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"Hoje vamos passear."

O convite, feito pelo filho logo que dona Graça acordou, deixou-a espantada.

"Passear?", admirou-se ela, ainda estremunhada. "Passear onde?"

Tomás correu as persianas e deixou o sol invadir o quarto. Estava um dia bonito e a soalheira Coimbra resplandecia de vida; a manhã despertara acolhedora e convidativa, embalada pelo cantarolar meloso dos melros e pela brisa morna que 85


subia do rio. Para lá da janela estendia-se o casario encavalitado, com as suas paredes brancas e telhados vermelhos recortados no azul profundo do céu. As muralhas antigas abraçavam a urbe com ciúme, possessivas; pareciam um castelo medieval erguido como uma coroa no topo do burgo, eram afinal as paredes gastas da velha universidade, a torre sineira salien-tando-se como a jóia mais vistosa.


"A mãe já viu o dia que está?" Fez um gesto para a janela. "Vamos sair, espraiar por aí, respirar ar puro, apanhar este sol."

Dona Graça, ainda meio tapada pelos lençóis, olhou-o com uma expressão inquisitiva.

"Tu estás bem, filho?"

Tomás aproximou-se da cama.

"Ó mãe, há quanto tempo não sai de casa?"

"Bem... enfim, não sei..."

"A mãe não sai de casa desde que se perdeu e a levaram para o hospital. Já lá vão duas semanas."

"E depois?"

"Mas como é que a mãe pode viver assim?"

"Ah, lá estás tu. A dona Mercedes trata-me das compras, graças a Deus. Não preciso de andar por aí a vadiar."

"A mãe já nem sequer vai à missa!"

"O que tens tu a ver com isso? Rezo aqui em casa e chega-me perfeitamente."

O filho voltou-se para o roupeiro e abriu a porta, revelando as gavetas e as roupas penduradas em cabides.

"O que quer vestir?"

"Para ir onde?"

"Para saírmos, mãe."

Dona Graça afastou os lençóis e sentou-se à borda da cama.

"O teu pai também vem?"

"Esqueça o pai. Vamos lá fora apanhar sol e respirar ar puro. O que quer a mãe vestir?"

"Traz-me uma coisa bonita." Apontou para um vestido pendurado no roupeiro; era cor-de-rosa e tinha folhos brancos nas alças. "Dá-me esse, comprei-o em Lisboa no dia em que tu te doutoraste."

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Tomás retirou o vestido e pousou-o em cima da cama.

"Então vista lá isto. Vá-se lavar e ponha-se cheirosa. Que-ro-a bonita, ouviu?"

Graça olhou para o vestido.

"Mas onde vamos afinal?"

O filho saiu do quarto para a deixar só, mas, antes de fechar a porta, ainda repetiu o que lhe dissera ao despertar.

"Hoje vamos passear."

O automóvel venceu devagar o tráfego do final da manhã. Ao passar entre a Casa do Sal e a Conchada virou à direita e subiu como se fosse para os hospitais da universidade. Fazia calor dentro do Volkswagen e Tomás abriu a janela para deixar entrar o ar; um ventinho fresco percorreu o carro, suave e gostoso, refrescando o interior e adoçando o passeio. Contornaram a rotunda de Coselhas e, ao aproximarem-se da Quinta de Santa Comba, meteram por uma ruela e foram desem-bocar numa bela praceta, um lugar tranquilo e aprazível, onde as copas das árvores afagavam o telhado das grandes vivendas e o tempo parecia ter abrandado.

"E se parássemos aqui?", propôs Tomás, estacionando o automóvel antes de ouvir a resposta.

"Aqui? Para quê?"

"Não está a ver toda esta verdura? É bonito, não é?"

Dona Graça olhou em redor.

"Sim, parece agradável."

"Vamos andar um pouco a pé. Venha daí, só lhe vai fazer bem."

Ajudou a mãe a apear-se e caminharam descansadamente por entre as árvores. Era um sítio pacato; o ar fluía puro, perfumado pelos pinheiros mansos e animado pelo concerto dos insectos, as cigarras estridulavam à desgarrada pela mata vizinha, invisíveis mas ruidosas. Passaram diante de um muro colonizado pelas plantas, as sebes bem aparadas no topo, e Tomás estacou diante do portão.

"Olhe, que engraçado", comentou. "Já viu como isto se chama?"

A mãe esticou o pescoço, tentando ler as palavras pintadas no azulejo.

"«O Lu... Lu...», o que diz aqui?"

"«O Lugar do Repouso»", leu Tomás. "Que curioso. Deve ser para as pessoas descansarem."

Dona Graça fez um ar intrigado.

"Um sítio para descansarem? Mas descansarem de quê?" Olhou para a mata.

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"Será para repousarem depois dos passeios?"

"Deve ser isso", apressou-se o filho a dizer. "Ande, vamos espreitar lá dentro."

Cruzaram o portão e caminharam pelas pedras cravadas entre a relva. A verdura reluzia nas pontas, eram gotas de água que brilhavam ao sol, indício seguro de que a rega tinha sido feita havia pouco tempo. Bateram à porta da vivenda e uma rapariga de touca e bata branca veio recebê-los com um sorriso simpático.

"Olá, bom dia."

"Viemos ver a casa", disse Tomás. "Podemos entrar?"

"Façam o favor."

A rapariga guiou-os na visita. Começaram pela cozinha, onde duas mulheres se atarefavam em torno de grandes tachos bem cheirosos, e passaram depois pelo salão. Tudo tinha um ar acolhedor e bem arrumado, embora um pouco sombrio. No salão a televisão estava ligada e várias pessoas repousavam nos largos sofás, algumas de olhos postos no ecrã, outras a tricotar, duas a dormitar de boca escancarada.


Dona Graça puxou o filho pelo braço.

"O Tomás, já viste isto?"

"O que é, mãe?"

"São todos velhos", sussurrou, para não ser escutada pelos idosos em redor.

"Só há velhos aqui."

"Mas a casa é simpática, não é?"

"Sim, lá isso é. Mas só há velhos, já reparaste?"

"E então? Se calhar a mãe podia fazer aqui uma data de amigos."

"Eu?"

"Sim, porque não? É tudo gente da sua idade."

"Não são nada da minha idade. Isto são tudo velhotes, não vês?"

Tomás coçou a cabeça, algo desconcertado.

"A mãe é que ficaria aqui bem", insistiu. "Parece uma vivenda simpática e vivem aqui pessoas da sua idade. Entre-tinha-se com amigas novas, ia ver."

"Estás parvo ou quê? Para que preciso eu de vir para aqui?"

"E melhor do que estar sozinha em casa. Repare, aqui não tem de se preocupar com nada. Há pessoas que tratam de si e existe uma data de gente com quem pode conversar." Baixou a voz, mas pôs mais intensidade nas palavras. "É ou 88


não é melhor do que estar sozinha fechada em casa?"

"Vá, não digas tolices."

"A sério, aqui tratam de si."

"Eu não preciso que tratem de mim. Para isso chega-me a dona Mercedes, que Deus a abençoe. Além do mais, há as minhas vizinhas, que são umas santas e que me ajudam sempre que preciso."

A rapariga de touca e bata branca interrompeu-os.

"Vamos ao andar de cima?"


"Ah, obrigada, é muito amável mas não vale a pena", desculpou-se dona Graça. "Sabe, nós já..."

"Vamos lá acima, vamos", atalhou Tomás, encaminhando-se para o corredor.

"Já que aqui estamos, vemos tudo."

Dona Graça suspirou e resignou-se a seguir o filho e a anfitriã. Apanharam o elevador e saíram num corredor longo, os passos a ecoarem pelo soalho de madeira clara, faia certamente.

"Ai, não sei se consigo", disse a mãe, desanimada ao constatar a extensão do corredor. "Já estou cansada, Tomás. Olha que não tenho a tua idade, filho."

"É já aqui", disse a rapariga de branco, apontando para a terceira porta à direita. "Estamos quase lá."

Percorreram os últimos metros do corredor e entraram num quarto. Não era muito espaçoso, mas apresentava um aspecto asseado. O mobiliário de pinho tinha um estilo antigo; o quarto dispunha de roupeiro, televisão, um sofá e uma grande cama, um bouquet de flores sobre a escrivaninha, tudo muito bem arranjado.

"É jeitoso o quarto, não é?", perguntou Tomás. Foi à janela e espreitou lá para fora. "Ena! Tem vista para a floresta e tudo."

Dona Graça aproximou-se e olhou. A floresta era o pequeno pinhal por onde tinham passado havia pouco.

"Bem, já podemos ir embora?", perguntou ela, algo impaciente.

"A mãe não gosta do quarto?"

"Ah, é muito jeitoso, lá isso é. Mas eu já me sinto um bocadinho cansada, sabes? Quero ir para casa."

Tomás engoliu em seco. Chegara a hora de confrontar a mãe com a realidade e precisava de reunir coragem para o fazer.


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"Oiça, mãe", começou por dizer. "A dona Mercedes disse-me que não pode tratar de si por uns tempos."

"Ah, não? Ainda ontem a vi e não me disse nada. O que tem ela?"

"É um... uh... um problema familiar que lhe surgiu de repente."

"Deve ser o marido. O pobre homem sofre de gota, coitado, e a dona Mercedes tem andado ralada com isso. Será que ele teve outra crise?"

"Sim, deve ter sido isso."

"Vou já telefonar-lhe. Pobre criatura! Ainda noutro dia ela me tinha contado que..."

"Mãe, mãe", cortou o filho. "O problema é que a mãe vai estar uns tempos sem ninguém a tratar de si."

"E então?"

"E então? Quem é que lhe faz as compras? Quem é que lhe prepara a comida?

Quem é que lhe limpa a casa?"

"Ah, eu peço à vizinha. A Maria Clotilde é uma jóia de moça e já me disse que sempre que..."

"Oiça, mãe, as suas vizinhas vão todas de férias durante uns tempos."

Dona Graça arregalou os olhos, incrédula.

"As minhas vizinhas vão todas de férias? Vão de férias para onde?"

Tomás já transpirava.

"Sei lá, mãe. Vão para o Algarve ou para o Brasil, não sei nem me interessa."

"Acho isso tudo muito estranho. Olha, a Maria Clotilde anda sempre aflita, tem o marido no fundo de desemprego, coitada. A Dulce, aquela do segundo andar, então nem se fala! A pensão não lhe chega e não tem dinheiro nem para pagar o condomínio. Olha, só se for a... a... como é que se chama aquela mal-encarada do primeiro esquerdo, a que herdou da tia? A... a Graciete. Só se for ela."

"A dona Graciete já morreu, mãe."

"A Graciete morreu?"

"Há cinco anos."

"Deves estar enganado. Se ela tivesse morrido, eu e o teu pai já o saberíamos."

Tomás sentia-se rebentar. Tinha de resolver o problema e tinha de o resolver de imediato.

"Mãe, não interessa", disse, encarando-a de frente, as mãos segurando-lhe nos ombros. "A mãe não pode ir para casa porque não tem lá ninguém para tratar de si.

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Tenha paciência, vai ter de ficar aqui algum tempo."

Dona Graça olhou para o filho, confusa.

"O que estás para aí a dizer?"

"A mãe tem de ficar aqui. E só por algum tempo, fique descansada."

Ela olhou em redor, atrapalhada.

"Mas... mas isto não é a minha casa. Eu quero ir para casa."

"Não a posso levar para casa porque não está lá ninguém para cuidar de si.

Tem de ficar aqui algum tempo. São só umas semanitas..."

O lábio inferior de dona Graça começou a tremer e um brilho húmido inundou-lhe os olhos verdes. O rosto con-torceu-se numa expressão de desespero, de súplica, de pânico.

"Eu quero ir para casa", choramingou, angustiada. "Faz favor, leva-me para casa."

Mais gotas de suor brotaram do couro cabeludo do filho e escorreram-lhe pelas têmporas e depois pela face. Aqueles momentos estavam a ser penosos.

Considerou a hipótese de voltar atrás na decisão que tomara, afinal que direito tinha ele de obrigar a mãe a fazer algo contra a sua própria vontade? Não era ela adulta?

Em pequeno sempre fora a mãe que mandara nele, como era possível que os papéis se tivessem invertido? Isso até lhe parecia contra naturam. Desde que se tornara adulto que os pais respeitavam o seu espaço, e ele o deles, naturalmente. Podia acontecer Tomás oferecer um conselho ao pai ou à mãe, mas jamais se atrevera a dar-lhes uma ordem, isso seria impensável; eles eram soberanos, donos da sua vontade, e de certo modo preservavam até uma vaga autoridade sobre si. Como podia ele forçar agora a mãe a viver onde ela manifestamente não queria? Com que direito a obrigava a sair da sua própria casa? Não era ela senhora do seu destino?

Como se atrevia ele a tratá-la como uma criança?

No instante em que decidiu recuar, porém, avaliou as consequências de o fazer. Viu a mãe fechada em casa, sozinha durante a noite, o seu estado a degradar-se; talvez escorregasse e batesse com a cabeça nalgum sítio, talvez deixasse o gás aceso ou o ferro ligado sobre a roupa, talvez saísse à rua e se perdesse novamente.

Não, definitivamente não. Ela não se encontrava em estado de permanecer só, nem tinha modo de cuidar de si mesma. A realidade, a terrível realidade, é que aquele era um caminho sem retorno e cabia-lhe a ele assumir as suas responsabilidades e decidir aquilo que nunca imaginara ter de decidir.

Não podia haver recuos.

"Eu quero ir para casa."

Tomás olhou para a mãe e ficou sem saber o que dizer. Talvez fosse melhor nem dizer nada. É isso, concluiu; não dizer nada, desistir da conversa. Afinal, jamais 91


a iria convencer, isso era evidente. Sem pronunciar mais uma palavra, saiu do quarto em passo rápido e desapareceu pelo corredor. Fugiu.

Reapareceu minutos mais tarde com uma mala que dona Graça, por entre a visão turva de lágrimas, com surpresa reconheceu como sua. A sua velha mala de viagem. Tomás tinha ido ao carro buscar a bagagem que preparara às escondidas nessa manhã, enquanto a mãe ainda dormia. Ao reentrar no quarto, encontrou-a sentada na cadeira a enxugar os olhos com um lenço, a directora ao lado, acocorada, a tentar consolá-la.

"Mãe, tenho aqui a sua roupa", disse, mostrando-lhe a mala. "Se precisar de mais alguma coisa, diga-me." Pousou a mala sobre a cama e abriu-a. "Posso-lhe trazer os seus livros, as fotografias... o que quiser."

"Eu quero é voltar para minha casa", queixou-se ela num trémulo fio de voz.

Esforçando-se por ignorar os queixumes, Tomás começou a pendurar vestidos no roupeiro e a guardar peças nas gavetas.

"A mãe só fica aqui algumas semanas", disse, enquanto pendurava um vestido num cabide. "Depois logo vemos, está bem?"

"Onde está o teu pai? Quando ele vir isto, vais ver como é."

"Foi o pai que me pediu que a pusesse num bom lar."

"Não acredito. O teu pai nunca te pediria uma coisa dessas."

"Mas pediu. Que a protegesse."

Dona Graça ergueu o dedo, tremendo de fúria, de revolta, de indignação.


"Com que direito me fazes isto? Tu... tu... o meu próprio filho... com que direito? Não me vais abandonar aqui!"

"É só por umas semanas."

"Nem um dia, ouviste? Nem um dia!"

"Mãe, tenha calma."

"Eu quero ir para casa. Se tiver de morrer, quero morrer em casa. Leva-me para casa, se faz favor."

"Agora não pode ser", murmurou Tomás, ainda atarefado com as roupas, uma forma de não ter de olhar para a mãe. "Daqui a uma semana, talvez."

A velha senhora deixou-se encostar na cadeira, o saco de fúria parecia ter rebentado e desinchava, vazava-se como um balão; sentia-se demasiado cansada, esvaída por dentro, fal-tavam-lhe forças até para se indignar.

"Eu quero ir para casa", gemeu.

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A directora, a atraente mulher dos olhos achocolatados que conhecera quando fora visitar o lar pela primeira vez, um crachá com o nome Maria Flor no peito a lembrar-lhe o nome, mantinha-se acocorada diante de dona Graça a seguir a conversa em silêncio. Vendo-a desistir de lutar, inclinou-se para a frente, murmurou-lhe alguma coisa ao ouvido e er-gueu-se. Fez sinal a Tomás e afastaram-se os dois para junto da porta.

"O senhor não comunicou à sua mãe que ela vinha para aqui?"

"Não, não lhe disse nada. Ela nunca aceitaria."

Maria cruzou os braços e mirou-o com desaprovação.

"Mas devia ter falado com ela."

"Acredite que já falei com ela muitas vezes sobre este assunto. Muitas vezes.

O médico também falou. O facto é que ela se recusava a vir, o que podia eu fazer?

Acha que a devia arrastar à força para o carro?"


"E ela precisava mesmo de vir?"

"Oiça, eu ainda andei algum tempo a deixar correr o marfim, sabe? Ela não queria vir e eu não a queria forçar, de modo que fui protelando." Baixou os olhos.

"Mas as coisas precipitaram-se há duas semanas. A minha mãe saiu para as compras e perdeu-se na cidade. Ninguém sabia quem ela era e ela não dizia coisa com coisa.

Tiveram de a levar para a esquadra e depois para o hospital, onde felizmente uma enfermeira a reconheceu. Foi nessa altura que tomei consciência de que tinha mesmo de resolver o problema."

A directora suspirou.

"Compreendo", disse. Endireitou-se, assumindo uma postura profissional.

"Preciso de saber algumas coisas sobre ela e o senhor vai ter de me preencher um formulário, está bem?"

"Como queira."

"Pelo que me foi dado observar, ela encontra-se funcional, nao e?

"Sim, tem total autonomia de movimentos, embora passe muito tempo a dormir. O mais complicado é mesmo a sua constante perda de memória. Por vezes fica absolutamente desorientada. Por exemplo, é frequente esquecer-se de que o meu pai já morreu."

"Isso é normal. As memórias mais recentes são sempre as primeiras a desaparecer." Observou dona Graça de relance. "A sua mãe só tem setenta anos, não é?"

"Sim."

"Parece-me ainda um pouco cedo para ter este tipo de problemas..."

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"Sabe, isto começou depois da morte do meu pai."

"Hmm... estou a ver." Os olhos castanhos estreitaram-se e a boca carnuda contorceu-se. "Uma vez tivemos aqui um casal que era muito unido. Os dois passavam a vida aos beijinhos e aos segredinhos, iam juntos a toda a parte e até tivemos de pôr as camas uma ao lado da outra para eles dormirem de mãos dadas.

Eram uns queridos. Um dia ela sofreu um ataque cardíaco e foi levada para o hospital, onde acabou por falecer dias depois. A família ficou em pânico, receando a reacção que ele teria quando soubesse da notícia, e pediu-nos que não lhe disséssemos nada. Mas uma semana mais tarde houve uma empregada que se descaiu e lhe contou a verdade." Uma pausa. "Ele morreu no dia seguinte."

A história ficou a pairar no ar, insidiosa, como uma neblina obstinada, uma sombra agoirenta que não desaparece.

"Isso aconteceu aqui?", perguntou Tomás.

"Sim", retorquiu Maria. "Foi há uns anos. O caso comoveu todo o pessoal do lar. Mas o importante é que nos mostrou o efeito que a morte de um elemento do casal pode ter sobre o outro quando são os dois muito chegados e vivem juntos há bastante tempo." Voltou a olhar para dona Graça. "Foi provavelmente o que aconteceu com a sua mãe. A morte do marido deve ter sido um choque muito grande e desencadeou um processo degenerativo prematuro."

Tomás ficou sem saber o que dizer. De certo modo reconhecera naquela história a relação existente entre os pais e os acontecimentos do último ano; havia muito que relacionara a morte do pai com a rápida degradação do estado da mãe, e o episódio relatado pela directora confirmava-lhe o que já pressentira.

Acossado pelos remorsos, pediu licença e voltou para junto da mãe.

Murmurou-lhe palavras de consolo, sem saber qual dos dois mais precisava de ser reconfortado, se a mãe que não podia ir para casa, se o filho que a forçava a ficar no lar. Sentia-se um miserável, um crápula, um cobarde. Beijou-a no rosto molhado e, enchendo-se da pouca coragem que lhe restava, deu meia volta e saiu do quarto, preparando-se para partir. Quando ia abrir a porta do elevador, já no corredor, ouviu a voz da mãe atrás de si.

"Tomás?"

"Sim, mãe?"

"Leva-me para casa."

O filho respirou fundo.

"O mãe, não vamos recomeçar, pois não?"

Dona Graça olhou para o fundo do corredor.

"Então vou-me atirar pelas escadas."

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