E d d a rd

Caminhava pelas criptas por baixo de Winterfell, como caminhara

mil vezes antes. Os Reis do Inverno olhavam-no ao passar com olhos

de gelo, e os lobos gigantes a seus pés viravam as grandes cabeças de

pedra e rosnavam. Por fim, chegou à tumba onde o pai dormia, com

Brandon e Lyanna a seu lado. " P r o m e t e - m e , N e d " , sussurrou a

estátua de Lyanna. T r a z i a , uma grinalda de rosas azul-claras e seus

olhos choravam sangue.

Eddard Stark saltou na cama, com o coração acelerado, os cobertores

emaranhados à sua volta. O quarto estava negro como breu, e

alguém batia à porta com força.

- Lorde Eddard - chamou sonoramente uma voz.

- Um momento - sonolento e nu, atravessou aos tropeções o quarto

escurecido. Quando abriu a porta, deparou com Tomard de punho

erguido e com Cayn com uma grande vela na mão. Entre os dois

encontrava-se o intendente do rei.

O rosto do homem podia ter sido esculpido em pedra, de tão pouco

que mostrava.

- Senhor Mão - entoou. - Sua Graça, o Rei, exige a vossa presença. De

imediato. Então Robert tinha regressado da caçada. Era mais que

tempo.

- Necessitarei de um momento para me vestir - Ned deixou o homem

à espera lá fora. Cayn o ajudou com a roupa, uma túnica de linho

branco e uma capa cinza, calças cortadas na perna envolvida em

gesso, o distintivo de seu cargo e por fim um cinto de pesados aros

de prata. Embainhou o punhal valiriano à cintura.

A Fortaleza Vermelha estava escura e quieta quando Cayn e Tomard

o escoltaram através da muralha interior. A lua pendia baixa sobre as

muralhas, quase cheia. Nos baluartes, um guarda de manto dourado

fazia a sua ronda.

Os aposentos reais ficavam na Fortaleza de Maegor, um maciço e

quadrado forte que se aninhava no coração da Fortaleza Vermelha

por trás de muralhas com três metros e meio de espessura e um

fosso seco coberto de espigões de ferro, um castelo dentro do

castelo. Sor Boros Blount guardava a extremidade mais afastada da

ponte, com a armadura de aço branco que o fazia parecer um

fantasma à luz da lua. Lá dentro, Ned passou por dois outros

cavaleiros da Guarda Real: Sor Preston Greenfield estava ao fundo

das escadas, e Sor Barristan Selmy esperava à porta do quarto do rei.

Três homens de manto branco, pensou, recordando, e sentiu-se

atravessado por um estranho frio. O rosto de Sor Barristan estava

tão pálido como a sua armadura, Ned não precisou mais do que

olhá-lo para saber que alguma coisa estava horrivelmente errada. O

intendente real abriu a porta.

- Lorde Eddard Stark, a Mão do Rei - anunciou,

- Traga-o aqui - disse a voz de Robert, estranhamente pesada.

O fogo ardia nas lareiras gêmeas situadas nas duas pontas do quarto,

enchendo-o com um lúgubre clarão vermelho. O calor que ali fazia

era sufocante. Robert jazia na cama coberta. Junto à cama pairava o

Grande Meistre Pycelle, enquanto Lorde Renly andava agitadamente

em frente das janelas fechadas. Criados iam de um lado para o outro,

alimentando o fogo de lenha e fervendo vinho. Cersei Lannister

estava sentada à beira da cama, ao lado do marido. Tinha os cabelos

em desordem, como se tivesse acabado de se levantar, mas nada

havia de sonolento nos olhos. Seguiram Ned quando Tomard e Cayn

o ajudaram a atravessar a sala. Parecia-lhe que se movia muito

lentamente, como se ainda estivesse sonhando.

O rei ainda trazia as botas. Ned viu lama seca e folhas de grama

agarradas ao couro onde os pés de Robert se projetavam da manta

que o cobria. Um gibão verde jazia no chão, rasgado e jogado fora,

com o tecido coberto de manchas vermelho-amarronzadas. O quarto

cheirava a fumaça, a sangue e a morte.

- Ned - sussurrou o rei quando o viu. O rosto estava pálido como

leite. - Vem.. mais perto. Seus homens levaram-no para mais perto.

Ned equilibrou-se com a mão na coluna da cama.

Bastava olhar para Robert para perceber como estava mal.

- Quê?.,. - começou, com um nó na garganta.

- Um javali - Lorde Renly ainda trazia as roupas verdes de caça, com

o manto pintalgado de sangue.

- Um demônio - revelou o rei. - Culpa minha. Demasiado vinho,

maldito seja eu. Errei a estocada.

- E onde estava o resto de vocês? - Ned exigiu saber de Lorde Renly.

- Onde estava Sor Barristan e a Guarda Real?

A boca de Renly retorceu-se.

- Meu irmão ordenou que nos afastássemos e o deixássemos abater o

javali sozinho.

Eddard Stark ergueu a manta.

Tinham feito o possível para fechar suas feridas, mas nem chegava

perto de ser suficiente. O javali devia ter sido um animal temível.

Rasgara o rei, com as presas, da virilha ao mamilo. As ataduras

embebidas em vinho que o Grande Meistre Pycelle aplicara já

estavam negras de sangue, e o cheiro que saía da ferida era

hediondo. O estômago de Ned deu uma volta. Deixou cair a manta.

- Fede - Robert disse, - O fedor da morte, Não pense que não o

sinto, O maldito me pegou, hã? Mas eu... eu paguei-lhe na mesma

moeda, Ned - o sorriso do rei era tão terrível quanto sua ferida, com

dentes vermelhos. - Enfiei-lhe a faca bem no olho. Pergunte-lhes se

não é verdade. Pergunte-lhes.

- É verdade - murmurou Lorde Renly. - Trouxemos a carcaça

conosco, por ordem do meu irmão.

- Para o banquete - sussurrou Robert. - Agora saiam. Todos. Preciso

falar com Ned.

- Robert, meu querido senhor... - começou Cersei.

- Eu disse s a i a m - insistiu Robert com uma sugestão da sua antiga

ferocidade. - Que parte não entendeu, mulher?

Cersei recolheu as saias e a dignidade e foi a primeira a se dirigir

para a porta. Lorde Renly e os outros a seguiram. O Grande Meistre

Pycelle deixou-se ficar, com as mãos tremendo quando ofereceu ao

rei uma taça de um espesso líquido branco.

- O leite da papoula, Vossa Graça - disse. - Beba. Para as dores -

Robert afastou a taça com uma pancada dada com as costas da mão.

- Vá embora. Dormirei em breve, velho tonto. Saia.

O Grande Meistre Pycelle lançou a Robert um olhar ferido e saiu do

quarto, arrastando os pés.

- Maldito seja, Robert - disse Ned quando ficaram sós. A perna

latejava tanto que estava quase cego de dor. Ou talvez fosse o pesar

que lhe enevoava os olhos. Deixou-se cair na cama, ao lado do amigo.

- Por que tem de ser sempre tão teimoso?

- Ah, vai se foder, Ned - disse o rei em voz rouca. - Matei o maldito,

não matei? - uma madeixa de cabelo emaranhado caiu-lhe sobre os

olhos quando os dirigiu para Ned. - Devia fazer o mesmo com você.

Não pode deixar um homem caçar em paz? Sor Robar me encontrou.

A cabeça de Gregor. Feio pensamento. Não contei a Cão de Caça.

Que Cersei o surpreenda - sua gargalhada transformou-se num

grunhido quando um espasmo de dor o atingiu. - Que os deuses

tenham misericórdia - murmurou, engolindo a dor. - A menina.

Daenerys. Só uma criança, tinha razão.. foi por isso, a menina... os

deuses mandaram o javali... mandaram-no para me punir... - o rei

tossiu, trazendo sangue à boca. - Errado, foi errado, eu... só uma

menina... Varys, Mindinho, até meu irmão... incapazes... ninguém para

me dizer n ã o , a não ser você, Ned.. só você... - ergueu a mão, um

gesto doloroso e fraco. - Papel e tinta. Ali, na mesa. Escreve o que lhe

ditar.

Ned alisou o papel no joelho e pegou a pena.

- Às vossas ordens, Vossa Graça.

- Esta é a vontade e a palavra de Robert, da Casa Baratheon, o

Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos e todo o resto... põe aí os

malditos títulos, você sabe como é. Ordeno por esta que Eddard, da

Casa Stark, Senhor de Winterfell e Mão do Rei, sirva como Senhor

Regente e Protetor do Território após a minha. . após a minha

morte... a fim de governar no meu... no meu lugar até que meu filho

Joffrey tenha idade...

- Robert... - ele quis dizer J o f f re y n ão é s e u f i lh o , mas as

palavras não vieram. A agonia estava escrita de forma muito clara no

rosto de Robert; não podia feri-lo mais. E assim Ned abaixou a

cabeça e escreveu, mas no lugar em que o rei dissera "o meu filho

Joffrey", escreveu "o meu herdeiro". O engano fê-lo sentir-se sujo. A s

m e n t i r a s q u e c o n t a m o s p o r a m o r , pensou. Q u e o s

d e u s e s m e p e r d o e m . - Que mais quer que eu escreva?

- Diz... o que tiver de ser. Proteger e defender, antigos e novos

deuses, você conhece as palavras. Escreve, Eu assino. Entregue-a ao

conselho quando eu morrer.

- Robert - Ned disse, numa voz pesada de desgosto -, não pode fazer

isto. Não morra. O reino precisa de você.

Robert pegou sua mão, apertando com força.

- Você é... um mentiroso tão mau, Ned Stark - ele disse através da

dor. - O reino.. o reino sabe.. que rei miserável eu fui. Tão mau

como Aerys, que os deuses me poupem,

- Não - Ned disse ao amigo moribundo -, não tão mau como Aerys,

Vossa Graça, Nem de perto tão mau como Aerys,

Robert conseguiu esboçar um frágil sorriso vermelho.

- Pelo menos, dirão eles... esta última coisa... isto fiz bem. Você não

me falhará. Irá agora governar. Irá detestar, mais ainda do que eu..

mas o fará bem. Já escreveu tudo?

- Sim, Vossa Graça - Ned ofereceu o papel a Robert. O rei

escrevinhou a assinatura cegamente, deixando uma mancha de

sangue na carta. - O selo deve ter testemunhas.

- Serve o javali no meu banquete fúnebre - disse o rei em voz áspera.

- Uma maçã na boca, pele seca e estalando. Comam o maldito. Não

importa se se engasgarem com ele. Prometa-me, Ned.

- Prometo - Promete-me, Neâ, disse a voz de Lyanna num eco.

- A menina - disse o rei. - Daenerys. Deixe-a viver. Se puder, se.. não

for tarde demais... fale com eles... Varys, Mindinho... não deixe que a

matem. E ajuda meu filho, Ned. Faz com que seja... melhor que eu -

estremeceu. - Que os deuses tenham misericórdia,

- Terão, meu amigo - disse Ned. - Terão,

O rei fechou os olhos e pareceu descontrair-se.

- Morto por um porco - murmurou. - Deveria rir, mas dói demais.

Ned não estava rindo.

- Devo chamá-los?

Robert fez um aceno fraco com a cabeça.

- Como quiser. Deuses, por que está tão frio aqui?

Os criados entraram correndo e apressaram-se a alimentar os fogos.

A rainha tinha partido; isto, pelo menos, era um pequeno alívio. Se

tivesse algum bom-senso, Cersei pegaria os filhos e fugiria antes do

raiar do dia, pensou Ned. Já se deixara ficar tempo demais.

O rei Robert não pareceu sentir sua falta. Pediu ao irmão Renly e ao

Grande Meistre Pycelle para servirem de testemunhas enquanto

pressionava seu selo na quente cera amarela que Ned derramara

sobre a carta.

- Dê-me agora qualquer coisa para as dores e deixe-me morrer.

Apressado, o Grande Meistre Pycelle preparou-lhe outra porção de

leite da papoula. Desta vez o rei bebeu tudo. A barba negra estava

semeada de espessas gotas brancas quando atirou a taça vazia para o

lado.

- Sonharei?

Ned deu-lhe a resposta.

- Sonhará, senhor.

- Ótimo - o rei disse, sorrindo. - Saudarei Lyanna por você, Ned.

Tome conta dos meus filhos por mim.

As palavras retorceram-se na barriga de Ned como uma faca. Por um

momento sentiu-se perdido. Não conseguia mentir. Então se lembrou

dos bastardos: a pequena Barra ao colo da mãe, Mya no Vale, Gendry

na sua forja, e todos os outros.

- Eu.. defenderei seus filhos como se fossem meus - respondeu

lentamente.

Robert fez um aceno e fechou os olhos. Ned observou o velho amigo

afundar-se suavemente nas almofadas à medida que o leite da

papoula lhe lavava o rosto da dor. Fora tomado pelo sono.

Pesadas correntes tilintaram suavemente quando o Grande Meistre

Pycelle se aproximou de Ned.

- Farei tudo o que estiver ao meu alcance, senhor, mas a ferida

gangrenou. Levaram dois dias para trazê-lo de volta. Quando o vi,

era tarde demais. Posso aliviar o sofrimento de Sua Graça, mas agora

só os deuses podem curá-lo.

- Quanto tempo? - perguntou Ned.

- Numa situação normal, ele já deveria estar morto. Nunca vi um

homem agarrar-se à vida tão ferozmente.

- Meu irmão sempre foi forte - disse Lorde Renly. - Sensato talvez

não, mas forte, sim - no calor abrasador do quarto, tinha a testa

molhada de suor. Podia ser o fantasma de Robert, ali em pé, jovem,

escuro e bonito. - Ele matou o javali. Tinha as entranhas saindo pela

barriga, mas de algum modo matou o javali - a voz estava plena de

espanto.

- Robert nunca foi homem de abandonar o campo de batalha

enquanto um inimigo permanecesse em pé - disse-lhe Ned.

A porta, Sor Barristan Selmy ainda guardava as escadas da torre.

- Meistre Pycelle deu a Robert o leite da papoula - disse-lhe Ned. -

Assegure-se de que ninguém perturbe o seu descanso sem a minha

autorização,

- Será como ordena, senhor - Sor Barristan parecia mais velho do

que a sua idade. - Falhei na minha obrigação sagrada.

- Nem mesmo o cavaleiro mais leal pode proteger um rei contra si

próprio - Ned disse. - Robert adorava caçar javalis. Vi-o matar um

milhar deles - Robert mantinha sua posição sem vacilar, de pernas

firmes, a grande lança nas mãos, e normalmente amaldiçoava o javali

enquanto este o ameaçava, esperando até o último segundo possível,

até o animal estar quase sobre ele, para matá-lo com uma única

estocada, segura e feroz. - Ninguém poderia saber que este o levaria

à morte.

- É bondoso de sua parte dizer isso, Lorde Eddard.

- Foi o próprio rei quem disse. Ele culpou o vinho. O cavaleiro

grisalho fez um aceno cansado.

- Sua Graça cambaleava na sela quando espantamos o javali para fora

do covil, mas ordenou a todos que nos mantivéssemos afastados.

- Estou curioso, Sor Barristan - perguntou Varys, em voz muito baixa

-, quem deu esse vinho ao rei?

Ned não ouvira o eunuco se aproximar, mas quando olhou em volta,

ali estava ele. Trazia uma toga de veludo negro que roçava pelo chão,

e o rosto tinha acabado de ser empoado.

- O vinho veio do odre do próprio rei - Sor Barristan respondeu.

- Só um odre? Caçar é tarefa que desperta tanta sede...

- Não os contei. Mais que um, certamente. Seu escudeiro levava-lhe

um novo odre sempre que ele pedia.

- Que rapaz tão atencioso - disse Varys - para se certificar de que

não faltava ao rei o seu refresco.

Ned tinha um sabor amargo na boca. Lembrava-se dos dois rapazes

de cabelos claros que Robert enviara à procura de uma extensão de

placa de peito. O rei contara a história a todo mundo, no banquete

daquela noite, rindo até perder o equilíbrio.

- Que escudeiro?

- O mais velho - disse Sor Barristan. - Lancei.

- Conheço bem o rapaz - disse Varys. - Um jovem vigoroso, filho de

Sor Kevan Lannister, sobrinho de Lorde Tywin e primo da rainha.

Espero que o querido rapaz não se culpe. As crianças são tão

vulneráveis na inocência da juventude, se bem me lembro.

Certamente que Varys fora jovem em tempos passados. Mas Ned

duvidava de que algum dia tivesse sido inocente.

- Por falar em crianças, Robert teve uma mudança de opinião a

respeito de Daenerys Targa-ryen. Quaisquer que sejam as

combinações que tenha feito, quero-as desfeitas. De imediato,

- Ai de mim - disse Varys. - De imediato pode ser tarde demais.

Temo que essas aves tenham levantado vôo. Mas farei o que puder,

senhor. Com vossa licença - fez uma vênia e desapareceu pelos

degraus, com os chinelos de sola mole sussurrando contra a pedra

enquanto descia.

Cayn e Tomard ajudavam Ned a atravessar a ponte quando Lorde

Renly emergiu da Fortaleza de Maegor.

- Lorde Eddard - chamou atrás de Ned -, um momento, por

obséquio. Ned parou.

- Como quiser. Renly caminhou até ele.

- Mande embora os vossos homens - estavam no centro da ponte,

com o fosso seco por baixo. O luar envolvia de prata os cruéis gumes

das hastes que lhe cobriam o fundo.

Ned fez um gesto. Tomard e Cayn inclinaram a cabeça e afastaram-

se respeitosamente. Lorde Renly olhou de relance para Sor Borós,

que se encontrava na extremidade mais distante da ponte, e para a

arcada atrás deles, onde Sor Preston montava guarda.

- Essa carta - aproximou-se. - É a regência? Meu irmão o nomeou

Protetor? - não esperou por uma resposta. - Senhor, tenho trinta

homens na minha guarda pessoal e mais alguns amigos, cavaleiros e

senhores. Dê-me uma hora e posso pôr cem espadas em suas mãos.

- E que farei eu com cem espadas, senhor?

- A t ac ar á! Agora, enquanto o castelo dorme - Renly voltou a olhar

para trás, para Sor Borós, e abaixou a voz, transformando-a num

murmúrio urgente. - Temos de afastar Joffrey da mãe e ficar com ele

na mão. Protetor ou não, o homem que possuir o rei possui o reino.

Devíamos capturar também Myrcella e Tommen. Com os filhos em

nossa posse, Cersei não se atreverá a se opor a nós. O conselho o

confirmará como Lorde Protetor e colocará Joffrey sob sua guarda.

Ned o olhou friamente.

- Robert ainda não está morto. Os deuses podem poupá-lo. Se não o

fizerem, convocarei o conselho para escutar suas últimas palavras e

refletir sobre o assunto da sucessão, mas não desonrarei suas últimas

horas na terra derramando sangue em seus salões e arrancando

crianças assustadas de suas camas.

Lorde Renly deu um passo para trás, tenso como a corda de um

arco.

- Quanto mais demorarmos, mais tempo tem Cersei para se

preparar. Quando Robert morrer, poderá ser tarde demais... para

ambos.

- Então devíamos rezar para que Robert não morra.

- Há poucas chances de isso acontecer - Renly justificou.

- Por vezes os deuses são misericordiosos.

- Mas os Lannister não são - Lorde Renly virou-se e voltou a

atravessar o fosso, dirigindo-se à torre onde o irmão estava

morrendo.

Quando Ned regressou aos seus aposentos, sentia-se cansado e

desolado, mas não se permitia voltar ao sono, agora não. Q u a n d o

s e j o g a o j o g o d o s t r o n o s , g a n h a - s e o u m o r r e , dissera-

lhe Cersei Lannister no bosque sagrado. Deu por si sem saber se

agira corretamente ao recusar a oferta de Lorde Renly. Não tinha

gosto algum por aquelas intrigas, e não havia honra em ameaçar

crianças, no entanto... se Cersei escolhesse lutar em vez de fugir,

podia bem necessitar das cem espadas de Renly, e de mais ainda.

- Quero Mindinho - disse a Cayn. - Se não estiver em seus aposentos,

leve os homens que forem necessários e o procure em todas as

tabernas e bordéis de Porto Real até encontrá-lo. Quero vê-lo antes

do raiar do dia - Cayn fez uma reverência e retirou-se, e Ned virou-

se para Tomard. - A B r u x a d o s V e n t o s zarpa na maré da noite.

Já escolheu a escolta?

- Dez homens, com Porther no comando.

- Vinte, e estará você no comando - Ned ordenou. Porther era um

homem corajoso, mas teimoso. Queria um homem mais sólido e

sensível para vigiar as filhas.

- Como queira, senhor - Tom respondeu. - Não posso dizer que fique

triste por dar as costas a este lugar. Tenho saudades da mulher.

- Passará perto da Pedra do Dragão quando virar para o norte.

Quero que entregue uma carta em meu nome.

Tom fez um ar apreensivo.

- Em Pedra do Dragão, senhor? - a fortaleza insular da Casa

Targaryen tinha uma reputação sinistra.

- Diz ao Capitão Qos para hastear a minha bandeira assim que

estiver à vista da ilha. Eles poderão estar desconfiados de visitantes

inesperados. Se ele se mostrar relutante, ofereça-lhe o que quiser.

Vou lhe dar uma carta para colocar na mão de Lorde Stannis

Baratheon. De mais ninguém. Nem do intendente, nem do capitão da

guarda, nem da senhora sua esposa, só do próprio Lorde Stannis.

- As vossas ordens, senhor.

Depois de Tomard deixá-lo, Lorde Eddard Stark sentou-se, de olhos

fixos na chama de uma vela que ardia ao seu lado sobre a mesa. Por

um momento foi subjugado pelo desgosto. Não desejou nada com

mais força do que ir até o bosque sagrado, ajoelhar-se perante a

árvore-coração e orar pela vida de Robert Baratheon, que fora mais

que um irmão para ele. Mais tarde, os homens sussurrariam que

Eddard Stark traíra a amizade do seu rei e lhe deserdara os filhos; ele

só podia ter esperança de que os deuses fossem mais sábios, e de

que Robert soubesse da verdade nas terras de além-túmulo.

Ned pegou a última carta do rei. Um rolo de quebradiço pergaminho

branco, selado com cera dourada, algumas curtas palavras e uma

mancha de sangue. Como era pequena a diferença entre vitória e

derrota, entre a vida e a morte.

Puxou uma folha limpa de papel e mergulhou a pena no tinteiro,

P a r a S u a G r a ç a , S t a n n i s d a C a s a B a r a t h e o n , escreveu,

Q u a n d o r e c e b e r e s t a c a r t a , s e u i r m ã o R o b e r t , n o s s o

r e i d u r a n t e o s ú l t i m o s q u i n z e a n o s , e s t a r á m o r t o , F o i

f e r i d o p o r u m j a v a l i e n q u a n t o c a ç a v a n o b o s q u e d o

r e i . . .

As letras pareceram estremecer e contorcer-se no papel quando a

mão abrandou e parou. Lorde Tywin e Sor Jaime não eram homens

para cair docilmente em desgraça; mais depressa lutariam do que

fugiriam. Não havia dúvida de que Lorde Stannis se tornara

cuidadoso depois do assassinato de Jon Arryn, mas era imperativo

que embarcasse imediatamente para Porto Real com todo o seu

poderio, antes que os Lannister se pusessem em marcha.

Ned escolheu cada palavra com cuidado. Quando terminou, assinou a

carta como E d d a r d S t a r k , S e n h o r d e W i n t e r f e l l , M ã o d o

R e i e P r o t e t o r d o T e r r i t ó r i o , secou a tinta no papel, dobrou-

o duas vezes e fundiu a cera para selar a carta na chama da vela.

Sua regência seria curta, refletiu enquanto a cera amolecia. O novo

rei escolheria sua própria Mão. Ned estaria livre para ir para casa.

Pensar em Winterfell trouxe-lhe um sorriso abatido no rosto.

Desejava ouvir uma vez mais o riso de Bran, ir caçar com Robb e os

falcões, observar Rickon brincando. Desejava cair num sono sem

sonhos em sua própria cama, com os braços bem apertados em

torno de sua senhora, Catelyn.

Cayn regressou no momento em que ele se encontrava pressionando

o selo do lobo gigante contra a cera mole e branca. Desmond estava

com ele, e entre ambos encontrava-se Mindinho. Ned agradeceu aos

guardas e os mandou embora.

Lorde Petyr trazia uma túnica de veludo azul com mangas estufadas

e uma capa prateada com desenho de tejos.

- Suponho que devo congratulá-lo - disse enquanto se sentava. Ned

franziu a testa.

- O rei está ferido e próximo da morte.

- Eu sei - disse Mindinho. - E também sei que Robert o nomeou

Protetor do Território. Os olhos de Ned desviaram-se para a carta do

rei pousada sobre a mesa ao seu lado, com o selo inteiro.

- E como é que sabe disso, senhor?

- Varys sugeriu - disse Mindinho -, e o senhor acabou de confirmar.

A boca de Ned retorceu-se de ira.

- Maldito seja Varys e seus passarinhos. Catelyn falou a verdade, o

homem possui alguma arte negra. Não confio nele.

- Excelente. Está aprendendo - Mindinho inclinou-se para a frente. -

No entanto, aposto que não me arrastou até aqui, na noite cerrada,

para discutir sobre o eunuco,

- Não - admitiu Ned. - Conheço o segredo pelo qual Jon Arryn foi

assassinado por saber, Robert não deixará nenhum filho legítimo.

Joffrey e Tommen são bastardos de Jaime Lannister, nascidos de sua

união incestuosa com a rainha.

Mindinho ergueu uma sobrancelha.

- Chocante - disse, num tom que sugeria que não estava

absolutamente nada chocado. - E a menina também? Sem dúvida.

Então, quando o rei morrer...

- O trono passa por direito para Lorde Stannis, o mais velho dos dois

irmãos de Robert. Lorde Petyr afagou a barba pontiaguda enquanto

refletia sobre o assunto.

- É o que parece. A não ser que...

- A n ã o se r o q uê , senhor? Não h á. p a re c e aqui. Stannis é o

herdeiro. Nada pode alterar isso.

- Stannis não pode tomar o trono sem a sua ajuda. Se for sensato,

assegure-se de que a sucessão seja de Joffrey.

Ned lançou-lhe um olhar de pedra.

- Será que não possui nem um farrapo de honra?

- Ah, um fa r ra po , certamente - respondeu Mindinho com

negligência. - Escute-me. Stannis não é seu amigo, nem meu. Até os

irmãos dificilmente o suportam. O homem é de ferro, duro e

inflexível. Elegerá uma nova Mão e um novo conselho, com certeza.

Sem dúvida que lhe agradecerá por lhe entregar a coroa, mas não lhe

terá amizade por isso. E sua ascensão significará a guerra. Stannis

não ficará sossegado no trono enquanto Cersei e seus bastardos não

estiverem mortos. Julga que Lorde Tywin ficará indolentemente

sentado enquanto tiram as medidas da cabeça da filha para espetá-la

numa lança? O Rochedo Casterly se erguerá em armas, e não estará

isolado. Robert achou por bem perdoar homens que serviram o Rei

Aerys, desde que lhe jurassem fidelidade. Stannis é menos clemente.

Não deve ter esquecido o cerco a Ponta Tempestade; e os Senhores

Tyrell e Redwyne não se atrevem a esquecê-lo. Cada homem que

lutou sob o estandarte do dragão ou se revoltou com Balon Greyjoy

terá bons motivos para temer. Sente Stannis no Trono de Ferro e

garanto-lhe que o reino sangrará. Olhe agora para o outro lado da

moeda. Joffrey tem apenas doze anos, e Robert deu a regência ao

s e n h o r . É a Mão do Rei e Protetor do Território. O poder é seu,

Lorde Stark. Tudo o que precisa fazer é estender a mão e apanhá-lo.

Faça a paz com os Lannister. Liberte o Duende. Case Joffrey com a

sua Sansa, Case vossa filha mais nova com o Príncipe Tommen e seu

herdeiro com Myrcella. Passarão quatro anos até que o Príncipe

Joffrey seja maior de idade. A essa altura, ele o verá como um

segundo pai, e se não o fizer, bem.. quatro anos é um tempo

bastante longo, senhor. Suficientemente longo para nos vermos livres

de Lorde Stannis. Então, se Joffrey se revelar problemático, nós

poderemos revelar seu pequeno segredo e colocar Lorde Renly no

trono.

- N ó s? - Ned repetiu. Mindinho encolheu os ombros.

- Precisará de alguém para partilhar seus fardos. Asseguro-lhe que

meu preço será modesto.

- Seu preço - a voz de Ned era gelo. - Lorde Baelish, o que está

sugerindo é traição.

- Só se perdermos.

- Esquece-se - disse-lhe Ned -, esquece-se de Jon Arryn. Esquece-se de

Jory Cassei. E se esquece disto - desembainhou o punhal e o pousou

na mesa entre eles; um bocado de osso de dragão e de aço valiriano,

tão afiado como a diferença entre o certo e o errado, entre a verdade

e a mentira, entre a vida e a morte. - Eles enviaram um homem

p a r a c o r t a r a g a r g a n t a d o m e u f i l h o , Lorde Baelish.

Mindinho suspirou.

- Temo que me tenha realmente esquecido, senhor. Peço-lhe perdão.

Por um momento não me lembrei de que estava falando com um

Stark - a boca torceu-se. - Será então Stannis e a guerra?

- Não é uma escolha. Stannis é o herdeiro.

- Longe de mim entrar em disputa com o Lorde Protetor. Que quer

então de mim? Não é certamente a minha sabedoria.

- Farei o possível para esquecer a sua.. sabedoria - disse Ned com

desagrado. - Chamei-o aqui para pedir a ajuda que prometeu a

Catelyn. É uma hora perigosa para todos nós. Robert nomeou-me

Protetor, é verdade, mas aos olhos do mundo Joffrey é ainda seu filho

e herdeiro. A rainha tem uma dúzia de cavaleiros e uma centena de

homens de armas que farão tudo o que ordenar... o bastante para

esmagar o que resta da guarda de minha casa. E pelo que sei, seu

irmão Jaime pode bem vir a caminho de Porto Real neste mesmo

momento, à frente de uma tropa Lannister.

- E o senhor sem um exército - Mindinho brincou com o punhal

sobre a mesa, fazendo-o girar lentamente com o dedo. - Pouco amor

se perde entre Lorde Renly e os Lannister. Bronze Yohn Royce, Sor

Balon Swann, Sor Loras, a Senhora Tanda, os gêmeos Redwyne..

todos eles têm um séquito de cavaleiros e soldados aqui na corte.

- Renly tem trinta homens na sua guarda pessoal, e os outros, ainda

menos. Não chega, mesmo se tivesse certeza de que todos eles

escolheriam aliar-se a mim. Tenho de controlar os homens de manto

dourado. A Patrulha da Cidade tem dois mil homens que juraram

defender o castelo, a cidade e a paz do rei.

- Ah, mas quando a rainha proclamar um rei e outro Mão, de quem

será a paz que eles protegerão? - Lorde Petyr deu um piparote no

punhal, pondo-o a girar no mesmo lugar. Girou e girou, oscilando

enquanto rodopiava. Quando por fim abrandou e parou, a ponta

apontou para Mindinho. - Ora, aí está a resposta - disse ele, sorrindo.

- Seguirão o homem que lhes paga - recostou-se e olhou diretamente

para o rosto de Ned, com os olhos cinza-esverdeados brilhantes de

troça. - Use sua honra como uma armadura, Stark. Julga que o

mantém a salvo, mas tudo o que ela faz é torná-lo pesado e

dificultar-lhe os movimentos. Olhe para você agora. Sabe por que

motivo me convocou a vir até aqui. Sabe o que quer me pedir para

fazer. Sabe que isso tem de ser feito.. mas não é h o n r o s o , por isso

as palavras se prendem em sua garganta.

O pescoço de Ned estava rígido de tensão. Por um momento ficou

tão zangado que não teve suficiente confiança em si próprio para

falar.

Mindinho soltou uma gargalhada.

- Devia obrigá-lo a dizê-lo, mas seria uma crueldade.. Por isso, nada

tema, meu bom senhor. Em nome do amor que sinto por Catelyn,

falarei com Janos Slynt agora mesmo e me assegurarei de que a

Patrulha da Cidade seja sua. Seis mil peças de ouro deverão bastar.

Um terço para o Comandante, um terço para os oficiais, um terço

para os homens. Talvez conseguíssemos comprados por metade desse

preço, mas prefiro não arriscar - sorrindo, pegou o punhal e o

ofereceu a Ned, com o cabo para a frente.


Jon


Jon comia bolo de maçã e morcela de café da manhã quando

Samwell Tarly se deixou cair no banco.

- Fui chamado ao septo - Sam disse num sussurro excitado. - Vão

tirar-me do treino. Vou ser feito irmão com você. Acredita?

- Não! E verdade?

- É verdade. Vou ajudar Meistre Aemon com a biblioteca e as aves.

Ele precisa de alguém que saiba ler e escrever cartas.

- Será bom nisso - disse Jon, sorrindo. Sam lançou em volta uma

olhadela ansiosa.

- Já está na hora? Não devo me atrasar, eles podem mudar de idéia -

mostrou-se bastante vigoroso quando atravessaram o pátio salpicado

de capim. O dia estava morno e ensolarado. Regatos escorriam pelos

lados da Muralha, e o gelo parecia cintilar.

Dentro do septo, o grande cristal capturava a luz da manhã que

jorrava através da janela virada para o sul e a espalhava num arco-

íris pelo altar. A boca de Pyp escancarou-se ao ver Sam, e Sapo

acotovelou Grenn nas costelas, mas ninguém se atreveu a dizer uma

palavra. Septão Celladar fazia oscilar um turíbulo, enchendo o ar de

incenso odorífero que fazia lembrar a Jon o pequeno septo da

Senhora Stark em Winterfell. Pela primeira vez o septão parecia estar

sóbrio.

Os grandes oficiais chegaram em conjunto: Meistre Aemon, apoiado

em Clydas, Sor Alliser, com olhos frios e sombrio, o Senhor

Comandante Mormont, resplandecente num gibão de lã negra com

presilhas de prata em forma de garra de urso. Atrás deles vinham os

membros superiores das três ordens: Bowen Marsh, o Senhor

Intendente com a sua cara vermelha, o Primeiro Construtor, Othell

Yarwyck, e Sor Jaremy Rykker, que comandava os patrulheiros na

ausência de Benjen Stark.

Mormont parou em frente do altar, com o arco-íris brilhando sobre a

grande calva.

- Chegaram até nós como foras da lei - começou -, caçadores

furtivos, violadores, devedores, assassinos e ladrões. Chegaram até

nós como crianças. Chegaram até nós sós, acorrentados, sem amigos

nem honra. Chegaram até nós ricos e chegaram até nós pobres.

Alguns ostentam os nomes de Casas orgulhosas. Outros têm apenas

nomes de bastardos ou não têm nome algum. Não importa. Tudo

isso agora é passado. Na Muralha, somos todos uma Casa. Ao cair da

noite, quando o sol se puser e enfrentarmos a noite que se aproxima,

farão os seus votos. Desse momento em diante, serão Irmãos

Juramentados da Patrulha da Noite. Vossos crimes serão limpos e

vossas dívidas, perdoadas. De igual modo, devem também limpar-se

de suas antigas lealdades, pôr de lado seus ressentimentos, esquecer

igualmente as antigas ofensas e os antigos amores. Aqui começam de

novo. Um homem da Patrulha da Noite vive sua vida pelo reino. Não

por um rei, nem por um senhor, nem pela honra desta ou daquela

Casa, nem por ouro ou por glória ou pelo amor de uma mulher, mas

pelo reino e por todas as pessoas que há nele. Um homem da

Patrulha da Noite não toma uma esposa nem gera filhos. Nossa

esposa é o dever. Nossa amante é a honra. E vocês são os únicos

filhos que algum dia conheceremos. Aprenderam as palavras do voto.

E preciso refletir com cuidado antes de dizê-las, pois uma vez

envergado o negro, não haverá caminho de volta. O castigo pela

deserção é a morte - o Velho Urso fez uma pausa momentânea antes

de dizer:

- Existe alguém entre vocês que deseja deixar a nossa companhia? Se

sim, vá agora, e ninguém pensará menos de você.

Ninguém se moveu.

- Muito bem - disse Mormont. - Podem fazer seus votos aqui ao cair

da noite, perante Septão Celladar e o chefe da sua Ordem, Algum de

vocês é fiel aos velhos deuses?

Jon levantou-se.

- Eu sou, senhor.

- Suponho que desejará proferir suas palavras perante uma árvore-

coração, como fez seu tio

- disse Mormont.

- Sim, senhor - disse Jon. Os deuses do septo não tinham nada a ver

com ele; o sangue dos Primeiros Homens corria nas veias dos Stark.

Ouviu Grenn sussurrar atrás dele.

- Não há aqui um bosque sagrado. Ou há? Nunca vi um bosque

sagrado.

- Não veria uma manada de auroques até que o pisoteassem contra a

neve - Pyp sussurrou em resposta.

- Veria, sim - insistiu Grenn. - Eu os veria a longa distância. O

próprio Mormont confirmou as dúvidas de Grenn.

- Castelo Negro não tem necessidade de um bosque sagrado. Para lá

da Muralha, a Floresta Assombrada encontra-se como se encontrava

na Idade da Alvorada, muito antes de os ândalos trazerem os Sete

através do mar estreito. Encontrará um bosque de represeiros a meia

légua deste local, e talvez encontre lá também os seus deuses.

- Senhor - a voz fez Jon olhar para trás, surpreendido. Samwell Tarly

estava de pé. O gordo rapaz esfregou as palmas suadas na túnica. -

Poderei... poderei ir também? Dizer as minhas palavras junto a essa

árvore-coração?

- A Casa Tarly também é fiel dos velhos deuses? - perguntou

Mormont.

- Não, senhor - Sam respondeu numa voz fina e nervosa. Jon sabia

que os grandes oficiais o assustavam, e o Velho Urso acima de todos.

- Recebi o nome à luz dos Sete no septo de Monte Chifre, tal como

meu pai, e o pai dele, e todos os Tarly ao longo de mil anos.

- Por que quer abandonar os deuses de seu pai e sua Casa? - quis

saber Sor Jaremy Rykker.

- A Patrulha da Noite é agora a minha Casa - Sam respondeu. - Os

Sete nunca responderam às minhas preces. Talvez os deuses antigos

o façam.

- Como quiser, rapaz - disse Mormont. Sam voltou a se sentar e o

mesmo fez Jon. - Colocamos cada um de vocês numa Ordem que

mais se adapta às nossas necessidades e aos seus pontos fortes e

perícias - Bowen Marsh avançou e entregou-lhe um papel. O Senhor

Comandante desenrolou-o e começou a ler. - Halder, para os

construtores - começou. Halder fez um aceno rígido de aprovação. -

Grenn, para os patrulheiros. Albett, para os construtores. Pypar, para

os patrulheiros - Pyp olhou para Jon e sacudiu as orelhas. - Samwell,

para os intendentes - Sam descaiu de alívio, limpando a testa com

um lenço de seda. - Matthar, para os patrulheiros. Dae-ron, para os

intendentes. Todder, para os patrulheiros. Jon, para os intendentes.

Os intendentes? Por um momento Jon não conseguiu acreditar no

que ouvira. Mormont devia ter lido errado. Começou a erguer-se, a

abrir a boca, a dizer-lhes que tinha havido um engano.. e então viu

que Sor Alliser o estudava, com os olhos brilhantes como duas lascas

de obsidiana, e compreendeu.

O Velho Urso enrolou o papel.

- Seus chefes irão instruí-los quanto aos seus deveres. Que todos os

deuses os protejam, irmãos - o Senhor Comandante concedeu-lhes

uma meia reverência e se retirou. Sor Alliser foi com ele, com um

tênue sorriso no rosto. Jon nunca vira o mestre de armas com um ar

tão feliz.

- Patrulheiros, comigo - gritou Sor Jaremy Rykker depois de eles

partirem. Pyp não tirou os olhos de Jon enquanto se pôs lentamente

em pé. Tinha as orelhas vermelhas. Grenn, com um largo sorriso, não

parecia compreender que havia algo de errado. Matt e Sapo

juntaram-se a eles e saíram do septo atrás de Sor Jaremy.

- Construtores - anunciou Othell Yarwyck, com seu queixo em forma

de lanterna, Halder e Albett saíram em seu rastro.

Jon olhou em volta com incredulidade nauseada. Os olhos cegos de

Meistre Aemon estavam erguidos para a luz que não podia ver. O

septão arrumava cristais no altar. Só Sam e Daeron permaneciam

nos bancos; um gordo, um cantor.,. e ele.

O Senhor Intendente Bowen Marsh esfregou as mãos roliças.

- Samwell, vai prestar assistência a Meistre Aemon no viveiro dos

corvos e na biblioteca. Chett vai para os canis, ajudar com os cães de

caça. Deverá ter sua cela, para estar perto do meistre noite e dia.

Espero que tome conta dele bem. É muito velho e muito precioso

para nós. Daeron, dizem-me que cantou à mesa de muitos grandes

senhores e partilhou da sua comida e bebida. Vamos enviá-lo para

Atalaialeste. Pode ser que o seu paladar seja útil a Cotter Pyke

quando as galés mercantes chegarem para fazer negócio. Estamos

pagando demais por carne salgada e peixe de salmoura, e a qualidade

do azeite que temos recebido tem sido tenebrosa. Apresente-se a

Bóreas quando chegar, ele o manterá ocupado entre navios.

Marsh virou seu sorriso para Jon.

- O Senhor Comandante Mormont requisitou-o como seu intendente

pessoal, Jon. Dormirá numa cela sob seus aposentos, na torre do

Senhor Comandante.

- E quais serão meus deveres? - perguntou Jon em tom cortante. -

Servirei as refeições do Senhor Comandante, o ajudarei a prender

suas roupas, irei buscar água quente para seu banho?

- Com certeza - Marsh franziu as sobrancelhas perante o tom de Jon.

- E transmitirá suas mensagens, manterá um fogo ardendo em seus

aposentos, trocará seus lençóis e cobertores todos os dias e fará tudo

o que o Senhor Comandante lhe ordenar,

- Toma-me por um criado?

- Não - disse Meistre Aemon do fundo do septo. Clydas o ajudou a

pôr-se em pé. - Toma-mos-o por um homem da Patrulha da Noite...

mas talvez nos tivéssemos enganado.

Tudo o quejón conseguiu fazer foi impedir-se de sair. Esperariam

que batesse leite para fazer manteiga e cosesse gibões como uma

moça para o resto de seus dias?

- Posso ir? - perguntou rigidamente.

- Como quiser - respondeu Bowen Marsh.

Daeron e Sam saíram com ele. Desceram em silêncio até o pátio. Lá

fora, Jon olhou a Muralha que brilhava ao sol, com o gelo que

derretia escorrendo pelo flanco numa centena de estreitos dedos. A

raiva de Jon era tanta que teria esmagado tudo aquilo num instante,

e o mundo que se danasse.

- Jon - disse Samwell Tarly num tom excitado. - Espere. Não percebe

o que eles estão fazendo?

Jon virou-se para ele, em fúria.

- Vejo a maldita mão de Sor Alliser, é o que vejo. Quis me

envergonhar, e conseguiu. Daeron deu-lhe um olhar carrancudo.

- Ser intendente é bom para gente como você e eu, Sam, mas não

para Lorde Snow.

- Sou melhor espadachim e melhor cavaleiro que qualquer um de

vocês - exclamou Jon em resposta. - Não é j u s t o l

-Justo? - disse Daeron em tom de escárnio. - A moça estava à minha

espera, nua como no dia em que nascera. Puxou-me pela janela, e

fala do que é j u s t o ? - e afastou-se.

- Não há vergonha em ser um intendente - disse Sam.

- Pensa que quero passar o resto da vida lavando as roupas de baixo

de um velho?

- O velho é o Senhor Comandante da Patrulha da Noite - relembrou-

lhe Sam. - Estará com ele dia e noite. Sim, servirá seu vinho e

verificará se sua roupa de cama está lavada, mas também

transportará suas cartas, o ajudará em reuniões, servirá como seu

escudeiro em batalha. Estará tão perto dele como uma sombra.

Saberá de tudo, fará parte de tudo.. e o Senhor Intendente disse que

Mormont o pediu p e s s o a l m e n t e . Quando eu era pequeno, meu

pai costumava insistir que o ajudasse na sala de audiências sempre

que as concedesse. Quando ia a Jardim de Cima dobrar o joelho ao

Lorde Tyrell, obrigava-me a ir também. Mas mais tarde começou a

levar Dickon e me deixar em casa, e já não se importava se eu estava

presente em suas audiências, desde que Dickon lá estivesse. Queria

seu h e r d e i r o a seu lado, não vê? Para observar e ouvir, e aprender

com aquilo que fazia. Aposto que é por isso que Lorde Mormont te

requisitou, Jon. Que outra coisa poderia ser? Quer prepará-lo para o

c o m a n d o 1 .

Jon foi apanhado de surpresa. Era verdade, Lorde Eddard fizera com

frequência com que Robb participasse de seus conselhos em

Winterfell. Poderia Sam ter razão? Mesmo um bastardo podia

ascender a grande altura na Patrulha da Noite, dizia-se.

- Nunca pedi isto - disse teimosamente.

- Nenhum de nós está aqui por ter p e d i d o - relembrou-lhe Sam. E

de súbito Jon Snow sentiu-se envergonhado.

Covarde ou não, Samwell Tarly encontrara a coragem de enfrentar

seu destino como um homem. N a M u r a l h a , u m h o m e m s ó

o b t é m a q u i l o q u e g a n h a , dissera Benjen Stark na última noite

em que Jon o vira vivo. N ã o é n e n h u m p a t r u l h e i r o . J o n , n ã o

p a s s a d e u m r a p a z v e r d e a i n d a c h e i r a n d o a v e r ã o .

Ouvira dizer que os bastardos cresciam mais depressa que as outras

crianças; na Muralha, ou se crescia ou se morria.

Jon soltou um profundo suspiro.

- Tem razão. Estava agindo como uma criança.

- Então ficará e dirá as suas palavras comigo?

- Os velhos deuses estão à nossa espera - obrigou-se a sorrir.

Partiram ao fim da tarde. A Muralha não tinha portões propriamente

ditos, nem ali em Castelo Negro nem em ponto algum das suas

trezentas milhas. Levaram os cavalos por um túnel estreito cortado

no gelo, com paredes frias e escuras apertando-se à volta deles

enquanto a passagem se retorcia e curvava. Três vezes viram o

caminho bloqueado por grades de ferro, e tiveram que parar

enquanto Bowen Marsh pegava as chaves e destrancava as maciças

correntes que as seguravam. Jon conseguia sentir o vasto peso que se

encontrava sobre sua cabeça enquanto esperava atrás do Senhor

Intendente. O ar estava mais frio que uma tumba, e mais parado

também. Sentiu um estranho alívio quando voltaram a emergir para

a luz da tarde do lado norte da Muralha.

Sam piscou com o súbito clarão e olhou em volta com apreensão.

- Os selvagens... eles não... eles nunca se atreveriam a aproximar-se

tanto da Muralha, não?

- Nunca o fizeram - Jon subiu na sela. Depois de Bowen Marsh e sua

escolta de patrulheiros terem montado, Jon pôs dois dedos na boca e

assobiou. Fantasma saiu aos saltos do túnel.

O cavalo do Senhor Intendente relinchou e afastou-se do lobo

selvagem.

- Pretende trazer esse animal?

- Sim, senhor - disse Jon. A cabeça de Fantasma ergueu-se, Parecia

saborear o ar. Num piscar de olhos tinha partido, correndo através

do largo campo coberto de ervas daninhas até desaparecer entre as

árvores.

Uma vez na floresta, encontraram-se num mundo diferente. Jon

caçara frequentemente com o pai, Jory e o irmão Robb. Conhecia a

Mata de Lobos que rodeava Winterfell tão bem como qualquer outro

homem. A floresta assombrada era muito parecida, mas a sensação

que projetava era muito diferente.

Talvez tudo estivesse no conhecimento. Tinham cavalgado até depois

do fim do mundo; de certa forma, isso mudava tudo. Cada sombra

parecia mais escura, cada som, mais agourento. As árvores

apertavam-se e afastavam a luz do sol poente. Uma fina crosta de

neve fendia-se sob os cascos dos cavalos, com um som que fazia

lembrar o quebrar de ossos. Quando o vento fazia restolhar as folhas,

era como se um dedo gelado desenhasse um percurso ao longo da

espinha de Jon. A Muralha estava nas suas costas, e só os deuses

sabiam o que tinham à frente.

O sol afundava-se atrás das árvores quando alcançaram seu destino,

uma pequena clareira nas profundezas da floresta, onde nove

represeiros cresciam num círculo grosseiro. Jon prendeu a respiração

e viu Sam Tarly olhar fixamente. Mesmo na Mata de Lobos, nunca se

viam mais de duas ou três das árvores brancas crescerem juntas; um

grupo de nove era inaudito. O chão da floresta encontrava-se

atapetado de folhas caídas, vermelhas como sangue no topo, negras

de podridão por baixo. Os grandes troncos lisos eram pálidos como

ossos, e nove caras olhavam para dentro. A seiva seca que se

encrostou nos olhos era vermelha e dura como rubi. Bowen Marsh

ordenou-lhes que deixassem os cavalos fora do círculo.

- Este é um lugar sagrado, não o profanaremos.

Quando entraram no bosque, Samwell Tarly virou-se lentamente,

olhando para uma das caras de cada vez. Não havia duas iguais.

- Eles nos observam - sussurrou. - Os deuses antigos.

- Sim - Jon ajoelhou, e Sam ajoelhou a seu lado.

Proferiram as palavras em conjunto, enquanto a última luz

desaparecia a oeste e o dia cinzento se transformava em noite negra.

- Escutem as minhas palavras e testemunhem os meus votos -

recitaram, com as vozes enchendo o bosque penumbroso. - A noite

chega, e agora começa a minha vigia. Não terminará até minha

morte. Não tomarei esposa, não possuirei terras, não gerarei filhos.

Não usarei coroas e não conquistarei glórias. Viverei e morrerei no

meu posto. Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas.

Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada,

a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que defende os

reinos dos homens. Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da

Noite, por esta noite e por todas as noites que estão para vir.

A floresta caiu no silêncio.

- Ajoelharam como rapazes - entoou solenemente Bowen Marsh. -

Ergueram-se agora como homens da Patrulha da Noite.

Jon estendeu a mão para ajudar Sam a pôr-se de novo em pé. Os

patrulheiros aproximaram--se para oferecer sorrisos e parabéns;

todos, menos o velho e áspero lenhador Dywen,

- É melhor nos colocarmos a caminho, senhor - disse ele a Bowen

Marsh. - A escuridão está caindo e há qualquer coisa no cheiro da

noite que não me agrada.

E, de repente, Fantasma estava de volta, caminhando silenciosamente

entre dois represeiros. P e l o b r a n c o e o l h o s v e r m e l h o s , Jon

percebeu, intranquilo. C o m o a s á r v o r e s . . . O lobo tinha qualquer

coisa entre as mandíbulas. Qualquer coisa negra.

- Que tem ele ali? - perguntou Bowen Marsh, franzindo a testa.

- A mim, Fantasma. - Jon ajoelhou. - Traga aqui.

O lobo selvagem trotou até ele. Jon ouviu a brusca inspiração de

Samwell Tarly.

- Que os deuses sejam bons - murmurou Dywen. - Isto é uma mão.


Eddard


A luz cinzenta da alvorada jorrava através de sua janela quando o

trovão dos cascos acordou Eddard Stark de seu breve sono exausto.

Ergueu a cabeça da mesa para olhar para o pátio. Lá embaixo,

homens revestidos de cota de malha e mantos carmesins faziam a

manhã ressoar ao som de espadas e derrubavam falsos guerreiros

recheados de palha. Ned observou Sandor Clegane, que galopava pela

dura terra batida e espetava uma lança de ponta de aço na cabeça de

um espantalho. A tela foi rompida e palha se espalhou ao som das

piadas e pragas dos guardas Lannister.

S e r á e s t e b r a v o e s p e t á c u l o p a r a m e u b e n e f í c i o ? ,

perguntou a si mesmo. Se fosse, Cersei era mais tola do que ele

imaginara. M a l d i t a s e j a , pensou, p o r q u e n ã o f u g i u e s t a

m u l h e r ? D e i - l h e o p o r t u n i d a d e a t r á s d e o p o r t u n i d a d e . . .

A manhã estava encoberta e sombria. Ned tomou o café da manhã

com as filhas e Septã Mordane. Sansa, ainda desconsolada, ficou

olhando, carrancuda, para a comida e recusou-se a comer, mas Arya

devorou tudo o que lhe foi posto à frente.

- Syrio diz que temos tempo para uma última lição antes de

embarcarmos esta noite - ela disse. - Posso, pai? Tenho todas as

coisas embaladas.

- Uma lição curta, e assegure-se de que terá tempo para tomar

banho e mudar de roupa. Quero-a pronta para partir ao meio-dia,

entendido?

- Ao meio-dia - Arya confirmou. Sansa ergueu os olhos da comida.

- Se ela pode ter uma lição de dança, por que não me deixa dizer

adeus ao Príncipe Joffrey?

- De bom grado a acompanharia, Lorde Eddard - ofereceu-se Septã

Mordane. - Não haveria hipótese de ela perder o navio.

- Não seria sensato encontrar Joffrey agora, Sansa. Lamento. Os olhos

de Sansa encheram-se de lágrimas.

- Mas p o r q uê ?

- Sansa, o senhor seu pai sabe o que é melhor - disse Septã Mordane.

- Não deve questionar suas decisões.

- Não é ju s t o l - Sansa empurrou a mesa, derrubou a cadeira e fugiu

chorando do aposento privado,

Septã Mordane ergueu-se, mas Ned fez-lhe sinal para que voltasse a

se sentar.

- Deixe-a ir, septã. Tentarei fazê-la compreender quando estivermos

todos a salvo de volta a Winterfell - a septã inclinou a cabeça e

sentou-se para terminar a refeição.

Uma hora mais tarde, o Grande Meistre Pycelle foi encontrar Eddard

Stark em seu aposento privado. Trazia os ombros caídos, como se o

peso da grande corrente de meistre em volta do pescoço se tivesse

tornado grande demais para ele.

- Senhor - disse -, o Rei Robert partiu. Que os deuses lhe dêem

descanso.

- Não - respondeu Ned. - Ele detestava o descanso. Que os deuses lhe

dêem amor e risos, e a alegria de batalhas justas - era estranho como

se sentia vazio. Já esperava aquela visita, mas com aquelas palavras

algo morrera dentro dele. Teria trocado todos os seus títulos pela

liberdade de chorar.. mas era a Mão de Robert, e a hora que temia

chegara. - Tenha a bondade de convocar os membros do conselho

aqui para os meus aposentos - disse a Pycelle. A Torre da Mão estava

tão segura quanto ele e Tomard a tinham conseguido pôr. Não podia

dizer o mesmo das salas do conselho.

- Senhor? - Pycelle pestanejou. - Certamente que os assuntos do

reino podem esperar até amanhã, quando o nosso luto não estiver

tão fresco.

Ned mostrou-se calmo, mas firme.

- Temo que tenhamos de nos reunir de imediato. Pycelle fez uma

reverência.

- Às ordens da Mão - chamou os criados e os despachou

rapidamente, e em seguida aceitou com gratidão a oferta que Ned

lhe fez de uma cadeira e de uma taça de cerveja doce.

Sor Barristan Selmy foi o primeiro a responder à convocatória,

imaculado no seu manto branco e escamas esmaltadas:

- Senhores - disse -, o meu lugar é agora ao lado do jovem rei. Peço

licença para cuidar dele.

- O seu lugar é aqui, Sor Barristan - disse-lhe Ned.

Mindinho chegou em seguida, ainda vestido com o veludo azul e a

capa prateada com os tejos que usara na noite anterior, com as botas

empoeiradas de andar a cavalo.

- Senhores - disse, sorrindo para nada em particular antes de se virar

para Ned. - Aquela pequena tarefa que me atribuiu está realizada,

Lorde Eddard.

Varys entrou numa nuvem de alfazema, rosado do banho, com a cara

rechonchuda esfregada e empoada, os chinelos; tudo nada discreto.

- Os passarinhos cantam hoje uma canção penosa - disse enquanto se

sentava. - O reino chora. Começamos?

- Quando Lorde Renly chegar - Ned disse. Varys dirigiu-lhe um olhar

pesaroso.

- Temo que Lorde Renly tenha abandonado a cidade.

- Abandonado a c id ad e ? - Ned contava com o apoio de Renly.

- Retirou-se por uma poterna uma hora antes da alvorada,

acompanhado por Sor Loras Tyrell e cerca de cinquenta criados -

contou-lhes Varys. - Quando foram vistos pela última vez, galopavam

para o sul com alguma pressa, dirigindo-se sem dúvida para Ponta

Tempestade ou Jardim de Cima.

L á s e i a R e n l y e s e u s c e m s o l d a d o s , Ned não gostou do

cheiro daquilo, mas nada havia que pudesse fazer. Pegou a última

carta de Robert.

- O rei chamou-me ontem à noite e ordenou-me que registrasse suas

últimas palavras. Lorde Renly e o Grande Meistre Pycelle

testemunharam enquanto Robert selou a carta, a ser aberta pelo

conselho após a sua morte. Sor Barristan, por bondade?

O Senhor Comandante da Guarda Real examinou o papel.

- É o selo do Rei Robert, e está intacto - abriu a carta e leu. - Lorde

Eddard Stark é aqui nomeado Protetor do Território, para governar

como regente até que o herdeiro se torne maior de idade.

E p o r a c a s o e l e j á é m a i o r d e i d a d e , Ned refletiu, mas não

deu voz ao pensamento. Não confiava nem em Pycelle nem em Varys,

e Sor Barristan estava obrigado pela honra a proteger e defender o

rapaz que julgava ser seu novo rei. O velho cavaleiro não

abandonaria Joffrey facilmente. A necessidade de mentir deixava-lhe

um sabor amargo na boca, mas Ned sabia que ali tinha de pisar com

cuidado, tinha de guardar para si os seus projetos e jogar o jogo até

estar firmemente estabelecido como regente. Haveria tempo de tratar

da sucessão depois de Arya e Sansa estarem a salvo de volta a

Winterfell e de Lorde Stannis regressar a Porto Real com todo o seu

poder.

- Desejo pedir a este conselho que me confirme como Lorde Protetor,

segundo a vontade de Robert - Ned disse, observando o rosto dos

outros, perguntando a si mesmo que pensamentos se esconderiam

por trás dos olhos meio fechados de Pycelle, do meio sorriso

indolente de Mindinho e da nervosa agitação dos dedos de Varys,

A porta abriu-se. Gordo Tom entrou no aposento.

- Perdão, senhores, o intendente do rei insiste.. O intendente real

entrou e fez uma reverência.

- Estimados senhores, o rei exige a presença imediata do seu pequeno

conselho na sala do trono.

Ned esperava que Cersei atacasse rapidamente; a convocatória não

era surpresa.

- O rei está morto - disse -, mas iremos mesmo assim. Tom, reúna

uma escolta, por favor. Mindinho emprestou a Ned o braço para

ajudá-lo a descer os degraus. Varys, Pycelle e Sor

Barristan seguiam logo atrás. Uma coluna dupla de homens de armas

envergando cota de malha e capacetes de aço esperava à porta da

torre, oito ao todo. Os mantos cinza bateram ao vento enquanto os

guardas os acompanharam através do pátio. Não havia nenhum

carmesim Lannister à vista, mas Ned sentiu-se tranquilizado pelo

número de mantos dourados que estavam visíveis nos baluartes e

nos portões.

Janos Slynt os recebeu à porta da sala do trono, coberto com uma

ornamentada armadura em tons de ouro e negro, com um elmo de

crista alta debaixo do braço. O comandante fez uma reverência

rígida. Seus homens empurraram as grandes portas de carvalho, com

seis metros de altura e reforçadas a bronze.

O intendente real os fez entrar.

- Saúdem Sua Graça, Joffrey das Casas Baratheon e Lannister, o

Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos

Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território -

cantou.

Era uma longa caminhada até o fundo do salão, onde Joffrey esperava

sentado no Trono de Ferro. Apoiado por Mindinho, Ned Stark coxeou

e saltitou lentamente na direção do rapaz que chamava a si próprio

de rei. Os outros os seguiram. A primeira vez que percorrera aquele

caminho tinha sido a cavalo, de espada na mão, e os dragões

Targaryen observavam das paredes quando ele forçara Jaime

Lannister a descer do trono. Perguntou a si mesmo se Joffrey

desceria com a mesma facilidade.

Cinco cavaleiros da Guarda Real - todos, menos Sor Jaime e Sor

Barristan - dispunham-se em meia-lua em torno da base do trono.

Trajavam armadura completa, aço esmaltado do elmo às botas de

ferro, longas capas claras sobre os ombros, brilhantes escudos

brancos atados ao braço esquerdo. Cersei Lannister e os dois filhos

mais novos estavam em pé atrás de Sor Borós e de Sor Meryn, A

rainha trazia um vestido de seda verde-mar, debruada com renda de

Myr clara como espuma. No dedo, tinha um anel dourado com uma

esmeralda do tamanho de um ovo de pombo, e na cabeça usava uma

tiara condizente.

Acima deles, o Príncipe Joffrey sentava-se no meio das farpas e das

hastes pontiagudas trajando um gibão de tecido de ouro e uma capa

vermelha de cetim. Sandor Clegane estava posicionado na base da

íngreme escada estreita do trono. Trazia cota de malha e armadura

cinza fuliginosa e o seu elmo em forma de cabeça de cão rosnando.

Atrás do trono esperavam vinte guardas Lannister com espadas

longas presas aos cintos. Mantos carmesins envolviam-lhes os ombros

e leões de aço encimavam seus elmos. Mas Mindinho cumprira a

promessa; ao longo das paredes, à frente das tapeçarias de Robert

com suas cenas de caça e batalha, as fileiras de mantos dourados da

Patrulha da Cidade estavam rigidamente em sentido, cada homem

com a mão agarrada à haste de uma lança de dois metros e meio de

comprimento terminada em ferro negro. Eram cinco para cada

homem dos Lannister.

A perna de Ned era um braseiro de dor quando parou. Manteve a

mão sobre o ombro de Mindinho para ajudar a suportar o peso.

Joffrey se levantou. Sua capa de cetim vermelho tinha um desenho

em fio de ouro; cinquenta leões rugindo de um lado, cinquenta

veados empinados do outro.

- Ordeno ao conselho que faça todos os preparativos necessários para

a minha coroação - proclamou o rapaz. - Desejo ser coroado esta

quinzena. Hoje, receberei juramentos de fidelidade dos meus leais

conselheiros.

Ned apresentou a carta de Robert.

- Lorde Varys, tenha a bondade de mostrar isto à senhora de

Lannister - o eunuco levou a carta a Cersei. A rainha deitou um

relance às palavras.

- Protetor do Território - leu. - Isto pretende ser o seu escudo,

senhor? Um pedaço de papel? - rasgou a carta ao meio, depois as

metades em quartos e deixou os pedaços flutuar até o chão.

- Essas eram as palavras do rei - disse Sor Barristan, chocado.

- Temos agora um novo rei - respondeu Cersei Lannister. - Lorde

Eddard, da última vez que conversamos, deu-me um conselho.

Permita-me que lhe devolva a cortesia. Dobre o joelho, senhor. Dobre

o joelho e jure fidelidade ao meu filho, e aceitaremos sua demissão

do cargo de Mão e seu retorno ao deserto cinzento a que chama

casa.

- Bem gostaria de poder fazê-lo - disse Ned sombriamente. Se ela

estava tão determinada a forçar o assunto aqui e agora, não lhe

deixava escolha. - Seu filho não tem direito ao trono em que se senta.

Lorde Stannis é o verdadeiro herdeiro de Robert.

- M e n t i r o s o ! - Joffrey gritou, com o rosto ficando vermelho.

- Mãe, o que ele quer dizer? - perguntou a Princesa Myrcella à

rainha num tom lamuriento. - Joff não é o rei agora?

- Condenou-se com sua própria boca, Lorde Stark - disse Cersei

Lannister. - Sor Barristan, prenda este traidor.

O Senhor Comandante da Guarda Real hesitou. Num piscar de olhos,

ficou rodeado de guardas Stark, com aço nu nos punhos revestidos

de malha.

- E agora a traição passa das palavras às ações - disse Cersei. - Julga

que Sor Barristan está só, senhor? - com um agourento raspar de

metal em metal, Cão de Caça desembainhou a espada. Os cavaleiros

da Guarda Real e vinte guardas Lannister vestidos de carmim

moveram-se em sua ajuda.

- M at e m - n o ! - gritou o jovem rei de cima do Trono de Ferro. -

M a t e m - n o s a t o d o s , s o u e u q u e m o r d e n o !

- Não me deixa escolha - disse Ned a Cersei Lannister, e gritou para

Janos Slynt: - Comandante, prenda a rainha e seus filhos. Não lhes

faça mal, mas escolte-os de volta aos aposentos reais e mantenha-os

lá, guardados.

- Homens da Patrulha! - gritou Janos Slynt, colocando o elmo. Uma

centena de homens de manto dourado apontaram as lanças e se

aproximaram.

- Não desejo derramamento de sangue - disse Ned à rainha. - Diga a

seus homens para abaixar as espadas, e ninguém precisa de..

Com uma única estocada violenta, o mais próximo dos homens de

manto dourado espetou a lança nas costas de Tomard. A arma de

Gordo Tom caiu de seus dedos sem força no momento em que a

úmida ponta vermelha surgiu dentre suas costelas, perfurando couro

e cota de malha. Estava morto antes de sua espada atingir o chão.

O grito de Ned chegou tarde demais. O próprio Janos Slynt abriu a

garganta de Varly. Cayn rodopiou, fazendo relampejar o aço, e

obrigou o lanceiro mais próximo a recuar com uma saraivada de

golpes; por um instante, pareceu que talvez conseguisse abrir

caminho até a liberdade. Mas então Cão de Caça caiu sobre ele. O

primeiro golpe de Sandor Clegane cortou a mão da espada de Cayn

pelo pulso; o segundo fê-lo cair de joelhos e o rasgou do ombro ao

esterno.

Enquanto seus homens morriam à sua volta, Mindinho tirou o

punhal de Ned da bainha e o apontou para sua garganta. Seu sorriso

como que pedia perdão.

- Avisei para não confiar em mim.


Arya


- Alto - gritou Syrio Forel, atirando um golpe à sua cabeça. As

espadas de pau fizeram c l a c quando Arya o parou.

- Esquerda - ele gritou, e sua lâmina aproximou-se assobiando. A

dela precipitou-se para pará-la, O c l a c fez Syrio estalar os dentes.

- Direita - ele disse, e "Baixo" e "Esquerda" e de novo "Esquerda"

mais e mais depressa, avançando. Arya recuou, parando todos os

golpes.

- Estocada - preveniu Syrio, e quando o golpe veio, ela se esquivou

para o lado, afastou a lâmina dele e atirou um contragolpe ao seu

ombro. Quase o tocou, q u a s e , ficou tão perto que sorriu. Uma

madeixa pendeu-lhe sobre os olhos, pesada de suor, afastou-a com as

costas da mão.

- Esquerda - Syrio cantou. - Baixo - sua espada era uma mancha

indistinta, e o Pequeno Salão ecoava com os c l a c , c l a c , c l a c . -

Esquerda. Esquerda. Alto. Esquerda. Direita. Esquerda. Baixo.

E s q u e r d a !

A lâmina de madeira a atingiu na parte superior do peito, num

súbito golpe que era mais doloroso por ter vindo do lado errado.

- A u - ela gritou. Teria ali um novo hematoma quando fosse dormir,

em algum lugar no mar. U m h e m a t o m a é u m a l i ç ã o , disse a si

mesma, e t o d a s a s l i ç õ e s n o s m e l h o r a m .

Syrio deu um passo para trás.

- Agora está agora morta.

Arya fez uma careta.

- Você me enganou - disse com veemência. - Disse esquerda e foi

pela direita.

- Precisamente. E agora é uma garota morta.

- Mas v o c ê m e n t i u!

- Minhas palavras mentiram. Os olhos e o braço gritaram a verdade,

mas você não estava vendo.

- Estava, sim - Arya rebateu. - Observei-o segundo a segundo!

- Observar não é ver, garota morta. O dançarino de água vê. Anda,

deixe a espada, agora é tempo de escutar.

Arya o seguiu até junto da parede, onde ele se instalou num banco.

- Syrio Forel foi a primeira espada do Senhor do Mar de Bravos, mas

saberá você como isso aconteceu?

- Você era o melhor espadachim da cidade.

- Precisamente. Mas por quê? Outros homens eram mais fortes, mais

rápidos, mais jovens. Por que Syrio Forel era o melhor? Vou lhe dizer

- tocou ligeiramente a pálpebra com a ponta do mindinho. - Ver, ver

realmente, é o coração de tudo. Escute-me. Os navios de Bravos

navegam até tão longe quanto os ventos sopram, até terras estranhas

e maravilhosas, e, quando regressam, seus capitães trazem animais

bizarros para a coleção do Senhor do Mar. Animais como você nunca

viu, cavalos listrados, grandes coisas malhadas com pescoços longos

como pernas de pau, ratos-porcos peludos do tamanho de vacas,

manticoras com espinhos, tigres que transportam as crias numa

bolsa, terríveis lagartos que caminham com foices no lugar das

garras. Syrio Forel viu estas coisas. No dia do qual falo, a primeira

espada tinha morrido havia pouco tempo e o Senhor do Mar mandou

me chamar. Muitos espadachins tinham sido levados à sua presença e

a todos mandara embora, sem que nenhum soubesse por quê.

Quando foi a minha vez, encontrei--o sentado com um gordo gato

amarelo ao colo. Disse-me que um dos capitães lhe tinha trazido o

animal de uma ilha para lá do sol nascente. "Já viu algum animal

como ela?", ele perguntou. E eu lhe disse: "Todas as noites, nas vielas

de Bravos, vejo mil como ele", e o Senhor do Mar riu e nesse mesmo

dia fui nomeado primeira espada. Arya contraiu o rosto.

- Não entendi.

Syrio rangeu os dentes.

- O gato era um gato comum, nada mais. Os outros esperavam um

animal fabuloso, e era isso que viam. Era tão grande, diziam. Não era

maior que qualquer outro gato, tinha apenas engordado devido à

indolência, pois o Senhor do Mar o alimentava de sua própria mesa.

Que curiosas pequenas orelhas possuía, diziam. Suas orelhas tinham

sido roídas em lutas entre crias. E era claramente um macho, mas o

Senhor do Mar dizia "ela", e era isso que os outros viam. Está

ouvindo?

Arya refletiu sobre aquilo.

- Viu o que havia para ver.

- Precisamente. Abrir os olhos era o quanto bastava. O coração

mente e a cabeça usa truques conosco, mas os olhos veem a verdade.

Olhe com os olhos. Ouça com os ouvidos. Saboreie com a boca.

Cheire com o nariz. Sinta com a pele. É então, depois, que chega o

tempo de pensar e de, assim, conhecer a verdade.

- Precisamente - Arya respondeu sorrindo. Syrio Forel permitiu-se

um sorriso.

- Estou pensando que quando chegarmos a esse seu Winterfell será

tempo de pôr esta agulha em sua mão.

- Sim! - Arya disse, entusiasmada. - Espere só que eu mostre ajon...

Atrás dela, as grandes portas de madeira do Salão Pequeno abriram-

se bruscamente com um estrondo ressonante. Arya virou-se sobre si

mesma.

Um cavaleiro da Guarda Real encontrava-se sob o arco da porta, com

cinco guardas dos Lannister enfileirados atrás dele. Trazia armadura

completa, mas o visor estava erguido. Arya lembrava-se de seus olhos

caídos e das suíças cor de ferrugem de quando estivera em Winterfell

com o rei: Sor Meryn Trant. Os homens de manto vermelho usavam

cota de malha sobre couro fervido e capacetes de aço decorados com

leões.

- Arya Stark - disse o cavaleiro -, venha conosco, filha. Arya mordeu

o lábio, insegura.

- O que vocês querem?

- Seu pai quer vê-la.

Arya deu um passo em frente, mas Syrio Forel a segurou pelo braço.

- E por que é que Lorde Eddard enviaria homens dos Lannister em

lugar dos seus? Estou curioso,

- Ponha-se no seu lugar, mestre de dança - disse Sor Meryn. - Isto

não lhe diz respeito.

- Meu pai não os enviaria - Arya disse. E agarrou a espada de pau.

Os Lannister riram.

- Pouse o pau, menina - disse-lhe Sor Meryn. - Sou um Irmão

Juramentado da Guarda Real, as Espadas Brancas.

- Também o Regicida o era quando matou o antigo rei - Arya

lembrou. - Não tenho de ir com vocês se não quiser.

Sor Meryn Trant ficou sem paciência.

- Capturem-na - ordenou a seus homens e abaixou o visor do elmo.

Três dos homens avançaram, fazendo tilintar suavemente a cota de

malha a cada passo. Arya sentiu um medo súbito. O m e d o

g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s , disse a si

mesma a fim de acalmar as batidas do coração.

Syrio Forel interpôs-se entre os homens e Arya, que batia levemente

com a espada de madeira na bota.

- Parem aí mesmo. São homens ou cães para ameaçar uma criança?

- Saia da frente, velho - disse um dos homens de manto vermelho.

A espada de madeira de Syrio subiu assobiando e ressoou contra o

elmo do homem.

- Chamo-me Syrio Forel, e vai se dirigir a mim com mais respeito.

- Maldito careca - o homem puxou a espada. A madeira voltou a

movimentar-se com uma rapidez que cegava. Arya ouviu um sonoro

c r a c quando a espada bateu ruidosamente no chão de pedra. -

Minha m ã o - gemeu o guarda, agarrando os dedos quebrados.

- É rápido para um mestre de dança - Sor Meryn disse.

- É lento para um cavaleiro - Syrio respondeu.

- Matem o bravosiano e tragam-me a menina - ordenou o cavaleiro

da armadura branca. Quatro guardas Lannister desembainharam as

espadas, O quinto, o dos dedos quebrados, cuspiu e puxou um

punhal com a mão esquerda.

Syrio Forel rangeu os dentes, pondo-se na sua posição de dançarino

de água, apresentando apenas o flanco ao inimigo.

- Arya, minha filha - chamou, sem olhar para ela, sem nunca tirar os

olhos dos Lannister -, basta de dança por hoje. É melhor que vá

embora. Corra para junto do seu pai.

Arya não queria deixá-lo, mas Syrio a ensinara a fazer o que lhe

dizia.

- L i ge i r a c o m o u m a c o r ç a - sussurrou.

- Precisamente - disse Syrio Forel, enquanto os Lannister se

aproximavam.

Arya recuou, com a espada de madeira bem apertada na mão. Ao vê-

lo agora, compreendeu que Syrio se limitara a brincar com ela nos

seus duelos. Os homens de manto vermelho aproximavam-se dele

por três lados, de aço nas mãos. Tinham o peito e braços revestidos

de cota de malha, e uma malha de aço cosida às calças, mas apenas

couro nas pernas. As mãos estavam nuas, e os capacetes que usavam

tinham protetores para o nariz, mas não uma viseira sobre os olhos.

Syrio não esperou que o alcançassem e girou para a esquerda. Arya

nunca vira alguém mover-se tão depressa. O bravosiano parou um

golpe de espada com seu pedaço de pau e rodopiou para longe de

uma segunda lâmina. Desequilibrado, o segundo homem cambaleou

sobre o primeiro. Syrio deu-lhe com uma bota nas costas, e os

homens de vermelho caíram juntos. O terceiro guarda saltou por

cima dos companheiros, dando um golpe na cabeça do dançarino de

água. Syrio esquivou-se sob a lâmina e deu uma estocada de baixo

para cima. O guarda caiu aos gritos, jorrando sangue do úmido

buraco vermelho que se abrira onde estivera seu olho esquerdo.

Os homens que tinham caído estavam se levantando. Syrio

pontapeou um deles na cara e arrancou o capacete de aço da cabeça

do outro, O homem da adaga tentou apunhalá-lo. Syrio defendeu-se

com o capacete e partiu-lhe a rótula com a espada de pau. O último

homem de vermelho gritou uma praga e avançou, brandindo a

espada de cima para baixo com as duas mãos. Syrio rolou para a

direita, e aquele golpe de carniceiro atingiu entre o pescoço e o

ombro do homem sem capacete, que tentava se ajoelhar. A longa

espada triturou cota de malha, couro e carne. O homem de joelhos

guinchou. Antes que seu assassino conseguisse libertar a espada,

Syrio deu-lhe uma estocada no pomo de adão. O guarda soltou um

grito sufocado e cambaleou para trás, agarrado ao pescoço, com o

rosto já enegrecendo.

Quando Arya alcançou a porta dos fundos, que dava para a cozinha,

cinco homens estavam caídos, mortos ou morrendo. Ouviu Sor

Meryn Trant praguejar.

- Malditos idiotas - resmungou, sacando a espada da bainha. Syrio

Forel regressou à sua posição e rangeu os dentes.

- Arya, minha filha - chamou, sem nunca olhar para ela -, vá embora

agora.

O l h e c o m o s o l h o s , dissera ele. E ela via: o cavaleiro coberto dos

pés à cabeça pela armadura branca, com as pernas, garganta e mãos

revestidos de metal, os olhos escondidos atrás do grande elmo

branco, e aço afiado nas mãos. Contra aquilo: Syrio, vestido de couro,

com uma espada de madeira na mão.

- S y r i o , f u j a - ela gritou.

- A primeira espada de Bravos não foge - ele cantou, enquanto Sor

Meryn lhe desferia um golpe. Syrio pulou para longe, fazendo do pau

uma mancha indistinta. Num instante, tinha lançado golpes contra a

têmpora, o cotovelo e a garganta do cavaleiro, fazendo a madeira

ressoar contra elmo, manopla e gorjal. Arya não conseguia se mexer.

Sor Meryn avançou; Syrio recuou. Parou o golpe seguinte, rodopiou

para longe do alcance do segundo e se desviou do terceiro.

O quarto cortou a espada de pau em dois, estilhaçando a madeira e

estraçalhando-a através do núcleo de chumbo.

Aos soluços, Arya virou-se e fugiu.

Mergulhou através das cozinhas e da despensa, cega de pânico,

serpenteando entre cozinheiros e aprendizes. Uma ajudante de

padeiro surgiu na sua frente, segurando um tabuleiro de madeira.

Arya atirou-o ao chão, espalhando por todo o lado cheirosos pães

frescos. Ouviu gritos atrás de si enquanto rodopiava em torno de um

corpulento carniceiro que ficou a olhá-la de boca aberta com um

cutelo na mão. Tinha os braços vermelhos até o cotovelo.

Tudo o que Syrio Forel lhe ensinara passou-lhe num ápice pela

cabeça. L i g e i r a c o m o u m a c o r ç a . S i l e n c i o s a c o m o u m a

s o m b r a . O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s

e s p a d a s . F o r t e c o m o u m u r s o . F e r o z c o m o u m g l u t ã o .

O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s .

O h o m e m q u e t e m e p e r d e r j á p e r d e u . O m e d o g o l p e i a

m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s . O m e d o g o l p e i a

m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s . O m e d o g o l p e i a

m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s . O punho da espada

de madeira estava escorregadio de suor, e Arya respirava com força

quando chegou à escada da torre. Por um instante, congelou. Para

cima ou para baixo? O caminho para cima levaria à ponte coberta

que atravessava o pátio pequeno até a Torre da Mão, mas este seria

certamente o trajeto que esperavam que seguisse. N u n c a f a ç a o

q u e e l e s e s p e r a m , dissera Syrio uma vez. Arya desceu, numa

longa espiral, saltando sobre os estreitos degraus de pedra, dois e

três de cada vez. Emergiu numa cavernosa adega abobadada e viu-se

rodeada por barris de cerveja empilhados até chegar a seis metros de

altura. A única luz que ali havia atravessava estreitas janelas oblíquas,

abertas bem alto nas paredes.

A adega era um beco sem saída. Não havia caminho a não ser aquele

por onde viera. Não se atrevia a voltar e subir aqueles degraus, mas

também não poderia ficar ali. Tinha de encontrar seu pai e lhe

contar o que acontecera, Ele a protegeria.

Arya enfiou a espada de madeira no cinto e começou a escalar,

saltando de barril em barril até conseguir alcançar uma janela.

Agarrando-se à pedra com as duas mãos, subiu. A parede tinha

quase um metro de espessura, e a janela era um túnel inclinado para

cima e para fora. Arya torceu-se em direção da luz do dia. Quando a

cabeça atingiu o nível do chão, espreitou a Torre da Mão, do outro

lado da muralha.

A robusta porta de madeira pendia, lascada e partida, como se

tivesse sido derrubada por machados. Um homem jazia morto nos

degraus, de barriga para baixo, com a capa enrolada debaixo do

corpo e as costas da cota de malha ensopadas de vermelho. Arya viu

com terror que a capa do cadáver era de lã cinza, debruada de cetim

branco. Não conseguia ver quem ele era.

- N ã o - sussurrou. O que estava acontecendo? Onde estava seu pai?

Por que os homens de manto vermelho tinham ido buscá-la?

Lembrou-se do que dissera o homem da barba amarela no dia em

que encontrara os monstros. S e u m a M ã o p o d e m o r r e r , p o r

q u e n ã o u m a s e g u n d a ? Sentiu lágrimas nos olhos. Prendeu a

respiração para escutar. Ouviu os sons de luta, berros, gritos, o

clangor do aço batendo em aço, atravessando as janelas da Torre da

Mão.

Não podia regressar. Seu pai...

Arya fechou os olhos. Durante um instante, ficou assustada demais

para se mover, Tinham matado Jory, Wyl e Heward, e aquele guarda

no degrau, quem quer que ele fosse, Podiam também matar seu pai,

e ela, se a apanhassem.

- O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s

- disse em voz alta, mas de nada servia fingir que era uma dançarina

de água; Syrio fora um dançarino de água e àquela altura era pro-

vável que o cavaleiro branco o tivesse matado, e de qualquer forma

ela era apenas uma garotinha com um pedaço de pau, só e assustada.

Escalou até o pátio, olhando em volta com cuidado enquanto se

punha em pé, O castelo parecia deserto, A Fortaleza Vermelha

n u n c a f i c a v a deserta. Todo mundo devia estar escondido atrás de

portas trancadas. Arya deu uma espiada ansiosa à janela do seu

quarto e depois afastou--se da Torre da Mão, mantendo-se junto ao

muro enquanto deslizava de sombra em sombra. Fez de conta que

estava à caça de gatos... exceto que agora ela era o gato, e, se fosse

apanhada, a matariam.

Movimentando-se entre os edifícios e por cima de muros, mantendo-

se encostada às paredes sempre que possível para que ninguém fosse

capaz de surpreendê-la, Arya chegou aos estábulos quase sem

incidentes. Uma dúzia de homens de manto dourado protegidos por

armaduras e cota de malha passou por ela correndo, enquanto

avançava com cuidado pela muralha interior, mas, como não sabia de

que lado eles estavam, agachou-se nas sombras e os deixou passar.

Hullen, que fora mestre dos cavalos em Winterfell desde que Arya

conseguia recordar, estava esparramado no chão junto à porta dos

estábulos. Fora apunhalado tantas vezes que sua túnica parecia ter

um padrão de flores escarlates. Arya tinha certeza de que ele estava

morto, mas quando se aproximou seus olhos se abriram.

- Arya Debaixo dos Pés - ele sussurrou. - Tem. . prevenir o.. senhor

seu pai... - uma espumosa saliva vermelha saiu de sua boca

borbulhando. O mestre dos cavalos voltou a fechar os olhos e nada

mais disse.

Lá dentro havia mais corpos: um cavalariço com quem brincara e

três dos guardas da Casa de seu pai. Uma carroça, carregada de

caixotes e arcas, estava abandonada perto da porta do estábulo. Os

mortos a deviam estar carregando para a viagem até as docas

quando foram atacados. Arya esgueirou-se para mais perto. Um dos

cadáveres era Desmond, o homem que lhe mostrara a espada e

prometera proteger seu pai. Jazia de costas, com os olhos cegos fixos

no teto enquanto moscas caminhavam por cima deles. Um morto

vestido com o manto vermelho e o elmo do leão dos Lannister estava

perto dele. Mas era só um. C a d a n o r t e n h o v a l e t a n t o c o m o

d e z d e s s e s s o l d a d o s d o s u l , dissera-lhe Desmond.

- M e n t i r o s o ! - Arya disse, e deu um pontapé no corpo numa fúria

súbita.

Os animais estavam inquietos nas cocheiras, relinchando e

resfolegando devido ao cheiro de sangue. O único plano de Arya era

selar um cavalo e fugir, para longe do castelo e da cidade. Tudo o

que tinha a fazer era permanecer na Estrada do Rei, que a levaria até

Winterfell. Tirou da parede um freio e arreios.

Ao passar pela parte de trás da carroça, uma arca caída chamou sua

atenção. Devia ter sido atirada ao chão durante a luta, ou então caíra

enquanto estava sendo carregada. A madeira quebrara-se e a tampa

abrira-se, derramando o conteúdo pelo chão. Arya reconheceu sedas,

cetins e veludos que nunca usava. Mas poderia precisar de roupas

quentes na Estrada do Rei... e além disso...

Ajoelhou-se na terra por entre a roupa espalhada. Encontrou uma

capa pesada de lã, uma saia de veludo, uma túnica de seda e alguma

roupa de baixo, um vestido que sua mãe tinha bordado para ela, uma

pulseira de criança em prata que poderia vender. Atirando a tampa

partida para longe, apalpou dentro da arca, em busca da Agulha.

Tinha-a escondido bem no fundo, debaixo de tudo, mas as coisas

tinham se misturado todas quando a arca caíra. Por um momento

Arya temeu que alguém tivesse encontrado e roubado a espada. Mas

então seus dedos detectaram a dureza do metal sob um vestido de

cetim.

- Aí está ela - sibilou uma voz, bem perto, às suas costas.

Sobressaltada, Arya rodopiou. Um cavalariço estava em pé atrás dela,

com um sorriso estúpido no rosto e uma imunda túnica de baixo

branca espreitando de sob um colete manchado, Tinha as botas

cobertas de estrume e uma forquilha na mão.

- Quem é você? - ela perguntou.

- Ela não me conhece - ele disse -, mas eu a conheço, ah, sim. A

menina-lobo.

- Ajude-me a selar um cavalo - Arya pediu, enfiando a mão na arca,

procurando a Agulha às apalpadelas. - Meu pai é a Mão do Rei, ele te

dará uma recompensa.

- O pai tá m o rt o - disse o rapaz. Aproximou-se, arrastando os pés,

- É a rainha que vai me dar recompensa. Vem cá, menina.

- Fica aí! - os dedos dela fecharam-se em torno do cabo da Agulha.

- Eu disse v e m - ele agarrou seu braço com força.

Tudo o que Syrio Forel lhe ensinara desapareceu num instante.

Naquele momento de súbito terror, a única lição que Arya conseguiu

recordar foi aquela que Jon Snow lhe dera, a primeira de todas.

Espetou nele a ponta aguçada, empurrando a lâmina para cima com

uma força selvagem e histérica.

A Agulha trespassou o colete de couro e a carne branca da barriga

do rapaz e saiu entre as omoplatas. Ele deixou cair a forquilha e fez

um som suave, algo entre um arquejo e um suspiro. As mãos

fecharam-se em torno da lâmina.

- Ah, deuses - gemeu, quando a túnica de baixo começou a ficar

vermelha. - Tire-a de mim,

Quando ela puxou a espada, ele morreu.

Os cavalos relinchavam. Arya ficou em pé junto ao corpo, imóvel e

assustada perante a morte. Jorrara sangue da boca do rapaz quando

caíra, e mais sangue saía da incisão na sua barriga, acumulando-se

num charco por baixo do corpo. Tinha as palmas das mãos cortadas

onde se agarrara à lâmina. Arya recuou lentamente, com Agulha,

vermelha, na mão. Tinha de sair dali, ir para algum lugar distante,

para algum lugar seguro, longe dos olhos acusadores do cavalariço.

Voltou a pegar o freio e os arreios e correu para a sua égua, mas, ao

erguer a sela por cima do dorso do cavalo, Arya compreendeu com

um súbito terror que os portões do castelo estariam fechados.

Mesmo as portas da entrada falsa estariam provavelmente guardadas.

Os guardas talvez não a reconhecessem. Se pensassem que era um

rapaz, talvez a deixassem. . não, teriam ordens para não deixar

n i n g u é m sair, não importaria se a conheciam ou não.

Mas havia outra saída do castelo...

A sela escorregou dos dedos de Arya e caiu ao chão com um baque e

uma nuvem de pó. Seria capaz de voltar a encontrar a sala com os

monstros? Não tinha certeza, mas sabia que tinha de tentar.

Encontrou as roupas que tinha reunido e enrolou-se na capa,

escondendo Agulha sob as suas dobras. Atou o resto numa trouxa.

Com o embrulho debaixo do braço, esgueirou-se para o fundo do

estábulo. Destrancando a porta dos fundos, espreitou para fora,

ansiosa. Conseguia ouvir os sons distantes de espadas e o trêmulo

pranto de um homem que gritava de dor do outro lado da muralha.

Teria que descer a escada em espiral, atravessar a cozinha pequena e

o pátio dos porcos; fora esse o caminho que tomara da outra vez,

quando perseguia o gato preto.. só que isso a levaria a passar

justamente em frente da caserna dos homens de manto dourado. Não

podia ir por aí. Arya tentou pensar em outro caminho. Se

atravessasse o castelo até o outro lado, poderia avançar ao longo da

muralha do rio e através do pequeno bosque sagrado..., mas primeiro

tinha de atravessar o pátio, bem à vista dos guardas nas muralhas.

Nunca vira tantos homens nas muralhas. A maior parte usava

mantos dourados e estava armada com lanças. Alguns a conheciam

de vista, Que fariam se a vissem correndo através do pátio? Vista lá

de cima, ela devia parecer muito pequena; seriam eles capazes de

reconhecê-la? E se importariam?

Disse a si mesma que tinha de se pôr andando a g o r a , mas quando

o momento chegou descobriu-se assustada demais para se mover.

C a l m a c o m o á g u a s p a r a d a s , sussurrou-lhe uma pequena voz

ao ouvido. Arya ficou tão sobressaltada que quase deixou cair a

trouxa. Olhou vivamente em volta, mas não havia ninguém no

estábulo além dela, dos cavalos e dos homens mortos.

S i l e n c i o s a c o m o u m a s o m b r a , ouviu. Seria sua voz ou a de

Syrio? Não saberia dizer, mas de algum modo a voz acalmou-lhe os

receios.

Deu um passo para fora do estábulo.

Foi a coisa mais assustadora que já fizera. Quis fugir e esconder-se,

mas obrigou-se a c a m i n h a r através do pátio, lentamente,

colocando um pé à frente do outro como se tivesse todo o tempo do

mundo e nenhuma razão para temer fosse quem fosse. Pareceu-lhe

que conseguia sentir os olhos deles, como bichos rastejando pela sua

pele sob a roupa. Nunca olhou para cima. Sabia que, se os visse, toda

a coragem a abandonaria, e deixaria cair a trouxa de roupa e fugiria

chorando como um bebê, e então eles a teriam nas mãos. Manteve os

olhos no chão.

Quando atingiu a sombra do septo real, do outro lado do pátio,

estava gelada de suor, mas ninguém dera o alarme.

O septo estava aberto e vazio. Lá dentro, meia centena de velas de

oração ardia num silêncio odorífero. Arya achou que os deuses nunca

dariam pela falta de duas. Apagou-as, enfiou-as nas mangas e saiu

por uma janela dos fundos. Esgueirar-se até a viela onde encurralara

o gato zarolho foi fácil, mas depois disso se perdeu. Rastejou para

dentro e para fora de janelas, saltou por cima de muros e atravessou

caves escuras às apalpadelas, silenciosa como uma sombra. Ouviu

uma mulher chorar. Levou mais de uma hora para encontrar a janela

baixa e estreita que se inclinava para a masmorra onde os monstros

a esperavam.

Atirou a trouxa pela janela e voltou atrás para acender a vela. Foi um

risco; a fogueira que se lembrava de ter visto tinha se reduzido a

brasas, e ouviu vozes quando soprava os carvões. Pondo os dedos em

taça em volta da tremeluzente vela, saiu pela janela no momento em

que os donos das vozes entravam pela porta, mas não chegou a vê-

los, nem mesmo de relance.

Daquela vez os monstros não a assustaram. Pareciam quase velhos

amigos. Arya segurou a vela acima da cabeça. A cada passo que dava,

as sombras moviam-se contra as paredes, como se se virassem para

vê-la passar.

- Dragões - sussurrou. Tirou Agulha de dentro da capa. A esguia

lâmina parecia muito pequena e os dragões, muito grandes, mas de

alguma forma ela se sentia melhor com o aço na mão.

O longo salão sem janelas que se estendia para lá da porta era tão

negro como Arya recordava. Empunhou Agulha com a mão esquerda,

sua mão da espada, e a vela com a direita. Cera quente escorria-lhe

pelos nós dos dedos. A boca do poço ficava do lado esquerdo;

portanto, virou para a direita. Parte dela queria correr, mas tinha

medo de apagar a vela. Ouviu os tênues guinchos das ratazanas e

vislumbrou um par de minúsculos olhos brilhantes no limite da luz,

mas ratazanas não a assustavam. Outras coisas sim. Seria tão fácil

esconder-se ali, como ela se escondera do feiticeiro e do homem com

a barba bifurcada. Quase conseguia ver o cavalariço em pé contra a

parede, de mãos enroladas em garras, com o sangue ainda pingando

dos profundos golpes nas palmas, onde Agulha as cortara. Podia

estar à espera de agarrá-la quando passasse. Veria sua vela se

aproximando de uma grande distância. Arya talvez ficasse melhor

sem a luz..

O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s ,

segredou a voz baixa dentro dela. De repente, Arya lembrou-se das

criptas de Winterfell. Disse a si mesma que eram muito mais assus-

tadoras que aquele lugar. Era apenas uma menininha quando as vira

pela primeira vez. Seu irmão Robb os levara até lá embaixo, ela,

Sansa e o bebê Bran, que então não era maior que Rickon era agora.

Possuíam apenas uma vela para todos, e os olhos de Bran tinham se

tornado grandes como pires quando ele olhara as caras de pedra dos

Reis do Inverno, com os lobos a seus pés e as espadas de ferro sobre

as pernas.

Robb levara-os bem até o fundo, para lá do avô, de Brandon e de

Lyanna, para lhes mostrar suas próprias sepulturas. Sansa não tirara

os olhos da velinha atarracada, temendo que se apagasse. A Velha

Ama dissera-lhe que ali embaixo havia aranhas e ratazanas do

tamanho de cães. Robb sorrira quando ela disse aquilo, "Há coisas

piores que aranhas e ratazanas", sussurrara. "É aqui que os mortos

caminham," Foi então que ouviram o som, baixo, profundo e trêmulo.

O pequeno Bran agarrara-se à mão de Arya.

Quando o espírito saíra da tumba aberta, branco e gemendo por

sangue, Sansa fugira aos gritos para a escada, e Bran enrolara-se na

perna de Robb, soluçando. Arya mantivera-se firme e dera um murro

no espírito. "Seu estúpido", dissera-lhe, "assustou o bebê", mas Jon e

Robb limitaram-se a rir, e em breve Bran e Arya também começaram

a rir.

A recordação a fez sorrir, e dali em diante a escuridão deixou de

conter terrores. O cavalariço estava morto, ela o matara e, se ele

saltasse sobre ela, o mataria de novo. Arya ia para casa. Tudo seria

melhor quando estivesse de novo em casa, segura entre as muralhas

cinzentas de granito de Winterfell.

Seus passos fizeram correr suaves ecos à frente enquanto

mergulhava mais profundamente na escuridão.


Sansa


Vieram buscar Sansa no terceiro dia.

Escolheu um vestido simples de lã cinza-escuro, com um corte

despretensioso, mas ricamente bordado em volta do colarinho e das

mangas. Sentiu os dedos grossos e desajeitados enquanto lutava com

as presilhas de prata sem a ajuda de criados, Jeyne Poole fora

confinada com ela, mas Jeyne não servia para nada, Tinha a cara

inchada de tanto chorar, e não parecia ser capaz de parar de soluçar

por causa do pai.

- Estou certa de que seu pai está bem - Sansa lhe disse, quando

finalmente conseguiu abotoar bem o vestido. - Pedirei à rainha que a

deixe vê-lo - pensou que a gentileza talvez melhorasse o estado de

espírito de Jeyne, mas a moça limitou-se a olhá-la com olhos

vermelhos e inchados, e pôs-se a chorar ainda mais. Era uma

c r i a n ç a .

Sansa também tinha chorado, no primeiro dia. Mesmo dentro dos

robustos muros da Fortaleza de Maegor, com a porta fechada e

trancada, era difícil não ficar aterrorizada quando a matança

começou. Crescera ao som do aço, no pátio, e dificilmente se passara

um dia da sua vida em que não tivesse escutado o estrondo de

espadas que se cruzavam, mas saber que a luta era real fazia toda a

diferença do mundo. Ouvira esse som como nunca o tinha ouvido

antes, e também outros, grunhidos de dor, pragas iradas, gritos por

ajuda e os gemidos dos feridos e moribundos. Nas canções os

cavaleiros nunca gritavam nem suplicavam por misericórdia.

Por isso, chorou, suplicando, através da porta, que lhe dissessem o

que estava acontecendo, chamando pelo pai, pela Septã Mordane,

pelo rei, pelo seu galante príncipe. Se os homens que a guardavam

ouviram suas súplicas, não lhes deram resposta. A única vez que a

porta se abriu já era tarde, naquela noite, quando atiraram Jeyne

Poole para dentro do quarto, machucada e tremendo. " E s t ã o

m a t a n d o t o d o m u n d o " , choramingou a filha do intendente. E

falou, e continuou a falar. Dissera que Cão de Caça lhe derrubara a

porta com um machado de guerra. Que havia corpos na escada da

Torre da Mão e que os degraus estavam escorregadios de sangue.

Sansa secou as lágrimas enquanto tentava confortar a amiga.

Adormeceram na mesma cama, aninhadas nos braços uma da outra,

como irmãs.

O segundo dia foi ainda pior. O quarto em que Sansa foi confinada

ficava no topo da torre mais alta do castelo de Maegor. Da janela

podia ver que a pesada porta levadiça do portão estava descida e que

a ponte levadiça estava içada sobre o profundo fosso seco que

separava a fortaleza-dentro-de-uma-fortaleza do castelo maior que a

rodeava. Guardas dos Lannister percorriam as muralhas armados de

lanças e atiradeiras. A luta tinha terminado, e um silêncio de túmulo

caíra sobre a Fortaleza Vermelha. Os únicos sons que se ouviam

eram os intermináveis choros e soluços de Jeyne Poole.

Eram alimentadas - queijo duro, pão fresco e leite no café da manhã,

galinha assada e verduras ao meio-dia e uma ceia com carne de vaca

e cevada -, mas os criados que traziam as refeições não respondiam

às perguntas de Sansa. Naquela noite, algumas mulheres trouxeram-

lhe roupas da Torre da Mão, e também algumas das coisas de Jeyne,

mas pareciam quase tão assustadas como Jeyne, e quando Sansa

tentou falar com elas, fugiram como se ela tivesse a praga cinzenta.

Os guardas, lá fora, continuavam se recusando a deixá-la sair do

quarto,

- Por favor, preciso falar de novo com a rainha - Sansa lhes disse, tal

como o dissera a todas as pessoas que vira naquele dia. - Ela vai

querer falar comigo, eu sei que vai. Diga-lhe que desejo vê-la, por

favor. Se não a rainha, então o Príncipe Joffrey, por obséquio.

Deveremos casar quando formos mais velhos.

Ao pôr do sol do segundo dia um grande sino começou a repicar.

Tinha um tom profundo e sonoro, e o longo e lento repique encheu

Sansa com uma sensação de pavor. O toque soou e ressoou, e ao fim

de algum tempo ouviram outros sinos que respondiam do Grande

Septo de Baelor, na Colina de Visenya. O som retumbou pela cidade

como um trovão, avisando que a tempestade já vinha.

- O que está acontecendo? - perguntou Jeyne, cobrindo os ouvidos. -

Por que os sinos estão tocando?

- O rei está morto - Sansa não poderia dizer como sabia aquilo, mas

sabia. O lento repique, que parecia não ter fim, enchia o quarto, tão

pesaroso como uma poesia fúnebre. Teria algum inimigo assaltado o

castelo e matado o Rei Robert? Seria este o significado da luta que

tinham ouvido?

Foi dormir curiosa, inquieta e com medo. Seu belo Joffrey agora seria

rei? Ou talvez estivesse morto também? Sentia medo por ele e pelo

pai. Se ao menos lhe dissessem o que estava acontecendo..

Naquela noite, Sansa sonhou com Joffrey no trono, com ela sentada

ao seu lado num vestido de ouro trançado. Tinha uma coroa na

cabeça, e todas as pessoas que conhecera tinham vindo à sua

presença, para se ajoelhar e proferir suas cortesias.

Na manhã seguinte, do terceiro dia, Sor Borós Blount, da Guarda

Real, veio escoltá-la até a presença da rainha.

Sor Borós era um homem feio, com peito largo e pernas curtas e

arqueadas. Tinha nariz achatado, bochechas pendentes, cabelos

grisalhos e quebradiços. Naquele dia trajava veludo branco, e sua

capa nevada estava presa com um broche em forma de leão. O

animal possuía o brilho suave do ouro, e seus olhos eram minúsculos

rubis.

- O senhor está muito garboso e magnífico hoje, Sor Borós - Sansa

lhe disse.

Uma senhora lembrava-se da boa educação, e ela estava decidida a

ser uma senhora, acontecesse o que acontecesse.

- A senhora também - disse Sor Borós numa voz sem expressão. -

Sua Graça a espera. Venha comigo.

Havia guardas à sua porta, homens de armas Lannister com capas

carmesins e elmos decorados com leões. Sansa forçou-se a sorrir-lhes

agradavelmente e desejou-lhes um bom-dia ao passar. Era a primeira

vez que era autorizada a sair do aposento desde que Sor Arys

Oakheart lá a deixara, duas manhãs antes. "Para mantê-la em

segurança, minha querida", dissera-lhe a Rainha Cersei. "Joffrey nunca

me perdoaria se alguma coisa acontecesse à sua preciosa dama."

Sansa esperava que Sor Borós a escoltasse aos aposentos reais, mas,

em vez disso, a levou para fora do castelo de Maegor. A ponte estava

de novo abaixada. Um grupo de trabalhadores içava um homem

preso com cordas para dentro do fosso seco. Quando Sansa

espreitou, viu um corpo empalado nas enormes hastes de ferro, lá

embaixo. Desviou o olhar rapidamente, com medo de perguntar, com

medo de olhar por muito tempo, com medo de que pudesse ser

alguém que conhecia.

Foram encontrar a Rainha Cersei na câmara do conselho, sentada à

cabeceira de uma longa mesa apinhada de papéis, velas e blocos de

cera para selos. A sala era mais magnífica que qualquer outra que

Sansa tivesse visto. Fitou, maravilhada, o painel de madeira entalhada

e as esfinges gêmeas sentadas ao lado da porta.

- Vossa Graça - disse Sor Borós quando foram introduzidos na sala

por outro membro da Guarda Real, Sor Mandon, com a sua curiosa

cara morta. - Trouxe a jovem.

Sansa tivera esperança de que Joffrey estivesse com a mãe. Seu

príncipe não se encontrava ali, mas três dos conselheiros do rei, sim.

Lorde Petyr Baelish sentava-se à esquerda da rainha, o Grande

Meistre Pycelle ao fundo da mesa, enquanto Lorde Varys pairava

sobre eles, cheirando a flores. Todos trajavam preto, Sansa viu com

uma sensação de pavor. Roupas de luto...

A rainha trazia um vestido de seda negra de colarinho alto, com uma

centena de rubis vermelhos escuros bordados no corpete, cobrindo-a

do pescoço até os seios. Tinham sido cortados em forma de lágrimas,

como se a rainha estivesse chorando sangue, Cersei sorriu ao vê-la, e

Sansa pensou que aquele era o sorriso mais doce e triste que jamais

vira.

- Sansa, minha querida filha - disse -, sei que tem perguntado por

mim. Lamento não ter podido mandar chamá-la mais cedo. As coisas

têm estado muito agitadas, e não tive um momento livre. Espero que

meu pessoal tenha tratado bem de você.

- Foram todos muito bons e agradáveis, Vossa Graça, muito

agradecida pelo cuidado - Sansa disse polidamente. - Só que, bem,

ninguém quer falar conosco ou nos contar o que aconteceu..

- Conosco? - Cersei parecia confusa.

- Ela está com a filha do intendente - disse Sor Borós. - Não sabíamos

o que fazer com ela. A rainha franziu as sobrancelhas.

- Da próxima vez, pergunte - sua voz soou dura. - Só os deuses

sabem com que tipo de histórias ela tem enchido a cabeça de Sansa.

- Jeyne está assustada - Sansa disse logo. - Não para de chorar.

Prometi-lhe que perguntaria se pode ver o pai.

O velho Grande Meistre Pycelle baixou os olhos.

- O pai dela está bem, não está? - Sansa perguntou ansiosamente.

Sabia que tinha havido luta, mas certamente ninguém faria mal a um

intendente. Vayon Poole nem sequer usava uma espada.

A rainha Cersei olhou para os conselheiros, um de cada vez.

- Não quero que Sansa se aflija sem necessidade. Que faremos com

esta sua amiguinha, senhores?

Lorde Petyr inclinou-se para a frente.

- Encontrarei um lugar para ela.

- Na cidade, não - a rainha se exaltou.

- Toma-me por um tolo? A rainha ignorou aquilo.

- Sor Borós, escolte essa moça até os aposentos de Lorde Petyr e

instrua seu pessoal para mantê-la lá até que ele vá buscá-la. Diga-lhe

que Mindinho a levará para ver o pai, isso deve acalmá-la. Quero-a

longe quando Sansa regressar ao seu quarto.

- Às vossas ordens, Vossa Graça - disse Sor Borós. Fez uma

reverência profunda, rodou nos calcanhares e retirou-se, com a longa

capa agitando o ar atrás dele.

Sansa estava confusa.

- Não compreendo - disse. - Onde está o pai de Jeyne? Por que Sor

Borós não pode levá-la até ele, em vez de ter de ser Lorde Petyr a

fazê-lo? - tinha prometido a si mesma que seria uma senhora, tão

gentil como a rainha e tão forte como a mãe, a Senhora Catelyn, mas

de repente sentiu-se novamente assustada. Por um segundo pensou

que ia chorar. - Para onde a enviará? Ela não fez nada de mal, é uma

boa moça.

- Ela perturbou você - a rainha disse gentilmente. - Não pode ser.

Agora nem mais uma palavra. Lorde Baelish se assegurará de que

cuidarão de Jeyne, prometo - bateu com a mão na cadeira ao seu

lado. - Sente-se, Sansa. Quero falar com você.

Sansa sentou-se ao lado da rainha. Cersei voltou a sorrir, mas isso

não a fez sentir-se menos ansiosa. Varys apertava as mãos suaves, o

Grande Meistre Pycelle mantinha os olhos ensonados nos papéis que

tinha à sua frente, mas conseguia sentir que Mindinho a olhava

fixamente. Algo na maneira como o pequeno homem a olhava fazia

Sansa sentir-se como se estivesse despida. Sua pele arrepiou-se.

- Querida Sansa - disse a Rainha Cersei, pousando a mão suave no

seu pulso. - Uma criança tão bela. Espero que saiba como Joffrey e

eu gostamos de você.

- G o s t am ? - disse Sansa, sem fôlego. Mindinho fora esquecido. Seu

príncipe a amava. Nada mais importava.

A rainha sorriu.

- Penso em você quase como minha filha. E sei do amor que tem por

Joffrey - abanou a cabeça com ar fatigado. - Temo que tenhamos

notícias graves a respeito do senhor seu pai. Ê preciso ter coragem,

filha.

As palavras calmas da rainha provocaram um arrepio em Sansa,

- O que é?

- Seu pai é um traidor, querida - disse Lorde Varys. O Grande

Meistre Pycelle ergueu sua cabeça antiga.

- Com meus próprios ouvidos escutei Lorde Eddard jurar ao nosso

amado Rei Robert que protegeria os jovens príncipes como se fossem

seus filhos. E, no entanto, no momento em que o rei morreu,

convocou o pequeno conselho a fim de roubar do Príncipe Joffrey o

trono que lhe pertence de direito,

- Não - Sansa exclamou, - Ele não faria isso. Não f a r i a !

A rainha pegou uma carta. O papel estava rasgado e tinha sido

endurecido por sangue seco, mas o selo quebrado era do seu pai, o

lobo gigante timbrado em cera clara.

- Encontramos isto com o capitão da guarda de sua Casa, Sansa. E

uma carta para o irmão de meu falecido esposo, Stannis, convidando-

o a ocupar o trono.

- Por favor, Vossa Graça, houve algum erro - um pânico súbito a

deixou tonta e fraca. - Por favor, mande buscar meu pai, ele contará,

ele nunca escreveria uma carta assim, o rei era seu amigo.

- Robert pensava que sim - a rainha disse, - Esta traição teria

quebrado seu coração. Os deuses foram bondosos por o terem levado

antes que assistisse a ela - suspirou. - Sansa, querida, você deve

compreender a posição terrível em que isto nos deixa. Você é

inocente de todo o mal, todos sabemos, mas é filha de um traidor,

Como poderei permitir que se case com meu filho?

- Mas eu o am o - Sansa lamentou-se, confusa e assustada. Que

planejavam eles fazer-lhe? Que tinham feito a seu pai? Não devia ser

assim. Tinha de casar com Joffrey, estavam noivos, ele lhe tinha sido

prometido, ela até tinha sonhado com o casamento. Não era justo

que o roubassem dela por causa do que quer que seu pai tivesse

feito,

- E eu sei disso muito bem, filha - disse Cersei, com a voz muito

bondosa e doce. - Por que motivo teria vindo me contar os planos do

seu pai para enviá-la para longe de nós, se não fosse por amor?

- F o i por amor - Sansa respondeu apressadamente, - Meu pai nem

me queria dar licença para dizer adeus - ela era a boa moça, a moça

obediente, mas naquela manhã sentira-se tão má como Arya,

esgueirando-se para longe da Septã Mordane, desafiando o senhor

seu pai, Nunca antes fizera algo tão voluntarioso, e nunca teria feito

aquilo se não amasse tanto Joffrey, - Ele ia me levar de volta para

Winterfell e casar-me com um cavaleiro de baixa categoria qualquer,

mesmo apesar de ser Joffrey quem eu quero. Eu lhe disse, mas ele

não quis ouvir - o rei era a sua última esperança. O rei podia

o r d e n a r ao pai que a deixasse ficar em Porto Real e casar com o

Príncipe Joffrey, Sansa sabia que ele podia fazê-lo, mas o rei sempre a

assustara. Era barulhento, tinha uma voz rude, estava mais vezes

bêbado que sóbrio e provavelmente a teria enviado de volta a Lorde

Eddard, mesmo que a deixassem falar com ele. Portanto, fora até a

rainha e abrira-lhe o coração, e Cersei escutara e agradecera-lhe

amavelmente... só que depois Sor Arys escoltara-a para o quarto no

topo do castelo de Maegor e colocara os guardas, e algumas horas

mais tarde tinha começado a luta lá fora. - Por favor - terminou -, a

senhora t e m de me deixar casar com Joffrey, serei a melhor esposa

que ele poderá ter, verá. Serei uma rainha tal como a senhora,

prometo.

A Rainha Cersei olhou para os outros.

- Senhores do conselho, que dizem à súplica dela?

- Pobre criança - murmurou Varys. - Um amor tão verdadeiro e

inocente, Vossa Graça, seria cruel negar-lhe... e, no entanto, que

podemos fazer? O pai está condenado - suas mãos suaves

esfregaram-se uma à outra num gesto de impotente aflição.

- Uma criança nascida da semente de um traidor achará que a

traição lhe é natural - disse o Grande Meistre Pycelle. - Ela é agora

uma doçura, mas, dentro de dez anos, quem sabe que traições

poderá maquinar?

- N ão - Sansa disse, horrorizada. - Não sou, nunca... não trairia

Joffrey, eu o amo, juro, eu o amo.

- Ah, tão pungente - disse Varys. - E, no entanto, diz-se deveras que

o sangue é mais fiel que os juramentos.

- Ela lembra-me a mãe, não o pai - disse em voz baixa Lorde Petyr

Baelish. - Olhe-a. Os cabelos, os olhos. É a perfeita imagem de Cat na

mesma idade.

A rainha a olhou, perturbada, e, no entanto, Sansa conseguia ver

bondade nos olhos verde-claros.

- Filha - disse -, se eu pudesse realmente acreditar que não é como

seu pai, ora, nada me daria maior prazer do que vê-la casada com

meu Joffrey. Sei que ele a ama de todo o coração - suspirou. - No

entanto, temo que Lorde Varys e o Grande Meistre tenham razão. O

sangue dirá. Basta-me recordar como sua irmã atiçou o lobo dela ao

meu filho.

- Eu não sou como Arya - exclamou Sansa. - Ela tem o sangue do

traidor, eu não. Eu sou b o a , pergunte à Septã Mordane, ela lhes

dirá, eu só desejo ser a esposa leal e dedicada de Joffrey,

Sentiu o peso dos olhos de Cersei quando a rainha estudou seu

rosto.

- Acredito que fale a sério, filha - virou-se para os outros. - Meus

senhores, parece-me que se o resto de sua família permanecer leal

nestes tempos terríveis, isso muito contribuiria para aquietar nossos

receios,

O Grande Meistre Pycelle afagou a enorme barba, com os

pensamentos abrindo sulcos na larga testa.

- Lorde Eddard tem três filhos,

- Meros rapazes - disse Lorde Petyr com um encolher de ombros. -

Eu me preocuparia mais com Catelyn e com os Tully.

A rainha tomou a mão de Sansa nas suas.

- Filha, conhece as letras?

Sansa confirmou nervosamente com a cabeça. Sabia ler e escrever

melhor que qualquer um dos irmãos, apesar de ser um desastre nas

somas.

- Agrada-me ouvir isso. Talvez ainda haja esperança para você e

parajoffrey...

- Que quer que eu faça?

- Deve escrever à senhora sua mãe e ao seu irmão, o mais velho...

como ele se chama?

- Robb - Sansa repondeu.

- A notícia da traição do senhor seu pai chegará a eles em breve

certamente. E melhor que seja você a dá-la. Deve contar-lhes como

Lorde Eddard traiu seu rei.

Sansa desejava desesperadamente Joffrey, mas não lhe parecia que

tivesse coragem para fazer o que a rainha pedia.

- Mas ele nunca... eu não... Vossa Graça, eu não saberia o que dizer. .

A rainha deu-lhe palmadinhas na mão.

- Nós lhe diremos o que deve escrever, filha. O mais importante é

que peça à Senhora Catelyn e ao seu irmão para manterem a paz do

rei.

- Será duro para eles se assim não fizerem - disse o Grande Meistre

Pycelle. - Pelo amor que tem a eles, deve insistir para que percorram

o caminho da sabedoria.

- A senhora sua mãe temerá terrivelmente por você, sem dúvida -

disse a rainha. - Deve dizer-lhe que está bem e ao nosso cuidado, que

a estamos tratando bem e satisfazendo todos os seus desejos, Peça-

lhes para vir a Porto Real jurar lealdade a Joffrey quando ele ocupar

o trono. Se o fizerem.. ora, então saberemos que seu sangue não tem

mácula, e quando sua feminilidade desabrochar, casará com o rei no

Grande Septo de Baelor, perante os olhos dos deuses e dos homens.

. . . c a s a r c o m o r e i . , . Aquelas palavras aceleraram sua

respiração, mas Sansa ainda hesitava,

- Talvez... se eu pudesse ver meu pai, falar com ele sobre...

- Traição? - sugeriu Lorde Varys.

- Você me decepciona, Sansa - disse a rainha, com uns olhos que

tinham se tornado duros como pedra. - Falamos a você dos crimes

de seu pai. Se fosse realmente tão leal como diz, por que iria querer

vê-lo?

- Eu.. eu só quis dizer.. - Sansa sentiu que os olhos se umedeciam. -

Ele não... por favor, ele não foi... ferido, ou.. ou...

- Lorde Eddard não foi ferido - a rainha respondeu.

- Mas... o que vai lhe acontecer?

- Isso cabe ao rei decidir - anunciou solenemente o Grande Meistre

Pycelle,

O r e i ! Sansa estancou as lágrimas, piscando, Joffrey agora era o rei,

pensou. Seu galante príncipe nunca faria mal a seu pai, independente

do que ele tivesse feito. Se lhe suplicasse por misericórdia, estava

certa de que a escutaria, T i n h a de escutá-la, amava-a, até a rainha

confirmara, Joff teria de punir o pai, era algo que os senhores

esperariam, mas talvez pudesse mandado de volta para Winterfell, ou

exilá-lo para uma das Cidades Livres para lá do mar estreito. Só teria

de ser durante alguns anos. Depois, ela e Joffrey estariam casados.

Uma vez rainha, ela poderia convencer Joff a trazer o pai de volta e a

conceder-lhe o perdão.

Só que.. se sua mãe ou Robb fizessem algo de traiçoeiro, se

convocassem os vassalos ou se recusassem a jurar fidelidade ou

q u a l q u e r c o i s a , tudo estaria acabado. Seu Joffrey era bom e

amável, disso estava certa, mas um rei tinha de ser severo com

rebeldes. Tinha de fazer com que compreendessem, t i n h a de fazê-

lo!

- Eu.. eu escrevo as cartas - Sansa disse a todos.

Com um sorriso quente como um nascer do sol, Cersei Lannister

inclinou-se e beijou-a suavemente na bochecha.

- Eu sabia que faria. Joffrey ficará todo orgulhoso quando lhe falar da

coragem e do bom-senso que mostrou aqui hoje.

Acabou por escrever quatro cartas. Para a mãe, a Senhora Catelyn

Stark, para os irmãos em Winterfell e também para a tia e para o

avô, a Senhora Lysa Arryn do Ninho da Águia e o Lorde Hoster Tully

de Correrrio. Quando acabou, tinha os dedos rígidos, com cãibras e

manchados de tinta. Varys tinha consigo o selo do seu pai. Aqueceu

a cera branca numa vela, despejou-a com cuidado e ficou observando

enquanto o eunuco selava as cartas com o lobo gigante da Casa

Stark.

Jeyne Poole e todas as suas coisas tinham desaparecido quando Sor

Mandon Moore levou Sansa à grande torre do castelo de Maegor.

Não haveria mais choros, pensou, grata. Mas de alguma forma o

quarto parecia mais frio sem Jeyne lá, mesmo depois de ter acendido

um fogo. Puxou uma cadeira para perto da lareira, pegou um de seus

livros preferidos e perdeu-se nas histórias de Florian e Jonquil, da

Senhora Sheila e do Cavaleiro do Arco-Íris, do valente Príncipe

Aemon e de seu amor sem esperança pela rainha do irmão.

Foi só mais tarde naquela noite, enquanto deslizava para o sono, que

Sansa percebeu que se esquecera de perguntar pela irmã...


Jon


- Othor - anunciou Sor Jaremy Rykker -, sem dúvida alguma. E este

era Jafer Flowers - virou o cadáver com a bota, e a branca cara morta

fitou o céu encoberto com olhos muito azuis. - Eram ambos homens

de Ben Stark.

H o m e m d o m e u t i o , pensou Jon, aturdido. Lembrava-se de

como pedira para ir com eles. D e u s e s , e r a u m r a p a z i n h o t ã o

v e r d e . S e m e t i v e s s e l e v a d o , p o d i a s e r e u a j a z e r

a q u i . . .

O pulso direito de Jafer terminava numa ruína de carne rasgada e

osso estilhaçado deixada pelos maxilares de Fantasma. A mão direita

flutuava num frasco de vinagre na torre de Meistre Aemon. À

esquerda, ainda agarrada à extremidade do braço, era tão negra

como seu manto.

- Que os deuses tenham misericórdia - murmurou o Velho Urso.

Desceu do seu pequeno cavalo, entregando as rédeas a Jon. A manhã

estava anormalmente quente; gotas de suor salpicavam a larga testa

do Senhor Comandante como orvalho num melão. Seu cavalo estava

nervoso, rolando os olhos, afastando-se dos mortos o mais que a

rédea permitia. Jon o levou alguns passos para trás, lutando para

evitar que fugisse. Os cavalos não gostavam daquele lugar. Na

verdade, Jon também não.

Os cães eram os que gostavam menos. Fantasma levara o grupo até

ali; a matilha de cães de caça mostrara-se inútil. Quando Bass, o

mestre dos canis, tentou fazer com que sentissem o cheiro da mão

cortada, tinham enlouquecido, uivando e ladrando, lutando para

escapar. Mesmo agora, ora rosnavam ora ganiam, puxando as

correias enquanto Chett os amaldiçoava, chamando-os de covardes.

E s ó u m a f l o r e s t a , disse Jon a si mesmo, e e l e s s ã o s ó

c a d á v e r e s . Já vira cadáveres antes...

Na noite anterior, tivera de novo o sonho de Winterfell. Vagueava

pelo castelo vazio, à procura do pai, descendo até as criptas. Só que

dessa vez o sonho tinha ido mais longe do que nas anteriores. Na

escuridão, ele ouviu o raspar de pedra em pedra. Quando se virou,

viu que os jazigos estavam se abrindo, um após o outro. Quando os

reis mortos começaram a sair, aos tropeções, de suas sepulturas frias

e negras, Jon acordou numa escuridão de breu, com o coração

batendo fortemente no peito. Nem quando Fantasma saltou para a

cama e lhe encostou o focinho no rosto conseguiu afastar aquele

profundo sentimento de horror. Não se atreveu a dormir novamente.

Em vez disso, subiu à Muralha e caminhou, inquieto, até ver a luz da

alvorada surgir no leste. F o i s ó u m s o n h o . S o u a g o r a u m

i r m ã o d a P a t r u l h a d a N o i t e , n ã o u m r a p a z a s s u s t a d o .

Samwell Tarly encolhia-se sob as árvores, meio escondido atrás dos

cavalos. Seu rosto gordo e redondo estava da cor de leite coalhado,

Ainda não tinha cambaleado até a floresta para vomitar, mas também

não olhara para os mortos, nem de relance.

- Não posso olhar - sussurrou com ar infeliz.

- Tem de olhar - disse-lhe Jon, mantendo a voz baixa para que os

outros não o ouvissem. - Meistre Aemon o enviou para lhe servir de

olhos, não foi? De que servem os olhos se estiverem fechados?

- Sim, mas.. sou tão covarde, Jon, Jon pousou a mão no ombro de

Sam.

- Temos conosco uma dúzia de patrulheiros, os cães, e até Fantasma.

Ninguém te fará mal, Sam. Vai e olha. A primeira olhadela é a mais

difícil.

Sam fez um aceno trêmulo, tentando ganhar coragem com um

esforço visível. Lentamente girou a cabeça. Os olhos abriram-se

muito, mas Jon segurou seu braço para que não pudesse se virar.

- Sor Jaremy - perguntou bruscamente o Velho Urso -, Ben Stark

tinha consigo seis homens quando se afastou da Muralha. Onde estão

os outros?

Sor Jaremy balançou a cabeça.

- Bem gostaria de saber.

Foi evidente que a resposta não agradou a Mormont.

- Dois de nossos irmãos assassinados quase à vista da Muralha, e, no

entanto, seus patrulheiros não ouviram nem viram nada. Foi a isto

que a Patrulha da Noite se reduziu? Ainda varremos estes bosques?

- Sim, senhor, mas. .

- Ainda montamos vigias?

- Montamos, mas. .

- Este homem tem um corno de caça - Mormont apontou para

Othor. - Deverei supor que ele morreu sem o fazer soar? Ou será

que seus patrulheiros ficaram todos não apenas cegos, mas também

surdos?

Sor Jaremy eriçou-se e seu rosto ficou tenso de ira.

- Não foi soprado nenhum corno, senhor, caso contrário, meus

patrulheiros teriam ouvido. Não tenho homens suficientes para

montar tantas patrulhas como gostaria.. e desde que Benjen se

perdeu, temos permanecido mais perto da Muralha do que

costumávamos ficar antes, por vossa ordem.

O Velho Urso soltou um grunhido.

- Sim. Bom. Seja como quiser - fez um gesto impaciente. - Diga-me

como eles morreram.

Agachando-se ao lado do homem que se chamava Jafer Flowers, Sor

Jaremy o agarrou pelos cabelos, que se quebraram entre os dedos

como palha, O cavaleiro praguejou e bateu-lhe na cara com o pulso.

Um grande golpe abriu-se na parte lateral do pescoço do cadáver,

como uma boca coberta por uma crosta de sangue seco. Só alguns

tendões brancos ainda prendiam a cabeça ao pescoço.

- Isto foi feito com um machado.

- Sim - murmurou Dywen, o velho lenhador, - Talvez o machado que

Othor levava, senhor.

Jon sentia o café da manhã às voltas no estômago, mas apertou os

lábios e obrigou-se a olhar para o segundo corpo. Othor era um

homem grande e feio, e transformara-se num cadáver grande e feio

também. Não se via nenhum machado. Jon lembrava-se de Othor; era

um dos que berravam a canção obscena quando os patrulheiros

partiram. Seus dias de cantor tinham terminado. A pele empalidecera

até se tornar branca como leite em todo o corpo, menos nas mãos,

que estavam negras, como as de Jafer. Gotas de sangue gretado

decoravam as feridas fatais que o cobriam como num ataque de

brotoeja, no peito, nas virilhas e na garganta. Mas os olhos ainda

estavam abertos. Fixos no céu, azuis como safiras.

Sor Jaremy pôs-se em pé.

- Os selvagens também têm machados. Sor Mormont curvou-se para

ele.

- Acredita então que isto foi obra de Mance Rayder? Tão perto da

Muralha?

- Quem mais poderia ser, senhor?

Jon podia ter-lhe dito. Sabia, todos eles sabiam; mas nenhum deles

queria proferir as palavras. Os Outros são só uma história, uma

fábula para fazer tremer as crianças. Se alguma vez viveram de fato,

desapareceram há oito mil anos. Só de pensar nessa hipótese, sentiu-

se tolo; era agora um homem-feito, um irmão negro da Patrulha da

Noite, não o rapaz que em tempos passados se sentou aos pés da

Velha Ama com Bran, Robb e Arya.

Mas o Senhor Comandante Mormont bufou.

- Se Ben Stark tivesse sido atacado por selvagens à meio dia de

viagem de Castelo Negro, teria regressado em busca de mais homens,

teria perseguido os assassinos até os sete infernos e teria me trazido

suas cabeças.

- A não ser que também tenha sido morto.

As palavras magoaram, mesmo naquela altura. Passara-se tanto

tempo que parecia loucura agarrar-se à esperança de que Ben Stark

ainda estivesse vivo, mas se havia algo a dizer sobre Jon Snow, era

como era teimoso.

-Já se passou quase meió ano desde que Benjen nos deixou, senhor -

prosseguiu Sor Jaremy.

- A floresta é vasta. Os selvagens podem ter caído sobre ele em

qualquer lugar. Aposto que estes dois foram os últimos sobreviventes

do grupo e vinham de regresso.. mas o inimigo os apanhou antes

que pudessem atingir a segurança da Muralha. Os cadáveres ainda

estão frescos, estes homens não podem estar mortos há mais de um

dia...

- Não - Samwell Tarly protestou.

Jon sobressaltou-se. A voz nervosa e aguda de Sam era a última coisa

que esperava ouvir. O rapaz gordo sentia-se atemorizado pelos

oficiais, e Sor Jaremy não era conhecido pela sua paciência.

- Não lhe pedi opinião, rapaz - Rykker disse friamente.

- Deixe-o falar, senhor - exclamou Jon.

Os olhos de Mormont saltitaram de Sam para Jon e de volta a Sam.

- Se o moço tem alguma coisa a dizer, quero ouvi-lo. Aproxime-se,

rapaz. Não conseguimos vê-lo aí atrás dos cavalos.

Sam passou por Jon e pelos pequenos cavalos, suando profusamente.

- Senhor, não.. não pode ser um dia, ou... olhe... o sangue...

- Sim? - Mormont resmungou impacientemente. - Que tem o

sangue?

- Ele suja a roupa de baixo ao vê-lo - gritou Chett, e os patrulheiros

riram. Sam limpou o suor da testa.

- Vocês. . vocês podem ver o lugar onde Fantasma... o lobo gigante de

Jon... podem ver onde ele arrancou a mão daquele homem, e no

entanto... o toco não sangrou... olhem... - sacudiu uma mão. - Meu

pai... L-lorde Randyll, ele, ele me obrigava às vezes a assistir enquanto

esquartejava animais, quando... depois.. - Sam balançou a cabeça de

um lado para o outro, fazendo tremer o duplo queixo. Agora que

olhara para os cadáveres, não parecia ser capaz de afastar os olhos. -

Uma morte recente.. o sangue ainda fluiria, senhores. Mais tarde..

mais tarde estaria coagulado, como uma... uma geleia, espesso e... e..

- parecia estar prestes a vomitar.

- Este homem. . olhe para o pulso, está todo... em crosta... seco...

como...

Jon compreendeu de imediato o que Sam queria dizer. Via as veias

rasgadas no pulso do morto, vermes de ferro na carne clara. O

sangue era um pó negro. Mas Jaremy Rykker não estava convencido.

- Se eles estivessem mortos há muito mais de um dia, estariam agora

decompostos, rapaz. Nem sequer cheiram.

Dywen, o velho e deformado lenhador que gostava de se vangloriar

de ser capaz de cheirar a neve chegando, aproximou-se dos cadáveres

e farejou.

- Bom, não são nenhuns amores-perfeitos, mas. . o senhor tem razão.

Não há fedor de cadáver,

- Eles... eles não estão apodrecendo - Sam apontou, com o gordo

dedo tremendo só um pouco. - Olhe, não há... não há larvas, nem. .

nem... vermes, nem nada... têm estado aqui na floresta, mas não... não

foram mordidos nem comidos por animais... só Fantasma... fora isso,

estão... estão..

- Intocados - disse Jon em voz baixa. - E Fantasma é diferente. Os

cães e os cavalos não se aproximam deles.

Os patrulheiros trocaram olhares; viam que era verdade, todos eles.

Mormont franziu as sobrancelhas, olhando de relance para os

cadáveres e os cães.

- Chett, traz os cães para mais perto.

Chett tentou, praguejando, puxando-os pelas correias, dando um

pontapé em um deles. A maior parte dos cães limitou-se a ganir e

fincar as patas no chão. Então ele tentou arrastar um só. A cadela

resistiu, rosnando e contorcendo-se como que para se libertar da

coleira. Por fim, o atacou. Chett largou a correia e tropeçou para

trás, O cão saltou por cima dele e desapareceu por entre as árvores.

- Isto... isto está tudo errado - disse Sam Tarly, muito sério. - O

sangue... há manchas de sangue nas roupas, e... e na pele, secas e

duras, mas. . não há nenhuma no chão, ou.. em lado nenhum. Com

aquelas... aquelas.. aquelas... - Sam obrigou-se a engolir e inspirou

profundamente. - Com aquelas feridas... terríveis feridas... deveria

haver sangue por todo o lado. Não deveria?

Dywen chupou os dentes de madeira.

- Pode ser que não tenham morrido aqui. Pode ser que alguém os

trouxe e os deixou para nós. Como um aviso - o velho lenhador

espreitou para baixo com ar de suspeita. - E pode ser que eu esteja

doido, mas não me lembro de Othor ter olhos azuis.

Sor Jaremy pareceu surpreso.

- Nem Flowers - exclamou, virando-se para fitar o morto.

O silêncio caiu na floresta. Por um momento, tudo o que ouviram foi

a respiração pesada de Sam e o som úmido de Dywen chupando os

dentes. Jon acocorou-se ao lado de Fantasma.

- Queime-os - sussurrou alguém. Um dos patrulheiros; Jon não

saberia dizer qual. - Sim, queime-os - insistiu uma segunda voz.

O Velho Urso balançou teimosamente a cabeça.

- Ainda não. Quero que Meistre Aemon os examine. Vamos levá-los

de volta para a Muralha.

Há ordens que são dadas mais facilmente do que obedecidas.

Enrolaram os mortos em mantos, mas quando Hake e Dywen

tentaram atar um deles a um cavalo, o animal enlouqueceu, berrando

e empinando-se, escoiceando, chegando a morder Ketter quando este

correu para ajudar. Os patrulheiros não tiveram melhor sorte com os

outros cavalos; nem o mais plácido dentre eles queria ter algo a ver

com aqueles fardos. Por fim, foram forçados a quebrar galhos e

improvisar trenós para levar os cadáveres a pé. O meio-dia já passara

havia muito quando se puseram a caminho.

- Quero que sejam feitas buscas nesta floresta - ordenou Mormont a

Sor Jaremy ao partir. - Em todas as árvores, em todas as rochas, em

todos os arbustos e em todos os metros de terreno lamacento num

raio de dez léguas. Use todos os homens que tiver, e se não forem

suficientes, peça caçadores e lenhadores aos intendentes. Se Ben e os

outros estiverem aqui, mortos ou vivos, quero que sejam

encontrados. E se houver alguém mais nesses bosques, quero ficar

sabendo. Devem persegui-los e capturá-los, vivos, se possível.

Compreendido?

- Sim, senhor - Sor Jaremy respondeu. - Assim será feito.

Depois disso, Mormont cavalgou em silêncio, matutando. Jon seguia

logo atrás dele; como intendente do Senhor Comandante, era este o

seu lugar. O dia estava cinzento, úmido, encoberto, um daqueles dias

que fazia desejar a chuva. Nenhum vento agitava os bosques; o ar

pairava úmido e pesado, e a roupa de Jon aderia-lhe à pele. Estava

morno. Demasiado morno. A Muralha gotejava copiosamente, há

dias, e por vezes Jon até imaginava que estava encolhendo.

Os velhos chamavam àquele tempo o verão dos espíritos, e diziam

que significava que a estação estava enfim despedindo-se de seus

fantasmas. Depois viria o frio, preveniam, e um longo verão

significava sempre um longo inverno. Aquele verão tinha durado dez

anos. Jon era bebê de colo quando começara.

Fantasma correu ao lado deles durante algum tempo e depois

desapareceu por entre as árvores. Sem o lobo gigante, Jon sentiu-se

quase nu. Deu por si olhando para cada sombra com desconforto.

Involuntariamente, pôs-se a recordar as histórias que a Velha Ama

costumava contar quando era pequeno em Winterfell. Quase

conseguia ouvir de novo sua voz, e o clic-clic-clic de suas agulhas.

Naquela escuridão, os Outros atacaram, costumava dizer, com a voz

cada vez mais baixa. Eram frios e estavam mortos, e odiavam o ferro,

e o fogo, t o toque do sol, e todas as criaturas vivas que possuíssem

sangue quente nas veias. Os castelos, as cidades e os reinos dos

homens caíram perante eles à medida que iam se deslocando para o

sul sobre pálidos cavalos mortos, à frente de hostes de cadáveres.

Alimentavam os criados mortos com carne de crianças humanas...

Quando viu o primeiro sinal da Muralha pairar acima da copa de um

antigo carvalho nodoso, Jon sentiu-se muito aliviado. Mormont puxou

subitamente as rédeas do cavalo e virou-se na sela.

- Tarly - bradou -, venha cá.

Jon viu o sobressalto do medo no rosto de Sam enquanto se

aproximava pesadamente em sua égua; não havia dúvida de que

pensava estar metido em encrenca.

- Você é gordo, mas não é estúpido, rapaz - disse bruscamente o

Velho Urso. - Apresentou--se bem lá atrás. E você também, Snow.

Sam corou, ficando com o rosto vermelho-vivo, e tropeçou na

própria língua ao tentar gaguejar uma cortesia. Jon teve de sorrir.

Quando emergiram de sob as árvores, Mormont pôs o pequeno mas

resistente cavalo a trote. Fantasma saiu da floresta a toda velocidade,

ao encontro do grupo, lambendo os beiços, com o focinho vermelho

da caça. Muito acima, os homens na Muralha viram a coluna que se

aproximava. Jon ouviu o chamamento profundo e gutural do grande

corno do vigia, chamando através das milhas; um único e longo

sopro que estremecia entre as árvores e arrancava ecos do gelo.

uuuuuuuuuuooooooooooooooooooooooooooooooo

O som atenuou-se lentamente até silenciar. Um sopro significava

patrulheiros de regresso, e Jon pensou: Pelo menos fui patrulheiro

por um dia. Aconteça o que acontecer, não podem me tirar isso.

Bowen Marsh os aguardava no primeiro portão quando levaram os

cavalos pelo túnel de gelo. O Senhor Intendente estava com o rosto

vermelho e agitado.

- Senhor - exclamou para Mormont ao abrir as barras de ferro -,

chegou uma ave, precisa vir imediatamente.

- O que se passa, homem? - Mormont disse bruscamente.

De uma forma estranha, Marsh lançou um relance ajon antes de

responder.

- Meistre Aemon tem a carta. Espera no seu aposento privado.

- Muito bem. Jon, trate do meu cavalo e diga a Sor Jaremy para pôr

os mortos em um armazém até que o meistre esteja pronto para eles

- Mormont afastou-se a passos largos, resmungando.

Enquanto levavam os cavalos de volta ao estábulo, Jon ficou

desconfortavelmente consciente de que as pessoas o observavam. Sor

Alliser Thorne exercitava seus rapazes no pátio, mas parou para fitar

Jon, com um tênue meio sorriso nos lábios. Donal Noye, o maneta,

estava em pé à porta do armeiro.

- Que os deuses estejam contigo, Snow - ele gritou.

Há alguma coisa errada, pensou Jon. Há alguma coisa muito errada.

Os mortos foram levados para um dos depósitos que se abriam ao

longo da base da Muralha, uma cela escura e fria esculpida no gelo e

usada para conservar a carne, os grãos e por vezes até a cerveja. Jon

assegurou-se de que o cavalo de Mormont fosse alimentado e tratado

antes de cuidar do seu. Depois, foi à procura dos amigos. Grenn e

Sapo estavam de vigia, mas encontrou Pyp na sala comum.

- O que aconteceu? - perguntou. Pyp baixou a voz.

- O rei está morto,

Jon ficou aturdido. Robert Baratheon parecera velho e gordo quando

visitara Winterfell, mas também com boa saúde, e não se falara de

doenças.

- Como é que você sabe?

- Um dos guardas ouviu Clydas ler a carta para Meistre Aemon - Pyp

inclinou-se para mais perto. - Jon, lamento. Ele era amigo do seu pai,

não era?

- Tinham sido próximos como irmãos em tempos passados - Jon

sentiu curiosidade em saber se Joffrey manteria o pai como Mão do

Rei. Não parecia provável. Isso poderia querer dizer que Lorde

Eddard regressaria a Winterfell, e as irmãs também. Podiam até

permitir que ele os visitasse, com autorização de Lorde Mormont.

Seria bom voltar a ver o sorriso de Arya e falar com seu pai. Vou

perguntar-lhe sobre minha mãe, decidiu. Agora sou um homem, e já

é mais que tempo que me conte. Mesmo que ela fosse uma

prostituta, não me importo. Quero saber.

- Ouvi Hake dizer que os mortos eram do seu tio - Pyp disse.

- Sim. São dois dos seis que ele levou consigo. Já devem estar mortos

há muito, só que.. os corpos são estranhos.

- Estranhos? - Pyp era todo curiosidade. - Estranhos como?

- Sam te contará - Jon não queria falar daquilo. - Eu tenho de ir ver

se o Velho Urso precisa de mim.

Dirigiu-se sozinho para a Torre do Senhor Comandante,

curiosamente apreensivo. Os irmãos que estavam de guarda olharam-

no solenemente quando se aproximou.

- O Velho Urso está no aposento privado - anunciou um deles, -

Perguntou por você.

Jon fez um aceno, e pensou que, ao sair dos estábulos, devia ter ido

logo para lá. Subiu vivamente os degraus da torre. Ele quer vinho ou

um fogo na lareira, é tudo, disse a si mesmo.

Quando entrou no aposento, o corvo de Mormont gritou:

- Grão! Grão! Grão! Grão!

- Não acredite, acabei de alimentá-lo - resmungou o Velho Urso.

Estava sentado à janela, lendo uma carta. - Traga-me uma taça de

vinho e encha uma para você.

- Para mim, senhor?

Mormont ergueu os olhos da carta e os fixou em Jon. Havia piedade

naquele olhar; podia senti-la.

- Ouviu o que eu disse.

Jon despejou o vinho com cuidado exagerado, vagamente consciente

de que estava arrastando aquele ato. Quando as taças se enchessem,

não teria escolha a não ser enfrentar o que quer que estivesse

naquela carta. Mas depressa demais elas se encheram.

- Sente-se, rapaz - ordenou-lhe Mormont. - Beba. Jon permaneceu

em pé.

- É o meu pai, não é?

O Velho Urso tamborilou na carta com o dedo,

- É o seu pai e o rei - respondeu, com voz cavernosa. - Não quero

mentir para você, as notícias são dolorosas. Nunca pensei que

conheceria outro rei, com os anos que tenho, tendo Robert metade

da minha idade e sendo forte como um touro - bebeu um gole de

vinho. - Dizem que o rei adorava caçar. Aquilo que amamos nos

destrói sempre, rapaz. Lembre-se disso. Meu filho amava aquela sua

jovem esposa. Vaidosa mulher. Se não fosse por causa dela, nunca

teria pensado em vender os caçadores furtivos.

Jon quase não conseguia seguir o que o comandante estava dizendo.

- Senhor, não compreendo. Que aconteceu ao meu pai?

- Pedi que se sentasse - resmungou Mormont. "Senta", gritou o

corvo. - E beba, raios te partam. É uma ordem, Snow.

Jon sentou-se e bebericou o vinho.

- Lorde Eddard foi aprisionado. Está sendo acusado de traição. Diz-se

que conspirou com os irmãos de Robert para negar o trono ao

Príncipe JofFrey.

- Não - disse Jon de imediato. - Não pode ser. Meu pai nunca trairia

o rei.

- Seja como for - disse Mormont -, não cabe a mim decidir. Nem a

você.

- Mas é uma mentira - Jon insistiu. Como podiam pensar que seu pai

era um traidor, teriam todos enlouquecido? Lorde Eddard Stark

nunca se desonraria.. não é?

Gerou um bastardo, sussurrou uma pequena voz em seu interior.

Onde está a honra nisso? E a sua mãe, o que lhe aconteceu? Ele nem

sequer pronuncia seu nome,

- Senhor, o que vai lhe acontecer? Vão matá-lo?

- Quanto a isso não sei responder, rapaz. Pretendo enviar uma carta.

Quando jovem, conheci alguns dos conselheiros do rei. O velho

Pycelle, Lorde Stannis, Sor Barristan... Seja o que for que seu pai fez

ou deixou de fazer, é um grande senhor. Tem de ser autorizado a

vestir o negro e a juntar-se a nós. Só os deuses sabem como

precisamos de homens com a capacidade de Lorde Eddard.

Jon sabia que outros homens acusados de traição tinham sido

autorizados a redimir sua honra na Muralha em outros tempos. Por

que não Lorde Eddard? Seu pai, ali. Era um pensamento estranho, e

estranhamente incômodo. Seria uma injustiça monstruosa despojá-lo

de Winterfell e forçá-lo a vestir o negro, mas se isso significasse a

sua vida...

E Joffrey, permitiria? Lembrava-se do príncipe em Winterfell, do

modo como troçara de Robb e de Sor Rodrik no pátio. Em Jon quase

não reparara; os bastardos estavam abaixo até de seu desprezo.

- Senhor, o rei o ouvirá?

O Velho Urso encolheu os ombros.

- Um rei rapaz... imagino que ouvirá a mãe. Ê uma pena que o anão

não esteja com eles. Ê tio do moço e viu as nossas necessidades

quando nos visitou. Foi mau que a senhora sua mãe o tivesse tomado

cativo...

- A Senhora Stark não é minha mãe - recordou-lhe Jon em tom

cortante. Tyrion Lannister fora um amigo para ele. Se Lorde Eddard

fosse morto, ela teria tanta culpa como a rainha. - Senhor, e minhas

irmãs? Arya e Sansa estavam com meu pai. Sabe...

- Pycelle não as menciona, mas sem dúvida que serão bem tratadas.

Perguntarei por elas quando escrever - Mormont abanou a cabeça. -

Isto não podia ter acontecido em pior hora. Se algum dia o reino

precisou de um rei forte... há dias escuros e noites frias à nossa

frente, sinto-o nos ossos... - deu a Jon um longo olhar perspicaz. -

Espero que não esteja pensando em fazer alguma coisa estúpida,

rapaz.

Ele é meu pai, Jon quis dizer, mas sabia que Mormont não ia querer

ouvi-lo. Tinha a garganta seca. Obrigou-se a beber outro gole de

vinho.

- Seu dever agora é aqui - lembrou-lhe o Senhor Comandante. - Sua

vida antiga terminou quando vestiu o negro - sua ave soltou um eco

rouco. "Negro." Mormont não lhe prestou atenção. - O que quer que

façam em Porto Real, não nos diz respeito - como Jon não

respondeu, o idoso homem terminou o vinho e disse: - Está livre

para sair. Não vou precisar mais de você hoje. De manhã, poderá

ajudar-me a escrever a tal carta.

Mais tarde, Jon não tinha memória de ter se levantado ou saído do

aposento privado. Quando caiu em si, descia os degraus da torre,

pensando. É meu pai, são minhas irmãs, como é que pode não me

dizer respeito?

Lá fora, um dos guardas olhou para ele e disse:

- Força, rapaz. Os deuses são cruéis. Eles sabem, Jon compreendeu.

- Meu pai não é traidor nenhum - disse em voz rouca. Até as

palavras ficavam presas na garganta, como que para sufocá-lo. Estava

levantando vento e parecia estar mais frio no pátio do que quando

entrara. O verão dos espíritos aproximava-se do fim.

O resto da tarde passou como num sonho. Jon não poderia dizer por

onde caminhara, o que fizera, com quem falara. Fantasma esteve com

ele, ao menos isso sabia. A presença silenciosa do lobo gigante deu-

lhe conforto. As meninas nem isso têm, pensou. Seus lobos poderiam

tê-las mantido a salvo, mas Lady está morta e Nymeria, perdida, e

elas estão completamente sós,

Um vento do norte começara a soprar quando o sol desceu no

horizonte. Jon ouvia-o uivar contra a Muralha e sobre as ameias

geladas enquanto se encaminhava para a sala comum para a refeição

da noite. Hobb fizera um espesso guisado de veado com cevada,

cebola e cenoura. Quando despejou uma porção extra no prato de

Jon e lhe deu uma ponta de pão, entendeu o que isso queria dizer.

Ele sabe, Olhou em volta da sala, viu cabeças que se viravam

depressa, olhos polidamente desviados. Todos eles sabem.

Os amigos convergiram na sua direção.

- Pedimos ao septão para acender uma vela pelo seu pai - disse-lhe

Matthar.

- É mentira, todos sabemos que é mentira, até o Grenn sabe que é

mentira - acrescentou Pyp. Grenn confirmou com a cabeça, e Sam

agarrou a mão de Jon.

- Você é agora meu irmão, portanto, ele é também meu pai - disse o

rapaz gordo. - Se quiser ir até os represeiros e orar aos deuses

antigos, irei com você.

Os represeiros ficavam para lá da Muralha, mas Jon sabia que Sam

era sincero. São meus irmãos, pensou. Tanto como Robb, Bran e

Rickon...

E então ouviu a gargalhada, afiada e cruel como um chicote, e a voz

de Sor Alliser Thorne.

- Não basta ser bastardo, é bastardo de um traidor - dizia aos

homens que o rodeavam. Num piscar de olhos Jon tinha saltado para

cima da mesa, de punhal na mão. Pyp tentou

agarrá-lo, mas ele libertou a perna e correu a toda velocidade pela

mesa e arrancou a tigela da mão de Sor Alliser com um pontapé.

Saltou guisado para todo o lado, salpicando os irmãos. Thorne

recuou. Soavam gritos, mas Jon Snow não os ouvia. Atacou o rosto

de Sor Alliser com o punhal, mirando naqueles frios olhos de ônix,

mas Sam atirou-se no meio dos dois e, antes que Jon conseguisse

acertá-lo, Pyp saltou sobre suas costas, agarrando-se como um

macaco, e Grenn segurou seu braço enquanto Sapo lhe arrancava a

faca das mãos.

Mais tarde, muito mais tarde, depois de o terem escoltado até sua

cela, Mormont desceu para visitá-lo, com o corvo ao ombro.

- Disse-lhe para não fazer nada de estúpido, moço - resmungou o

Velho Urso. "Moço", papagueou o pássaro. Mormont abanou a

cabeça, desgostoso. - E pensar que tinha grandes esperanças para

você.

Tiraram-lhe a faca e a espada e disseram-lhe que não devia deixar a

cela até que os grandes oficiais se reunissem para decidir o que

fariam com ele, E depois colocaram um guarda à sua porta para se

assegurarem de que obedeceria. Os amigos não estavam autorizados

a visitá-lo, mas o Velho Urso cedeu e o deixou ficar com Fantasma;

portanto, não estava completamente só.

- Meu pai não é traidor nenhum - disse ao lobo selvagem quando os

outros se foram. Fantasma o olhou em silêncio. Jon deixou-se cair,

encostado à parede, com as mãos em volta dos joelhos, e fixou os

olhos na vela que estava sobre a mesa ao lado de sua cama estreita.

A chama oscilou e tremeluziu, as sombras moveram-se à sua volta, a

sala pareceu ficar mais escura e mais fria. Esta noite não vou dormir,

Jon pensou.

Mas deve ter adormecido. Quando acordou, sentia as pernas rígidas e

com cãibras, e a vela há muito ardera por completo. Fantasma estava

em pé sobre as patas traseiras, arranhando a porta. Jon ficou

surpreso ao ver como o animal estava alto,

- Fantasma, o que se passa? - disse em voz baixa. O lobo selvagem

virou a cabeça e o olhou, mostrando as presas num rosnido

silencioso. Terá enlouquecido?, Jon perguntou a si mesmo. -Sou eu,

Fantasma - murmurou, tentando não mostrar medo na voz. Mas

estava tremendo, e violentamente. Quando o ar ficara tão frio?

Fantasma afastou-se da porta. Havia profundos sulcos onde ele

raspara a madeira. Jon o observou com uma inquietação crescente.

- Há alguém lá fora, não há? - sussurrou. Apertando-se contra o

chão, o lobo gigante rastejou para trás, com o pelo branco eriçando-

se na parte de trás do pescoço. O guarda, pensou, deixaram um

homem de guarda à minha porta. Fantasma cheira-o através da

porta, é só isso.

Lentamente, Jon pôs-se em pé. Tremia incontrolavelmente, desejando

ainda ter uma espada. Três passos rápidos levaram-no até junto da

porta. Agarrou a maçaneta e puxou para dentro. O ranger das

dobradiças quase o fez saltar.

O guarda estava estatelado nos degraus estreitos, olhando para cima,

parajon. Olhando para cima, embora jazesse de bruços. A cabeça

tinha sido completamente virada ao contrário.

Não pode ser, disse Jon a si mesmo. Aqui é a Torre do Senhor

Comandante, é guardada dia e noite, isto não pode acontecer, é um

sonho, estou tendo um pesadelo.

Fantasma deslizou para o seu lado. O lobo começou a subir os

degraus, parou e olhou para Jon. Foi então que ouviu os sons; o

suave arrastar de uma bota na pedra, o som de uma pequena tranca

rodando. Os sons vinham de cima. Dos aposentos do Senhor

Comandante.

Aquilo até podia ser um pesadelo, mas não era sonho nenhum.

A espada do guarda estava em sua bainha. Jon ajoelhou e a pegou. O

peso do aço na mão deu-lhe coragem. Subiu os degraus, com

Fantasma abrindo caminho silenciosamente. Sombras espreitavam em

todas as voltas das escadas. Jon deslizou com precaução, testando

todos os recantos suspeitosamente escuros com a ponta da espada.

De repente, ouviu o guincho do corvo de Mormont. "Grão", gritava a

ave. "Grão, grão, grão, grão, grão, grão" Fantasma deu um salto para

a frente e Jon seguiu atabalhoadamente logo atrás. A porta para o

aposento privado de Mormont estava escancarada. O lobo gigante

mergulhou através dela. Jon parou à porta, de espada na mão, dando

aos olhos um momento para se ajustarem. Pesadas cortinas tinham

sido descidas sobre as janelas, e a escuridão era negra como tinta.

- Quem está aí? - Jon gritou.

Então viu: uma sombra nas sombras, deslizando na direção da porta

interior que dava para a cela de dormir de Mormont, a forma de um

homem todo de negro, coberto com um manto e encapuzado.. , mas

sob o capuz os olhos brilhavam com um gelado brilho azul...

Fantasma saltou. Homem e lobo caíram juntos sem um grito e sem

um rosnido, rolando, esmagando-se de encontro a uma cadeira,

fazendo cair uma mesa coberta de papéis. O corvo de Mormont

agitava as asas por cima da cabeça, gritando "Grão, grão, grão, grão".

Jon sentiu-se tão cego como Meistre Aemon. Mantendo as costas na

parede, deslizou em direção à janela e arrancou a cortina. O luar

encheu o aposento. Viu de relance mãos negras enterradas em pelo

branco, dedos escuros e inchados que se apertavam em torno da

garganta de seu lobo gigante. Fantasma retorcia-se e mordia,

esperneando no ar, mas não conseguia se libertar.

Jon não teve tempo de sentir medo. Atirou-se para a frente, gritando,

pondo todo seu peso na espada. O aço cortou a manga, a pele e o

osso, mas o som estava de certo modo errado. O cheiro que o

envolveu era tão estranho e frio que quase vomitou. Viu o braço e a

mão no chão, com dedos negros retorcendo-se num charco de luar.

Fantasma libertou-se da outra mão e afastou-se rastejando, com a

língua vermelha pendendo da boca.

O homem encapuzado ergueu a pálida cara de lua e Jon golpeou-a

sem hesitar. A espada cortou o intruso até o osso, arrancando-lhe

metade do nariz e abrindo um rasgão de um lado a outro da face,

sob aqueles olhos... olhos... olhos como estrelas azuis ardendo. Jon

conhecia aquele rosto. Othor, pensou, cambaleando para trás.

Deuses, ele está morto, ele está morto, eu o vi morto.

Sentiu qualquer coisa vasculhando seu tornozelo. Dedos negros

agarraram-se à barriga de sua perna. O braço rastejava pela perna

acima, rasgando a lã e a carne. Gritando de repugnância, Jon

empurrou os dedos com a ponta da espada e atirou aquela coisa

para longe, que lá ficou retorcendo-se, com os dedos abrindo e

fechando.

O cadáver inclinou-se para a frente. Não havia sangue. Só com um

braço, com a cara quase cortada ao meio, não parecia sentir nada.

Jon estendeu a espada à sua frente,

— Fique onde está! - ordenou, com a voz tornando-se estridente.

"Grão", gritou o corvo, "grão, grão", O braço cortado arrastava-se

para fora da manga arrancada, uma serpente branca com uma

cabeça negra de cinco dedos. Fantasma precipitou-se sobre ela e a

abocanhou. Ossos de dedos foram triturados. Jon golpeou o pescoço

do cadáver, sentindo o aço morder profunda e duramente.

Othor morto caiu sobre ele, fazendo-o perder o equilíbrio.

Jon ficou sem ar quando as costas atingiram a mesa caída. A espada,

onde ela estava? Perdera a maldita espada! Quando abriu a boca para

gritar, a criatura enfiou os cadavéricos dedos negros nela. Nauseado,

tentou afastá-lo, mas o morto era pesado demais. A mão forçou-se

mais para dentro de sua garganta, fria como gelo, sufocando-o. Tinha

a cara encostada à sua, enchendo o mundo. Os olhos estavam

cobertos de geada, cintilando de azul. Jon arranhou sua pele fria com

as unhas e deu pontapés nas pernas da coisa. Tentou morder, tentou

socar, tentou respirar...

E, de repente, o peso do cadáver desapareceu e os dedos foram

arrancados de sua garganta. Tudo o que Jon conseguiu fazer foi

rolar, com ânsia de vômito e tremendo. Fantasma estava de novo

sobre a coisa. Viu o lobo gigante enterrar os dentes na barriga da

criatura e começar a rasgá-la. Observou, apenas meio consciente, por

um longo momento, até que finalmente se lembrou de procurar a

espada...

... e viu Lorde Mormont, nu e sonolento, em pé, à porta do quarto,

com uma candeia de azeite na mão. Roído e sem dedos, o braço

agitava-se violentamente pelo chão, avançando em contorções na sua

direção.

Jon tentou gritar, mas não tinha voz. Pondo-se em pé com

dificuldade, chutou o braço para longe e arrancou a candeia das

mãos do Velho Urso. A chama tremeluziu e quase se extinguiu.

"Arde!", grasnou o corvo. "Arde, arde, arde!"

Rodopiando, Jon viu as cortinas que arrancara da janela. Atirou com

ambas as mãos a candeia para cima do monte de pano. Metal

rangeu, vidro estilhaçou-se, óleo derramou-se e as cortinas se

transformaram numa enorme chama. O calor do fogo no rosto era

mais doce que qualquer dos beijos que Jon recebera.

- Fantasma! - gritou.

O lobo gigante libertou-se e aproximou-se enquanto a criatura

tentava se erguer, com serpentes negras jorrando do grande golpe

que tinha na barriga. Jon mergulhou a mão nas chamas, agarrou a

cortina ardente e a atirou sobre o morto. Que arda, rezou, enquanto

o pano envolvia o cadáver, deuses, por favor, por favor, que arda.


Bran


Os Karstark chegaram numa manhã fria e ventosa, trazendo de seu

castelo em Karhold trezentos homens a cavalo e quase dois mil a pé.

As pontas de aço de suas lanças tremeluziam à pálida luz do sol

enquanto a coluna se aproximava. Um homem seguia à frente,

marcando um ritmo de marcha lento e gutural num tambor que era

maior que ele, buum, buum, buum,

Bran os viu chegar de uma torre de guarda no topo da muralha

exterior, vigiando através da luneta de bronze de Meistre Luwin

enquanto se equilibrava nos ombros de Hodor. Era o próprio Lorde

Rickard que os liderava, com os filhos Harrion, Eddard e Tosshen

cavalgando ao seu lado sob estandartes negros como a noite,

adornados com o resplendor branco de sua Casa. A Velha Ama dizia

que eles possuíam sangue Stark há centenas de anos, mas aos olhos

de Bran não se pareciam com os Stark. Eram homens grandes e

ferozes, com os rostos cobertos por barbas espessas, e usavam os

cabelos soltos abaixo dos ombros. Seus mantos eram feitos de peles

de urso, foca e lobo.

Sabia que eram os últimos. Os outros senhores já estavam lá com as

suas tropas. Bran ansiava por cavalgar entre eles, para ver as casas

da Vila de Inverno cheias até rebentar, as multidões aos encontrões

no mercado todas as manhãs, as ruas rasgadas e corroídas pelas

rodas e pelos cascos, Mas Robb proibira-o de deixar o castelo.

- Não temos homens que possamos dispensar para protegê-lo - seu

irmão explicou.

- Eu levo Verão - Bran insistiu.

- Não aja como um garotinho comigo, Bran - Robb pediu. - Você

sabe bem que não é assim tão simples. Não faz mais de dois dias que

um dos homens de Lorde Bolton esfaqueou um dos de Lorde Cerwyn

no Barrote Fumegante. Nossa mãe me esfolaria se deixasse que você

se pusesse em risco - dissera aquilo com a voz de Robb, o Senhor;

Bran sabia que isso queria dizer que não haveria apelo.

Sabia que era por causa do que acontecera na Mata de Lobos. A

recordação ainda lhe causava pesadelos. Sentira-se impotente como

um bebê, não tinha sido mais capaz de se defender do que Rickon o

teria. Menos até... Rickon, pelo menos, os teria chutado. Isso o

envergonhava. Era apenas alguns anos mais novo que Robb; se o

irmão era quase um homem-feito, também ele o era. Devia ter sido

capaz de proteger a si mesmo.

Um ano antes, antes, teria visitado a vila mesmo que isso significasse

subir as muralhas pelos seus próprios meios. Naquela época, podia

correr por escadas abaixo, subir e descer sozinho do pônei, e brandir

uma espada de madeira suficientemente bem para atirar o Príncipe

Tommen ao chão. Agora, só podia observar, espreitando pelo tubo

das lentes de Meistre Luwin. O meistre ensinara-lhe todos os

estandartes: o punho revestido de cota de malha dos Glover,

prateado sobre escarlate; o urso negro da Senhora Mormont; o

hediondo homem esfolado que precedia

Roose Bolton, do Forte do Pavor; um alce macho para os Hornwood;

um machado de batalha para os Cerwyn; três árvores-sentinelas para

os Tallhart; e o temível símbolo da Casa Umber, um gigante a rugir

com correntes quebradas.

E em breve ficou também conhecendo os rostos, quando os senhores

e seus filhos e cavaleiros vieram a Winterfell para os banquetes. Nem

o Grande Salão tinha tamanho que chegasse para que todos se

sentassem ao mesmo tempo e, portanto, Robb recebeu os principais

vassalos um de cada vez. A Bran era sempre dado o lugar de honra, à

direita do irmão. Alguns dos senhores vassalos davam-lhe estranhos e

duros olhares quando se sentava ali, como se se perguntassem com

que direito um rapazinho ainda verde, e ainda por cima aleijado, era

colocado acima deles.

- Quantos são agora? - perguntou Bran a Meistre Luwin quando

Lorde Karstark e os filhos entraram a cavalo pelos portões da

muralha exterior.

- Doze mil homens, ou tão perto disso que não faz diferença.

- Quantos cavaleiros?

- Bem poucos - disse o meistre com um ar de impaciência. - Para ser

armado cavaleiro, é preciso ficar de vigília num septo e ser ungido

com os sete óleos para consagrar os votos. No Norte, só um punhado

das grandes Casas reza aos Sete. Os outros honram os deuses

antigos e não armam cavaleiros... mas esses senhores, seus filhos e

seus soldados não são menos ferozes, leais ou honrados por causa

disso. O valor de um homem não se determina por um sor antes de

seu nome. Tal como já vos disse cem vezes.

- Mesmo assim - disse Bran -, quantos cavaleiros? Meistre Luwin

suspirou.

- Trezentos, talvez quatrocentos... entre três mil homens com

armadura que não são cavaleiros.

- Lorde Karstark é o último - disse Bran, pensativo. - Robb dará um

banquete em sua honra esta noite.

- Sem dúvida que sim.

- Quanto tempo falta até que. . até que partam?


- Têm de marchar em breve, ou não marcharão - disse Meistre

Luwin. - A Vila de Inverno está cheia até rebentar, e este exército

comerá tudo o que existe nos campos se acampar aqui durante

muito tempo. Há outros à espera de se juntarem a eles ao longo da

Estrada do Rei, cavaleiros das Terras Acidentadas, cranogmanos e os

senhores Manderly e Flint.Já se luta nas terras do rio, e seu irmão

tem muitas léguas a transpor.

- Eu sei - Bran sentia-se tão infeliz como soava. Devolveu a luneta de

bronze ao meistre e reparou como seus cabelos haviam se tornado

finos no topo da cabeça. Conseguia ver o rosado do couro cabeludo

começando a aparecer. Era estranho olhar assim de cima para ele,

quando passara toda a vida a olhá-lo de baixo; mas quando se andava

"de cavalinho" sobre Hodor, olhava-se de cima para todo mundo. -

Não quero observar mais. Hodor, leve-me de volta à fortaleza.

- Hodor - Hodor ecoou.

Meistre Luwin enfiou a luneta na manga.

- Bran, o senhor seu irmão não terá tempo para você agora. Tem de

receber Lorde Karstark e os filhos e fazer com que se sintam bem-

vindos.

- Não vou incomodar Robb. Quero visitar o bosque sagrado - pousou

a mão no ombro de Hodor. - Hodor.

Uma série de apoios de mão cortados a cinzel no granito formava

uma escada na parede interna da torre. Hodor desceu, uma mão após

outra, enquanto cantarolava sem melodia e Bran balançava de

encontro às suas costas no assento de madeira que Meistre Luwin

fabricara para ele. Luwin se baseara na ideia dos cestos que as

mulheres usavam para transportar lenha nas costas; depois disso,

recortar buracos para as pernas e adicionar algumas correias novas

para distribuir o peso de Bran mais uniformemente fora coisa

simples. Não era tão bom como montar a Dançarina, mas havia

lugares onde a Dançarina não podia ir, e assim Bran não ficava tão

envergonhado como quando Hodor o transportava nos braços como

se fosse um bebê. Hodor também parecia gostar, se bem que com ele

era difícil ter certeza. A única parte complicada eram as portas. Às

vezes, Hodor esquecia-se de que levava Bran nas costas, e isso podia

ser doloroso quando atravessavam uma porta»

Ao longo de quase uma quinzena tinha havido tantas entradas e

saídas que Robb ordenara que ambas as portas levadiças se

mantivessem içadas e a ponte levadiça entre elas, descida, mesmo na

noite profunda. Uma longa coluna de lanceiros cobertos de armadura

atravessava o fosso entre as muralhas quando Bran saiu da torre;

homens dos Karstark, seguindo seus senhores para dentro do castelo.

Usavam meios elmos de ferro negro e mantos negros de lã

adornados com o sol raiado branco. Hodor trotou ao lado deles,

sorrindo para si mesmo, fazendo ressoar as botas na madeira da

ponte levadiça. Os soldados lançaram-lhes olhares estranhos ao vê-los

passar, e uma vez Bran ouviu alguém soltar uma gargalhada.

Recusou-se a deixar que aquilo o perturbasse.

- Os homens olharão para você - prevenira-o Meistre Luwin da

primeira vez que tinham atado o assento ao peito de Hodor. -

Olharão e falarão, e alguns zombarão - pois que zombem, pensara

Bran. Ninguém zombava dele no seu quarto, mas não queria viver a

vida na cama.

Ao passarem sob a porta levadiça da casa da guarda, Bran pôs dois

dedos na boca e assobiou. Verão veio aos saltos pelo pátio afora. De

repente, os lanceiros Karstarks lutavam para manter o controle dos

cavalos, enquanto os animais viravam os olhos e relinchavam de

medo. Um garanhão empinou-se, gritando, enquanto o cavaleiro

praguejava e se agarrava desesperadamente. O cheiro dos lobos

selvagens punha os cavalos num frenesi de medo se não estivessem

habituados, mas se aquietariam rapidamente quando Verão fosse

embora.

- O bosque sagrado - Bran lembrou a Hodor.

Até mesmo Winterfell estava cheio de gente. O pátio ressoava com o

som de espadas e machados, com o estrondear das carroças e o

ladrar dos cães. As portas do armeiro estavam abertas, e Bran viu de

relance Mikken na sua forja, fazendo tinir o martelo enquanto suor

lhe pingava do peito nu. Bran nunca vira tantos estranhos em toda

sua vida, nem mesmo quando o Rei Robert viera visitar seu pai.

Tentou não vacilar quando Hodor se abaixou para atravessar uma

porta baixa. Caminharam por um longo átrio sombrio, com Verão

acompanhando facilmente o passo. O lobo olhava para cima de vez

em quando, com os olhos ardendo como ouro líquido. Bran teria

gostado de tocá-lo, mas estava alto demais para que a mão nele

chegasse.

O bosque sagrado era uma ilha de paz no mar de caos em que

Winterfell tinha se transformado. Hodor abriu caminho através dos

densos maciços de carvalho, pau-ferro e árvores--sentinelas até a

lagoa parada junto à árvore-coração. Parou sob os ramos nodosos do

represeiro cantarolando. Bran ergueu os braços acima da cabeça e

alçou-se para fora do assento, fazendo passar o peso morto das

pernas através dos buracos do cesto. Ficou pendurado por um

momento, oscilando, com as folhas vermelho-escuras roçando-lhe no

rosto, até que Hodor o pegou e o abaixou até a pedra lisa ao lado da

água.

- Quero ficar um pouco sozinho - disse. - Vá se molhar. Vá até as

lagoas.

- Hodor - o gigante seguiu através das árvores e desapareceu. Do

outro lado do bosque sagrado, sob as janelas da Casa de Hóspedes,

uma nascente quente subterrânea alimentava três pequenos charcos.

Saía vapor das águas dia e noite, e o muro que se erguia ao lado

estava coberto de musgo. Hodor detestava água fria e lutava como

um gato selvagem refugiado numa árvore sempre que era ameaçado

com sabão, mas entrava alegremente no charco mais quente e ficava

lá sentado durante horas, soltando um sonoro arroto para fazer eco à

nascente sempre que uma bolha se erguia das sombrias profundezas

verdes e se quebrava na superfície.

Verão bebeu um pouco de água e deitou-se ao lado de Bran. Este fez

um afago sob o focinho do lobo, e por um momento rapaz e animal

sentiram-se em paz. Bran sempre gostara do bosque sagrado, mesmo

antes, mas nos últimos tempos achara-se cada vez mais atraído para

lá. Até a árvore-coração já não o assustava como costumava antes.

Os profundos olhos vermelhos esculpidos no tronco claro ainda o

observavam, mas, de algum modo, agora tirava conforto disso. Os

deuses olhavam por ele, dizia a si mesmo, os deuses antigos, deuses

dos Stark, dos Primeiros Homens e dos Filhos da Floresta, os deuses

do seu pai. Sentia-se seguro à vista deles, e o profundo silêncio das

árvores o ajudava a pensar. Bran tinha passado a pensar muito desde

a queda; a pensar, a sonhar e a falar com os deuses.

- Por favor, façam com que Robb não vá embora - rezou em voz

baixa. Moveu a mão pela água fria, criando ondinhas que

atravessaram a lagoa. - Por favor, façam com que ele fique. Ou, se

tiver de ir, tragam-no a salvo para casa, com a mãe e o pai e as

meninas. E façam com que... façam com que Rickon compreenda.

O irmão mais novo tornara-se incontrolável como uma tempestade

de inverno desde que soubera que Robb ia partir para a guerra, ora

choroso, ora zangado. Recusava-se a comer, chorava e gritava noite

adentro, chegara mesmo ao ponto de dar um soco na Velha Ama

quando ela tentou embalá-lo com canções, e no dia seguinte

desapareceu. Robb pusera metade do castelo à sua procura, e quando

finalmente o encontraram lá embaixo, nas criptas, Rickon golpeara-os

com uma enferrujada espada que tirara da mão de um rei morto, e

Cão Felpudo saltara da escuridão, babando como um demônio de

olhos verdes. O lobo estava quase tão fora de controle como Rickon;

mordera Gage no braço e arrancara um pedaço da coxa de Mikken.

Só o próprio Robb e Vento Cinzento tinham logrado acalmá-lo,

Farlen mantinha-o agora acorrentado nos canis, e Rickon chorava

ainda mais por estar sem ele.

Meistre Luwin aconselhara Robb a permanecer em Winterfell, e Bran

também lhe pedira, tanto por si como por Rickon, mas o irmão

limitara-se a balançar teimosamente a cabeça e a dizer:


- Não quero ir. Tenho de ir.

Era só meia mentira. Alguém tinha de ir, para defender o Gargalo e

ajudar os Tully contra os Lannister, Bran compreendia isso, mas não

tinha de ser Robb. O irmão podia ter dado o comando a Hal Mollen

ou a Theon Greyjoy, ou a um dos senhores seus vassalos. Meistre

Luwin insistiu para que fizesse isso mesmo, mas Robb não queria

ouvir falar do assunto.

- O senhor meu pai nunca enviaria homens para a morte para se

esconder como um covarde atrás das muralhas de Winterfell -

dissera, todo ele Robb, o Senhor.

Robb agora parecia a Bran quase um estranho, transformado, um

senhor de verdade, embora não tivesse ainda passado pelo décimo

sexto dia do seu nome. Até os vassalos do pai pareciam senti-lo.

Muitos tentavam testá-lo, cada um à sua maneira. Tanto Roose

Bolton como Robett Glover exigiram a honra do comando de batalha,

o primeiro de forma brusca, o segundo com um sorriso e um

gracejo. A resoluta e grisalha Maege Mormont, vestida de cota de

malha como se fosse um homem, disse abruptamente a Robb que ele

tinha idade para ser seu neto e que não tinha nada que lhe dar

ordens. ., mas acontecia que tinha uma neta com a qual estava

disposta a deixá-lo se casar. Lorde Cerwyn, um homem de falas

mansas, tinha até mesmo trazido consigo a filha, uma donzela

rechonchuda e desajeitada de trinta anos, que se sentou à esquerda

do pai e nunca levantou os olhos do prato. O jovial Lorde Hornwood

não tinha filhas, mas trouxe presentes, um dia um cavalo, no

seguinte um quadril de veado, no outro um corno de caça com

relevos de prata, e nada pediu em troca... nada exceto uma extensão

de terra que fora tirada de seu avô, e direitos de caça para norte de

uma certa serra, e licença para construir uma represa no Faca

Branca, se agradasse ao senhor.

Robb respondia a todos com fria cortesia, muito à semelhança do

que o pai poderia fazer, e de alguma forma dobrava-os à sua

vontade.

E quando Lorde Umber, cujos homens alcunhavam como Grande-Jon,

tão alto como Hodor e duas vezes mais largo, ameaçou levar suas

forças para casa se fosse colocado atrás dos Hornwood ou dos

Cerwyn na ordem de marcha, Robb disse-lhe que o fizesse, se assim

desejasse.

- E quando resolvermos o assunto dos Lannister - prometera,

coçando Vento Cinzento atrás da orelha -, marcharemos outra vez

para o norte e os arrancaremos da sua fortaleza e os enforcaremos

por quebra dos votos - praguejando, Grande-Jon atirara um jarro de

cerveja ao fogo e berrara que Robb era tão verde que devia urinar

erva. Quando Hallis Mollen se aproximara para refreá-lo, atirara-o ao

chão, virara uma mesa e desembainhara a maior e mais feia espada

longa que Bran jamais vira. Por toda a sala, seus filhos, irmãos e

soldados puseram-se em pé de um salto, puxando seu aço.

Mas Robb dissera apenas uma palavra em voz baixa, e com um

rosnido e num piscar de olhos, Lorde Umber deu por si estatelado de

costas, com a espada girando no chão a um metro de distância e a

mão pingando sangue no lugar de onde Vento Cinzento arrancara

dois dedos.

- O senhor meu pai me ensinou que empunhar o aço contra o seu

suserano significa a morte - Robb dissera-, mas sem dúvida que o

senhor queria apenas cortar-me a carne - as entranhas de Bran

fizeram-se em água quando Grande-Jon lutara para se erguer,

chupando os tocos vermelhos dos dedos... mas então,

espantosamente, o enorme homem soltou uma gargalhada,

- A vossa carne - o homem rugiu - é dura como um raio.

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