É um nadinha mais cansativo que o trabalho de agulhas - observou

Jon.

- É um nadinha mais divertido que o trabalho de agulhas - Arya

retorquiu. Jon sorriu, esticou o braço e despenteou-lhe os cabelos.

Arya corou. Sempre tinham sido próximos. Jon tinha o rosto do pai,

tal como ela. Eram os únicos. Robb, Sansa, Bran e até o pequeno

Rickon, todos saíram aos Tully, com sorrisos fáceis e fogo nos

cabelos. Quando pequena, Arya tivera medo de isso querer dizer que

também ela fosse bastarda. Fora a Jon que contara o medo, e fora ele

quem a sossegara.

- Por que não está no pátio? - perguntou-lhe Arya.

Ele lhe deu um meio sorriso.

- Não se permite a bastardos danificar jovens príncipes - disse. -

Quaisquer hematomas que recebam no pátio de treinos devem provir

de espadas legítimas.

- Ah - Arya sentiu-se envergonhada. Devia ter compreendido. Pela

segunda vez naquele dia pensou que a vida não era justa.

Observou o irmão mais novo bater em Tommen.

- Podia sair-me tão bem como Bran - disse. - Ele tem só sete anos,

Eu tenho nove. Jon olhou-a com toda sua sabedoria de catorze anos.

- Você é magra demais - disse. Pegou seu braço para apalpar o

músculo. Então suspirou e abanou a cabeça. - Duvido até que

conseguisse levantar uma espada, irmãzinha, quanto mais brandi-la.

Arya recolheu o braço e lançou-lhe um olhar furioso. Jon voltou a

despentear-lhe os cabelos. Observaram Bran e Tommen, que

andavam em círculos ao redor um do outro.

- Vê o Príncipe Joffrey? - perguntou Jon.

Ao primeiro relance não o tinha visto, mas quando voltou a olhar,

descobriu-o atrás dos outros, à sombra do alto muro de pedra.

Estava rodeado por homens que não reconheceu, jovens escudeiros

com librés dos Lannister e dos Baratheon, todos eles estranhos. Havia

entre eles alguns homens mais velhos; cavaleiros, presumiu.

- Olhe o brasão de sua capa - sugeriu Jon.

Arya olhou. Um escudo ornamentado tinha sido bordado na capa

almofadada do príncipe. Não havia dúvida de que o bordado era

magnífico. O brasão estava dividido ao meio: de um lado tinha o

veado coroado da Casa real; do outro, o leão de Lannister.

- Os Lannister são orgulhosos - observou Jon. - Seria de se pensar

que a chancela real seria suficiente, mas não. Ele faz a Casa da mãe

igual em honra à do rei.

- A mulher também é importante! - protestou Arya. Jon soltou um

risinho.

- Talvez devesse fazer o mesmo, irmãzinha. Casa Tully e Stark no

seu brasão.

- Um lobo com um peixe na boca? - a idéia a fez rir. - Pareceria

disparatado, Além disso, se uma moça não pode lutar, por que

haveria de ter um brasão de armas?

Jon encolheu os ombros.

- Às moças dão as armas, mas não as espadas. Aos bastardos dão as

espadas, mas não as armas, Não fui eu que fiz as regras, irmãzinha.

Ouviu-se um grito no pátio, embaixo. Príncipe Tommen rebolava na

poeira, tentando sem sucesso pôr-se em pé. Todos aqueles

almofadados faziam-no assemelhar-se a uma tartaruga virada de

costas. Bran estava sobre ele, com a espada de madeira erguida,

pronto a bater-lhe de novo assim que se levantasse. Os homens

desataram a rir.

- Basta! - gritou Sor Rodrik. Ofereceu a mão ao príncipe e o pôs de

novo em pé. - Uma boa luta. Lew, Donnis, ajudem-nos a tirar as

armaduras - olhou em volta. - Príncipe Joffrey, Robb, querem mais

um assalto?

Robb, já suado de uma luta anterior, avançou com ardor.

- De bom grado,

Joffrey saiu para o sol em resposta à chamada de Rodrik. Seus

cabelos brilharam como ouro tecido. Parecia aborrecido.

- Este é um jogo para crianças, Sor Rodrik.

Theon Greyjoy soltou uma súbita gargalhada.

- Vocês são crianças - disse, com ironia,

- Robb pode ser uma criança - disse Joffrey. - Eu sou um príncipe. E

já estou cansado de dar pancada nos Stark com uma espada de

brincar.

- Você levou mais pancada do que deu, Joff - disse Robb. - Será que

tem medo?

Príncipe Joffrey olhou para ele:

- Ah, estou apavorado - disse. - Você é tão mais velho - alguns dos

Lannister deram risada. Jon afastou os olhos da cena com um olhar

carrancudo.

-Joffrey é um verdadeiro merda - disse a Arya.

Sor Rodrik puxou, pensativo, pelas suíças brancas.

- O que sugere? - perguntou ao príncipe.

- Aço vivo.

- Feito - disparou Robb em resposta. - Vai se arrepender!

O mestre de armas pôs a mão no ombro de Robb, tentando acalmá-

lo.

- Aço vivo é demasiado perigoso. Permitirei espadas de torneio, com

gumes embotados.

Joffrey não disse nada, mas um homem que era estranho a Arya, um

cavaleiro alto com cabelos negros e cicatrizes de queimaduras no

rosto, avançou para a frente do príncipe.

- Este é o seu príncipe, Quem é você para lhe dizer que não pode ter

um gume na espada, sor?

- Sou o mestre de armas de Winterfell, Clegane, e faria bem se não

se esquecesse disto.

- Está aqui para treinar mulheres? - quis saber o homem queimado.

Era musculoso como um touro.

- Treino cavaleiros - respondeu severamente Sor Rodrik. - Eles terão

aço quando estiverem prontos. Quando tiverem idade.

O homem queimado olhou para Robb.

- Que idade você tem, rapaz?

- Catorze anos - disse Robb.

- Matei um homem aos doze. E pode ter certeza de que não foi com

uma espada sem fio. Arya conseguia ver que Robb se irritava. Seu

orgulho estava ferido. Virou-se para Sor Rodrik.

- Deixe-me fazê-lo. Posso vencê-lo.

- Então, vença-o com uma lâmina de torneio - respondeu Sor Rodrik.

Joffrey encolheu os ombros.

- Venha ter comigo quando for mais velho, Stark. Se não já for velho

demais - soaram gargalhadas vindas dos Lannister.

As pragas de Robb ressoaram pelo pátio. Arya cobriu a boca,

chocada. Theon Greyjoy agarrou o braço de Robb a fim de mantê-lo

afastado do príncipe. Sor Rodrik coçou as suíças, consternado. Joffrey

fingiu um bocejo e virou-se para o irmão mais novo.

- Venha, Tommen - disse. - A hora da brincadeira terminou. Deixe as

crianças com seus divertimentos.

Aquilo provocou mais risos entre os Lannister, e mais pragas de

Robb. O rosto de Sor Rodrik, por baixo do branco das suíças, estava

vermelho como uma beterraba em fúria. Theon manteve Robb preso

com mão de ferro até que os príncipes e sua comitiva se fossem em

segurança.

Jon observou-os partir, e Arya observou Jon. Seu rosto tinha ficado

tão imóvel como a lagoa no coração do bosque sagrado. Por fim, ele

desceu da janela.

- O espetáculo acabou - disse. Dobrou-se para coçar Fantasma atrás

das orelhas. O lobo branco pôs-se em pé e esfregou-se contra ele. - E

melhor correr para o seu quarto, irmãzinha. Septã Mordane está sem

dúvida à espreita. Quanto mais tempo ficar escondida, mais severa a

penitência. Ficará a coser durante todo o inverno. Quando chegar o

degelo da primavera, encontrarão seu corpo ainda com uma agulha

bem presa entre os dedos congelados.

Arya não achou graça.

- Detesto costura! - disse com paixão. - Não é justo!

- Nada é justo - disse Jon. Voltou a despentear-lhe os cabelos e

afastou-se, com Fantasma a caminhar em silêncio ao seu lado.

Nymeria também começou a segui-los, mas depois parou e regressou

quando viu que Arya não ia.

Arya virou-se relutantemente na outra direção.

Foi pior do que Jon pensara. Não era Septã Mordane quem a

esperava no quarto. Eram Septã Mordane e sua mãe.


Bran


Os caçadores partiram de madrugada. O rei desejava javali para o

festim da noite. Príncipe Joffrey ia com o pai, e, por esse motivo,

Robb foi também autorizado a juntar-se ao grupo. Tio Benjen, Jory,

Theon Greyjoy, Sor Rodrik e até o pequeno e engraçado irmão da

rainha iam com eles. Afinal, era a última caçada. Na manhã seguinte

partiriam para o Sul.

Bran fora deixado para trás com Jon, as meninas e Rickon. Mas

Rickon era só um bebê, as meninas eram apenas meninas, e não

encontravam Jon e seu lobo em lugar nenhum. Bran não o procurou

com muita força. Pensava que Jon estivesse zangado com ele. Por

aqueles dias, Jon parecia estar zangado com todo mundo. Bran não

sabia por quê. Ele ia com Tio Ben para a Muralha, juntar-se à

Patrulha da Noite. Isso era quase tão bom como ir para o Sul com o

rei. Era Robb quem ia ser deixado para trás, não Jon.

Ao longo de vários dias, Bran quase não conseguia esperar pela

partida. Ia percorrer a estrada do rei montado num cavalo seu, não

um pônei, mas um cavalo verdadeiro. O pai seria Mão do Rei, e

viveriam no castelo vermelho em Porto Real, o castelo que os

Senhores do Dragão tinham construído. A Velha Ama dizia que havia

lá fantasmas, e masmorras onde tinham sido feitas coisas terríveis, e

cabeças de dragão nas paredes. Bran arrepiava-se só de pensar nisso,

mas não tinha medo. Como podia ter? O pai estaria com ele, e

também o rei, com todos os seus cavaleiros e homens de armas.

O próprio Bran um dia seria um cavaleiro, um membro da Guarda

Real. A Velha Ama dizia que eram os melhores espadachins de todo

o reino. Eram apenas sete, usavam armaduras brancas e não tinham

esposas nem filhos, viviam apenas para servir o rei. Bran conhecia

todas as histórias. Os nomes deles eram como música para os seus

ouvidos. Serwyn do Escudo Espelhado; Sor Ryam Redwyne; Príncipe

Aemon, o Cavaleiro do Dragão; os gêmeos, Sor Erryk e Sor Arryk,

que tinham morrido pelas espadas um do outro havia centenas de

anos, quando irmãos lutavam contra irmãs na guerra que os poetas

chamavam a Dança dos Dragões; Touro Branco, Gerold Hightower;

Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã; e Barristan, o Ousado.

Dois dos Guardas do Rei tinham vindo para o Norte com Rei Robert.

Bran observara-os, fascinado, sem chegar a se atrever a dirigir-lhes a

palavra. Sor Borós era um homem calvo com um maxilar largo, e Sor

Meryn tinha olhos inclinados e uma barba cor de ferrugem. Sor

Jaime Lannister parecia-se mais com os cavaleiros das histórias e

também pertencia à Guarda do Rei, mas Robb dizia que ele tinha

matado o velho rei louco e já não contava. O maior cavaleiro vivo era

Sor Barristan Selmy, Barristan, o Ousado, o Senhor Comandante da

Guarda do Rei. O pai prometera que conheceriam Sor Barristan

quando chegassem a Porto Real, e Bran marcara a passagem dos dias

na parede do quarto, ansioso por partir, por ver um mundo com que

só sonhara e começar uma vida que quase nem conseguia imaginar.

Mas agora que o último dia se aproximava, repentinamente Bran

sentia-se perdido. Winterfell era a única casa que conhecera. O pai

dissera-lhe que devia fazer hoje as suas despedidas, e ele tentou.

Depois de os caçadores terem partido, vagueou pelo castelo com o

lobo a seu lado, tencionando visitar aqueles que ficariam ali, a Velha

Ama e o cozinheiro Gage, Mikken na sua forja, Hodor, o cavalariço

que sorria tanto, cuidava de seu pônei e nunca dizia nada que não

fosse "Hodor"; o homem nos jardins de vidro que lhe dava uma

amora silvestre sempre que ia visitá-lo...

Mas foi inútil. Dirigiu-se primeiro ao estábulo e viu seu pônei na

baia, mas já não era seu pônei, pois teria um cavalo verdadeiro e

deixaria o pônei para trás, e de repente quis apenas sentar e chorar,

Virou-se e fugiu dali antes que Hodor e os outros moços da

estrebaria lhe vissem as lágrimas nos olhos. Foi o fim das despedidas.

Em lugar delas, passou a manhã sozinho no bosque sagrado,

tentando sem sucesso ensinar o lobo a buscar um pedaço de pau. O

lobinho era mais inteligente que qualquer dos cães no canil do pai, e

Bran juraria que entendia cada palavra que lhe era dita, mas

mostrava muito pouco interesse em perseguir pedaços de pau.

Ainda andava à procura de um nome. Robb chamara ao seu cão

Vento Cinzento porque ele corria muito depressa. Sansa chamara

Lady ao seu, e Arya dera ao seu o nome de uma rainha qualquer

feiticeira das canções, e o pequeno Rickon chamara ao seu Cão

Felpudo, o que Bran julgava ser um nome bastante estúpido para um

lobo gigante. O lobo de Jon, o branco, chamava-se Fantasma. Bran

gostaria de ter pensado primeiro nesse nome, apesar de seu lobo não

ser branco. Tentara cem nomes ao longo da última quinzena, mas

nenhum lhe parecera ideal.

Por fim, cansou-se do jogo do pau e decidiu escalar. Havia semanas

que não subia à torre quebrada, por causa de tudo o que acontecera,

e aquela poderia ser sua última oportunidade.

Atravessou correndo o bosque sagrado, escolhendo o caminho mais

longo a fim de evitar a lagoa onde crescia a árvore-coração. Ela

sempre o assustara; as árvores não deveriam ter olhos, pensava Bran,

nem folhas que se parecessem com mãos, O lobo corria junto aos

seus calcanhares.

- Fica aqui - disse ao animal na base da árvore sentinela que crescia

ao lado da parede do armeiro. - Deita. Isso. Agora fica.

O lobo fez o que lhe foi ordenado. Bran coçou-o atrás das orelhas e

depois se virou, saltou, agarrou um ramo baixo e içou-se. Estava no

meio da árvore, deslocando-se com facilidade de ramo em ramo,

quando o lobo se pôs em pé e começou a uivar.

Bran olhou para baixo. O lobo calou-se, olhando-o através das fendas

de seus olhos amarelos. Um estranho arrepio o atravessou, mas

recomeçou a trepar. Uma vez mais o lobo uivou.

- Quieto - gritou. - Senta. Fica. Você é pior que a minha mãe - os

uivos seguiram-no até o topo da árvore quando, por fim, saltou para

o telhado do armeiro e para fora de vista.

Os telhados de Winterfell eram a segunda casa de Bran. A mãe dizia

frequentemente que ele já era capaz de escalar antes de aprender a

andar. Bran não se lembrava de quando começara a andar, mas

tampouco se lembrava do momento em que começara a escalar;

portanto, supunha que devia ser verdade.

Para um rapaz, Winterfell era um labirinto de pedra cinzenta, com

paredes, torres, pátios e túneis que se estendiam em todas as

direções. Nas partes mais antigas do castelo, os salões inclinavam-se

para cima e para baixo, de modo que nem era possível saber ao certo

o andar em que se estava. Meistre Luwin dissera-lhe uma vez que o

edifício fora crescendo ao longo dos séculos como se fosse uma

monstruosa árvore de pedra, com ramos nodosos, grossos e

retorcidos, e raízes que se afundavam profundamente na terra.

Quando saía de baixo dessa espécie de árvore e subia até perto do

céu, Bran conseguia ver todo Winterfell de um relance. E gostava do

aspecto do lugar, estendido à sua frente, apenas com aves a rodopiar

sobre sua cabeça enquanto toda a vida do castelo prosseguia lá

embaixo, Bran podia ficar horas empoleirado entre as gárgulas sem

forma, desgastadas pela chuva, que matutavam no topo da Primeira

Torre, observando tudo: os homens que se exercitavam com madeira

e aço no pátio, os cozinheiros que cuidavam de suas plantas no

jardim de vidro, cães irrequietos que corriam para um lado e para

outro nos canis, o silêncio do bosque sagrado, as moças que

mexericavam junto ao poço das lavagens. Fazia-o sentir-se senhor do

castelo, de um modo que nem mesmo Robb conheceria.

E também lhe revelava os segredos de Winterfell. Os construtores

nem sequer tinham nivelado a terra; havia colinas e vales por trás

dos muros de Winterfell. Havia uma ponte coberta que ligava o

quarto piso da torre sineira ao segundo piso do aviário. Bran a

conhecia. E também sabia que podia entrar na muralha interior pelo

portão sul, subir três pisos e correr por todo Winterfell dentro de

um túnel estreito aberto na pedra, e depois sair ao nível do chão no

portão norte com trinta metros de muralha a elevar-se acima da sua

cabeça. Bran estava convencido de que nem — esmo Meistre Luwin

sabia disso.

A mãe andava aterrorizada com a possibilidade de Bran um dia

escorregar de um muro e matar-se. Ele dissera-lhe que isso não

aconteceria, mas ela nunca acreditou. Uma vez o fez prometer que

permaneceria no chão. Ele conseguiu cumprir a promessa durante

quase uma quinzena, infeliz todos os dias, até que uma noite saiu

pela janela do quarto quando os irmãos estavam mergulhados no

sono.

Confessou o crime no dia seguinte, num ataque de remorso. O

Senhor Eddard ordenou-lhe que fosse se purificar no bosque sagrado.

Foram destacados guardas para assegurar que Bran permaneceria lá

toda a noite, sozinho, a refletir sobre sua desobediência. Na manhã

seguinte, Bran não se encontrava em lado nenhum. Foram finalmente

encontrá-lo, profundamente adormecido, nos ramos superiores da

mais alta árvore sentinela do bosque.

Por mais zangado que estivesse, o pai não conseguiu evitar uma

gargalhada.

- Você não é meu filho - disse a Bran quando o trouxeram para baixo

-, é um esquilo. Que seja. Se tem de escalar, então escale, mas não

deixe que sua mãe o veja.

Bran fez o melhor que pôde, embora achasse que nunca conseguira

realmente enganá-la. Como o pai não o proibia, ela virara-se para

outros lados. A Velha Ama contou-lhe uma história sobre um mau

rapazinho que escalou alto demais e foi atingido por um relâmpago,

e sobre o modo como os corvos vieram depois bicar-lhe os olhos.

Bran não se impressionou. Havia ninhos de corvo no topo da torre

quebrada, onde nunca ninguém ia, além dele, e às vezes enchia os

bolsos de milho antes de escalar até lá, e os corvos comiam de sua

mão. Nenhum jamais mostrou alguma vez a mais leve intenção de

lhe bicar os olhos.

Mais tarde, Meistre Luwin moldou um pequeno rapaz de barro,

vestiu-o com as roupas de Bran e atirou-o do muro para o pátio a

fim de demonstrar o que aconteceria a Bran se caísse. Foi divertido,

mas depois da demonstração Bran limitou-se a olhar para o meistre e

dizer:

- Não sou feito de barro. E, seja como for, nunca caio.

Depois disso, durante algum tempo os guardas o perseguiam sempre

que o viam nos telhados e tentavam puxá-lo para baixo. Foi a melhor

época de todas. Era como brincar com os irmãos, exceto que naquele

jogo era sempre Bran quem ganhava. Nenhum dos guardas era capaz

de escalar tão bem como Bran, nem metade, nem mesmo Jory. E,

fosse como fosse, a maior parte das vezes nem sequer o viam. As

pessoas nunca olhavam para cima. Era outra coisa que apreciava em

escalar; era quase como ser invisível.

E também gostava da sensação de se içar por um muro acima, pedra

a pedra, com os dedos das mãos e dos pés enterrando-se com força

nas pequenas fendas que havia entre elas. Quando escalava, tirava

sempre as botas e subia descalço; aquilo o fazia se sentir como se

tivesse quatro mãos em vez de duas. Gostava da dor profunda e doce

que sentia depois nos músculos. Gostava do sabor que o ar tinha lá

em cima, doce e frio como um pêssego de inverno. Gostava dos pás-

saros: os corvos na torre quebrada, os minúsculos pardais que faziam

ninho nas fendas entre as pedras, a velha coruja que dormia no sótão

poeirento que ficava por cima do antigo armeiro. Bran conhecia-os

todos.

E acima de tudo gostava de ir a lugares onde ninguém mais podia ir

e de ver a extensão cinzenta de Winterfell de um modo que nunca

ninguém vira. Transformava todo o castelo no lugar secreto de Bran.

Seu local favorito era a torre quebrada. Antigamente tinha sido uma

torre de atalaia, a mais alta de Winterfell. Há muito tempo, cem anos

antes mesmo que seu pai tivesse nascido, um relâmpago a

incendiara. O terço superior da estrutura tinha tombado para dentro,

e a torre nunca fora reconstruída. Por vezes, seu pai mandava

caçadores de ratos até a base dela para limpar os ninhos que

encontravam sempre por entre a confusão de pedras caídas e traves

queimadas e podres. Mas agora nunca ninguém ia até o topo

irregular da estrutura, salvo Bran e os corvos.

Conhecia duas maneiras de chegar lá. Podia-se ir diretamente,

escalando o lado da própria torre, mas as pedras estavam soltas, a

argamassa que as mantivera juntas havia muito que tinha se

transformado em cinzas, e Bran nunca gostara de pôr todo seu peso

em cima delas.

A melhor maneira era partir do bosque sagrado, escalar a grande

sentinela, atravessar o armeiro e o salão dos guardas, saltando de

telhado em telhado descalço, para que os guardas não ouvissem.

Depois disso, estava-se no lado oculto da Primeira Torre, a mais

antiga parte do castelo, uma fortaleza quadrada e atarracada que era

mais alta do que parecia. Só ratos e aranhas ali viviam agora, mas as

velhas pedras ainda davam uma boa escalada. Podia-se ir diretamente

até o local onde as gárgulas se inclinavam, cegas, sobre o espaço

vazio, e balançar de gárgula em gárgula, uma mão depois da outra,

até o lado norte. Daí, caso se esticasse bem, podia alcançar a torre

quebrada e içar-se em direção a ela no lugar onde se inclinava para

mais perto. A última parte era engatinhar pelas pedras enegrecidas

até o ponto mais elevado, não mais que três metros, e então

chegariam os corvos, para ver se tinha trazido milho.

Bran estava passando de gárgula em gárgula com a facilidade de uma

longa prática quando ouviu as vozes. Ficou tão sobressaltado que

quase perdeu o apoio. A Primeira Torre estivera vazia toda sua vida.

- Não estou gostando - uma mulher dizia. Havia uma fileira de

janelas por baixo de Bran, e a voz saía da última janela daquele lado.

- Você é que devia ser a Mão.

- Que os deuses o proíbam - respondeu indolentemente uma voz

masculina. - Não é honra que eu deseje. Dá um trabalho desmedido.

Bran ficou ali, pendurado, à escuta, com medo de prosseguir. Eles

poderiam ver de relance seus pés se tentasse passar pela janela.

- Não vê o perigo em que isto nos coloca? - disse a mulher. - Robert

adora o homem como a um irmão.

- Robert quase não tem estômago para os irmãos. Não que o

censure. O Stannis seria suficiente para dar uma indigestão a

qualquer um.

- Não se faça de tolo. Stannis e Renly são uma coisa, Eddard Stark é

outra totalmente diferente. Robert escutará Stark. Malditos sejam

ambos. Eu devia ter insistido para que ele o nomeasse, mas tinha

certeza, de que Stark lhe diria não.

- Deveríamos agradecer por nossa sorte - disse o homem. - O rei

podia perfeitamente ter nomeado um de seus irmãos, ou mesmo o

Mindinho, que os deuses nos protejam. Dê-me inimigos honrados em

vez de ambiciosos e dormirei melhor à noite.

Bran compreendeu que falavam de seu pai. Quis ouvir mais. Mais

alguns pés... mas o veriam se balançasse na frente da janela.

— Teremos de vigiá-los cuidadosamente - disse a mulher.

- Eu preferiria vigiar você - disse o homem, soando aborrecido. -

Volte aqui.

- Lorde Eddard nunca mostrou nenhum interesse em nada que

acontecesse ao sul do Gargalo - disse a mulher. - Nunca. Escute-me

bem, ele planeja uma jogada contra nós. Por que turro motivo

aceitaria abandonar a sede do seu poder?

- Por cem motivos. O dever. A honra. Deseja escrever seu nome em

letras grandes no livro rk História, fugir da mulher ou ambas as

coisas. Talvez não queira mais do que estar quente por ama vez na

vida.

- A mulher é irmã da Senhora Arryn. É um milagre que Lysa não

esteja aqui para nos receber com suas acusações.

Bran olhou para baixo. Havia um estreito parapeito por baixo da

janela, só com algumas polegadas de largura. Tentou abaixar-se até

lá. Estava longe demais. Nunca o alcançaria.

- Aborrece-se em demasia. Lysa Arryn é uma vaca assustada,

- Essa vaca assustada partilhava a cama dejon Arryn.

- Se soubesse alguma coisa, teria ido falar com Robert antes de fugir

de Porto Real.

- Depois de já termos concordado em criar aquele fracote do seu

filho em Rochedo Casterly? Não me parece. Ela sabia que a vida do

rapaz ficaria refém do seu silêncio. Mas pode se tornar mais ousada,

agora que está a salvo no topo do Ninho da Águia.

- Mães - o homem fez a palavra soar como uma praga. - Acho que

dar à luz faz qualquer coisa às vossas mentes. São todas loucas - ele

riu, um som amargo. - Que a Senhora Arryn se torne tão ousada

quanto desejar. Seja o que for que ela sabe, seja o que for que ela

pensa que sabe, rio tem provas - fez uma pausa momentânea. - Ou

será que tem?

- Você julga que o rei precisará de provas? - disse a mulher, - Já te

disse que ele não me ama.

- E quem tem culpa disso, querida irmã?

Bran estudou o parapeito. Podia cair. Era demasiado estreito para

aterrisar nele, mas se conseguisse se segurar ao passar por ele e

depois içar-se... Mas isso faria barulho e os traria até a janela. Não

tinha certeza do que estava ouvindo, mas sabia que não se destinava

aos seus ouvidos.

- É tão cego como Robert - dizia a mulher,

- Se quer com isso dizer que vejo as mesmas coisas, então, sim -

disse o homem. - Vejo um homem que mais depressa morreria do

que trairia seu rei.

—Já traiu um, ou será que se esqueceu? - disse a mulher. - Ah, não

nego que ele é leal ao Robert, isto é óbvio. O que acontecerá quando

Robert morrer e Joff subir ao trono? E, quanto mais depressa isso

acontecer, mais seguros estaremos todos. Meu marido fica dia a dia

mais inquieto. Stark a seu lado só o fará ficar pior. Ainda ama sua

irmã, a insípida miudinha morta de dezesseis anos. Quanto tempo

demorará para decidir me pôr de lado em favor de alguma nova

Lyanna?

Bran ficou de súbito muito assustado. Nada mais desejava do que

regressar pelo caminho de onde tinha vindo e ir à procura dos

irmãos. Mas o que poderia dizer a eles? Compreendeu que tinha de

se aproximar mais. Tinha de ver quem estava falando.

O homem suspirou.

- Devia pensar menos no futuro e mais nos prazeres próximos.

- Para com isso! - disse a mulher.

Bran ouviu o súbito som de carne batendo em carne, e em seguida o

riso do homem. Bran içou-se, escalou a gárgula, rastejou para o

telhado. Era a maneira mais fácil. Deslocou-se ao longo do telhado

até a gárgula seguinte, que ficava mesmo por cima da janela do

quarto onde os dois conversavam.

- Todo este falatório está se tornando muito cansativo, irmã - disse o

homem. - Venha cá e se cale.

Bran sentou-se na gárgula com uma perna para cada lado, apertou-as

em redor dela e deslizou até ficar de cabeça para baixo. Pendurou-se

pelas pernas e esticou a cabeça lentamente até a janela. O mundo

parecia estranho de pernas para o ar. Um pátio nadava

vertiginosamente lá embaixo, com as lajes ainda úmidas da neve

derretida.

Bran olhou pela janela.

Dentro do quarto, um homem e uma mulher lutavam. Estavam

ambos nus. Bran não conseguia ver quem eram. As costas do homem

estavam voltadas para ele, e seu corpo ocultou a mulher quando ele

a empurrou contra a parede,

Ouviam-se sons suaves e úmidos. Bran percebeu que se beijavam.

Observou, assustado e de olhos esbugalhados, com a respiração

apertada na garganta. O homem tinha uma mão entre as pernas da

mulher, e a devia estar machucando, porque ela começou a gemer,

com voz profunda.

- Para - disse ela - para, para. Ah, por favor... - mas a voz era baixa e

fraca, e ela não o empurrava para longe. As mãos enterraram-se nos

emaranhados cabelos dourados dele e puxaram--lhe o rosto para o

peito.

Bran viu-lhe o rosto. Os olhos dela estavam fechados e a boca aberta,

gemendo. Os cabelos moviam-se de um lado para o outro quando a

cabeça dela se deslocava para a frente e para trás, mas, mesmo

assim, reconheceu a rainha.

Deve ter feito algum ruído. De súbito, os olhos dela abriram-se e

fitaram-no. Ela gritou.

Então, tudo aconteceu ao mesmo tempo. A mulher empurrou

precipitadamente o homem, gritando e apontando. Bran tentou içar-

se, dobrando-se sobre si próprio ao tentar alcançar a gárgula. Mas o

fez com muita pressa. A mão arranhou inutilmente a pedra lisa, e no

seu pânico as pernas deslizaram e, de repente, viu-se caindo. Houve

um instante de vertigem, um desamparo nauseante quando a janela

passou por ele. Esticou a mão, agarrou o parapeito, perdeu-o, voltou

a agarrá-lo com a outra mão. Bateu com força no edifício. O impacto

tirou-lhe o fôlego. Bran ficou suspenso por uma mão, arquejando.

Rostos surgiram na janela acima dele,

A rainha. E agora Bran reconhecia o homem a seu lado. Eram tão

parecidos como reflexos num espelho.

- Ele nos viu - disse a mulher com voz esganiçada.

- Pois viu.

Os dedos de Bran começaram a deslizar. Agarrou o parapeito com a

outra mão. Suas unhas enterraram-se na pedra dura. O homem

estendeu um braço.

- Agarre a minha mão - disse. - Antes que caia.

Bran agarrou-lhe o braço com toda sua força. O homem o puxou até

o umbral.

- Que está fazendo? - quis saber a mulher.

O homem a ignorou. Era muito forte. Pôs Bran em pé sobre o

parapeito.

- Que idade tem, rapaz?

- Sete anos - disse Bran, tremendo de alívio. Seus dedos tinham

marcado profundas estrias no braço do homem. Largou-o,

envergonhado.

O homem olhou para a mulher.

- As coisas que faço por amor - disse, com repugnância. Deu um

empurrão em Bran.

Gritando, Bran caiu da janela de costas para o vazio. Nada havia a

que se pudesse agarrar. O pátio correu ao seu encontro.

Em algum lugar, ao longe, um lobo uivava. Corvos voavam em

círculos sobre a torre quebrada, esperando por milho.


Tyrion


Em algum lugar no grande labirinto de pedra de Winterfell um lobo

uivou. O som pairou sobre o castelo como uma bandeira de luto.

Tyrion Lannister ergueu os olhos dos seus livros e estremeceu,

apesar de a biblioteca estar quente e aconchegante. Há algo no uivar

de um lobo que tira um homem do seu aqui e agora e o deposita

numa floresta escura da mente, correndo nu à frente da matilha.

Quando o lobo gigante voltou a uivar, Tyrion fechou o pesado livro

encadernado a couro que estava lendo, um discurso com cem anos

de um meistre há muito morto sobre a mudança das estações.

Cobriu um bocejo com as costas da mão. Sua lanterna de leitura

bruxuleava, com o óleo quase gasto, enquanto a luz da madrugada se

esgueirava pelas janelas elevadas. Tinha passado a noite inteira lendo,

mas nada havia de novo. Tyrion Lannister não era homem de dormir

muito.

Quando deslizou do banco, sentiu as pernas rígidas e doloridas.

Devolveu-lhes alguma vida com uma massagem e mancou

pesadamente até a mesa onde o septão ressonava baixinho, com um

livro aberto a servir-lhe de almofada. Tyrion deitou um olhar de

relance ao título. Não admirava: era uma biografia do Grande Meistre

Aethelmure.

- Chayle - disse, em voz baixa. O jovem ergueu-se de um salto,

pestanejando, confuso, com o cristal de sua ordem balançando

vigorosamente na ponta de sua corrente de prata. - Vou quebrar o

jejum. Trate de pôr os livros de volta nas prateleiras. Tome cuidado

com os rolos valirianos, porque o pergaminho está muito seco. O

Máquinas de Guerra de Ayrmidon é bastante raro, e a sua é a única

cópia completa que já vi - Chayle olhou-o de boca aberta, ainda meio

adormecido. Pacientemente, Tyrion repetiu as instruções, depois deu

ao septão uma palmada no ombro e o deixou com suas tarefas.

No exterior, Tyrion encheu os pulmões com o ar frio da manhã e

começou sua laboriosa descida dos íngremes degraus de pedra que se

enrolavam em torno do exterior da torre da biblioteca. Era um

avanço lento; os degraus eram altos e estreitos, ao passo que as

pernas eram curtas e torcidas. O sol nascente ainda não iluminava os

muros de Winterfell, mas os homens já estavam muito ativos no

pátio, lá embaixo. A voz áspera de Sandor Clegane vagueou até seus

ouvidos.

- O rapaz leva muito tempo para morrer. Gostaria que se fosse logo.

Tyrion olhou para baixo de relance e viu o Cão de Caça em pé ao

lado de Joffrey, enquanto escudeiros formigavam em redor.

- Pelo menos morre em silêncio - respondeu o príncipe. - E o lobo

que faz barulho. Quase não consegui dormir esta noite.

Clegane lançou uma longa sombra sobre a terra bem batida quando

seu escudeiro levantou o elmo negro sobre sua cabeça.

- Posso silenciar a criatura, se o agraciar - disse através do visor

aberto. O ajudante colocou-lhe uma espada na mão. Clegane testou o

seu peso cortando o ar frio da manhã. Atrás dele, o pátio ressoava

com o som estridente de aço a bater em aço.

A idéia pareceu encher o príncipe de prazer.

- Mandar um cão matar um cão! - exclamou. - Winterfell está tão

infestado de lobos que os Stark nunca se darão conta da falta de um.

Tyrion saltou do último degrau para o pátio.

- Permita-me discordar, sobrinho - disse. - Os Stark são capazes de

contar até seis. Ao contrário de certos príncipes que eu poderia citar.

Joffrey teve pelo menos a educação de corar.

- Uma voz vinda de lugar algum - disse Sandor. Espreitou através do

elmo, olhando para um lado e para outro. - Espíritos do ar!

O príncipe riu, como ria sempre que o guarda-costas fazia aquela

farsa de pantomimeiro. lyrion já estava habituado.

- Aqui embaixo.

O homem alto espreitou para o chão e fingiu reparar nele.

- O pequeno senhor Tyrion - disse. - As minhas desculpas. Não o vi

aí,

- Hoje não tenho disposição para a sua insolência - Tyrion virou-se

para o sobrinho. - Joffrey, íá é mais que tempo de ir falar com Lorde

Eddard e sua senhora para lhes oferecer seu consolo.

Joffrey pareceu tão petulante como só um jovem príncipe podia ser.

- E que bem lhes faria o meu consolo?

- Nenhum - disse Tyrion. - Mas espera-se que faça isto. Sua ausência

foi notada.

- O rapaz Stark não me é nada - disse Joffrey. - Não consigo suportar

os choros das mulheres. Tyrion Lannister ergueu o braço e deu no

sobrinho um forte tapa na cara. A bochecha do rapaz começou a

corar.

- Uma palavra - disse Tyrion -, e bato outra vez.

- Vou contar para minha mãe! - exclamou Joffrey.

Tyrion bateu-lhe de novo. Agora ambas as bochechas ardiam.

- Vai lá contar para ela - disse-lhe Tyrion. - Mas primeiro vá falar

com o Senhor e a Semora Stark, ponha-se de joelhos e lhes diga o

quanto lamenta e que está a seu serviço se houver alguma coisa que

possa fazer por eles nesta hora desesperada, e que lhes dedica todas

as suas preces. Compreende? Compreende?

O rapaz fez cara de quem ia chorar. Mas, em vez disso, deu um

fraco aceno com a cabeça. Depois se virou e fugiu correndo do pátio,

com as mãos cobrindo o rosto. Tyrion ficou vendo-o correr.

Uma sombra caiu-lhe sobre o rosto. Virou-se e deparou com

Clegane, que se erguia acima ia sua cabeça como uma falésia. A

armadura negra como fuligem do cavaleiro parecia embotar o sol. Ele

tinha baixado o visor do elmo, moldado de forma a parecer-se com a

cabeça de um cão de caça negro, de dentes arreganhados, assustador

ao olhar, mas Tyrion sempre o considerara uma grande melhoria

comparado à cara horrivelmente queimada de Clegane.

- O príncipe se recordará disto, pequeno senhor - preveniu o Cão de

Caça, e o elmo transformou sua gargalhada num estrondo oco.

- Rezo para que se recorde - respondeu Tyrion Lannister. - Caso se

esqueça, seja um bom cãozinho e o relembre - passou os olhos pelo

pátio. - Sabe onde posso encontrar meu irmão?

- Está no desjejum com a rainha.

- Ah - respondeu Tyrion. Inclinou negligentemente a cabeça para

Sandor Clegane e afastou-se, assobiando, com tanta vivacidade

quanto suas pernas deformadas permitiam. Sentia pena do primeiro

cavaleiro a medir forças hoje com o Cão de Caça. O homem tinha

mau gênio.

Uma refeição fria e triste tinha sido servida na sala de estar da Casa

de Hóspedes. Jaime estava sentado a uma mesa com Cersei e as

crianças, conversando em voz baixa e abafada,

- Robert ainda está deitado? - perguntou Tyrion ao sentar-se à mesa

sem ser convidado.

A irmã o olhou com a mesma tênue expressão de desagrado que

ostentava desde o dia em que ele nascera.

- O rei não chegou a dormir - informou. - Está com Lorde Eddard. O

desgosto do amigo o atingiu profundamente no coração.

- Tem um grande coração o nosso Robert - disse Jaime com um

sorriso indolente. Eram muito poucas as coisas que Jaime levava a

sério. Tyrion conhecia essa característica do irmão, e o perdoava.

Durante todos os terríveis longos anos da infância, só Jaime lhe

mostrara o menor sinal de afeto ou respeito, e por isso Tyrion estava

pronto a perdoar-lhe quase tudo.

Um servo aproximou-se.

- Pão - disse-lhe Tyrion -, e dois daqueles peixinhos, e uma caneca

daquela bela cerveja preta para empurrá-los para baixo. Ah, e algum

bacon. Queime-o até ficar preto - o homem fez uma reverência e

afastou-se. Tyrion voltou a virar-se para os irmãos. Gêmeos, um

homem e uma mulher. E, naquela manhã, pareciam-se muito. Ambos

tinham escolhido um verde profundo que combinava com seus olhos.

Os caracóis louros eram em ambos uma confusão elegante, e orna-

mentos de ouro brilhavam em seus pulsos, dedos e gargantas.

Tyrion perguntou a si próprio como seria ter um gêmeo, mas decidiu

que preferia não saber. Já era suficientemente ruim encarar-se todos

os dias no espelho. Outro dele era uma idéia terrível demais para

imaginar.

Príncipe Tommen falou:

- Tem notícias de Bran, tio?

- Passei ontem à noite pela enfermaria - anunciou Tyrion. - Não

havia alterações. O meistre acha que é sinal esperançoso.

- Não quero que Brandon morra - disse Tommen timidamente. Era

um bom rapaz. Não era como o irmão, mas também Jaime e Tyrion

não eram propriamente a imagem um do outro.

- Lorde Eddard tinha também um irmão chamado Brandon -

meditou Jaime. - Um dos reféns assassinados por Targaryen. Parece

ser um nome sem sorte.

- Ah, certamente não é assim tão desafortunado - disse Tyrion. O

servo trouxe-lhe o prato, e ele partiu um bocado de pão escuro.

Cersei o estava estudando com prudência.

- O que quer dizer?

Tyrion deu-lhe um sorriso torto.

- Ora, apenas que Tommen pode ver realizado seu desejo. O meistre

pensa que o rapaz pode sobreviver - e bebeu um trago de cerveja.

Myrcella fez um arquejo de contentamento, e Tommen sorriu

nervosamente, mas Tyrion não estava observando as crianças. O

olhar que Jaime e Cersei trocaram não durou mais de um segundo,

mas não lhe passou despercebido. Então, a irmã deixou cair seu olhar

sobre a mesa.

- Isto não é nenhuma misericórdia. Estes deuses nortenhos são cruéis

ao deixar que crianças passem por tamanha dor.

- Quais foram as palavras do meistre? - Jaime perguntou.

O bacon estalou ao ser mordido. Tyrion mastigou por um momento,

pensativo, e disse:

- Ele pensa que se o rapaz fosse morrer, já teria acontecido. E já se

passaram quatro dias sem nenhuma alteração.

- Será que Bran ficará melhor, tio? - perguntou a pequena Myrcella,

que tinha toda a beleza da mãe, mas nada da sua natureza,

- Ele quebrou a coluna, minha menina - informou Tyrion. - O

meistre só tem esperança

- Tyrion mastigou mais um pouco de pão. - Eu seria capaz de jurar

que é aquele seu lobo que o mantém vivo. A criatura fica junto à sua

janela dia e noite uivando. E sempre que o afugentam, ele volta. O

meistre disse que uma vez fecharam a janela, para abafar o barulho,

e Bran pareceu ficar mais fraco. Quando voltaram a abri-la, seu

coração bateu com mais força.

A rainha estremeceu.

- Há qualquer coisa que não é natural nesses animais - disse. - São

perigosos. Não quero que nenhum deles venha para o Sul conosco.

Jaime interveio:

- Teremos dificuldade em impedi-los de ir, irmã. Eles seguem aquelas

moças para todo lado. Tyrion atacou o peixe.

- Vão então partir em breve?

- Não será breve o suficiente - disse Cersei.

Então franziu a sobrancelha. - Não vamos partir? - ela disse alto. -

Então, e você? Deuses, não me diga que vai ficar aqui?

Tyrion encolheu os ombros.

- Benjen Stark regressará à Patrulha da Noite com o filho bastardo do

irmão. Penso em ir com eles e ver esta Muralha de que tanto

ouvimos falar.

Jaime sorriu.

- Espero que não esteja pensando em vestir o negro, querido irmão.

Tyrion soltou uma gargalhada.

- O quê, eu, celibatário? As prostitutas passarão a pedintes entre

Dorne e Rochedo Casterly. Não, só quero subir ao topo da Muralha e

mijar do limite do mundo.

Cersei se pôs abruptamente em pé.

- As crianças não têm de ouvir esta nojeira. Tommen, Myrcella,

venham - Cersei saiu da sala re estar em passo vivo, seguida pela

cauda do vestido e pelas crias.

Jaime Lannister observou o irmão, pensativo, com seus frios olhos

verdes,

- Stark nunca consentirá em abandonar Winterfell com o filho

pairando sob as sombras da morte.

- Ele consentirá se Robert ordenar - disse Tyrion. - E Robert

ordenará. De qualquer forma, não há nada que Lorde Eddard possa

fazer pelo filho.

- Poderia pôr fim ao seu tormento - disse Jaime. - Era o que eu faria

se fosse meu filho. Seria um ato de misericórdia.

- Aconselho-o que não sugira essa idéia a Lorde Eddard, meu querido

irmão - disse Tyrion.

- Ele não a receberá de bom grado.

- Mesmo que o rapaz sobreviva, será um aleijado. Pior que um

aleijado. Uma coisa grotesca. Eu preferiria uma morte boa e limpa.

Tyrion respondeu com um encolher de ombros que acentuou o

modo como eram torcidos.

- Falando em nome das coisas grotescas - disse -, permito-me

discordar. A morte é terrivelmente final, ao passo que a vida está

cheia de possibilidades.

Jaime sorriu.

- Você é um duendezinho perverso, não é?

- Ah, sim - admitiu Tyrion. - Espero que o rapaz acorde. E vou ficar

muito interessado em ouvir o que ele pode ter a dizer.

O sorriso do irmão coagulou como leite azedo.

- Tyrion, meu querido irmão - disse ele em tom sombrio -, há

momentos em que você me dá motivo para duvidar de que lado

esteja.

A boca de Tyrion estava cheia de pão e de peixe. Bebeu um trago da

forte cerveja preta para empurrar tudo para baixo e dirigiu a Jaime

um sorriso de lobo.

- Ora, Jaime, meu querido irmão - disse -, assim você me magoa. Bem

sabe como amo minha família.


Jon


Jon subiu os degraus devagar, tentando não pensar que aquela podia

ser a última vez. Fantasma caminhava em silêncio ao seu lado. Lá

fora, a neve rodopiava através dos portões do rasteio, e o pátio era

um lugar de barulho e caos, mas dentro das espessas paredes de

pedra ainda havia calor e silêncio. Muito silêncio para o gosto de Jon.

Chegou ao patamar e ficou ali por um longo momento, com medo.

Fantasma encostou o focinho em sua mão e Jon conseguiu coragem

por causa do contato. Endireitou-se e entrou no quarto.

A Senhora Stark estava lá, junto à cama. Estivera ali, noite e dia, ao

longo de quase quinze dias. Nem por um momento abandonara a

cabeceira de Bran. Ordenara que as refeições lhe fossem trazidas, e

também os banhos e uma pequena cama dura para dormir, embora

se dissesse que quase não tinha dormido. Ela própria o alimentava

com a mistura de mel, água e ervas que lhe sustentava a vida. Nem

uma vez deixara o quarto. Por isso Jon mantivera-se afastado.

Mas agora não havia mais tempo.

Parou à porta por um momento, com medo de falar, de se

aproximar. A janela estava aberta, lá embaixo um lobo uivava.

Fantasma o ouviu e ergueu a cabeça.

A Senhora Stark olhou para ele. Por um momento não pareceu

reconhecê-lo. Por fim, pestanejou.

- O que você está fazendo aqui? - perguntou numa voz

estranhamente monótona e despida de emoção.

- Vim ver Bran - Jon respondeu. - Dizer-lhe adeus,

O rosto dela não se alterou. Seus longos cabelos ruivos estavam

opacos e emaranhados. Parera ter envelhecido vinte anos.

- Acabou de dizer. Agora, vá embora.

Parte dele só desejava fugir, mas sabia que se o fizesse podia nunca

mais ver Bran. Deu um nervoso passo para dentro do quarto.

- Por favor - ele pediu.

Algo frio se moveu nos olhos dela.

- Eu disse para sair. Não o queremos aqui.

Tempos atrás, aquilo o teria posto a correr, até talvez o tivesse feito

chorar. Mas agora só o neixou zangado. Seria em breve um Irmão

Juramentado da Patrulha da Noite, e enfrentaria peri-ps maiores que

Catelyn Tully Stark.

- Ele é meu irmão - disse.

- Terei de chamar os guardas?

- Chame-os - disse Jon, em desafio. - Não pode me impedir de vê-lo -

atravessou o quarto, mantendo a cama entre ele e a Senhora Stark, e

olhou para Bran.

Ela segurava uma das mãos do filho. Parecia uma garra. Este não era

o Bran de que Jon se lembrava. A carne tinha desaparecido toda. A

pele esticava-se, apertada, sobre ossos espetados. Por baixo do

cobertor, as pernas dobravam-se de uma maneira que o enchia de

náusea. Os olhos estavam profundamente afundados em poços

negros; abertos, mas nada viam. A queda de algum modo o

encolhera. Quase parecia uma folha, como se o primeiro vento forte

o fosse levar para a tumba.

E, no entanto, sob a frágil gaiola daquelas costelas estilhaçadas, o

peito subia e descia a cada respiração pouco profunda.

- Bran - disse Jon -, lamento não ter vindo antes. Tive medo -

conseguia sentir as lágrimas rolarem pelo rosto. Já não se importava.

- Não morra, Bran, Por favor. Estamos todos à espera que você

acorde. Robb e eu, e as meninas, todos...

A Senhora Stark observava. Não tinha gritado pelos guardas, e Jon

tomou o fato por aceitação. Fora da janela, o lobo gigante voltou a

uivar. O lobo a que Bran não tivera tempo de pôr um nome.

- Tenho agora de ir embora - disse Jon. - Tio Benjen está à espera.

Vou para o Norte, para a Muralha. Temos de partir hoje, antes da

chegada das neves - lembrou-se de como Bran estivera excitado com

a perspectiva da viagem. O pensamento de deixá-lo para trás assim

era mais do que conseguia suportar. Jon limpou as lágrimas,

inclinou-se e deu um beijo ligeiro nos lábios do irmão.

- Eu quis que ele ficasse aqui comigo - disse a Senhora Stark em voz

baixa.

Jon a observou, desconfiado. Ela nem sequer o olhava. Não estava

falando para ele, mas para uma parte de si, era como se ele nem

estivesse no quarto.

- Rezei para que isso acontecesse - disse ela em voz baça. - Ele era o

meu rapazinho especial. Fui até o septo e rezei sete vezes aos sete

rostos de deus para que Ned mudasse de idéia e o deixasse aqui

comigo. Por vezes as preces são respondidas.

Jon não sabia o que dizer.

- A culpa não foi da senhora - conseguiu falar, depois de um silêncio

incômodo. Os olhos dela o encontraram. Estavam cheios de veneno.

- Não me faz falta a sua absolvição, bastardo.

Jon baixou os olhos. Ela embalava uma das mãos de Bran. Ele pegou

na outra e a apertou. Dedos como ossos de pássaro.

- Adeus - ele se despediu.

Já tinha chegado à porta quando ela o chamou.

- Jon - ele devia ter continuado a andar, mas ela nunca antes o

chamara pelo nome. Virou-se e a viu olhando-o no rosto, como se o

visse pela primeira vez.

- Sim? - ele respondeu,

- Deveria ter sido você - ela disse, e então voltou a virar-se para Bran

e começou a chorar, todo o corpo a estremecer com os soluços, Jon

nunca antes a vira chorar.

Foi uma longa descida até o pátio.

Lá fora, tudo era barulho e confusão. Carregavam-se carroças,

homens gritavam, eram postas armaduras e selas em cavalos que

eram tirados da cavalariça. Começara a cair uma neve ligeira, e toda

a gente estava mergulhada no tumulto da partida.

Robb encontrava-se no meio da confusão, gritando ordens com os

melhores desses homens. Parecia ter crescido ultimamente, como se

a queda de Bran e o colapso da mãe o tivessem de algum modo

tornado mais forte. Vento Cinzento estava a seu lado.

- Tio Benjen anda à sua procura - ele disse a Jon. - Queria ter partido

há uma hora.

- Eu sei - Jon respondeu. - Em breve - olhou em volta, para todo o

ruído e confusão. - Partir é mais difícil do que eu pensava.

- Para mim também - disse Robb. Tinha neve nos cabelos, que

derretia com o calor do corpo. - Você o viu?

Jon fez um aceno, por não confiar na voz.

- Ele não vai morrer - disse Robb. - Eu sei.

- Vocês, os Stark, são difíceis de matar - concordou Jon. A voz saiu

sem entoação e cansada. A visita tinha levado toda sua força.

Robb percebeu que havia algo de errado.

- A minha mãe,.

- Ela foi... muito amável - disse-lhe Jon. Robb pareceu aliviado.

- Ótimo - sorriu. - Da próxima vez que o vir, estará todo de negro.

Jon forçou-se a devolver o sorriso.

- Sempre foi a minha cor. Daqui a quanto tempo pensa que isso

acontecerá?

- Não muito - prometeu Robb. Puxou Jon para si e lhe deu um forte

abraço. - Até a vista, Snow.

Jon devolveu o abraço.

- Até a vista, Stark. Cuide de Bran.

- Cuidarei - afastaram-se e olharam um para o outro, embaraçados. -

Tio Benjen disse para mandá-lo para os estábulos se o visse - disse

Robb por fim.

- Tenho mais uma despedida a fazer - informou Jon.

- Então não o vi - respondeu Robb. Jon o deixou ali, na neve, rodeado

de carroças, lobos e cavalos. Era uma curta caminhada até o armeiro.

Recolheu seu embrulho e dirigiu-se pela ponte coberta até a Torre.

Arya estava no seu quarto, enchendo uma arca de pau-ferro polido

que era maior que ela. Nymeria a ajudava. Arya só tinha de apontar,

e a loba atravessava o quarto de um salto, abocanhava algum bocado

de seda e o trazia de volta. Mas quando farejou Fantasma, sentou-se

e soltou um ganido.

Arya olhou para trás, viu Jon e pôs-se em pé de um salto. Atirou-lhe

os braços magros com torça ao pescoço.

- Temia que já tivesse partido - ela disse, com um nó na garganta. -

Não me deixaram sair para dizer adeus.

- O que foi que você fez agora? - a voz de Jon soava divertida. Arya o

largou e fez uma careta.

- Nada. Estava de malas feitas e tudo - indicou com um gesto a

enorme arca, que não estava mais que um terço cheia, e as roupas

espalhadas por todo o quarto. - Septã Mordane diz que tenho de

fazer tudo outra vez. Não tinha as coisas dobradas como deve ser,

uma senhora respeitável do Sul não se limita a atirar a roupa para

dentro da arca como trapos velhos, ela me disse.

- E foi isso o que você fez, irmãzinha?

- Bem, a roupa vai ficar toda bagunçada de qualquer modo - disse

Arya. - Quem se importa como está dobrada?

- Septã Mordane - Jon respondeu. - E também não me parece que ela

goste de ver Nymeria ajudando - a loba olhou-o em silêncio com seus

escuros olhos dourados. - Mas ainda bem. Tenho uma coisa que

quero que leve contigo, e tem de ser muito bem embalada.

O rosto dela iluminou-se.

- Um presente?

- Pode dar-lhe esse nome. Feche a porta. Desconfiada, mas excitada,

Arya verificou o átrio.

- Nymeria, aqui. Guarda - deixou a loba do lado de fora a fim de

avisá-los se intrusos se aproximassem e fechou a porta. Nessa altura,

Jon tinha já removido os panos em que embrulhara a coisa.

Apresentou-a à irmã.

Os olhos de Arya abriram-se muito. Olhos negros, como os dele.

- Uma espada - disse ela numa voz baixa e segredada.

A bainha era de suave couro cinzento, tão maleável como o pecado.

Jon desembainhou a lâmina devagar, para que ela visse o profundo

brilho azul do aço.

- Isto não é um brinquedo - disse-lhe. - Tenha cuidado para não se

cortar. O gume é suficientemente afiado para fazer a barba.

- Moças não fazem a barba - disse Arya.

- Mas talvez devessem. Já viu as pernas da septã?

Ela riu.

- É tão fininha.

- Tal como você - disse-lhe Jon. - Mandei Mikken fazer isto

especialmente para você. Os espadachins usam espadas destas em

Pentos, Myr e nas outras Cidades Livres. Não arrancará a cabeça de

um homem, mas pode enchê-lo de buracos se for suficientemente

rápida.

- Eu posso ser rápida - disse Arya.

- Terá de treinar todos os dias - colocou a espada em suas mãos,

mostrou-lhe como pegar e deu um passo para trás. - Como você a

sente? Gosta do equilíbrio?

- Acho que sim - disse Arya.

- Primeira lição - disse Jon. - Espete neles a ponta aguçada.

Arya deu-lhe uma pancada no braço com a parte plana da lâmina. O

golpe doeu, mas Jon começou a sorrir como um idiota.

- Eu sei qual é a ponta que se usa - disse Arya. Um olhar de dúvida

atravessou-lhe o rosto. - Septã Mordane vai tirá-la de mim.

- Não, se não souber que a tem - disse Jon.

- Com quem hei de treinar?

- Há de encontrar alguém - prometeu-lhe Jon. - Porto Real é uma

verdadeira cidade, mil vezes maior que Winterfell. Até encontrar um

parceiro, observe como lutam no pátio. Corra, ande a cavalo,

fortaleça-se. E, faça o que fizer...

Arya sabia o que vinha a seguir. Os dois disseram ao mesmo tempo:

- ... não... conte... a... Sansa!

Jon afagou-lhe os cabelos.

- Vou sentir sua falta, irmãzinha. De súbito, ela pareceu quase

chorar.

- Queria que viesse conosco.

- Por vezes, estradas diferentes vão dar no mesmo castelo. Quem

sabe? - estava se sentindo melhor agora. Não ia permitir a si próprio

ficar triste. - Tenho de ir. Acabarei passando o primeiro ano na

Muralha a despejar penicos se deixar Tio Benjen à espera mais

tempo.

Arya correu para ele para um último abraço,

- Largue a espada primeiro - Jon a preveniu, rindo. Ela pôs a arma de

lado quase timidamente e o encheu de beijos.

Quando ele se virou, já na porta, ela estava de novo com a espada na

mão, testando seu equilíbrio.

- Ia me esquecendo - disse. - Todas as melhores espadas têm nomes.

- Como a Gelo - disse ela. Olhou a espada que tinha na mão. - E

esta, tem nome? Ah, diga-me.

- Não adivinha? - brincou Jon. - A sua coisa favorita.

Arya a princípio pareceu desorientada. Mas depois compreendeu. Era

assim: rápida. Os dois disseram juntos:

- Agulha!

A memória da gargalhada dela o aqueceu ao longo da demorada

viagem para o Norte.


Daenerys


Targaryen desposou Khal Drogo com medo, e um esplendor bárbaro,

num descampado para lá das muralhas de Pentos, pois os dothrakis

acreditavam que todas as coisas importantes na vida de um homem

deviam ser feitas a céu aberto.

Drogo chamou seu khalasar para servi-lo e eles vieram, quarenta mil

guerreiros dothrakis e um número incontável de mulheres, crianças e

escravos. Acamparam fora das muralhas da cidade com suas vastas

manadas de gado, erguendo palácios de erva trançada, comendo tudo

o que encontravam e tornando o bom povo de Pentos mais ansioso a

cada dia que passava,

- Meus colegas magísteres duplicaram o tamanho da guarda da

cidade - informou Illyrio certa noite na mansão que pertencera a

Drogo, entre bandejas de pato com mel e laranjas-pimenta. O khal

juntara-se a seu khalasar, e sua propriedade fora oferecida a

Daenerys e ao irmão até o casamento.

- É melhor que casemos depressa a Princesa Daenerys, antes que

entreguem metade da riqueza de Pentos a mercenários e sicários -

brincou Sor Jorah Mormont. O exilado pusera a espada a serviço do

irmão de Dany na noite em que fora vendida a Khal Drogo; Viserys

aceitara-a com avidez. Mormont tornara-se desde então uma

companhia constante.

Magíster Illyrio soltou uma ligeira gargalhada através da barba

bifurcada, mas Viserys nem sequer sorriu.

- Pode tê-la amanhã, se assim desejar - disse o príncipe. Olhou de

relance para Dany e ela abaixou os olhos. - Desde que pague o preço.

Illyrio ergueu uma mão lânguida, fazendo cintilar anéis nos seus

gordos dedos,

- Já lhe disse, tudo está acertado. Confie em mim. O khal lhe

prometeu uma coroa, e a terá.

- Sim, mas quando?

- No momento que o khal escolher - Illyrio respondeu. - Ele terá

primeiro a donzela, e depois do casamento terá de fazer sua

procissão pela planície para apresentá-la a dosh khaleen em Vaes

Dothrak. Talvez depois disso. Se os presságios favorecerem a guerra.

Viserys fervilhou de impaciência.

- Eu cago nos presságios dothrakis. O Usurpador está sentado no

trono de meu pai. Quanto tempo terei de esperar?

Illyrio encolheu os enormes ombros.

- Já esperou a maior parte da vida, grande rei. Que são mais alguns

meses, mais alguns anos? Sor Jorah, que viajara para o leste até Vaes

Dothrak, concordou com um aceno.

- Aconselho-o a ser paciente, Vossa Graça. Os dothrakis cumprem

com a palavra dada, mas fazem as coisas ao seu próprio ritmo. Um

homem inferior pode suplicar um favor ao khal, mas nunca deve ter

a presunção de censurá-lo.

Viserys eriçou-se.

- Cuidado com a língua, Mormont, ou ainda acabará por ficar sem

ela. Não sou nenhum homem inferior, sou o Senhor de direito dos

Sete Reinos. O dragão não suplica.

Sor Jorah baixou respeitosamente os olhos. Illyrio deu um sorriso

enigmático e arrancou uma asa do pato. Mel e gordura escorreram-

lhe pelos dedos e pingaram-lhe na barba quando mordiscou a carne

tenra. Já não há dragões, pensou Dany, de olhos fixos no irmão,

embora não se atrevesse a dizê-lo em voz alta.

Apesar disso, naquela noite sonhara com um. Viserys batia nela, a

machucava. Ela estava nua, atrapalhada de medo. Fugiu dele, mas o

corpo parecia pesado e desajeitado. Ele bateu nela de novo. Ela

tropeçou e caiu. "Você acordou o dragão", gritava ele enquanto lhe

dava pontapés. Acordou o dragão, acordou o dragão." Tinha as coxas

escorregadias de sangue. Fechou os olhos e choramingou. Como que

em resposta, ouviu-se um hediondo som de rasgar e o estalar de um

grande fogo. Quando voltou a olhar, Viserys tinha desaparecido,

grandes colunas de chamas trguiam-se por toda a parte e, no meio

delas, estava o dragão. Virou lentamente a grande cabeça, guando os

olhos fundidos do animal encontraram os dela, acordou, tremendo e

coberta por uma fina película de suor. Nunca tivera tanto medo..

... Até o dia em que seu casamento por fim chegou.

A cerimônia iniciou-se de madrugada e prosseguiu até o crepúsculo,

um dia que parecia não ter fim de bebida, comida e luta. Um

monumental talude de terra fora erguido entre os palácios de erva e

Dany foi colocada ali sentada, ao lado de Khal Drogo, sobre o

fervente mar de dothrakis. Nunca vira tantas pessoas no mesmo

lugar, nem pessoas tão estranhas e assustadoras. Os senhores dos

cavalos podiam vestir tecidos ricos e usar doces perfumes quando

visitavam as Cidades Livres, mas a céu aberto mantinham os velhos

costumes. Tanto os homens quanto as mulheres trajavam

vestimentas de couro pintado sobre os peitos nus e polainas de pelo

de cavalo cilhadas por cintos com medalhões de bronze, e os

guerreiros untavam suas longas tranças com gordura que tiravam de

fossas abertas. Empanturravam-se de carne de cavalo assada com mel

e pimentões, bebiam leite fermentado de égua e os vinhos delicados

de Illyrio até cair e cuspiam ditos de espírito uns aos outros, por

cima das fogueiras, com vozes ásperas e estranhas aos ouvidos de

Dany.

Viserys estava sentado logo abaixo dela, magnífico numa túnica nova

de lã negra com um oragão escarlate no peito. Illyrio e Sor Jorah

sentavam-se ao seu lado. Era deles o lugar de maior honra, logo

abaixo dos companheiros de sangue do khal, mas Dany percebia a ira

nos olhos lilás do irmão. Não gostava de estar sentado abaixo dela, e

exasperava-se sempre que os escravos ofereciam os pratos primeiro

ao khal e à noiva, e lhe davam para escolher entre as porções que

eles recusavam. Nada podia fazer além de embalar o ressentimento, e

foi isso que fez, com o humor a tornar-se mais negro com o passar

das horas e dos insultos à sua pessoa.

Dany nunca se sentira tão só como enquanto esteve sentada no meio

daquela vasta horda. Seu irmão lhe dissera para sorrir, e portanto

sorriu até lhe doer o rosto e as lágrimas lhe subirem ros olhos sem

serem convidadas. Fez o melhor que pôde para escondê-las, sabendo

como Viserys ficaria zangado se a visse a chorar, aterrorizado com a

possível reação de Khal Drogo. Era-lhe trazida comida, peças

fumegantes de carne, grossas salsichas negras, tortas dothraki de

sangue, e mais tarde frutos, guisados de erva-doce e delicadas tortas

doces vindas das cozinhas de Pentos, mas afastou tudo com gestos.

Seu estômago dava voltas e sabia que não conseguiria manter nele

qualquer alimento.

Não havia ninguém com quem falar. Khal Drogo gritava ordens e

brincadeiras aos companheiros de sangue, e ria de suas respostas,

mas quase não olhava para o seu lado. Não tinham nenhuma língua

em comum. O dothraki era incompreensível para ela, e o khal sabia

apenas algumas palavras do valiriano adulterado das Cidades Livres,

e nem uma única do Idioma Comum dos Sete Reinos. Ela até teria

acolhido bem a conversa de Illyrio e do irmão, mas estavam dema-

siado afastados para ouvi-la.

E assim ali ficou, sentada em suas sedas nupciais, embalando uma

taça de vinho com mel, com medo de comer, falando em silêncio

consigo mesma. Sou do sangue do dragão, disse a si própria. Sou

Daenerys, Filha da Tormenta, Princesa da Pedra do Dragão, do

sangue e semente de Aegon, o Conquistador.

O sol estava apenas no primeiro quarto do céu quando viu o

primeiro homem morrer. Soavam tambores acompanhando algumas

das mulheres que dançavam para o khal. Drogo assistia sem

expressão, mas seus olhos seguiam-lhes os movimentos e, de vez em

quando, atirava-lhes um medalhão de bronze para que elas o

disputassem.

Os guerreiros também assistiam. Por fim, um deles entrou no

círculo, agarrou uma dançarina pelo braço, atirou-a no chão e

montou-a ali mesmo, como um garanhão monta uma égua. Illyrio

dissera-lhe que aquilo poderia acontecer. "Os dothrakis acasalam

como os animais de suas manadas. Não há privacidade num khalasar,

e eles não compreendem o pecado ou a vergonha como nós."

Dany afastou o olhar da união, assustada ao compreender o que

estava acontecendo, mas um segundo guerreiro avançou, e um

terceiro, e em breve não havia maneira de desviar os olhos. Então

dois homens agarraram a mesma mulher. Ouviu um grito, viu um

empurrão, e num piscar de olhos tinham sido empunhados os

arakhs, longas lâminas afiadas como navalhas, meio espadas, meio

foices. Começou uma dança de morte, e os guerreiros andaram em

círculos, dando golpes, saltando um sobre o outro, fazendo rodopiar

as lâminas sobre as cabeças, guinchando insultos a cada entrechocar

de metal. Ninguém fez um gesto para interferir.

Acabou tão depressa como começou. Os arakhs estremeceram um

contra o outro mais depressa do que Dany conseguia acompanhar,

um dos homens falhou um passo, o outro brandiu a lâmina num

arco horizontal. O aço mordeu a pele acima da cintura do dothraki e

o abriu da espinha ao umbigo, derramando-lhe as entranhas na

poeira. Enquanto o perdedor morria, o vencedor agarrou-se à mulher

mais próxima - nem sequer aquela por quem tinha lutado - e a

possuiu ali mesmo. Escravos levaram o corpo para longe e a dança

recomeçou.

Magíster Illyrio também prevenira Dany sobre aquilo. "Uma boda

dothraki sem pelo menos três mortes é considerada aborrecida"

dissera. O casamento dela devia ter sido especialmente abençoado;

antes de o dia terminar, tinha morrido uma dúzia de homens.

A medida que as horas foram passando, o terror cresceu em Dany,

até que se transformou em tudo o que a impedia de gritar. Tinha

medo dos dothrakis, cujos modos pareciam estranhos e monstruosos,

como se fossem animais em pele humana, e não verdadeiros homens.

Tinha medo do irmão, do que ele poderia fazer se ela lhe falhasse.

Acima de tudo, tinha medo do que poderia acontecer naquela noite,

sob as estrelas, quando o irmão a desse ao pesado gigante que bebia

a seu lado, com um rosto tão imóvel e cruel como uma máscara de

bronze.

Sou do sangue do dragão, disse de novo a si mesma.

Quando o sol por fim baixou no céu, Khal Drogo bateu palmas, e os

tambores, os gritos e o festim chegaram a um súbito fim. Drogo

ergueu-se e pôs Dany de pé a seu lado. Tinha chegado o tempo dos

seus presentes de noiva.

E ela sabia que depois dos presentes, depois do sol desaparecido no

horizonte, chegaria o momento da primeira cavalgada e da

consumação do casamento. Dany tentou afastar esse pensamento,

mas ele não a abandonava. Apertou os braços contra o corpo,

tentando evitar tremer.

O irmão Viserys ofereceu-lhe três aias. Dany sabia que nada lhe

tinham custado, que sem dúvida fora Illyrio quem tinha oferecido as

mulheres. Irri e Jhiqui eram dothrakis de pele acobreada, cabelos

negros e olhos amendoados, Doreah era uma jovem lysena de cabelos

claros e olhos azuis.

- Estas não são criadas comuns, minha doce irmã - disse-lhe o irmão

enquanto as traziam uma por uma. - Illyrio e eu as selecionamos

pessoalmente para você. Irri a ensinará a montar, Jhiqui a treinará na

língua dothraki e Doreah a instruirá nas artes femininas do amor -

ele deu um tênue sorriso. - É muito boa. Tanto Illyrio como eu

podemos jurar.

Sor Jorah Mormont desculpou-se pelo presente.

- É coisa pouca, minha princesa, mas é tudo aquilo de que um pobre

exilado pode dispor

- disse, ao pôr-lhe à frente uma pequena pilha de velhos livros. Viu

que eram canções e histórias dos Sete Reinos, escritas no Idioma

Comum. Agradeceu-lhe de todo o coração.

Magíster Illyrio murmurou uma ordem e quatro corpulentos escravos

apressaram-se a avançar, trazendo entre eles uma grande arca de

cedro com aplicações em bronze. Quando a abriu, encontrou pilhas

dos mais finos veludos e damascos que as Cidades Livres podiam

produzir.. e, em cima de tudo, aninhados nos suaves panos, três

enormes ovos. Dany ofegou. Eram as coisas mais belas que já vira,

diferentes uns dos outros, com padrões de cores tão ricas que ela a

princípio pensou que estivessem incrustados de jóias, e tão grandes

que precisava de ambas as mãos para pegar num. Ergueu um

delicadamente, à espera de encontrá-lo feito de algum tipo de fina

porcelana ou delicado esmalte, ou até de vidro soprado, mas era

muito mais pesado do que julgara, como se todo ele fosse rocha

sólida. A superfície da casca estava coberta de minúsculas escamas, e

quando rodou o ovo entre os dedos elas cintilaram como metal

polido à luz do sol poente. Um ovo era de um verde profundo, com

manchas de lustroso bronze que iam e vinham, dependendo do modo

como Dany o virava. Outro era creme-claro listrado de dourado. O

último era negro, tão negro como o mar da meia-noite, mas vivo,

com ondulações e remoinhos escarlates.

- O que são? - perguntou, com a voz baixa e maravilhada.

- Ovos de dragão, vindos das Terras das Sombras para lá de Asshai -

disse Magíster Illyrio.

— As eras os transformaram em pedra, mas ainda possuem uma

beleza ardente e brilhante.

- Serão preciosos a mim para sempre - Dany ouvira histórias sobre

aqueles ovos, mas nunca vira nenhum, nem pensara chegar a vê-los.

Era um presente realmente magnífico, se bem que ela soubesse que

Illyrio tinha possibilidade de ser generoso. Ganhara uma fortuna em

cavalos e escravos pelo papel que desempenhara na sua venda a Khal

Drogo.

Os companheiros de sangue do khal ofereceram-lhe as três armas

tradicionais, e que estupendas armas eram. Haggo deu-lhe um

grande chicote de couro com cabo de prata; Cohollo, um magnífico

arakh com relevos em ouro; e Qotho, um arco de dupla curvatura,

feito de osso de uragão, mais alto que ela. Magíster Illyrio e Sor Jorah

tinham-lhe ensinado a recusa tradicional daquelas oferendas.

- Este é um presente digno de um grande guerreiro, ah, sangue do

meu sangue, e eu não passo de uma mulher. Que o senhor meu

marido o use em meu nome - e assim Khal Drogo também recebeu

os seus "presentes de noiva".

Dany ainda ganhou uma profusão de outros presentes, oferecidos

por outros dothrakis: chinelos, jóias e anéis de prata para o cabelo,

cintos de medalhão, vestes pintadas e peles suaves, tecidos de

sedareia e potes de perfume, agulhas, penas e minúsculas garrafas de

vidro púrpuro, e um vestido feito da pele de mil ratos.

- Um belo presente, khaleesi - disse Magíster Illyrio deste último,

depois de lhe dizer o que era. - Muito afortunado.

Os presentes amontoavam-se em seu redor em grandes pilhas, mais

presentes do que poderia imaginar, desejar ou usar.

E, no fim de tudo, Khal Drogo trouxe-lhe o seu próprio presente de

noiva. Um silêncio de expectativa se alastrou a partir do centro do

acampamento quando ele saiu do lado dela, crescendo até engolir

todo o kbalasar, Quando regressou, a densa multidão de ofertantes

abriu-se à sua frente, e ele levou o cavalo até ela.

Era uma potranca jovem, espirituosa e magnífica. Dany sabia apenas

o suficiente sobre cavalos para reconhecer que aquele não era um

animal vulgar. Havia algo nela que cortava a respiração. Era cinzenta

como o mar de inverno, com uma crina que parecia fumo prateado.

Hesitante, estendeu a mão e afagou o pescoço do cavalo, fazendo

correr os dedos pelo prateado da crina. Khal Drogo disse qualquer

coisa em dothraki e Magíster Illyrio traduziu.

- Prata para o prateado de vossos cabelos, disse o khal.

- É belíssima - murmurou Dany.

- É o orgulho do khalasar - disse Illyrio. - O costume decreta que a

khaleesi deve conduzir uma montaria digna de seu lugar ao lado do

khal.

Drogo avançou e pôs-lhe as mãos na cintura. Levantou-a com tanta

facilidade como se fosse uma criança e a pousou sobre a fina sela

dothraki, muito menor do que aquelas a que estava acostumada.

Dany ficou ali sentada, por um momento, incerta. Ninguém lhe falara

daquela parte.

- O que devo fazer? - perguntou a Illyrio.

Foi Sor Jorah Mormont quem respondeu.

- Pegue nas rédeas e cavalgue. Não precisa ir longe.

Nervosa, juntou as rédeas nas mãos e fez deslizar os pés para os

pequenos estribos. Não passava de uma cavaleira razoável; passara

muito mais tempo viajando em navios, carroças e liteiras do que

sobre o dorso de cavalos. Rezando para não cair e envergonhar-se,

deu à potranca o mais tímido dos toques com os joelhos.

E pela primeira vez nas últimas horas esqueceu-se de ter medo. Ou

talvez pela primeira vez desde sempre.

A potranca cinzenta prateada avançou com um porte suave e sedoso,

enquanto a multidão abria alas para deixá-la passar, com todos os

olhos postos nelas. Dany deu por si avançando mais depressa do que

tencionara, mas isso, de algum modo, era excitante, em vez de

aterrador. O cavalo pôs-se a trote e ela sorriu. Os dothrakis

precipitavam-se para abrir caminho. A mais ligeira pressão com as

pernas, ao menor toque de rédeas, a égua respondia. Dany a colocara

a galope, e agora os dothrakis assobiavam, gargalhavam e gritavam-

lhe enquanto saltavam para longe do seu caminho. Quando virou

para regressar, uma cova de fogueira surgiu-lhe à frente, diretamente

em seu caminho. Estavam cercadas de ambos os lados, sem espaço

para parar. Uma coragem que nunca conhecera encheu então

Daenerys e ela deu liberdade à potranca.

O cavalo prateado saltou sobre as chamas como se tivesse asas.

Quando refreou o animal junto a Magíster Illyrio, disse:

- Diga a Khal Drogo que me ofereceu o vento - o gordo pentoshi

repetiu as palavras em dothraki enquanto afagava a barba amarela, e

Dany viu o novo marido sorrir pela primeira vez.

A última fatia de sol desapareceu por trás das grandes muralhas de

Pentos, para oeste. Dany perdera por completo a noção das horas.

Khal Drogo ordenou aos companheiros de sangue para lhe trazerem

o cavalo, um esguio garanhão vermelho. Enquanto o khal selava o

cavalo, Viserys esgueirou-se até junto de Dany, enterrou os dedos em

sua perna e disse:

- Dê-lhe prazer, minha doce irmã, senão juro que verá o dragão

acordar como nunca acordou antes.

O medo regressou com as palavras do irmão. Sentiu-se de novo uma

criança, apenas com reze anos e completamente só, mal preparada

para o que estava prestes a lhe acontecer.

Cavalgaram juntos sob as estrelas que surgiam, deixando para trás o

khalasar e os palácios de erva. Khal Drogo não lhe dirigiu uma

palavra, mas fez o garanhão atravessar a penumbra que se

aprofundava num trote duro. As minúsculas campainhas de prata na

longa trança ressoavam baixinho enquanto cavalgava.

- Sou do sangue do dragão - murmurou ela enquanto o seguia,

tentando manter a coragem. Sou do sangue do dragão. Sou do

sangue do dragão - o dragão nunca tinha medo.

Mais tarde não soube dizer até que distância ou durante quanto

tempo cavalgaram, mas a noite tinha já caído por completo quando

pararam num gramado junto a um pequeno riacho. Drogo saltou do

cavalo e a tirou do dela. Sentiu-se frágil como vidro nas mãos dele,

com membros tão fracos como a água. Ficou ali, desamparada e

tremendo sob as sedas nupciais enquanto ele prendia os cavalos.

Quando Drogo se virou para olhá-la, ela começou a chorar. Khal

Drogo ficou olhando as lágrimas, com o rosto estranhamente vazio

de emoção.

- Não - disse. Ergueu uma mão e limpou rudemente as lágrimas com

um polegar calejado.

- Fala o Idioma Comum - disse Dany, espantada.

- Não - disse ele de novo.

Talvez soubesse apenas aquela palavra, pensou ela, mas era uma

palavra, mais do que podia Kipor, e de algum modo a fez sentir-se

um pouco melhor. Drogo tocou-lhe levemente os cabelos, fazendo

deslizar as madeixas louras prateadas entre os dedos e murmurando

suavemente em dothraki. Dany não compreendeu as palavras, mas

havia calor na entoação, uma ternura que nunca esperara daquele

homem.

Pôs um dedo sob seu queixo e ergueu-lhe a cabeça, para que ela o

olhasse nos olhos. Drogo erguia-se acima dela como se erguia acima

de toda a gente. Pegando-a agilmente por baixo dos braços, ergueu-a

e sentou-a numa rocha arredondada ao lado do riacho. Depois,

sentou-se no chão na frente dela, de pernas cruzadas sob o corpo,

com os rostos por fim ao mesmo nível.

- Não - disse ele.

- Esta é a única palavra que conhece? - ela perguntou.

Drogo não respondeu. Sua longa e pesada trança estava enrolada na

terra ao seu lado. Puxou-a por sobre o ombro direito e começou a

remover as campainhas do cabelo, uma a uma. Depois de um

momento, Dany inclinou-se para a frente para ajudar. Quando

terminaram, Drogo fez um gesto. Ela compreendeu. Devagar, com

cuidado, começou a desfazer-lhe a trança.

Levou muito tempo. E durante todo o tempo, ele ficou ali sentado

em silêncio, observando-a. Quando acabou, ele abanou a cabeça e o

cabelo espalhou-se pelas costas como um rio de escuridão, oleoso e

cintilante. Nunca vira cabelos tão longos, tão negros, tão espessos.

Depois foi a vez dele. Começou a despi-la.

Seus dedos eram hábeis e estranhamente ternos. Removeu-lhe as

sedas, uma por uma, com cuidado, enquanto Dany permanecia

sentada, imóvel, silenciosa, a olhá-lo nos olhos. Quando desnudou

seus pequenos seios, não conseguiu evitá-lo. Desviou o olhar e

cobriu-se com as mãos.

- Não - disse Drogo. Puxou-lhe as mãos para longe dos seios, com

gentileza, mas firmemente, e depois ergueu-lhe de novo o rosto para

fazer com que o olhasse. - Não - ele repetiu.

- Não - ela ecoou.

Então, ele a pôs de pé e a puxou, a fim de remover a última de suas

sedas. Sentia o ar noturno frio na pele nua. Estremeceu, e um

arrepio cobriu-lhe os braços e as pernas. Temia o que viria a seguir,

mas durante algum tempo nada aconteceu. Drogo ficou sentado de

pernas cruzadas, olhando-a, bebendo-lhe o corpo com os olhos.

Um pouco mais tarde, começou a tocá-la. A princípio ligeiramente,

depois com mais força. Ela sentia o feroz poder de suas mãos, mas

ele nunca chegou a machucá-la. Segurou uma mão na dele e afagou-

lhe os dedos um a um. Correu-lhe a mão suavemente pela perna.

Afagou-lhe o rosto, delineando a curva de suas orelhas, percorrendo-

lhe a boca gentilmente com o dedo. Tomou--lhe os cabelos com

ambas as mãos e os penteou com os dedos. Virou-a de costas,

massageou-lhe os ombros, deslizou o nó do dedo ao longo da coluna.

Pareceu que se passaram horas antes que as mãos dele se dirigissem

por fim aos seus seios. Afagou a suave pele da base até deixá-la num

torpor. Rodeou os mamilos com os polegares, beliscou-os entre o

polegar e o indicador, depois começou a puxá-los, muito levemente a

princípio, depois com maior insistência, até que enrijeceram e

começaram a doer.

Então parou, e puxou-a para o seu colo. Dany estava corada e sem

fôlego, com o coração a palpitar no peito. Ele envolveu seu rosto nas

mãos enormes e ela o olhou nos olhos.

- Não? - disse ele, e ela soube que era uma pergunta. Tomou-lhe a

mão e a dirigiu para a umidade entre as coxas.

- Sim - sussurrou ao introduzir o dedo dele dentro de si.


Eddard


A convocatória chegou na hora que precede a alvorada, quando o

mundo estava quieto e cinzento. Alyn arrancou-o rudemente dos

sonhos com um abanão, e Ned cambaleou para o frio da madrugada,

tonto de sono, indo encontrar seu cavalo selado e o rei já montado.

Robert vestia grossas luvas castanhas e um pesado manto de peles

com um capuz que lhe cobria as orelhas, e estava igualzinho a um

urso sentado em cima de um cavalo.

- De pé, Stark! - rugiu. - De pé, de pé! Temos assuntos de Estado a

tratar.

- Com certeza - disse Ned. - Entre, Vossa Graça - Alyn ergueu a aba

da tenda.

- Não, não, não - disse Robert. Saía-lhe vapor da boca a cada palavra.

- O acampamento está cheio de ouvidos. Além disso, quero afastar-

me e saborear este seu país - Ned viu que Sor Borós e Sor Meryn

esperavam atrás dele com uma dúzia de guardas. Nada havia a fazer

a não ser esfregar o sono para longe dos olhos, vestir-se e montar.

Robert marcou o passo, puxando com seu enorme cavalo de batalha

negro, enquanto Ned galopava ao seu lado, tentando acompanhá-lo.

Gritou uma pergunta enquanto cavalgavam, mas o vento levou suas

palavras para longe e o rei não o ouviu. Depois disso, Ned seguiu em

silêncio. Em breve abandonavam a estrada do rei e avançavam por

planícies onduladas escuras de névoa. A essa altura, a guarda tinha

ficado uma pequena distância para trás, suficiente para não ouvi-los,

mas mesmo assim Robert não abrandava.

A alvorada chegou quando subiam ao cume de uma pequena

elevação, e o rei finalmente parou. Nessa altura, estavam várias

milhas ao sul do grupo principal. Robert estava corado e animado

quando Ned puxou as rédeas do cavalo a seu lado.

- Deuses - o rei praguejou, rindo -, faz bem sair e cavalgar como é

suposto que um homem raça! Juro, Ned, este rastejar por aí é o

suficiente para deixar um homem louco - Robert Barameon nunca

fora um homem paciente. - Aquela maldita casa rolante, o modo

como range e geme, subindo cada aclive na estrada como se fosse

uma montanha.. prometo-lhe que, se aquela miserável coisa partir

mais algum eixo, queimo-a, e Cersei que ande!

Ned soltou uma gargalhada.

- De bom grado acenderei a tocha por Vossa Graça.

- Bom homem! - o rei deu-lhe uma palmada no ombro. - Parte de

mim quer deixá-los todos para trás e simplesmente continuar a

andar.

Um sorriso tocou os lábios de Ned.

- E acho que fala a sério.

- Falo, falo - disse o rei. - Que lhe parece, Ned? Só você e eu, dois

cavaleiros vagabundos na estrada do rei, com as espadas ao nosso

lado e só os deuses sabem o que à nossa frente, e talvez uma filha de

lavrador ou uma rapariga de taberna para nos aquecer a cama esta

noite.

- Gostaria que fosse possível - disse Ned -, mas agora temos deveres,

meu suserano.. para com o reino, para com nossos filhos, eu para

com a senhora minha esposa e vós para com a vossa rainha. Não

somos os rapazes que fomos.

- Você nunca foi um rapaz - resmungou Robert. - Maior é pena. E,

no entanto, houve aquela ocasião... Como se chamava aquela plebeia

que teve? Becca? Não, essa foi uma das minhas, que os deuses a

adorem, de cabelos negros e aqueles doces olhos grandes, podia-se

afogar neles. A sua chamava-se... Aleena? Não. Você me disse uma

vez. Seria Merryl? Sabe a quem me refiro, a mãe do seu bastardo.

- O nome era Wylla - respondeu Ned com fria cortesia -, e eu prefiro

não falar dela.

- Wylla. Sim - o rei sorriu. - Devia ser uma mulher incomum, pois foi

capaz de fazer Lorde Eddard Stark se esquecer de sua honra, ainda

que por uma hora. Nunca me falou do seu aspecto...

A boca de Ned apertou-se em ira.

- Nem o farei. Deixe este assunto, Robert, pelo amor que diz ter por

mim. Desonrei-me e desonrei Catelyn, aos olhos dos deuses e dos

homens.

- Que os deuses sejam louvados, quase nem conhecia Catelyn.

- Tinha-a tomado por esposa. Ela esperava meu filho.

- É demasiado duro consigo, Ned. Sempre foi. Que diabo, nenhuma

mulher quer ter na cama Baelor, o Bem-Aventurado - deu uma

palmada no joelho. - Bem, não falarei mais no assunto se guarda

sentimentos tão fortes a esse respeito, se bem que, juro, por vezes é

tão espinhoso que devia adotar o ouriço como selo.

O sol nascente lançava dedos de luz através das pálidas neblinas

brancas da alvorada. Uma larga planície estendia-se abaixo deles, nua

e castanha, com a planura interrompida aqui e ali por longos

outeiros baixos. Ned indicou-os ao seu rei.

- As elevações tumulares dos Primeiros Homens. Robert franziu a

sobrancelha.

- Viemos dar em um cemitério?

- No Norte há elevações tumulares por todo o lado, Vossa Graça -

Ned informou. - Esta terra é antiga,

- E fria - resmungou Robert, apertando melhor o manto em redor do

corpo. A guarda tinha parado bem atrás deles, na base da elevação. -

Bem, não o trouxe aqui para falar de sepulturas ou discutir sobre o

seu bastardo. Chegou um mensageiro durante a noite com uma

mensagem de Lorde Varys em Porto Real. Tome - o rei tirou um

papel do cinto e o entregou a Ned.

Varys, o eunuco, era o mestre dos segredos do rei. Servia agora

Robert da mesma forma que servira antes Aerys Targaryen, Ned

desenrolou o papel, agitado, pensando em Lysa e sua terrível

acusação, mas a mensagem não dizia respeito à Senhora Arryn.

- Qual é a fonte desta informação?

- Lembra-se de Sor Jorah Mormont?

- Gostaria de poder esquecê-lo - disse Ned sem cerimônia. Os

Mormont da Ilha dos Ursos eram uma Casa antiga, orgulhosa e

honrosa, mas suas terras eram frias, distantes e pobres. Sor Jorah

tentara encher os cofres da família vendendo alguns caçadores

furtivos a um negociante de escravos tyroshi. Como os Mormont

eram vassalos dos Stark, seu crime tinha desonrado o Norte. Ned

fizera a longa viagem para o oeste até a Ilha dos Ursos só para

descobrir, ao chegar, que Jorah havia zarpado, escapando do alcance

de Gelo e da justiça do rei. Desde então tinham se passado cinco

anos.

- Sor Jorah está agora em Pentos, ansioso por ganhar um perdão real

que lhe permita regressar do exílio - explicou Robert. - Lorde Varys

faz bom uso dele.

- Então o negociante de escravos transformou-se em espião - disse

Ned com antipatia. Devolveu a carta ao rei. - Preferia que tivesse se

transformado em cadáver.

- Varys me disse que os espiões são mais úteis que os cadáveres -

disse Robert. - Jorah à pane, que acha do relatório?

- A Daenerys Targaryen desposou um senhor dos cavalos dothraki

qualquer. E então? Devemos enviar-lhe um presente de casamento?

O rei franziu a sobrancelha.

- Talvez uma faca. Uma boa faca afiada e um bom homem para

manejá-la.

Ned não fingiu surpresa; o ódio de Robert pelos Targaryen era nele

uma loucura. Lembram-se das palavras iradas que tinham trocado

quando Tywin Lannister presenteara Robert com os cadáveres da

esposa e dos filhos de Rhaegar em sinal de fidelidade. Ned chamara

àquilo assassinato; Robert chamara-lhe guerra. Quando protestara

que o jovem príncipe e a jovem princesa não eram mais que bebês, o

recém-coroado rei respondera: "Não vejo bebês. Somente filhotes de

dragão". Nem mesmo Jon Arryn fora capaz de acalmar essa

tempestade. Eddard Stark cavalgara para longe nesse mesmo dia, a

fim de lutar sozinho as últimas batalhas da guerra no Sul. Fora

preciso outra morte para reconciliá-los, a de Lyanna, e a dor que

partilharam com o seu falecimento.

Desta vez, Ned resolveu dominar o gênio.

- Vossa Graça, a moça é pouco mais que uma criança. Não é Vossa

Graça um Tywin Lanniszer para chacinar inocentes - dizia-se que a

filha de Rhaegar chorava quando a arrastaram de debaixo da cama

para enfrentar as espadas. O rapaz não era mais que um bebê de

peito, mas os soldados de Lorde Tywin arrancaram-no dos braços da

mãe e esmagaram-lhe a cabeça contra uma parede.

- E quanto tempo esta jovem permanecerá inocente? - a boca de

Robert endureceu. - Esta criança irá em breve abrir as pernas e

começar a parir mais filhotes de dragão para me atormentar.

- Seja como for - disse Ned -, o assassinato de crianças.. seria vil. .

inqualificável...

- Inqualificável? - rugiu o rei. - O que Aerys fez ao seu irmão

Brandon foi inqualificável. O modo como o senhor seu pai morreu,

isso foi inqualificável. E Rhaegar.. quantas vezes acha que ele violou

sua irmã? Quantas centenas de vezes? - sua voz tornara-se tão alta

que o cavalo que montava relinchou nervosamente. O rei puxou as

rédeas com força, sossegando o animal, e apontou um dedo irado

para Ned. - Matarei cada Targaryen em que puser as mãos até

estarem tão mortos como os seus dragões, e então mijarei em suas

tumbas.

Ned sabia que não era boa idéia desafiá-lo quando estava sob o

domínio da ira. Se os anos não tinham amenizado a sede de vingança

de Robert, nenhuma palavra sua poderia ajudar.

- Mas não pode pôr as mãos nesta, está bem? - disse ele em voz

calma. A boca do rei retorceu-se num trejeito amargo.

- Não, malditos sejam os deuses. Um pustulento queijeiro pentoshi

qualquer mantém, ela e o irmão, fechados em sua propriedade com

eunucos de chapéus bicudos por todo o lado, e agora os entregou

aos dothrakis. Devia ter mandado matá-los há anos, quando era fácil

chegar até eles, mu Jon era tão mau como você. Maior tolo fui eu,

por lhe dar ouvidos.

- Jon Arryn era um homem sensato e uma boa Mão.

Robert resfolegou. A ira o estava deixando tão subitamente como

tinha chegado.

- Diz-se que este Khal Drogo tem cem mil homens em sua horda. O

que diria Jon a isso?

- Diria que mesmo um milhão de dothrakis não são ameaça para o

reino desde que fiquem do outro lado do mar estreito - replicou Ned

com calma. - Os bárbaros não têm navios. Odeiam e temem o mar

aberto.

O rei moveu-se desconfortavelmente na sela.

- Talvez. Mas podem obter navios nas Cidades Livres. Digo-lhe, Ned,

este casamento não me agrada. Ainda há nos Sete Reinos quem me

chame Usurpador. Esqueceu-se de quantas casas lutaram pelos

Targaryen durante a guerra? Por enquanto esperam a sua hora, mas

dê-lhes meia hipótese e me assassinarão no leito, e a meus filhos

também. Se o rei pedinte atravessar o mar com uma horda dothraki

atrás dele, os traidores a ele se juntarão.

- Não atravessará - prometeu Ned. - E, se por algum azar atravessar,

nós o atiraremos de volta ao mar. Uma vez escolhido um novo

Guardião do Leste...

O rei soltou um gemido.

- Pela última vez, não nomearei Guardião o rapaz Arryn. Sei que o

rapaz é seu sobrinho, mas com os Targaryen usufruindo a cama dos

dothrakis seria louco se deixasse um quarto do reino nas mãos de

uma criança enfermiça.

Ned estava preparado para aquilo.

- E, no entanto, ainda precisamos de um Guardião do Leste. Se

Robert Arryn não serve, nomeie um dos seus irmãos. Stannis decerto

provou seu valor no cerco à Ponta Tempestade.

Deixou o nome pairar por um momento. O rei franziu a testa e nada

disse. Parecia desconfortável.

- Isto é - terminou Ned em voz baixa, observando -, a não ser que já

tenha prometido a posição a outra pessoa.

Por um momento Robert teve a elegância de parecer surpreso. Quase

no mesmo momento, o olhar passou a denotar aborrecimento.

- E se o fiz?

- É Jaime Lannister, não é?

Robert pôs de novo o cavalo em movimento com os calcanhares e

desceu a colina em direção aos outeiros. Ned o acompanhou. O rei

prosseguiu a cavalgada, com os olhos fixos em frente.

- Sim - disse por fim. Uma única palavra dura para pôr uma pedra

sobre o assunto.

- O Regicida - retrucou Ned. Então os rumores eram verdadeiros.

Sabia que trilhava agora terreno perigoso. - Um homem apto e

corajoso, sem dúvida - disse com cuidado -, mas seu pai é Guardião

do Oeste, Robert. A seu tempo Sor Jaime irá sucedê-lo neste título.

Nenhum homem deve defender tanto o leste como o oeste - deixou

de dizer sua real preocupação; que a nomeação iria pôr metade dos

exércitos do reino nas mãos dos Lannister.

- Tratarei dessa luta quando o inimigo aparecer no campo de batalha

- disse o rei teimosamente. - De momento, Lorde Tywin paira eterno

sobre Rochedo Casterly; portanto, duvido que Jaime lhe suceda em

breve. Não me aborreça com isto, Ned, a pedra foi colocada.

- Vossa Graça, posso falar com franqueza?

- Pareço ser incapaz de te impedir - resmungou Robert. Cavalgavam

através do mato alto e castanho.

- Pode mesmo confiar em Jaime Lannister?

- É irmão gêmeo de minha mulher, um Irmão Juramentado da

Guarda Real, com a vida, a fortuna e a honra sujeitas às minhas.

- Tal como estavam sujeitas às de Aerys Targaryen - Ned ressaltou.

- Por que hei de desconfiar dele? Fez tudo o que lhe pedi. Sua espada

ajudou a conquistar o trono em que me sento.

Sua espada ajudou a manchar o trono em que senta, pensou Ned,

mas não permitiu que as palavras lhe atravessassem os lábios.

- Fez o juramento de proteger a vida do rei com a dele próprio.

Depois abriu a garganta desse mesmo rei com uma espada.

- Pelos sete infernos, alguém teria de matar Aerys! - disse Robert,

puxando as rédeas da sua montaria e fazendo-a parar abruptamente

junto a um antigo outeiro. - Se Jaime não o tivesse feito, teríamos de

ter sido você ou eu.

- Nós não éramos Irmãos Juramentados da Guarda Real - Ned

respondeu. Decidiu naquele local que tinha chegado o tempo de

Robert ouvir toda a verdade. - Recorda-se do Tridente, Vossa Graça?

- Conquistei aí a minha coroa. Como posso esquecê-lo?

- Vossa Graça foi ferido por Rhaegar - recordou-lhe Ned. - E assim,

quando a tropa Targaryen cedeu e fugiu, deixou a perseguição nas

minhas mãos. O que restava do exército de Rhaegar apressou-se em

regressar a Porto Real. Nós os seguimos. Aerys estava na Torre

Vermelha com vários milhares de lealistas. Eu esperava encontrar os

portões fechados às nossas forças.

Robert abanou impacientemente a cabeça,

- E, em vez disso, descobriu que os nossos homens já tinham

conquistado a cidade. E então?

- Nossos homens, não - Ned disse pacientemente. - Os homens dos

Lannister. Era o leão de Lannister que flutuava sobre os baluartes, e

não o veado coroado. E eles conquistaram a cidade pela traição.

A guerra durara perto de um ano. Senhores, grandes e pequenos,

tinham se agrupado sob os estandartes de Robert; outros tinham

permanecido leais aos Targaryen. Os poderosos Lannister de

Rochedo Casterly, os Guardiães do Oeste, tinham permanecido à

margem da luta, ignorando os apelos às armas vindos quer dos

rebeldes quer dos lealistas. Aerys Targaryen devia ter pensado que os

deuses respondiam às suas preces quando Lorde Tywin Lannister

apareceu perante os portões de Porto Real com um exército de doze

mil homens, declarando-lhe lealdade. E, assim, o rei louco ordenou

seu último ato de loucura. Abriu sua cidade aos leões que estavam à

porta.

- A traição era uma moeda que os Targaryen conheciam bem - disse

Robert. A ira lhe subia novamente. - Os Lannister pagaram-lhes na

mesma moeda. Não foi menos do que mereciam. Não será isso que

perturba meu sono.

- Você não estava lá - disse Ned, com amargura na voz. O sono

perturbado não lhe era estranho. Vivera suas mentiras durante

catorze anos, e à noite ainda o assombravam. - Não houve honra

naquela conquista.

- Que os Outros carreguem a sua honra! - praguejou Robert. -

Quando foi que algum Targaryen conheceu a honra? Desça à sua

cripta e interrogue Lyanna sobre a honra do dragão!

- Vingou Lyanna no Tridente - disse Ned, parando ao lado do rei.

Promete-me, Ned, sussurrara ela.

- Isto não a trouxe de volta - Robert afastou o olhar para o horizonte

cinzento. - Malditos iram os deuses. Foi uma vitória oca, a que me

deram. Uma coroa.. foi pela donzela que orei a eles. A sua irmã,

salva... e minha de novo, como estava destinada a ser. Pergunto-lhe,

Ned, de que serve usar uma coroa? Os deuses zombam tanto das

preces de reis como das dos vaqueiros.

- Não posso responder pelos deuses, Vossa Graça... só por aquilo que

encontrei quando entre: na sala do trono naquele dia - disse Ned. -

Aerys estava morto no chão, afogado no próprio sangue. Seus crânios

de dragão observavam das paredes. Havia homens dos Lannister por

toda parte. Jaime trajava o manto branco da Guarda Real por cima

da armadura dourada. Ainda o vejo. Até a espada era dourada. Estava

sentado no Trono de Ferro, bem acima dos cavaleiros, usando um

elmo em forma de cabeça de leão. Como brilhava!

- Isto é bem sabido - protestou o rei.

- Eu ainda estava montado. Percorri todo o salão em silêncio, entre as

longas fileiras de crânios de dragão. De algum modo, parecia que me

observavam. Parei em frente ao trono, olhando-o por baixo. Tinha a

espada dourada pousada sobre as pernas, com a lâmina vermelha do

sangue do rei. Meus homens começavam a encher a sala atrás de

mim. Os de Lannister afastaram-se. Nunca disse uma palavra. Olhei-

o, ali sentado no trono, e esperei. Por fim, Jaime soltou uma

gargalhada e se ergueu. Tirou o elmo e disse-me: "Nada tem a temer,

Stark. Estava apenas mantendo-o quente para o nosso amigo Robert.

Temo que não seja uma cadeira muito confortável".

O rei atirou a cabeça para trás e rugiu. Suas gargalhadas assustaram

um bando de corvos que saltaram do meio da alta grama castanha

num frenético bater de asas.

- Pensa que devo desconfiar de Lannister porque se sentou no meu

trono por momentos? - voltou a sacudir-se de riso. - Jaime não tinha

mais de dezessete anos, Ned. Era pouco mais que um rapaz.

- Rapaz ou homem, não tinha direito àquele trono.

- Talvez estivesse cansado - sugeriu Robert. - Matar reis é trabalho

pesado. Os deuses sabem que não há mais lugar nenhum onde

descansar o traseiro naquela maldita sala. E ele falou a verdade: é

uma cadeira brutalmente desconfortável. De todas as maneiras - o rei

abanou a cabeça. - Bem, agora conheço o negro pecado de Jaime e o

assunto pode ser esquecido. Estou mortalmente farto de segredos,

questiúnculas e assuntos de Estado, Ned. É tudo tão entediante como

contar moedas. Vem, vamos cavalgar, você costumava saber fazer

isso. Quero voltar a sentir o vento nos cabelos - voltou a pôr o

cavalo em movimento e galopou sobre o outeiro, fazendo saltar terra

atrás de si.

Por um momento Ned não o seguiu. Tinha ficado sem palavras e

sentia-se cheio de uma grande sensação de impotência. Uma vez

mais perguntou a si próprio o que fazia ali e qual o motivo de ter

vindo. Não era nenhum Jon Arryn, capaz de pôr freio à

impetuosidade do rei e de lhe inculcar sabedoria. Robert faria o que

lhe apetecesse, como sempre fizera, e nada do que Ned pudesse fazer

ou dizer mudaria isso. Seu lugar era em Winterfell. Seu lugar era

com Catelyn, na sua dor, e com Bran.

Mas um homem nem sempre podia estar no seu lugar. Resignado,

Eddard Stark bateu com as botas no cavalo e foi atrás do rei.


Tyrion


O Norte parecia não ter fim.

Tyrion Lannister conhecia os mapas tão bem como qualquer outra

pessoa, mas uma quinzena no trilho irregular que naquela região se

passava pela estrada do rei bem incutira nele a lição de que o mapa

era uma coisa, mas o terreno, outra bem diferente.

Tinham partido de Winterfell no mesmo dia que o rei, entre toda a

agitação da partida real, saindo ao som dos gritos dos homens e do

resfolegar dos cavalos, entre a algazarra das carroças e os gemidos da

enorme casa rolante da rainha, enquanto uma neve ligeira caía ao

redor. A estrada do rei ficava logo à saída do castelo e da vila. Aí, os

estandartes, as carroças e as colunas de cavaleiros da guarda e

cavaleiros livres viraram para o sul, levando o tumulto com eles,

enquanto Tyrion virava para o norte com Benjen Stark e o sobrinho.

Depois disso ficou mais frio, e muito mais silencioso.

À oeste da estrada estendiam-se colinas de sílex, cinzentas e

escarpadas, com altas torres de vigia erguidas nos seus cumes

rochosos. Para leste o terreno era mais baixo, achatando-se até se

transformar numa planície ondulada que se estendia até onde a vista

alcançava. Pontes de pedra transpunham rios rápidos e estreitos, e

pequenas chácaras espalhavam-se em anéis em torno de rastros com

fortificações de madeira e pedra. A estrada tinha muito tráfego, e à

noite, para seu conforto, podia-se encontrar rudes estalagens.

Mas após três dias de viagem de Winterfell, as terras de cultivo

deram lugar à densa floresta, e a estrada do rei transformou-se num

lugar solitário. As colinas de sílex tornavam-se mais altas e lervagens

a cada milha, até se terem transformado em montanhas pelo quinto

dia, gigantes frios, azuis-acinzentados, com promontórios irregulares

e neve sobre os ombros. Quando o vento soprava do norte, longas

plumas de cristais de gelo voavam dos picos mais altos como se

fossem estandartes.

Com as montanhas a fazer às vezes de muro, a oeste, a estrada

desviava-se para nor-nordeste através da floresta, uma mistura de

carvalhos com sempre-verdes e sarças negras, que parecia mais

antiga e sombria que qualquer outra que Tyrion tivesse visto. "Mata

de lobos" chamara-lhe Benjen, e, de fato, as noites do grupo eram

animadas com os uivos de alcatéias distantes, e de outras não tanto

assim. O lobo gigante albino de Jon Snow erguia as orelhas ao ouvir

os uivos noturnos, mas nunca levantava a própria voz em resposta.

Para Tyrion, havia qualquer coisa muito perturbadora naquele

animal.

Aquela altura, o grupo era composto por oito membros, sem contar

com o lobo, Tyrion viajara com dois de seus homens, como era

próprio a um Lannister. Benjen Stark tinha apenas o sobrinho

bastardo e algumas montarias novas para a Patrulha da Noite, mas

no limite da mata de lobos haviam passado uma noite protegidos

pelos muros de madeira de um castro de floresta e juntou-se a eles

outro dos irmãos negros, um tal Yoren. Yoren era corcunda e

sinistro, e escondia as feições atrás de uma barba tão negra como as

roupas que trajava, mas parecia resistente como uma velha raiz e

duro como pedra. Com ele estava um par de jovens camponeses

esfarrapados originários dos Dedos.

- Violadores - disse Yoren com uma olhadela fria aos rapazes a seu

cargo. Tyrion compreendeu. Dizia-se que a vida na Muralha era dura,

mas era sem dúvida preferível à castração.

Cinco homens, três rapazes, um lobo gigante, vinte cavalos e uma

gaiola com corvos oferecidos a Benjen Stark pelo Meistre Luwin. Sem

dúvida que constituíam uma irmandade incomum, para a estrada do

rei ou para qualquer outra.

Tyrion reparou quejon Snow observava Yoren e os seus carrancudos

companheiros com uma expressão estranha no rosto, que se parecia

desconfortavelmente com desalento. Yoren tinha um ombro torcido e

um cheiro fétido, os cabelos e a barba emaranhados, oleosos e cheios

de piolhos, o vestuário era velho, remendado e raramente lavado. Os

dois jovens recrutas cheiravam ainda pior, e pareciam tão estúpidos

como cruéis.

Não havia dúvida de que o rapaz cometera o erro de pensar que a

Patrulha da Noite era composta por homens como o tio. Se assim

era, Yoren e os companheiros constituíam um rude acordar. Tyrion

sentiu pena do rapaz. Escolhera uma vida dura... ou talvez fosse mais

correto dizer que uma vida dura fora escolhida para ele.

Tinha bastante menos simpatia pelo tio. Benjen Stark parecia

partilhar do desagrado do irmão pelos Lannister e não ficara

contente quando Tyrion lhe declarara suas intenções.

- Previno-lhe, Lannister, de que não irá encontrar estalagens na

Muralha - dissera, olhando--o de cima de toda a sua altura.

- Não duvido de que encontrará algum lugar onde possa me enfiar -

respondera Tyrion. - Como talvez tenha notado, sou pequeno.

Não se dizia não ao irmão da rainha, claro, e isso pusera um ponto

final no assunto, mas Stark não ficara feliz.

- Não vai gostar da viagem, isso lhe asseguro - dissera ele de modo

conciso, e desde o momento da partida fizera tudo o que pôde para

cumprir a promessa.

Pelo fim da primeira semana, as coxas de Tyrion estavam em carne

viva devido à dura cavalgada, as pernas ardiam de cãibras e sentia-se

congelando até os ossos. Não se queixou. Que fosse maldito se desse

a Benjen Stark essa satisfação.

Obteve uma pequena vingança com a pele de montar, uma coçada

pele de urso, velha e malcheirosa. Stark lhe oferecera num excesso de

galanteria ao jeito da Patrulha da Noite, sem dúvida à espera de vê-lo

declinar com elegância. Tyrion a aceitara com um sorriso. Ao partir

de Winterfell, trouxera consigo suas roupas mais quentes, e em breve

descobriu que não eram, nem de longe, suficientes. Ali em cima fazia

frio, e estava esfriando ainda mais. De noite, a temperatura descia

agora bem abaixo do ponto de congelamento, e quando o vento

soprava era como uma faca a trespassar suas lãs mais quentes.

Decerto que Stark já se tinha arrependido de seu impulso

cavalheiresco. Talvez tivesse aprendido uma lição. Os Lannister nunca

declinavam, com ou sem elegância. Os Lannister aceitavam o que

lhes era oferecido.

As chácaras e os castros eram cada vez mais escassos e menores à

medida que prosseguiam para o norte, penetrando cada vez mais

profundamente na escuridão da mata de lobos, até que finalmente

deixou de haver tetos onde pudessem se abrigar, e foram atirados

para a necessidade de se valerem de seus próprios recursos.

Tyrion nunca fora de grande utilidade para montar ou desmontar

um acampamento. Pequeno demais, manco demais, demasiado no

caminho dos demais. E assim, enquanto Stark, Yoren e os outros

erguiam rudes abrigos, tratavam dos cavalos e faziam uma fogueira,

tornou-se seu hábito pegar a pele e um odre de vinho e afastar-se

sozinho para ler.

Na décima oitava noite da viagem, o vinho era um raro âmbar doce

das Ilhas do Verão que trouxera consigo ao longo de toda a viagem

para o norte desde Rochedo Casterly, e o livro, uma meditação sobre

a história e as propriedades dos dragões. Com a autorização de

Lorde Eddard Stark, Tyrion pedira emprestados alguns volumes raros

da biblioteca de Winterfell e os empacotara para a viagem ao norte.

Encontrou um lugar confortável para lá do ruído do acampamento,

ao lado de um córrego rápido cuja água era transparente e fria como

gelo. Um carvalho grotescamente antigo o abrigava do vento

cortante. Tyrion enrolou-se na sua pele com as costas apoiadas no

tronco, bebeu um gole de vinho e pôs-se a ler acerca das

propriedades do osso de dragão. O osso de dragão é negro devido à

grande quantidade de ferro que contém, dizia o livro. É forte como

aço, mas é também leve e muito mais flexível, e, claro,

completamente à prova âefogo. Os arcos de osso de dragão são

muito apreciados pelos dothrakis, e sem surpresa. Um arqueiro assim

armado pode alcançar mais longe do que com qualquer arco de

madeira.

Tyrion sentia um fascínio mórbido por dragões. Quando chegara pela

primeira vez a Porto Real para o casamento da irmã com Robert

Baratheon, fizera questão de procurar os crânios de dragão que

haviam decorado as paredes da sala de trono dos Targaryen. O rei

Robert os substituíra por estandartes e tapeçarias, mas Tyrion

insistira, até que encontrou os crânios na cave úmida e fria onde

tinham sido armazenados.

Esperava achá-los impressionantes, talvez mesmo assustadores, mas

não belos. Porém, eram. Negros como ônix, polidos até ficarem lisos,

o osso parecia tremeluzir à luz de seu archote. Sentiu que gostavam

do fogo. Atirara o archote para dentro da boca de um dos crânios

maiores e fizera as sombras saltar e dançar na parede atrás de si. Os

dentes eram longas facas curvas de diamante negro. A chama do

archote não era nada para eles; tinham-se banhado no calor de fogos

muito maiores. Quando se afastou, Tyrion podia jurar que as órbitas

vazias do animal o tinham visto partir.

Havia dezenove crânios. Os mais antigos tinham mais de três mil

anos; os mais recentes, não mais de século e meio. Estes últimos

eram também os menores: um par de crânios, não maiores que os de

mastins, e estranhamente deformados, tudo o que restava das

últimas duas crias nascidas em Pedra do Dragão. Eram os últimos

dos dragões Targaryen, talvez os últimos dragões em todo o mundo,

e não tinham vivido muito tempo.

A partir desses dois crânios, os outros aumentavam em tamanho até

os três grandes monstros das canções e das histórias, os dragões que

Aegon Targaryen e as irmãs tinham soltado sobre os Sete Reinos de

antigamente. Os poetas tinham-lhes atribuído nomes de deuses:

Balerion, Meraxes, Vhaghar. Tyrion estivera entre suas maxilas

escancaradas, sem palavras e cheio de respeitoso temor. Podia ter

entrado a cavalo pela garganta de Vhaghar, embora não fosse

possível voltar a sair, Meraxes era ainda maior. E o maior de todos,

Balerion, o Terror Negro, podia ter engolido um auroque inteiro, ou

até mesmo um dos mamutes peludos que diziam viver nas frias

extensões para lá do Porto de Ibben.

Tyrion ficou naquela cave úmida durante muito tempo, de olhos

fixos no enorme crânio de olhos vazios de Balerion, até o archote se

gastar, tentando abarcar o tamanho do animal vivo, imaginar a

aparência que podia ter tido quando estendia as grandes asas negras

e varria os céus, a exalar fogo.

Seu remoto antepassado, Rei Loren do Rochedo, tinha tentado lutar

contra o fogo quando uniu forças com o Rei Mern, da Campina, a

fim de se opor à conquista Targaryen. Isso acontecera havia perto de

trezentos anos, quando os Sete Reinos eram reinos, e não meras

províncias de um reino mais vasto. Entre ambos, os dois Reis tinham

seiscentos estandartes, cinco mil cavaleiros montados e dez vezes

esse número em cavaleiros livres e homens de armas. Diziam os

cronistas que Aegon, o Senhor dos Dragões, possuía talvez um

quinto dessa força, e que a maioria de seus homens tinha sido

recrutada das fileiras do último rei que matara, homens de fidelidade

incerta.

As tropas encontraram-se nas planícies da Campina, entre campos

dourados de milho pronto para a colheita. Quando os dois reis se

apresentaram, o exército Targaryen tremeu, estilhaçou-se e começou

a fugir. Por alguns momentos, escreviam os cronistas, a conquista

esteve por um fio... mas só por esses breves momentos, antes que

Aegon Targaryen e as irmãs se juntassem à batalha.

Foi a única vez que Vhaghar, Meraxes e Balerion foram todos soltos

ao mesmo tempo. Os poetas os chamaram o Campo de Fogo. Quase

quatro mil homens morreram queimados naquele dia, e entre eles

contava-se o Rei Mern da Campina, Rei Loren escapou e viveu tempo

suficiente para se render, prestar vassalagem aos Targaryen e gerar

um filho, fato que deixava Tyrion devidamente grato.

- Por que lê tanto?

Tyrion ergueu os olhos ao ouvir aquela voz. Jon Snow estava a alguns

pés de distância, olhando-o com curiosidade. Fechou o livro sobre

um dedo e disse:

- Olhe-me e diga o que vê.

O rapaz olhou-o com suspeita.

- Isto é algum truque? Vejo você. Tyrion Lannister.

Tyrion suspirou.

- Você é notavelmente gentil para um bastardo, Snow. O que vê é

um anão. Você tem o quê? Doze anos?

- Catorze - disse o rapaz.

- Catorze, e é mais alto do que alguma vez serei. Minhas pernas são

curtas e tortas, e caminho com dificuldade. Necessito de uma sela

especial para não cair do cavalo. Uma sela de minha própria

concepção, talvez te interesse saber. Era isso ou montar um pônei.

Meus braços são suficientemente fortes, mas, uma vez mais,

demasiado curtos. Nunca serei um espadachim. Se tivesse nascido

camponês, provavelmente me teriam expulsado para que morresse,

ou vendido para a coleção de aberrações de algum negociante de

escravos. Mas, ai de mim! Nasci um Lannister de Rochedo Casterly, e

as coleções de aberrações são das mais pobres. Esperam-se coisas de

mim. Meu pai foi Mão do Rei durante vinte anos. Aconteceu que,

mais tarde, meu irmão matou esse mesmo rei, mas minha vida está

cheia dessas pequenas ironias. Minha irmã casou-se com o novo rei e

o meu repugnante sobrinho será rei depois dele. Devo cumprir

minha parte pela honra da minha Casa, não concorda? Mas como?

Bem, poderei ter as pernas pequenas demais para o corpo, mas

minha cabeça é grande demais, embora eu prefira pensar que tem o

tamanho certo para minha mente. Possuo um entendimento realista

das minhas forças e fraquezas. A mente é a minha arma. Meu irmão

tem a sua espada, o Rei Robert, o seu martelo de guerra, e eu tenho

a mente... e uma mente necessita de livros da mesma forma que uma

espada necessita de uma pedra de amolar se quisermos que se

mantenha afiada - Tyrion deu uma palmada na capa de couro do

livro. - Ê por isso que leio tanto, Jon Snow.

O rapaz absorveu tudo aquilo em silêncio. Possuía o rosto dos Stark,

mesmo que não tivesse o nome: comprido, solene, reservado, um

rosto que nada revelava. Quem quer que tenha sido sua mãe, pouco

dela havia ficado no rapaz.

- E está lendo sobre o quê?

- Dragões - disse-lhe Tyrion.

- De que serve isso? Já não há dragões - disse o rapaz, com as fáceis

certezas da juventude.

- É o que dizem - respondeu Tyrion. - É triste, não é? Quando tinha

a sua idade, costumava sonhar em ter um dragão meu.

- Ah, sim? - perguntou o rapaz com suspeita na voz. Talvez pensasse

que Tyrion estava zombando dele.

- Ah, sim. Até um rapazinho enfezado, torcido e feio pode olhar o

mundo de cima quando está sentado no dorso de um dragão -

Tyrion afastou a pele de urso e pôs-se de pé. - Costumava acender

fogueiras nas entranhas de Rochedo Casterly e ficar horas olhando as

chamas, fazendo de conta que eram fogos de dragão. Por vezes

imaginava meu pai a arder. Outras, minha irmã - Jon Snow olhava-o

fixamente, submerso em partes iguais de horror e fascínio, Tyrion

soltou uma gargalhada rude. - Não me olhe assim, bastardo. Conheço

o seu segredo. Você sonhou o mesmo tipo de sonhos.

- Não - Jon Snow rebateu, horrorizado. - Nunca sonharia...

- Não? Nunca? - Tyrion ergueu uma sobrancelha, - Bem, sem dúvida

que os Stark foram ótimos para você. Estou certo de que a Senhora

Stark o trata como se fosse um de seus filhos. E seu irmão Robb

sempre foi amável. Por que não? Ele fica com Winterfell e você com

a Muralha. E seu pai... deve ter bons motivos para enviá-lo para a

Patrulha da Noite..

- Pare com isso - Jon Snow ordenou, o rosto escuro de ira. - A

Patrulha da Noite é uma vocação nobre!

Tyrion deu uma risada.

- Você é demasiado esperto para acreditar nisso. A Patrulha da Noite

é uma pilha de estrume para todos os inadaptados do reino. Vi-o

olhando para Yoren e seus rapazes. São aqueles os seus novos

irmãos, Jon Snow, que tal lhe parecem? Camponeses mal-humorados,

devedores, caçadores furtivos, violadores, ladrões e bastardos como

você acabam todos na Muralha, à espreita de gramequins e snarks e

todos os outros monstros contra os quais a sua ama de leite lhe

preveniu. A parte boa é que não existem gramequins nem snarks e,

portanto, o trabalho pouco perigo oferece. A parte má é que por

causa do frio torna-se estéril, mas como, seja como for, não está

autorizado a se reproduzir, suponho que isso não importa.

- Pare com isso! - gritou o rapaz. Deu um passo em frente, com as

mãos dobradas em punho, prestes a arrebentar em lágrimas.

De súbito, absurdamente, Tyrion sentiu-se culpado. Deu um passo

em frente, tencionando dar ao rapaz uma palmada tranquilizadora

no ombro ou murmurar uma palavra qualquer de desculpa.

Não chegou a ver o lobo, onde estava nem como se aproximou. Num

momento caminhava para Snow e no seguinte estava caído de costas

no duro chão pedregoso, com o livro a rodopiar para longe na queda,

o fôlego a desaparecer com o súbito impacto, a boca cheia de terra,

sangue e folhas apodrecidas. Quando tentou se colocar em pé, sentiu

um doloroso espasmo nas costas. Devia tê-las torcido na queda.

Rangeu os dentes com frustração, agarrou-se a uma raiz e conseguiu

puxar-se até uma posição sentada.

- Ajude-me - pediu a Jon, estendendo uma mão.

E de repente o lobo estava entre eles. Não rosnou. A maldita coisa

nunca soltava um som. Limitou-se a olhá-lo com aqueles brilhantes

olhos vermelhos, mostrou-lhe os dentes, e isso foi mais que

suficiente. Tyrion deixou-se cair de novo ao chão com um gemido.

- Pronto, não me ajude. Fico aqui sentado até que vá embora.

Jon Snow afagou o espesso pelo branco de Fantasma, agora com um

sorriso.

- Peça-me com bons modos.

Tyrion Lannister sentiu a ira retorcer-se no seu interior, mas a

esmagou com sua força de vontade. Não era a primeira vez na vida

em que era humilhado, e não seria a última. Esta até talvez fosse

merecida.

- Ficaria muito agradecido pela sua amável assistência, Jon - ele disse

com uma voz branda,

- Para baixo, Fantasma - disse o rapaz. O lobo gigante sentou-se.

Aqueles olhos vermelhos nunca deixaram Tyrion. Jon veio por trás do

anão, passou as mãos por baixo de seus braços e o pôs em pé com

facilidade. Então pegou o livro e o entregou.

- Por que ele me atacou? - perguntou Tyrion com um olhar de

relance ao lobo gigante. Limpou sangue e terra da boca com as

costas da mão.

- Talvez tivesse pensado que você fosse um gramequim.

Tyrion lançou-lhe um olhar penetrante. Depois riu, um grosseiro

resfolego divertido que saiu de suas narinas completamente sem sua

autorização.

- Ah, deuses - ele disse, estrangulando o riso e abanando a cabeça. -

Suponho que realmente me pareço bastante com um gramequim. O

que ele faz aos snarks?

- Não vai querer saber - Jon recolheu a pele de urso e a entregou a

Tyrion.

Tyrion puxou a rolha, inclinou a cabeça e despejou um longo jorro

de vinho na boca. O vinho era como fogo frio a gotejar pela garganta

abaixo e aqueceu-lhe a barriga. Depois, apresentou o odre a Jon

Snow.

- Quer?

O rapaz pegou no odre e experimentou engolir um pouco, com

cautela.

- É verdade, não é? - disse, quando terminou. - O que disse da

Patrulha da Noite. Tyrion anuiu.

Jon Snow fez da boca uma linha severa.

- Se isso é o que ela é, então é isso que é. Tyrion deu um sorriso.

- Isso é bom, bastardo. A maioria dos homens mais depressa nega

uma verdade dura do que a enfrenta.

- A maior parte dos homens - Jon respondeu. - Mas não você.

- Não - admitiu Tyrion. - Eu não. Já raramente sonho com dragões.

Não existem dragões - recolheu a pele de urso do chão. - Vem, é

melhor regressarmos ao acampamento antes que seu tio chame os

estandartes.

A caminhada era curta, mas o terreno que tinha sob os pés era

irregular, e tinha as pernas cheias de cãibras quando regressaram.

Jon Snow ofereceu-lhe uma mão para ajudá-lo a ultrapassar um

espesso emaranhado de raízes, mas Tyrion recusou. Abriria seu

próprio caminho, como fizera toda a vida. Apesar disso, ver o

acampamento na sua frente foi agradável. Os abrigos tinham sido

erguidos contra o muro em ruínas de um castro havia muito

abandonado, um escudo contra o vento. Os cavalos tinham sido

alimentados e uma fogueira feita. Yoren estava sentado numa pedra,

esfolando um esquilo. O saboroso cheiro de guisado encheu as

narinas de Tyrion.

Arrastou-se até onde um de seus homens, Morrec, estava cuidando

da panela. Sem uma palavra, Morrec estendeu-lhe a concha. Tyrion

provou e a devolveu.

- Mais pimenta – disse.

Benjen Stark emergiu do abrigo que partilhava com o sobrinho.

- Aí está você. Jon, que diabos, não desapareça sozinho dessa

maneira. Pensei que os Outros o tivessem apanhado.

- Foram os gramequins - disse Tyrion, rindo. Jon Snow também

sorriu. Stark deitou um olhar severo a Yoren. O homem mais velho

grunhiu, encolheu os ombros e regressou ao seu sangrento trabalho.

O esquilo emprestou algum corpo ao guisado e, naquela noite,

comeram-no com pão escuro e queijo duro à volta da fogueira.

Tyrion partilhou seu odre de vinho, fazendo até mesmo Yoren

relaxar. Um a um, os homens e rapazes foram se retirando para os

abrigos e para o sono, todos, menos Jon Snow, que ficara com a

primeira vigia da noite.

Tyrion foi o último a se retirar, como sempre. Quando entrou no

abrigo que seus homens tinham construído, parou e olhou para Jon

Snow. O rapaz estava em pé junto à fogueira, com o rosto imóvel e

duro, e os olhos perdidos nas profundezas das chamas.

Tyrion Lannister deu-lhe um sorriso triste e foi se deitar.


Catelyn


Ned e as meninas tinham partido havia oito dias quando Meistre

Luwin veio ter com Catelyn uma noite, no quarto de doente de Bran,

transportando uma candeia de leitura e os livros de contas.

- Já é mais que tempo de rever os números, minha senhora - ele

disse. - A senhora vai querer saber quanto nos custou esta visita real.

Catelyn olhou Bran em sua cama, afastou-lhe o cabelo da testa e

percebeu que tinha crescido muito. Teria de cortá-lo em breve.

- Não tenho nenhuma necessidade de olhar para números, Meistre

Luwin - ela respondeu, sem nunca afastar os olhos de Bran, - Sei o

que esta visita nos custou, Leve os livros daqui.

- Minha senhora, a comitiva do rei tinha apetites saudáveis. Temos de

voltar a fornecer os nossos armazéns antes que..

Ela o interrompeu.

- Eu disse para levar os livros daqui. O intendente tratará das nossas

necessidades.

- Não temos intendente - lembrou-lhe Meistre Luwin.

Como uma pequena ratazana cinzenta, pensou ela, o homem não a

largava. - Poole foi para o Sul a fim de organizar a casa de Lorde

Eddard em Porto Real.

Catelyn anuiu de forma ausente.

- Ah, sim. Lembro-me - Bran parecia tão pálido. Perguntou a si

própria se poderiam deslocar a cama até junto da janela para que

recebesse o sol da manhã.

Meistre Luwin depositou a candeia num nicho perto da porta e

ajustou seu pavio.

- Há várias nomeações que requerem a vossa atenção imediata,

minha senhora. Além do intendente, precisamos de um capitão dos

guardas para o lugar dejory, um novo mestre dos cavalos...

Os olhos dela dardejaram em redor e o encontraram.

- Um mestre dos cavalos? - sua voz era um chicote.

O meistre ficou abalado.

- Sim, minha senhora. Hullen foi para o Sul com Lorde Eddard, por

isso...

- Meu filho jaz aqui partido e morrendo, Luwin, e quer conversar

sobre um novo mestre dos cavalos? Acha que me importa o que

acontece nos estábulos? Acha que isso tem alguma importância para

mim? De bom grado mataria com as minhas próprias mãos os

cavalos de Winterfell um a um se isso fizesse com que os olhos de

Bran se abrissem. Compreende isso? Compreende?

Ele inclinou a cabeça.

- Sim, minha senhora, mas as nomeações...

- Eu farei as nomeações - disse Robb.

Catelyn não o ouvira entrar, mas ali estava ele, na soleira da porta,

olhando-a. Compreendeu com um súbito ataque de vergonha que

estava gritando. O que estava acontecendo com ela? Estava tão

cansada, e sua cabeça doía constantemente.

Meistre Luwin desviou o olhar de Catelyn para o filho.

- Preparei uma lista daqueles em que podemos querer pensar para os

cargos vagos - disse, oferecendo a Robb um papel retirado de dentro

da manga.

O filho de Catelyn olhou os nomes. Ela percebeu que ele viera de

fora: tinha as bochechas vermelhas do frio e os cabelos desgrenhados

pelo vento.

- São bons homens - disse. - Falaremos deles amanhã - devolveu a

lista de nomes.

- Muito bem, senhor - o papel desapareceu dentro da manga.

- Agora, deixe-nos - disse Robb.

Meistre Luwin fez uma reverência e partiu. Robb fechou a porta

atrás dele e virou-se para ela. Catelyn reparou que o filho usava uma

espada.

- Mãe, o que está fazendo?

Catelyn sempre achara que Robb se parecia com ela; tal como Bran,

Rickon e Sansa, possuía as cores dos Tully, os cabelos ruivos, os

olhos azuis. Mas agora, pela primeira vez, via algo de Eddard Stark

no seu rosto, algo tão resistente e duro como o Norte.

- Que estou fazendo? - respondeu num eco, confusa. - Como pode

me perguntar isso? O que imagina que estou fazendo? Estou

cuidando do seu irmão, Estou cuidando de Bran.

- É esse o nome que dá a isto? Não saiu deste quarto desde que Bran

se machucou. Nem sequer foi ao portão quando o Pai e as meninas

partiram para o Sul.

- Dei-lhes as minhas despedidas aqui e os vi partir daquela janela -

ela suplicara a Ned que não partisse, não agora, não depois do que

acontecera; tudo tinha mudado, ele não compreendia isso? Sem

sucesso. Ele dissera-lhe que não tinha escolha, e então saíra, fazendo

sua escolha. - Não posso deixá-lo, nem por um momento, quando

qualquer momento pode ser o último. Tenho de estar com ele, se...

se... - pegou na mão flácida do filho, deslizando seus dedos entre os

dele, Ele estava frágil e magro, não lhe restava nenhuma força na

mão, mas ainda podia sentir o calor da vida na sua pele.

A voz de Robb suavizou-se.

- Ele não vai morrer, mãe. Meistre Luwin diz que o maior perigo já

passou.

- E se Meistre Luwin se enganar? E se Bran precisar de mim e eu

não estiver aqui?

- Rickon precisa da senhora - disse Robb em tom penetrante. - Só

tem três anos, não compreende o que está se passando. Pensa que

todos o abandonaram, e por isso me segue para todo o lado,

agarrando-se à minha perna e chorando. Não sei o que fazer com ele

- fez uma pequena pausa, mordendo o lábio inferior como fazia

quando era pequeno. - Mãe, eu também preciso da senhora. Estou

tentando, mas não posso... não posso fazer tudo sozinho - sua voz

quebrou-se com súbita emoção, e Catelyn lembrou-se de que ele

tinha apenas catorze anos. Quis levantar-se e ir falar com ele, mas

Bran ainda segurava sua mão, e não podia se mover.

Fora da torre, um lobo começou a uivar. Catelyn estremeceu, só por

um segundo.

- É o de Bran - Robb abriu a janela e deixou entrar o ar da noite no

abafado quarto da torre. Os uivos ficaram mais fortes. Era um som

frio e solitário, cheio de melancolia e desespero.

- Não - disse ela. -Bran precisa ficar quente.

- Ele precisa ouvi-los cantar - disse Robb. Em outro ponto, em

Winterfell, um segundo lobo começou a uivar em coro com o

primeiro. Depois um terceiro, mais perto. - Cão Felpudo e Vento

Cinzento - disse Robb enquanto as vozes dos lobos se erguiam e

caíam em conjunto. - É possível identificá-los se ouvirmos com

atenção.

Catelyn estava tremendo. Era a dor, o frio, os uivos dos lobos

gigantes. Noite após noite, os uivos, o vento frio e o vazio castelo

cinzento continuavam, imutáveis, e o seu rapaz jazendo ali,

quebrado, o mais doce dos seus filhos, o mais gentil, o Bran que

gostava de rir, de escalar, de sonhos de cavalaria, tudo agora

desaparecido, nunca mais o ouviria rir. Soluçando, libertou sua mão

da dele e cobriu os ouvidos contra aqueles terríveis uivos.

- Faça-os parar! - gritou. - Não aguento mais, faça-os parar, faça-os

parar, mate-os todos se for preciso, mas faça-os parar!

Não se lembrava de ter caído ao chão, mas era no chão que estava, e

Robb erguia-a, segurando-a com braços fortes.

- Não tenha medo, mãe. Eles nunca lhe fariam mal - ajudou-a a

caminhar até sua estreita cama no canto do quarto de doente, -

Feche os olhos - disse, em voz branda. - Descanse. Meistre Luwin

disse-me que quase não tem dormido desde a queda de Bran.

- Não posso - ela chorou. - Que os deuses me perdoem, Robb, mas

não posso, e se ele morre enquanto durmo, e se ele morre, e se ele

morre... - os lobos ainda uivavam. Ela gritou e voltou a tapar os

ouvidos. - Ah, deuses, feche a janela!

- Se me jurar que vai dormir - Robb foi até a janela, mas ao estender

as mãos para os postigos, outro som foi acrescentado ao fúnebre

uivar dos lobos gigantes. - Cães - ele disse, escutando. - Os cães

estão todos ladrando. Nunca antes tinham agido assim... - Catelyn o

ouviu prender a respiração. Quando ergueu os olhos, o rosto estava

pálido à luz da candeia.


- Fogo - murmurou o jovem. Fogo, pensou ela e, em seguida, Branl

- Ajude-me - disse, com urgência na voz, sentando-se. - Ajude-me

com Bran. Robb não pareceu ouvi-la.

- A torre da biblioteca está ardendo - ele disse.

Catelyn podia ver agora a tremeluzente luz avermelhada pela janela

aberta. Recostou-se, aliviada. Bran estava a salvo. A biblioteca ficava

para lá do muro exterior do castelo, não havia maneira de o fogo

chegar até ali.

- Graças aos deuses - sussurrou.

Robb a olhou como se tivesse enlouquecido.

- Mãe, fique aqui. Volto assim que o fogo estiver extinto - depois

correu. Ela o ouviu gritar para os guardas que estavam do lado de

fora do quarto, ouviu-os descer juntos as escadas em desenfreado

ímpeto, saltando os degraus, dois ou três de cada vez.

Lá fora, ouviam-se berros de "Fogo!" no pátio, gritos, passos em

corrida, os relinchos de cavalos assustados e o frenético ladrar dos

cães do castelo. Enquanto escutava aquela cacofonia, percebeu que os

uivos tinham desaparecido. Os lobos gigantes tinham-se silenciado.

Catelyn rezou uma silenciosa prece de agradecimento às sete caras

de deus quando se encaminhou para a janela. Do lado de lá do muro

do castelo, longas línguas de fogo jorravam das janelas da biblioteca.

Viu a fumaça erguer-se para o céu e pensou com tristeza em todos

os livros que os Stark tinham reunido ao longo dos séculos. Então

fechou as janelas.

Quando virou as costas a janela, o homem estava no quarto com ela.

- Não devia estar aqui - ele murmurou amargamente. - Ninguém

devia estar aqui.

Era um homem pequeno e sujo, vestido com imundas roupas pardas,

e fedia a cavalos. Catelyn conhecia todos os homens que trabalhavam

nas cavalariças, e aquele não era nenhum deles. Era magro, com

cabelos louros escorridos e olhos claros profundamente afundados

num rosto ossudo, e trazia na mão um punhal.

Catelyn olhou para a faca, e depois para Bran.

- Não - disse. A palavra ficou-lhe presa na garganta, um mero

sussurro. Ele deve tê-la ouvido.

- É uma misericórdia - disse. - Ele já tá morto.

- Não - disse Catelyn, agora mais alto depois de ter reencontrado a

voz. - Não, não pode - girou de volta à janela, a fim de gritar por

ajuda, mas o homem se moveu mais depressa do que ela teria

acreditado ser possível. Uma mão fechou-se sobre sua boca e atirou-

lhe a cabeça para trás, a outra trouxe o punhal até sua traqueia. O

fedor que o homem exalava era opressivo.

Ergueu ambas as mãos e agarrou a lâmina com todas as suas forças,

afastando-a da garganta. Ouviu-o praguejar ao seu ouvido. Os dedos

dela estavam escorregadios de sangue, mas não largava o punhal. A

mão sobre sua boca apertou-se mais, tirando-lhe o ar. Catelyn torceu

a cabeça para o lado e conseguiu pôr um pouco da carne do homem

entre os dentes. Mordeu-lhe a palma da mão com força. O homem

grunhiu de dor. Ela fez mais força e rasgou-lhe a pele, e, de repente,

ele a largou. O gosto do sangue do homem enchia-lhe a boca. Ela

bebeu uma golfada de ar e soltou um grito, e ele agarrou-lhe o

cabelo e a empurrou para longe, fazendo-a tropeçar e cair. Então,

saltou sobre ela, respirando com força, tremendo. A mão direita do

homem ainda agarrava com força o punhal, escorregadio de sangue.

- Não devia estar aqui - repetiu, estupidamente.

Catelyn viu a sombra deslizar pela porta aberta atrás dele. Houve um

ruído surdo e baixo, menos que um rosnado, o menor murmúrio de

ameaça, mas ele deve tê-lo ouvido, porque começou a virar-se no

preciso instante em que o lobo saltou. Caíram juntos, meio

estatelados, sobre Catelyn, que continuava estendida onde tombara.

O lobo o tinha preso nas maxilas. O guincho do homem durou

menos de um segundo antes que o animal atirasse a cabeça para

trás, arrancando--lhe metade da garganta.

O sangue dele foi como chuva quente quando se espalhou sobre o

rosto de Catelyn.

O lobo a olhava. Suas maxilas estavam vermelhas e úmidas, e os

olhos brilhavam, dourados, no quarto escuro. Catelyn percebeu que

era o lobo de Bran. Claro que era,

- Obrigada - sussurrou, com a voz tênue e aguda. Ergueu a mão,

estremecendo. O lobo aproximou-se, farejou-lhe os dedos e pôs-se a

lamber o sangue com uma língua úmida e áspera. Depois de limpar

todo o sangue de sua mão, ele virou-se em silêncio e saltou para a

cama de Bran, deitando-se a seu lado. Catelyn desatou a rir

histericamente.

Foi assim que os encontraram, quando Robb, Meistre Luwin e Sor

Rodrik entraram num rompante no quarto com metade dos guardas

de Winterfell. Quando o riso finalmente lhe morreu na garganta,

enrolaram-na em cobertores quentes e a levaram de volta para a

Grande Torre, para seus aposentos. A Velha Ama a despiu, ajudou-a

a entrar no banho quente e a lavou do sangue com um pano suave.

Mais tarde, Meistre Luwin chegou para fechar suas feridas. Os cortes

nos dedos eram profundos, quase chegavam ao osso, e tinha o couro

cabeludo em carne viva e sangrando no lugar onde o homem lhe

arrancara um tufo de cabelo. O meistre disse-lhe que a dor estava

agora apenas começando, e deu-lhe leite de papoula para ajudá-la a

dormir.

E ela, finalmente, fechou os olhos.

Quando voltou a abri-los, disseram-lhe que dormira durante quatro

dias. Catelyn fez um aceno com a cabeça e sentou-se na cama. Agora,

tudo lhe parecia um pesadelo, tudo desde a queda de Bran, um

terrível sonho de sangue e desgosto, mas tinha a dor nas mãos para

lembrá-la de que era real. Sentia-se fraca e entontecida, mas

estranhamente resoluta, como se um grande peso tivesse sido tirado

de cima de seus ombros.

- Tragam-me um pouco de pão e mel - disse às criadas - e mandem

um recado a Meistre Luwin, dizendo que minhas ataduras precisam

ser trocadas - olharam-na, surpresas, e correram para cumprir suas

ordens.

Catelyn lembrava-se de como estivera antes, e sentiu-se

envergonhada. Falhara para com todos, os filhos, o marido, a Casa.

Não voltaria a acontecer. Ia mostrar àqueles nortenhos como uma

Tully de Correrrio podia ser forte.

Robb chegou antes dos alimentos. Rodrik Cassei veio com ele, bem

como o protegido do marido, Theon Greyjoy, e por fim Hallis Mollen,

um guarda musculoso com uma barba castanha e quadrada. Era o

novo capitão da guarda, disse Robb. Reparou que o filho vinha

vestido com couro fervido e cota de malha, e que trazia uma espada

à cintura.

- Quem era ele? - perguntou-lhes Catelyn.

- Ninguém sabe seu nome - informou Hallis Mollen. - Não era

homem de Winterfell, senhora, mas há quem diga que foi visto aqui

e nas imediações do castelo ao longo destas últimas semanas.

- Então é um dos homens do rei - disse ela -, ou dos Lannister. Pode

ter ficado para trás, à espreita, quando os outros partiram.

- Pode ser - disse Hal. - Com todos aqueles estranhos a encher

Winterfell nos últimos tempos, não há maneira de dizer a quem

pertencia.

- Ele esteve escondido nas cavalariças - disse Greyjoy. - Podia-se

sentir o cheiro nele.

- E como pôde passar despercebido? - disse ela em tom penetrante.

Hallis Mollen pareceu atrapalhado.

- Com os cavalos que o Senhor Eddard levou para o Sul e os que

enviamos para o Norte para a Patrulha da Noite, as cavalariças

ficaram meio vazias. Não seria grande truque se esconder dos moços

da cavalariça. Pode ser que Hodor o tenha visto, dizem que o rapaz

anda esquisito, mas simplório como é.. - Hal abanou a cabeça.

- Encontramos o lugar onde ele dormia - interveio Robb. - Tinha

noventa veados de prata num saco de couro escondido debaixo da

palha.

- É bom saber que a vida do meu filho não foi vendida barato - disse

Catelyn amargamente. Hallis Mollen a olhou, confuso.

- As minhas desculpas, senhora, mas está dizendo que ele foi

mandado para matar o seu rapaz?

Greyjoy mostrou dúvida.

- Isso é uma loucura.

- Ele veio por Bran - disse Catelyn. - Ficou o tempo todo

resmungando que eu não devia estar ali. Provocou o incêndio da

biblioteca pensando que eu correria para tentar apagá-lo, levando os

guardas comigo. Se não estivesse meio louca de desgosto, teria

funcionado.

- Por que haveria alguém de querer matar Bran? - Robb perguntou. -

Deuses, não passa de um rapazinho, indefeso, dormindo...

Catelyn lançou ao seu primogênito um olhar de desafio.

- Se quiser governar o Norte, Robb, precisa analisar estas coisas até o

fim. Responda à sua pergunta. Por que haveria alguém de querer

matar uma criança adormecida?

Antes que Robb pudesse responder, as criadas regressaram com uma

bandeja de comida fresca acabada de vir da cozinha. Havia muito

mais do que ela pedira: pão quente, manteiga, mel e conservas de

amoras silvestres, uma fatia de bacon e um ovo cozido, uma porção

de queijo, um bule de chá de menta. E com os alimentos chegou

Meistre Luwin.

- Como está meu filho, Meistre? - Catelyn olhou toda aquela comida

e descobriu que não tinha apetite.

Meistre Luwin baixou os olhos.

- Sem alterações, minha senhora.

Era a resposta que ela esperava, nem mais, nem menos. As mãos

palpitaram-lhe de dor, como se a lâmina ainda estivesse nelas,

cortando-as profundamente. Mandou as criadas embora e voltou a

olhar para Robb.

-Já tem a resposta?

- Alguém tem medo de que Bran acorde - disse Robb -, medo do que

ele possa dizer ou fazer, medo de qualquer coisa que ele sabe.

Catelyn sentiu orgulho do filho.

- Muito bem - virou-se para o novo capitão da guarda. - Temos de

manter Bran a salvo. Se existiu um assassino, poderá haver outros.

- Quantos guardas serão necessários, senhora? - perguntou Hal.

- Enquanto o Senhor Eddard estiver fora, é o meu filho quem

governa Winterfell - ela respondeu.

Robb pareceu crescer um pouco.

- Ponha um homem no quarto, de noite e de dia, um junto à porta,

dois ao fundo das escadas. Ninguém pode ver Bran sem minha

autorização, ou a da minha mãe.

- Certamente, senhor.

- Trate disto já - sugeriu Catelyn.

- E deixe que o lobo dele fique no quarto - acrescentou Robb.

- Sim - disse Catelyn. E depois de novo: - Sim. Hallis Mollen fez uma

reverência e deixou o quarto.

- Senhora Stark - disse Sor Rodrik depois de o guarda sair -, teria a

senhora, por acaso, reparado no punhal que o assassino usou?

- As circunstâncias não me permitiram examiná-lo de perto, mas

posso certificar que era afiado - respondeu Catelyn com um sorriso

seco. - Por que pergunta?

- Encontramos a faca ainda na mão do vilão. Pareceu-me uma arma

boa demais para um homem daqueles, e olhei-a longa e atentamente.

A lâmina é de aço valiriano e o punho, de osso de dragão. Uma arma

assim não tem nada a ver com um homem como ele. Alguém lhe

deu.

Catelyn fez um aceno, pensativa.

- Robb, feche a porta.

Ele a olhou de um modo estranho, mas fez o que lhe foi pedido.

- O que vou dizer não deve sair deste quarto - ela avisou. - Quero

que jurem. Se até mesmo parte daquilo de que suspeito for verdade,

Ned e as minhas meninas viajaram para um perigo mortal, e uma

palavra aos ouvidos errados poderá custar-lhes a vida.

- Lorde Eddard é como um segundo pai para mim - disse Theon

Greyjoy. - Presto esse juramento.

- A senhora tem o meu juramento - disse Meistre Luwin.

- E o meu também, minha senhora - ecoou Sor Rodrik. Ela olhou

para o filho.

- E você, Robb?

Ele consentiu com um aceno de cabeça.

- Minha irmã Lysa acredita que os Lannister assassinaram o marido,

Lorde Arryn, a Mão do Rei - informou Catelyn. - Ocorre-me que

Jaime Lannister não se juntou à caçada no dia em que Bran caiu.

Permaneceu aqui no castelo - o quarto estava num silêncio mortal. -

Não me parece que Bran tenha caído daquela torre - disse ela para o

silêncio. - Penso que foi atirado.

O choque era claro no rosto dos quatro homens.

- Minha senhora, essa sugestão é monstruosa - disse Rodrik Cassei, -

Até mesmo o Regicida hesitaria em assassinar uma criança inocente.

- Ah, hesitaria? - perguntou Theon Greyjoy. - Tenho dúvidas.

- Não há limites para o orgulho ou a ambição dos Lannister - disse

Catelyn.

- O rapaz sempre teve antes a mão segura - Meistre Luwin disse,

pensativo. - Conhece todas as pedras de Winterfell.

- Deuses - praguejou Robb, com o jovem rosto escuro de fúria. - Se

isto for verdade, ele pagará - puxou a espada e a brandiu no ar. - Eu

próprio o matarei!

Sor Rodrik irritou-se com ele.

- Guarde isso! Os Lannister estão a cem léguas daqui. Nunca puxe a

espada, a menos que tencione usá-la. Quantas vezes tenho de lhe

dizer isto, meu tolo rapazinho?

Envergonhado, Robb embainhou a espada, subitamente transformado

de novo numa criança. Catelyn disse a Sor Rodrik:

- Vejo que meu filho agora usa aço. O velho mestre de armas

respondeu:

- Achei que era tempo, Robb a olhou ansiosamente:

- Já era mais que tempo. Winterfell pode necessitar de todas as suas

espadas em breve, e é bom que elas não sejam feitas de madeira.

Theon Greyjoy pôs a mão no punho de sua espada e disse:

- Minha senhora, se chegar a tanto, minha Casa tem uma grande

dívida para com a vossa. Meistre Luwin puxou a corrente do colar

onde lhe irritava a pele do pescoço.

- Tudo o que temos são conjecturas. Quem queremos acusar é o

irmão querido da rainha. Ela não o aceitará de bom grado. Temos de

encontrar provas, ou ficar em silêncio para sempre,

- Sua prova está no punhal - disse Sor Rodrik, - Uma bela lâmina

como aquela não pode passar despercebida.

Catelyn compreendeu que havia apenas um lugar onde a verdade

podia ser encontrada.

- Alguém tem de ir a Porto Real.

- Eu vou - disse Robb.

- Não - ela disse imediatamente. - Seu lugar é aqui. Deve haver

sempre um Stark em Winterfell - olhou para Sor Rodrik com suas

grandes suíças brancas, para Meistre Luwin com sua túnica cinzenta,

para o jovem Greyjoy, magro, escuro e impetuoso. Quem enviar? Em

quem acreditariam? Então soube. Catelyn esforçou-se por empurrar

os cobertores, com os dedos tão rígidos e inflexíveis como pedra, e

levantou-se da cama. - Devo ir eu mesma.

- Minha senhora - disse Meistre Luwin -, será avisado? Decerto que

os Lannister encararão a vossa chegada com suspeita.

- E Bran? - perguntou Robb. O pobre rapaz parecia agora

completamente confundido, - Não pode ter a intenção de abandoná-

lo.

- Fiz por Bran tudo o que podia fazer - ela disse, pousando sua mão

ferida sobre o braço do filho. - Sua vida está nas mãos dos deuses e

de Meistre Luwin. Tal como você mesmo me lembrou, Robb, tenho

agora outros filhos em que pensar.

- Minha senhora vai precisar de uma forte escolta - lembrou Theon.

- Enviarei Hal com um pelotão de guardas - disse Robb.

- Não - Catelyn respondeu. - Um grupo grande atrai atenções

indesejadas. Não quero que os Lannister saibam que estou a

caminho.

Sor Rodrik protestou.

- Minha senhora, deixe-me pelo menos acompanhá-la. A estrada do

rei pode ser perigosa para uma mulher só.

- Não irei pela estrada do rei - ela retrucou. Pensou por um

momento e consentiu com a cabeça. - Dois cavaleiros podem

deslocar-se tão depressa como um, e bastante mais depressa do que

uma longa coluna sobrecarregada com carroças e casas rolantes.

Aceito sua companhia, Sor Rodrik. Seguiremos o Faca Branca até o

mar e alugaremos um navio em Porto Branco. Com cavalos fortes e

ventos vivos, deveremos chegar a Porto Real bem antes de Ned e dos

Lannister - e então, pensou, veremos o que tivermos de ver.


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