CAPÍTULO XX Grand Central Station

Todas as coisas são artificiais, pois a natureza é a arte de Deus.

THOMAS BROWNE: On Dreams Religio Medici (1642)

Os anjos precisam de um corpo simulado, não por eles próprios, mas por nós.

TOMAS DE AQUINO. Summa Theologica, f, 51, 2

O Demônio tem poder

Para assumir uma forma agradável.

WILLIAM SHAKESPEARE. Hamlet

A câmara de vácuo estava construída de maneira a acomodar apenas uma pessoa de cada vez. Quando tinham sido levantadas questões de prioridade — quanto a qual das nações seria a primeira representada no planeta de outra estrela —, os Cinco haviam levantado as mãos, escandalizados, e dito aos dirigentes do projeto não se tratar de uma missão desse gênero. Tinham evitado conscientemente discutir o assunto entre eles.

Tanto a porta interior como a exterior da câmara de vácuo se abriram simultaneamente. Eles não tinham dado nenhuma ordem.

Aparentemente, aquele setor da Grand Central estava adequadamente pressurizado e oxigenado.

— Bem, quem quer sair primeiro? — perguntou Devi.

De videocâmara na mão, Ellie esperava na bicha para sair, mas achou que a fronde de palmeira devia estar com ela quando pusesse os pés naquele novo mundo. Quando foi buscá-la, ouviu um grito de alegria vindo do exterior, provavelmente de Vaygay. Ellie correu para a brilhante luz solar. A soleira da porta exterior da câmara de vácuo estava cheia de areia. Devi, metida na água até aos tornozelos, chapinhava de brincadeira na direção de Xi. Eda tinha um grande sorriso rasgado no rosto.

Era uma praia. Desfaziam-se ondas na areia. O céu azul ostentava alguns cumulus indolentes. Havia uma série de palmeiras irregularmente espaçadas, um pouco afastadas da beira de água. Brilhava um sol no céu. Um sol. Amarelo. Exatamente como o nosso, pensou Ellie. Pairava no ar um aroma tênue; cravo-de-cabecinha, talvez, e canela. Podia ser uma praia de Zanzibar.

Tinham então feito uma viagem de trinta mil anos-luz para passear numa praia. Podia ser pior, pensou. Soprava uma brisa que provocava um pequeno redemoinho de areia à sua frente. Seria tudo aquilo apenas uma complicada simulação da Terra, talvez reconstruída a partir de dados trazidos por uma expedição de reconhecimento rotineira, um milhão de anos atrás? Ou teriam os Cinco empreendido aquela épica viagem somente para aperfeiçoarem o seu conhecimento de astronomia descritiva e serem depois abandonados sem-cerimônia num canto agradável da Terra?

Quando se voltou, verificou que o dodecaedro desaparecera. Tinham deixado a bordo o supercomputador supercondutor e a sua biblioteca de referências, assim como alguns dos instrumentos. O fato preocupou-os durante cerca de um minuto. Estavam em segurança e tinham sobrevivido a uma viagem acerca da qual valia a pena escrever para casa. Vaygay olhou a fronde que Ellie insistira em trazer consigo para a colônia de palmeiras ao longo da praia e riu-se.

— Chover no molhado — comentou Devi. Mas a fronde dela era diferente. Talvez ali tivessem espécies diferentes. Ou talvez a variedade local tivesse sido produzida por um fabricante desatento. Olhou para o mar. Veio-lhe irresistivelmente ao pensamento a imagem da primeira colonização do solo da Terra, havia cerca de quatrocentos milhões de anos. O que quer que aquilo fosse — o oceano Índico ou o centro da Galáxia —, os Cinco tinham feito uma coisa sem paralelo. Era verdade que o itinerário e os destinos estavam completamente fora da sua decisão. Mas eles tinham atravessado o oceano de espaço interestelar e iniciado o que seria com certeza uma nova era da história humana. Sentia-se muito orgulhosa.

Xi descalçou as botas e arregaçou até aos joelhos as pernas do banal fato-macaco carregado de insígnias que os Governos tinham decidido que todos eles deviam usar. Avançou através da suave rebentação. Devi ocultou-se atrás de uma palmeira e saiu de lá de sari e com o fato-macaco dobrado num braço, o que lhe fez lembrar um filme de Dorothy Lamour. Eda pôs na cabeça o gênero de chapéu de tecido que constituía a sua marca visual em todo o mundo. Ellie videogravou-os em tomadas curtas e saltitantes. Pareceria, quando regressassem, exatamente um filme caseiro. Foi juntar-se a Xi e a Vaygay na rebentação. A água parecia quase tépida. Estava uma tarde agradável e, considerando todas as circunstâncias, gozaram uma mudança agradável do Inverno de Hokkaido, que tinham deixado havia pouco mais de uma hora.

— Toda a gente trouxe qualquer coisa simbólica — comentou Vaygay —, menos eu.

— Que quer dizer?

— Sukhavati e Eda trouxeram peças de vestuário nacionais. Aqui o Xi trouxe um grão de arroz. — Efetivamente, Xi segurava o grão de arroz num saquinho de plástico entre o polegar e o indicador. — Você tem a sua fronde de palmeira — continuou Vaygay. — Mas eu… eu não trouxe nenhuns símbolos, nenhumas recordações da Terra. Sou o único materialista autêntico do grupo e tudo quanto trouxe está na minha cabeça.

Ellie tinha pendurado o medalhão ao pescoço, debaixo do fato-macaco. Desabotoou a gola e puxou-o para fora. Vaygay reparou e ela deu-lho a ler.

— De Plutarco, creio — disse ele, passado um momento. — Palavras valorosas, essas que os Espartanos proferiram. Mas, não esqueça, os Romanos venceram a batalha.

Pelo tom da admonição, Vaygay devia ter pensado que o medalhão era uma prenda de Der Heer. Ela sentiu-se enternecida com a sua desaprovação de Ken — sem dúvida justificada pelos acontecimentos — e com a sua constante solicitude. Deu-lhe o braço.

— Era capaz de matar por um cigarro — disse ele amigavelmente, e serviu-se do próprio braço para apertar o dela contra o flanco.


Os Cinco sentaram-se juntos perto de uma pequena lagoa formada pela maré. O quebrar das ondas gerava um suave ruído branco que recordava a Ellie o Projeto Argus e os seus anos de escuta da estática cósmica. O Sol ultrapassara havia muito o zênite, sobre o oceano. Passou velozmente por eles um caranguejo lateralmente ágil, com os olhos a girar nas suas hastes. Com caranguejos, cocos e as limitadas provisões das suas algibeiras poderiam sobreviver confortavelmente durante algum tempo. Não havia na praia outras pegadas além das suas.

— Nós achamos que eles fizeram o trabalho quase todo. — Vaygay explicava o que ele e Eda pensavam do que os Cinco tinham experimentado. — Tudo quanto o projeto fez foi um levíssimo franzido no espaço-tempo, para que eles tivessem qualquer coisa em que basear o seu túnel. Em toda aquela geometria multidimensional deve ter sido muito difícil detectar um minúsculo franzido no espaço-tempo. Mais difícil ainda ajustar-lhe um bocal.

— Que está a dizer? Eles mudaram a geometria do espaço?

— Mudaram. Estamos a dizer que, topologicamente, o espaço é não simplesmente conectado. É como… — sei que Abonneba não gosta desta analogia —… é como uma superfície bidimensional plana, a superfície inteligente, conectada por meio de um labirinto de tubagem com outra superfície bidimensional plana, a superfície estúpida. A única maneira de sair da superfície inteligente para a superfície estúpida num espaço e tempo razoável é através dos tubos. Agora imaginem que as pessoas da superfície inteligente descem um tubo com um bocal. Fazem um túnel entre as duas superfícies, desde que os estúpidos colaborem fazendo um pequeno franzido na sua superfície, de modo que o bocal possa ajustar-se.

— Portanto, os tipos espertos enviam uma radiomensagem e dizem aos estúpidos como fazer um franzido. Mas, se são seres verdadeiramente bidimensionais, como poderiam fazer um franzido na sua superfície?

— Acumulando uma grande quantidade de massa num lugar. — A resposta de Vaygay foi hesitante.

— Mas não foi isso o que nós fizemos.

— Bem sei, bem sei. Fosse como fosse, os benzels fizeram-no.

— Compreendem — explicou Eda brandamente —, se os túneis são buracos negros, isso implica verdadeiras contradições. Há um túnel interior na solução exata de Herr das equações de campo de Einstein, mas é instável. A mínima perturbação fecha-lo-ia e converteria o túnel numa singularidade física através da qual nada poderia passar. Tentei imaginar uma civilização superior que controlaria a estrutura interna de uma estrela em colapso, para manter o túnel interior estável. É muito difícil. A civilização teria de monitorizar e estabilizar eternamente o túnel. Seria particularmente difícil como uma coisa do tamanho do dodecaedro a cair por ele.

— Mesmo que Abonneba consiga descobrir uma maneira de manter o túnel aberto, há muitos outros problemas — disse Vaygay. — Demasiados. Os buracos negros acumulam problemas mais depressa do que acumulam matéria. Há as forças das correntes. Deveríamos ter sido esfrangalhados no campo gravitacional do buraco negro. Deveríamos ter sido esticados como as pessoas nos quadros de El Greco ou nas esculturas daquele italiano…? — Voltou-se para Ellie, para que ela preenchesse a lacuna.

— Giacometti — sugeriu ela. — Era suíço.

— Sim, como Giacometti. Depois, outros problemas: Pelas medidas da Terra, precisaríamos de uma quantidade infinita de tempo para passar através de um buraco negro e nunca poderíamos regressar à Terra, nunca. Talvez tenha sido isso que aconteceu. Talvez nunca regressemos. Além do mais, deveria ter havido um inferno de radiação próximo da singularidade. Esta é uma instabilidade mecânica quântica…

— E, finalmente — continuou Eda —, um túnel tipo Kerry pode conduzir a grotescas violações da casualidade. Com uma insignificante mudança de trajetória dentro do túnel poderíamos emergir do outro extremo tão primitivamente na história do universo quanto consigamos imaginar — um psicossegundo depois o Big Bang, por exemplo. Esse seria um universo muito desorganizado.

— Olhem, rapazes — disse Ellie —, não sou especialista em relatividade geral. Mas nós não vimos buracos negros? Não caímos neles? Não emergimos deles? Um grama de observação não vale uma tonelada de teoria?

— Bem sei, bem sei — concordou Vaygay, levemente angustiado. — Tem de ser qualquer outra coisa. O nosso entendimento da física não pode estar tão atrasado. Pois não?

Dirigiu a última pergunta, em tom um pouco lamentoso, a Eda, que se limitou a responder:

— Um buraco negro naturalmente ocorrente não pode ser um túnel; têm singularidades intransponíveis nos seus centros.

Com um sextante improvisado e os seus relógios de pulso mediram o tempo do movimento angular do Sol a pôr-se. Era de 3600 em vinte e quatro horas, pelo padrão da Terra. Antes de o Sol descer demasiado no horizonte desmontaram a câmara de Ellie e utilizaram a lente para acender lume. Ela conservou a fronde a seu lado, receosa de que alguém a atirasse descuidadamente para as chamas depois de escurecer. Xi revelou-se um perito em produzir fogo. Colocou-os na direção do vento e manteve o lume baixo.

Gradualmente, as estrelas foram nascendo. Estavam todas ali, as constelações familiares à Terra. Ellie ofereceu-se para ficar algum tempo de guarda, a cuidar do lume, enquanto os outros dormiam. Queria ver Lira nascer. O que aconteceu passadas algumas horas. A noite estava excepcionalmente clara e Vega brilhava firme e luminosamente. Do movimento aparente das constelações através do céu, das constelações do hemisfério sul que conseguia distinguir e do posicionamento da Ursa Maior perto do horizonte setentrional deduziu que se encontravam em latitudes tropicais. Se tudo isto é uma simulação, pensou antes de adormecer, deram-se a um grande trabalho.

Teve um pequeno e estranho sonho. Os Cinco estavam a nadar — nus, sem constrangimento, debaixo de água —, ora a boiar indolentemente junto de um coral armação-de-veado, ora deslizando para fissuras que no momento seguinte ficavam obscurecidas pela passagem de massas de algas. A certa altura, ela subiu à superfície. Viu passar uma nave com a forma de um dodecaedro a pouca altura acima da água. As paredes eram transparentes e no interior distinguiam-se pessoas vestindo dhotis e sarongs, lendo jornais e conversando despreocupadamente. Voltou a mergulhar para debaixo da superfície da água. Para o lugar que lhe pertencia.

Embora o sonho parecesse prolongar-se durante muito tempo, nenhum deles tinha qualquer dificuldade em respirar. Inalavam e expiravam água. Não sentiam nenhum mal-estar — na verdade, nadavam tão naturalmente como se fossem peixes. Vaygay até se parecia um pouco com um peixe — talvez uma garoupa. A água deve ser tremendamente oxigenada, deduziu ela. No meio do sonho lembrou-se de um ratinho que vira uma vez num laboratório de fisiologia, perfeitamente satisfeito num frasco de água oxigenada, até a bater esperançadamente com as patinhas dianteiras. Uma cauda vermiforme estendia-se atrás dele. Tentou recordar quanto oxigênio era necessário, mas achou que dava muito trabalho. Cada vez pensava menos, achou. Não há problema. Realmente.

Os outros tinham-se entretanto tornado distintamente pisciformes. As barbatanas de Devi eram translúcidas. Era obscuramente interessante, vagamente sensual. Desejou que continuasse, para poder entender alguma coisa. Mas até a pergunta a que queria responder lhe escapava. «Oh, respirar água tépida!», pensou. Que inventarão a seguir?


Ellie acordou com um sentimento de desorientação tão profundo que raiava a vertigem. Onde estava? Wisconsin, Puerto Rico, Novo México, Wyoming, Hokkaido? Ou no estreito de Malaca? Depois lembrou-se. Não era claro o ponto da Galáxia da Via Láctea em que se encontrava, dentro de um espaço de trinta mil anos-luz; provavelmente, o recorde de desorientação de todos os tempos, pensou. Apesar de lhe doer a cabeça, riu-se; e Devi, que dormia ao lado dela, mexeu-se. Devido ao declive da praia — na tarde anterior tinham efetuado um reconhecimento numa distância de cerca de um quilômetro sem encontrar nenhum vestígio de habitação —, a luz direta do Sol ainda a não alcançara. Ellie estava deitada numa almofada de areia. Devi, que acordava naquele momento, dormira com a cabeça apoiada no fato-macaco enrolado.

— Não acha que há alguma coisa de papa-açordice numa cultura que precisa de almofadas moles? — perguntou Ellie. — Naqueles que deitam a cabeça em jugos de madeira, à noite, nesses é que os apostadores batidos arriscam o seu dinheiro.

Devi riu-se e deu-lhe os bons-dias.

Ouviram gritar, de um ponto mais acima, na praia. Os três homens acenavam e chamavam-nas com gestos. Ellie e Devi levantaram-se e juntaram-se-lhes.

A prumo, na areia, encontrava-se uma porta. Uma porta de madeira, com almofadas e um puxador de latão. Pelo menos parecia de latão. A porta tinha dobradiças de metal pintadas de preto e estava instalada entre duas ombreiras, uma padieira e uma soleira. Não tinha nenhuma placa com o nome. Não era em aspecto nenhum extraordinária. Para a Terra.

— Agora dê a volta para a parte de trás — convidou Xi.

Pela parte de trás, a porta não estava ali. Ellie via Eda, Vaygay e Xi, e Devi um bocadinho afastada; via a areia contínua, sem nenhuma interrupção, entre eles quatro e ela. Desviou-se para o lado, com os calcanhares molhados pelas ondas, e distinguiu uma única linha vertical escura com a espessura de uma lâmina. Sentiu relutância em tocar-lhe. Voltou de novo à parte de trás e confirmou que não havia quaisquer sombras ou reflexos no ar diante de si e depois andou para a frente.

— Bravo! — exclamou Eda, a rir.

Ellie virou-se e encontrou a porta fechada à sua frente.

— Que viram? — perguntou.

— Uma mulher encantadora passando através de uma porta fechada com dois centímetros de espessura.

Vaygay parecia estar a sentir-se bem, apesar da falta de cigarros.

— Tentaram abrir a porta? — perguntou Ellie.

— Ainda não — respondeu Xi.

Ela voltou a recuar, para admirar a aparição.

— Parece uma coisa de… Como se chama aquele surrealista francês? — perguntou Vaygay.

— René Magritte — respondeu ela. — Era belga.

— Concordamos, presumo, que isto não é realmente a Terra — opinou Devi, abrangendo com um gesto oceano, praia e céu.

— A não ser que estejamos no golfo Pérsico há três mil anos e haja gênios por aí — respondeu Ellie a rir.

— Não a impressiona o cuidado da construção?

— Pois sim, são muito bons, admito isso — concordou Ellie. — Mas para que serve? Para que se terão entregado a todo este trabalho minucioso?

— Talvez tenham apenas a paixão de fazer as coisas bem feitas.

— Ou talvez estejam apenas a exibir-se.

— Não compreendo como poderiam conhecer as nossas portas tão bem — continuou Devi. — Pense nas muitas maneiras diferentes de fazer uma porta. Como podiam eles saber?

— Pode ter sido pela televisão — respondeu Ellie. — Vega recebeu sinais de televisão da Terra até… deixe ver… até à programação de 1974. É evidente que podem mandar os clips interessantes para aqui, por mensageiro especial, num ápice. Provavelmente apareceram inúmeras portas na televisão entre 1936 e 1974. Muito bem — continuou, como se não fosse mudar de assunto —, que pensam que aconteceria se abríssemos a porta e entrássemos?

— Se estamos aqui para sermos examinados — respondeu Xi —, do outro lado daquela porta talvez esteja o exame, porventura um para cada um de nós.

Ele estava preparado. Ela também desejou estar.

As sombras das palmeiras mais próximas projetavam-se agora na praia. Silenciosos, olharam uns para os outros. Pareciam os quatro ansiosos por abrir a porta e transpor o limiar. Só ela sentia alguma… relutância. Perguntou a Eda se ele gostaria de passar primeiro. Já agora, é conveniente pôr à frente o nosso melhor pé, pensou.

Ele pôs o barrete, fez uma vênia ligeira, mas graciosa, voltou-se e dirigiu-se para a porta. Ellie correu para ele e beijou-o nas duas faces. Os outros também o abraçaram. Ele virou-se de novo, abriu a porta, entrou e desapareceu, volatizou-se, o pé avançado primeiro, a mão a balançar por último. Com a porta entreaberta, parecera haver apenas a continuação da praia e. das ondas atrás dele. A porta fechou-se. Ellie contornou-a, mas não havia nenhum vestígio de Eda.

Seguiu-se Xi. Ellie sentiu-se confundida com a docilidade de todos eles, com a aceitação imediata de todos os convites anônimos que lhes tinham sido feitos. Podiam ter-nos dito aonde nos iam levar e para que era tudo isto, pensou. Isso podia ter feito parte da Mensagem, ou sido informação transmitida depois de a Máquina ser ativada. Podiam ter-nos dito que íamos atracar numa simulação de uma praia da Terra. Podiam ter-nos dito que esperássemos à porta. É evidente que, apesar de todos os seus talentos, os extraterrestres talvez saibam inglês imperfeitamente, tendo a televisão como único professor. O seu conhecimento de russo, mandarim, tamil e hausa seria ainda mais rudimentar. Mas eles tinham inventado a linguagem introduzida no manual de instruções da Mensagem. Por que não a usaram? Para conservarem o elemento surpresa?

Vaygay viu-a de olhos fixos na porta fechada e perguntou-lhe se desejava entrar a seguir.

— Obrigada, Vaygay. Tenho estado a pensar. Sei que é um pouco idiota, mas veio-me à cabeça… Por que temos de saltar através de todos os arcos que eles seguram para nós? Suponhamos que não fazemos o que eles pedem?

— Ellie, é tão americana! Para mim, isto é como estar na minha terra. Estou habituado a fazer o que as autoridades sugerem… especialmente quando não tenho outra alternativa.

Sorriu e girou agilmente nos calcanhares.

— Não aceite conversa fiada nenhuma do grão-duque! — recomendou ela, quando ele saiu.

Lá, muito no alto, uma gaivota piou. Vaygay deixara a porta entreaberta. Do outro lado continuava a haver apenas praia.

— Está bem? — perguntou-lhe Devi.

— Estou ótima. Palavra. Quero apenas ficar um momento comigo própria. Já os sigo.

— Sério, estou a perguntar como médica. Sente-se bem?

— Acordei com uma dor de cabeça e creio que tive uns sonhos muito fantasiosos. Não lavei os dentes nem bebi o meu café forte. Também não me importaria de ler o jornal da manhã. Tirando tudo isso, estou realmente bem.

— Parece, de fato, que está. Por acaso, também tenho uma dorzita de cabeça. Cuide de si, Ellie. Fixe tudo na memória, para mo poder contar… quando nos voltarmos a encontrar.

— Assim farei! — prometeu Ellie.

Beijaram-se e desejaram-se mutuamente felicidades. Devi transpôs o limiar e desapareceu. A porta fechou-se atrás dela. Depois, Ellie teve a impressão de que captara um odor a caril.

Lavou os dentes com água salgada. Fizera sempre parte da sua natureza um certo pendor para a meticulosidade, para o extremo asseio. Bebeu leite de coco como pequeno-almoço. Cuidadosamente, limpou toda a areia acumulada nas superfícies exteriores do sistema de microcâmara e do seu minúsculo arsenal de videocassetes em que registrara maravilhas. Lavou a fronde de palmeira na rebentação, como fizera no dia em que a encontrara em Cocoa Beach, pouco antes de partir para Methuselah

A manhã já estava quente e ela resolveu tomar banho. Com a roupa muito bem dobrada em cima da palmeira, mergulhou ousadamente na rebentação. Podem ser capazes de tudo, mas é pouco provável que os extraterrestres se sintam excitados pela vista de uma mulher nua, mesmo que ela esteja muito bem conservada, pensou. Tentou imaginar um microbiólogo excitado, levado a cometer crimes passionais depois de observar uma paramécia surpreendida em flagrante delito de mitose.

Languidamente, flutuou de costas, a subir e a descer, com o seu ritmo lento faseado com a chegada de sucessivas cristas de ondas. Tentou imaginar milhares de… câmaras, mundos simulados, fosse o que fosse que aqueles eram, comparáveis — cada um deles uma cópia meticulosa da parte mais agradável do planeta natal de uma pessoa. Milhares deles, cada um com céu e tempo, oceano, geologia e vida indígena indistinguíveis dos originais. Parecia uma extravagância, embora também sugerisse que estava ao alcance do possível uma conseqüência satisfatória: fossem quais fossem os recursos disponíveis, não se fabricava uma paisagem àquela escala para cinco espécimes de um mundo condenado.

Por outro lado… A idéia de extraterrestres como guardas de jardim zoológico tornara-se algo parecido com um clichê. E se aquela estação de grande tamanho, com a sua profusão de portos de atracação e ambientes, fosse realmente um zôo? «Vejam os animais exóticos nos seus habitats nativos» imaginou um pregoeiro de cabeça de caracol a gritar. Vêm turistas de toda a Galáxia, especialmente durante as férias escolares. E depois, quando há um exame, os chefes de estação transferem temporariamente as criaturas e os turistas, varrem a praia para apagar as pegadas e proporcionam aos primitivos que estão a chegar meio dia de repouso e recreio antes de a provação do exame começar.

Ou talvez fosse assim que eles abasteciam os zôos. Ellie pensou nos animais fechados em jardins zoológicos terrestres que se dizia terem sentido dificuldade em se reproduzir no cativeiro. Deu uma cambalhota na água e mergulhou sob a superfície, num instante de constrangimento. Deu algumas braçadas fortes na direção da praia e, pela segunda vez em vinte e quatro horas, desejou ter tido um filho.

Não estava ninguém por ali e não se lobrigava uma vela no horizonte. Algumas gaivotas percorriam a praia, aparentemente à procura de caranguejos. Desejou ter trazido pão para lhes dar. Depois de secar, vestiu-se e inspecionou de novo a porta. Estava ali, meramente à espera. Sentiu a mesma relutância em entrar. Mais do que relutância. Talvez medo.

Afastou-se, sem a perder de vista. Sentada debaixo de uma palmeira, com os joelhos erguidos para o queixo, percorreu com o olhar a longa extensão de praia arenosa branca.

Passados momentos levantou-se e espreguiçou-se um pouco. Com a fronde e a microcâmara numa das mãos, aproximou-se da porta e girou o puxador. A porta abriu-se um nadinha. Através da abertura viu as cristas brancas das ondas, ao largo. Empurrou mais um bocadinho e a porta abriu-se sem um gemido. A praia, serena e desinteressada, olhava para ela. Abanou a cabeça, voltou para trás e retomou a anterior postura pensativa.

Pensou nos outros com curiosidade. Estariam agora, nalguma estranha instalação examinadora, a estudar avidamente as perguntas de múltipla opção de resposta? Ou tratar-se-ia de uma prova oral? E quem eram os examinadores? Sentiu a inquietação aumentar de novo. Outro ser inteligente — um ser que evoluíra independentemente nalgum mundo distante, em condições físicas alheias às da Terra e com uma seqüência de mutações genéticas fortuitas completamente diferentes… um tal ser não se assemelharia a ninguém que ela conhecia. Ou imaginava, sequer. Se aquela era uma estação de exame, então havia chefes de estação, e os chefes de estação tinham de ser totalmente, devastadoramente não humanos. Havia dentro dela, lá muito no fundo, um não sei quê que se incomodava com insetos, cobras, toupeiras de focinho estrelado. Era uma pessoa que sentia um pequeno calafrio — para falar claro, um tremor de repugnância — quando confrontada com seres humanos defeituosos, ainda que ligeiramente. Aleijados, crianças com a síndrome de Down, até mesmo o aspecto do parkinsonismo, despertavam nela, mal-grado a sua resolução intelectual em contrário, um sentimento de nojo, um desejo de fugir. De modo geral, fora capaz de conter o seu medo, embora receasse ter alguma vez magoado alguém por causa dele. Não gostava muito de pensar naquilo; adivinhava o seu próprio embaraço e desviava o pensamento para outro tópico.

Mas agora preocupava-a a possibilidade de ser incapaz de enfrentar sequer — quanto mais de influenciar a favor da espécie humana — um ser extraterrestre. Na seleção não se tinham lembrado de examinar os Cinco acerca desse aspecto. Não houvera nenhum esforço para determinar se eles tinham medo de ratinhos, ou anões, ou marcianos. Fora coisa que não ocorrera, pura e simplesmente, às comissões selecionadoras. Perguntou a si mesma por que não teriam pensado nisso. Agora parecia-lhe um ponto de interesse bastante evidente.

Fora um erro terem-na mandado. Talvez, quando confrontada com algum chefe de estação galáctico com cabelo feito de serpentes, ela se desgraçasse — ou, muito pior, fizesse desviar a graduação dada à espécie humana, no inimaginável exame que estava a ser feito, de «aprovado,» para «reprovado». Olhou, com um misto de apreensão e atração, para a porta enigmática, cujo limite inferior estava agora debaixo de água. A maré enchia.

Surgiu uma figura na praia, a algumas centenas de metros de distância. Ao princípio julgou que fosse Vaygay, talvez despachado cedo do exame e que vinha dar-lhe a boa nova. Mas quem quer que era não vestia um fato-macaco do Projeto Máquina. Ademais, parecia uma pessoa mais jovem, mais vigorosa. Ellie estendeu a mão para a objetiva de grande profundidade de foco, mas hesitou, sem saber por quê. Levantou-se e protegeu os olhos do sol, com a mão em pala. Por um momento, por um momento apenas, parecera-lhe… Era claramente impossível. Eles não se aproveitariam de uma vantagem tão indecente sobre ela.

Mas não pôde conter-se. Desatou a correr direita a ele pela areia dura da beira de água, com o cabelo a esvoaçar atrás de si. Ele tinha o mesmo aspecto da fotografia que vira recentemente, parecia vigoroso, feliz. Apresentava a barba crescida, de um dia. Ela lançou-se-lhe nos braços a soluçar.

— Olá, Presh — disse ele, a afagar-lhe a parte de trás da cabeça com a mão direita.

Era a sua voz. Reconheceu-a imediatamente. E o seu cheiro, o seu andar, o seu riso. O mesmo arranhar que a barba lhe causava na face. Tudo isso se combinou para esfrangalhar o seu autodomínio. Sentiu uma pedra maciça a ser forçada, levantada, e os primeiros raios de luz a penetrarem num túmulo antigo, quase esquecido.

Engoliu em seco e tentou controlar-se, mas ondas de angústia aparentemente inesgotável jorravam dela e voltava a chorar. Ele estava pacientemente parado, a tranqüilizá-la com o mesmo olhar — lembrava-se agora — que lhe lançara do seu lugar no fundo da escada, durante a primeira descida a solo que ela fizera dos grandes degraus. Mais do que tudo, ansiara por voltar a vê-lo, mas reprimira esse sentimento, impacientara-se com ele, por ser tão claramente impossível de realizar. Chorou por todos os anos perdidos entre os dois.

Na adolescência e quando jovem mulher, sonhara que ele a procurava para lhes dizer que a sua morte fora um engano, que estava realmente bem. E erguia-a, num vôo, nos braços. Mas ela pagava esses breves momentos de suspensão do sofrimento com o reacordar doloroso num mundo em que ele já não se encontrava. Apesar disso, considerara esses sonhos um tesouro e pagara de bom grado o preço exorbitante quando, na manhã seguinte, era obrigada a redescobrir a sua perda e a experimentar de novo a agonia que ela lhe causava. Esses momentos-fantasmas eram tudo quanto lhe restava dele.

E agora ei-lo ali — não um sonho ou um fantasma, mas carne e sangue. Ou coisa muito parecida. Chamara-a das estrelas e ela acorrera.

Abraçou-o com toda a sua força. Sabia que era um truque, uma reconstrução, uma simulação, mas era impecável, sem um defeito. Segurou-o um momento pelos ombros, de braços estendidos. Era perfeito. Era como se o seu pai tivesse morrido e ido para o Céu havia tantos anos, e finalmente — por aquele caminho nada ortodoxo — ela tivesse conseguido reunir-se-lhe. Soluçou e abraçou-o de novo.

Precisou de um minuto para se dominar. Se tivesse sido Ken, por exemplo, ela teria pelo menos brincado com a idéia de que outro dodecaedro — talvez uma Máquina soviética reparada — estabelecera uma carreira posterior da Terra ao centro da Galáxia. Mas semelhante possibilidade não podia ser encarada nem por um momento em relação a ele. Os seus restos apodreciam num cemitério junto de um lago.

Limpou os olhos, a rir e a chorar ao mesmo tempo.

— A que devo então esta aparição… à robótica ou à hipnose?

— Sou um artefato ou um sonho? Podias fazer essa pergunta a respeito de tudo.

— Ainda hoje, não passa uma semana em que não pense que daria tudo, tudo quanto tenho, somente para passar de novo alguns minutos com o meu pai.

— Pois aqui estou — respondeu ele alegremente, de mãos levantadas e descrevendo meia volta para que ela pudesse ter a certeza de que a parte de trás do seu corpo também ali estava.

Mas era tão jovem, certamente mais jovem do que ela. Tinha morrido com trinta e seis anos apenas.

Talvez aquela fosse a maneira de eles acalmarem os seus temores. Se era assim, eram muito… atenciosos. Ellie conduziu o pai para junto das suas poucas coisas, a enlaçá-lo pela cintura. Ele dava a sensação, sem dúvida nenhuma, de ser suficientemente substancial. Se havia sistemas de engrenagens interligadas e circuitos integrados debaixo da sua pele estavam bem escondidos.

— Então como vamos indo? — inquiriu. A pergunta era ambígua. — Quero dizer…

— Eu sei. Passaram muitos anos desde que receberam a Mensagem até chegarem aqui.

— Classificam pela rapidez ou pela exatidão?

— Nem por uma coisa, nem por outra.

— Quer dizer que ainda não completamos o exame?

Ele não respondeu.

— Bem, explique-me — pediu, com certa angústia. Alguns de nós levamos anos a descriptografar a Mensagem e a construir a Máquina. Não me vai dizer tudo, explicar do que se trata?

— Tornaste-te uma grande curiosa — disse ele, como se fosse realmente seu pai, como se estivesse a comparar as últimas recordações que conservava dela com a sua personalidade presente e ainda incompletamente desenvolvida.

Despenteou-lhe o cabelo, com um gesto afetuoso. Ela também se recordava de que ele costumava fazer isso quando era pequena. Mas como podiam eles, a trinta mil anos-luz da Terra, conhecer os gestos afetuosos do pai, no Wisconsin distante no tempo e no espaço?

De súbito adivinhou:

— Sonhos — disse. — A noite passada, quando estávamos todos a sonhar, vocês estavam dentro das nossas cabeças, não é verdade? Extraíram tudo quanto nós sabemos.

— Só fazemos cópias. Penso que tudo quanto costumava estar na tua cabeça ainda lá está. Olha bem. Diz-me se falta alguma coisa.

Sorriu e continuou:

— Havia tantas coisas que os vossos programas de televisão não nos diziam! Conseguíamos avaliar o vosso nível tecnológico muito bem e mais uma quantidade de coisas a vosso respeito. Mas há muito mais na vossa espécie do que isso, coisas que com certeza não conseguiríamos aprender indiretamente. Admito que possam sentir alguma intrusão na intimidade…

— Está a brincar.

— … mas temos tão pouco tempo!

— Quer dizer que o exame terminou? Respondemos a todas as vossas perguntas a noite passada, enquanto dormíamos? E então? Ficamos aprovados ou reprovados?

— Não se trata disso. Não é como o sexto ano do liceu.

Ela freqüentava o sexto ano quando ele morrera.

— Não nos vejam como qualquer xerife interestelar a abater civilizações fora da lei. Vejam-nos mais como o Gabinete de Recenseamento Galáctico. Nós recolhemos informação. Sei que pensam que ninguém tem nada a aprender com vocês, porque estão tecnologicamente tão atrasados. Mas há outros méritos numa civilização.

— Que méritos?

— Oh, música! Bondade carinhosa. (Gosto destas palavras.) Sonhos. Os humanos são muito bons a sonhar, embora nunca pudéssemos saber isso através da sua televisão. Há culturas em toda a Galáxia que permutam sonhos.

— Funcionam como um centro de intercâmbio cultural interestelar? É disso que se trata? Não se importam se alguma civilização rapace e sanguinária descobre e aperfeiçoa o vôo espacial interestelar?

— Eu disse que admiro a bondade carinhosa.

— Se os nazis tivessem conquistado o mundo, o nosso mundo, e depois desenvolvessem o vôo espacial interestelar, vocês não teriam intervindo?

— Ficarias surpreendida se soubesses como é raro acontecer uma coisa dessas. A longo prazo, as civilizações agressivas quase sempre se auto-destroem. Está na sua natureza. Não podem evitá-lo. Num caso desses, a nossa missão seria deixá-las em paz. Certificarmo-nos de que ninguém as incomodava. Deixá-las compreender o seu destino.

— Então por que não nos deixaram em paz? Não estou a protestar, note. Sinto apenas curiosidade quanto ao modo como o Gabinete de Recenseamento Galáctico funciona. A primeira coisa que captaram de nós foi aquela transmissão do Hitler. Por que estabeleceram contato?

— Claro que o quadro era alarmante. Compreendemos que vocês estavam metidos num grande sarilho. Mas a música disse-nos outra coisa. Beethoven disse-nos que havia esperança. Os casos marginais são a nossa especialidade. Pensamos que lhes seria útil uma pequena ajuda. Na realidade, só podemos oferecer uma pequena ajuda. Tu compreendes. Há certas limitações impostas pela causalidade.

Tinha-se acocorado, a passar as mãos pela água, e agora estava a enxugá-las nas calças.

— A noite passada olhamos para dentro de vocês. De todos os Cinco. Há muita coisa lá: sentimentos, recordações, instintos, comportamento aprendido, percepções, loucura, sonhos, amores. O amor é muito importante. Vocês são uma mistura interessante.

— Tudo isso numa noite de trabalho? — Estava a provocá-lo um bocadinho.

— Tínhamos de nos apressar. O nosso programa é muito apertado.

— Por quê, está alguma coisa prestes a…

— Não. Sucede apenas que, se não engendramos uma causalidade consistente, ela se desenvolve sozinha. Então é quase sempre pior.

Ellie não fez a mais pequena idéia do que ele queria dizer.

— «Engendrar uma causalidade consistente.» O meu pai nunca costumava falar assim.

— Costumava, com certeza. Não te lembras como ele te falava? Era um homem muito lido, e desde pequenina que ele… eu… te falei como um igual. Não te lembras?

Ela lembrava-se. Lembrava-se. Pensou na mãe num lar de idosos.

— Que bonito medalhão — observou ele, exatamente com aquele ar de reserva paternal que ela sempre imaginara que o pai cultivaria se tivesse vivido para assistir à sua adolescência.

— Quem to deu?

— Ah, isto! — exclamou, a apalpar o medalhão. — Para falar verdade, é de alguém que não conheço muito bem. Pôs a minha fé à prova. Ele… Mas você já deve saber isso tudo.

Ele voltou a sorrir.

— Quero saber o que pensa de nós — disse Ellie, concisamente. — O que pensa de fato.

Ele não hesitou um momento sequer.

— Está bem. Penso que é extraordinário que se tenham saído tão bem como saíram. Praticamente, não têm nenhuma teoria de organização social, têm sistemas econômicos espantosamente atrasados, não têm nenhuma compreensão da engrenagem da predição histórica e têm muito pouco conhecimento a respeito de vocês próprios. Considerando a rapidez com que o vosso mundo está a mudar, é surpreendente que não tenham já ido pelos ares. É por isso que não queremos dá-los já por perdidos. Vocês, humanos, possuem um certo talento para a adaptabilidade… pelo menos no curto prazo.

— É esse o problema, não é?

— Esse é um problema. Verifica-se que, passado algum tempo, as civilizações possuidoras apenas de perspectivas a curto prazo desaparecem. Também cumprem o seu destino.

Ellie queria perguntar-lhe o que ele sentia sinceramente a respeito dos humanos. Curiosidade? Compaixão? Nenhuma espécie de sentimento, eles faziam apenas parte de um dia de trabalho? No fundo do seu coração — ou do órgão interno equivalente, fosse ele qual fosse, que possuía —, sentia a respeito dela como ela sentia a respeito de… de uma formiga? Mas não foi capaz de perguntar. Tinha demasiado medo da resposta.

Tentou fazer alguma idéia, pela entonação da voz e pelas nuances do que dizia, de quem estava ali disfarçado como seu pai. Ela tivera uma quantidade imensa de experiência direta com seres humanos; os chefes de estação tinham tido menos de um dia. Não seria capaz de discernir qualquer coisa da sua verdadeira natureza sob aquela fachada amigável e informativa? Mas não, não era. No conteúdo das suas palavras, ele não era, evidentemente, o seu pai, nem fingia ser. Mas em todos os outros aspectos parecia-se espantosamente com Theodore F. Arroway, 1924-60, vendedor de ferragens, marido e pai amante. Não fora um contínuo esforço de vontade, e ela estaria toda babosa, toda sentimental com aquela, aquela… cópia. Sabia-o. Uma parte do seu ser queria perguntar-lhe como tinham corrido as coisas desde que ele fora para o Céu. Quais eram as suas opiniões acerca de Advento e Êxtase? Preparava-se alguma coisa de especial para o Milênio? Havia culturas humanas que ensinavam a existência de uma vida além da morte dos abençoados em cumes de montanhas ou em nuvens, em cavernas ou oásis, mas ela não se lembrava de nenhuma que dissesse que, se uma pessoa era muito, muito boa, ia para a praia quando morria.

— Dispomos de tempo para algumas perguntas antes… do que quer que temos de fazer a seguir?

— Com certeza. Uma ou duas, pelo menos.

— Fale-me do vosso sistema de transporte.

— Posso fazer melhor do que isso. Posso mostrar-te. Agüenta firme agora.

Uma ameba de negrume escorreu do zênite, obscurecendo o Sol e o céu azul.

— Grande truque — comentou ela, ofegante.

Debaixo dos seus pés estava a mesma praia arenosa, na qual ela enterrou os dedos. Por cima… estava o cosmo. Encontravam-se, parecia, muito alto, sobre a Galáxia da Via Láctea, a olhar para baixo, pela sua estrutura espiralada, e a cair na sua direção a uma velocidade impossível. Ele explicou-lhe em termos práticos, utilizando a linguagem científica familiar da própria Ellie para descrever essa imensa estrutura em forma de roda de pinos. Mostrou-lhe o Braço Espiral de Órion, no qual o Sol estava, naquela época, embebido. Interiormente em relação a ele, por ordem decrescente de significado mitológico, encontravam-se o Braço de Sagitário, o Braço Norma/Scutum e o Braço de Três Kiloparsec.

Apareceu uma rede de linhas retas, representando o sistema de transporte que eles tinham utilizado. Lembrava os mapas iluminados do Metro de Paris, Eda tivera razão. Cada estação, deduziu Ellie, ficava num sistema estelar com um buraco negro duplo de massa baixa. Ela sabia que os buracos negros não podiam ter resultado de colapso estelar, da evolução normal de sistemas estelares maciços, porque eram demasiado pequenos. Talvez fossem primordiais, restos do Big Bang apresados por alguma nave estelar inimaginável e rebocados para a estação que lhes fora designada. Ou talvez tivessem sido feitos a partir do nada, desde o princípio. Desejou perguntar-lhe isso, mas a excursão avançava a uma velocidade estonteante.

Havia um disco de hidrogênio incandescente a rotacionar à volta do centro da Galáxia e dentro dele um anel de nuvens moleculares a correr para o exterior, na direção da periferia da Via Láctea. Ele mostrou-lhe os movimentos ordenados no conjunto de nuvens moleculares gigante Sagitário B2, que durante décadas fora um terreno de caça de moléculas orgânicas complexas preferencialmente explorado pelos seus colegas radioastrônomos na Terra. Mais perto do centro encontraram outra nuvem molecular gigante e depois a Sagitário A Ocidental, uma intensa fonte de rádio que a própria Ellie observara em Argus.

E imediatamente adjacentes, no próprio centro da Galáxia, apertados num apaixonado abraço gravitacional, um par de imensos buracos negros. A massa de um deles era de cinco milhões de sóis. Rios de gás com as dimensões de sistemas solares escorriam da sua bocarra. Dois colossais — Ellie pensou, agastada, nas limitações da linguagem da Terra —, dois supermaciços buracos negros orbitam-se um ao outro no centro da Galáxia. A existência de um fora conhecida, ou dela houvera, pelo menos, fortes suspeitas. Mas dois? Não deveria isso ter-se revelado como uma deslocação de linhas espectrais Doppler? Imaginou um letreiro da parte de baixo de um deles dizendo ENTRADA e da do outro SAÍDA. Naquele momento, a entrada estava a ser utilizada; a saída encontrava-se apenas ali.

E era aí que se situava aquela estação — a Grand Central Station —, em toda a segurança no exterior dos buracos negros do centro da Galáxia. Milhões de jovens estrelas vizinhas tornavam o firmamento brilhante; mas as estrelas, o gás e a poeira estavam a ser devorados pelo buraco negro de entrada.

— Vai ter a qualquer lado, não é verdade? — perguntou Ellie.

— Claro.

— Pode dizer-me onde?

— Com certeza. Todo este material vai parar a Cygnus A.

Cygnus A era uma coisa acerca da qual ela estava informada. Tirando apenas o resto de uma supernova próxima, em Cassiopéia, era a fonte de rádio mais brilhante do firmamento da Terra. Ela calculara que Cygnus A produzia num segundo mais energia do que o Sol em quarenta mil anos. A fonte de rádio encontrava-se a seiscentos milhões de anos-luz de distância, muito para além da Via Láctea, no seu reino das galáxias. Como acontecia com muitas fontes de rádio extragalácticas, dois enormes jatos de gás, viajando separados quase à velocidade da luz, faziam uma teia complexa de frentes de choque Rankine-Hugoniot com o rarefeito gás intergaláctico — e produziam, no processo, um farol de rádio que brilhava vivamente sobre a maior parte do universo. Toda a matéria daquela enorme estrutura, com quinhentos mil anos-luz de diâmetro, saía de um pequeno e quase insignificante ponto no espaço, exatamente a meio caminho entre os jatos.

— Estão a jazer a Cygnus A?

Lembrou-se vagamente de uma noite estival no Michigan, quando era rapariga. Receara cair no céu.

— Oh, não somos apenas nós! Trata-se de um… projeto de cooperação de muitas galáxias. É isso o que fazemos principalmente: construção. Só um… só uns quantos de nós estamos ligados a civilizações emergentes.

Em cada pausa ela sentira uma espécie de zunido na cabeça, aproximadamente na área do lobo parietal esquerdo.

— Há projetos de cooperação entre galáxias? — perguntou. — Quantidades de galáxias, cada uma com uma espécie de administração central? Com centenas de milhares de milhões de estrelas em cada galáxia? E depois essas administrações cooperam umas com as outras? Para lançar milhões de sóis em Centauro… desculpe, em Cygnus A? Oh… Perdoe, estou completamente atordoada com a escala. Por que fariam tudo isto? Para quê?

— Estás a pensar no universo como sendo um deserto. Há milhares de milhões de anos que não o é. Penso nele mais como… cultivado.

Novo zunido.

— Mas para quê? Que há lá para cultivar?

— O problema básico é facilmente determinado. Não te deixes assustar pela escala. No fim de contas, és uma astrônoma. O problema consiste no fato de o universo estar a expandir-se e não existir nele matéria suficiente para deter a expansão. Ao fim de algum tempo, nada de novas galáxias, nada de novas estrelas, nada de novos planetas, nada de formas de vida recém-surgidas — apenas a mesma velharia de sempre. Está tudo a ficar caduco. tornar-se-á chato. Por isso, estamos a experimentar em Cygnus A a tecnologia para fazer algo novo. Poderá chamar-se-lhe uma experiência de renovação urbana. Mas o nosso programa experimental não se resume a isso. Um pouco mais para diante talvez queiramos isolar uma parte do universo e evitar que o espaço vá ficando cada vez mais vazio à medida que as eternidades passem. Claro que a maneira de o fazer é aumentando a densidade da matéria local. É trabalho bom e honesto.

Como gerir uma loja de ferragens no Wisconsin.

Se a Cygnus A se encontrava a seiscentos milhões de anos-luz de distância, então os astrônomos da Terra — ou, pela mesma ordem de idéias, de qualquer outro ponto da Via Láctea — estavam a vê-la como era havia seiscentos milhões de anos. Mas ela sabia que, na Terra, seiscentos milhões de anos atrás não existia praticamente, nem mesmo nos oceanos, vida suficientemente grande para se lobrigar. Eles eram velhos.

Havia seiscentos milhões de anos, numa praia como aquela… Só que sem caranguejos, sem gaivotas, sem palmeiras. Tentou imaginar uma planta microscópica dada à costa, a tentar firmar-se debilmente logo acima da linha da água, enquanto aqueles seres estavam ocupados com galactogênese experimental e engenharia cósmica introdutória.

— Têm estado a lançar matéria na Cygnus A nos últimos seiscentos milhões de anos?

— Bem, o que vocês detectaram através da radioastronomia foram apenas algumas das nossas experiências de exeqüibilidade iniciais. Agora estamos muito mais adiantados.

E em devido tempo, dali a mais umas centenas de milhões de anos, imaginou Ellie, radioastrônomos da Terra — se os houvesse — detectariam um processo substancial na reconstrução do universo à volta da Cygnus A. Preparou-se para novas revelações e prometeu a si mesma que não permitiria que a intimidassem. Havia uma hierarquia de seres numa escala que não imaginara. Mas a Terra tinha um lugar, uma importância nessa hierarquia; eles não se teriam dado a todo aquele trabalho para nada.

O negrume recuou vertiginosamente para o zênite e desapareceu; Sol e céu azul voltaram. O cenário era o mesmo: rebentação, areia, palmeiras, porta de Magritte, microcâmara, fronde e o seu… pai.

— Aquelas nuvens e aqueles anéis interestelares em movimento perto do centro da Galáxia… Não são devidos a explosões periódicas nestas imediações? Não é perigoso situar a estação aqui?

— Episódicas, e não periódicas. Só acontece em pequena escala, nada que se pareça com o que estamos a fazer em Cygnus A. E é controlável. Sabemos quando vai acontecer e geralmente limitamo-nos a encolher-nos para nos protegermos. Se é verdadeiramente perigoso, então transferimos temporariamente a estação para qualquer outro lado. Tudo isto é rotina, compreendes?

— Claro. Rotina. Foram vocês que construíram tudo? Refiro-me aos caminhos subterrâneos. Vocês e essoutros… engenheiros de outras galáxias?

— Oh, não! Nós não construímos nenhuma dessas coisas.

— Escapou-me alguma coisa. Ajude-me a compreender.

— Parece acontecer o mesmo em toda a parte. No nosso caso, emergimos há muito tempo em muitos mundos diferentes da Via Láctea. Os primeiros dentre nós criaram o vôo espacial interestelar e eventualmente descobriram por acaso uma das estações de trânsito. Claro que não sabíamos o que era. Nem sequer tivemos a certeza se era artificial enquanto um de nós não teve a coragem suficiente para descer por ali abaixo.

— Quem são os «nós»? Refere-se aos antepassados da sua… raça, da sua espécie?

— Não, não. Somos muitas espécies, de muitos mundos. Eventualmente descobrimos um grande número de caminhos subterrâneos — de várias idades, com vários estilos de ornamentação e todos abandonados. A maioria encontrava-se ainda em bom estado de funcionamento. Nós limitamo-nos a fazer algumas reparações e algumas melhorias.

— Não encontraram mais nenhuns artefatos? Nenhumas cidades mortas? Nenhuns registros do que aconteceu? Não restavam nenhuns construtores de caminhos subterrâneos?

Ele abanou a cabeça.

— Nenhuns planetas industrializados abandonados?

Repetiu o gesto.

— Houve uma civilização à escala galáctica que surgiu e desapareceu sem deixar nenhum vestígio, a não ser as estações?

— É mais ou menos isso. E aconteceu o mesmo noutras galáxias. Há milhares de milhões de anos foram todos para qualquer outro lado. Não fazemos a mínima idéia para onde.

— Mas para onde poderiam ter ido?

Ele abanou a cabeça pela terceira vez, mas agora muito devagar.

— Por conseqüência, vocês não são…

— Não, nós somos apenas zeladores. Talvez um dia eles voltem.

— Está bem, só mais uma — pediu ela, de indicador espetado diante do nariz, como provavelmente fora seu hábito aos dois anos de idade. — Só mais uma pergunta.

— Seja — acedeu ele, tolerante. — Mas restam-nos poucos minutos.

Ela olhou de novo para a porta e reprimiu um estremecimento ao ver um pequeno caranguejo quase transparente passar de lado.

— Quero saber a respeito dos vossos mitos, das vossas religiões. Que os enche de respeitoso temor? Ou os que fazem o numinoso são incapazes de sentir isso?

— Vocês também fazem o numinoso. Não, eu sei o que estás a perguntar. certamente que o sentimos. Compreendes naturalmente que me é difícil comunicar-te parte disto. Mas vou dar-te um exemplo do que pretendes saber. Não digo que o seja exatamente, mas dar-te-á um…

Fez uma pausa momentânea e ela sentiu de novo um zunido, desta vez no lobo occipital esquerdo. Considerou a possibilidade de ele estar a rebuscar no meio dos neurônios dela. Ter-lhe-ia escapado alguma coisa na noite anterior? Se assim fora, sentia-se satisfeita. Significava que eles não eram perfeitos.

— … sabor do nosso numinoso. Relaciona-se com pi, a razão entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro. Claro que tu sabes isso bem, e também sabes que nunca se pode chegar ao fim de pi. Não existe nenhuma criatura no universo, por muito inteligente que seja, que consiga calcular pi até ao último dígito — porque não existe nenhum último dígito, mas sim, apenas, um número infinito de dígitos. Os vossos matemáticos fizeram um esforço para o calcular até ao…

Ela sentiu de novo o zunido.

— … nenhum de vocês parece saber… digamos até ao centésimo nono lugar. Não ficarás surpreendida se te disser que outros matemáticos foram mais longe. Bem, eventualmente — suponhamos que no espaço da décima para a vigésima potência — acontece qualquer coisa. Os dígitos que variam fortuitamente desaparecem e durante um espaço de tempo incrivelmente longo só há uns e zeros.

Distraidamente, ia desenhando um círculo na areia com o dedo grande do pé. Ela fez uma pausa com a duração de um batimento cardíaco antes de responder.

— E os zeros e os uns param, finalmente? Regressam a uma seqüência fortuita de dígitos? — Apressou-se a acrescentar, ao notar um leve sinal de encorajamento da parte dele: — E o número de zeros e uns? É um produto de números primos?

— Sim, e onze deles.

— Está a dizer-me que há uma mensagem em onze dimensões profundamente oculta no número pi? Alguém no universo comunica por… matemática? Mas… ajude-me, está a ser-me realmente difícil compreendê-lo. A matemática não é arbitrária. Quero dizer, pi tem de ter o mesmo valor em todo o lado. Como se pode ocultar uma mensagem dentro de pi? Está embutida no tecido do universo?

— Exatamente.

Ela fitou-o, de olhos muito abertos.

— É ainda melhor do que isso — prosseguiu ele. — Presumamos que só na aritmética de base dez aparece a seqüência de zeros e uns, embora se possa perceber que se passa algo de estranho em qualquer outra aritmética. Presumamos também que os seres que fizeram esta descoberta tinham dez dedos. Estás a ver a impressão que dá? É como se pi tenha estado à espera, há milhares de milhões de anos, de que apareçam matemáticos com dez dedos e computadores rápidos. Compreendes, a Mensagem foi a modos que dirigida a nós.

— Mas isso é apenas uma metáfora, não é verdade? Não se trata realmente de pi e do décimo para o vigésimo lugar, pois não? Vocês não têm, de fato, dez dedos.

— Não, de fato. — Sorriu-lhe de novo.

— Pelo amor de Deus, que diz a Mensagem?

Ele ficou um momento calado, levantou um indicador e depois apontou para a porta. Um pequeno grupo de pessoas saía excitadamente dela.

Aparentavam um estado de espírito jovial, como se se tratasse da partida para um piquenique havia muito adiado. Eda acompanhava uma espantosa e jovem mulher de saia e blusa vivamente coloridas e com o cabelo cuidadosamente coberto pelo arrendado gele preferido pelas mulheres muçulmanas de Yorubaland; estava visivelmente transbordante de alegria por vê-la. Graças a fotografias que ele mostrara, Ellie reconheceu-a como sua mulher. Sukhavati dava a mão a um jovem de ar determinado e olhos grandes e sentimentais; Ellie presumiu que se tratava de Surindar Ghosh, o havia muito falecido estudante de Medicina e marido de Devi. Xi conversava animadamente com um homem baixo, vigoroso e de porte autoritário, que tinha bigode ralo e caído dos lados e envergava uma cabaia de rico brocado, suntuosamente adornada com contas. Ellie imaginou-o a superintender pessoalmente na construção do modelo funerário do Reino Médio, a gritar instruções aos que deitavam o mercúrio.

Vaygay apresentou uma rapariga de onze ou doze anos, cujas tranças louras balançavam à cadência dos seus passos:

— A minha neta, Nina… mais ou menos. A minha grã-duquesa. Devia tê-las apresentado antes, em Moscovo.

Ellie abraçou a rapariga. Sentia-se grata por Vaygay não ter aparecido com Meera, a ecdisiasta. Observou a ternura do colega para com Nina e achou que gostava mais dele do que nunca. Durante todos os anos em que o conhecera, ele mantivera bem escondido aquele lugar secreto do seu coração.

— Não tenho sido um bom pai para a mãe dela — confessou Vaygay. — Ultimamente, quase nunca vejo Nina.

Ellie olhou em seu redor. Os chefes de estação tinham arranjado para cada um dos Cinco o que só podia ser descrito como os seus amores mais profundos. Talvez o tivessem feito apenas para tornar menos difíceis as barreiras de comunicação com outra espécie espantosamente diferente. Sentia-se satisfeita por nenhum deles estar a tagarelar agradavelmente com uma cópia exata de si próprio.

«E se fosse possível fazer aquilo na Terra?», perguntou-se. Se, apesar de todo o nosso fingimento e dissimulação, fosse necessário aparecer em público com a pessoa que amássemos acima de todas as outras? Supondo que isso era um requisito prévio para discorrer socialmente na Terra. Mudaria tudo. Imaginou uma falange de membros de um sexo a rodear um membro solitário do outro. Ou cadeias de pessoas. Círculos. As letras H ou Q. Indolentes figuras de 8s. Podiam-se monitorizar afetos profundos com um relance de olhos, bastando apenas observar a geometria — uma espécie de relatividade geral aplicada à psicologia social. As dificuldades práticas de tal método seriam consideráveis, mas ninguém conseguiria mentir a respeito do amor.

Os zeladores estavam com pressa, cortês, mas determinadamente com pressa. Não havia muito tempo para falar. A entrada para a câmara de vácuo do dodecaedro estava de novo visível, mais ou menos no mesmo lugar onde estivera quando tinham chegado. Por simetria, ou talvez devido a alguma lei de conservação interdimensional, a porta de Magritte desaparecera. Apresentaram toda a gente uns aos outros. Ellie sentiu-se idiota, em mais de um aspecto, ao explicar em inglês ao imperador Qin quem o pai era. Mas Xi traduziu obsequiosamente, e todos eles apertaram as mãos, com solenidade, como se aquele fosse o seu primeiro encontro, talvez num churrasco nos subúrbios. A mulher de Eda era uma grande beldade e Surindar Ghosh observava-a com uma atenção mais do que casual. Devi não parecia importar-se; talvez se sentisse meramente satisfeita com a exatidão minuciosa do simulacro.

— Aonde foi quando transpôs a porta? — perguntou-lhe Ellie, docemente.

— Maidenhall Way, 416 — respondeu Devi.

A outra olhou-a sem compreender.

— Londres, 1973. Com Surindar.

Inclinou a cabeça na direção dele e acrescentou:

— Antes da sua morte.

Ellie perguntou a si mesma o que teria encontrado se tivesse transposto a porta da praia. Talvez Wisconsin no fim da década de cinqüenta. Ela não aparecera na hora prevista e, por isso, ele viera ao seu encontro. Fizera isso mais de uma vez no Wisconsin.

Também tinham falado a Eda de uma mensagem profundamente inserida no interior de um número transcendente, mas na sua história não se tratara de pi nem de e, a base dos logaritmos naturais, mas sim de uma categoria de números de que ela nunca ouvira falar. Com uma infinidade de números transcendentes, nunca saberiam ao certo que número estudar quando regressassem à Terra.

— Senti uma vontade imensa de ficar e trabalhar no caso — confessou ele a Ellie, brandamente —, e tive a percepção de que eles precisavam de ajuda… de um modo qualquer de pensar na decifração que lhes não tivesse ocorrido. Mas creio que se trata de uma coisa muito pessoal para eles. Não querem compartilhá-la com outros. Aliás, encarando a realidade, acho que não somos suficientemente inteligentes para lhes darmos uma ajuda.

Não tinham eles decifrado a mensagem em pi? Os chefes de estação, os zeladores, os arquitetos de novas galáxias, não tinham decifrado uma mensagem que estivera debaixo da sua influência durante uma ou duas rotações galácticas? A mensagem seria assim tão difícil, ou estariam eles a…?

— São horas de ir para casa — disse-lhe o pai.

Foi dilacerante. Ela não queria ir. Tentou fitar a fronde de palmeira. Tentou fazer mais perguntas.

— Que quer dizer com «ir para casa»? Quer dizer que vamos emergir algures no sistema solar? Como desceremos para a Terra?

— Verás — respondeu-lhe ele. — Será interessante.

Passou-lhe o braço pela cintura e conduziu-a na direção da porta aberta da câmara de vácuo.

Era como na hora de ir para a cama. Podia ser engraçada, podia fazer perguntas inteligentes, e talvez eles a deixassem ficar levantada até um bocadinho mais tarde. Costumava dar resultado, pelo menos um pouco.

— A Terra agora está ligada com isto cá em cima, não é verdade? Em ambos os sentidos. Se nós podemos voltar para casa, vocês podem descer até nós num ápice. Sabe, isso deixa-me tremendamente nervosa. Por que não se limitam a cortar a ligação? Comecemos por aí.

— Lamento, Presh — respondeu ele, como se ela já tivesse ultrapassado descaradamente a hora de se deitar: as oito horas. Lamentaria ele isso, ou o fato de não estarem preparados para desatarraxar o túnel? — Durante algum tempo, pelo menos, o caminho estará aberto apenas para trânsito de entrada. Mas não esperamos usá-lo.

Ela gostaria que a Terra estivesse isolada de Vega. Preferia uma margem de cinqüenta e dois anos entre comportamento inaceitável na Terra e a chegada de uma expedição punitiva. A ligação pelo buraco negro era inquietante. Eles podiam chegar quase instantaneamente, talvez apenas em Hokkaido, ou talvez em qualquer ponto da Terra. Era uma transição para aquilo a que Hadden chamara micro-intervenção. Fossem quais fossem as garantias que eles dessem, agora observar-nos-iam mais amiúde. Tinham-se acabado as espreitadelas para uma olhadela, a fim de ver como as coisas iam, com intervalos de alguns milhões de anos.

Aprofundou mais o seu mal-estar. Como as circunstâncias se tinham tornado… teológicas. Ali estavam seres que viviam no céu, seres enormemente sabedores e poderosos, seres preocupados com a nossa sobrevivência, seres com um conjunto de perspectivas quanto ao modo como deveríamos comportar-nos. Repudiavam semelhante papel, mas era evidente que podiam aplicar recompensa e castigo, vida e morte, aos insignificantes habitantes da Terra. Em que é isto diferente, perguntou-se, da antiga religião? A resposta acudiu-lhe imediatamente ao espírito: era uma questão de prova. Nas suas videotapes, nos dados que os outros tinham adquirido, haveria evidência real da existência da estação, do que lá se passava, do sistema de trânsito dos buracos negros. Haveria cinco histórias independentes e mutuamente corroborativas, apoiadas por provas físicas convincentes. Isto era um fato, não música de ouvido e mistificação.

Voltou-se para ele e deixou cair a fronde. Em silêncio, ele baixou-se e devolveu-lha.

— Foi muito generoso da sua parte responder a todas as minhas perguntas. Posso responder a algumas que queira fazer?

— Obrigado. Respondeste a todas as nossas perguntas a noite passada.

— Acabou-se? Nenhuns mandamentos? Nenhumas instruções para os provincianos?.

— As coisas não funcionam assim, Presh. Agora és crescida. Estás entregue a ti própria.

Ele inclinou a cabeça, envolveu-a naquele seu sorriso, e ela lançou-se-lhe nos braços, com os olhos de novo cheios de lágrimas. Foi um abraço demorado. Por fim sentiu-o a soltar-lhe carinhosamente os braços. Eram horas de ir para a cama. Pensou levantar o indicador e pedir-lhe ainda mais um minuto. Mas não quis decepcioná-lo.

— Adeus, Presh. Dá saudades à tua mãe.

— Cuide de si — respondeu em voz fraca.

Lançou um último olhar à praia do centro da Galáxia. Um casal de aves marinhas, talvez procelárias, estava suspenso numa coluna de ar em ascensão. Mantinham-se no ar quase sem um bater de asas. Mesmo à entrada da câmara de vácuo voltou-se e chamou-o.

— Que diz a vossa Mensagem? O um em pi?

— Não sabemos — respondeu ele, um pouco tristemente, e deu alguns passos na sua direção. — Talvez seja uma espécie de acidente estatístico. Ainda estamos a estudar o assunto.

A brisa tornou-se mais forte e despenteou-a de novo.

— Bem, dêem-nos uma apitadela quando descobrirem frisou.

Загрузка...