XI

As primeiras vinte e quatro horas depois de ter deixado a mãe no lar foram as mais difíceis para Tomás. Quando regressou do passeio fatídico e reentrou no apartamento dos pais sentiu-o estranhamente vazio, como se tivesse sido esvaziado de sentido. Era verdade que nos últimos meses o declínio acelerado da mãe enchera aquele lugar de silêncio, um sossego de certo modo inquietante, sobretudo devido às muitas horas que ela passava a dormir; só o facto de a saber em casa, porém, afigurava-se-lhe como algo de reconfortante, parecia-lhe que uma centelha de luz ainda ali brilhava, ténue é certo, mas viva. Agora, no entanto, tudo era diferente. O

apartamento estava efectivamente vazio, despojado de vida, não era mais que um corpo oco abandonado ao esquecimento.

O silêncio pesado forçara Tomás à introspecção, agravando o seu sentimento de culpa. Não era só o problema de ter posto a mãe no lar, contra a sua vontade, que o atormentava; era também a questão de a ter levado ao engano, de a ter convencido de que iam apenas dar um passeio. Lembrava-se de, em criança, a mãe lhe ter anunciado certa vez que iam ao hospital dar uma voltinha e essa voltinha ter acabado com os enfermeiros a espetarem-lhe agulhas nas nádegas. Sempre guardara desse episódio uma memória amarga; era afinal a lembrança de uma traição da mãe.

Receava agora pela inversão dos papéis, temia pelo que ela iria doravante pensar sobre o que acabara de lhe fazer. Bem vistas as coisas, pela primeira vez Tomás negara à mãe o seu estatuto de maioridade e o que era isso senão uma forma de violência? Mas, por outro lado, e por mais que se martirizasse, não descortinava uma alternativa melhor. O que deveria ter feito de diferente? Deixar a mãe, naquele estado, sozinha em casa? Não seria isso uma forma de abandono? E se lhe acontecesse alguma coisa? Poderia ele alguma vez perdoar-se?

Para fugir à angústia que o sufocava, refugiou-se no trabalho. Quando regressou do lar, e após um deprimente jantar solitário na copa do apartamento, fechou-se no escritório do pai. Decidiu distrair a mente e tentar decifrar o enigmático e-mail que Cummings enviara a Filipe, a estranha mensagem que fora interceptada pela Interpol. Consultou as suas anotações e localizou a cópia dessa mensagem.

Filipe,

When He broke the seventh seal, there was silence in heaven. See you. Jim Assim à primeira vista parecia-lhe um código. Sim, considerou, balançando afirmativamente a cabeça; é um código. Se


fosse uma cifra, o texto teria um aspecto diferente. O problema é que, sendo um código, tornava-se claro que tinha pela frente um verdadeiro quebra-cabeças, 95


uma vez que o seu sentido preciso só era provavelmente conhecido pelas duas pessoas que trocaram a mensagem. O significado do enigma tinha decerto sido previamente convencionado entre elas e só elas o poderiam explicar.

Um pormenor, todavia, chamou a atenção de Tomás. Leu de novo a frase.

Wben He broke tbe seventh seal, there was silence in heaven. Arregalou os olhos.

Não havia dúvidas, aquele era um pormenor revelador. He. Ele. A mensagem dizia He, com H maiúsculo; era o mesmo que dizer Ele com £ maiúsculo. Ele. Era um indício, um trilho, uma tabuleta que apontava numa direcção inconfundível. Na experiência de Tomás, Ele só podia ser uma entidade. Deus. Tratava-se, com toda a certeza, de uma citação religiosa.

Subitamente animado e excitado, ergueu-se e foi buscar a Bíblia à estante.

Mas, quando se sentou de novo à secretária, vencido o fulgor suscitado pelo entusiasmo da descoberta de uma pista segura, olhou para o livro e quase desanimou ao verificar o seu volumoso tamanho. O facto de a Bíblia ser enorme nunca lhe tinha chamado tanto a atenção como naquele instante, sobretudo porque, ao folheá-la, constatou que se encontrava impressa em papel muito fino e em letra microscópica; parecia um contrato de uma companhia de seguros. Era muito texto.

Venceu o primeiro impulso para desistir e começou a ler desde o princípio.

"No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: «Faça-se luz!» E a luz foi feita." Tudo isto já lera no passado, por diversas vezes e em diferentes circunstâncias.

Mas nunca tinha lido a Bíblia de uma ponta à outra, Velho e Novo Testamento de uma assentada, e supunha que aquela circunstância era tão boa como outra qualquer para o fazer. O facto é que havia uma citação a localizar e só poderia chegar a ela se lesse o que tinha a ler. E ler foi o que fez.

Levou seis dias a percorrer a Bíblia da primeira à última palavra, começando

"No princípio" e acabando com o "Amen" final. Leu-a sem pausas, a não ser as naturais, e quando fechou o volume não sabia o que pensar. Sentia-se desconcertado com o que descobrira, assustado até com as implicações do sombrio mistério que acabara de desvendar parcialmente.

Tentou descontrair-se e ligou o computador. Foi direito ao correio electrónico e, por entre o muito lixo que recebia habitualmente, detectou uma mensagem remetida por osetimoselo. O sétimo selo? O e-mail tinha quarenta e oito horas. A ferver de expectativa, Tomás clicou de imediato naquela linha e abriu a mensagem.

Era curta, informativa e, verificando o nome que a assinava, explosiva.

Filipe.

O e-mail vinha assinado pelo seu amigo da juventude, Filipe Madureira, o mesmo que a Interpol procurava por alegado envolvimento no assassínio de dois cientistas, o mesmo com quem passara tardes inteiras a estudar ou a jogar 96


matraquilhos ou a falar de miúdas nos tempos do liceu de Castelo Branco. Pelos vistos o Filipe tinha mesmo consultado o site dos antigos alunos do liceu e deparara-se com a mensagem que Tomás lhe havia deixado. Aquela era a resposta.

Após uma breve ponderação, Tomás pegou no telemóvel e digitou o número.

"Olá, Orlov", cumprimentou. "Tenho novidades para si."

"O que se passa?"

"Recebi um contacto do meu amigo Filipe."

"A sério? Onde está ele?"

"Receio não ter liberdade para lho dizer."

O homem da Interpol hesitou do outro lado da linha.

"Como assim? Não me pode dizer?"

"Não. Ele pediu-me confidencialidade quanto ao seu paradeiro."

"Mas então como posso avançar na investigação?"

"Terei de ser eu a fazê-la."

"Você?", admirou-se Orlov. "Mas você nem sequer é polícia..."

"Oiça, o Filipe aceita encontrar-se comigo desde que eu mantenha confidencial o local onde ele está. Se eu assumir esse compromisso, é para o respeitar, percebe?"

"Hmm."

"Então o que faço? Assumo o compromisso ou não?"

O russo manteve-se um instante calado, a avaliar a situação.

"Não me parece que haja alternativa, pois não?"

"Você é que sabe."

"Olhe, aceite", decidiu Orlov. "Encontre-se com ele e saque toda a informação que for possível."

"Muito bem", concordou Tomás. "Vou precisar de dinheiro para a viagem."

"Em que país está ele?"

"Não lhe posso revelar isso."

Orl ov riu-se.

"Não faz mal", disse. "Era eu a ver se pegava." Mudou de tom. "Vamos transferir dinheiro para a sua conta, está bem? Você pega nesse dinheiro e faz dele o que tiver de fazer, sem necessidade de apresentar contas ou entregar facturas. Desse modo mantém o sigilo quanto à sua deslocação. Está bem assim?"

97


"Parece-me perfeito."

"Então muito bem", concluiu o russo, despedindo-se. "Diga-me alguma coisa quando voltar."

"Espere", exclamou Tomás.

"O que é?"

"Ainda não lhe contei tudo."

O agente da Interpol pareceu desconcertado.

"Ah, desculpe. Julguei que tinha dito que não podia, para já, revelar nada sobre o e-mail do seu amigo."

"E não posso. Mas tenho outras novidades."

"O quê?"

"Acho que já percebi o sentido da mensagem que o inglês enviou ao Filipe."

Orlov soltou uma nova gargalhada.

"Você é mesmo um craque", exclamou. "A sério? Já decifrou aquela trapalhada?"

"Descodifiquei", corrigiu Tomás. "A mensagem não é uma cifra, é um código. As cifras decifram-se, os códigos descodifi-cam-se."

"Você acha que é um código?"

"Sem dúvida."

"E qual a mensagem que ele esconde?"

O historiador inclinou-se sobre a secretária e pegou no grosso volume que acabara de ler.

"O sentido do código é revelado pela Bíblia."

"A sério?"

"Sim. E adivinhe em que parte da Bíblia."

"Não faço ideia."

"No Apocalipse. A resposta está no Apocalipse." Riu-se. "Veja só o meu azar. Como a citação se encontra no último


texto do Novo Testamento e eu comecei pelo princípio, tive de ler a Bíblia toda até chegar a ela."

"Não fez mais do que a sua obrigação", impacientou-se o russo. "Diga-me lá qual é a mensagem que a frase esconde."

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Tomás abriu a Bíblia pousada sobre a mesa e folheou as últimas páginas até chegar ao Livro da Revelação.

"Para entender o sentido da mensagem é preciso compreender o contexto em que ela aparece inserida", disse. "Você já leu o Apocalipse?"

Orlov soltou um estalido exasperado com a língua.

"Você acha-me com cara de beato ou quê? Pensa que tenho tempo para ler essas coisas?"

"Então, se nunca leu o Apocalipse, deixe-me fazer-lhe um enquadramento.

Como já lhe disse noutro dia, este texto é assinado por João, supostamente o apóstolo." Passou os olhos pelas primeiras linhas das páginas abertas à sua frente.

"Começa por dizer que Jesus Cristo apareceu diante de João e lhe entregou mensagens para sete comunidades cristãs na Ásia Menor." Avançou umas páginas.

"A coisa torna-se muito interessante logo a seguir, quando João é levado para o céu."

"O apóstolo voou para o céu?", gracejou Orlov. "Foi em executiva ou turística?"

"Ascendeu ao céu", retorquiu Tomás, ignorando a graçola. Fixou os olhos no parágrafo. "Está aqui escrito o seguinte", disse, começando a ler o texto. "«Olhei e vi uma porta aberta no Céu: e a primeira voz que ouvi, e que me falava, como o som de uma trombeta, disse: Sobe aqui e mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas. Logo fui arrebatado em espírito e vi um trono no Céu, no qual Alguém estava sentado.»" Ergueu os olhos das linhas. "Esse Alguém era, está claro, Deus."

"Deus? João diz que viu Deus?"

"Sim."

"E como é Ele? Tem grandes barbas brancas?"

"O Deus descrito por João no Apocalipse não é antropomórfico. Repare na descrição que o autor faz d'Ele." Voltou ao mesmo parágrafo. "«O que estava sentado era, na aparência, semelhante à pedra de jaspe e de sardónio; e um arco-íris rodeava o trono, semelhante à esmeralda.»" Saltou uma linha. "«Do trono saíam relâmpagos e trovões.»"

"Mas que raio de Deus é esse?"

"É o Deus que João diz ter visto. Não é uma pessoa, mas luz e cor e sons."

"Tudo isso é uma alucinação, não?"

"Talvez", admitiu Tomás. "Mas não creio. Este texto é muito pensado, sabe?"

"Porque diz isso?"

"Por causa da sua estrutura. As cenas são descritas com muito detalhe e mostram influência de escritos judaicos, em particular dos de Daniel. A estrutura 99


revela-se planeada e joga com padrões numéricos, o que não é característico das alucinações."

"Como a história do triplo seis?"

"Isso. O triplo seis não é uma alucinação. Como já vimos, trata-se da guematria do nome de Nero. Logo, este texto é pensado, não é resultado de uma alucinação."

"Compreendo", aceitou Orlov. Mudou de tom. "Dizia então você que João subiu ao céu e viu Deus. E depois? O que aconteceu?"

Tomás regressou ao texto.

"João escreve o seguinte: «Vi, na mão direita do que estava sentado sobre o trono, um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos.»"

"Um livro com sete selos?"


"Sim. Na verdade, intitula-se o Livro dos Sete Selos. Na descrição de João, Cristo dirigiu-se ao trono e recebeu de Deus esse livro. Foi nessa altura que Jesus, apresentado com a forma de um cordeiro, começou a quebrar os selos um a um.

Orlov mostrava-se agora inteiramente absorvido pela narrativa.

"E então?"

"Os primeiros quatro selos fizeram aparecer quatro cavaleiros destruidores.

São os quatro cavaleiros do Apocalipse. Um é um conquistador, os outros são portadores da fome, da guerra e da morte. O quinto selo fez aparecer os mártires e o sexto trouxe um terramoto e outros terríveis cataclismos destinados a punir os pecados da humanidade." Tomás fez uma pausa. "E então que o texto apresenta a frase fatídica."

"Qual delas?"

"A frase que consta da mensagem que vocês interceptaram na Internet."

"Qual mensagem? A do inglês?"

"Sim." Tomás pousou o indicador na linha e leu. "«Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no Céu.»"

A frase ecoou na mente de Orlov. Fora de facto essa a mensagem que James Cummings enviara a Filipe Madureira.

"Muito bem", assentiu. "Na Bíblia vem escrita essa frase. Cristo quebrou o sétimo selo do Livro dos Sete Selos. E depois? O que aconteceu depois?"

O historiador fechou a Bíblia pousada sobre a sua secretária e respirou fundo.

"João viu trovões, relâmpagos e terramotos por toda a parte. Na terra e no 100


mar são lançados fogo, saraiva e sangue, tornando inabitável um terço do planeta.

Cai uma estrela do ceu e o Sol fica obscurecido pela fumarada. Numa extinção em massa, parte da humanidade e da vida desaparecem." Fez uma pausa. "Em resumo, começa o apocalipse."

Orlov avaliou por um instante a descrição.

"Quando é que isso acontece?"

"Acontece quando aparece na Bíblia a citação usada na mensagem que vocês interceptaram." Recitou de memória. "«Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no Céu.»"

O russo fez um estalido com a língua.

"Caramba", exclamou. "O seu instinto estava certo."

"Pois estava", disse Tomás. "Já viu o que esta frase desencadeia?"

"O fim do mundo, meu caro professor. O fim do mundo."


XII

O segurança, um homem calvo de cabeça luzidia e corpo entroncado, mediu-o com suspeição, dissecando-o dos pés à cabeça, os olhos perscrutadores como raios X. Ao constatar que se tratava de um estrangeiro, pareceu descontrair-se; aceitou os setecentos e cinquenta rublos e com a cabeça fez-lhe sinal de que entrasse. Tomás agradeceu, empurrou a porta e penetrou no Night Flight.

Um ambiente quente e sofisticado acolheu-o no interior do mais famoso clube para homens da cidade. Um empregado impecavelmente vestido aproximou-se de imediato.

"Dobriy vetcber", cumprimentou, cerimonioso.

"Boa noite", devolveu Tomás em inglês. Hesitou, em busca das palavras certas que memorizara no hotel. "Vy govorite... po-angliyski?"

O empregado sorriu.


"Da", assentiu. "Todos aqui falamos inglês." Fez um gesto que abarcou todo o Night Flight. "Deseja ir ao restaurante ou ao night club?"

"Ao night club, por favor."

O homem apontou para um canto e Tomás dirigiu-se para lá. Desceu umas escadas em caracol e deu com um bar em tons dourados, uma parede espelhada corrida a sofás forrados a negro, a outra escondida por um longo bar. Uma música suave flutuava no ar e o local tinha um aspecto distinto, como se se tratasse de um clube para cavalheiros de alta sociedade. Mas os pequenos grupos que formigavam 101


pelo night club traíam aquela aparência requintada; os homens apresentavam o aspecto exuberante dos novos-ricos, ostentando álcool e rublos e poder e testosterona, e as mulheres, muito mais novas, mimavam-nos de atenções, todas elas belas, cintilantes e, sobretudo, disponíveis.

O recém-chegado dirigiu-se ao balcão e ergueu a mão para chamar a atenção do homem de smoking que preparava as bebidas.

"Zdrávstvuyte" , saudou o homem, perguntando-lhe o que queria tomar.

"Tcbego zhelayete?"

"Hello", cumprimentou Tomás. Consultou o nome que trazia escrito num papel. "Posso falar com Nadezhda?"

"Nadezhda?"

"Sim."

O homem esboçou um pequeno sorriso, como se aquele nome tivesse um significado secreto que os membros de uma mesma confraria instantaneamente entendiam, e apontou para um varandim por cima.

"Está ali."

Tomás ergueu a cabeça e viu uma mulher ruiva quase nua a dançar, os seios arrebitados e firmes, o corpo delgado e


insinuante, um estreito tecido escarlate a servir de calcinhas. Um foco de luz incidia na sensual dançarina, projectando sobre ela sombras sumptuosas e cores lascivas, a carne lúbrica e transpirada.

O recém-chegado cliente baixou os olhos e questionou o homem do bar.

"Esta é que é a Nadezhda?"

"Da", confirmou o empregado. Arqueou as sobrancelhas, como quem esconde duplos sentidos por entre as palavras. "Quer que ela venha ter consigo?"

"Bem... sim", disse Tomás, corando com a insinuação. "Preciso de falar com ela."

"A Nadezhda está quase a terminar o seu número." Piscou o olho, cúmplice.

"Quando ela acabar eu digo-lhe que tem um cliente à espera." Fez um gesto para as garrafas arrumadas ao longo do bar. "Enquanto aguarda, quer tomar alguma coisa?"

"O que tem aí?"

"Whisky, konyak, vodka..."

Tomás contemplou as garrafas.

"Acho que uma vodka será, talvez, o mais apropriado."

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"Pura ou aromatizada?"

"Hmm...", hesitou. "Não sei, o que me aconselha?"

O homem do bar pegou numa garrafa âmbar e deitou a vodka num copo.

"Esta vodka é aromatizada. Chama-se Okhotnichya, a vodka dos caçadores, e inclui uma mistura de gengibre e cravo-da-índia." Estendeu-lhe o copo. "Beba tudo de uma vez. À nossa maneira."

O cliente analisou o líquido que bailava no copo com uma expressão relutante. Sentou-se num espaço vazio no banco corrido ao longo da parede, por baixo do espelho, e decidiu seguir o conselho. Em Roma, sê romano, pensou.

Fechou os olhos e, antes que perdesse a coragem, engoliu a vodka de uma só vez.

Foi como se um vulcão tivesse irrompido nas suas entranhas.

"Deseja a minha companhia?"

A voz feminina, aveludando o inglês com um exótico sotaque eslavo, fez Tomás erguer os olhos. Diante dele, obser-vando-o do outro lado da mesinha, estava a beldade ruiva envolta num voluptuoso manto de seda púrpura, quase berrante. Os seus olhos eram de um azul líquido, grandes e expressivos, e tinha lábios espessos, como gomos apetecíveis, à Nastasja Kinski.

Vencendo a surpresa, o português ergueu-se e, desajeitado, estendeu a mão com tal brusquidão que derrubou o copo de vodka.

"Olá", disse, para quase se assustar com o copo que inadvertidamente atirara ao chão. "Ooops, desculpe."

A dançarina reprimiu uma risadinha.

"Posso sentar-me?"

"Sim, sim, com certeza."

Tomás afastou-se para lhe dar lugar e, sem querer, empurrou a mesinha, que caiu para o lado com grande estrondo. Fez-se um silêncio súbito nas conversas dentro do night club; os outros clientes pararam momentaneamente para verem o que se passava ali.

"Ah, caramba", exclamou o historiador, levando as mãos à cabeça quando viu a mesa deitada no chão. "Estou mesmo desastrado, não sei o que se passa.

Desculpe."

Nadezhda soltou uma gargalhada.

"O senhor é sempre assim?"


"Não, de modo nenhum", assegurou Tomás. "Deve ser a sua presença.

Quando aqui vim não estava nada à espera de encontrar alguém assim tão... enfim...

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tão bonita."

A rapariga atirou os cabelos para trás, divertida.

"E esta? Saiu-me um Don Juan!"

O português contraiu o rosto, aflito, receando ter-se dado a demasiadas liberdades.

"Oh, perdão", balbuciou. "Imagino que esteja farta de ouvir os homens dizerem-lhe sempre a mesma coisa."

Os empregados do night club acorreram ao local e puseram tudo em ordem; a mesa voltou ao lugar e o chão onde se derramara a vodka foi limpo, o que permitiu o reatar do habitual burburinho das conversas que serviam de fundo à música ambiente. Foi servida mais vodka a Tomás e uma taça de champanhe pedida por Nadezhda. Quando o empregado se afastou, a bailarina ajeitou o insinuante manto de seda de modo a destapar os ombros e exibiu a pele ebúrnea e a curva arrebitada dos seios.

"O senhor é estrangeiro, já vi", constatou Nadezhda. "Está em Moscovo em negócios?"

"Bem... de certo modo, sim."

A russa avaliou-o apreciativamente.

"Nesse caso é um homem de negócios." Ergueu a sobrancelha delicadamente aparada e tentou a sua sorte. "Petróleo? Banca? Importação-exportação?"

Tomás riu-se com gosto.

"Não, nada disso. Sou historiador."

Nadezhda arregalou os olhos azuis, genuinamente surpreendida.

"Historiador? Mas que negócios trazem um historiador a Moscovo?"

"Vim à procura de uma pessoa."


A russa abriu-se num sorriso lânguido e num olhar provocante, parecia uma gata.

"Espero que seja de mim", ronronou.

"Não, não é de si."

"Que pena..."

Tomás apontou-lhe o dedo.

"Mas tenho esperança de chegar a essa pessoa através de si."

Nadezhda endireitou-se, subitamente desconfiada.

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"O que quer dizer com isso?"

"O meu nome é Tomás Noronha e vim de Lisboa para me encontrar com um amigo. Esse amigo disse-me que viesse aqui ter consigo."

A dançarina estreitou os olhos, tentando avaliar o que lhe era dito.

"Veio de Lisboa?"

"Sim."

"E como se chama o seu amigo?"

"Filipe Madureira. Ele mandou-me um e-mail a dizer-me que viesse aqui ao night club do Night Flight, em Moscovo, e a procurasse a si."

Nadezhda sorriu, mais tranquila.

"Ah, é você então o amigo do Filhka", reconheceu, identificando Filipe pelo diminutivo em russo. "Por que não disse logo?"

"Bem, eu disse à primeira oportunidade que me deu, acho."

A russa reavaliou-o com os olhos.

"Hmm... o Filhka não me tinha dito que você era assim tão interessante."

Tomás corou.

"Ah, obrigado."

Ela inclinou-se e passou-lhe a mão pelo fato escuro, como se o afagasse.


"E veio todo janota. Pensei que era um cliente, veja só."

"De certo modo sou, não é verdade?" Olhou em redor. "Esta noite sou um cliente do Night Flight."

"Sim, mas pensei que fosse um cliente como os outros." Fez sinal para a mesa ao lado. "Como esses para aí. Olhe, está a ver este tipo?"

Tomás voltou-se e viu um homem sentado a três metros de distância, era um indivíduo encorpado, com cabelo loiro cortado à escovinha e um elegante fato italiano, à conversa com três mulheres mais novas e muito belas, de uma exuberância quase faiscante.

"Sim, o que tem ele?"

Nadezhda baixou a voz.

"Esse é Igor Beskhlebov." Olhou em redor, para se assegurar de que ninguém a escutava. "É solntsevskie."

"O que é isso?"

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"Máfia", esclareceu ela.

Tomás olhou de novo o homem.

"Máfia? É um mafioso?"

"Droga e prostituição", esclareceu a dançarina. "Aquelas raparigas trabalham para ele."

O português contemplou-as, fascinado. Duas eram loiras, muito altas, e a terceira parecia uma exótica mistura euro-asiática, de olhos verdes amendoados e cabelo preto luzidio e muito fino; todas traziam roupas justas e generosamente decotadas, insinuando a curva dos corpos e, acima de tudo, a sua disponibilidade.

"Como sabe isso?"

Nadezhda encolheu os ombros.

"Ora, houve tempos em que também eu trabalhei para ele."

"Você?"


"Sim, claro", disse a russa, com ar indiferente. "Todas aqui trabalham para alguém." Levantou-se e fez-lhe sinal com a cabeça de que a seguisse. "Venha."

"Eu? Onde vamos?"

"Você é o amigo do Filhka, não é?"

"Sim."

"Se é o amigo dele, não preciso de saber mais nada. Além disso, está com sorte."

"Ai sim? Porquê?"

"Porque me agrada." Chamou-o com o dedo, como se Tomás fosse o seu animal de estimação. "Venha."

O português ergueu-se do lugar, mas parecia hesitante.

"Vamos onde?"

"Vou-lhe dar uma de graça."


XIII

A batida ligeira na porta, um toc-toc tão suave que se chegou a confundir com os sons do sonho, despertou Tomás do seu torpor lânguido. Ainda de olhos cerrados estendeu o braço e apalpou a cama, que descobriu vazia. Ergueu a cabeça, meio entorpecido de sono, e entreabriu uma pálpebra, tentando perceber onde estava, que horas eram, se realmente havia alguém à porta, se aquele som que julgara ouvir 106


fizera afinal parte do seu sonho. Escutou um ruído e sentiu movimento no quarto e, nesse instante, como se alguém tivesse ligado a luz e tudo de repente se clarificasse, lembrou-se.

Nadezhda.

A russa saiu do quarto de banho ainda a ajeitar o cabelo ruivo e sorriu quando o viu acordado.

"Dobroye utro", cumprimentou num tom jovial.

"Bom dia."

Ela aproximou-se e inclinou-se sobre Tomás, beijando-o com os seus lábios quentes e aveludados.


"Como dormiu o meu garanhão português? Bem?"

"Muito bem. E tu?"

Nadezhda fez um esgar dorido.

"Ainda estou a recuperar da noite que me deste." Piscou o olho azul. "B/w, até me custa andar."

Toc-toc-toc.

Tomás voltou a cabeça para a porta. Afinal não sonhara, sempre tinham batido.

"Quem será a esta hora?"

A russa dirigiu-se à porta, abriu-a e trocou algumas palavras com um vulto que, da cama, Tomás não conseguiu destrinçar. A porta abriu-se então por completo, escutou-se o tilintar de talheres e de pratos e um empregado empurrou uma mesinha de rodas para dentro do quarto, exibindo duas travessas com pratos tapados, um jarro de sumo de laranja, um bule fumegante e um cesto de pão escuro.

"Pedi o pequeno-almoço para o quarto", explicou ela, guardando na carteira um envelope que o paquete lhe tinha entregado.

O empregado arrumou a comida sobre a mesa do quarto e retirou-se de imediato. Tomás vestiu o roupão do hotel e sentou-se à mesa, contemplando a comida.

"Estou com uma fome de lobo", anunciou. Apontou para os pratos. "O que é isto?"

Nadezhda pegou num pastel frito.

"Isto são pirozbki salgados. São feitos de carne e couve ou queijo."

O português indicou em seguida o que lhe parecia ser uma fatia de bola de 107


carne.

"E isto?"

"Kulebyaka. É uma massa com salmão, ovo, arroz e cogumelos." Destapou um cestinho com pastéis doces. "Mas, se fores guloso, talvez prefiras os vatrushkis de queijo ou os vareniki com fruta." Trincou o pirozbki que tinha entre os dedos.

"Experimenta, é bom."

Tomás começou a comer, a dúvida a pairar-lhe no espírito, algures entre a incerteza e a curiosidade. Não conhecia a cozinha russa nem de reputação, pelo que tudo constituía novidade para ele. Às primeiras dentadas não lhe pareceu mal, mas não sabia se isso se ficava a dever à qualidade dos pratos ou à fome que se agudizava sempre que ia para o estrangeiro.

"Nadezhda", disse ele, às voltas com uma fatia de kulebyaka. "Explica-me, por favor..."

"Nadia", atalhou a russa.

Tomás encarou-a, desconcertado.

"Não te chamas Nadezhda?"

"Claro que sim. Mas é um nome muito grande e formal, não achas? Em russo, as Nadezhdas são Nadias."

"Ah é? E Tomás?"

"Tomasz? Pode ser Tomik."

"Hmm... gosto disso."

"Nadia e Tomik."

Riram-se os dois. A Tomás aquilo soava um pouco a Bonnie and Clyde, mas não se importou. Contemplou Nadezhda e quase se derreteu com a sua beleza felina; tinha aquela mistura de quente e frio que caracterizava as beldades eslavas, simultaneamente distantes e familiares. O facto, porém, é que nada sabia sobre ela, a não ser que era dançarina no maior night club de Moscovo e, o mais importante, o único elo de ligação com Filipe.

"Nadia", retomou Tomás. "Explica-me, por favor, como posso chegar ao meu amigo Filipe. Ele falou contigo, foi?"

"Sim, o Filhka avisou-me que alguém me contactaria no Night Flight."

"E agora? Como chego a ele?"

Nadezhda puxou a sua carteira e retirou o envelope que guardara momentos antes.

"Através disto", disse ela, acenando com o sobrescrito. "Mandei o paquete às compras enquanto dormias."

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"O que é isso?"

A russa abanou a cabeça.

"Desculpa, Tomik, não te posso dizer agora. São ordens do Filhka."

Tomás observou o envelope, intrigado.

"O que tem isso de tão especial?"

"É algo que, de certo modo, revela o actual paradeiro do Filhka. Só na altura própria poderás saber."

"Mas porquê tanto mistério?"

"Porque o paradeiro do Filhka é segredo."

"Mas porquê?", insistiu.

"Isso terá de ser ele a explicar-te." Voltou a guardar o envelope na carteira e fez um gesto com a cabeça na direcção da mala de Tomás, aberta no chão. "Depois de comeres tens de preparar a tua mala."

"Onde vamos?"

"Abandonar este hotel."

Quando saíram à rua ao fim da manhã, o check out concluído, Nadezhda explicou-lhe que dispunham ainda da tarde quase toda e podiam ir passear para matar o tempo. A mala de Tomás tinha rodinhas e podia ser puxada, pelo que o historiador não hesitou diante da oportunidade.

"Posso ir ver o Kremlin?"

Foram apanhar o metro na estação mais próxima, a Belorusskaya, e Tomás ficou boquiaberto quando desceu as escadarias. Jamais tinha visto luxo assim numa linha de metropolitano, parecia estar num palacete subterrâneo, com as paredes ricamente trabalhadas, como um monumento barroco, e o átrio central coberto de mosaicos exibindo cenas rurais. Compraram os bilhetes numa máquina automática e percorreram os longos corredores abertos em arco, vastos e elegantes, iluminados pela claridade esverdeada da luz dos candeeiros.

"Isto é que é o vosso metro?"

"Sim. É bonito, não é?"

Tomás riu-se.

"Parece um hotel de cinco estrelas."

"A minha estação favorita é a Park Kultury", disse ela. "Tem medalhões em baixo-relevo de mármore com figuras a patinar, a ler ou a dançar. É espectacular."

Apontou para o chão que percorriam. "Estás a ver isto?"

O português analisou o piso que calcorreavam.

109


"Sim. São azulejos."

"É a imitar um tapete típico da Bielorrússia. É por isso que esta estação se chama Belorusskaya."

Completaram o percurso numa dezena de minutos e saíram na estação de Borovitskaya, emergindo na rua em pleno centro da cidade.

Contornaram as grandes muralhas fronteiras à rua até o espaço se abrir numa enorme praça que Tomás instantaneamente reconheceu das fotografias.

"Esta é a Krasnaya Ploschad", anunciou Nadezhda.

"Oh", exclamou ele, surpreendido. "Julguei que era a Praça Vermelha."

A russa olhou-o com ar trocista.

"E é", exclamou. "A Krasnaya Ploschad é a Praça Vermelha."


"Ah, bem me parecia. Mas porque lhe chamam ainda Praça Vermelha? Se o comunismo já acabou, não seria lógico mu-darem-lhe o nome?"

"O nome não tem nada a ver com o comunismo."

"Não tem? Esta é a Praça Vermelha e, que eu saiba, a cor do comunismo é o vermelho."

"É uma coincidência, Tomik", explicou ela. "A praça cha-ma-se Krasnaya Ploschad desde o tempo dos czares. Krasnaya vem de krasnyy, uma palavra que originalmente significava bonito e que passou a querer dizer vermelho."

Os olhos de Tomás ficaram presos ao majestoso monumento que se erguia do outro lado da praça, exactamente como as inúmeras fotografias o mostravam. Era um edifício grandioso, dominado por belas torres com cúpulas em forma de bolbo, pintadas de várias cores; parecia um palácio das mil e uma noites, um brinquedo em tamanho gigante. Não havia engano possível, era aquele o ex-líbris de Moscovo.

"Caramba", exclamou, quase embevecido pela magnificência da arquitectura de conto de fadas. "O Kremlin."

Nadezhda soltou uma gargalhada.

"Não, Tomik. Aquilo não é o Kremlin."

"Como?"

"É a Catedral de São Basílio."

"Mas... mas sempre ouvi dizer que aquilo era o Kremlin..."

"Todos os turistas fazem confusão, deixa estar." Apontou para as muralhas à direita, que tinham contornado desde que saíram do metro. "Isto é que é o Kremlin."

Tomás observou as muralhas cor de tijolo, primeiro surpreendido, depois 110


desconfiado.

"O Nadia, estás-me a pregar uma peta."

"Juro que isto é o Kremlin." Apontou para uma estrutura diante das muralhas.

"Ali à frente, estás a ver? Aquilo é o Mausoléu de Lenine, para onde ia o Estaline, o Brejnev e toda essa gente quando havia grandes marchas militares aqui na Praça Vermelha. Atrás das muralhas é que está o Kremlin."

"Não pode ser."

"A sério. Kremlin vem de kreml, que quer dizer fortaleza. Estas são as muralhas da fortaleza que o czar mandou construir aqui." Indicou os edifícios para além das muralhas. "O Kremlin é um complexo administrativo que inclui palacetes, jardins e até igrejas." Apontou para umas cúpulas douradas que reluziam à distância.

"Estás a ver aquilo? São as cúpulas da Catedral da Assunção, construída exactamente no meio do complexo."

Desiludido, Tomás já não quis visitar o Kremlin. Preferiu arrastar a mala até junto da espectacular Catedral de São Basílio, que sempre confundira com o Kremlin, e ficou a contemplá-la, maravilhado. Para ele, o Kremlin seria sempre aquele belíssimo monumento, dissessem o que dissessem. Percorreram as capelas do interior uma a uma, mas os encantos da catedral não lograram iludir-lhes a fome.

Perto das três da tarde, já cansados e com alguma fraqueza, deram a visita por concluída e decidiram fugir para outro lado.

Nadezhda levou-o até às elegantes galerias vizinhas do Gosudarstvennyy Universalnyy Magazin, o grande edifício da Praça Vermelha cujo tecto se apresentava coberto por uma imponente estrutura de vidro, como se fosse uma sofisticada estufa. Percorreram as múltiplas lojas de marcas ocidentais, instaladas por entre passagens em abóbada e as balaustradas de ferro forjado, e, no limite da exaustão, instalaram-se enfim à mesa de um simpático café de aspecto parisiense.

"Não tens de ir trabalhar?", perguntou Tomás, depois de terem encomendado dois bif stroganov e duas cervejas para o almoço.

"Já telefonei para lá, logo pela manhã, a dizer que precisava de me ausentar por uma semana."

"E eles não te despedem?"

"Não, há outras raparigas que podem substituir-me."

O historiador passou a mão pelo cabelo, enchendo-se de coragem para ir um pouco mais longe nas suas perguntas.

"Como é que foste parar ao Night Flight?"

"Oh, através do amigo de um amigo. Sabes como são estas coisas..."

"Eles pagam-te bem para dançares em top less?"

111


"Não me queixo."

Tomás tamborilou com os dedos na mesa do café.

"E não fazes mais nada?"

"Como assim?"

"Sei lá, costumas ir para a cama com... com os clientes?"

Nadezhda encolheu os ombros.

"Às vezes."

O português hesitou antes de fazer a pergunta seguinte.

"Eles pagam-te?"

A russa cravou os olhos azuis nos verdes dele e teve dificuldade em reprimir a irritação.

"Nu yo-o-o!", praguejou. "O que te interessa isso?"

"Nada", apressou-se ele a dizer, embaraçado. Respirou fundo. "Quer dizer, interessa-me. Gostava de saber."

"Para quê?"

"Bem, eu fui para a cama contigo, não fui? Gosto de saber essas coisas."

"Porventura cobrei-te algum dinheiro?"

"Não, claro que não."

"Então? Qual é o teu problema?"

"Gostava de saber", insistiu ele.


Nadezhda afastou os olhos e fitou a luz que jorrava pela entrada do café.

"Sim, pagam."

Fez-se silêncio.

"Quanto?"

"Trezentos dólares por hora, mil dólares uma noite." Voltou a encará-lo, os olhos a chisparem. "Satisfeito?"

Tomás mordeu o lábio.

"Porque o fazes?"

A russa encolheu mais uma vez os ombros.

"Pelo dinheiro."

"Precisas assim tanto de dinheiro?"

112


"Preciso de dinheiro para viver bem e preciso de dinheiro para os estudos.

Não quero andar a lavar pratos."

"Ai é? Ainda estudas?"

"Claro, na universidade. Estudo de dia e trabalho à noite."

"E estudas o quê?"

"Climatologia."

"Hmm... queres ser meteorologista?"

"Sim. Estou no último ano."

O empregado trouxe as cervejas e o bif stroganov, as tiras de carne que começaram a comer com kasba, ou trigo-mourisco cozido, e pão escuro. A conversa sobre a vida de Nadezhda tornou o ambiente um pouco pesado e Tomás sentiu que lhe cabia a si a responsabilidade de aligeirar a atmosfera, afinal fora ele que levara o diálogo para aqueles terrenos pantanosos.

"Como é que conheceste o Filipe?", perguntou quando já ia a meio do prato.

"Na faculdade."

"Aqui em Moscovo? Ele andou aqui na faculdade?"

"Não, ele conhecia cá uns professores e foram eles que o trouxeram."

"Ah, bom. Mas o que veio ele cá fazer?"

"É um projecto especial que ele tem, uma coisa internacional. Precisava de pessoas para trabalharem no projecto e um professor chamou-me e apresentou-me.

Eu tinha acabado de entrar na faculdade e agarrei logo a oportunidade."

"Começaste a trabalhar com o Filipe?"

"Sim, ele mandou-me para a Sibéria durante o Verão."

"Para a Sibéria? Fazer o quê?"

"Umas medições meteorológicas. Era tudo parte do projecto."

"Mas que raio de projecto era esse?"

Nadezhda suspirou.

"Agora não me apetece falar sobre isso." Consultou o relógio. "B/m, já são quatro horas. É melhor irmos andando."

O português engoliu a cerveja de um só trago e fez um gesto na direcção do empregado, a pedir a conta.

"Ainda não me disseste para onde vamos", observou, enquanto o empregado escrevinhava a soma.

"Yaroslavsky."

113


"Onde é isso?"

"É uma estação de comboios aqui em Moscovo."

"Vamos apanhar o comboio, é?"

"Da."

O empregado apresentou a conta e Tomás passou-lhe os rublos para a mão.

"Mas qual é o nosso destino?"

Nadezhda tirou da carteira o envelope que o paquete do hotel lhe entregara nessa manhã e abriu-o, exibindo dois bilhetes.


"Ainda vais ter de me pagar mil e trezentos dólares por isto. São lugares de spalny vagou" Cheirou os bilhetes, como se fossem perfumados. "Primeira classe."

"Vamos onde?"

"Vamos apanhar o Rossiya, número 2, às cinco e um quarto em Yaroslavsky."

"O Rossio?"

"O Rossiya, número 2. Nunca ouviste falar?"

"Eu não."

Mal-humorada, Nadezhda meteu os bilhetes de novo no envelope, guardou-o outra vez na carteira, levantou-se e agarrou no saco de viagem, pronta para sair.

"É o Transiberiano, idiota."


XIV

As carruagens azuis e vermelhas do Transiberiano iniciaram a marcha às dezassete horas e dezasseis minutos, como anunciado no painel da estação de Yaroslavsky, na mesma altura em que Tomás e Nadezhda se instalavam na sua cabina de luxo, a meio do spalny vagon.

Já com o comboio a ganhar velocidade, arrumaram a mala e inspeccionaram o compartimento que lhes fora destinado. Tratava-se de um agradável cubículo de dois lugares, pequeno mas faustosamente decorado, as camas apresentando os len-

çóis engomados com cuidado e abertos de modo convidativo, a ponta desdobrada sobre o cobertor macio; as almofadas encontravam-se pousadas com o ângulo para cima e a meio havia uma mesinha, colada a uma grande janela, o vidro adornado com um cortinado carmesim. A cabina estava toda forrada a madeira e era mais confortável do que Tomás imaginara. As camas encheram-no até de ideias, na sua mente tornava-se claro que aquele delicioso compartimento se iria transformar num escaldante ninho de amor, mas quando ele, ardendo de desejo, a quis arrastar para os 114


beliches, ela virou o rosto e resistiu.

"Agora não, Tomik", disse a russa, observando a porta de relance. "O

provodnik pode aparecer a qualquer altura."

"Quem?"

"O provodnik. O revisor."

Não foi o provodnik que apareceu pouco depois para verificar os bilhetes, mas uma provodnitsa de meia-idade e ar cansado. A mulher entregou-lhes as toalhas em sacos de plástico selados, recebeu uma pequena gratificação e, antes de se despedir, disse que, em caso de necessidade, poderia ser encontrada no compartimento na frente do comboio, e prometeu manter o vagão limpo durante toda a viagem.

Quando ficaram a sós, os dois passageiros decidiram vistoriar a carruagem.

Percorreram o corredor e verificaram que metade das cabinas do spalny vagon se encontravam ocupadas. Os passageiros da primeira classe eram quase todos turistas; havia alguns ocidentais espalhados pela dezena de cabinas da carruagem, mas a maior parte dos viajantes eram asiáticos.

"Japoneses", esclareceu Nadezhda. "Vão para Vladivos-toque."

Os quartos de banho encontravam-se ao fundo do corredor, um em cada ponta, e pareceram-lhes asseados; dispunham de uma retrete e um bacio em alumínio. Ali perto encontraram um samovar de onde jorrava água a escaldar para o chá ou o café.

Saltaram para a carruagem seguinte e depararam com um snack-bar, mas a comida exibida no balcão, umas sanduíches sebentas e uns fritos de aspecto duvidoso a que se juntavam umas sopas aguadas, suscitaram em ambos um esgar de repulsa.


"Isto vai ser duro", constatou ele sombriamente.

Saíram daquele vagão com pouca vontade de se aventurarem pelos dúbios labirintos da oleosa gastronomia ferroviária. Preferiram explorar o resto do Transiberiano e passaram pelas carruagens da Cupe, a segunda classe, antes de regressarem à sua cabina.

Ao fim de três horas de viagem, uma voz soou em russo por toda a carruagem. Acto contínuo, o comboio começou a abrandar.

"O que aconteceu?", perguntou Tomás.

"Estamos a aproximar-nos de Vladimir", explicou Nadezhda. "Tens aí dinheiro, não tens?"

O historiador abriu a carteira e passou-lhe algumas centenas de rublos para as 115


mãos.

"Para que precisas do dinheiro?"

"Gostaste da comida que viste ali no vagão-restaurante?"

Tomás reagiu com uma careta.

"Agh!", grunhiu. "Não."

Ela levantou-se e inclinou-se para observar as luzes lá fora.

"Vamos parar aqui durante vinte minutos", explicou. "É tempo mais que suficiente para irmos lá fora comprar qualquer coisa para o jantar."

Passava das oito da noite e fazia frio na gare de Vladimir. Dirigiram-se a uma banca de comida ocupada por uma velha babushka e compraram umas espetadas de shashlyk e uns pirozhki de fabrico caseiro, os pastéis salgados com aparência muito suculenta, mais uns biscoitos khvorost para a sobremesa e duas cervejas Baltika.

Quando se preparavam para regressar ao spalny vagon com a comida envolta em sacos de plástico ouviram uma conversa exaltada na plataforma. Olharam e viram três homens fardados a discutir com um viajante japonês, inspeccionando-lhe os documentos e analisando a máquina fotográfica que ele trazia pendurada ao pescoço.

De alguma coisa os polícias pareceram não ter gostado porque, instantes depois, puxaram o turista pelo braço e escoltaram-no para o interior da gare.

"O que aconteceu?", quis saber o português.

"Ele vai ter de pagar uma multa."

"Ah, é? Porquê?"

"Tirou fotografias ali a uma carruagem velha onde vivem uns vagabundos."

"E então?"

Nadezhda pôs o pé no degrau e subiu para o interior do vagão.

"A polícia não gosta disso", disse com indiferença. "Dá má imagem do país."

Comeram na cabina, a mesinha posta como se estivessem em casa; aquele compartimento, luxuoso como um hotel, tornara-se, na verdade, o seu lar. Quando terminaram a refeição, Nadezhda ficou a arrumar as coisas enquanto Tomás foi ao samovar buscar água quente para o chá. Era uma estranha forma de ambos terem uma espécie de vida doméstica.

Nessa noite, aninhados entre os lençóis de um único beliche, fizeram amor com os sentidos bem despertos. O comboio ondulava ao seu próprio ritmo, cata-cata-cata, o som das rodas metálicas a dobrar as junções num compasso interminável; a essa ondulação de aços juntava-se a cadência faminta da carne, os dois corpos dançando como um, um, um e um apenas, unidos já não na volúpia da descoberta, mas no conforto da familiaridade. Tocavam-se e não estranhavam o toque; pelo contrário, sentiam agora que se conheciam, como se o corpo do outro 116


sempre tivesse sido seu. Nadezhda, a mulher pública de Moscovo, era nesse instante a mulher privada de Tomás; pertencia a todos, mas naquela noite entregara-se unicamente a ele.

O beliche não parava de balouçar sob a cadência monótona do Transiberiano na sua corrida nocturna pelas estepes. Os dois amantes repousavam nos braços um do outro, entregues a uma modorra deleitosa, os corpos saciados, as pálpebras entreabertas, os sentidos entorpecidos. Nadezhda pôs o braço em torno da cabeça de Tomás, passou os dedos delgados pelo cabelo castanho-escuro e puxou-o para si, carinhosa, de modo a colar-lhe os lábios ao ouvido.

"Em que pensas tu, Tomik?", murmurou, ronronando como uma gata.

"Em nada."

"Mentiroso. Conta."

"Nada de especial."

"Conta."

Tomás respirou fundo e sorriu.

"Estava a pensar na nossa conversa ao almoço, quando me revelaste como conheceste o Filipe."

"Ah, isso."

O português soergueu-se do beliche, apoiando o corpo no cotovelo.

"Ainda não me disseste qual foi o projecto que trouxe o Filipe aqui à Rússia."

"Se calhar é melhor ser ele a dizer-te."

"Desculpa lá, Nadia, mas tens de me contar. Já me abriste o apetite para essa história e não me podes deixar assim pendurado, não achas?" Olhou pela janela e viu tudo escuro. "Além do mais, temos muito tempo à nossa frente, precisamos de o preencher." Fez um gesto rápido com a mão. "Portanto, vamos lá. Desembucha."


"O que queres tu saber?"

"Tudo."

Nadezhda riu-se.

"Mas eu não sei tudo."

"Então conta-me o que sabes."

"Sei que um dos meus professores, o velho Oleg Karatayev, me chamou um dia ao gabinete e me apresentou um amigo de Portugal. Era o Filhka."

"Que te queria recrutar, não é?"

117


"Sim. O Filhka disse-me que fazia parte de uma equipa internacional e que precisava de conduzir uns estudos na Sibéria. O grupo que ele representava pretendia contratar um estudante para fazer esses estudos e o professor Karatayev, que tinha um fraquinho por mim, sugeriu o meu nome. O Filhka veio conhecer-me e perguntou se eu estava interessada."

"E tu?"

"Eu respondi que sim, claro. Aquilo parecia-me uma forma de entrar na profissão. Além do mais, precisava do dinheiro, não é verdade?"

"Ainda não andavas no Night Flight?"

A russa desviou os olhos, desagradada pela referência àquela parte da sua vida.

"Naquele tempo eu trabalhava noutro night club, o Tsunami, que funciona ali na Petrovka Ulitsa. Fazia um número de sereias numa piscina, parece que aquilo excitava os homens." Rolou os olhos. "Foi lá que conheci o Igor Beskhlebov, o mafioso que te mostrei ontem no Night Flight."

"O das três miúdas?"

"Sim, esse cabrão. Quando comecei a trabalhar para ele, levou-me para o Rasputin, outro clube nocturno. Foi para me ver livre dele que depois fui para o Night Flight."


"Estou a perceber", disse Tomás, que na verdade não estava a perceber nada.

Além do mais, a conversa desviava-se do essencial e ele, por muito interessado que estivesse na vida da russa, e estava, sentiu que tinha de corrigir o rumo. "Portanto, o Filipe contratou-te para ires para a Sibéria, não é?"

"Sim, fui no Verão para a zona da tundra. Começaram a chegar notícias perturbadoras daquela região e o Filhka precisava de mim para fazer uma série de medições."

"Notícias perturbadoras? O que queres dizer com isso?"

Nadezhda fez uma careta indecisa.

"Não sei se te deva contar isto, Tomik", disse. "Se calhar é melhor falares primeiro com o Filhka."

"Deixa-te de disparates, o Filipe não está aqui."

"Por isso mesmo. Era melhor ser ele a contar-te."

"Ouve, Nadia. Só daqui a algum tempo é que vamos en-contrar-nos com o Filipe. Para quê todas essas hesitações? Se não me contares agora, ele conta-me mais tarde. Parece-me vantajoso chegar ao pé dele com o trabalho de casa já feito, não achas? Sempre poupamos tempo, eu e ele. Além do mais, vamo-nos entretendo 118


à conversa."

"Hmm."

"Anda, diz lá", insistiu Tomás. "Que notícias perturbadoras eram essas?"

A russa suspirou.

"Está bem, eu conto-te", rendeu-se Nadezhda. "O que se passou foi que começaram nessa altura a correr informações de que o solo tinha aparecido por baixo da tundra."

"O solo? Qual solo?"

"A terra."

"A terra apareceu por baixo da tundra? E depois?"

Nadezhda mirou-o com uma expressão interrogativa.

"Olha lá, tu sabes o que é a tundra?"


"Bem... não."

"Nota-se", exclamou ela com sarcasmo. "A tundra é o 'terreno mais inóspito que existe na Sibéria. Cobre todo o tírculo polar árctico e está congelada. Há pontos onde se 'acumulam mais de mil metros de espessura de gelo, e no topo, ;ao longo da superfície, estende-se um fino tapete de relva "onde crescem muito poucas árvores.

São quilómetros e 'quilómetros assim, sempre com a terra congelada."

"E estás a dizer que a terra apareceu debaixo da tundra?"

"Sim. No Verão."

Tomás olhou para Nadezhda com uma expressão vazia, 'sem perceber onde ela queria chegar.

"O gelo da tundra derreteu-se no Verão e a terra apareceu." 'Curvou a boca.

"E então? O que tem isso de tão especial?"

A rapariga inclinou a cabeça.

"Tomik, aquilo era a tundra." Inclinou-se na sua direcção, Ipara enfatizar o que estava a dizer. "A tundra."

"Sim, e então?"

"A tundra está sempre gelada. E por se encontrar permanentemente congelado que este tipo de terreno é designado por 1vétcbnaya merzlotá. Congelação eterna. Os ingleses dizem Ipermafrost." Arregalou os olhos azuis. "Ora há milénios que a 1

terra por baixo da vétcbnaya merzlotá não via a luz do Sol."

"Há quanto tempo?"

119


"Milénios."

Tomás afagou o queixo, pensativo.

"Isso é realmente muito tempo", concordou. "E o que '< aconteceu para essa terra aparecer agora? Há actividade vulcânica naquela zona?"

"Não é isso, Tomik. Não foi a terra que subiu, foi o gelo 5sobre ela que derreteu, percebes?"

"O gelo derreteu? Porquê?"


"Porque as temperaturas aumentaram", exclamou ela como quem expõe uma evidência. "Desde a década de 1970 que as temperaturas médias na Sibéria subiram cinco graus." Repetiu o valor, quase soletrando. "Cinco graus."

"E então?"

"A tundra começou a derreter. O gelo recuou três por cento no Árctico e abriu um canal de água líquida na costa norte da Sibéria, que antigamente se encontrava permanentemente gelada. A tundra desapareceu e, em seu lugar, emergiu o solo."

Baixou o tom de voz, tornando-o sombrio. "O problema é que esse solo é escuro."

"O que tem isso de especial?"

"Tomik, pensa um pouco. Antigamente, quando o Verão chegava, os raios de Sol embatiam na neve e o calor era reflectido para o espaço. Mas agora esses raios já não encontram o espelho de neve que reflecte o calor, mas terra escura, que o absorve."

"Estou a ver."

"O efeito é de bola de neve. O calor fica retido na terra escura da Sibéria e faz aumentar a temperatura, o que acelera o derretimento do resto da tundra, expondo mais terra escura que provoca mais derretimento, e assim por diante. A Sibéria entrou num ciclo vicioso de aquecimento que vai destruir todo o gelo do circulo polar árctico."

"Bem, há-de certamente sobrar o gelo do Pólo Norte."

"Tomik, pelas nossas contas não haverá gelo permanente no Pólo Norte em 2030, talvez mais cedo."

Tomás contraiu o rosto numa careta incrédula.

"Não acredito. Todo aquele gelo não derrete assim sem mais nem menos."

"Ai não? Então deixa-me contar-te uma história. Durante a Guerra Fria sempre se pensou que o Árctico seria um dos palcos de batalha se o conflito aquecesse, o que nos levou, a nós e aos Americanos, a encher de submarinos nucleares as águas por baixo do gelo. A ideia era, em caso de guerra, os submarinos 120


subirem rapidamente para a superfície e lançarem os mísseis contra o inimigo. De modo a detectarem os pontos mais adequados para emergirem e se posicionarem, esses submarinos passaram toda a Guerra Fria a medir a espessura da camada de gelo do Árctico. Sabes o que descobriram?" Ergueu o polegar e o indicador e aproximou-os. "Entre a década de 1960 e a década de 1990, essa camada tornou-se quarenta por cento mais fina." Arregalou os olhos, enfatizando o número. "Quarenta por cento, Tomik."

"A sério?"

"Foi por isso que o Filhka me contratou. Para medir o recuo da tundra. As medições foram feitas e os resultados são conclusivos. Daqui a alguns anos, se fores ao Pólo Norte no Verão, o que julgas que vais lá encontrar?"

"Ursos?"

Nadezhda suspirou.

"Água e só água."

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