CAPÍTULO IV Números primos

Não haverá nenhuns morávios na Lua, para que nem um missionário tenha ainda visitado este nosso pobre planeta pagão para civilizar a civilização e cristianizar a cristandade?

HERMAN MELVILLE White Jucket (1850)

Só o silêncio é grande;

tudo o mais é fraqueza.

ALFRED DE VIGNY La Mort du Loup (1864)

O vácuo preto e frio tinha ficado para trás. Os impulsos aproximavam-se agora de uma comum estrela anã amarela e já tinham começado a derramar-se pelo séquito de mundos daquele obscuro sistema. Tinham passado, palpitantes, por planetas de gás de hidrogênio, penetrado em luas de gelo, transposto as nuvens orgânicas de um mundo frígido onde os precursores da vida começavam a agitar-se e atravessado um planeta que já deixara o seu apogeu mil milhões de anos para trás. Agora, os impulsos estavam a espraiar-se contra um mundo tépido, azul e branco, que girava contra o pano de fundo das estrelas.

Havia vida neste mundo, vida extravagante na sua quantidade e variedade. Havia aranhas saltadoras nos cumes gelados das montanhas mais altas e vermes comedores de enxofre nos vapores quentes que esguichavam para cima através das escarpas dos leitos dos oceanos. Havia seres que só podiam viver em ácido sulfúrico concentrado e seres que eram destruídos por ácido sulfúrico concentrado; organismos que eram envenenados pelo oxigênio e organismos que sobreviviam exclusivamente no oxigênio, que respiravam, realmente, oxigênio.

Uma forma de vida particular, com um mínimo de inteligência, alastrara recentemente pelo planeta. Tinham postos avançados nos leitos dos oceanos e em órbita a baixa altitude. Tinham enxameado para todos os nichos e escaninhos do seu pequeno mundo. A fronteira que assinalava a transição da noite para o dia estava a desviar-se para ocidente e, obedecendo ao seu movimento, milhões desses seres efetuavam ritualmente as suas abluções matinais. Vestiam sobretudos e dhotis[2]; bebiam infusões de café, chá ou dente-de-leão, conduziam bicicletas, automóveis ou bois; e fugidiamente pensavam em problemas escolares, perspectivas para as plantações vernais e no destino do mundo.

Os primeiros impulsos da seqüência de ondas de rádio insinuaram-se através da atmosfera e das nuvens, embateram na paisagem e foram parcialmente re-refletidos para o espaço. Enquanto a Terra girava debaixo delas, chegaram impulsos sucessivos que invadiram não somente este planeta, mas também todo o sistema. Muito pouca da energia foi interceptada por qualquer dos mundos. A maior parte dela prosseguiu em frente, sem esforço — enquanto a estrela amarela e os seus mundos acompanhantes mergulhavam, numa direção completamente diferente, no negrume de tinta.


Envergando um casaco de dacron com a palavra Marauders por cima de uma estilizada bola de vôlei de feltro, o funcionário de serviço, que iniciava o turno noturno, aproximou-se do edifício de controle. Um grupo de radioastrônomos ia naquele momento a sair para jantar.

— Há quanto tempo andam vocês à procura de homenzinhos verdes? Há mais de cinco anos, não é, Willie?

Brincaram cordialmente com ele, mas o homem detectou uma certa irritação nas suas brincadeiras.

— Dêem-nos uma aberta, Willie — disse outro. — O programa de luminosidade dos quasars vai de vento em popa, mas demorará eternamente se só dispusermos de dois por cento de tempo de telescópio.

— Claro, Jack, claro.

— Willie, estamos a olhar para trás, para a origem do universo. Também há uma grande parada no nosso programa… e nós sabemos que existe ali um universo; vocês não sabem se existe um único homenzinho verde.

— Discutam o assunto com a doutora Arroway. Estou certo de que ela gostará de ouvir a vossa opinião — respondeu com certo azedume.

O funcionário de serviço entrou na área de controle. Fez uma inspeção rápida a dúzias de écrans de televisão que monitorizavam o progresso da radiopesquisa. Tinham acabado de examinar a constelação Hércules. Tinham espreitado para o coração de um grande enxame de galáxias para lá da Via Láctea, o Aglomerado de Hércules — a cem milhões de anos-luz de distância; tinham apontado, à M-13, um enxame de trezentos mil estrelas, mais estrela menos estrela, gravitacionalmente unidas e movendo-se em órbita à volta da Galáxia da Via Láctea a vinte e seis mil anos-luz de distância; tinham examinado Ras Algethi, um sistema duplo, e Zeta e Lambda Herculis algumas estrelas diferentes do Sol, algumas semelhantes, e próximas dele. A maior parte das estrelas que podemos ver a olho nu encontram-se a menos de alguns centos de anos-luz de distância. Haviam monitorizado cuidadosamente centenas de pequenos sectores do céu no interior da constelação de Hércules em mil milhões de freqüências diferentes e não tinham ouvido nada. Em anos anteriores tinham investigado as constelações imediatamente a ocidente de Hércules: Serpens, Corona Borealis, Boõtes, Canes Venatici… e também não tinham ouvido nada.

O funcionário de serviço reparou que alguns dos telescópios estavam orientados para procurar em Hércules alguns dados que faltavam. Os restantes apontavam, como que de olhar enfastiado, para uma extensão adjacente de céu, a constelação seguinte a leste de Hércules. As pessoas do Mediterrâneo Oriental, havia alguns milhares de anos, parecera um instrumento musical de cordas e tinha sido relacionada com o herói da cultura grega Orfeu. Era uma constelação chamada Lira.

Os computadores movimentavam os telescópios para acompanharem as estrelas de Lira desde que nasciam até que se punham, acumulavam os radiofótons, vigiavam a saúde dos telescópios e processavam os dados num formato conveniente para os seus utilizadores humanos. Até um funcionário de serviço era qualquer coisa como uma condescendência. Passando por um frasco de drops, uma máquina de café, uma frase em runas élficas retirada de Tolkien pelo Artificial Intelligence Laboratory de Stanford e um autocolante de pára-choques que dizia «buracos negros estão fora de vista», Willie aproximou-se da consola de comando. Acenou simpaticamente com a cabeça ao funcionário que estivera de serviço de tarde e estava agora a reunir os seus apontamentos e a preparar-se para sair e ir jantar. Em virtude de os dados recolhidos naquele dia estarem convenientemente sumarizados em âmbar no mostrador principal, Ellie não teve necessidade de perguntar quais tinham sido os progressos das horas precedentes.

— Como vê, nada de importante. Houve um pointing glitch — pelo menos era o que parecia — em 1949 —, disse o outro, a apontar vagamente na direção da janela. — O grupo dos quasars libertou os um-dez e um-vinte há cerca de uma hora. Parece que estão a obter dados muito bons.

— Sim, já ouvi dizer. Eles não compreendem…

A sua voz emudeceu quando uma luz de alarme se acendeu com decoro na consola à sua frente. Num mostrador identificado «Intensidade versus Freqüência» subia um aguçado espigão vertical e, é um sinal monocromático.

Outro mostrador, rotulado «intensidade versus Tempo», apresentava um conjunto de impulsos a mover-se da esquerda para a direita e depois a sair do écran.

— Aquilo são números — disse Willie, baixinho. — Alguém está a emitir números.

— Provavelmente, é alguma interferência da Força Aérea. Vi um Awacs, provavelmente de Kinland, cerca das dezesseis horas. Talvez estejam a enganar-nos para se divertirem.

Tinham-se feito acordos solenes para salvaguardar pelo menos algumas radiofreqüências para a astronomia. Mas, precisamente porque essas freqüências constituíam um canal desimpedido, às vezes os militares achavam-nas irresistíveis. Se alguma vez rebentasse a guerra global, talvez os radioastrônomos fossem os primeiros a saber, com as suas janelas abertas para o cosmo a transbordar de ordens para satélites de condução de combate e avaliação de estranhos em órbita geossíncrona e com a transmissão de ordens e lançamento codificadas para distantes postos estratégicos avançados. Mesmo sem nenhum tráfico militar, ao escutar mil milhões de freqüências simultaneamente, os astrônomos tinham de contar com alguma interferência. Relâmpagos, ignições de automóveis e satélites de difusão direta, tudo isto constituía fontes de interferências de rádio. Mas os computadores tinham o seu número, conheciam as suas características e ignoravam-nas sistematicamente. Aos sinais mais ambíguos, o computador escutava-os com maior cuidado e certificava-se de que não correspondiam a nenhuma lista dos dados que estava programado para compreender. De vez em quando passava uma aeronave de inteligência eletrônica em missão de treino — ocasionalmente com um disco de radar recatadamente disfarçado de disco voador na sua garupa — e Argus detectava subitamente sinais inequívocos de vida inteligente. Mas verificava-se sempre tratar-se de vida de uma espécie peculiar e triste, inteligente até certo ponto e apenas muito tangencialmente extraterrestre. Alguns meses antes, um F29E, com medidas defensivas eletrônicas state-of-the-art, sobrevoou-os a dois mil e quatrocentos metros e fez soar os alarmes de todos os cento e trinta e um telescópios. Aos olhos não militares dos astrônomos, a radioassinatura tinha sido suficientemente complexa para poder ser uma plausível primeira mensagem de uma civilização extraterrestre. Verificaram, porém, que o radiotelescópio mais ocidental recebera o sinal um minuto inteiro antes do mais oriental, e depressa se tornou evidente tratar-se de um objeto que atravessava o delgado invólucro de ar que circunda a Terra, e não uma emissão de alguma civilização inimaginavelmente diferente das profundezas do espaço. Este agora era quase com certeza a mesma coisa.


Os dedos da sua mão direita estavam enfiados em cinco receptáculos regularmente espaçados de uma caixa baixa colocada na sua secretária. Desde a invenção daquela engenhoca que conseguia poupar meia hora por semana. Mas, na verdade, não tivera grande coisa que fazer com essa meia hora extra.

— E estava a contar tudo a Mistress Yarborough. É a da cama ao lado, agora que Mistress Wertheimer faleceu. Não pretendo gabar-me, mas acho-me com direito a muito crédito pelo que tens feito.

— Sim, mãe.

Observou o brilho das unhas e achou que precisavam de mais um minuto, talvez um minuto e meio.

— Estive a pensar naquela vez no quarto ano… lembras-te? Chovia e tu não querias ir à escola, e pediste-me que no dia seguinte escrevesse um bilhete a dizer que faltaras por teres estado doente. E eu recusei-me. Disse: «Ellie, além de se ser bonita, a coisa mais importante do mundo é ter instrução. Não podemos fazer grande coisa quanto à boniteza, mas podemos fazer alguma quanto à instrução. Vai para a escola. nunca se sabe o que poderás aprender hoje.» Não é verdade?

— Sim, mãe.

— O que quero dizer é se não foi isso que te disse nessa altura.

— Foi, mãe, eu lembro-me.

O brilho dos quatro dedos estava perfeito, mas o polegar ainda tinha um aspecto mate-baço.

— Por isso, fui buscar as tuas galochas e o teu impermeável — era um daqueles amarelos, compridos, ficavas muito engraçada com ele — e corri contigo para a escola. E foi nesse dia que não conseguiste responder a uma pergunta na aula de Matemática de Mister Weisbrod, não foi? Ficaste tão furiosa que foste direita à biblioteca do colégio e leste a respeito do assunto até ficares a saber mais do que Mister Weisbrod. Ele sentiu-se impressionado. Disse-me.

— Disse-lhe? Não sabia isso. Quando falou com Mister Weisbrod?

— Foi numa reunião de pais com professores. Ele disse-me: «Aquela sua pequena tem gênica.» Ou palavras com o mesmo sentido. «Ficou tão furiosa comigo que se tornou uma verdadeira especialista na matéria». «Especialista», foi o que ele disse. Eu sei que te contei isto.

Tinha os pés apoiados numa gaveta da secretária e estava recostada na cadeira giratória; a única coisa que a estabilizava eram os dedos enfiados na máquina de envernizar. Sentiu o «besouro» quase antes de o ouvir e endireitou-se bruscamente.

— Mãe, tenho de desligar.

— Tenho a certeza de que te contei esta história antes. Tu é que nunca prestas atenção ao que eu digo. Mister Weisbrod era um homem simpático, embora tu nunca tenhas conseguido ver o seu lado bom.

— Mãe, tenho mesmo de desligar. Detectamos um tipo qualquer de bogey.

— Bogey?

— A mãe sabe o que é, uma coisa que pode ser um sinal. Já falamos a esse respeito.

— Aqui estamos nós a pensar que a outra não está a ouvir. Tal mãe, tal filha.

— Adeus, mãe.

— Deixo-te desligar se me prometeres que logo a seguir me telefonas.

— Está bem, eu prometo.

Durante toda a conversa, a carência e a solidão da mãe tinham despertado em Ellie um desejo de terminar a conversa, de fugir. Detestava-se por isso.


Desembaraçadamente, entrou na área de controle e aproximou-se da consola principal.

— Boas noites, Willie, Steve. Vamos lá ver os dados. Ótimo. Onde meteram o gráfico da amplitude? Muito bem. Têm a posição interferométrica? Sim, senhor. Vejamos agora se há alguma estrela próxima nesse campo de visão. Oh, estamos a olhar para Vega! É uma vizinha muito próxima.

Os seus dedos iam premindo um teclado enquanto ela falava.

— Vejam, está apenas a vinte e seis anos-luz de distância. Foi observada antes, sempre com resultados negativos. Eu própria a observei na minha primeira exploração em Arecibo. Qual é a intensidade absoluta? Com a breca! São centenas de janskys. Podia-se captar praticamente num rádio de FM. Muito bem. Temos, portanto, um bogey muito perto de Vega no plano do céu uma freqüência à volta de nove vírgula dois gigahertz, não muito monocromática. A largura da banda é de poucas centenas de hertz. É linearmente polarizada e está a transmitir um conjunto de impulsos móveis restritos a duas amplitudes diferentes.

Em resposta às suas ordens datilografadas, o écran apresentou a disposição de todos os radiotelescópios.

— Está a ser recebido por cento e dezesseis telescópios individuais. É evidente que não se trata de avaria de um ou dois deles. Bem, agora devemos ter suficiente linha dos tempos. Está a mover-se com as estrelas? Ou poderá ser algum satélite ou aeronave ELINT?

— Posso confirmar o movimento sideral, doutora Arroway.

— Muito bem, isso é bastante convincente. Não é cá de baixo, da Terra, e provavelmente não é de um satélite artificial numa órbita molniya, embora seja melhor verificarmos isso. Quando tiver oportunidade, Willie, ligue para NORAD e veja o que dizem acerca da possibilidade de ser um satélite. Se pudermos excluir os satélites, isso deixar-nos-á duas possibilidades: ou é uma brincadeira, ou alguém conseguiu finalmente enviar-nos uma mensagem. Steve, faça uma verificação manual. Examine alguns radiotelescópios individuais — a força do sinal é sem dúvida suficientemente grande — e veja se há alguma possibilidade de ser um truque; você percebe, uma gracinha de alguém que deseja demonstrar-nos o erro dos nossos procedimentos.

Um punhado de outros cientistas e técnicos, alertados através dos seus «besouros» pelo computador Argus, tinha-se reunido à volta da consola de comando. Viam-se-lhes meios sorrisos nos rostos. Nenhum deles pensava seriamente na possibilidade de uma mensagem de outro mundo, por enquanto, mas havia uma sensação de dia sem escola, uma quebra da enfadonha rotina a que se tinham habituado e talvez um leve ar de expectativa.

— Se ocorrer a algum de vocês qualquer outra explicação além da de inteligência extraterrestre, quero ser informada — disse Ellie, demonstrando-lhes que estava ao corrente da sua presença.

— Não há nenhuma possibilidade de ser Vega, doutora Arroway. O sistema tem apenas poucas centenas de milhões de anos. Os seus planetas encontram-se ainda no processo de formação. Não ouve tempo para lá se desenvolver vida inteligente. Tem de ser alguma estrela de fundo. Ou galáxia.

— Mas, nesse caso, a força do emissor tem de ser absurdamente grande — lembrou um membro do grupo dos quasars que voltara para trás, a fim de ver o que estava a acontecer. — Precisamos de iniciar imediatamente um estudo sensível de movimento próprio para podermos ver se a fonte de rádio se movimenta com Vega.

— Claro que tem razão acerca do movimento. próprio, Jack — concordou Ellie. — Mas há outra possibilidade. Talvez eles não tenham crescido no sistema de Vega. Talvez estejam apenas de visita.

— Isso também não serve. O sistema está cheio de resíduos. É um sistema solar falhado ou um sistema solar ainda nos seus estádios de desenvolvimento iniciais. Se lá se demoram muito tempo, a sua nave espacial será bombardeada.

— Por conseqüência, chegaram recentemente. Ou vaporizam os meteoritos que se aproximem. Ou recorrem a ação de esquiva se há uma massa de resíduos numa trajetória de colisão. Ou não estão no plano anelar, mas sim em órbita polar, a fim de minimizarem os seus encontros com os resíduos. Há um milhão de possibilidades. Mas você está absolutamente certo: não precisamos de calcular se a fonte é no sistema Vega: Podemos descobrir, de fato. Quanto tempo demorará esse estudo de movimento próprio? A propósito, Steve, este não é o seu turno. Pelo menos, avise a Consuela de que vai chegar tarde para jantar.

Willie, que estivera a telefonar numa consola adjacente, apresentava um sorriso amarelo.

— Bem, consegui comunicar com um tal major Braintree, em NORAD. Ele garante a pés juntos que não têm nada que dê este sinal, principalmente a nove gigahert. Claro que nos dizem o mesmo todas as vezes que telefonamos. De qualquer modo, afirma que não detectaram nenhuma nave espacial na ascensão e declínio certos de Vega.

— E a respeito de escuros?

Naquela altura havia muitos satélites «escuros» com baixos cones transversais de radar, concebidos para orbitar a Terra sem serem anunciados nem detectados até uma hora de necessidade. Então serviriam como suportes de detecção de lançamentos ou de comunicações numa guerra nuclear, em caso de os satélites militares de primeira linha destinados a esses fins desaparecerem subitamente em ação. Ocasionalmente, um escuro era detectado por um dos grandes sistemas astronômicos de radar. Todas as nações negavam que o objeto lhes pertencesse e desencadeava-se uma especulação desenfreada a respeito da detecção de uma nave espacial extraterrestre a orbitar a Terra.

Com a aproximação do Milênio, os cultos OVNI prosperavam de novo.

— A interferometria exclui agora uma órbita tipo molnyia, doutora Arroway.

— Cada vez melhor. Olhemos mais atentamente estes impulsos móveis. Presumindo que isto é aritmética binária, alguém a converteu em base dez? Sabemos qual é a seqüência de números? Muito bem, podemos calcular isso de cabeça… 59, 61, 67… 71… Não são todos números primos?

Um pequeno murmúrio de excitação percorreu a sala de controle. O rosto da própria Ellie revelou momentaneamente um estremecimento de qualquer coisa profundamente sentida, mas que foi rapidamente substituído por uma sobriedade, um receio de se deixar arrebatar pelo entusiasmo, uma apreensão de poder parecer pateta, incientífica.

— Bem, vejamos se consigo fazer outro resumo rápido. Tentarei fazê-lo na linguagem mais simples possível. Verifiquem, por favor, se me escapou alguma coisa. Temos um sinal extremamente forte e não muito monocromático. Imediatamente fora do passa-banda deste sinal não existem outras freqüências transmitindo alguma coisa mais do que ruído. O sinal é linearmente polarizado, como se estivesse a ser emitido por um radiotelescópio. O sinal anda nas imediações dos nove gigahertz, perto do mínimo do fundo de ruído de rádio galáctico. É o tipo certo de freqüência para alguém que queira ser ouvido de uma grande distância. Confirmamos o movimento sideral da fonte, o que significa que se está a mover como se estivesse lá em cima, entre as estrelas, e não proviesse de um transmissor local. NORAD diz-nos que não detectam nenhuns satélites — nossos ou seja de quem for — que correspondam à posição desta fonte. A interferometria exclui, aliás, uma fonte a orbitar a Terra.

«Agora o Steve examinou os dados fora do modo automatado e não parece tratar-se de um programa que alguém possuidor de um sentido de humor deformado tenha introduzido no computador. A região do firmamento que estamos a examinar inclui Vega, que é uma estrela anã de seqüência principal A-zero. Não é exatamente como o Sol, mas encontra-se apenas a vinte e seis anos-luz de distância e tem o anel de detritos estelares prototípicos. Não há nenhuns planetas conhecidos, mas certamente poderia haver planetas acerca dos quais não sabemos nada à volta de Vega. Estamos a iniciar um estudo de movimento próprio para ver se a fonte está bem atrás da nossa linha de visão para Vega, e devemos ter uma resposta dentro de… — o quê? —… poucas semanas se nos restringirmos a nós próprios, ou poucas horas se fizermos alguma interferometria de linha dos tempos longa.

«Finalmente, o que está a ser enviado parece uma longa seqüência de números primos, números inteiros que não são divisíveis por qualquer outro número a não ser por si mesmos e por um. Nenhum processo astrofísico é susceptível de gerar números primos. Por isso diria, devemos ser cautelosos, evidentemente…, mas eu diria que, de acordo com todos os critérios a que temos acesso, isto parece ser o artigo genuíno.

«Mas existe um problema na idéia de que seja uma mensagem de tipos que evoluíram nalgum planeta das imediações de Vega, porque, sendo assim, teriam tido de evoluir muito depressa. O tempo de vida completo da estrela é apenas de cerca de quatrocentos milhões de anos. É um lugar pouco provável para a civilização mais próxima. Por conseguinte, o estudo do movimento próprio é muito importante. Mas eu gostaria, sem dúvida nenhuma, de examinar um pouco mais essa possibilidade de truque.

— Olhe — disse um dos astrônomos de observação de quasars que estivera a assistir na periferia do ajuntamento, e apontou com o queixo para o horizonte ocidental, onde uma leve aura rósea indicava inequivocamente onde o Sol se pusera. — Vega vai pôr-se daqui a umas duas horas. Provavelmente já nasceu na Austrália. Não podemos comunicar com Sydney e pedir-lhes que observem ao mesmo tempo que nós ainda estamos a ver aqui?

— Boa idéia. Lá a tarde vai apenas em meio. E juntos teremos linha dos tempos suficiente para o estudo do movimento próprio. Dêem-me esse printout sumário e eu telefaxo-o para a Austrália do meu gabinete.

Com uma compostura forçada, Ellie deixou o grupo reunido à volta das consolas e voltou para o seu gabinete. Fechou a porta com todo o cuidado depois de entrar.

— C’um raio! — murmurou.


— Ian Broderick, por favor. Sim, é Eleanor Arroway, do Projeto Argus. Trata-se mais ou menos de uma emergência. Obrigada, eu espero… Olá, Ian! Provavelmente não é nada, mas temos aqui um bogey e eu gostaria de saber se pode verificar aí para nós. É à volta de nove gigahertz, com um passa-banda e algumas centenas de hertz. Vou telefaxar os parâmetros… Já têm no disco uma antena boa a nove gigahertz? Isso é um bocado de sorte… Sim, Vega está em cheio no meio do campo visível. E nós estamos a receber o que parece serem impulsos de números primos… Sério. Está bem, eu aguardo.

Pensou mais uma vez quanto a comunidade astronômica mundial se encontrava atrasada. Ainda não estava on line um sistema conjunto de computador e banco de dados. A sua importância, só para reticulação assíncrona, seria…

— Escute, Ian, enquanto o telescópio acaba de girar, não podia preparar-se para examinar um diagrama de amplitude-tempo? Chamemos aos impulsos de baixa amplitude pontos e aos impulsos de alta amplitude traços. Estamos a… Sim, é exatamente esse o padrão que temos estado a ver na última meia hora… Talvez. Bem, é o melhor candidato em cinco anos, mas não consigo esquecer-me como os Soviéticos foram enrolados com aquele incidente do satélite Big Bird por volta de 1974. Olhe, no meu entender, foi uma exploração norte-americana de altimetria-radar da União Soviética para orientação de mísseis de cruzeiro… Sim, um mapeador. E os Soviéticos estavam a captá-lo com antenas omnidirecionais. Não sabiam dizer de que parte do céu o sinal estava a vir. Só sabiam que todas as manhãs recebiam a mesma seqüência de impulsos do céu mais ou menos à mesma hora. O pessoal deles garantia que não era uma transmissão militar e, por isso, naturalmente, pensaram que fosse extraterrestre… Não, nós já excluímos a possibilidade de uma transmissão de satélite.

«Ian, podemos pedir-lhe o favor de o acompanhar enquanto estiver no seu céu? Mais tarde falo consigo a respeito de VLBI. Vou ver se consigo que outros radiobservatórios, distribuídos muito regularmente em longitude, o acompanhem até reaparecer aqui… Sim, mas não sei se é fácil fazer um telefonema direto para a China. Estou a pensar em enviar um telegrama IAU… Ótimo. Muito obrigada, Ian.

Ellie parou à porta da sala controle — chamavam-lhe assim com uma ironia consciente, pois eram os computadores que, noutra sala, faziam a maior parte do controle para admirar o pequeno grupo de cientistas que falavam com grande animação, observavam os dados que estavam a ser revelados e trocavam pequenos gracejos quanto à natureza do sinal. Não era gente de estilo, pensou. Não eram convencionalmente bem-parecidos. Mas havia neles um não sei quê de inequivocamente atraente. Eram excelentes no que faziam e, especialmente no processo de descoberta, absorviam-se por completo no seu trabalho. Quando se aproximou, calaram-se e olharam-na na expectativa. Os numerais estavam a ser convertidos automaticamente da base dois para a base dez… 881, 883, 887, 907… cada um deles confirmado como número primo.

— Willie, arranje-me um mapa-múndi. E, por favor, ligue-me a Mark Auerbach, Cambridge, Mass. Provavelmente está em casa. Dê-lhe o texto para um telegrama IAU dirigido a todos os observatórios, mas em especial a todos os grandes radiobservatórios. E veja se ele arranja o nosso número de telefone para o Radiobservatório de Beijing. Depois ligue-me para o conselheiro científico da presidente.

— Vai passar por cima da National Science Foundation?

— Depois do Auerbach ligue-me para o conselheiro científico da presidente.

Mentalmente, pareceu-lhe ouvir um grito jubiloso entre um clamor de outras vozes.


De bicicleta, furgoneta, carreiro a pé ou telefone, o único parágrafo foi entregue em centros astronômicos de todo o mundo. Nalguns radiobservatórios importantes — na China, na Índia, na União Soviética e na Holanda, por exemplo —, a mensagem foi recebida por telescritor. Enquanto ia chegando, matraqueante, era observada por um funcionário de segurança ou por algum astrônomo de passagem, arrancada e levada, com uma expressão de certa curiosidade, a um gabinete adjacente. Dizia:

ANÔMALA FONTE RÁDIO INTERMITENTE EM ASCENSÃO RETA 180 34M, DECLINAÇÃO MAIS 38 GRAUS 41 MINUTOS, DESCOBERTA POR EXPLORAÇÃO SISTEMÁTICA DO CÉU PELO ARGUS. FREQÜÊNCIA 9,24176684 GIGAHERTZ, PASSA-BANDA APROXIMADAMENTE 430 HERTZ. AMPLITUDES BIMODAIS APROXIMADAMENTE 174 E 179 JANSKYS. AMPLITUDES DE EVIDÊNCIA CODIFICAM SEQÜÊNCIA DE NÚMEROS PRIMOS. COBERTURA DE LONGITUDE COMPLETA URGENTEMENTE NECESSÁRIA. FAVOR COMUNICAR A COBRAR NO DESTINO PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE COORDENAÇÃO DE OBSERVAÇÕES. E. ARROWAY, DIRETORA, PROJETO ARGUS, SOCORRO, NOVO MÉXICO, EUA.

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