Sidney Sheldon

UM ESTRANHO NO ESPELHO


Tradução de

ANA LUCIA DEIRÓ CARDOSO


Titulo original norte-americano

A STRANGER IN THE MIRROR


Se você procura se encontrar

Não olhe para um espelho

Pois lá não há nada além de uma sombra,

Um estranho.


─ Silenius, Odes à verdade


NOTA AO LEITOR


A arte de fazer os outros rirem é certamente uma maravilhosa dádiva dos deuses. Com muito carinho dedico este livro aos comediantes, aos homens e mulheres que possuem esse dom e o partilham conosco. E particularmente a um deles: o padrinho de minha filha, Groucho.


Esta é uma obra de ficção. Exceto pelos nomes de personalidades do mundo teatral, todas as personagens são imaginárias.


PRÓLOGO

Numa manhã de sábado, no princípio de agosto de 1969, uma série de acontecimentos bizarros e inexplicáveis ocorreu a bordo de um luxuoso transatlântico S.S. Bretagne, de cinqüenta e cinco mil toneladas, enquanto se preparava para deixar o porto de Nova York com destino a Le Havre.

Claude Dessard, comissário-chefe do Bretagne, um homem eficiente e meticuloso, dirigia, como gostava de dizer, um "navio rijo". Durante quinze anos que Dessard servira a bordo do Bretagne nunca havia encontrado uma situação que não fosse capaz de resolver com eficiência e discrição. Considerando-se que o S.S. Bretagne era um navio francês, isso era de fato uma façanha altamente elogiável. Entretanto, naquele dia de verão, foi como se mil demônios estivessem conspirando contra ele. Serviu de pequeno consolo para o seu orgulho gaulês o fato de que as investigações intensivas, realizadas posteriormente pelas divisões francesa e americana da Interpol e pela própria segurança da companhia de navegação, não tivessem conseguido descobrir uma única explicação plausível para os extraordinários acontecimentos daquele dia.

Por causa da fama das pessoas envolvidas, a história foi contada em manchetes, por todo o mundo, mas o mistério continuou sem solução.

Quanto a Claude Dessard, retirou-se da Cie. Transatlantique e abriu um bistrô em Nice, onde nunca se cansava de reviver com os clientes aquele estranho e inesquecível dia de agosto.


Tudo começara, Dessard recordava, com a entrega das flores do presidente dos Estados Unidos.

Uma hora antes da partida, uma limusine oficial, preta, com placa do governo federal, havia estacionado no píer 92, na foz do rio Hudson. Um homem vestindo um terno cinzento-escuro saltara do carro, segurando um buquê de trinta e seis rosas Sterling Silver. Dirigira-se até a prancha de embarque e trocara algumas palavras com Alain Safford, o oficial de serviço. As flores foram cerimoniosamente transferidas para Janin, um camareiro que as entregou e então procurou Claude Dessard.

─ Achei que gostaria de saber ─ comunicou Janin. ─ Rosas do presidente para Mme Temple.

Jill Temple. Naquele último ano sua fotografia havia aparecido na primeira página dos jornais e na capa de revistas de Nova York a Bangkok, de Paris a Leningrado. Claude Dessard se lembrava de ter lido que ela havia sido a primeira colocada em uma pesquisa recente da mulher mais admirada do mundo, e que um grande número de recém-nascidas estava sendo batizadas com seu nome. Os Estados Unidos da América sempre haviam tido suas heroínas. Agora Jill Temple havia se tornado uma. Sua coragem e a fantástica batalha que vencera e, em seguida, perdera tão ironicamente capturaram a imaginação do mundo. Era uma grande história de amor, mas era muito mais do que isso: continha todos os elementos do drama e da tragédia clássica gregos.

Claude Dessard não gostava muito de americanos, mas nesse caso estava encantado por fazer uma exceção. Tinha uma tremenda admiração por Mme. Temple. Ela era ─ e esse era o maior elogio que Dessard podia conceder a alguém ─ galante. Decidiu que sua viagem naquele navio devia ser inesquecível.

O comissário-chefe desviou os pensamentos de Jill Temple e se concentrou numa última verificação da lista dos passageiros. Havia uma coleção habitual do que os americanos chamavam de VIPs, uma sigla que Dessard detestava, particularmente porque os americanos tinham idéias muito absurdas a respeito do que fazia as pessoas importantes. Notou que a mulher de um industrial milionário estava viajando sozinha. Dessard sorriu e consultou a lista à procura do nome de Matt Ellis, um negro, astro de futebol. Quando o encontrou, sacudiu a cabeça, satisfeito. Dessard também ficou interessado ao notar que, em camarotes vizinhos, estavam um destacado senador e Carlina Rocca, uma dançarina sul-americana de strip-tease, cujos nomes vinham aparecendo em recentes artigos de jornal. Seus olhos se moveram percorrendo a lista.

David Kenyon. Dinheiro. Uma quantidade enorme de dinheiro. Já tinha viajado no Bretagne antes. Dessard se lembrava de David Kenyon como um homem bem apessoado, muito queimado do sol, com um corpo esguio e atlético. Um homem tranqüilo, discreto, mas de personalidade. Dessard pôs um M.C., significando mesa do comandante, depois do nome David Kenyon.

Clifton Lawrence. Uma reserva de último minuto. Um leve franzido surgiu na testa do comissário-chefe. Ah, ali estava um problema delicado. Que fazer com M. Lawrence? Houve época em que a questão nem teria sido levantada, pois ele teria sido automaticamente acomodado na mesa do comandante, onde divertia todo mundo com anedotas. Clifton Lawrence era um empresário teatral que nos seus grandes dias havia representado muito dos grandes astros no mundo dos espetáculos. Mas, infelizmente, os grandes dias de M. Lawrence haviam acabado Em outras épocas o empresário havia sempre insistido em ter a luxuosa Suíte Princesa, e naquela viagem havia reservado um quarto de solteiro num convés inferior. Primeira classe, é claro mas mesmo assim, Claude Dessard decidiu que deixaria para tomar sua decisão depois de examinar os outros nomes da lista.

Haviam membros da pequena nobreza a bordo, uma famosa cantora de ópera e um romancista russo que havia recusado o prêmio Nobel.

Uma batida na porta interrompeu a concentração de Dessard. Antoine, um dos carregadores, entrou.

─ Sim, que é? ─ perguntou Dessard.

Antoine olhou para ele com os olhos lacrimejantes.

─ O senhor mandou trancar o teatro?

Dessard franziu o cenho.

─ De que é que está falando?

─ Achei que tinha sido o senhor. Quem mais o faria? Há alguns minutos atrás fui verificar se estava tudo em ordem. As portas estavam trancadas. Pelo barulho parecia que havia alguém na sala de espetáculos passando um filme.

─ Nunca passamos filmes quando ainda estamos no porto ─ disse Dessard com firmeza. ─ E em nenhuma ocasião aquelas portas ficam trancadas. Vou dar uma olhada nisso.

Normalmente, Claude Dessard teria investigado o ato imediatamente, mas naquele momento estava atormentado por dúzias de detalhes urgentes, de último minuto, que tinham de ser resolvidos antes da partida, às doze horas. Sua reserva de dólares americanos não conferia, uma das melhores suítes havia sido reservada duas vezes por engano, e o presente de casamento encomendado pelo Comandante Montaigne havia sido entregue no navio errado. O comandante ia ficar furioso. Dessard parou para ouvir o som familiar das quatro poderosas turbinas do navio dando partida. Sentiu o movimento do S.S. Bretagne, à medida que se afastava deslizando do píer e começava a recuar em direção ao canal. Então, mais uma vez, Dessard se concentrou nos seus problemas.

Meia hora depois, Léon, o camareiro-chefe da galeria externa do convés, entrou. Dessard ergueu os olhos com impaciência.

─ Sim, Léon?

─ Sinto muito incomodá-lo, mas achei que deveria saber.

─ Sim?

Dessard não prestava muita atenção, pois sua mente estava ocupada com a delicada tarefa de completar a distribuição de lugares na mesa do comandante para cada noite da viagem. O comandante não era um homem dotado de espírito social, e ter que jantar com seus passageiros todas as noites era uma provação para ele. Era tarefa de Dessard cuidar para que o grupo fosse agradável.

─ É sobre Mme Temple... ─ começou Léon.

Imediatamente Dessard largou o lápis e levantou a cabeça, os olhinhos negros atentos.

─ Sim?

─ Passei pelo camarote dela há alguns minutos, e ouvi pessoas discutindo em voz alta e um grito. Era difícil ouvir com clareza através da porta, mas soava como se ela estivesse dizendo: "Você me matou, você me matou". Achei que era melhor não interferir, assim vim procurá-lo.

Dessard assentiu.

─ Você fez bem. Vou verificar para assegurar-me de que ela está bem.

Dessard observou o camareiro se retirar. Era inconcebível que alguém pudesse fazer mal a uma mulher como Mme Temple. Era um ultraje ao espírito gaulês de cavalheirismo de Dessard. Pôs o quepe do uniforme, lançou um rápido olhar ao espelho na parede e dirigiu-se para a porta. O telefone tocou. O comissário-chefe hesitou e então atendeu.

─ Dessard.

─ Claude... ─ era a voz do imediato. ─ Pelo amor de Deus, mande alguém até o teatro com um esfregão. Há sangue por todo lado.

Dessard sentiu de repente uma sensação de vazio no fundo do estômago.

─ Imediatamente.

Desligou o telefone, falou com um dos faxineiros, depois telefonou para o médico de bordo, tentando fazer sua voz soar normal.

─ André? É Claude. Eu só estava querendo saber se apareceu alguém aí precisando de tratamento médico? Não, não. Não estava pensando em comprimidos para enjôo. Esta pessoa estaria sangrando, muito talvez. Sei. Obrigado.

Dessard desligou, sentindo um crescente mal-estar. Saiu do escritório e dirigiu-se à suíte de Jill Temple. Estava a meio do caminho do seu destino quando ocorreu o evento estranho seguinte.

Quando Dessard ia chegando ao convés, sentiu o ritmo do movimento do navio mudar. Olhou de relance para o oceano e viu que tinham chegado ao Farol Ambrose, onde deixariam o rebocador e o navio se dirigir à margem e parar. Alguma coisa extraordinária estava acontecendo.


Dessard correu até a amurada e olhou para baixo. No mar, lá embaixo, o rebocador-piloto tinha sido encostado à escotilha de carga do Bretagne, e dois marinheiros estavam transferindo bagagem do transatlântico para o rebocador. Enquanto Dessard observava, um passageiro saiu pela escotilha do navio, passando para o rebocador. Dessard só conseguiu ver de relance as costas da pessoa, mas achou que com certeza deveria ter-se enganado quanto à sua identidade. Simplesmente não era possível. De fato, o incidente de um passageiro deixar o navio daquela maneira era tão extraordinário que o comissário-chefe sentiu um leve frisson de temor. Virou-se, seguindo rapidamente para a suíte de Jill Temple. Não houve resposta à sua batida na porta. Bateu de novo, dessa vez um pouco mais forte.

Madame Temple... É Claude Dessard, o comissário-chefe. Gostaria de saber se lhe posso ser útil em alguma coisa.

Não houve resposta. Naquela altura, o sistema de alarme interno de Dessard estava berrando. Seus instintos lhe diziam que havia alguma coisa terrivelmente errada, e teve um pressentimento de que estava centralizada, de alguma maneira, naquela mulher. Uma série de pensamentos loucos e ultrajantes passou pela sua cabeça. Fora assassinada, raptada ou... Experimentou o trinco da porta. Estava destrancada. Lentamente, Dessard empurrou e abriu a porta. Jill Temple estava de pé na extremidade mais distante do camarote. Dessard abriu a boca para falar, mas alguma coisa na rigidez gelada daquele vulto o deteve. Ficou parado por um momento, pensando em sair silenciosamente, quando de repente o camarote se encheu de um som sinistro e penetrante, como o de um animal ferido, alucinado de dor. Impotente diante de um sofrimento pessoal tão profundo. Dessard se retirou, fechando a porta cuidadosamente atrás de si.

Ficou parado do lado de fora do camarote por um momento, ouvindo os gemidos vindos lá de dentro. Então, profundamente abalado, virou-se, dirigindo-se para o teatro do navio, no convés. Um faxineiro estava limpando um rasto de sangue defronte à sala de espetáculos.

"Mon Dieu", ─ pensou Dessard. ─ "O que mais?"

Experimentou a porta. Estava destrancada. Dessard entrou no grande e moderno auditório, que tinha capacidade para acomodar seiscentas pessoas sentadas. O auditório estava vazio. Obedecendo a um impulso, foi até a cabine de projeção. A porta estava trancada. Só duas pessoas tinham as chaves daquela porta: ele e o operador. Dessard abriu-a com sua chaves e entrou. Tudo parecia normal. Foi até onde estavam os dois projetores Century de trinta e cinco milímetros e pôs as mãos sobre eles.

Um deles estava quente.

Nos alojamentos da tripulação, no convés D, Dessard encontrou o operador, que lhe garantiu desconhecer se a sala tinha sido usada.

De volta a seu escritório, Dessard cortou caminho pela cozinha. O chef o deteve furioso.

─ Olhe só o que um idiota desses fez!

Numa mesa de cozinha com tampo de mármore, estava um lindo bolo de casamento de seis camadas, e no topo delicados bonequinhos feitos de açúcar, representando um noivo e uma noiva.

Alguém tinha esmagado a cabeça da noiva.


─ Foi naquele momento ─ Dessard costumava dizer aos clientes, no seu bistrô, ─ que eu soube com certeza que alguma coisa terrível estava para acontecer.

LIVRO

PRIMEIRO

1

Em 1919, Detroit, no Estado de Michigan, era a única cidade industrial do mundo extremamente bem-sucedida. A Primeira Guerra Mundial tinha acabado, e Detroit desempenhara um papel significativo na vitória dos Aliados, fornecendo-lhes tanques, caminhões e aviões. Agora, terminada a ameaça dos hunos, mais uma vez as fábricas de automóveis voltaram suas energias para a fabricação desses veículos. Logo, quatrocentos automóveis por dia estavam sendo fabricados, montados e embarcados. Mão-de-obra especializada e não-especializada vinha de todas as partes do mundo em busca de emprego nessa indústria. Italianos, irlandeses, alemães ─ vinham todos numa enxurrada.

Entre os recém-chegados estavam Paul Templerhaus e sua esposa, Frieda. Paul tinha sido aprendiz açougueiro em Munique. Com o dote que recebera quando se casou com Frieda, tinha emigrado para Nova York e aberto um açougue, que rapidamente apresentara déficit. Então, mudou-se para St. Louis, Boston, e finalmente Detroit, fracassando espetacularmente em cada cidade. Numa época em que todos os negócios estavam se expandindo rapidamente e na qual o fluxo imigratório crescente significava uma demanda de carne cada vez maior, Paul Templerhaus conseguia perder dinheiro em cada lugar onde abria um açougue. Era bom açougueiro, mas de uma incompetência desesperadora para negócios. Na verdade, estava mais interessado em escrever poesia do que em ganhar dinheiro. Passava horas imaginando rimas e imagens poéticas. Ele as punha no papel e as enviava para jornais e revistas, que nunca compraram nenhuma de suas obras-primas. Para Paul o dinheiro não tinha nenhuma importância. Dava crédito a todo mundo, e a notícia se espalhava rapidamente: se você não tinha dinheiro e queria carne da melhor qualidade, devia procurar Paul Templerhaus.

Frieda, sua esposa, era uma moça feia, que não tinha tido nenhuma experiência com homens antes que Paul aparecesse e a pedisse em casamento ─ ou melhor, como mandava o costume na época, ao seu pai. Frieda tinha suplicado ao pai que aceitasse o pedido de Paul, mas o velho não precisara ser convencido, pois havia muito tempo que temia desesperadamente que fosse ter que agüentá-la para o resto da vida. Tinha até aumentado o dote para que Frieda e o marido pudesse deixar a Alemanha e ir para o Novo Mundo.


Frieda tinha se apaixonado timidamente pelo marido, à primeira vista. Nunca vira um poeta antes. Paul era o protótipo do intelectual: magro, olhos claros e míopes, cabelo ralo. Só depois de alguns meses Frieda acreditou que aquele belo rapaz realmente lhe pertencia. Ela não tinha ilusões a respeito da própria aparência. Seu corpo era cheio de protuberâncias, com a forma de um gigantesco batata Kugel crua. O que ela tinha de realmente bonitos eram os olhos, de um azul vivo da cor das gencianas, mas o resto do seu rosto parecia pertencer a outras pessoas. O nariz era o de seu avô, grande e bulboso; a testa era a do tio, larga e oblíqua; e o queixo era o do pai, quadrado e severo. Em algum lugar no íntimo de Frieda havia uma moça bonita, aprisionada numa armadilha com um rosto e um corpo que Deus lhe dera numa espécie qualquer de piada cósmica de mau gosto. Mas as pessoas só podiam ver a aparência exterior. Exceto Paul. O seu Paul. Foi realmente melhor que Frieda nunca tivesse sabido que sua atração estava no seu dote, que ele via como uma fuga dos flancos sangrentos de boi e de miolos de porco. O sonho de Paul fora abrir um negócio por conta própria e ganhar bastante dinheiro, para que pudesse se devotar à sua amada poesia.

Frieda e Paul foram para uma estalagem nos arredores de Salzburg para passar a lua-de-mel. Era um lindo castelo antigo, às margens de um lago adorável, rodeado por campinas e florestas. Frieda tinha imaginado a primeira noite da lua-de-mel uma centena de vezes. Paul trancaria a porta e a tomaria nos braços, murmurando doces palavras apaixonadas à medida que começasse a despi-la. Seus lábios encontrariam os dela e então iriam descendo suavemente pelo seu corpo nu, como em todos aqueles livrinhos que ela lera em segredo. O membro dele estaria duro, ereto e orgulhoso, como um estandarte alemão, e Paul a levaria até a cama (talvez fosse mais seguro se ela andasse até a cama) e a deitaria ternamente. Mein Gott, Frieda, ele diria. Adoro o seu corpo. Você não é como essas garotinhas magricelas. Você tem corpo de mulher.

A realidade foi um choque. Foi verdade que quando chegaram ao quarto Paul trancou a porta. Depois disso, a realidade foi estranha ao sonho Enquanto Frieda observava, ele tirou a camisa rapidamente, revelando um tórax protuberante, magro e desprovido de pêlos. Então tirou as calças. Entre as pernas jazia um pênis murcho e de proporções reduzidas, escondido pelo prepúcio. Não se parecia de nenhuma maneira com os desenhos excitantes que ela tinha visto. Paul se deitou na cama, e Frieda percebeu que ele estava esperando que ela mesma se despisse. Lentamente, começou a tirar as roupas. Bem, o tamanho não é tudo, pensou Frieda. Paul será um amante maravilhoso. Alguns momentos depois, a noiva trêmula foi se juntar ao marido no leito conjugal. Enquanto esperava que ele dissesse alguma coisa romântica, Paul rolou para cima dela, fez algumas arremetidas dentro dela, e se afastou. Para a noiva atordoada, tinha acabado antes mesmo de começar. Quanto a Paul, suas poucas experiências sexuais anteriores haviam sido com prostitutas de Munique, e ele já ia apanhando a carteira quando se lembrou de que não precisava mais pagar. De agora em diante era de graça. Muito tempo depois de Paul ter adormecido, Frieda ainda continuava deitada na cama, tentando não pensar no seu desapontamento. O sexo não é tudo, disse a si mesma. O meu Paul será um marido maravilhoso.

Conforme se viu depois, estava errada mais uma vez.


Foi pouco tempo depois da lua-de-mel que Frieda começou a ver Paul sob uma óptica mais realista. Tinha sido educada, de acordo com a tradição alemã, para ser uma Hausfrau, e assim obedecia ao marido sem discutir, mas nem de longe era idiota. Paul não tinha nenhum interesse além de seus poemas e Frieda começou a perceber que eles eram muito ruins. Não podia deixar de observar que Paul deixava muito a desejar em todos os campos possíveis. Paul era indeciso, Frieda era firme; Paul era estúpido quanto aos negócios, Frieda era esperta. A princípio ficava sentada quieta, sofrendo em silêncio, enquanto o cabeça da família jogava seu belo dote nas suas idiotices. Quando se mudaram para Detroit, Frieda já não podia agüentar mais. Um dia foi direta ao açougue do marido e ocupou a caixa registradora. A primeira coisa que fez foi pregar um cartaz dizendo: "NÃO SE VENDE FIADO". O marido ficou horrorizado, mas aquilo era apenas o princípio. Frieda aumentou os preços da carne e começou a fazer propaganda, bombardeando a vizinhança com panfletos, e o negócio se expandiu da noite para o dia. Daquele momento em diante, foi Frieda quem passou a tomar todas as decisões importantes, e Paul quem as seguia. O desapontamento de Frieda a transformara numa tirana.

Descobriu que tinha jeito para negócios e para controlar as pessoas, e era inflexível. Foi Frieda quem decidiu como o dinheiro deles deveria ser investido, onde deveriam morar, onde passariam as férias, e quando teriam um bebê.

Comunicou sua decisão a Paul uma noite, e fez com que ele trabalhasse no projeto até que o pobre homem quase sofreu um colapso nervoso. Ele temia que muita atividade sexual lhe prejudicasse a saúde, mas Frieda era uma mulher de grande determinação.

─ Meta dentro de mim ─ ela ordenava.

─ Como é que eu posso? ─ reclamava Paul. ─ Ele não estava interessado.

Frieda então pegou o pequeno pênis murcho e afastava o prepúcio. Quando nada acontecia, ela o levava à boca ─ Mein Gott, Frieda! Que é que você está fazendo? ─ até que ficasse rijo, contra a vontade dele, e então o colocava entre as pernas até que o esperma estivesse dentro dela.

Três meses depois de terem começado, Frieda comunicou ao marido que ele poderia ter um descanso. Estava grávida. Paul queria uma menina e Frieda queria um menino. Por isso não foi nenhuma surpresa para seus amigos que o bebê fosse um menino

O bebê, por insistência de Frieda, nasceu em casa, sob os cuidados de uma parteira. Tudo correu bem e tranquilamente, antes e durante o parto. Foi então que as pessoas reunidas em volta da casa tiveram um choque. A criança recém-nascida era normal em tudo ─ a não ser o pênis. O membro do bebê era enorme, balançando como um apêndice inchado, desproporcionalmente grande entre as coxas inocentes.

O pai dele não tem essa constituição, pensou Frieda com um ímpeto de orgulho.


Ela o chamou Tobias, em honra a um vereador que morava no mesmo distrito que eles. Paul disse a Frieda que se ocuparia da educação do menino. Afinal, era função do pai criar seu filho.

Frieda ouviu e sorriu, e raramente deixava Paul chegar perto da criança. Foi ela quem criou o menino. Dominava-o com um punho teutônico, e não se dava ao trabalho de usar luva de pelica.

Aos cinco anos Toby era uma criança magra, de pernas longas, com um rosto sonhador e alegre, os seus olhos azuis, cor de genciana, de sua mãe. Toby adorava a mãe e ansiava pela sua aprovação. Queria que ela o tomasse nos braços e que o apertasse contra o grande colo macio, de forma que ele pudesse enfiar a cabeça no busto aconchegante. Mas Frieda não tinha tempo para essas coisas. Estava ocupada em ganhar o sustento da família. Amava o pequeno Toby e estava decidida a não permitir que ele, crescendo, se tornasse um fracote como o pai. Frieda exigia perfeição em tudo que Toby fazia. Quando ele começou a freqüentar a escola, supervisionava os trabalhos de casa, e se estava confuso, não sabendo fazer algum dever, ela o repreendia:

─ Vamos, menino, arregace as mangas!

E ficava em cima dele até que tivesse solucionado o problema. Quanto mais severa Frieda era com Toby, mais ele a amava. Tremia diante da idéia de aborrecê-la. Castigava com prontidão, raramente elogiava, mas sentia que o fazia para o bem de Toby. Desde o primeiro momento em que o filho fora posto em seus braços, Frieda soubera que um dia ele se tornaria um homem famoso e importante. Não sabia como ou quando, mas sabia que aconteceria. Era como se Deus o tivesse dito baixinho ao seu ouvido. Antes mesmo que o menino tivesse idade suficiente para compreender o que estava dizendo, Frieda sempre lhe falava de sua grandeza que estava por vir. E assim o jovem Toby cresceu sabendo que iria ser famoso, mas sem ter nenhuma idéia de como ou quando. Sabia apenas que sua mãe nunca se enganava.

Alguns dos momentos mais felizes da vida de Toby eram os que passava sentado na enorme cozinha, fazendo os deveres de casa, enquanto a mãe cozinhava no grande fogão antigo. Fazia uma sopa de feijão-preto bem grossa, com um cheiro divino e com linguiças inteiras flutuando, travessas suculentas de Bratwurst e panquecas de batata com as beiradas fofas parecendo uma renda marrom. Ou então ficava de pé diante da larga bancada no meio da cozinha, preparando massa com suas mãos grossas e fortes, e depois polvilhando-a com uma neve suave de farinha, transformando por um passe de mágica a massa em Pflaumenkuchen ou Apfelkuchen. Toby ia junto dela e lançava os braços em torno do corpo pesadão, o rosto só lhe chegava até a cintura. O excitante cheiro feminino almiscarado do seu corpo se misturava a todos os cheiros excitantes da cozinha, e uma sexualidade espontânea despertava no seu íntimo. Nesses momentos teria sido capaz de morrer por ela com satisfação. Pelo resto da vida, o cheiro de maçãs frescas, cozinhando na manteiga, lhe trazia imediatamente à memória uma imagem vívida de sua mãe.


Uma tarde, quando Toby tinha doze anos, a Sra. Durkin, a fofoqueira da vizinhança, veio visitá-los. A Sra. Durkin era uma mulher de rosto ossudo, olhos negros dardejantes e uma língua que não parava nunca. Quando foi embora, Toby imitou seus trejeitos, fazendo com que sua mãe tivesse um acesso de riso. Pareceu-lhe que era a primeira vez que a ouvia rir. Daquele momento em diante, Toby estava sempre à procura de maneiras de diverti-la. Fazia imitações devastadoras de fregueses que apareciam no açougue, de professores e de colegas de turma, e a mãe ria até não poder.

Toby descobrira finalmente uma maneira de ganhar a aprovação da mãe.

Fez um teste para uma peça escolar, No Account David, e obteve o papel principal. Na noite da estréia, Frieda se sentou na primeira fila e aplaudiu o sucesso do filho. Foi naquele momento que Frieda soube como a promessa de Deus ia se tornar realidade.

Estavam no princípio dos anos 30, o começo da Depressão, e as casas de espetáculos por todo o país estavam experimentando qualquer estratagema para que as cadeiras vazias fossem ocupadas. Distribuíam refeições e rádios, promoviam noitadas de víspora e bingo, contratavam organistas para acompanhar os saltos da bolinha nos filmes enquanto a audiência acompanhava cantando.

E realizavam concursos de amadores. Frieda examinava cuidadosamente a sessão teatral do jornal para ver onde os concursos se realizavam. Então levava Toby até lá, sentava-se na platéia enquanto ele fazia imitações de Al Jolson, James Cagney e

Eddie Cantor, e gritava:

Mein Himmel! Que menino talentoso!

Toby quase sempre ganhava o primeiro prêmio.

Tinha ficado alto, mas ainda era magro, uma criança séria, de olhos azuis brilhantes e sinceros, num rosto de querubim. Olhava-se para ele e pensava-se instantaneamente: inocência. Quando as pessoas viam Toby, tinham vontade de envolve-lo nos braços, de abraçá-lo e protegê-lo da vida. Elas o amavam e no palco o aplaudiam. Pela primeira vez Toby compreendeu o que estava destinado a ser; ia ser um astro, primeiro por sua mãe, e depois por Deus.


A libido de Toby começou a dar os primeiros sinais quando ele estava com quinze anos. Ele se masturbava no banheiro, o único lugar onde tinha privacidade garantida, mas não era o bastante. Decidiu que precisava de uma garota.

Uma noite, Clara Connors, a irmã casada de um colega de turma, deu carona a Toby até em casa, depois dele ter feito uma entrega para sua mãe. Clara era uma loura bonita, de seios grandes, e quando Toby sentou-se a seu lado começou a ter uma ereção. Cheio de nervosismo, esticou a mão para o colo dela, e começou a apalpá-la debaixo da saia, pronto para recuar imediatamente se ela gritasse. Clara ficou mais excitada do que zangada, mas quando Toby puxou o pênis para fora e ela viu o seu tamanho, convidou-o para ir à sua casa na tarde seguinte e iniciou-o nos prazeres das relações sexuais. Foi uma experiência fantástica. Em vez da mão ensaboada, Toby havia encontrado um receptáculo macio e morno que se contraía e apertava seu pênis. Os gemidos e gritos de Clara fizeram-no enrijecer-se uma vez depois da outra, de maneira que ele teve um orgasmo e depois outro e outro, sem nunca deixar o ninho quente e úmido. O tamanho do seu pênis sempre tinha sido uma fonte de vergonha secreta para Toby. Agora, de repente, havia se tornado sua glória. Clara não podia guardar aquele fenômeno só para si, e logo Toby se viu atendendo a meia dúzia de mulheres casadas da vizinhança.

Durante os dois anos seguintes, conseguiu deflorar quase a metade das garotas da sua turma. Alguns de seus colegas eram heróis de futebol, ou mais bonitos do que ele, ou ricos ─ mas onde eles falhavam, Toby tinha sucesso. Era o mais engraçado, a coisa mais bonitinha que as garotas já tinham visto, e era impossível dizer não àquele rosto inocente e àqueles olhos azuis sonhadores.

No último ano na escola, Toby foi chamado ao gabinete do diretor. Na sala estavam sua mãe, furiosa, uma menina católica, de dezesseis anos, que soluçava, chamada Eileen Henegan, e o pai dela, um sargento de polícia, uniformizado. No momento que entrou na sala, soube que estava em sérios apuros.

─ Irei direto ao ponto, Toby ─ disse o diretor. ─ Eileen está grávida. Ela diz que você é o pai da criança. Você teve relações carnais com ela?

A boca de Toby ficou seca de repente. Tudo em que conseguia pensar era em quanto Eileen tinha gostado, como tinha gemido e pedido mais. E agora aquilo.

─ Responda, seu fedelho, filho de uma cadela! ─ berrou o pai de Eileen. ─ Você tocou em minha filha?

Toby olhou de esguelha para a mãe. O fato de ela estar ali, testemunhando sua vergonha, o aborrecia mais do que qualquer coisa. Ele havia falhado e a desgraçara. Ela sentiria repulsa pelo seu comportamento. Toby resolveu que se conseguisse sair daquela encrenca, se ao menos Deus o ajudasse daquela única vez e fizesse um milagre qualquer, nunca mais tocaria em outra garota enquanto vivesse. Iria direto a um médico e mandaria que o castrasse, de forma que nunca mais pensaria em sexo, e...

─ Toby... ─ sua mãe estava falando, a voz severa e fria. ─ Você foi para a cama com esta garota?

Toby engoliu em seco, respirou fundo e murmurou:

─ Sim, mamãe.

─ Então você vai casar com ela.

Ela olhou para a garota, de olhos inchados, que soluçava.

─ É isso o que você quer?

─ S-sim ─ soluçou Eileen. ─ Eu amo Toby.

Virou─se para Toby:

─ Eles me fizeram dizer. Eu não queria dizer seu nome a eles.

O pai dela, um sargento de polícia, comunicou à sala em geral:

─ Minha filha só tem dezesseis anos. Trata-se de estupro. Ele

poderia ser mandado para a cadeia pelo resto da vida. Mas se vai se casar com ela...

Todos se viraram para olhar para Toby. Ele engoliu em seco, de novo, e disse:

─ Sim, senhor. Eu-eu sinto muito que tenha acontecido.

Durante o percurso silencioso até casa, ao lado da mãe, Toby ficou sentado em silêncio, se sentindo infeliz, sabendo o quanto a havia ferido. Agora ia ter que arranjar um emprego para sustentar Eileen e a criança. Provavelmente ia ter que trabalhar no açougue e esquecer seus sonhos, todos os seus planos para o futuro. Quando chegaram em casa sua mãe lhe disse:

─ Venha até aqui em cima.

Toby a seguiu até o quarto, preparando-se para um sermão. Enquanto observava, ela tirou uma mala e começou a arrumar as suas roupas. Toby olhou para ela, intrigado.

─ Que é que está fazendo, mamãe?

─ Eu? Eu não estou fazendo nada. Você está. Você vai embora daqui.

Parou-se e virou-se para encará-lo.

─ Você acha que eu ia deixar você jogar sua vida fora com aquela garota insignificante? Então você a leva para a cama e ela vai ter um bebê. Isso prova duas coisas: que você é humano e que ela é burra! Oh, não... ninguém vai apanhar o meu filho numa armadilha e casá-lo à força. Deus criou você para que se tornasse um grande homem, Toby. Você irá para Nova York, e quando for um astro famoso, mandará buscar-me.

Ele piscou para conter as lágrimas e atirou-se nos braços dela, que o embalou no seu busto enorme. Toby de repente sentiu-se perdido e assustado com a idéia de deixá-la. E no entanto havia uma nova animação no seu íntimo, a euforia de começar uma nova vida. Ele ia fazer parte do Mundo dos Espetáculos. Ia ser um astro, ia ser famoso.

Sua mãe o dissera.


2

Em 1939, a cidade de Nova York era a meca do teatro. A Depressão havia acabado. O Presidente Franklin Roosevelt havia garantido que não existia nada a temer exceto o próprio medo, que a América seria a nação mais próspera da terra, e assim foi. Todo mundo tinha dinheiro para gastar. Havia trinta shows em cartaz na Broadway, e todos pareciam ser de grande sucesso.

Toby chegou a Nova York com os cem dólares que sua mãe lhe havia dado. Sabia que ia ser rico e famoso. Mandaria buscá-la, viveriam num lindo apartamento de cobertura e ela iria ao teatro todas as noites para ver a platéia aplaudi-lo. Nesse ínterim, tinha que arrumar um emprego. Foi para as portas dos camarins de diretores de todos os teatros da Broadway, e lhes falou sobre os concursos amadores que tinha vencido e sobre como era talentoso. Eles o puseram para fora. Durante as semanas em que procurou emprego, ele se esgueirou por teatros e clubes e viu os maiores atores em cena, especialmente os comediantes. Viu Ben Blue, Joe E. Lewis e Frank Fay. Toby sabia que um dia seria o melhor do que todos eles.

Como seu dinheiro estava acabando, aceitou um emprego de lavador de pratos. Telefonava para a mãe todos os domingos de manhã, quando a tarifa era reduzida. Ela contou a Toby o furor que sua fuga havia provocado.

─ Você precisava vê-los ─ disse a mãe. ─ O policial vem até aqui no carro oficial todas as noites. Pela maneira como ele age, parece até que nós somos todos gângsteres. Sempre perguntando onde é que você está.

─ E o que é que diz a ele? ─ perguntou Toby com ansiedade.

─ A verdade. Que você escapuliu como um ladrão durante a noite, e que se algum dia eu puser a mão em você faço questão de lhe torcer o pescoço pessoalmente.

Toby riu alto.


Durante o verão, Toby conseguiu arranjar emprego como assistente de mágico, um charlatão de olhos remelentos, sem nenhum talento, que se apresentava sob o nome de Grande Merlin. Eles se exibiam numa série de hotéis de segunda categoria nas Catskills, e a principal tarefa de Toby era carregar a pesada parafernália para dentro e para fora da camioneta de Merlin, e tomar conta dos "acessórios", que consistiam em seis coelhos, três canários e dois hamsters. Por causa dos temores de Merlin de que os animais "fossem comidos", Toby era forçado a viver com eles em quartinhos do tamanho de armários de vassouras, ficando com a impressão de que o verão inteiro não passara de um fedor insuportável. Estava em completa exaustão física de tanto carregar os pesados caixotes com lados e fundos falsos e de correr atrás dos animais, que constantemente fugiam. Sentia-se sozinho e desapontado. Ficava sentado olhando para os quartinhos, perguntando-se o que estaria fazendo ali e como aquilo o levaria a começar sua carreira no mundo dos espetáculos. Praticava suas imitações diante do espelho, e sua audiência era os animais fedorentos de Merlin.


Um domingo, quando o verão estava chegando ao fim, Toby deu o seu telefonema semanal para casa. Daquela vez foi seu pai quem atendeu.

─ É Toby, papai. Como é que você vai?

Houve um silêncio.

─ Alô? Você está aí?

─ Estou aqui, Toby.

Alguma coisa na voz do pai o gelou.

─ Onde está mamãe?

─ Eles a levaram para o hospital ontem à noite.

Toby agarrou o telefone com tanta força que ele quase quebrou.

─ Que aconteceu com ela?

─ O médico disse que foi um ataque do coração.

Não! Não a sua mãe!

─ Ela vai ficar boa, não vai? ─ estava berrando no bocal. ─ Diga─me que ela vai ficar boa, seu maldito!

De milhares de quilômetros de distância podia ouvir o pai chorando.

─ Ela... ela morreu há algumas horas, meu filho.

As palavras envolveram Toby como uma onda de lava incandescente, queimando, escaldando, até que seu corpo parecesse estar em fogo. Seu pai estava mentindo. Ela não podia estar morta. Eles tinham feito um pacto. Toby ia ser famoso e sua mãe ia estar ao seu lado. Havia um lindo apartamento de cobertura esperando por ela, e uma limusine com chofer, e peles e diamantes... Estava soluçando tão violentamente que não conseguia respirar. Ouviu uma voz distante dizendo:

─ Toby!

─ Estou a caminho de casa. Quando é o enterro?

─ Amanhã ─ disse o pai. ─ Mas você não deve vir aqui. Eles estão esperando por você, Toby. Eileen está a ter o bebê por estes dias. O pai dela quer matar você. Vão procurar por você no enterro.

Assim, não poderia nem ao menos dizer adeus à única pessoa no mundo que amava. Toby ficou deitado na cama durante aquele dia inteiro, lembrando. As imagens de sua mãe eram vívidas e vivas. Ela estava na cozinha, cozinhando, dizendo-lhe que homem importante ele ia ser, e na platéia, sentada na primeira fila, gritando: "Mein Himmel! Que menino talentoso!"

E rindo das suas imitações e piadas. E fazendo a mala dele. "Quando você for famoso, mandará buscar-me." Ficou deitado ali, entorpecido pela dor, pensando. "Nunca me esquecerei deste dia. Nunca enquanto eu viver: 14 de agosto de 1939. Este é o dia mais importante da minha vida."

Ele estava certo. Não por causa da morte de sua mãe, mas pelo que estava ocorrendo em Odessa, Texas, a quinze mil milhas de distância.


O hospital era um prédio anônimo de quatro andares, da cor da caridade. O interior parecia um viveiro de coelhos, de cubículos planejados para diagnosticar doenças, aliviá-las, curá-las ou às vezes encobri-las. Era um supermercado médico, e ali havia sempre alguma coisa para todo mundo.

Eram quatro horas da manhã, a hora da morte silenciosa ou do bom sono. O momento para o pessoal do hospital ter um intervalo de repouso antes de se preparar para as batalhas de um novo dia.

A equipe de obstetrícia na sala de operações 4 estava em apuros. O que havia começado como um parto normal de repente se transformara numa emergência. Até o momento do parto propriamente dito da Sra. Karl Czinski, tudo correra normalmente. A Sra. Czinski era uma mulher saudável, no auge da forma, com quadris largos de camponesa que eram o sonho de um obstetra. As contrações aceleradas haviam começado e as coisas estavam progredindo de acordo com o quadro habitual.

─ Parto invertido ─ anunciou o Dr. Wilson, o obstetra.

As palavras não causaram alarme. Embora apenas três por cento dos nascimento sejam por parto invertido, quando a parte inferior da criança emerge primeiro, eles normalmente são realizados com facilidade. Há três tipos de partos invertidos: o espontâneo, no qual não é necessária nenhuma ajuda; o assistido, no qual o obstetra ajuda a natureza; e o breakup completo, quando o bebê está preso no útero da mãe.

O Dr. Wilson notou com satisfação que aquele ia ser um parto espontâneo, o tipo mais simples. Observou os pés do bebê emergirem, seguidos por duas perninhas. Houve uma outra contração da mãe, e as coxas do bebê apareceram.

─ Está quase acabado ─ disse o Dr. Wilson num tom encorajador. ─ Contraia e faça força para baixo mais uma vez.

A Sra. Czinski o fez. Nada aconteceu.

Ela franziu o cenho.

─ Tente de novo. Com mais força.

Nada.

O Dr. Wilson pôs as mãos na perna do bebê e puxou, com muita suavidade. Não houve nenhum movimento. Enfiou as mãos além do bebê, através da passagem estreita para o interior do útero, e começou a fazer uma exploração. Gotas de suor surgiam na sua testa. A enfermeira da maternidade se moveu mais para perto dele e enxugou-a.

─ Temos um problema ─ disse o Dr. Wilson, numa voz sumida.

A Sra. Czinski ouviu e perguntou;

─ Que é que está errado?

─ Está tudo bem.

O Dr. Wilson enfiou a mão mais fundo, tentando puxar o bebê mais para baixo, delicadamente. Não se mova. Podia sentir o cordão umbilical comprimido entre a pélvis da mãe e o corpo do bebê, cortando-lhe o fornecimento de ar.

─ Fetoscópio!

A enfermeira da maternidade apanhou o instrumento e aplicou-o à barriga da mãe, tentando ouvir o bater do coração do bebê.

─ Está reduzido a trinta ─ comunicou. ─ E há uma arritmia acentuada.

Os dedos do Dr. Wilson estavam no interior do corpo da mãe, como antenas distantes do seu cérebro, explorando, procurando.

─ Estou perdendo a batida do coração do bebê... ─ havia preocupação na voz da enfermeira da maternidade. ─ Está negativo!

Tinham um bebê morrendo dentro do útero. Ainda havia uma frágil possibilidade de que o bebê pudesse ser salvo se conseguissem tirá-lo a tempo. Tinham um máximo de quatro minutos para libertá-lo, desobstruir os pulmões e fazer com que o pequeno coração começasse a bater de novo. Depois de quatro minutos, a lesão cerebral seria total ou irreversível.

─ Cronometre ─ ordenou o Dr. Wilson.

Todo mundo na sala instintivamente olhou para cima quando o relógio elétrico na parede bateu doze horas, e o grande ponteiro vermelho dos segundos começou a marcar o seu primeiro giro.


A equipe de parto começou a trabalhar. Um balão de respiração de emergência foi levado até a mesa de operações, enquanto o Dr. Wilson tentava libertar a criança da região pélvica. Começou a fazer a manobra Bracht, tentando virar a criança ao contrário, torcendo-lhe os ombros de maneira que pudessem desobstruir o orifício vaginal. Foi inútil.

Uma estudante de enfermagem, assistindo ao primeiro parto, sentiu-se enjoada e saiu da sala apressadamente.

Na porta da sala de operações estava Karl Czinski, retorcendo o chapéu nervosamente nas grandes mãos calejadas. Aquele era o dia mais feliz da sua vida. Era carpinteiro, um homem simples que acreditava em casar cedo e ter família numerosa. Aquela criança seria a primeira, e era tudo que ele podia fazer para conter a sua excitação. Amava a esposa apaixonadamente, e sabia que sem ela estaria perdido. Estava pensando na mulher quando a estudante de enfermagem saiu apressadamente da sala de parto, e ele lhe perguntou:

─ Como é que ela está?

A jovem enfermeira, aflita, a mente preocupada com o bebê, exclamou:

─ Ela está morta, ela está morta! ─ e saiu correndo para vomitar.

O rosto do Sr. Czinski ficou branco. Apertou o peito e começou a arquejar, lutando para respirar. Quando finalmente o levaram para a sala de emergência, já não havia mais nada a fazer.

Na sala de parto, o Dr. Wilson trabalhava freneticamente lutando contra o relógio. Podia enfiar a mão e tocar o cordão umbilical, sentindo a pressão que havia contra ele, mas não havia jeito de libertá-lo. Todos os impulsos íntimos gritavam para que puxasse a criança para fora à força, mas ele já tinha visto o que acontecia com bebê que nasciam daquela maneira. Agora a Sra. Czinski estava gemendo, semidelirante.

─ Contraia e força para baixo, Sra. Czinski. Mais força! Vamos!

Não adiantava. O Dr. Wilson olhou para o relógio. Dois minutos preciosos se haviam passado sem que nenhum sangue circulasse através do cérebro do bebê. O Dr. Wilson enfrentava um outro problema: o que iria fazer se o bebê fosse salvo depois que os quatro minutos se tivessem passado? Deixá-lo viver e se tornar um vegetal? Ou deixá-lo ter uma morte rápida e misericordiosa? Afastou o pensamento da mente e começou a agir mais depressa. Fechando os olhos, trabalhou através do tato, com toda a sua concentração focalizada no que estava acontecendo no interior do corpo da mulher. Resolveu tentar a manobra Mauriceau-Smellie-Veit, uma série complicada de movimentos com o objetivo de ir soltando o corpo do bebê até libertá-lo. E de repente houve um deslocamento. Ele o sentiu começar a se mover.

─ Fórceps de fole!

A instrumentadora passou-lhe rapidamente o fórceps especial e o Dr. Wilson introduziu-o, colocando-o em volta da cabeça do bebê.

Um momento depois a cabeça emergiu.

O bebê tinha nascido.

Aquele era sempre o momento de glória, o milagre de uma vida recém-nascida, o rosto vermelho do bebê chorando alto, reclamando da indignidade de ter sido forçado a sair daquele útero tranquilo e escuro para a luz e o frio.

Mas não aquele bebê. Aquele bebê tinha uma cor branco-azulada e estava imóvel. Era do sexo feminino.


O relógio. Ainda restava um minuto e meio. Agora cada movimento era rápido e mecânico, o resultado de longos anos de prática. Dedos envoltos em gaze desobstruíram a parte posterior da faringe da criança, para que o ar pudesse passar pelo orifício da laringe. O Dr. Wilson deitou o bebê de costas. A instrumentadora entregou-lhe um laringoscópio bem pequeno, ligado a um aparelho elétrico de sucção. Ele ajustou-o no lugar certo, balançou a cabeça e a enfermeira ligou o interruptor. O som da sucção rítmica da máquina começou.

O Dr. Wilson olhou para o relógio.

Ainda restavam vinte segundos. Ritmo cardíaco negativo.

Quinze... catorze... Ritmo cardíaco negativo.

O momento da decisão havia chegado. Poderia já ser tarde demais para impedir que houvesse lesão cerebral. Ninguém jamais poderia ter certeza absoluta com relação a essas coisas. Ele vira alas inteiras de hospitais cheias daquelas criaturas patéticas com corpo de adulto e mente de criança, ou pior.

Dez segundos. E não havia pulso, nem mesmo um sinal para lhe dar esperança.

Cinco segundos. Então ele tomou a decisão, e esperou que Deus o compreendesse e perdoasse. Ia puxar o pino, dizer que o bebê não podia ser salvo. Ninguém questionava sua atitude. Tocou a pele do bebê mais uma vez. Estava fria e pegajosa.

Três segundos.

Olhou para a criança e teve vontade de chorar. Era uma menina. A menina era um bebê bonito. Teria crescido e se tornado uma mulher bonita. Perguntou-se como sua vida poderia ter sido. Será que se casaria e teria filhos? Ou talvez seria artista, professora, uma mulher de negócios, uma executiva? Será que ela seria rica ou pobre? Feliz ou infeliz?

Um segundo. Ritmo cardíaco negativo.

Zero.

Estendeu a mão em direção ao interruptor, e naquele instante o coração do bebê começou a bater. Foi um espasmo hesitante e irregular, e depois um outro, que em seguida se regularizou numa batida forte e regular. Houve uma exclamação espontânea de alegria e gritos de congratulações na sala. O Dr. Wilson não estava ouvindo.

Estava olhando fixamente para o relógio na parede.

Sua mãe a chamou Josephine, como a avó, nascida em Cracóvia. Um segundo nome teria sido pretensioso para a filha de uma costureira polonesa de Odessa, Texas.

Por razões que a Sra. Czinski não compreendia, o Dr. Wilson insistia em que Josephine fosse trazida de volta ao hospital para ser examinada de seis em seis semanas. E todas as vezes a conclusão era a mesma: ela parecia normal.

Só o tempo diria.

3

No dia do trabalho, a temporada nas Catskills terminou e o Grande Merlin ficou desempregado, e com ele Toby. Ele estava livre para ir embora. Mas para onde? Não tinha casa, não tinha emprego e não tinha dinheiro. A decisão de Toby foi tomada quando uma hóspede lhe ofereceu vinte e cinco dólares para dirigir seu automóvel, levando-a com seus três filhos pequenos das Catskills até Chicago.

Toby partiu sem se despedir do Grande Merlin ou de seus animais fedorentos.


Em 1939, Chicago era uma cidade próspera e aberta. Era uma cidade com um preço, e aqueles que conheciam os caminhos podiam comprar qualquer coisa, desde mulheres a drogas ou políticos. Havia centenas de clubes noturnos que atendiam a todos os gostos. Toby rondou todos eles, do grande e barulhento Chez Paree aos pequenos bares na Rush Street. A resposta era sempre a mesma: ninguém queria contratar um jovem vagabundo como cômico. O tempo estava passando para Toby. Já estava na hora de começar a realizar o sonho de sua mãe.

Estava com quase dezenove anos.


Um dos clubes noturnos onde Toby costumava ir com frequência era o Knee High, onde o espetáculo consistia num grupo cansado de três membros, um cômico acabado de meia-idade e bêbado, e duas dançarinas de strip-tease, Meri e Jeri, anunciadas como as Irmãs Perry, e que eram, por menos provável que fosse, irmãs de verdade. Tinham cerca de vinte anos e eram atraentes de uma maneira vulgar e relaxada. Uma noite Jeri foi até o bar e se sentou ao lado de Toby. Ele sorriu e disse educadamente:

─ Gosto do seu número.

Jeri se virou para olhar para ele e viu um garoto ingênuo, com cara de bebê, demasiado jovem e mal vestido para ser uma presa. Balançou a cabeça com indiferença e começou a se afastar, quando Toby se levantou. Jeri olhou fixamente para o volume revelador em suas calças e então se virou para aquele rosto jovem e inocente.

─ Jesus Cristo ─ disse ela. ─ Isso tudo é você?

Ele sorriu.

─ Só há uma maneira de descobrir.

Às três horas daquela madrugada, Toby estava na cama com as Irmãs Perry.


Tudo havia sido meticulosamente planejado. Uma hora antes do espetáculo, Jeri tinha levado o cômico do clube, um jogador compulsivo, a um apartamento na Diversy Avenue, onde se realizava um jogo de dados. Quando ele viu a animação, passou a língua nos lábios, e disse:

─ Só podemos ficar um minuto.

Trinta minutos depois, quando Jeri escapuliu, o cômico estava sacudindo os dados, gritando como um louco.

─ Um oito, sim, um oito, seu filho da puta! ─ perdido num mundo qualquer de fantasia onde o sucesso, o estrelato e a fortuna dependiam de cada jogada do dado.

No Knee High, Toby estava sentado no bar, todo arrumado e limpo, esperando.

Quando chegou a hora do espetáculo e o cômico ainda não havia aparecido, o proprietário do clube começou a berrar e a praguejar.

─ Aquele miserável está acabado desta vez, estão ouvindo? Nunca mais quero vê-lo no meu clube.

─ Eu não o culpo ─ disse Meri. ─ Mas está com sorte. Tem um novo cômico sentado no bar. Acabou de chegar de Nova York.

─ O quê? Onde?

O proprietário lançou um olhar na direção de Toby.

─ Pelo amor de Deus, onde está a babá? É uma criança!

─ Ele é grande! ─ disse Jeri e ela estava falando sério.

─ Faça uma experiência com ele ─ acrescentou Meri. ─ Que é que pode perder?

─ Os fodidos dos meus fregueses!

Mas encolheu os ombros e se dirigiu para onde Toby estava sentado.

─ Então você é um cômico, hein?

─ Pois é ─ disse Toby de maneira casual. ─ Acabei de fazer uma temporada nas Catskills.

O proprietário o examinou um momento.

─ Que idade você tem?

─ Vinte e dois anos ─ mentiu Toby.

─ Porra nenhuma. Está bem. Vá para lá. E se você entrar pelo cano, não vai viver até os vinte e dois anos.

E o sonho de Toby Temple finalmente se realizara. Estava de pé sob os refletores, enquanto a orquestra tocava uma fanfarra, e a audiência, a sua audiência, estava sentada ali, esperando para descobri-lo, para adorá-lo. Sentiu uma onda de afeto tão violenta que o fez ficar com um nó na garganta. Era como se ele e o público fossem uma coisa só, ligados por alguma corda mágica maravilhosa. Por um instante pensou na mãe e desejou que, onde quer que estivesse, pudesse vê-lo naquele momento. A fanfarra parou. Toby deu início à sua rotina.

─ Boa noite, gente sortuda. Meu nome é Toby Temple. Acho que vocês todos devem saber os seus nomes.

Silêncio.

Ele continuou.

─ Já ouviram falar do novo chefe da Máfia em Chicago? Ele é bicha. De agora em diante, o Beijo da Morte inclui jantar e dança.

Não houve nenhum riso. Estavam olhando fixamente para ele, frios e hostis, e Toby começou a sentir as garras afiadas do medo arranhando seu estômago. Seu corpo de repente ficou banhado em suor. Aquela ligação maravilhosa com o público havia desaparecido.

Ele continuou.

─ Acabei de cumprir um contrato num teatro lá no Maine. O teatro ficava tão longe, no interior da floresta, que o gerente era um urso.

Silêncio. Eles o odiavam.

─ Ninguém me disse que isso aqui era uma convenção de surdos-mudos. Eu me sinto como um programador social do Titanic. Estar aqui é como subir por uma prancha de embarque sabendo que no fim não há nenhum navio.

Começaram a vaiar. Dois minutos depois de Toby ter começado, o proprietário acenou freneticamente para os músicos, que começaram a tocar bem alto, abafando-lhe por completo a voz. Ele ficou ali, com um grande sorriso no rosto, os olhos ardendo, cheios de lágrimas.

Tinha vontade de gritar com eles.


Foram os gritos que acordaram a Sra. Czinski. Eram penetrantes selvagens, sinistros na quietude da noite, e só depois que ela se sentou na cama foi que se deu conta de que era o bebê gritando. Correu para o outro quarto, onde tinha arrumado as coisas da criança. Josephine estava rolando de um lado para o outro, o rostinho azulado por causa das convulsões. No hospital, um interno aplicou um sedativo por via intravenosa no bebê, que caiu num sono tranquilo. O Dr. Wilson, que tinha feito o parto de Josephine, submeteu-a a um exame completo. Não conseguiu achar nada de errado. Mas estava inquieto. Não conseguiu se esquecer do relógio na parede.

4

O vaudeville havia florescido na América de 1881 até a sua morte definitiva, em 1932, quando o Palace Theatre fechou as portas. Fora o campo de treinamento para todos os jovens cômicos ambiciosos, o campo de batalha onde afiavam suas inteligências contra as audiências hostis e zombeteiras. Entretanto, os cômicos que venciam a parada obtinham fama e dinheiro. Eddie Cantor e W. C. Fields, Jolson e Benny, Abbott e Costello, Jessel e Burns e os Irmãos Marx, e dúzias de outros. O vaudeville era um céu, um cheque de pagamento constante, mas com sua morte os cômicos tiveram que se voltar para outros campos. Os grandes nomes eram contratados para espetáculos de rádio e shows individuais, e também se apresentavam nos clubes noturnos importantes por todo o país. Entretanto, para os jovens cômicos que lutavam para se lançar, como Toby, a história era outra. Também se apresentavam em clubes noturnos, mas de um mundo diferente. Era chamado o Circuito dos Banheiros, e o nome era um eufemismo. Consistia em salas imundas por todo o país, onde o grande público pobre e sujo se reunia para se embebedar de cerveja, arrotar para as dançarinas de strip─tease e destruir os cômicos por desporto. Os camarins eram banheiros fedorentos, com cheiro de comida apodrecida, bebida derramada, urina e perfume barato e, sobrepujando tudo, o cheiro rançoso do medo: suor de fracassados. Os banheiros eram tão imundos que as artistas se agachavam sobre as pias dos camarins para urinar. O pagamento variava de uma refeição indigerível a cinco, dez, ou às vezes até quinze dólares por noite, dependendo da reação da platéia.

Toby Temple apresentou-se em todos eles, que se tornaram a sua escola. Os nomes das cidades eram diferentes, mas todos os lugares eram iguais, os cheiros eram os mesmos e o público hostil era o mesmo. Se não gostavam de um determinado artista, jogavam garrafas de cerveja em cima dele, interrompiam-no com perguntas durante todo o espetáculo e assobiavam até que saísse do palco. Era uma escola bruta, mas boa, porque ensinou a Toby todas as artimanhas da sobrevivência. Aprendeu a lidar com turistas bêbados e com vagabundos sóbrios, e a nunca confundi-los. Aprendeu a detectar um perguntador enfadonho em potencial e a fazer com que se calasse, pedindo um gole da sua bebida ou o seu guardanapo emprestado para enxugar a testa.

Com sua lábia, Toby conseguiu arranjar empregos em lugares com nomes como Lake Kiamesha, Shawanga Lodge e The Avon. Apresentou-se em Wildwood, em Nova Jersey, no Binai B'rith, e nos auditórios dos Filhos da Itália e dos Alces.

E continuava aprendendo.

O número de Toby consistia em paródias de canções populares, imitações de Gable, de Grant, de Bogatt e de Cagney, e em material roubado dos grandes cômicos famosos, que podiam se dar ao luxo de pagar escritores caros. Todos os cômicos iniciantes roubavam o seu material, e se gabavam disso.

─ Estou fazendo o Jerry Lester ─ querendo dizer que estavam usando o material dele ─ e sou dez vezes melhor do que ele.

─ Estou fazendo o Milton Berle.

─ Você precisa ver o meu Red Skelton.

E porque o material era a chave, só roubavam dos melhores.

Toby era capaz de tentar o que quer que fosse. Fixava o público indiferente e mal-encarado com seus olhos azuis sonhadores e dizia:

─ Vocês já viram um esquimó fazer pipi?

Punha as duas mãos na braguilha, e cubos de gelo saíam voando.

Ou punha um turbante e se enrolava num lençol.

─ Abdul, o encantador de serpentes ─ entoava Toby.

Começava a tocar uma flauta, e uma cobra ia saindo de um cesto de vime, movendo-se ritmicamente, acompanhando a música, enquanto Toby puxava os arames. O corpo da cobra era uma mangueira de chuveiro e a cabeça o bocal. Sempre havia alguém na platéia que achava engraçado.

Fazia os números padrão, as atrações especiais e os "de bandeja", aqueles em que se lançam as piadas no colo do público.

Tinha dúzias de macetes. Precisava estar pronto para passar de um número para outro, antes que as garrafas de cerveja começassem a voar.

E onde quer que estivesse se apresentando, havia sempre o som de uma descarga sendo puxada durante o seu número.


Toby viajou o país de ponta a ponta de ônibus. Quando chegava a uma cidade desconhecida, hospedava-se no hotel ou pensão mais barata e avaliava os clubes noturnos, bares e os estabelecimentos de agenciadores de aposta. Enfiava pedaços de papelão dentro dos sapatos para tapar os buracos das solas e clareava os colarinhos das camisas com giz, para economizar na lavanderia. As cidades eram todas tristes e a comida sempre ruim; mas era a solidão que o consumia. Não tinha ninguém. Não havia uma única pessoa no vasto universo que se importasse que ele estivesse vivo ou morto. Escrevia ao pai de vez em quando, mais por obrigação do que por amor. Precisava desesperadamente de alguém com quem falar, alguém que o compreendesse, que partilhasse seus sonhos.

Observava os cômicos bem-sucedidos deixarem as grandes casas de espetáculos, com suas entourages e suas garotas bonitas e elegantes, e partirem em limusines reluzentes, e os invejava.

"Algum dia..."

Os piores momentos eram quando ele tinha um fracasso, quando era vaiado no meio de seu número, quando era posto para fora antes que tivesse tido a oportunidade de começar de verdade. Nessas ocasiões Toby odiava as pessoas, queria matá-las. Não era apenas o fato de ter fracassado, era que tinha fracassado no fim da linha. Não podia descer mais; estava . Ele se escondia no seu quarto de hotel, chorava e suplicava a Deus que o deixasse em paz, que lhe tirasse o desejo de estar diante de uma platéia e fazer com que o público risse. "Deus", rezava, "faça com que eu queira ser vendedor de sapatos ou açougueiro. Qualquer coisa menos isso.” Sua mãe estivera enganada. Deus não o havia escolhido. Nunca seria famoso. Amanhã arranjaria algum outro tipo de trabalho. Candidatar-se-ia a um emprego das nove às cinco num escritório como um ser normal.

E na noite seguinte Toby estaria num palco de novo, fazendo

imitações, contando piadas, tentando conquistar as pessoas antes que elas caíssem em cima dele e o atacassem.

Sorria inocentemente para elas e dizia:

─ Esse tal sujeito estava apaixonado pelo pato, e o levou ao cinema com ele uma noite. O bilheteiro disse: "Não pode levar o pato para dentro". O homem foi até a esquina, enfiou o pato dentro das calças, comprou a entrada e entrou no cinema. Então o pato começou a ficar inquieto, o homem abriu a braguilha e deixou o pato ficar com a cabeça para fora. Bem, ao lado do homem estava uma senhora com o marido. Ela se virou para o marido e disse: "Ralph, o homem ao meu lado está com o pênis de fora". Ralph disse: "Ele está incomodando você?" "Não", disse ela. "Ok. Então não pense nisso e veja o filme." Alguns minutos depois a mulher cutucou o marido de novo. "Ralph, o pênis dele." E o marido: "Eu disse a você para ignorá-lo". E ela disse: "Não posso, ele está comendo a minha pipoca!"

Fez apresentações de uma só noite no Three Six Five em San Francisco, no Rudy's Rail em Nova York, e no Ki Wa Low's em Toledo. Apresentava-se em convenções de bombeiros, em bar mitzvahs e em banquetes de jogadores de boliche.

E aprendia.

Fazia de quatro a cinco espetáculos por dia em pequenos teatros chamados Gem, Odeon, Empire e Star.

E aprendia.

Por fim, uma das coisas que Toby Temple aprendeu foi que podia passar o resto de sua vida se apresentando no circuito dos banheiros, continuando desconhecido e sem ser descoberto. Mas houve um acontecimento que transformou toda a sua vida.

Numa tarde fria de domingo, no princípio de dezembro de 1941, Toby estava se apresentando por cinco dias no Dewey Theatre, na 14th Street, em Nova York. Eram oito números no programa, e a tarefa de Toby era apresentá-los. O primeiro espetáculo foi bem. Durante o segundo espetáculo, quando Toby apresentou os Kanazawas Voadores, uma família de acrobatas japoneses, o público começou a vaiá-los. Toby se retirou para os bastidores.

─ Que diabo está havendo com eles lá fora? ─ perguntou.

─ Jesus, você ainda não? Os japoneses atacaram Pearl Harbor há poucas horas ─ disse o diretor de cena.

─ E daí? ─ perguntou Toby. ─ Olhe só para aqueles caras, eles são fantásticos!

No espetáculo seguinte, quando chegou a vez da troupe japonesa, Toby foi para o palco e disse:

─ Senhoras e senhores, é um grande privilégio apresentar-lhes, recém-chegados de sua aclamação triunfal em Manilha... os Filipinos Voadores!

No momento em que o público viu os acrobatas japoneses, começou a vaiar. Durante o resto do dia Toby os transformou nos Alegres Havaianos, os Loucos Mongóis e, finalmente, os Esquimós Voadores! Mas não conseguiu salvá-los. Nem, conforme descobriu depois, a si mesmo. Quando telefonou para o pai, naquela noite, Toby soube que havia uma carta esperando por ele em casa. Começava assim: "Saudações", e estava assinada pelo presidente. Seis semanas depois, Toby foi incorporado ao Exército dos Estados Unidos. Nesse dia, sua cabeça latejava tanto que mal conseguiu prestar o juramento.


As dores de cabeça ocorriam com frequência e, quando vinham, a pequena Josephine tinha a impressão de que duas mãos gigantescas estavam lhe apertando as têmporas. Tentava não chorar, porque isso aborrecia sua mãe. A Sra. Czinski havia descoberto a religião. Sempre sentira secretamente que, de alguma maneira, ela e o bebê eram responsáveis pela morte do marido. Tinha entrado por acaso numa reunião do Culto de Revivificação, e o pastor gritava como um trovão:

─ Vocês estão todos embebidos em pecado e maldade. O Deus que os segura sobre o abismo do inferno, como um inseto detestável sobre uma fogueira, os abomina. Vocês estão presos por um fio muito tênue, amaldiçoados, e as chamas da Sua ira os consumirá a menos que se arrependam!

A Sra. Czinski se sentiu melhor imediatamente, pois sabia que estava ouvindo a palavra do Senhor.

─ É uma punição de Deus, porque nós matamos seu pai ─ dizia ela a Josephine.

Embora fosse muito pequena para compreender o que aquelas palavras significavam, sabia o que era, para que pudesse dizer à mãe que sentia muito o que acontecera.


5

No início, a guerra foi um pesadelo para Toby Temple.

No exército, ele era um João-ninguém, um número de série, enfiado num uniforme, como milhares de outros, sem rosto, sem nome, anônimo.

Foi mandado para um campo de treinamento básico na Geórgia, e depois embarcara para a Inglaterra, onde sua unidade fora designada para armar um acampamento em Sussex. Toby disse ao sargento que queria ver o comandante-em-chefe Conseguiu chegar até o capitão. O nome do capitão era Sam Winters, um homem moreno, de expressão inteligente, de trinta e poucos anos.

─ Qual é o seu problema, soldado?

─ É o seguinte, capitão ─ começou Toby. ─ Sou um artista, sou um cômico. Era isso que eu fazia quando era civil.

O Capitão Winters sorriu da seriedade dele.

─ O que é exatamente que você faz? ─ perguntou.

─ Um pouquinho de tudo ─ respondeu Toby. ─ Faço imitações, paródias e...

Viu a expressão nos olhos do capitão e terminou sem jeito:

─ Coisas assim.

─ Onde foi que você já trabalhou?

Toby ia começar a falar, mas parou. Não adiantava. O capitão só ficaria impressionado com lugares como Nova York e Hollywood.

─ Nenhum lugar de que o senhor já tenha ouvido falar ─ respondeu Toby, e agora sabia que estava perdendo tempo.

O Capitão Winters disse:

─ Não sou eu que decido, mas vou ver o que posso fazer.

─ Claro ─ disse Toby. ─ Muito obrigado, capitão.

Bateu continência e saiu.

O Capitão Sam Winters ficou sentado à sua escrivaninha pensando em Toby, muito tempo depois de o rapaz ter ido embora. Sam Winters tinha se alistado porque sentia que aquela era uma guerra que tinha que ser feita e tinha que ser vencida. Ao mesmo tempo, ele a odiava pelo que estava fazendo com garotos como Toby Temple. Mas se Temple realmente tivesse talento, apareceria mais cedo ou mais tarde, pois o talento era como uma florzinha frágil crescendo sob a rocha sólida. No fim, nada podia impedi-la de irromper através da rocha e florir. Sam Winters tinha abandonado um bom emprego de produtor na indústria cinematográfica, em Hollywood, para se alistar no Exército. Já tinha produzido vários filmes de sucesso para os Pan-Pacific Studios e já vira dúzias de jovens esperançosos como Toby Temple ir e vir. O mínimo que eles mereciam era uma chance. Mais tarde naquele mesmo dia, falou com o Coronel Beech sobre Toby.

─ Acho que devíamos deixar os Serviços Especiais testá-lo ─ disse o Capitão Winters. ─ Tenho a impressão de que ele é bom. E Deus sabe que os rapazes vão precisar de toda a diversão que puderem ter.

O Coronel Beech olhou para o Capitão Winters e disse num tom frio:

─ Certo, capitão. Mande-me um memorando a respeito disso.


Ficou observando enquanto o Capitão Winters saía. O Coronel Beech era um soldado profissional, um homem de West Point. Desprezava todos os civis, e para ele o Capitão Winters era um civil. Vestir um uniforme e pôr os galões de capitão não tornava um homem um soldado. Quando o Coronel Beech recebeu o memorando do Capitão Winters a respeito de Toby Temple, apenas passou os olhos nele, garatujou com selvageria: "PEDIDO NEGADO", e rubricou.

E sentiu-se melhor.


O que fazia mais falta a Toby era uma plateia. Precisava exercitar seu sentido de tempo, suas habilidades. Contava piadas e fazia imitações e demonstrações em todas as oportunidades. Não importava que o público fosse GIs montando guarda com ele num campo solitário, um ônibus cheio de soldados a caminho de uma cidade ou um lavador de pratos em KP. Toby tinha que fazê-los rir, ganhar o aplauso deles.

Um dia o Capitão Winters assistiu a um de seus números no salão de recreação. Depois que acabou, aproximou-se de Toby e disse:

─ Sinto muito que o seu pedido de transferência não tenha sido aprovado, Temple. Acho que você tem talento. Quando a guerra acabar, se for a Hollywood, vá me procurar.

Sorriu e acrescentou:

─ Presumindo-se que eu ainda tenha um emprego por lá.

Na semana seguinte o batalhão de Toby foi mandado para a frente de combate.


Nos anos posteriores, quando Toby rememorava a guerra, o que ele lembrava não eram as batalhas. Em Saint-Lô, tinha sido um sucesso fazendo um número de mímica com um disco de Bing Crosby. Em Aachen, tinha entrado às escondidas no hospital e contado piadas durante horas para os feridos, antes que as enfermeiras o pusessem para fora. Lembrava-se com satisfação que um pracinha tinha rido tanto que arrebentou todos os pontos. Fora em Metz que tivera um fracasso, mas Toby achava que aquilo só acontecera porque o público estava tenso e nervoso com os aviões nazistas voando lá em cima.

Os combates de que Toby participou foram meros incidentes. Recebeu uma menção de bravura por ter participado na captura de um posto de comando alemão. Na realidade não tivera nenhuma idéia do que estava acontecendo. Estivera fazendo o papel de John Wayne, e se deixara levar de tal maneira que tudo tinha acabado antes que ele tivesse tido tempo de sentir medo.

Para Toby, fazer rir é que era o importante. Em Cherbourg, visitou um bordel com dois amigos, e enquanto eles estavam lá em cima, Toby ficou no salão apresentando um número para a caftina e duas de suas garotas. Quando acabou, a caftina o mandou subir, por conta da casa.

Essa foi a guerra de Toby. Considerando tudo, não foi uma guerra ruim, e o tempo passou muito depressa. Quando a guerra acabou, em 1945, Toby já estava com quase vinte e cinco anos. Na aparência exterior, não envelhecera nem um dia. Tinha o mesmo rosto doce, olhos azuis sedutores e aquela expressão infeliz de inocência.

Todo mundo estava falando em ir para casa. Uma noiva esperando em Kansas City, pai e mãe em Bayonne, um negócio em St. Louis. Não havia nada esperando por Toby. Exceto a fama.

Decidiu ir para Hollywood. Já estava na hora de Deus cumprir Sua promessa.


─ Você conhece Deus? Já viu o rosto de Jesus? Eu O vi irmãos e irmãs, ouvi a Sua voz, mas Ele só fala com aqueles que se ajoelham diante Dele e confessam os seus pecados. Deus odeia aqueles que não se arrependem. O arco da ira de Deus está vergado e a flecha chamejante da Sua fúria cheia de justiça está apontada para o coração maligno de vocês, e a qualquer momento Ele a lançará e a flecha da Sua retaliação golpeará seus corações! Olhem para Ele agora, antes que seja tarde demais!

Josephine olhava para cima para o topo da tenda, aterrorizada, esperando ver uma flecha chamejante apontando para ela. Agarrava a mão da mãe, mas a Sra. Czinski não se apercebia disso. Seu rosto estava corado e os olhos brilhantes de fervor.

─ Louvado seja Jesus! ─ urava a congregação.

As reuniões do Culto da Revivificação se realizavam numa grande tenda, nos arredores de Odessa, e a Sra. Czinski sempre levava Josephine. O púlpito era uma plataforma de madeira que se erguia a um metro e oitenta do chão. Imediatamente em frente à plataforma ficava o cercado da glorificação, para onde os pecadores eram trazidos para se arrependerem e serem convertidos. Além do cercado ficavam fileiras e mais fileiras de bancos duros de madeira, cheios de fanáticos cantando em busca de salvação, aterrados pelas ameaças do inferno e da danação. Era aterrorizantes para uma criança de seis anos. Os evangelistas eram fundamentalistas, pentecostais, metodistas e adventistas, e todos eles pregavam o fogo do inferno e a danação.

─ Ajoelhai-vos, pecadores, e tremei diante do poderio de Jeová! Pois vossas práticas malignas partiram o coração de Jesus Cristo, e por isso vós recebereis a punição da ira de Seu Pai! Olhai em volta, para os rostos das criancinhas, concebidas na luxúria e cheia de pecado.

E a pequena Josephine ardia de vergonha, achando que todos estavam olhando para ela. Quando as dores de cabeça começavam, Josephine sabia que eram uma punição de Deus. Rezava todas as noites para que fossem embora, de forma que pudesse saber que Deus a perdoava. Desejava poder saber o que tinha feito de tão mau.

─ E eu cantarei Aleluia, e vocês cantarão Aleluia, e todos nós cantaremos Aleluia quando chegarmos a Casa!

─ O álcool é o sangue do Demónio, e o tabaco o seu bafo, e a fornicação o seu prazer. Vocês são culpados de negociar com Satã? Então arderão para sempre no inferno, malditos para sempre, porque Lúcifer virá buscá-los!

E Josephine tremia e olhava em volta apavorada, agarrando o banco de madeira com toda a sua força, de forma que o Diabo não pudesse levá-la.

Eles cantavam:

─ "Quero ir para o céu, o meu descanso há tanto tempo buscado".

Mas a pequena Josephine compreendia mal e cantava

─ "Quero ir para o céu, com o meu vestido curto comprido".*

Depois dos sermões violentos vinham os milagres. Josephine olhava com fascinação e pavor uma procissão de homens e mulheres aleijados que mancavam e se arrastavam, ou vinham em cadeiras de rodas para o cercado da glorificação, onde o pregador punha as mãos sobre eles e invocava os poderes do céu para curá-los. Eles atiravam longe as bengalas e muletas, e alguns balbuciavam histericamente em línguas estranhas, e Josephine recuava apavorada.

As reuniões do Culto da Revivificação sempre terminavam com a bandeja sendo passada.

─ Jesus está vigiando você, e Ele detesta a avareza.

E então estava acabado. Mas o medo ficava com Josephine por muito tempo.

Em 1946, a cidade de Odessa, Texas, tinha um rosto marrom-escuro. Há muito tempo, quando os índios viviam ali, fora o gosto da areia do deserto. Agora era o gosto do petróleo.

Havia dois tipos de pessoas em Odessa: a gente do petróleo e os outros. A gente do petróleo não olhava para baixo, para os outros ─ simplesmente tinha pena deles, pois sem dúvida Deus achava que todo mundo devia ter aviões particulares, Cadillacs e piscinas, e devia dar festas regadas a champanha para cem pessoas. Fora por isso que ele pusera petróleo no Texas.

Josephine Czinski não sabia que ela fazia parte dos outros. Aos seis anos, era uma bela criança, com cabelos negros, brilhantes, olhos castanhos profundos e um rostinho oval adorável.

A mãe de Josephine era uma ótima costureira, que trabalhava para as pessoas ricas da cidade e costumava levar Josephine junto quando ia provar as roupas das senhoras do petróleo, e transformava peças de magníficas fazendas em vestidos de noite deslumbrantes. A gente do petróleo gostava de


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O autor faz um trocadilho, com long sought res ─ “descanso há tanto tempo busccado” ─ e long short dress ─ “vestido curto comprido” ─ impossível de traduzir (N. da T.)

Josephine porque ela era uma criança educada e simpática, e gostavam de si mesmos por gostarem dela. Achavam que era democrático da parte deles permitir que uma criança pobre, do outro lado da cidade, fizesse amizade com seus filhos. Josephine era polonesa, mas não parecia ser polonesa e, muito embora nunca pudesse ser membro do clube, eles ficavam felizes em lhe conceder os privilégios de visitante. Josephine podia brincar com as crianças do petróleo e usar suas bicicletas, pôneis e bonecas de cem dólares, de forma que ela começou a viver uma vida dupla. Havia a sua vida em casa, na casinha minúscula de madeira, com a mobília gasta, o encanamento externo e portas bambas nas dobradiças. E depois, havia a vida de Josephine em lindas mansões coloniais ou em grandes propriedades no campo. Se Josephine ficava para passar a noite em casa de Cissy Topping ou em casas de Lindy Ferguson, davam-lhe um grande quarto só para ela, com o café servido por copeiras e mordomos. Josephine adorava levantar-se no meio da noite, quando todo mundo estava dormindo, e descer para olhar as coisas bonitas da casa, os lindos quadros, a prataria pesada com monogramas gravados e as antiguidades polidas pelo tempo e pela história. Ela as examinava, as acariciava e dizia a si mesma que um dia viveria numa grande casa e seria rodeada por beleza.


Mas nos seus dois mundos Josephine se sentia solitária. Tinha medo de falar com a mãe sobre as dores de cabeça e sobre o seu medo de Deus, porque ela tinha se tornado uma fanática sombria, obcecada com o castigo de Deus, até invocando esse castigo. Josephine não queria discutir seus medos com as crianças do petróleo, porque elas esperavam que ela fosse alegre e despreocupada, como todas eram. E assim, Josephine era forçada a guardar os seus terrores para si mesma.


No dia do sétimo aniversário de Josephine, a Loja Brubaker anunciou que promoveria um concurso para escolher a criança mais bonita de Odessa. A fotografia de inscrição seria tirada no departamento fotográfico da loja. O prêmio era uma taça de ouro, gravada com o nome do vencedor. A taça estava exposta na vitrine da loja, e Josephine passava por ali todos os dias para admirá-la. Desejava aquela taça mais do que desejara qualquer coisa na vida. A mãe de Josephine não queria deixá-la entrar no concurso.

─ A vaidade é o espelho do Diabo ─ dizia ela.

Mas uma das mulheres do petróleo que gostava de Josephine pagou a fotografia.

A partir daquele momento Josephine sabia que a taça de ouro seria sua. Podia imaginá-la na sua penteadeira, lhe daria brilho todos os dias. Quando Josephine descobriu que estava nas finais, ficou excitada demais para ir à escola. Ficou na cama o dia inteiro, passando mal do estômago, sua felicidade demasiado grande para que pudesse suportar. Aquela seria a primeira vez que ela possuiria alguma coisa bonita.

No dia seguinte Josephine soube que o concurso fora vencido por Tina Hudson, uma das crianças do petróleo. Tina não era nem de perto tão bonita quanto Josephine, mas o pai de Tina fazia parte do conselho dos diretores da cadeia que era proprietária da Loja Brubaker.

Quando Josephine soube da notícia, teve uma dor de cabeça que a fez ter vontade de gritar de dor. Tinha medo de que Deus soubesse o quanto aquela linda taça de ouro significava para ela, mas Ele deve ter sabido, porque as dores de cabeça continuaram. Durante a noite ela gritava no travesseiro, para que sua mãe não pudesse ouvi-la.

Alguns dias depois do concurso, Josephine foi convidada para passar o fim de semana na casa de Tina. A taça de ouro estava no quarto dela, num pequeno pedestal. Josephine olhou para ela durante muito tempo.

Quando voltou para casa, a taça estava escondida em sua maleta. Ainda estava lá quando a mãe de Tina veio buscá-la e levou-a de volta.

A mãe de Josephine lhe deu uma boa sura com uma chibata feita de varetas finas. Mas ela não ficou zangada com a mãe.

Os poucos minutos em que Josephine tivera a linda taça de ouro nas mãos tinham valido a pena.

6

Hollywood, na Califórnia, em 1946, era a capital do cinema do mundo inteiro, um ímã que atraía os talentosos, os ambiciosos, os esperançosos e os excêntricos. Era a terra das palmeiras, de Rita Hayworth e o Templo Sagrado do Espírito Universal e de Santa Anita. Era o agente que ia fazer de você um astro da noite para o dia; era uma fraude, um prostíbulo, uma plantação de laranjas, um santuário. Era um caleidoscópio mágico, e para cada pessoa que olhava para o seu interior via a sua própria imagem.

Para Toby Temple, Hollywood era um lugar para onde ele estava destinado a ir. Chegou à cidade com uma mochila do Exército e trezentos dólares, hospedou-se numa pensão barata no Cahuenga Boulevard. Tinha que agir depressa, antes que ficasse sem dinheiro. Toby sabia tudo a respeito de Hollywood. Era uma cidade onde se tinha que ter uma fachada. Toby foi a uma camisaria, encomendou um novo guarda-roupa e com vinte dólares de sobra no bolso foi a pé até o Hollywood Brown Derby, onde todos os astros e estrelas jantavam. As paredes eram cobertas de caricaturas dos atores mais famosos de Hollywood. Toby podia sentir a trepidação da vida do mundo dos espetáculos ali dentro, o poder que emanava do aposento. Viu a recepcionista caminhar em sua direção. Era uma ruiva bonita, de cerca de vinte anos, e tinha um corpo sensual.

Sorriu para Toby e disse:

─ Em que posso servi-lo?

Toby não pôde resistir. Estendeu as duas mãos e agarrou-lhe os seios, como melões maduros. Uma expressão de choque surgiu no rosto dela. Quando ia abrindo a boca para gritar, Toby a fitou com os olhos fixos, vidrados, e disse em tom de desculpas:

─ Desculpe-me, senhorita, eu não enxergo.

─ Oh! Sinto muito!

Ela estava arrependida pelo que pensara e foi simpática. Levou Toby até uma das mesas, segurando-lhe o braço, ajudou-o a sentar e depois anotou o seu pedido. Quando voltou à mesa alguns minutos depois, e o apanhou examinando os desenhos na parede, Toby sorriu radiante e disse:

─ É um milagre! Posso ver de novo!

Ele era tão inocente e tão engraçado que ela não pôde deixar de rir. Riu durante todo o jantar com Toby, e das suas piadas, na cama, naquela noite.


Toby fez biscates em Hollywood porque eles o levavam aos limites do mundo do espetáculo. Manobrou automóveis no Ciro's, e quando as celebridades apareciam Toby abria a porta do carro com um grande sorriso e uma piada ligeira. Não prestavam atenção. Era apenas um manobrista, e eles nem sabiam que estava vivo. Toby admirava as lindas garotas que saltavam do carro com vestidos caros e justos e pensava: "Se você ao menos soubesse que grande astro eu vou ser, largaria logo todos estes sujeitinhos horrendos".

Toby fazia a ronda dos agentes, mas descobriu que estava perdendo tempo. Os agentes eram uns sacanas de primeira ordem. Não se podia procurá-los. Eles tinham que estar procurando você. O nome que Toby ouvia com maior frequência era o de Clifton Lawrence. Só se ocupava dos maiores talentos e fazia os contratos mais incríveis. "Um dia", pensava Toby "Clifton Lawrence vai ser meu agente."


Toby fez a assinatura das duas bíblias do mundo dos espetáculos: Daily Variety e Hollywood Reporter. Isso fez com que se sentisse alguém dentro do negócio. Forever Amber tinha sido comprado pela Twentieth Century-Fox, e Otto Preminger ia ser o diretor. Ava Gardner tinha sido contratada para estrelar Whitle Stop com George Raft e Jorja Curtright, e Life with Father tinha sido comprado pela Warner Brothers. Então Toby viu uma notícia que fez seu pulso acelerar: "O produtor Sam Winters foi nomeado vice-presidente executivo encarregado da produção nos Pan-Pacific Studios".

7

Quando Sam Winters voltou da guerra, seu emprego nos Pan-Pacific Studios estava esperando por ele. Seis meses depois, houve uma mudança repentina e completa. O chefe do estúdio foi despedido e pediram a Sam que assumisse o cargo até que um novo chefe de produção fosse encontrado. Sam fez um trabalho tão fantástico que a busca foi abandonada e ele foi nomeado oficialmente vice-presidente encarregado da produção. Era um emprego de arrasar com os nervos e de provocar úlceras, mas Sam o amava mais do que qualquer coisa no mundo.

Hollywood era um circo de três picadeiros, cheios de tipos selvagens e malucos, um campo minado por um bloco de idiotas dançando em toda a sua extensão. A maioria dos atores, diretores e produtores eram megalomaníacos egoístas, ingratos, depravados e destrutivos. Mas no que dizia respeito a Sam, se tivesse talento, nada mais importava. Talento era a senha mágica.

A porta do escritório de Sam se abriu e Lucille Elkins, sua secretária, entrou com a correspondência que tinha acabado de abrir. Lucille era uma contratada permanente, uma das profissionais competentes que sempre permaneciam e viam seus chefes ir e vir.

─ Clifton Lawrence está aqui para vê-lo ─ disse Lucille.

─ Diga-lhe para entrar.

Sam gostava de Lawrence. Ele tinha estilo. Fred Allen havia dito:

─ Toda a sinceridade existente em Hollywood poderia ser escondida no umbigo de um mosquito e ainda haveria lugar para quatro sementes de alcaravia e o coração de um agente.

Clifton Lawrence era mais sincero do que a maioria dos agentes. Era uma lenda em Hollywood e sua lista de clientes cobria a escala completa do quem é quem no mundo dos espetáculos. Tinha um escritório de um só homem e estava constantemente em movimento, atendendo clientes em Londres, na Suíça, em Roma e em Nova York. Era íntimo de todos os executivos importantes de Hollywood e jogava gin rummy semanalmente numa mesa que incluía os chefes de produção de três estúdios. Duas vezes por ano, Lawrence alugava um iate, reunia meia dúzia de lindas "modelos" e convidava os principais executivos dos estúdios para "uma viagem de pescaria" de uma semana de duração. Clifton Lawrence mantinha uma casa de praia totalmente equipada, em Malibu, que estava à disposição dos seus amigos quando quer que quisessem usá-la. Clifton tinha um relacionamento simbiótico com Hollywood, era proveitoso para todo mundo.

Sam observou a porta se abrir e Lawrence entrar, elegante num terno muito bem cortado. Foi até junto de Sam, estendeu a mão tratada com perfeição e disse:

─ Só queria dizer um alô. Como vão as coisas, meu caro?

─ Deixe-me colocar assim ─ disse Sam. ─ Se os dias fossem navios, hoje seria o Titanic.

Clifton Lawrence emitiu um som de comiseração.

─ Que foi que você achou da pré-estreia de ontem à noite? ─ perguntou Sam.

─ Dê um jeito nos primeiros vinte minutos e filme um outro final que você terá um grande sucesso.

─ Conversa fiada ─ Sam sorriu. ─ É exatamente isso que estamos fazendo. Tem algum cliente para me vender hoje?

Lawrence sorriu.

─ Sinto muito. Estão todos trabalhando.

E era verdade. A seleta equipe de grandes astros e estrelas de Lawrence, com uns poucos de diretores e produtores, estava sempre sendo requisitados.

─ Encontro você na sexta-feira para jantar, Sam. Tchau ─ disse, virando-se para sair.

A voz de Lucille veio pelo intercomunicador:

─ Dallas Burke está aqui.

─ Mande-o entrar.

─ E Mel Foss gostara de vê-lo. Diz que é urgente.

Mel Foss era o chefe da divisão de televisão dos Pan-Pacific Studios.

Sam olhou para o seu calendário de mesa.

─ Diga-lhe para aguentar até o café, amanhã de manhã. Oito horas, no Polo Lounge.

No escritório exterior, o telefone tocou e Lucille atendeu:

─ Gabinete do Sr. Winters.

Uma voz desconhecida disse:

─ Alô. O grande homem está por aí?

─ Quem está falando, por favor?

─ Diga a ele que é um velho companheiro... Toby Temple. Estivemos juntos no Exército. Ele disse que o procurasse se algum dia eu chegasse a Hollywood, e estou aqui.

─ Ele está em reunião, Sr. Temple. Será que ele poderia lhe telefonar mais tarde?

─ É claro.

Deu a ela o número do seu telefone, e Lucille o atirou na lata de lixo. Aquela não era a primeira vez que alguém tinha tentado fazê-la cair na velha conversa do ex-companheiro do Exército.


Dallas Burke era um dos diretores pioneiros da indústria cinematográfica. Os filmes de Burke eram exibidos em todas as universidades que tinham curso de cinema. Meia dúzia de seus primeiros filmes eram considerados clássicos, e nenhum trabalho seu era menos que brilhante e inovador. Burke estava agora com seus setenta e tantos anos, e seu corpo outrora maciço tinha murchado tanto que as roupas pareciam esvoaçar em volta dele.

─ É bom vê-lo de novo, Dallas ─ disse Sam quando o velho ia entrando.

─ Também estou feliz em vê-lo, menino.

Indicou o homem que o acompanhava.

─ Você conhece o meu agente?

─ É claro. Como vai, Peter?

Todos se sentaram.

─ Ouvi dizer que você tem uma história para me contar ─ disse Sam a Dallas Burke.

─ Essa é uma beleza ─ havia um tremor de excitação na voz do velho.

─ Estou morrendo de vontade de ouvi-la, Dallas ─ disse Sam. ─ Vá em frente.

Dallas Burke se inclinou mais para a frente e começou a falar.

─ Em que é que todas as pessoas do mundo inteiro estão mais interessadas, menino? Amor, certo? E esta idéia é sobre o tipo de amor mais sagrado que pode existir... o amor de uma mãe pelo seu filho.

A voz dele foi ficando mais forte à medida que foi se concentrando na sua história.

─ Começamos em Long Island, com uma garota de dezenove anos trabalhando como secretária para uma família rica. Velha cepa. Isso nos dá a oportunidade de enfocar as origens brilhantes ─ sabe o que estou querendo dizer? Negócio de alta sociedade. O homem para quem ela trabalha é casado com uma enjoada de sangue azul. Ele gosta da secretária e ela gosta dele, apesar de ele ser muito mais velho.

Ouvindo sem prestar muita atenção, Sam se perguntou se a história ia ser Back Street ou Imitation of Life. Não que tivesse importância, porque qualquer que fosse, Sam ia comprá-la. Já fazia quase vinte anos desde que alguém dera um filme para Burke dirigir pela última vez. Sam não podia culpar a indústria. Os três últimos filmes de Burke tinham sido caros, fora da moda e fracasso de bilheteira. Dallas Burke estava acabado como autor de filmes. Mas ele era um ser humano e ainda estava vivo, e de alguma maneira era preciso que se cuidasse dele, pois não tinha economizado um centavo. Tinham lhe oferecido um quarto na Casa de Retiro da Indústria Cinematográfica, mas ele recusara, indignado.

─ Não quero a porra da caridade de você! ─ gritara ele. ─ Estão falando com o homem que dirigiu Douglas Fairbank, Jack Barry, Milton Sills e Bill Farnum. Sou um gigante, seus pigmeus filhos de uma cadela!

E ele era. Era uma lenda; mas mesmo as lendas tinham que comer.

Quando Sam se tornara produtor, telefonara para um agente que conhecia e lhe dissera para trazer Dallas Burke com uma idéia para um filme. Desde então, Sam tinha passado a comprar histórias insossas de Dallas Burke todo o ano, por uma quantia suficiente para que o velho pudesse ir vivendo, e quando Sam estivera fora, no Exército, tratara para que o arranjo continuasse.

─ ...assim você vê ─ Dallas Burke estava dizendo ─ o bebê cresce sem saber quem é sua mãe. Mas a mãe não o perde de vista. No final, quando a filha se casa com esse médico rico, temos um grande casamento. E sabe qual é a grande surpresa, Sam? Escute só este pedaço, é magnífico! Não querem deixar a mãe entrar! Ela tem que entrar às escondidas, pelos fundos da igreja, para ver a sua própria filha se casar. Não haverá um único olho seco na plateia... Bem, é isto. Que é que você acha?

Sam tinha errado o palpite. Stella Dallas. Lançou um olhar para o agente, que desviou os olhos e examinou as pontas dos sapatos caros, embaraçado.

─ É fantástico. É exatamente o tipo de filme que o estúdio tem estado procurando.

Sam virou-se para o agente.

─ Telefone para o setor financeiro e prepare um contrato com eles, Peter. Vou avisar a eles para aguardarem o seu telefonema.

O agente concordou.

─ Diga-lhes que vão ter que pagar um preço salgado por esta aqui, senão vou oferecê-la à Warner Brothers ─ disse Dallas Burke. ─ Estou dando a primeira opção a vocês porque são velhos amigos.

─ Eu lhe agradeço ─ disse Sam.

Observou os dois homens saírem do gabinete. Falando em termos estritos, Sam sabia que não tinha nenhum direito de gastar o dinheiro da companhia numa atitude sentimental como aquela. Mas a indústria cinematográfica devia alguma coisa a homens como Dallas Burke, pois sem ele e outros como ele, não teria havido nenhuma indústria.


Às oito horas da manhã seguinte, Sam Winters estacionou o carro sob o pórtico do Beverly Hills Hotel. Alguns minutos depois, estava atravessando o Polo Lounge, cumprimentando amigos, conhecidos, e competidores. Fazia-se mais negócios ali, naquela sala, durante o café, almoço e coqueteis do que se fazia em todos os escritórios de todos os estúdios juntos. Mel Foss ergueu o olhar quando Sam se aproximou.

─ Bom dia, Sam.

Os dois homens trocaram um aperto de mão e Sam acomodou-se na banqueta defronte a Foss. Há seis meses atrás, Sam tinha contratado Foss para dirigir a divisão de televisão dos Pan-Pacific Studios. A televisão era a nova coqueluche do mundo dos espetáculos, e estava crescendo com uma rapidez incrível. Todos os estúdios que outrora tinham olhado para a televisão com desprezo agora estavam envolvidos com ela.

A garçonete veio anotar os pedidos, e depois que ela se foi disse:

─ Qual é a boa notícia, Mel?

Mel Foss sacudiu a cabeça.

─ Não há boas notícias. Estamos numa encrenca.

Sam esperou, sem dizer nada.

─ Não vamos conseguir o contrato de continuação de The Raiders.

Sam olhou para ele surpreendido.

─ Os índices de audiência estão ótimos. Por que a rede quereria cancelá-lo? É um bocado difícil conseguir um programa de grande sucesso.

─ Não é o programa ─ disse Foss. ─ É Jack Nolan.

Jack Nolan era o astro de The Raiders, e tinha sido um sucesso imediato, tanto de crítica quanto de público.

─ Que é que há com ele? ─ perguntou Sam.

Detestava o hábito de Mel Foss de forçá-lo a arrancar dele as informações.

─ Você já leu o número dessa semana da Peek Magazine?

─ Eu não leio em nenhuma semana. É o monte de lixo.

De repente ele percebeu aonde é que Foss estava querendo chegar.

─ Eles caíram em cima de Nolan!

─ E sem meias medidas ─ replicou Foss. ─ O estúpido filho da puta pôs o seu vestido de renda mais bonito e foi a uma festa. Alguém tirou retratos.

─ É muito ruim?

─ Não podia ser pior. Recebi uma dúzia de telefonemas da TV ontem. Os patrocinadores e a rede querem cair fora. Ninguém quer ser associado a um veado escandaloso.

─ Travesti ─ disse Sam.

Ele pretendia apresentar um bom relatório de televisão na reunião do conselho, em Nova York, no mês seguinte. A notícia de Foss poria fim naquilo. Perder The Raiders ia ser um golpe violento.

A menos que ele pudesse fazer alguma coisa.


Quando Sam voltou para o escritório, Lucille acenou com uma pilha de recados para ele.

─ As emergências estão em cima ─ disse ela. ─ Estão precisando...

─ Mais tarde. Quero falar com William Hunt na IBC.

Dois minutos depois, Sam estava falando com o chefe da International Broadcasting Company. Sam conhecia Hunt superficialmente há vários anos, e gostava dele. Hunt tinha começado como um jovem advogado brilhante na companhia e fora abrindo o seu caminho até o topo da hierarquia da rede de televisão. Raramente tratavam de negócios diretamente um com o outro, porque Sam não estava ligado de maneira direta à televisão. Naquele momento desejou que tivesse dedicado algum tempo a cultivar a amizade com Hunt. Quando Hunt entrou na linha, Sam se obrigou a falar num tom descontraído e casual:

─ Bom dia, Bill.

─ É uma surpresa agradável ─ disse Hunt. ─ Já faz um bocado de tempo, Sam.

─ Tempo demais. É o problema com este negócio, Bill. A gente nunca tem tempo para as pessoas de quem gosta.

─ É verdade.

Sam fez com que sua voz soasse bem casual. ─ A propósito, você por acaso viu aquele artigo idiota na Peek?

─ Você sabe que vi. É por isso que vamos cancelar o programa, Sam ─ disse Hunt num tom calmo, mas com firmeza.

─ Bill ─ disse Sam, ─ que é que você diria se eu lhe contasse que Jack Nolan foi falsamente inculpado?

Houve uma gargalhada do outro lado da linha.

─ Eu diria que você deveria pensar em se tornar escritor.

─ Estou falando sério ─ disse Sam, com sinceridade. ─ Eu conheço Jack Nolan. Ele é tão normal quanto nós. Aquela fotografia foi tirada numa festa à fantasia. Era aniversário da namorada dele, e ele pôs o vestido de farra.

Sam podia sentir as palmas das mãos suando.

─ Eu não.

─ Vou lhe dizer como confio em Jack. Acabei de escolhê-lo para o papel principal de Laredo, o nosso grande faroeste para o ano que vem.

Houve uma pausa.

─ Está falando sério, Sam?

─ Pode ficar certo de que estou. É um filme de três milhões de dólares. Os exibidores não quiseram participar. Acha que eu correria esse tipo de risco se não soubesse do que estou falando?

─ Bem. ─ havia hesitação na voz de Bill Hunt.

─ Ora, vamos, Bill, você não vai deixar que uma porcaria de revista de fofocas como a Peek destrua a carreira de um bom homem. Nós lhe demos um programa de sucesso. Não vamos brincar com um sucesso.

─ Bem.

─ Mel Foss já falou com você sobre os planos do estúdio para The Raiders na próxima temporada?

─ Não.

─ Acho que ele estava planejando fazer-lhe uma surpresa ─ disse Sam. ─ Espere só até ouvir o que ele imaginou! Astros convidados, grandes escritores de faroeste, filmagens no próprio local, todas as honras! Se The Raiders não subir como um foguete para o primeiro lugar, estou no negócio errado.

Houve uma breve hesitação. Então Bill Hunt disse:

─ Diga a Mel para me telefonar. Talvez todos nós aqui tenhamos entrado em pânico à toa.

─ Ele lhe telefonará ─ prometeu Sam.

─ Sam, você compreende a minha posição. Eu não estava tentando prejudicar ninguém.

─ É claro que não ─ disse Sam com sinceridade. ─ Conheço você bem demais para pensar isso, Bill. Foi por isso que achei que lhe devia a oportunidade de deixá-lo ouvir a verdade.

─ Eu lhe fico muito grato.

─ Que tal um almoço na semana que vem?

─ Seria ótimo. Telefono na segunda-feira.

Eles se despediram e desligaram. Sam ficou sentado ali, exausto. Jack Nolan era decididamente um veado. Alguém já deveria ter dado sumiço nele há muito tempo. E todo o futuro de Sam dependia de maníacos como ele. Dirigir um estúdio era como andar num arame suspenso sobre as cataratas do Niágara num nevoeiro. "Qualquer um estaria louco de fazer um trabalho como esse", pensou Sam. Pegou o telefone interno e discou. Alguns minutos depois estava falando com Mel Foss.

The Raiders vai continuar no ar.

─ Quê? ─ havia incredulidade e surpresa na voz de Foss.

─ É isso mesmo. Quero que você tenha uma conversinha séria com Jack Nolan. Diga a ele que se sair da linha de novo eu o porei para fora desta cidade pessoalmente e o levarei de volta para a Ilha do Fogo! Estou falando sério. Se ele sentir uma terrível necessidade de chupar alguma coisa, diga para experimentar uma banana!

Sam desligou o telefone com violência. Recostou-se na cadeira, pensando. Tinha esquecido de avisar Foss das invenções que havia contado a Bill Hunt. Ia ter que arranjar um escritor para produzir o script de um faroeste chamado Laredo.

A porta se abriu violentamente e Lucille ficou parada ali, seu rosto muito pálido.

─ Pode ir imediatamente até o Cenário DEZ? Alguém o incendiou.

8

Toby Temple tinha tentado entrar em contato com Sam Winters uma meia dúzia de vezes, mas nunca tinha conseguido ir além da cadela da secretária, e finalmente desistiu. Toby fez as rondas dos clubes noturnos e dois estúdios sem ter sucesso. Durante o ano seguinte, aceitou vários empregos e, nesse ínterim, apresentava-se em bares e clubes noturnos obscuros. Mas não conseguiu passar dos portões dos estúdios.

─ Você está tentando pelo caminho errado ─ disse-lhe um amigo. ─ Faça com que eles venham até você.

─ Como é que eu vou fazer isso? ─ perguntou Toby, com cinismo.

─ Entre para a Ators West.

─ Uma escola de arte dramática?

─ É mais do que isso. Eles encenam peças, e todos os estúdios da cidade fazem coberturas delas.


A Ators West tinha cheiro de profissionalismo. Toby pôde senti-lo quando passou pela porta. Na parede havia fotografias dos ex-alunos da escola. Toby reconheceu muitos deles como atores de sucesso.

A recepcionista atrás da escrivaninha disse:

─ Em que posso ajudá-lo?

─ Bem, sou Toby Temple. Gostaria de me matricular.

─ Já teve alguma experiência teatral?

─ Bem, não ─ disse Toby. ─ Mas eu...

Ela sacudiu a cabeça.

─ Sinto muito. A Sra. Tanner não entrevista ninguém que não tenha tido experiência profissional.

Toby ficou olhando para ela por um momento.

─ Está brincando comigo?

─ Não. É o nosso regulamento. Ela nunca...

─ Não estou falando nisso ─ disse Toby. ─ Quero dizer, você realmente não sabe quem eu sou?

A loura olhou para ele e disse:

─ Não.

Toby soltou a respiração devagar.

─ Jesus ─ disse ele. ─ Leland Hayward tinha razão. Se a gente trabalha na Inglaterra, Hollywood não sabe nem que a gente está vivo.

Sorriu e disse num tom de desculpa:

─ Eu estava brincando. Achei que me reconheceria.

Agora a recepcionista estava confusa, sem saber em que acreditar.

─ Então já trabalhou profissionalmente?

─ Eu diria que sim ─ Toby riu.

A loura pegou um formulário.

─ Que papéis desempenhou e aonde?

─ Não fiz nada aqui ─ disse Toby depressa. ─ Estive na Inglaterra durante os últimos dois anos, trabalhando em teatro.

A loura concordou com a cabeça.

─ Compreendo. Bem, deixe-me falar com a Sra. Tanner.

A loura desapareceu num outro escritório, voltando alguns minutos depois.

─ A Sra. Tanner o receberá. Boa sorte.

Toby piscou o olho para a recepcionista, respirou fundo e entrou no escritório da Sra. Tanner.

Alice Tanner era uma mulher de cabelos escuros, com um rosto atraente e aristocrático. Parecia estar com seus trinta e poucos anos, cerca de dez anos mais que Toby. Estava sentada atrás da escrivaninha, mas o que ele podia ver de seu corpo era sensacional. "Este lugar vai ser mesmo muito bom", refletiu Toby.

Toby lhe deu um sorriso cativante e disse:

─ Sou Toby Temple.

Alice Tanner se levantou e caminhou até ele. Sua perna esquerda estava envolta numa armação pesada de metal e ela mancava com o andar rápido e à vontade de alguém que tinha vivido com aquilo por muito tempo.

"Pólio", concluiu Toby. Não sabia se devia fazer algum comentário sobre aquilo ou não.

─ Então, quer se matricular nos nossos cursos.

─ Quero muito ─ disse Toby.

─ Posso lhe perguntar por quê?

Ele fez a sua voz soar sincera.

─ Porque em todos os lugares aonde vou, Sra. Tanner, as pessoas falam sobre a sua escola e sobre as peças maravilhosas que encenam aqui. Aposto que não tem idéia da reputação que este lugar tem.

Ela o examinou por um momento.

─ Eu tenho idéia. É por isso que tenho que ter cuidado para manter os impostores de fora.

Toby sentiu o seu rosto começar a corar, mas sorriu inocentemente e disse:

─ Aposto que sim. Muitos deles devem tentar entrar de qualquer maneira.

─ São poucos ─ concordou a Sra. Tanner, olhando de relance para o cartão que tinha na mão. ─ Toby Temple.

─ Provavelmente não conhece meu nome ─ explicou ele ─ porque durante os últimos dois anos estive...

─ Trabalhando em teatro na Inglaterra.

Ele concordou com a cabeça.

─ Certo.

Alice Tanner olhou para ele e disse com calma: ─ Sr. Temple, americanos não podem trabalhar em teatro na Inglaterra. A Lei da Equidade para Atores Ingleses não permite.

Toby sentiu de repente um vazio no fundo do estômago.

─ Poderia ter verificado antes e nos pouparia a ambos esta situação embaraçosa. Sinto muito, mas aqui nós só admitimos talentos profissionais.

Começou a voltar para a escrivaninha. A entrevista tinha acabado.

─ Espere! ─ a voz dele soou como uma chicotada.

Ela se virou espantada. Naquele instante, Toby não tinha idéia do que ia dizer ou fazer. Sabia apenas que todo o seu futuro dependia daquilo. A mulher parada na sua frente era a pedra inicial para tudo que ele queria, tudo por que tinha trabalhado e lutado, e não deixaria que ela o detivesse.

─ Talento não se julga através de regras, minha senhora! Ok, eu nunca representei. E por quê? Porque pessoas como a senhora se recusa a me dar uma oportunidade. Compreende o que estou querendo dizer? ─ era a voz de W. C. Fields.

Alice Tanner abriu a boca para interrompê-lo, mas Toby não lhe deu oportunidade. Ela era Jimmy Cagney, dizendo-lhe que desse uma chance ao pobre garoto, e James Stewart, concordando com ele, e Clark Gable, dizendo que estava louco para trabalhar com o garoto, e Cary Grant, acrescentando que achava o garoto brilhante. Uma horta de astros de Hollywood estava naquela sala, e todos eles estavam dizendo coisas engraçadas, coisas em que Toby Temple nunca tinha pensado antes. As palavras, as piadas jorravam num frenesi de desespero. Era um homem se afogando na escuridão da sua obscuridade, agarrando-se a uma tábua de salvação de palavras, e as palavras eram a única coisa que o mantinha à superfície. Estava ensopado de suor, correndo pelo aposento, imitando cada gesto de cada personagem que fazia. Estava louco, totalmente fora de si, inteiramente esquecido de onde estava e do que estava fazendo ali, até que ouviu Alice Tanner dizendo:

─ Pare! Pare!

Ela chorava de rir, as lágrimas lhe escorrendo pelo rosto.

─ Pare! ─ repetiu ela, arquejando para respirar.

E lentamente Toby desceu de volta à terra. A Sra. Tanner tinha puxado um lenço e estava enxugando os olhos.

─ Você... você é maluco ─ disse ela. ─ Sabe disso?

Toby a encarou, um sentimento de euforia tomando conta dele lentamente, levantando-o, exaltando-o.

─ Gostou?

Alice Tanner sacudiu a cabeça e respirou fundo para controlar o riso, e disse:

─ Não muito.

Toby olhou para ela cheio de raiva. Estivera rindo dele, não com ele. Ele estivera fazendo papel de palhaço.

─ Então de que é que estava rindo? ─ perguntou Toby.

Ela sorriu e disse com calma:

─ Você. Este foi o desempenho mais frenético que já vi em minha vida. Em algum lugar, escondido debaixo de todos esses artistas de cinema, está um rapaz com um bocado de talento. Você não tem que imitar outras pessoas, você é naturalmente engraçado.

Toby sentiu a sua raiva começar a se esvair.

─ Acho que um dia você poderá ser realmente bom, se estiver disposto a dar duro para isso. Está?

Ele lhe lançou um sorriso lento e radiante e disse:

─ Vamos arregaçar as mangas e trabalhar.


Josephine trabalhou muito naquela manhã de sábado, ajudando a mãe a limpar a casa. Ao meio-dia, Cissy e alguns outros amigos vinham apanhá-la para levá-la a um piquenique.

A Sra. Czinski observou Josephine saindo na grande limusine cheia de crianças da gente do petróleo e pensou: "Um dia alguma coisa de ruim vai acontecer a Josephine. Eu não devia deixar ela sair com essa gente. São filhos do diabo".

E ela se perguntou se haveria um demônio em Josephine. Ia falar com o Reverendo Damian, ele saberia o que fazer.


9

A Ators West era dividida em duas seções: Grupo Mostruário, que era constituído de atores mais experimentados, e o Grupo Oficina. Eram os atores do Grupo Mostruário que encenavam as peças que eram assistidas com atenção pelos caçadores de talentos dos estúdios. Toby tinha sido designado para o Grupo Oficina.

Alice Tanner lhe havia dito que poderia levar de seis meses a um ano até que ele estivesse pronto para fazer uma peça com o Grupo Mostruário.

Toby achava as aulas interessantes, mas o ingrediente mágico estava faltando: o público, os aplausos, os risos, pessoas para adorá-lo.

Nas semanas seguintes ao início de suas aulas, Toby quase não tinha visto a diretora da Escola. Ocasionalmente Alice Tanner aparecia para observar as improvisações e para dar uma palavra de encorajamento, ou Toby cruzava com ela a caminho das aulas; mas havia esperado um relacionamento mais íntimo. Descobriu-se pensando um bocado em Alice Tanner. Era a imagem que Toby fazia de uma senhora de classe, e aquilo o atraía; achava que era o que merecia. A idéia da sua perna aleijada o incomodava a princípio, mas pouco a pouco começara adquirir um fascínio sexual.

Toby tornou a falar com ela a respeito de incluí-lo numa peça do mostruário, onde os críticos e os caçadores de talentos pudessem vê-lo.

─ Você ainda não está pronto ─ disse-lhe Alice Tanner.

Ela estava no seu caminho, mantendo-o afastado do seu sucesso. "Tenho que fazer alguma coisa a respeito disso", resolveu Toby.

Uma peça do Grupo Mostruário ia ser encenada e, no dia da estreia, Toby estava sentado numa fileira do meio da plateia ao lado de uma estudante chamada Karen, uma gorduchinha que representava personagens caricatas e era da sua turma. Toby contracenava com ela em alguns números, e sabia duas coisas a seu respeito: nunca usava roupa de baixo e tinha mau hálito. Tinha feito tudo exceto enviar sinais de fumaça para dizer a Toby que queria ir para a cama com ele, "trepar com ela deve assemelhar-se a ser sugado para uma banheira cheia de banha fervendo."

Enquanto estavam sentados ali, esperando que a cortina subisse, Karen mostrava animadamente os críticos do Times e do Herald Express de Los Angeles, e os caçadores de talentos da Twentieth Century-Fox, da MGM e da Warner Brothers. Toby ficou furioso. Estava ali para ver os atores no palco, enquanto ele estava sentado ali na plateia como um idiota. Teve um impulso incontrolável de se levantar e executar um de seus números, de estonteá-los, de lhe mostrar o que era talento de verdade.

O público gostou da peça, mas Toby estava obcecado com os caçadores de talentos, sentados ao seu alcance, os homens que tinham o seu futuro nas mãos. Bem, se a Ators West era a isca que os traria até ele, Toby a usaria; mas não tinha a intenção de esperar seis meses, nem mesmo seis semanas.


Na manhã seguinte, Toby foi até o escritório de Alice Tanner.

─ Que foi que achou da peça? ─ perguntou ela.

─ Foi maravilhosa ─ respondeu. ─ Aqueles atores estavam realmente ótimos.

Ele deu um sorriso de desculpas.

─ Compreendi o que estava querendo dizer quando falou que ainda não estava pronto.

─ Eles têm mais experiência do que você, isto é tudo, mas você tem uma personalidade única. Você vai conseguir. É só ter paciência.

Ele suspirou:

─ Não sei. Talvez fosse melhor se eu esquecesse essa história toda e fosse vender seguros ou coisa assim.

Alice olhou para ele, surpresa.

─ Não deve fazer isso.

Toby sacudiu a cabeça.

─ Depois de ver esses profissionais, ontem à noite, eu acho que não tenho jeito.

─ É claro que tem, Toby. Não vou deixar você falar desse jeito.

Na voz dela havia o tom que ele estivera querendo ouvir. Agora não era mais uma professora falando com um aluno, era uma mulher falando com um homem, encorajando-o, importando-se com ele. Toby sentiu um pequeno ímpeto de satisfação.

Encolheu os ombros com uma expressão de impotência.

─ Não sei mais. Estou completamente sozinho nesta cidade. Não tenho ninguém com quem falar.

─ Você sempre pode falar comigo Toby. Gostaria de ser sua amiga.

Podia ouvir a rouquidão lasciva surgindo na voz dela. Os olhos azuis de Toby revelavam todo o encanto do mundo enquanto olhava para ela. Ela ainda o observava quando ele foi até a porta do escritório e a trancou. Voltou para junto dela, ajoelhou-se, enterrou a cabeça no seu colo e, enquanto seus dedos lhe tocavam o cabelo, começou a levantar-lhe a saia lentamente retirou o suporte, beijando com ternura as marcas vermelhas deixadas pelas talas de aço. Desabotoou lentamente a cinta-liga, sempre falando a Alice do seu amor e da sua necessidade dela, e a cobriu de beijos descendo até os lábios úmidos. Ele a carregou até o grande sofá de couro e a possuiu.

Naquela noite, Toby mudou-se para a casa de Alice.


Na cama, naquela noite, Toby descobriu que Alice Tanner era uma mulher solitária, digna de pena, desesperada e ansiosa para ter alguém com quem falar, alguém a quem amar.

Tinha nascido em Boston, seu pai era um industrial rico que lhe havia dado uma grande mesada e nenhuma atenção. Alice adorava o teatro e tinha estudado para ser atriz, mas na universidade contraíra poliomielite e aquilo pusera fim ao seu sonho. Ela contou a Toby como aquilo havia afetado sua vida. O rapaz de quem estava noiva a abandonara quando soubera da notícia. Alice tinha saído de casa, casando-se com um psiquiatra, que se suicidara seis meses depois. Era como se todas as emoções e sentimentos tivessem sido engarrafados sob pressão no seu íntimo.

Agora tinham jorrado para fora numa explosão que a deixara exausta, em paz e maravilhosamente satisfeita.

Toby possuiu Alice repetidamente, até que ela quase desmaiou de prazer, penetrando-a com seu enorme pênis e fazendo movimentos circulares bem lentos com os quadris, até parecer estar tocando todas as partes do seu corpo. Ela gemia:

─ Oh, querido, eu o amo tanto. Oh, Deus, como eu adoro isso!

Mas no que dizia respeito à escola, Toby descobriu que não tinha nenhuma influência sobre Alice. Pediu a ela que o pusesse na próxima peça do Mostruário, que o apresentasse aos diretores que distribuíam papéis, que falasse a respeito dele com as pessoas de influência nos estúdios, mas ela permaneceu firme.

─ Você vai se prejudicar se for rápido demais, querido. Regra número 1: a primeira impressão é a mais importante. Se não gostarem de você da primeira vez, nunca voltarão a vê-lo uma segunda. Você tem que estar pronto.

No instante em que as palavras foram ditas, ela se tornou o Inimigo. Estava contra ele. Toby engoliu a sua fúria e se obrigou a sorrir.

─ É claro. É só que estou impaciente. Quero fazê-lo tanto por você quanto por mim.

─ Quer mesmo? Oh, Toby, eu o amo tanto!

─ Eu também a amo, Alice.

E sorriu para os olhos que o adoravam. Sabia que tinha que dar um jeito naquela cadela que estava entre ele e o que ele queria. Toby a odiava e a punia.

Quando iam para a cama, obrigava-a a fazer coisas que ela nunca tinha feito, coisas que nunca pedira a uma prostituta que fizesse, usando a boca de Alice, seus dedos e sua língua. Fazia com que ela fosse cada vez mais longe, levando-a à força a uma série de humilhações. E cada vez que a obrigava a fazer algo mais degradante, a elogiava, da mesma maneira que se elogia um cachorro por ter aprendido mais um truque, e ela ficava feliz por ter-lhe agradado. E quanto mais a degradava, mais degradado se sentia. Estava punindo a si mesmo, e não sabia por quê.

Toby tinha um plano em mente, e sua oportunidade de pô-lo em prática surgiu mais cedo do que previra. Alice Tanner anunciou que o Grupo Oficina ia dar um espetáculo fechado para as turmas adiantadas e seus convidados, na sexta-feira seguinte. Toby preparou um monólogo e o ensaiou exaustivamente.

Na manhã do dia do espetáculo, Toby esperou até que as aulas terminassem e foi procurar Karen, a atriz gorda que tinha se sentado junto dele durante a peça.

─ Você me faria um favor? ─ perguntou num tom casual.

─ Claro, Toby ─ a voz dela revelava surpresa e ansiedade.

Toby recuou para fugir do hálito de Karen.

─ Quero pregar uma peça num velho amigo meu. Quero que você telefone para a secretária de Clifton Lawrence fingindo ser a secretária de Sam Goldwyn, e diga-lhe que ele gostaria que o Sr. Lawrence viesse ao espetáculo, hoje à noite, para ver um novo cômico brilhante. Haverá uma entrada esperando por ele na bilheteira.

Karen olhou para ele.

─ Jesus, a velha Tanner me arrancaria a cabeça! Você sabe que ela nunca permitiu que gente de fora assistisse aos espetáculos da Oficina.

─ Confie em mim, não haverá nenhum problema ─ Toby segurou o braço dela e o apertou. ─ Vai estar ocupada esta tarde?

Ela engoliu em seco, com a respiração um pouco acelerada.

─ Não, não se você quiser fazer alguma coisa.

─ Eu gostaria de fazer alguma coisa.

Três horas depois, uma Karen em êxtase fez o telefonema.


O auditório estava cheio de atores das várias turmas e seus convidados, mas a única pessoa para quem Toby tinha olhos era o homem sentado numa poltrona lateral, na terceira fila. Toby estivera em pânico, com medo que o seu ardil falhasse. Sem dúvida um homem esperto como Clifton Lawrence perceberia a artimanha. Mas não tinha percebido. Estava ali.

Naquele momento, um rapaz e uma moça estavam no palco, encenando um trecho de The Sea Gull. Toby esperava que eles não fizessem com que Clifton Lawrence saísse do teatro. Finalmente o número acabou, e os atores agradeceram e saíram do palco.

Era a vez de Toby. Alice apareceu de repente, ao seu lado, nos bastidores, murmurando: ─ Boa sorte, querido, ─ sem saber que a sorte dele estava sentada na plateia.

─ Obrigado, Alice.

Toby fez uma prece muda, endireitou os ombros, irrompeu palco adentro e deu o seu sorriso inocente para a plateia.

─ Alô, amigos. Sou Toby Temple. Ei, vocês alguma vez pararam para pensar a respeito de nomes, e como os nossos pai os escolhem? É uma loucura. Perguntei à minha mãe por que ela tinha me chamado Toby. Ela disse que deu uma olhada para a minha careta1 e que não viu outra coisa.

Foi a expressão dele que arrancou o riso. Toby parecia tão inocente e ansioso para agradar, de pé ali sozinho naquele palco, que eles o adoraram. As piadas que ele contou eram terríveis, mas não tinha importância. Ele era tão vulnerável que queriam protegê-lo, e o fizeram com seus aplausos e suas gargalhadas. Era como uma dádiva de amor que fluía para dentro de Toby, enchendo o seu íntimo de uma euforia quase insuportável. Ele


_____________

1 Trocadilho impossível de ser traduzido. O autor joga com o significado da palavra mug, que quer dizer caneca, mas que em gíria quer dizer careta, e com o apelido Toby, que quer dizer caneca em formato de homem gordo. (N. da T.)

era Edward G. Robinson e Jimmy Cagney, e Cagney estava dizendo:


─ Seu rato imundo! A quem você pensa que está dando ordens?

─ A você, seu vagabundo. Sou o Pequeno César. Sou o chefe. Você não é nada. Sabe o que é que isso quer dizer? ─ respondia Robinson.

─ Sei, rato imundo. Você não é chefe de nada.

Uma explosão de riso. O público adorava Toby.

Bogart estava ali, rosnando com rispidez:

─ Eu cuspiria no seu olho, seu vagabundo, se o meu lábio não estivesse preso em cima dos meus dentes.

E o público estava encantado.

Toby lhes ofereceu a sua versão de Peter Lorre.

─ Vi a tal garotinha no quarto dela, brincando com o negócio, e fiquei excitado. Não sei o que foi que deu em mim. Não consegui me controlar. Entrei bem devagarinho no quarto e puxei a corda com toda a força, quebrando o ioiô dela.

Uma grande risada. Ele estava radiante.

Passou para Laurel e Hardy, e um movimento na plateia atraiu sua atenção, obrigando-o a olhar para cima. Clifton Lawrence estava saindo do teatro.

O resto da noite foi um borrão para Toby.

Quando o espetáculo acabou, Alice Tanner se aproximou de Toby.

─ Você estava maravilhoso, querido! Eu...

Não suportava ter que olhar para ela, olhar para qualquer pessoa, que qualquer pessoa o olhasse. Queria estar sozinho com a sua desgraça, para tentar lutar com a dor que o estraçalhava. Seu mundo tinha desmoronado à sua volta. Tinha tido a sua oportunidade e fracassado. Clifton Lawrence desertara, não esperara nem mesmo que ele acabasse. Clifton Lawrence era um homem que conhecia o que era talento, que só cuidava dos melhores. Se Lawrence não achava que Toby tinha alguma coisa que valesse a pena... Toby se sentiu enjoado.

─ Vou dar uma volta ─ disse a Alice.


Desceu pela Vine Street e Gower Street, passando pela Columbia Pictures, pela RKO e pela Paramount. Todos os portões estavam fechados. Desceu o Hollywood Boulevard e olhou para cima, para o anúncio enorme, zombeteiro, na colina, que dizia: "HOLLYWOOD-LAND". Não existia nenhuma Hollywood-land. Era um estado de espírito, um sonho mentiroso que levava milhares de pessoas, que de outra forma seriam normais, à insanidade de tentar alcançar o estrelato. A palavra "Hollywood" tinha se tornado um ímã, uma armadilha que seduzia as pessoas com promessas maravilhosas, cantos de sereia de sonhos realizados, e depois as destruía.

Toby andou pelas ruas a noite inteira, perguntando-se o que iria fazer da sua vida. A fé que tinha em si mesmo fora destruída, e sentia-se desarraigado e sem rumo. Nunca se imaginara fazendo outra coisa qualquer a não ser representar, tudo que lhe restava eram empregos monótonos e entediantes, onde estaria aprisionado para o resto da vida. Sr. Anónimo. Ninguém nunca saberia quem ele era. Pensou nos longos anos sombrios, na solidão amarga dos milhares de cidades sem nome, das pessoas que o tinham aplaudido, rido com ele, que o tinham amado. Toby chorou. Chorou pelo passado e pelo futuro.

Ele chorou porque estava morto.


O dia estava amanhecendo quando Toby voltou para o bangalô branco que dividia com Alice. Entrou no quarto e olhou para o vulto adormecido. Tinha pensado que ela seria o "abra-te sésamo" para o reino mágico. Mas não existia nenhum reino mágico. Não para ele. Ia partir. Não tinha idéia de para onde iria. Estava com quase vinte e sete anos e não tinha futuro.

Deitou-se no sofá, exausto. Fechou os olhos, ouvindo os ruídos matinais da cidade despertando para a vida. Os ruídos matinais das cidades são sempre os mesmos, e pensou em Detroit. Sua mãe. Ela estava em pé na cozinha, preparando tortinhas de maçã para ele. Podia sentir o seu maravilhoso cheiro almiscarado de fêmea, misturado com o cheiro das maçãs cozinhando na manteiga, e ela estava dizendo: "Deus quer que você seja famoso".

Estava de pé sozinho num palco enorme, ofuscando pelos refletores, tentando se lembrar de seu texto. Tentou falar mas tinha perdido a voz. Entrou em pânico. Um ruído trovejante vinha da plateia e, através das luzes ofuscantes, Toby podia ver os espectadores correndo para o palco para agredi-lo, para matá-lo. O amor deles se transformara em ódio. Eles o cercavam, o agarravam, entoando: "Toby! Toby! Toby!"

Toby acordou com um sobressalto, a boca seca de medo. Alice Tanner estava inclinada sobre ele, sacudindo-lhe o braço.

─ Toby! Telefone. É Clifton Lawrence.


O escritório de Clifton Lawrence ficava num prédio pequeno e elegante em Beverly Drive, ao sul de Wilshire. Havia quadros de impressionistas franceses nas paredes revestidas de madeira entalhada em frente à lareira de mármore verde-escuro. Um sofá e algumas cadeiras de época estavam agrupados em torno de uma mesinha de chá encantadora. Toby nunca tinha visto nada assim.


Uma secretária ruiva, bem-feita de corpo, estava servindo o chá.

─ Como é que gosta do seu chá, Sr. Temple?

"Sr. Temple!"

─ Uma colher de açúcar, por favor.

─ Aqui está ─ um pequeno sorriso e ela foi embora.

Toby não sabia que o chá era de uma marca especial, importado de Fortnum and Mason, nem que estava enriquecido com uma infusão de Irish Baleek, mas sabia que o gosto era maravilhoso. De fato, tudo naquele escritório era maravilhoso, especialmente aquele homenzinho elegante sentado numa poltrona que o examinava. Clifton Lawrence era menor do que Toby imaginara, mas irradiava autoridade e poder.

─ Não posso lhe dizer o quanto aprecio o fato de o senhor me receber ─ disse Toby. ─ Sinto muito por tê-lo enganado e...

Clifton Lawrence atirou a cabeça para trás e riu.

─ Enganar a mim? Eu almocei com Goldwyn ontem. Fui vê-lo ontem à noite porque queria ver se o seu talento ficava à altura da sua coragem. E ficava.

─ Mas o senhor exclamou Toby.saiu...

─ Meu caro rapaz, não se precisa comer o pote inteiro de caviar para saber se é bom, certo? Eu soube o que você valia em sessenta segundos.

Toby sentiu aquela sensação de euforia crescendo dentro dele outra vez. Depois do desespero negro da noite anterior, ser levantado às alturas daquele jeito, ter a sua vida de volta...

─ Tenho um palpite a seu respeito, Temple ─ disse Clifton Lawrence. ─ Acho que seria estimulante pegar alguém jovem e construir sua carreira. Decidi aceitar você como cliente.

O sentimento de felicidade estava explodindo de felicidade no íntimo de Toby. Queria se levantar e gritar bem alto. Clifton Lawrence ia ser seu agente!

─ me encarregarei de você sob uma condição ─ dizia Clifton Lawrence. ─ Que você faça esatamente o que eu lhe disser. Não tolero temperamentais. Saia da linha uma única vez e estará acabado. Está compreendendo?

Toby concordou depressa, balançando a cabeça.

─ Sim, senhor. Compreendo.

─ A primeira coisa que tem que fazer é encarar a verdade ─ sorriu para Toby e disse: ─ Seu número é horroroso. Definitivamente o fim.

Foi como se Toby estivesse levado um chute no estômago. Clifton Lawrence o trouxera até ali para puni-lo por aquele telefonema idiota; não pretendia empregá-lo. Ele...

Mas o agente baixinho continuou:

─ A noite passada foi uma noite de amadores, e isto é o que você é... um amador.

Clifton Lawrence levantou-se da cadeira e começou a caminhar de um lado para outro.

─ Vou lhe dizer o que você tem e o que você precisa ter para se tornar um astro.

Toby ficou sentado, imóvel.

─ Vamos começar pelo seu material ─ disse Clifton. ─ Você poderia pôr sal e manteiga nele e mascateá-lo em salas de esperas de cinemas.

─ Sim, senhor. Bem, parte dela é, de fato, um pouco batidas, mas...

─ Número dois. Você não tem estilo.

Toby sentiu suas mãos começarem a se cerrar.

─ O público pareceu...

─ Número três. Você não sabe se mexer. É desajeitado.

Toby não disse nada.

O agente baixinho andou até junto dele e disse num tom suave, lendo os pensamentos de Toby:

─ Se você é tão ruim, o que é que você está fazendo aqui? Você está aqui porque tem uma coisa que o dinheiro não pode comprar. Quando você entra naquele palco, a plateia quer engolir você. Eles o adoraram. Tem alguma idéia de quanto isso poderia valer?

Toby respirou fundo e se recostou.

─ Diga-me.

─ Mais do que você poderia sonhar. Com o material certo e a orientação apropriada, você pode ser um astro.

Toby ficou sentado ali, aquecendo-se na brasa morna das palavras de Clifton Lawrence, e era como se tudo que fizera durante a sua vida inteira tivesse levado àquele momento, como se ele já fosse um astro, e tudo já houvesse acontecido. Exatamente como sua mãe havia prometido.

─ A chave do sucesso de um comediante é a personalidade ─ dizia Clifton Lawrence. ─ Não se pode comprá-la e não se pode falsificá-la. É preciso nascer com ela. Você é um dos afortunados, meu caro rapaz.

Olhou para o relógio Piaget de ouro no pulso.

─ Marquei um encontro para você com O'Hanlon e Rainger às duas horas. São os melhores escritores cômicos do mercado. Trabalham para todos os grandes comediantes.

Toby disse com nervosismo:

─ Sinto muito, mas acho que não tenho muito dinheiro...

Clifton Lawrence afastou a idéia com um aceno de mão.

─ Não precisa se preocupar, meu caro rapaz. Você me pagará depois.

Muito tempo depois de Toby ter ido embora, Clifton Lawrence continuava sentado ali pensando nele, sorrindo do rosto inocente e daqueles olhos azuis confiantes, sem malícia. Já fazia muito tempo desde que Clifton Lawrence agenciara um desconhecido pela última vez. Todos os seus clientes eram astros importantes, e todos os estúdios disputavam os seus serviços. O estímulo desaparecera há muito tempo. No início tinha sido muito mais divertido, mais estimulante. Seria um desafio pegar aquele garoto cru, jovem, e desenvolvê-lo, transformá-lo numa mercadoria quente. Clifton tinha a impressão de que realmente ia gostar daquela experiência. Gostava do garoto. Gostava muito dele, mesmo.


A reunião se realizou nos estúdios da Twentieth Century-Fox, no Pico Boulevard, zona oeste de Los Angeles, onde O'Hanlon e Rainger tinham seus escritórios. Toby esperava algo de muito luxuoso, no estilo de Clifton Lawrence, mas os escritórios dos escritores eram sujos e tristes, instalados num pequeno bangalô nos limites da propriedade.


Uma secretária de meia-idade, de aparência desleixada, vestida com um casaco de malha, acompanhou Toby até o gabinete. As paredes eram de um verde-limão sujo, e o único ornamento era um alvo para jogar dados, já bem velho e gasto, e uma plaqueta com os dizeres: "PLANEJE COM ANTECEDÊNCIA", com as três últimas letras espremidas umas nas outras. Uma persiana quebrada filtrava parcialmente os raios do sol que caíam sobre um velho tapete marrom imundo e já gasto a ponto de quase não ter mais pêlos. Havia duas escrivaninhas muito arranhadas, uma de costas para a outra, ambas cobertas de papéis, lápis e copinhos de papel com restos de café frio.

─ Alô, Toby. Desculpe a bagunça. É é dia de folga da empregada ─ disse O'Hanlon a título de cumprimento. ─ Eu sou O'Hanlon.. ─ Apontou para o companheiro. ─ Este é... er... ?

─ Rainger.

─ Oh, sim. Este é Rainger.

O'Hanlon era grandalhão e rechonchudo, e usava óculos com aros de osso. Rainger era baixinho e franzino. Ambos tinham cerca de trinta anos e escreviam juntos, num esquema de equipe, com sucesso, já há dez anos. Posteriormente, durante todo o tempo que Toby trabalhou com eles, sempre se referia a eles como "os meninos".

─ Soube que vocês vão escrever algumas piadas para mim ─ disse Toby.

O'Hanlon e Rainger trocaram olhares. Rainger disse: ─ Clifton Lawrence acha que você é capaz de ser o próximo símbolo sexual da América. Vejamos o que você sabe fazer. Você tem algum número?

─ É claro ─ respondeu Toby.

Lembrou-se do que Clifton Lawrence havia dito a respeito dele. Sentiu-se acanhado de repente.

Os dois escritores se sentaram no sofá e cruzaram os braços.

─ Faça-nos rir ─ disse O'Hanlon.

Toby olhou para eles. ─ Assim sem mais nem menos?

─ Que é que você queria? ─ perguntou Rainger. ─ Uma introdução de uma orquestra de sessenta instrumentos? ─ Virou-se para O'Hanlon. ─ Dê um telefonema para o departamento de música.

"Seus cretinos", pensou Toby. "Vocês estão na minha lista negra, vocês dois." Sabia o que eles estavam tentando fazer. Estavam tentando fazer com que ele ficasse mal, de forma que pudesse ir procurar Clifton e dizer: "Não podemos ajudá-lo. É ruim demais para ter conserto". Bem, não ia deixar que conseguissem. Forçou um sorriso que não sentia, e atacou com a sua imitação de Abbott e Costello.

─ Ei, Lou, você não tem vergonha? Está se tornando um verdadeiro vagabundo. Por que não tenta arranjar um emprego?

─ Eu tenho um emprego.

─ Que tipo de emprego?

─ De procurar emprego.

─ Você chama isso de emprego?

─ Mas é claro. Isto me mantém ocupado o dia inteiro, tenho um horário regular e chego na hora do jantar todos os dias.

Agora os dois estavam examinando Toby, avaliando, analisando, e no meio do número começaram a falar, como se Toby não estivesse presente.

─ Não sabe ficar em pé numa postura correta.

─ Usa as mãos como se estivesse cortando madeira. Quem sabe poderíamos escrever alguma coisa sobre um lenhador para ele.

─ Ele força demais.

─ Jesus, com esse material, você não faria o mesmo?

Toby estava ficando cada vez mais aborrecido. Não era obrigado a ficar ali para ser insultado por aqueles dois maníacos. E de qualquer maneira, o material deles devia ser horrível.

Finalmente não pôde aguentar mais. Parou, a voz trémula de raiva.

─ Não preciso de vocês, seus miseráveis! Obrigado pela hospitalidade.

Saiu em direção à porta.

Rainger se levantou demonstrando um espanto genuíno.

─ Ei! Que é que há com você?

Toby se virou, furioso.

─ Que porra você acha que há?

Estava frustrado, à beira das lágrimas.

Rainger se virou para olhar para O'Hanlon com total perplexidade.

─ Devemos ter ferido os sentimentos dele.

─ Cristo!

Toby respirou fundo.

─ Olhem aqui vocês dois, eu não me importo se não gostam de mim, mas...

─ Nós amamos você! ─ exclamou O'Hanlon.

─ Achamos você uma gracinha! ─ acompanhou Rainger.

Toby olhou de um para outro com total espanto.

─ Quê? Vocês agiram como...

─ Sabe qual é o seu problema, Toby? Você é inseguro. Descontraia-se. Claro que você tem muito que aprender, mas por outro lado, se fosse você Bob Hope, não estaria aqui.

O'Hanlon acrescentou:

─ E sabe por quê? Porque o Bob está lá em Carnel hoje.

─ Jogando golfe. Você joga golfe? ─ perguntou Rainger.

─ Não.

Os dois escritores se entreolharam com desapontamento. ─ Lá se vão todas as piadas sobre golfe. Merda!

O'Hanlon tirou o telefone do gancho.

─ Traga um cafezinho, por favor.

Desligou e virou-se para Toby.

─ Sabe quantos cômicos em potencial existem querendo entrar neste pequeno e esquisito negócio em que nos metemos?

Toby sacudiu a cabeça.

─ Posso lhe dizer com exatidão. Três bilhões setecentos e vinte oito milhões, até as seis horas da noite de ontem. E isso sem incluir o irmão de Milton Berle. Quando a lua está cheia, todos saem dos buracos. Só existe uma meia dúzia de cômicos realmente grandes. A comédia é o negócio mais sério do mundo. É um trabalho danado de difícil ser engraçado, quer você seja cômico, quer comediante.

─ Qual é a diferença. Um cômico abre portas engraçadas, um comediante abre portas engraçado.

Rainger perguntou:

─ Você alguma vez parou para pensar o que é que faz um comediante ser um sucesso e um outro ser fracasso?

─ O material ─ disse Toby, querendo lisonjeá-los.

─ Merda. A última piada nova foi inventada por Aristófanes. As piadas são basicamente as mesmas. George Burns pode contar seis piadas que o sujeito do programa anterior ao dele acabou de contar, e obterá sempre mais risadas. Sabe por quê? Personalidade.

Era o que Clifton Lawrence lhe havia dito.

─ Sem isso, você não é nada, ninguém. Comece com personalidade e transforme-a em um gênero seu. Veja Hope, por exemplo. Se ele aparecer e fizesse um monólogo à la Jack Benny, Entraria pelo cano. Por quê? Porque ele criou um gênero. É aquele tipo que as plateias esperam dele. Quando Hope aparece, elas querem ouvir aquele fogo cerrado de piadas rápidas. Ele é um espertalhão simpático, o malandro da cidade grande que também leva as suas. Jack Benny é o externo oposto. Ele não saberia o que fazer com um monólogo no gênero de Bob Hope, mas é capaz de fazer a plateia gritar numa pausa de dois minutos. Cada um dos Irmãos Marx tinha o seu próprio tipo. Fred Allen é único. Isso nos traz a você. Sabe qual é o seu problema, Toby? Você é um pouquinho de todo mundo. Você está imitando todos os grandes. Bem, está ótimo se você quiser continuar fazendo espetáculos mambembes para o resto da vida. Mas se quer subir, tem que criar seu próprio tipo. Quando você estiver no palco, antes mesmo que abra a boca, a plateia tem que saber que é Toby Temple quem está lá em cima. Compreendeu?

─ Sim.

Foi O'Hanlon quem prosseguiu.

─ Sabe o que é que você tem, Toby? Um rosto encantador. Se eu já não estivesse noivo de Clark Gable, ficaria louco por você. Você tem uma doçura ingénua que, bem aproveitada poderia valer uma puta futura.

─ Para não falar de uma fortuna em trepadas ─ completou Rainger.

─ Você pode sair impune em coisas que os outros não podem. É como um garotinho de coro dizendo palavrões, é uma gracinha porque ninguém acredita que compreenda realmente o que está dizendo. Quando você entrou aqui, perguntou se nós éramos os caras que iam escrever as suas piadas. A resposta é não. Isto aqui não é uma loja de piadas. O que nós vamos fazer é mostrar a você o que tem e como usá-lo. Nós vamos talhar um tipo sob medida para você. Bem... que é que acha?

Toby olhou de um para outro, sorriu e disse:

─ Vamos arregaçar as mangas e dar duro.


Depois daquilo, Toby almoçava com O'Hanlon e Rainger no estúdio todos os dias. O refeitório da Twentieth Century-Fox era um enorme salão cheio de astros de primeira grandeza. Qualquer que fosse o dia, Toby podia sempre ser Tyrone Power, Loretta Young, Betty Grable, Don Ameche, Alice Faye, Richard Widmark, Victor Mature, os Irmãos Ritz e dúzias de outros. Alguns estavam sentados nas mesas do grande salão, e outros na sala de jantar dos executivos, que era um pouco menor e ficava vizinha ao refeitório principal. Toby adorava observá-los. Dentro de pouco tempo seria um deles, as pessoas estariam pedindo o seu autógrafo. Estava no caminho certo, e ia ser maior do que qualquer um deles.


Alice Tanner ficou radiante com o que havia acontecido a Toby.

─ Eu sei que você vai conseguir, querido. Estou tão orgulhosa de você.

Toby sorriu para ela e não dizia nada.


Toby, O'Hanlon e Rainger tinham longas discussões sobre o novo gênero que Toby deveria personificar.

─ Ele deveria pensar que é um homem mundano sofisticado ─ disse O'Hanlon. ─ Mas toda vez que vai tentar acertar uma jogada se dá mal.

─ Que é que ele faz? ─ perguntou Rainger. ─ Mistura metáforas?

─ Essa personagem mora com a mãe. Ele está apaixonado por uma garota, mas tem medo de sair de casa e se casar com ela. Já são noivos há cinco anos.

─ Dez é um número mais engraçado.


─ Certo! Dez anos. A mãe dele é uma desgraçada que não devia acontecer nem a um cachorro. Toda vez que Toby quer se casar, ela aparece com uma doença nova. O Time Magazine telefona para ela todas as semanas para saber o que há de novo na medicina.

Toby ficava sentado ouvindo, fascinado com o fluxo rápido do diálogo. Nunca tinha trabalhado com verdadeiros profissionais antes, e estava gostando. Especialmente porque era o centro das atenções. O'Hanlon e Rainger levaram três semanas para escrever um espetáculo para Toby. Quando finalmente o mostraram a ele, ficou encantado. Era bom. Fez algumas sugestões, acrescentando e cortando algumas linhas, e Toby Temple estava pronto. Clifton Lawrence mandou chamá-lo.

─ Você estreia sábado à noite, no Bowling Ball.

Toby ficou olhando para ele. Tinha esperança de ser lançado no Ciro's ou no Trocadero.

─ Que, que é esse tal de Bowling Ball?

─ É uma boatezinha na Western Avenue.

O desapontamento ficou evidente no rosto de Toby.

─ Nunca ouvi falar nela.

─ E eles nunca ouviram falar em você. Esse é que é o objetivo, meu caro rapaz. Se você fracassar lá, ninguém jamais saberá.

Exceto Clifton Lawrence.


O Bowling Ball era uma espelunca. Não havia nenhuma outra palavra para descrevê-lo. Era uma cópia de dez milhões de outros bares miseráveis espalhados por todo o país, um oásis de perdedores. Toby já tinha se apresentado ali milhares de vezes, em milhares de cidades. Os clientes eram na sua maioria homens de meia-idade, trabalhadores assalariados namorando com os olhos as garçonetes cansadas nas suas saias justas e blusas decotadas, trocando piadas sujas entre uma e outra dose de uísque barato ou um copo de cerveja. O espetáculo se realizava numa pequena área desimpedida na extremidade da sala, onde três músicos entediados tocavam. Um cantor homossexual deu início ao espetáculo, sendo seguido por uma dançarina acrobata que só vestia uma malha, e depois uma dançarina de strip-tease que se apresentava junto com uma cobra sonolenta.

Toby sentou-se numa mesa no fundo da sala com Clifton Lawrence, O'Hanlon e Rainger, assistindo aos outros números, ouvindo a plateia, tentando determinar o seu estado de espírito.

─ Bebedores de cerveja ─ disse Toby com desprezo.

Clifton começou a responder, então olhou para o rosto de Toby e se conteve. Toby estava com medo. Clifton sabia que Toby já tinha se apresentado em lugares como aqueles antes, mas daquela vez ia ser diferente, aquele era o teste.

Clifton disse com delicadeza:

─ Se você conseguir pôr os bebedores de cerveja no bolso, a turma do champanha vai ser moleza. Essa gente trabalha duro o dia inteiro, Toby. Quando saem à noite querem um espetáculo à altura do dinheiro que gastam. Se conseguir fazer com que eles riam, será capaz de fazer qualquer pessoa rir.

Naquele momento Toby ouviu o mestre-de-cerimónias entediado anunciar o seu nome.

─ Mande ver, menino! ─ disse O'Hanlon.

Toby estava em cena.


Ficou parado no palco, em guarda e tenso, medindo a plateia como um animal cauteloso farejando o perigo numa floresta.

Uma plateia era uma fera com cem cabeças, cada uma diferente da outra: "Gostem de mim", rezou.

Começou o seu número.

E ninguém o ouviu. Ninguém estava rindo. Toby podia sentir o suor frio começar a brotar na sua testa. O número não estava sendo bem acolhido. Manteve o sorriso pregado no rosto e continuou falando alto para ser ouvido apesar da barulheira e da conversa. Não conseguia atrair a atenção deles. Queriam as garotas nuas de volta. Haviam estado expostos a demasiadas noites de sábado, a demasiados canastrões sem talento, comediantes sem graça. Toby continuou falando para a indiferença deles. Continuou porque não havia mais nada que pudesse fazer. Olhou lá para o fundo e viu Clifton Lawrence e os meninos, observando-o com expressão preocupada.

Toby continuou. Não havia plateia naquela sala, só gente, pessoas falando umas com as outras, discutindo seus problemas e suas vidas. No que dizia respeito a elas, Toby Temple podia estar a um milhão de milhas de distância. Ou morto. Agora sentia a garganta seca de medo e estava ficando difícil fazer as palavras saírem.

Pelo canto do olho viu o gerente sair em direção à orquestra. Ia mandar começar a música, fazer com que ele acabasse de afundar. Estava tudo acabado. As palmas das mãos de Toby estavam molhadas e seus intestinos tinham virado água. Podia sentir a urina quente escorrendo pelas suas pernas. Estava tão nervoso que tinha começado a trocar as falas. Não ousava olhar para Clifton Lawrence nem para os escritores. Estava envergonhado demais. O gerente estava junto da orquestra, falando com os músicos. Eles olharam para Toby e sacudiram a cabeça. Toby continuou, falando desesperadamente, querendo que acabasse logo, querendo fugir para algum lugar e se esconder.

Uma mulher de meia-idade, sentada numa mesa bem defronte a Toby, riu de umas das piadas. Seus companheiros de mesa pararam para ouvir. Toby continuou falando, num frenesi. Agora as outras pessoas da mesa estavam ouvindo, rindo. E depois a mesa do lado.

E a seguinte. E lentamente, a conversa começou a morrer. Eles estavam ouvindo. Os risos começaram a aparecer, prolongada e regularmente, e as gargalhadas estavam ficando maiores, e crescendo. E crescendo. As pessoas na sala tinham se tornado uma plateia. Ele as apanhara. Ele as apanhara, porra! Já não importava mais que estivesse num botequim barato, cheio de idiotas tomando cerveja. O que importava eram o riso e o amor deles. Fluíam para Toby em ondas. Primeiro eles os fez rir, depois os fez gritar. Nunca tinham ouvido nada semelhante, não naquele lugar vagabundo, nem em lugar nenhum.

Aplaudiram e deram vivas e quase puseram a casa abaixo antes de se darem por satisfeitos. Presenciavam o nascimento de um fenómeno. É claro, não podiam saber disso, mas Clifton Lawrence, O'Hanlon e Rainger o sabiam. E Toby Temple sabia.

Finalmente Deus havia cumprido o prometido.


O Reverendo Damian agitou a tocha ardente bem perto do rosto de Josephine e gritou:

─ Ó Deus Todo-Poderoso, consumi pelo fogo o mal que existe nesta criança pecadora!

─ Amém!

Josephine podia sentir as chamas lambendo-lhe o rosto e o Reverendo Damian berrou:

─ Ajudai esta pecadora a exorcizar o Demónio, ó Deus. Nós o faremos sair à força de orações, nós o queimaremos, nós o afogaremos.

E suas mãos agarraram Josephine, seu rosto foi mergulhado de repente num tanque de madeira cheio d'água enquanto vozes entoavam cânticos no ar frio da noite, implorando ao Todo-Poderoso pela Sua ajuda. Josephine se debateu tentando se soltar, lutando para respirar, e quando finalmente a tiraram, semi-inconsciente, o Reverendo Damian declarou:

─ Nós Vos agradecemos, doce Jesus, pela Vossa misericórdia. Ela está salva! Ela está salva!

Houve um grande regozijo, e todos se sentiram espiritualmente reanimados. Exceto Josephine, cujas dores de cabeça foram ficando cada vez piores.

10

─ Consegui um contrato para você em Las Vegas ─ disse Clifton Lawrence a Toby. ─ Contratei Dick Landry para trabalhar no seu número. Ele é o melhor diretor de cena do momento.

─ Fantástico! Qual é o hotel? O Flamingo? O Thunderbird?

─ O Oasis.

─ O Oasis?

Toby olhou para Clifton para ver se ele estava brincando.

─ Eu nunca...

─ Eu sei. ─ Clifton sorriu. ─ Você nunca ouviu falar nele. Muito menos Eles ouviram falar de você. Na realidade eles não estão contratando você, eles estão contratando a mim. Estão se fiando na minha palavra de que você é bom.

─ Não se preocupe ─ prometeu Toby. ─ Eu serei.


Toby deu a notícia da sua contratação a Alice Tanner pouco antes da partida.

─ Eu sei que você vai ser um grande astro ─ disse ela. ─ A sua hora chegou. Vão adorar você, querido.

Abraçou-o e disse:

─ Quando é que partimos, e o que é que devo vestir na noite da estreia de um jovem cômico genial?

Toby sacudiu a cabeça com pesar.

─ Gostaria de poder levar você, Alice. O problema é que vou

trabalhar dia e noite, preparando o novo material.

Ela tentou esconder o desapontamento.

─ Compreendo. Quanto tempo você vai ficar fora? ─ perguntou, abraçando-o mais forte ainda.

─ Não sei ainda. Sabe como é, é uma espécie de contrato em aberto.

Alice sentiu uma pequenina pontada de preocupação, mas sabia que estava sendo boba.

─ Telefone-me sempre que puder ─ disse.

Toby a beijou e saiu feliz da vida.


Era como se Las Vegas, em Nevada, tivesse sido criada única e exclusivamente para o prazer de Toby Temple. Ele o sentiu no momento em que viu a cidade. Tinha uma maravilhosa energia cinética à qual era sensível, um poder vivo e pulsante comparável ao que ardia dentro dele. Toby foi de avião com O'Hanlon e Rainger, e quando chegaram ao aeroporto havia uma limusine do Oasis Hotel à espera deles. Era o primeiro gostinho que Toby saboreava do mundo maravilhoso que dentro em breve seria seu. Adorou recostar-se no grande carro negro e ouvir o motorista perguntar:

─ Fez uma boa viagem, Sr. Temple?

Era a gente humilde que farejava o sucesso antes mesmo que estourasse ─ pensou Toby.

─ Foi a chateação habitual ─ disse Toby despreocupadamente.

Surpreendeu o sorriso que O'Hanlon e Rainger trocaram, e sorriu para eles. Sentiu-se muito próximo deles. Formavam um time, o melhor time do mundo dos espetáculos.

O Oasis ficava bem afastado da glamourosa Strip, muito distante dos hotéis mais famosos. Quando a limusine se aproximou do hotel, Toby viu que não era nem tão grande nem tão elegante quanto o Flamingo ou o Thunderbird, mas tinha algo de melhor, muito melhor. Tinha um enorme letreiro na frente que anunciava:

ESTRÉIA 4 DE SETEMBRO

LILI WALLACE

TOBY TEMPLE


O nome de Toby estava escrito em letras luminosas que pareciam ter três mil metros de altura. Não havia nada mais bonito do que aquilo na porcaria do mundo inteiro.

─ Olhe só aquilo! ─ disse ele num tom reverente.

O'Hanlon olhou de relance para o letreiro e disse:

─ Pois é! Que é que acha daquilo? Lili Wallace! ─ E riu. ─ Não se preocupe, Toby. Depois da estréia seu nome estará em cima dela.

O gerente do Oasis, um homem de meia-idade e rosto pálido chamado Parker, veio receber Toby e o acompanhou pessoalmente até a suíte que lhe fora reservada, desfiando lisonjas durante todo o percurso:

─ Não posso lhe dizer como estamos satisfeitos por tê-lo aqui conosco, Sr. Temple. Se precisar de qualquer coisa que seja ─ qualquer coisa ─ é só me dar um telefonema.

As boas-vindas, Toby se deu conta, eram para Clifton Lawrence.

Aquela era a primeira vez que o fabuloso agente havia se dignado a apresentar um de seus clientes naquele hotel. O gerente do Oasis tinha esperança de que dali em diante o hotel fosse conseguir alguns dos verdadeiros grandes astros de Lawrence.

A suíte era enorme. Consistia em três quartos, uma grande sala, uma cozinha, um bar e um terraço. Numa mesinha na sala havia uma variedade de garrafas de bebidas, flores e uma enorme cesta de frutas frescas e queijos, com os comprimentos da gerência.

─ Espero que seja satisfatório, Sr. Temple? ─ disse Parker.

Toby olhou em volta e pensou em todos os quartinhos sujos e infectados de baratas e moscas em que tinha vivido.

─ Sim. Está ok.

─ O Sr. Landry se registou uma hora atrás. Preparei a Sala Mirage para os seus ensaios às três horas.

─ Obrigado.

─ Lembre-se, se houver alguma coisa de que precise ─ e o gerente saiu fazendo uma reverência.

Toby ficou parado ali saboreando suas acomodações. Ia viver em lugares como aquele para o resto da vida. Teria tudo ─ mulheres, dinheiro, aplausos. Mais do que tudo, os aplausos. Gente sentada ali, rindo, aclamando-o e amando-o. Isto era a sua comida e a sua bebida. Não precisava de mais nada.


Dick Landry estava com vinte e tantos anos, era um homem franzino, magro, calvo e tinha pernas longas e graciosas. Havia começado como extra, na Broadway, e fora progredindo de figurante ocasional a primeiro bailarino, depois a coreógrafo e a diretor.

Landry tinha gosto e a percepção do que uma plateia queria. Não podia fazer um número ruim ficar bom, mas podia fazer com que parecesse bom, e se lhe dessem um bom número era capaz de torná-lo sensacional. Até dez dias antes, Landry nunca tinha ouvido falar de Toby Temple, e a única razão por que tinha interrompido a sua programação frenética para vir a Las Vegas e dirigir Toby fora o pedido de Clifton Lawrence. Fora ele quem lhe dera a primeira chance.

Quinze minutos depois de ter conhecido Toby Temple, Landry soube que estava trabalhando com um gênio. Ouvindo o monólogo de Toby, surpreendeu-se rindo alto coisa que raramente fazia. Não eram tanto as piadas, mas sim o jeito encantador com que ele as contava. Era tão pateticamente sincero que partia o coração da gente. Era um adorável Chicken Little, morrendo de medo que o céu estivesse prestes a cair sobre a sua cabeça. A gente sentiu vontade de correr prestes a cair nele, abraçá-lo e garantir-lhe que estava tudo bem.

Quando Toby acabou, tudo que Landry pôde fazer foi se conter para não aplaudi-lo. Foi até o palco, onde Toby estava.

─ Você é bom ─ disse com entusiasmo. ─ Bom mesmo.

Satisfeito, Toby disse:

─ Obrigado. Clifton disse que você pode me ensinar a ser grande.

─ Vou tentar ─ disse Landry. ─ A primeira coisa que você precisa é aprender a diversificar seus talentos. Enquanto só for capaz de ficar de pé no palco e contar piadas, não será mais que um cômico comum. Deixe-me ouvi-lo cantar.

Toby sorriu.

─ Alugue um canário, Não sei cantar.

─ Tente.

Toby tentou. Landry ficou satisfeito.

─ Sua voz não é grande coisa ─ disse a Toby, ─ mas você tem ouvido. Com as músicas certas, poderá disfarçá-la tão bem que vão pensar que você é o Sinatra. Arranjaremos alguns compositores para preparar o material especialmente para você. Não quero que você cante as mesmas canções que todo mundo está cantando. Vamos ver como é que você se movimenta.

Toby se movimentou.

Landry o observou cuidadosamente.

─ Bom, bom. Você nunca será um dançarino, mas vou fazer com que pareça que é.

─ Por quê? ─ perguntou Toby. ─ Gente que canta e dança tem por aí aos montes.

─ E cômico também ─ retrucou Landry. ─ Vou transformá-lo num artista completo.

Toby sorriu e disse:

─ Vamos arregaçar as mangas e dar duro.

E puseram mãos à obra. O'Hanlon e Rainger estavam em todos os ensaios, acrescentando falas, criando novos números, vendo Landry dirigir Toby. Era uma programação exaustiva. Toby ensaiou até todos os músculos do corpo ficarem doridos, mas perdeu dois quilos e ficou esguio e rijo. Tomava uma aula de canto por dia, e fez exercícios até começar a cantar dormindo. Trabalhava nos novos números cômicos com os "meninos", então parava para aprender novas canções que haviam sido escritas para ele, e já estava na hora de ensaiar de novo.

Quase todos os dias, Toby encontrava um recado de que Alice Tanner havia telefonado. Lembrava-se de como ela tinha tentado impedir o seu progresso. "Você ainda não está pronto." Bem, agora estava pronto, e o fizera apesar dela. Que fosse para o inferno. Jogava fora os recados. Finalmente pararam de vir. Mas os ensaios continuaram.

De repente a noite da estréia havia chegado.


Há uma mística que envolve o nascimento de um novo astro. É como se uma mensagem telepática misteriosa fosse transmitida instantaneamente para os quatro cantos do mundo dos espetáculos. Através de uma espécie de alquimia mágica a notícia se espalha por Londres e Paris, por Nova York e Sydney; onde quer que haja um teatro a notícia chega.

Cinco minutos depois de Toby ter entrado no palco do Oasis Hotel, já corria a notícia de que havia um novo astro no horizonte.


Clifton Lawrence veio de avião para assistir à estréia e ficou para o segundo espetáculo. Toby ficou lisonjeado. Clifton estava negligenciando os outros clientes por causa dele. Quando o espetáculo acabou, os dois foram até o bar do hotel.

─ Viu só todas as celebridades presentes? ─ perguntou Toby. ─ Quando vieram até meu camarim quase morri.

Clifton sorriu do entusiasmo dele. Era agradavelmente diferente de seus outros clientes, já saturados. Toby era um gatinho. Um gatinho doce e inocente.

─ Eles sabem reconhecer um talento quando o vêem ─ disse Clifton.

E o Oasis também. Querem fazer um novo contrato com você. Querem aumentar seu salário de sessenta e cinco para cem por semana.

Toby deixou cair a colher.

─ Cem por semana? É fantástico, Clifton!

─ E recebi umas duas propostas de caras do Thunderbird e do El Rancho Hotel.

─ Já? ─ perguntou Toby, eufórico.

─ Não molhe as calças. É só para se apresentar no bar ─ sorriu. ─ É aquela velha história, Toby. Para mim você é manchete, e para você você é manchete, mas para alguém que é manchete você é manchete?

Levantou-se.

─ Tenho que pegar um avião para Nova York. Viajo para Londres amanhã.

─ Londres? Quando é que vai estar de volta?

─ Dentro de algumas semanas.

Clifton se inclinou para ele e disse:

─ Ouça, meu caro rapaz. Você tem mais duas semanas aqui, trate-as como se fosse uma escola. Toda a noite, quando estiver naquele palco, quero que você fique tentando descobrir como poderia ser melhor. Convenci O'Hanlon e Rainger a não irem embora. Estão dispostos a trabalhar com você noite e dia. Use-os. Landry voltará nos fins de semana para ver como as coisas estão indo.

─ Certo ─ disse Toby. ─ Obrigado, Clifton.

─ Oh, eu quase esqueci ─ disse Clifton Lawrence de maneira casual; tirou um embrulhinho do bolso e entregou-o a Toby.

No embrulho havia um par de lindas abotoaduras de brilhantes. Tinham o formato de estrela.


Sempre que Toby tinha algum tempo livre, descontraía-se na grande piscina nos fundos do hotel. Vinte e cinco moças tomavam parte no espetáculo e sempre havia uma dúzia delas por ali, com roupas de banho, tomando sol. Apareciam na atmosfera tórrida do meio-dia com flores tardias na primavera, cada uma mais bonita que a outra. Toby nunca tinha tido problemas para arranjar garotas, mas o que lhe estava acontecendo era uma experiência totalmente nova.

As dançarinas nunca tinham ouvido falar em Toby Temple antes, mas o nome dele estava lá em cima no letreiro luminoso, aquilo era o suficiente. Ele era um astro, e elas lutavam entre si pelo privilégio de ir para a cama com ele.


As duas semanas seguintes foram maravilhosas para Toby. Acordava por volta do meio-dia, tomava café no restaurante, onde o mantinham ocupado dando autógrafos, e então ensaiava durante uma ou duas horas. Depois, apanhava uma ou duas das beldades de pernas bem-feitas na piscina e subia com elas para a suíte, para uma tarde de atividade na cama.

E Toby aprendeu uma coisa nova. Por causa dos biquinis cavadíssímos que usavam no palco, elas tinham que se livrar dos pêlos púbicos, mas depilavam-se com cera de tal maneira que apenas uma tirinha de pêlos encaracolados ficava no centro da protuberância carnosa, tornando a fenda mais convidativa.

─ É como um afrodisíaco ─ confessou uma das moças a Toby. ─ Algumas horas num par de calças bem justas e a gente fica como uma ninfomaníaca alucinada.

Toby não se deu o trabalho de aprender o nome de nenhuma delas.

Eram todas "benzinho" ou "querida", e se tornaram um maravilhoso borrão indistinto e sensual de coxas, lábios e corpos ávidos.

Na última semana de seu contrato no Oasis, Toby recebeu uma visita. Tinha acabado o primeiro espetáculo e estava no camarim, tirando a maquilagem com creme, quando o maítre d'hotel abriu a porta e disse num tom reverente:

─ O Sr. Al Caruso gostaria que se reunisse a ele na sua mesa.

Al Caruso era um dos grandes nomes mais importantes de Las Vegas. Sabia-se publicamente que era dono de um hotel, e dizia-se que tinha participação em mais dois ou três. Também se dizia que ele tinha conexões com o mundo do crime, mas aquilo não era conta de Toby. O que era importante era que se Al Caruso gostasse dele poderia conseguir contratos em Las Vegas pelo resto da vida. Acabou de se vestir apressadamente e foi para o restaurante encontrar-se com Caruso.

Al Caruso era um homem baixo, de cinquenta anos, cabelos grisalhos, olhos castanhos e um pouco barrigudo. Lembrava a Toby, um Papai Noel em miniatura. Quando Toby se aproximou da mesa, Caruso se levantou, estendeu a mão, sorriu acolhedoramente disse:

─ Al Caruso. Eu só queria dizer o que acho de você, Toby. Puxe uma cadeira.

Havia mais dois homens na mesa de Caruso. Ambos vestiam ternos escuros, eram corpulentos, bebericavam Coca-Cola, e não disseram uma palavra durante todo o encontro. Toby nunca soube como se chamavam. Normalmente jantava depois do primeiro espetáculo. Naquele momento estava faminto, mas Caruso obviamente tinha acabado de comer, e Toby não queria parecer mais interessado em comida do que no seu encontro com o grande homem.

─ Estou impressionado com você, garoto ─ disse Caruso. ─ Realmente impressionado

E sorriu para Toby com aqueles olhos castanhos enganadores.

─ Obrigado, Sr. Caruso ─ disse Toby satisfeito. ─ Isso significa muito para mim.

─ Chame-me de Al.

─ Sim, senhor... Al.

─ Você tem futuro, Toby. Já vi muita gente subir e já vi muita gente desaparecer, mas os que têm talento duram muito tempo. Você tem talento.

Toby podia sentir um calor agradável ir se espalhando pelo seu corpo. Considerou rapidamente se deveria dizer a Al Caruso para discutir negócios com Clifton Lawrence; mas decidiu que poderia ser melhor se ele mesmo cuidasse do assunto. Se Caruso está entusiasmado a este ponto comigo, ─ pensou Toby, ─ poderia conseguir um negócio melhor do que Clifton. Decidiu que deixaria Al Caruso fazer a primeira oferta e depois tentaria seriamente obter o melhor preço.

─ Quase molhei as calças ─ dizia-lhe Caruso. ─ Aquele seu número do macaco é a coisa mais engraçada que já ouvi.

─ Vindo do senhor, é realmente um grande elogio ─ disse Toby com sinceridade.

Os olhinhos do Papai Noel em miniatura estavam cheios de lágrimas de riso. Ele puxou um lenço branco de seda e as enxugou. Virou-se para os dois acompanhantes:

─ Eu não disse que ele era um homem engraçado?

Os dois concordaram.

Al Caruso tornou a se virar para Toby.

─ Vou lhe dizer por que vim procurá-lo, Toby.

Aquele era o momento mágico, a sua entrada nos tempos áureos. Clifton Lawrence estava fora, em algum lugar na Europa, tratando de negócios para seus clientes antigos, quando devia estar fazendo aquele negócio. Bem, Lawrence teria uma surpresa de verdade esperando por ele quando voltasse.

Toby se reclinou e disse, sorrindo de maneira cativante:

─ Estou ouvindo, Al.

─ Millie ama você.

Toby piscou, certo de que não tinha entendido alguma coisa. O velho o olhava, os olhos cintilando.

─ Eu, eu sinto muito ─ disse Toby confuso. ─ Que foi que disse?

Al Caruso deu um sorriso carinhoso.

─ Millie ama você. Ela me disse.

Millie? Seria a mulher de Caruso? A filha? Toby começou a falar, mas Al Caruso o interrompeu.

─ Ela é uma grande garota. Eu já a sustentei há uns três ou quatro anos.

Virou-se para os outros dois homens:

─ Quatro anos?

Eles concordaram.

Al Caruso tornou a se virar para Toby. ─ Eu amo aquela garota, rapaz. Realmente sou louco por ela.

Toby sentiu o sangue começar a lhe fugir do rosto. ─ Sr. Caruso...

Al Caruso disse:

─ Millie e eu temos um trato. Eu não a engano, a não ser com minha mulher, e ela não me engana, a não ser que me diga. ─ Sorri radiante para Toby, e daquela vez ele viu algo além daquele sorriso angelical que fez com que seu sangue gelasse.

─ Sr. Caruso...

─ Sabe de uma coisa, Toby? Você é o primeiro sujeito com quem ela me engana. ─ Virou-se para os outros dois. ─ Não é a pura verdade?

Eles concordaram.

Quando Toby falou, sua voz estava trémula.

─ Eu... eu juro por Deus que não sabia que Millie era a sua garota. Se eu tivesse ao menos sonhando isso, nunca teria tocado nela. Não teria chegado nem a cem metros de distância dela, Sr. Caruso...

O Papai Noel sorriu para ele.

─ Pode me chamar de Al.

─ Al.

Saíra como grasnido. Toby podia sentir a transpiração escorrendo pelos seus braços.

─ Escute, Al. Eu, eu nunca mais a verei. Nunca. Acredite-me, eu...

Caruso estava olhando fixo para ele.

─ Ei! Acho que você não estava ouvindo o que eu disse.

Toby engoliu em seco.

─ Sim. Sim, estava. Ouvi cada palavra que você disse. E você nunca mais terá que se preocupar com...

─ Eu disse que a garota ama você. Se ela quer você, então eu quero que ela tenha você. Quero que ela seja feliz. Compreende?

─ Eu...

A mente de Toby girava em círculos. Durante um momento louco, havia realmente pensado que o homem sentado defronte dele estava querendo uma vingança. Em vez disso Al Caruso estava lhe oferecendo a sua garota. Toby quase riu alto de alívio.

─ Jesus, Al ─ disse Toby. ─ Claro, o que você quiser.

─ O que Millie quiser.

─ Sim. O que Millie quiser.

─ Eu sabia que você era um bom homem ─ disse Al Caruso, virando-se para os outros dois. ─ Eu não disse que Toby Temple era um bom homem?

Eles balançaram a cabeça em silêncio e bebericaram as Coca-Colas.

Al Caruso levantou-se, e os dois homens que o acompanhavam puseram-se de pé imediatamente, postando-se um de cada lado dele.

─ Eu mesmo vou oferecer a vocês a festa de casamento ─ disse Al Caruso. ─ Alugaremos o grande salão de banquetes no Morocco. Não precisa se preocupar com nada, cuidarei de tudo.

As palavras chegaram até Toby como se estivessem sendo filtradas, vindas de uma enorme distância. Sua mente registava o que Al Caruso dizia, mas não fazia nenhum sentido para ele.

─ Espere um minuto ─ protestou Toby. ─ Eu não posso...

Caruso pôs uma mão poderosa no ombro de Toby.

─ Você é um homem de sorte ─ disse. Isto é, se Millie não tivesse me dito que vocês realmente se amam, se eu achasse que só estava trepando com ela, como se fosse uma putinha de dois dólares qualquer, este negócio todo poderia ter um final diferente. Entende o que estou querendo dizer?

Toby se surpreendeu olhando involuntariamente para os dois homens de preto, e os dois balançaram a cabeça, concordando.

─ Você encerra a sua temporada aqui no sábado à noite ─ disse Caruso. ─ Faremos o casamento no domingo.

A garganta de Toby tinha ficado seca novamente.

─ Eu... o negócio é que, Al, infelizmente tenho alguns compromissos. Eu...

─ Eles esperarão. ─ o rosto angelical tornou a se abrir num sorriso. ─ Eu mesmo vou escolher o vestido de noiva de Millie. Boa noite, Toby.

Toby ficou parado ali, olhando fixo por muito tempo na direção onde os três vultos haviam desaparecido.

Não tinha a menor idéia de quem fosse Millie.

Na manhã seguinte o medo de Toby havia se evaporado. O imprevisto do que havia acontecido fizera com que ele abrisse a guarda. Mas aqueles não eram mais os tempos de Al Caruso. Ninguém podia obrigá-lo a se casar com alguém com que ele não quisesse se casar. Al Caruso não era um malfeitor barato, um brutamontes; era um proprietário de hotel respeitável. Quanto mais Toby pensava na situação, mais engraçada lhe parecia. Começou a retocá-la em sua mente, buscando mais razões para rir. Na verdade não tinha deixado Caruso assustá-lo, é claro que não, mas contaria como se tivesse ficado aterrorizado. "Vou até a tal mesa, e lá está Caruso, sentado com os seis gorilas, está imaginando? Todos eles estão armados, dá para perceber o volume das armas sob as roupas." Oh, sim, ia dar uma grande história. Quem sabe ele não criaria um número hilariante a partir dela?

Durante o resto da semana Toby se manteve afastado da piscina e do cassino, e evitou todas as garotas. Não estava com medo de Al Caruso, mas para que correr riscos desnecessários? Toby tinha planejado deixar Las Vegas de avião, no domingo ao meio-dia. Em vez disso, conseguiu que um carro de aluguel fosse trazido até o estacionamento dos fundos do hotel no sábado à noite. O carro estaria ali esperando por ele. Arrumou as malas antes de descer para fazer o último espetáculo, de forma que estaria pronto para partir para Los Angeles no momento que acabasse. Ficaria longe de Las Vegas durante algum tempo. Se Al Caruso estivesse realmente falando sério, Clifton Lawrence podia dar um jeito.

O último desempenho de Toby foi sensacional. Recebeu uma enorme ovação, a primeira de sua vida. Ficou parado no meio do palco, sentindo as ondas de amor que emanavam da plateia banhá-lo numa incandescência cálida e suave. Bisou um dos números, pediu licença para se retirar e saiu apressado para o quarto. Aquelas haviam sido as melhores três semanas da sua vida. Naquele curto período de tempo, transformara-se de um João-ninguém, que ia para a cama com garçonetes e aleijadas, num astro que tinha trepado com a amante de Al Caruso. Garotas bonitas estavam suplicando que ele as levasse para a cama, as plateias o admiravam e os grandes hotéis o queriam. Tinha conseguido, e sabia que aquilo era apenas o começo. Tirou a chave do quarto do bolso. Quando abriu a porta, uma voz familiar gritou:

─ Entre, menino.

Muito lentamente, Toby entrou no quarto. Al Caruso e seus dois amigos estavam lá dentro. Um rápido tremor de apreensão percorreu seu corpo. Mas estava tudo bem, Caruso estava sorrindo benignamente e dizendo:

─ Você esteve ótimo esta noite, Toby, realmente fantástico.

Toby começou a se descontrair.

─ Obrigado, Al.

Queria que todos eles saíssem, de forma que pudesse ir embora.

─ Você trabalha demais ─ disse Al Caruso, virou-se para os dois guarda-costas. ─ Eu não disse que nunca tinha visto ninguém trabalhar tanto?

Os dois concordaram.

Caruso tornou a se virar para Toby.

─ Eu... a Millie ficou meio chateada porque você não telefonou para ela. Disse a ela que era porque você estava trabalhando demais.

─ É isso mesmo ─ concordou Toby rapidamente. ─ Fico satisfeito que você compreenda, Al.

Al sorriu de maneira compreensiva.

─ Claro. Mas você sabe o que eu não compreendo? Você nem telefonou para perguntar a que horas vai ser o casamento.

─ Eu ia telefonar de manhã.

Al Caruso deu uma gargalhada e disse num tom de censura:

─ De Los Angeles?

Toby teve um pequeno sobressalto de ansiedade.

─ De que é que está falando, Al?

Caruso olhou para ele reprovadoramente.

─ Você está com as malas feitas ali dentro. ─ Beliscou a bochecha de Toby galhofeiramente. ─ Eu lhe disse que mataria qualquer um que ferisse Millie.

─ Espere um minuto! Juro por Deus, eu não ia...

─ Você é um bom garoto, mas é burro, Toby. Acho que é porque você é um gênio, não é?

Toby olhou para o rosto gorducho e sorridente, sem saber o que dizer.

─ Você tem que acreditar em mim ─ disse Al Caruso, num tom carinhoso. ─ Sou seu amigo. Quero me assegurar de que nada de mau lhe aconteça. Pelo bem de Millie. Mas se você não quer me ouvir, que é que posso fazer? Você sabe como se faz uma mula obedecer?

Toby sacudiu a cabeça idiotamente.

─ Primeiro a gente bate na cabeça dela com um pedaço de pau, bem grosso e comprido.

Toby sentiu o medo ir-lhe subindo pela garganta acima.

─ Qual é o seu braço bom?

─ O meu... meu braço direito ─ murmurou Toby.

Caruso assentiu alegremente e se virou para os dois homens.

─ Quebrem-no ─ disse ele.

Saído de algum lugar, apareceu um pedaço de cano nas mãos de um dos homens. Os dois começaram a avançar para cima de Toby. O rio de medo se transformou numa enchente repentina que fez seu corpo tremer.

─ Pelo amor de Deus ─ Toby se ouviu dizer, em vão. ─ Não podem fazer isso.

Um dos homens o golpeou com violência no estômago. No segundo seguinte, Toby sentiu uma dor torturante, enquanto o pedaço de cano atingia repetida e brutalmente o seu braço direito, esmigalhando os ossos. Ele caiu no chão, contorcendo-se numa agonia insuportável. Tentou gritar, mas não conseguia recobrar o fôlego. Com os olhos cheios de lágrimas, olhou para cima e viu Al Caruso debruçado sobre ele, sorrindo.

─ Agora será que terei sua atenção?

Toby assentiu, agoniado.

─ Bem ─ disse Caruso. Virando-se para um dos homens. ─ Abra a braguilha dele.

O homem se abaixou e abriu o zíper da braguilha de Toby. Apanhou o cano e puxou com ele o pênis de Toby para fora.

Caruso ficou parado ali um momento, olhando para ele.

─ Você é um homem de sorte, rapaz. Você é muito bem servido.

Toby estava tomado por um horror como jamais havia sentido.

─ Oh, meu Deus... por favor... não... não faça isso comigo ─ balbuciou.

─ Eu seria incapaz de lhe fazer mal ─ disse-lhe Caruso. ─ Enquanto você tratar bem Millie, serei seu amigo. Se algum dia ela me disser que você fez alguma coisa para feri-la... qualquer coisa.. está me compreendendo?

Cutucou o braço quebrado de Toby com a ponta do sapato e Toby gritou de dor.

─ Estou satisfeito porque nos compreendemos um ao outro ─ Caruso sorriu prazerosamente. ─ O casamento é à uma hora.

A voz de Caruso estava indo e vindo e Toby sentiu que estava perdendo a consciência. Mas sabia que tinha que aguentar mais um pouco.

─ Eu não... posso ─ choramingou. ─ Meu braço...

─ Não se preocupe com isso ─ disse Al Caruso. ─ Um médico já está a caminho para cuidar de você. Ele vai engessar o seu braço e lhe dar um negócio para que você não sinta dor. Os rapazes passarão aqui amanhã para apanhá-lo. Esteja pronto, hein?

Toby ficou ali deitado, num pesadelo de agonia, olhando para aquele rosto sorridente de Papai Noel, sem conseguir acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Viu o pé de Caruso se mover na direção do seu braço de novo.

─ Claro ─ gemeu Toby. ─ Eu estarei pronto...

E perdeu a consciência.


11

O casamento, um acontecimento de grande pompa, realizou-se no salão de baile do Morocco Hotel. Parecia que a metade de Las Vegas estava presente. Havia artistas e proprietários de todos os outros hotéis presentes, Al Caruso e umas duas dúzias dos seus amigos, homens discretos, vestidos de maneira conservadora, a maioria dos quais não bebia. Os arranjos de flores luxuriantes estavam espalhados por toda a parte, havia conjuntos de músicos circulando, um banquete gigantesco e duas fontes de onde jorrava champanha. Al Caruso tinha cuidado de tudo.

Todo mundo se solidarizava com o noivo, cujo braço estava engessado, resultado de uma queda acidental numa escada. Mas todos comentavam que casal maravilhoso formavam o noivo e a noiva, e que casamento maravilhoso era aquele.

Toby estivera tão entorpecido por causa dos remédios que o médico lhe dera que passara toda a cerimónia alheio ao que estava acontecendo. Então, à medida que o efeito dos remédios começou a passar, e a dor tomou conta dele de novo, a raiva e o ódio despertaram com mais força. Tinha vontade de berrar, contando a todo mundo presente ali na sala a indescritível humilhação que lhe fora imposta.

Toby virou-se para olhar sua noiva do outro lado da sala. Agora se lembrava de Millie. Era uma garota bonita, de vinte anos, cabelo louro cor de mel e um corpo bem-feito. Toby se lembrava que ela havia rido mais alto do que as outras das histórias que contara, e que o seguiu por toda a parte. Uma outra coisa também lhe voltou à memória. Ela havia sido uma das poucas que tinha se recusado a ir para a cama com ele, o que servira apenas para espicaçar seu apetite. Agora tudo estava lhe voltando.


─ Sou louco por você ─ havia dito. ─ Não gosta de mim?

─ É claro que gosto ─ ela tinha respondido. ─ Mas eu tenho um namorado.

Por que não lhe dera ouvidos? Em vez disso ele a persuadira a subir até o seu quarto para um drinque e então havia começado a lhe contar histórias engraçadas. Millie estava rindo tanto que mal percebeu o que Toby estava fazendo até o momento em que se viu nua e na cama.

─ Por favor, Toby ─ ela havia suplicado. ─ Não. O meu namorado vai ficar zangado.

─ Esqueça o seu namorado. Cuidarei desse chato mais tarde ─ dissera Toby. ─ Agora vou cuidar de você.

Tinham tido uma noite louca de paixão. De manhã, quando Toby acordara, Millie estava deitada ao seu lado, chorando. Num humor benevolente, ele a tomara nos braços e perguntara:

─ Ei, querida, o que é que houve? Você não gostou?

─ Você sabe que sim. Mas...

─ Ora, vamos, pare com isso ─ Toby havia dito. ─ Eu amo você.

Ela havia se levantado apoiada nos cotovelos, e olhando bem nos olhos dele, dissera:

─ Ama mesmo, de verdade, Toby? Mas de verdade mesmo?

─ Droga, mas é claro que sim.

Tudo de que ela precisava era o que ele lhe daria dali a dois segundos. Demonstrou ser um tônico revigorante.

Millie o havia observado voltar do banheiro, enxugando o cabelo ainda molhado e assobiando trechos da sua canção-tema. Feliz da vida, ela tinha sorrido e dito:

─ Acho que me apaixonei por você no momento em que o vi pela primeira vez, Toby.

─ Puxa, isso é maravilhoso. Vamos pedir o café.


E aquilo fora tudo... Até aquele momento. Por causa de uma idiota com quem só tinha trepado uma noite, sua vida inteira tinha virado uma terrível trapalhada.

Toby ficou parado ali, naquele momento, observando Millie vir andando na sua direção, no seu vestido de noiva branco, e amaldiçoou a si mesmo, amaldiçoou o seu pênis e amaldiçoou o dia em que tinha nascido.


Na limusine, o homem no banco da frente riu e disse cheio de admiração:

─ Eu realmente tenho que dar os parabéns ao senhor, chefe. O pobre coitado não soube nem o que tinha acertado ele.

Caruso sorriu com benevolência. Tinha dado certo. Desde que sua esposa, que tinha temperamento de uma megera, descobrira sobre o seu caso com Millie, Caruso soubera que ia ter que arranjar um jeito de se livrar da corista loura.

─ Lembre-me de verificar se ele está tratando bem Millie ─ disse num tom suave.


Toby e Millie se instalaram numa casinha em Benedict Canyon. No princípio, Toby passava horas imaginando meios de se livrar do casamento. Ia fazer Millie tão infeliz que ela pediria o divórcio. Ou então armaria uma cilada para apanhá-la com outro homem, e então pediria o divórcio. Ou simplesmente a deixaria e desafiaria Caruso a fazer alguma coisa a respeito do assunto. Mas mudou de idéia depois de uma conversa com Dick Landry, o diretor.

Estavam almoçando no Bel Air Hotel, algumas semanas depois do casamento, e Landry perguntou:

─ Você conhece bem Al Caruso?

Toby olhou para ele.

─ Por quê?

─ Não se meta com ele, Toby. É um assassino. Vou lhe contar uma história que sei que é verdadeira. O irmão caçula de Caruso se casou com uma garota de dezenove anos, recém-saída de um convento. Um ano depois, o rapaz apanhou a mulher na cama com um outro sujeito. Ele contou para Al.

Toby estava ouvindo, os olhos pregados em Landry.

─ Que foi que aconteceu?

─ Os capangas de Caruso pegaram um cutelo de açougueiro e cortaram fora a pica do sujeito. Encharcara de gasolina e puseram fogo enquanto o cara assistia. Então o largaram sangrando até a morte.

Toby se recordou de Caruso dizendo: "Abra a braguilha dele" e as mãos ásperas mexendo no zíper, e começou a suar frio. De repente sentiu-se nauseado. Agora sabia com uma terrível certeza que não havia jeito de escapar.


Josephine descobriu um jeito de escapar quando tinha dez anos. Era uma porta para um outro mundo, onde podia se esconder dos castigos de sua mãe e das ameaças constantes do jogo do inferno e da danação. Era um mundo cheio de mágica e de beleza. Sentava-se na sala escura de projeções de um cinema, hora após hora, e ficava admirando as pessoas encantadoras na tela. Todas viviam em casas lindas e usavam roupas maravilhosas, e eram todas tão felizes. E Josephine pensava: "Um dia irei para Hollywood e viverei assim". Esperava que sua mãe compreendesse.

A mãe achava que os filmes eram pensamentos do Demónio, de forma que Josephine ia escondida ao cinema, usando o dinheiro que ganhava tomando conta de crianças. O filme em cartaz naquele dia era uma história de amor, e Josephine inclinou-se para a frente, numa expectativa feliz quando começou. Primeiro apareceu a ficha técnica. Dizia: "Produzido por Sam Winters".


12

Havia dias em que Sam Winters tinha a impressão que estava dirigindo um hospício em vez de um estúdio de cinema, e que todos os pacientes estavam à solta, dispostos a apanhá-lo. Aquele era um desses dias, pois as crises tinham se empilhado, alcançado meio metro de altura. Tinha havido um outro incêndio no estúdio na noite anterior ─ o quarto; o patrocinador de My Man Frday tinha sido insultado pelo astro do programa e queria suspender a série; Bert Firestone, o menino prodígio entre diretores do estúdio, havia interrompido no meio a produção de um filme de cinco milhões de dólares; e Tessie Brand acabara de suspender a sua participação num filme que devia começar a ser filmado dentro de poucos dias.

O chefe dos bombeiros e o superintendente do estúdio estavam no gabinete de Sam.

─ Quais foram as proporções do incêndio de ontem à noite? ─ perguntou Sam.

O superintendente respondeu:

─ Perda total dos cenários, Sr. Winters. Vamos ter que reconstruir o cenário 15 inteiro. O 16 dá para consertar, mas vão ser precisos três meses.

─ Nós não temos três meses ─ retrucou Sam. ─ Pegue o telefone e alugue algum espaço com Goldwyn. Aproveite este fim de semana para começar a construir novos cenários. Ponha todo o mundo para trabalhar.

Virou-se para o chefe dos bombeiros, um homem chamado Reilly, que lembrava a Sam um ator chamado George Bancroft.

─ Tem alguém que realmente não gosta do senhor, Sr. Winters ─ disse Reilly. ─ Todos esses incêndios foram evidentemente atos criminosos. O senhor já deu uma checada nos resmungões?

"Resmungões" eram empregados descontentes que haviam sido despedidos recentemente ou que se sentiam injustiçados ou tinham queixas contra o empregador.

─ Já examinamos os arquivos de pessoal duas vezes ─ respondeu Sam. ─ Não descobrimos nada.

─ Quem quer que esteja preparando essas gracinhas sabe muito bem o que está fazendo. Está usando um dispositivo de regulagem de tempo, combinado com uma bomba incendiária de fabricação caseira.

Poderia ser um eletricista ou um mecânico.

─ Obrigado ─ disse Sam. ─ Vou passar essa informação adiante.


─ Roger Tapp telefonando do Taiti.

─ Ponha-o na linha ─ disse Sam.

Tapp era o produtor de My Man Friday, a série de televisão que estava sendo filmada no Taiti, estrelada por Tony Fletcher.

─ Qual é o problema? ─ perguntou Sam.

─ Porra, você não vai acreditar, Sam. Philip Heller, o presidente do conselho da companhia que está patrocinando o show, está aqui de visita com a família. Apareceram no local das filmagens ontem à tarde, e Tony Fletcher estava no meio de uma cena. Virou-se para eles e os insultou.

─ Que foi que ele disse?

─ Disse que dessem o fora da ilha dele.

─ Jesus Cristo!

─ É quem ele pensa que é. Heller está tão furioso que quer cancelar a série.

─ Vá procurar Heller e peça-lhe desculpas. Faça isso agora mesmo. Diga-lhe que Tony Fletcher está sofrendo um colapso nervoso. Mande flores a Sra. Fletcher, convide-os para jantar. Eu mesmo vou falar com Tony Fletcher.


A conversa durou trinta minutos. Começou com Sam dizendo: "Escute aqui, seu chupador de pica idiota..." e terminou com: "Eu também o amo, neném. Vou até aí para vê-lo assim que puder. E pelo amor de Deus, Tony... não vá levar a Sra. Fletcher para a cama!"


O problema seguinte era Bert Firestone, o diretor prodígio que estava levando a Pan-Pacific Studios à falência. O filme de Firestone, Sempre Haverá um Amanhã, já tivera cento e dez dias de filmagem e estava com mais de um milhão de dólares acima do orçamento. Agora Bert Firestone tinha interrompido as filmagens, o que significava que, além dos astros, havia cento e cinquenta extras sentados, sem fazer nada. Bert Firestone era um menino prodígio de trinta anos que passara de diretor de shows premiados de televisão a diretor de cinema em Hollywood. Os três primeiros filmes de Firestone tinham sido sucessos razoáveis, mas o quarto fora recorde de bilheteira. Com base naquele sucesso financeiro, ele tinha se transformado numa propriedade valiosa. Sam se lembrava do seu primeiro encontro com ele. Firestone parecia um garoto de quinze anos ainda imberbe, pálido tímido, com óculos de armação escura de osso, que escondiam minúsculos olhinhos míopes irritados. Sam tivera pena do garoto. Firestone não conhecia ninguém em Hollywood, por isso Sam havia se esforçado bastante para convidá-lo para jantares e para assegurar que ele fosse convidado para festas. Quando tinham discutido Sempre Haverá um Amanhã pela primeira vez, Firestone se mostrara muito respeitoso. Havia dito que estava ansioso para aprender e bebera cada palavra que Sam havia dito. Não podia ter estado mais de acordo com Sam. Se fosse contratado para fazer aquele filme, dissera a Sam, sem dúvida faria muito uso dos conhecimentos e experiência do Sr. Winters.

Aquilo fora antes de Firestone assinar o contrato. Depois de tê-lo assinado, fez Adolf Hitler parecer Albert Schweitzer. O garotinho de rosto redondo se transformara num matador da noite para o dia. Cortara toda e qualquer comunicação. Ignorara por completo as sugestões de Sam com relação ao elenco e à distribuição dos papéis, insistira em rescrever do começo ao fim um script excelente que Sam havia aprovado e modificara a maioria das locações que já haviam sido escolhidas. Sam quis afastá-lo do filme, mas o escritório de Nova York lhe havia dito para ser paciente. Rudolph Hergershorn, o presidente da companhia, estava hipnotizado com os enormes lucros do filme de Firestone. Assim Sam fora forçado a manter a calma e a não fazer nada. Parecia-lhe que a arrogância de Firestone crescia dia a dia. Sentava-se em silêncio nas reuniões da produção, e quando todos os chefes de departamento experientes acabavam de falar, começava a derrubar todo mundo. Sam rangia os dentes e aguentava calado. Em pouquíssimo tempo, Firestone ganhou o apelido de Imperador, e quando seus colaboradores não o chamavam assim, referiam-se a ele como o Escrotinho de Chicago. Alguém dissera a respeito dele:

─ Ele é um hermafrodita. Provavelmente é capaz de se foder e dar à luz um monstro de duas cabeças.

Agora no meio das filmagens, Firestone tinha feito a companhia parar.

Sam foi falar com Devlin Kelly, o chefe do departamento de arte.

─ Dev, me dê esse negócio, rápido ─ disse Sam.

─ Certo. O Escrotinho mandou...

─ Pare com isso. É Sr. Firestone.

─ Desculpe. O Sr. Firestone me pediu para construir um castelo como cenário. Ele mesmo desenhou os esboços. Você aprovou.

─ Eram bons. Que foi que aconteceu?

─ O que aconteceu foi que construímos exatamente o que aquele... o que ele queria. Mas ontem, quando foi dar uma olhada, decidiu que não o queria mais. Meio milhão de dólares descendo pela...

─ Vou falar com ele.


Bert Firestone estava do lado de fora, nos fundos do cenário 23, jogando basquete com a equipe. Tinham improvisado uma quadra, pintado as marcações e armado duas cestas.

Sam ficou ali, observando por um momento. O jogo estava custando ao estúdio dois mil dólares por hora.

─ Bert!

Firestone se virou, viu Sam, sorriu e acenou. A bola foi em sua direção, ele a apanhou, fez um drible, saltou e marcou uma cesta. Então veio andando na direção de Sam.

Enquanto olhava para o rosto infantil e sorridente, ocorreu-lhe que Bert Firestone era um psicótico. Talentoso, talvez até um gênio, mas um doido que devia ser internado. E cinco milhões de dólares do dinheiro da companhia estavam nas suas mãos.

─ Ouvi dizer que há um problema com o novo cenário ─ disse Sam. ─ Vamos resolvê-lo.

Bert Firestone sorriu preguiçosamente e disse:

─ Não há nada para resolver Sam. O cenário não serve.

Sam explodiu:

─ De que diabo você está falando? Nós lhe demos exatamente o que você pediu. Você mesmo fez os esboços. Agora diga-me o que está errado!

Firestone olhou para ele e piscou.

_ Ora, não há nada errado com ele. É só que mudei de idéia. Não quero um castelo. Resolvi que não era o ambiente certo. Sabe o que estou querendo dizer? É a cena da despedida de Ellen e Mike. Gostaria que Ellen fosse visitar Mike no convés do navio dele, quando estiver se preparando para partir.

Sam olhou para ele.

─ Nós não temos um navio nos cenários, Bert.

Bert Firestone abriu os braços, sorriu preguiçosamente e disse:

─ Construa um para mim, Sam.


─ Claro, também estou chateado ─ disse Rudolph Hergershorn, na chamada interurbana ─ mas você não pode substituí-lo, Sam. Agora estamos enterrados demais. Não temos grandes astros no filme. Bert Firestone é nosso astro.

─ Você sabe o quanto ele já ultrapassou o orçamento...

─ Eu sei. É como Goldwyn disse: "Nunca mais empregarei esse filho da puta, até precisar dele". Nós precisamos dele para acabar este filme.

─ É um erro ─ argumentou Sam. ─ Não devia permitir que ele fizesse isso impunemente.

─ Sam... você está gostando do que Firestone filmou até agora?

Sam teve que ser honesto.

─ É excelente.

─ Construa o navio dele.

O cenário ficou pronto em dez dias, e Bert reiniciou as filmagens de Sempre Haverá um Amanhã. Acabou sendo o maior sucesso de bilheteira do ano.

O problema seguinte era Tessie Brand.

Tessie era a cantora de maior sucesso no mundo dos espetáculos. Havia sido um grande golpe quando Sam Winters conseguira fazê-la assinar um contrato de três filmes com a Pan-Pacific Studios. Enquanto os outros estúdios estavam negociando com os empresários de Tessie, sorrateiramente, Sam tinha tomado um avião para Nova York, assistido ao show de Tessie. Depois a levara para jantar. O jantar havia se prolongado até as sete horas da manhã seguinte.

Tessie Brand era uma das moças mais feias que Sam já tinha visto, e provavelmente a de maior talento. E o talento era o que levava a melhor. Filha de um alfaiate do Brooklyn, Tessie nunca tivera uma aula de canto na vida. Mas quando entrava no palco e começava a cantar uma canção numa voz que estremecia as fundações, as plateias enlouqueciam. Tessie fora a substituta num musical de pouco sucesso da Broadway, que havia durado apenas seis semanas em cartaz. Na última noite, a ingénua que fazia o papel principal havia cometido o erro de telefonar dizendo que estava doente e ia ficar em casa. Tessie Brand fez a sua estreia naquela noite, cantando com o coração para o pequeno punhado de gente na plateia. Entre eles, por acaso estava Paul Varrick, um produtor da Broadway. Tessie estrelou o musical que ele produziu logo a seguir. Ela transformou o show, que era razoável, num estouro de bilheteira. Os críticos esgotaram superlativos tentando descrever Tessie, a feiosa, e sua voz incrível. Ela gravou o primeiro compacto e do dia para a noite ele se transformou no primeiro das paradas. Gravou um álbum e vendeu dois milhões de cópias no primeiro mês. Era a Rainha Midas, pois tudo que tocava se transformava em ouro. Os produtores da Broadway e as companhias de discos estavam fazendo fortunas com Tessie Brand, e Hollywood queria entrar em cena. O entusiasmo diminuiu quando viram o rosto de Tessie, mas as bilheteiras que ela obtinha lhe davam uma beleza irresistível.

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