Quando ele acordava na floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzento do que o anterior. Como o início de um glaucoma frio que apagava progressivamente o mundo. Sua mão subia e descia de leve com cada preciosa respiração. Removeu a lona de plástico e se levantou em meio às roupas e cobertas fedorentas e olhou para o leste em busca de alguma luz, mas não havia nenhuma. No sonho do qual acordara ele andava a esmo numa caverna onde a criança o levava pela mão. A luz deles brincando sobre as paredes úmidas de rocha calcária. Como peregrinos numa fábula engolidos e perdidos nas entranhas de alguma besta de granito. Buracos profundos na pedra onde a água gotejava e cantava. Contando no silêncio os minutos da terra e suas horas e dias e os anos sem cessar. Até eles se encontrarem num grande salão de pedra onde havia um lago negro e antigo. E na outra margem uma criatura que erguia sua boca gotejante do poço de pedra calcária e fitava a luz com olhos brancos e mortiços, cegos como os olhos das aranhas. Esticou a cabeça sobre a água como se tentasse sentir o cheiro daquilo que não podia ver. Agachada ali pálida e nua e translúcida, seus ossos de alabastro projetados em sombras nas rochas atrás dela. Seus intestinos, seu coração palpitante. O cérebro que pulsava num sino de vidro fosco. Balançava a cabeça para um lado e para o outro, depois soltou um gemido baixo e se virou e se afastou com uma guinada e correu sem fazer barulho para dentro da escuridão.

Com a primeira luz cinzenta ele se levantou e deixou o menino dormindo e caminhou até a estrada e se agachou e estudou a região que ficava ao sul. Árida, silenciosa, sem deus. Ele achava que o mês era outubro, mas não tinha certeza. Fazia anos que não tinha um calendário. Estavam seguindo para o sul. Não haveria como sobreviver a mais um inverno ali.

Quando havia luz suficiente para usar o binóculo ele observou o vale lá embaixo. Tudo empalidecendo na névoa. As cinzas macias voando em espirais vagas sobre o asfalto. Ele examinava o que conseguia ver. Os pedaços da estrada lá embaixo em meio a árvores mortas. Procurando alguma cor. Algum movimento. Algum traço de fumaça subindo no ar. Abaixou o binóculo e puxou para baixo a máscara de algodão que estava sobre seu rosto, limpou o nariz nas costas do punho e em seguida percorreu a região com o binóculo novamente. Depois apenas ficou sentado ali segurando o binóculo e observando a luz cinzenta do dia se solidificar sobre a terra. Sabia apenas que a criança era sua garantia. Disse: Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou.

Quando voltou o menino ainda estava adormecido. Puxou a lona de plástico azul de cima dele, dobrou-a e a carregou até o carrinho de supermercado, guardou-a e voltou com seus pratos e alguns bolos de fubá numa bolsa de plástico e uma garrafa plástica com xarope. Estendeu no chão a pequena lona que usavam como mesa e dispôs tudo e tirou o revólver do cinto e o colocou sobre o pano e depois ficou apenas sentado observando o menino dormir. Ele havia arrancado a máscara durante a noite e estava enterrado em algum lugar debaixo dos cobertores. Ele observava o menino e olhava para a estrada lá adiante através das árvores. Aquele não era um lugar seguro. Podiam ser vistos da estrada agora que era dia. O menino se virou nos cobertores. Depois abriu os olhos. Oi, Papai, ele disse.

Estou bem aqui.

Eu sei.

Uma hora mais tarde estavam na estrada. Ele empurrava o carrinho e tanto ele quanto o menino carregavam mochilas. Nas mochilas estavam coisas essenciais. Caso tivessem que abandonar o carrinho e correr para salvar suas vidas. Preso à barra do carrinho de supermercado havia um espelho retrovisor para motocicleta que ele usava para observar a estrada atrás deles. Ajeitou a mochila mais alto sobre o ombro e olhou para o terreno árido adiante. A estrada estava vazia. Lá embaixo no pequeno vale a serpentina imóvel e cinzenta de um rio. Parada e precisa. Ao longo da margem um feixe de juncos mortos. Você está bem? ele disse. O menino fez que sim. Então partiram sobre o asfalto sob a luz cinza-chumbo, caminhando vagarosamente por entre as cinzas, cada um o mundo inteiro do outro.

Atravessaram o rio por uma velha ponte de concreto e alguns quilômetros depois chegaram a um posto de gasolina de beira de estrada. Ficaram parados na estrada e o examinaram. Acho que devíamos ir ver, o homem disse. Dar uma olhada. O mato que eles atravessavam virava pó ao seu redor. Cruzaram o trecho rachado de asfalto e encontraram o tanque das bombas. A tampa tinha sumido e o homem deitou apoiado nos cotovelos para cheirar o cano, mas o odor de gasolina não passava de um rumor, fraco e velho. Ele se levantou e olhou para a construção. As bombas ali com as mangueiras estranhamente ainda no lugar. As janelas intactas. A porta para a oficina estava aberta e ele entrou. Uma caixa de ferramentas de metal de pé junto a uma das paredes. Vasculhou as gavetas mas não havia nada ali que pudesse usar. Chaves de boca de meia polegada em boas condições. Uma chave de catraca. Ficou olhando ao redor para a garagem. Um barril de metal cheio de lixo. Foi até o escritório. Poeira e cinzas em toda parte. O menino estava parado na porta. Uma mesa de metal, uma caixa registradora. Alguns velhos manuais automotivos, inchados e empapados. O linóleo estava manchado e ondulado por causa dos vazamentos do teto. Ele foi até a mesa e parou ali. Então pegou o telefone e ligou para o número que era da casa de seu pai tanto tempo atrás. O menino o observava. O que você está fazendo? ele disse.

Cerca de meio quilômetro adiante na estrada ele parou e olhou para trás. Não estamos pensando, falou. Temos que voltar. Ele empurrou o carrinho para fora da estrada e inclinou-o num local onde não poderia ser visto e deixaram suas mochilas e voltaram ao posto de gasolina. Na oficina ele arrastou para fora o barril com o lixo e virou-o de cabeça para baixo e tirou todas as garrafas de óleo de um litro. Em seguida sentaram-se no chão para decantar os resíduos de uma por uma, deixando as garrafas de cabeça para baixo escorrendo dentro de um recipiente até conseguirem quase meio litro de óleo de motor. Ele desatarraxou a tampa de plástico e enxugou a garrafa com um trapo e sentiu seu peso na mão. Óleo para que a pequena lamparina deles pudesse iluminar os longos entardeceres cinzentos, as longas auroras cinzentas. Você pode ler uma história para mim, o menino disse. Não pode, Papai? Sim, ele disse. Posso.

Do outro lado do vale do rio a estrada atravessava uma região completamente queimada. Troncos de árvores carbonizados e sem galhos estendendo-se de cada lado. Fumaça movendo-se sobre a estrada e as pontas arqueadas de fios elétricos presos aos postes de luz enegrecidos assobiando baixinho no vento. Uma casa queimada numa clareira e atrás dela uma extensão de pradaria desolada e cinzenta e uma faixa de terra enlameada e vermelha onde um canteiro de obras de estrada jazia abandonado. Mais adiante havia outdoors anunciando motéis. Tudo como havia sido antes, mas desbotado e gasto pelo tempo. No alto da colina pararam no frio e no vento, recuperando o fôlego. Ele olhou para o menino. Eu estou bem, o menino disse. O homem colocou a mão em seu ombro e apontou com a cabeça para a região descoberta lá embaixo. Ele tirou o binóculo do carrinho e ficou parado na estrada e examinou de um lado a outro a planície lá embaixo onde a silhueta de uma cidade se erguia

em meio

ao

cinza como

um rascunho feito a carvão sobre a terra desolada. Nada para se ver. Nenhuma fumaça. Posso ver? o menino disse. Sim. Claro que pode. O menino se apoiou no carrinho e ajustou o foco. O que você vê? o homem disse. Nada. Ele abaixou o binóculo. Está chovendo. Sim, o homem disse. Eu sei.

Deixaram o carrinho numa vala coberto com a lona e avançaram encosta acima em meio aos tocos negros das árvores que ainda se encontravam de pé até o local onde ele tinha visto um trecho de rocha proeminente e se sentaram sob a saliência da rocha e ficaram observando os lençóis cinzentos de chuva estendendo-se através do vale. Estava muito frio. Ficaram sentados bem juntos embrulhados cada um num cobertor por cima do casaco e depois de algum tempo a chuva parou e havia apenas água gotejando no bosque.

Quando o tempo clareou, desceram até o carrinho e puxaram a lona de cima dele e pegaram os cobertores e as coisas de que iam precisar para a noite. Subiram novamente a colina e arrumaram o acampamento na terra seca sob as rochas e o homem se sentou com os braços ao redor do menino tentando aquecê-lo. Embrulhados nos cobertores, observando o escuro sem nome vir envolvê-los. O vulto cinzento da cidade sumia com a chegada da noite como uma aparição e ele acendeu a pequena lamparina e a colocou de volta fora do alcance do vento. Então caminharam até a estrada, ele segurou a mão do menino e foram até o alto da colina onde a estrada chegava em seu ponto mais alto e de onde podiam enxergar mais adiante através da extensão de terra cada vez mais escura a sul, de pé ali no vento, envolvidos por seus cobertores, atentos a qualquer sinal de uma fogueira ou lamparina. Não havia nada. A lamparina nas rochas na parte lateral da colina não passava de um pontinho de luz e depois de algum tempo eles voltaram. Tudo úmido demais para acender uma fogueira. Fizeram sua magra refeição e se deitaram nas cobertas com a lanterna entre eles. Ele tinha trazido o livro do menino, mas o menino estava cansado demais para a leitura. A gente pode deixar a lamparina acesa até eu pegar no sono? ele disse. Sim. Claro que pode.

Ele demorou muito para pegar no sono. Depois de um tempo se virou e olhou para o homem. Seu rosto sob a luz fraca rajado de preto por causa da chuva, como algum ator do velho mundo. Posso te perguntar uma coisa? ele disse.

Pode. Claro.

A gente vai morrer?

Em algum momento. Não agora.

E ainda estamos indo para o sul.

Sim.

Para ficarmos aquecidos.

Sim.

Tudo bem.

Tudo bem o quê?

Nada. Só tudo bem.

Vá dormir.

Tudo bem.

Vou apagar a lamparina. Está bem?

Sim. Está bem.

E então mais tarde na escuridão: Posso te perguntar uma coisa?

Pode. E claro que pode.

O que você faria se eu morresse?

Se você morresse eu ia querer morrer também.

Para poder ficar comigo?

É. Para poder ficar com você.

Tudo bem.

Ele ficou deitado ouvindo a água gotejar no bosque. Um leito de pedra, isto. O frio e o silêncio. As cinzas do mundo falecido carregadas pelos ventos frios e profanos para um lado e para o outro no vazio. Levadas para adiante e espalhadas e levadas para adiante outra vez. Todas as coisas retiradas de seu suporte. Sem esteio no ar tomado pelas cinzas. Sustentadas por uma respiração, trêmulas e breves. Se apenas meu coração fosse de pedra.

Ele acordou antes da aurora e ficou vendo o dia cinzento raiar. Lento e meio opaco. Levantou-se enquanto o menino dormia e calçou os sapatos e envolto pelo cobertor caminhou através das árvores. Desceu para dentro de uma fenda na pedra e ali se agachou tossindo e tossiu durante um longo tempo. Depois ficou apenas ajoelhado nas cinzas. Ergueu o rosto para a manhã pálida. Você está aí? ele sussurrou. Vou te ver enfim? Você tem um pescoço que eu possa estrangular? Você tem um coração? Maldito seja eternamente você tem uma alma? Oh Deus, ele sussurrou. Oh Deus.

Atravessaram a cidade ao meio-dia do dia seguinte. O revólver estava à mão na lona dobrada por cima do carrinho. Mantinha o menino bem perto, ao seu lado. A cidade estava quase toda queimada. Nenhum sinal de vida. Carros na rua incrustada de cinzas, tudo coberto de cinza e poeira. Rastros fósseis na lama seca. Um cadáver na soleira de uma porta seco feito couro. Arreganhando os dentes para o dia. Ele puxou o menino mais para perto. Apenas se lembre que as coisas que você põe na cabeça ficam lá para sempre, falou. Você talvez queira pensar sobre isso.

Você se esquece de algumas coisas, não se esquece?

Sim. Você se esquece do que quer lembrar e se lembra do que quer esquecer.

Havia um lago a cerca de um quilômetro e meio da fazenda de seu tio onde ele e o tio costumavam ir no outono buscar lenha. Ele se sentava na parte de trás do barco a remo colocando a mão na espuma fria enquanto o tio se curvava sobre os remos. Os pés do velho em seus sapatos pretos de criança firmes sobre as traves verticais. Seu chapéu de palha. Seu cachimbo de sabugo nos dentes e um filete de baba oscilando do pé do cachimbo. Ele se virou para ver a margem oposta, segurando no colo os punhos dos remos, tirando o cachimbo da boca para enxugar o queixo com as costas da mão. Na margem havia uma fileira de bétulas que se elevavam com uma brancura de osso contra a escuridão da mata verde lá atrás. A beira do lago um emaranhado de raízes retorcidas de árvores, cinzentas e gastas pelo tempo, as árvores arrancadas por algum furacão anos antes. As árvores em si já tinham sido serradas havia muito para fazer lenha e levadas embora. Seu tio virou o barco e recolheu os remos e foram levados aos bancos de areia até a popa raspar na areia. Uma perca morta de barriga para cima na água límpida. Folhas amarelas. Deixaram os sapatos nas bordas pintadas e mornas e arrastaram o barco até a praia e colocaram a âncora no final da corda. Uma lata de banha cheia de concreto com um parafuso com anel no centro. Caminharam pela margem enquanto seu tio examinava as raízes das árvores, fumando o cachimbo, uma corda de fibra enroscada sobre o ombro. Pegou uma e eles a viraram de cabeça para baixo, usando as raízes como alavanca, até conseguirem deixá-la meio flutuando na água. Calças enroladas até o joelho mas mesmo assim se molharam. Amarraram a corda a um cunho na parte de trás do barco e remaram de volta atravessando o lago, trazendo o tronco que oscilava devagar atrás deles. A essa altura já era noite. Somente o lento e periódico sacudir e o oscilar dos toletes. O espelho escuro do lago e as luzes nas janelas se acendendo ao longo da margem. Um rádio em algum lugar. Nenhum dos dois havia dito uma palavra. Esse era o dia perfeito de sua infância. Esse era o dia certo para servir de molde aos seus outros dias.

Rumaram para o sul nos dias e semanas seguintes. Solitários e obstinados. Uma região de colinas nuas. Casas de alumínio. Às vezes podiam ver trechos da rodovia interestadual lá embaixo através dos troncos lisos de mata de reflorestamento. Frio e ficando mais frio. Logo depois do desfiladeiro alto nas montanhas eles pararam e olharam para o grande golfo ao sul e, até onde podiam ver, os campos estavam queimados, os vultos escurecidos de rocha projetando-se dos baixios de cinza e ondas de cinza se erguendo e soprando para baixo através da desolação. O rastro do sol fraco movendo-se invisível para além da escuridão.

Havia dias que atravessavam aquele terreno cauterizado. O menino tinha encontrado alguns gizes de cera e tinha pintado o rosto com presas e caminhava penosamente sem reclamar. Uma das rodas dianteiras do carrinho tinha dado defeito. O que fazer a respeito? Nada. Onde tudo diante deles estava queimado até as cinzas não havia como fazer fogo e as noites eram mais compridas e frias do que qualquer coisa que eles tivessem encontrado até ali. Frias a ponto de fazer estalar as pedras. De tirar a sua vida. Ele segurava o menino trêmulo junto do corpo e contava cada frágil respiração no escuro.

Acordou com o som de trovão a distância e se sentou. A luz fraca em toda parte, trêmula e difusa, refratada pela chuva de fuligem oscilando no ar. Puxou a lona ao redor deles e ficou acordado durante um longo tempo, escutando. Se eles se molhassem não haveria uma fogueira diante da qual se secar. Se eles se molhassem provavelmente morreriam.

A escuridão que via ao acordar nessas noites era cega e impenetrável. Uma escuridão capaz de fazer doer seus ouvidos quando se punha a escutar. Com frequência ele tinha que se levantar. Nenhum som além do vento nas árvores nuas e enegrecidas. Ele se levantou e ficou cambaleando naquela escuridão fria e autista com os braços estendidos para se equilibrar enquanto os cálculos nos recessos do seu crânio tentavam com esforço chegar a conclusões. Uma velha narrativa. Tentar ficar em pé. Não havia queda que não se antecedesse por uma inclinação. Ele marchava a passos largos no nada, contando-os para poder voltar. Olhos fechados, braços remando. Ereto em relação a quê? Algo sem nome na noite, veio ou matriz. Para o qual ele e as estrelas eram satélite comum. Como o grande pêndulo em sua rotunda marcando inscrições nos longos movimentos diurnos do universo, dos quais é possível dizer que ele não sabe nada, e no entanto deveria saber.

Foram necessários dois dias para atravessar aquela região pedregosa e coberta pelas cinzas. A estrada adiante corria pelo topo de uma serrania onde o bosque árido descia pela encosta por todos os lados. Está nevando, o menino disse. Olhou para o céu. Um único floco cinzento caindo. Pegou-o na mão e o observou expirar ali como o último exército da cristandade.

Avançaram juntos com a lona puxada sobre eles. Os flocos molhados e cinzentos rodopiando e caindo de lugar nenhum. Lama suja e derretida nas laterais da estrada. Agua negra correndo, vindo de sob os montes de cinza encharcados. Não havia mais as grandes fogueiras nas serranias distantes. Ele achava que os cultos sangrentos deviam ter todos se consumido uns aos outros. Ninguém viajava naquela estrada. Nenhum agente rodoviário, nenhum saqueador. Depois de algum tempo chegaram a uma garagem de beira de estrada e entraram pela porta aberta e olharam para a neve cinzenta acompanhada de chuva caindo lá fora em lufadas vindas da região mais alta.

Apanharam algumas caixas velhas e fizeram uma fogueira no chão e ele encontrou algumas ferramentas, esvaziou o carrinho e se sentou para arrumar a roda. Tirou o parafuso e arrancou o eixo com uma furadeira manual e o encaixou de novo com um pedaço de cano que tinha cortado no comprimento com uma serra para metal. Depois parafusou tudo novamente, levantou o carrinho e o fez deslizar pelo chão. Andava bastante bem. O menino ficou sentado observando tudo.

Pela manhã seguiram em frente. Terra desolada. Um couro de javali pregado à porta de um celeiro. Infestado por ratos. A visão rápida de um rabo. Dentro do celeiro três cadáveres pendendo dos caibros do telhado, secos e empoeirados em meio às pálidas ripas de luz. Pode ser que tenha alguma coisa aí, o menino disse. Pode ser que tenha algum milho ou coisa do tipo. Vamos, o homem disse. Preocupava-se principalmente com os sapatos deles. Isso e comida. Sempre comida. Num velho de fumador de madeira encontraram um presunto pendurado num gancho num canto alto. Parecia algo retirado de uma tumba, de tão seco e drenado. Cortou-o com a faca. Carne suculenta vermelha e salgada lá dentro. Condimentada e gostosa. Fritaram-na aquela noite em sua fogueira, pedaços grossos, e colocaram os pedaços para ferver junto com uma lata de feijões. Mais tarde ele acordou na escuridão e pensou ter ouvido o soar de tambores em algum lugar nas colinas baixas e escuras. Então o vento mudou de direção e só o que havia era o silêncio.

Em sonhos sua pálida noiva vinha em sua direção surgindo de um dossel verde e frondoso. Seus mamilos polidos e os ossos das costelas brancos. Usava um vestido de gaze e o cabelo negro estava preso em pentes de marfim, em pentes de madrepérola. Seu sorriso, seus olhos voltados para baixo. Pela manhã estava nevando outra vez. Contas de pequeno gelo cinzento enfileiradas nos fios de luz lá no alto.

Ele desconfiava de tudo aquilo. Dizia que os sonhos corretos para um homem em perigo eram sonhos com o perigo e tudo mais era a chamada do langor e da morte. Dormia pouco e comia pouco. Sonhava que caminhava num bosque florido onde pássaros voavam diante deles ele e o menino e o céu era de um azul dolorido mas ele estava aprendendo a despertar de mundos de sereia como esses. Deitado ali no escuro com o fantástico gosto de um pêssego de algum pomar fantasma desaparecendo da boca. Pensou que se vivesse o suficiente o mundo enfim teria desaparecido por completo. Como o mundo agonizante que os cegos recentes habitam, tudo aquilo desaparecendo lentamente da memória.

Dos devaneios na estrada não havia como acordar. Ele se arrastava. Conseguia se lembrar de tudo dela, menos do cheiro. Sentado num teatro com ela ao seu lado inclinada para a frente ouvindo a música. Volutas douradas e candelabros e as altas dobras das cortinas nas colunas em ambos os lados do palco. Ela segurava a mão dele no colo e ele podia sentir a parte de cima de suas meias através do tecido fino de seu vestido de verão. Congele esta imagem. Agora invoque sua escuridão e seu frio e maldito seja você.

Ele confeccionou limpadores com duas vassouras velhas que tinha encontrado e as amarrou com arame no carrinho para afastar os ramos de árvores da estrada em frente às rodas e colocou o menino no carrinho e ficou na parte de trás como um condutor de trenó puxado por cães e eles seguiram colina abaixo, guiando o carrinho nas curvas com seus corpos à maneira das pessoas andando de trenó. Foi a primeira vez que viu o menino sorrir em muito tempo.

No topo da colina havia uma curva e um recuo na estrada. Uma velha trilha que seguia através da floresta. Saíram e se sentaram num banco e olharam para o vale onde a terra desaparecia no nevoeiro arenoso. Um lago lá embaixo. Frio e cinzento e encorpado no bojo saqueado dos campos.

O que é aquilo, Papai?

E uma represa.

Para que serve?

Ela fez o lago. Antes que eles construíssem a represa só existia um rio lá embaixo. A represa usava a água que corria através dela para fazer girar ventiladores grandes chamados turbinas que gerariam eletricidade.

Para acender as luzes.

Sim. Para acender as luzes.

A gente pode descer para olhar?

Acho que está longe demais.

A represa vai ficar aqui por muito tempo?

Acho que sim. E feita de concreto. Provavelmente vai ficar aqui por centenas de anos. Milhares, talvez.

Você acha que poderia ter peixes no lago?

Não. Não há nada no lago.

Naquela época do passado em algum lugar bem perto deste lugar ele tinha observado um falcão descer voando ao longo da comprida parede azul das montanhas e acertar com a quilha de seu esterno o pássaro que estava no meio de um bando de grous e levá-lo até o rio lá embaixo todo desengonçado e destroçado e arrastando sua plumagem frouxa e bufante no ar parado do outono.

O ar granulado. Seu gosto nunca saía da boca. Estavam parados sob a chuva como animais de fazenda. Depois seguiram em frente, segurando a lona sobre suas cabeças no chuvisco monótono. Os pés estavam molhados e frios e seus sapatos estavam ficando arruinados. Nas encostas das colinas antigas plantações mortas e achatadas. As árvores desoladas nas laterais da serrania nuas e negras sob a chuva.

E os sonhos tão ricos de cores. De que outro modo poderia a morte te chamar? Acordando na aurora fria tudo se transformava em cinzas instantaneamente. Como certos afrescos antigos enterrados por séculos subitamente expostos à luz do dia.

O tempo melhorou e o frio e por fim eles chegaram ao vale do rio, numa vasta planície, a fazenda de terras divididas ainda visível, tudo morto até a raiz ao longo do vale desolado. Eles continuaram seguindo ao longo do asfalto. Casas altas de sarrafo. Telhados de zinco. Um celeiro de troncos de madeira num campo com um cartaz de propaganda em letras desbotadas com três metros de altura na parte lateral do telhado. Visite Rock City.

As sebes de beira de estrada haviam dado lugar a fileiras de sarças negras e retorcidas. Nenhum sinal de vida. Ele deixou o menino de pé na estrada segurando o revólver enquanto subia um velho lance de escada com degraus de calcário e caminhava até o pórtico da sede da fazenda protegendo os olhos da luz e espiando pelas janelas. Entrou pela cozinha. Lixo no chão, jornais velhos. Porcelana num armário, canecas penduradas nos ganchos. Seguiu pelo corredor e parou na porta que dava para a sala de visitas. Havia um antigo órgão no canto. Uma televisão. Mobília acolchoada barata junto com um velho armário de cerejeira artesanal. Subiu a escada e passou pelos quartos. Tudo coberto de cinzas. Um quarto de criança com um cachorro de pelúcia no batente da janela olhando para o jardim lá fora. Passou pelos armários. Puxou as cobertas das camas e tirou dois bons cobertores de algodão e desceu de volta à escada. Na despensa havia três potes de conserva caseira de tomate. Soprou a poeira de cima das tampas e os examinou. Alguém antes dele não confiara naquilo e no fim das contas ele também não confiava; saiu com os cobertores sobre os ombros e partiram pela estrada novamente.

Nos arredores da cidade chegaram a um supermercado. Uns poucos carros velhos no estacionamento cheio de lixo. Deixaram o carrinho no estacionamento e caminharam pelos corredores imundos. Na seção de vegetais no fundo das caixas encontraram algumas vagens velhas e o que parecia um dia terem sido damascos, ressecados havia muito até se tornarem efígies enrugadas de si mesmos. O menino seguia atrás. Saíram pela porta dos fundos. Na passagem atrás do mercado alguns carrinhos de compras, todos muito enferrujados. Voltaram para o mercado outra vez procurando por outro carrinho mas não havia nenhum. Junto à porta havia duas máquinas de vender refrigerantes que tinham sido derrubadas no chão e abertas com um pé de cabra. Moedas em toda parte em meio às cinzas. Ele se sentou e passou a mão pelo mecanismo das máquinas estripadas e na segunda ela se fechou sobre um cilindro frio de metal. Ele retirou a mão devagar e ficou sentado olhando para uma Coca-Cola.

O que é isso, Papai?

E uma coisa gostosa. Para você.

O que é?

Fome aqui. Sente-se.

Ele afrouxou as tiras da mochila do menino, depositou a mochila no chão atrás dele e colocou a unha do polegar debaixo do anel de alumínio no topo da lata e a abriu. Levou o nariz até o suave chiado que saía da lata e a entregou ao menino. Vamos lá, ele disse.

O menino pegou a lata. Faz bolhas, ele disse.

Vamos lá.

Ele olhou para o pai e em seguida inclinou a lata e bebeu. Ficou ali pensando a respeito. E bem bom, ele disse.

E. E mesmo.

Beba um pouco, Papai.

Quero que você beba.

Beba um pouco.

Ele pegou a lata, bebeu e a devolveu. Você bebe, ele disse. Vamos ficar sentados aqui.

E porque eu nunca mais vou poder beber outra, não é?

Nunca mais é muito tempo.

Tudo bem, o menino disse.

Ao entardecer do dia seguinte estavam na cidade. As longas curvas de concreto dos cruzamentos de rodovias interestaduais como as ruínas de uma vasta casa de espelhos contra a escuridão distante. Ele levava o revólver no cinto e usava sua parca aberta. Os mortos mumificados em toda parte. A pele se separando junto aos ossos, os ligamentos secos a ponto de ficarem puxados e esticados como fios de arame. Enrugados e retesados como os recentes povos dos pântanos, seus rostos como tecido empapado, a linha amarelada dos dentes. Estavam todos descalços como peregrinos de alguma ordem pois todos os sapatos tinham sido roubados fazia muito.

Seguiram em frente. Ele mantinha vigilância constante às suas costas através do espelho. A única coisa que se movia nas ruas era a cinza que o vento soprava. Atravessaram a alta ponte de concreto sobre o rio. Um dique lá embaixo. Pequenos barcos de passeio meio afundados na água cinzenta. Estacas altas rio abaixo, quase indistintas na fuligem.

No dia seguinte, a alguns quilômetros ao sul da cidade numa curva da estrada e meio perdida em meio à sarça morta, deram com uma velha casa de estrutura de madeira com chaminés, empenas e uma parede de pedra. O homem parou. Em seguida empurrou o carrinho para a entrada acima.

Que lugar é este, Papai?

É a casa onde eu cresci.

O menino ficou parado olhando para a casa. Os painéis externos de madeira, descascando, já tinham sumido havia muito das paredes inferiores para se tornar lenha, deixando os caibros e o isolamento térmico expostos. A tela apodrecida da porta dos fundos jazia no terraço de concreto.

Vamos entrar?

Por que não?

Estou com medo.

Não quer ver o lugar onde eu morava?

Não.

Vai ficar tudo bem.

Poderia ter alguém aqui.

Acho que não.

Mas e se tiver?

Ficou parado olhando para a empena de seu antigo quarto. Olhou para o menino. Quer esperar aqui?

Não. Você sempre diz isso.

Sinto muito.

Eu sei. Mas sempre diz.

Tiraram as mochilas e as deixaram no terraço, abriram caminho dando pontapés no lixo que havia na soleira da porta e entraram na cozinha. O menino segurava sua mão. Mais ou menos como ele se lembrava. Os cômodos vazios. Na salinha anexa à sala de jantar havia um catre de ferro vazio, uma mesa dobrável de metal. A mesma grelha de ferro fundido na pequena lareira. Os lambris de madeira haviam desaparecido das paredes, deixando apenas as ripas do forro. Ficou parado ali, de pé. Tocou com o polegar na madeira pintada do revestimento os buracos das tachas com que havia prendido meias quarenta anos antes. Era aqui que festejávamos o Natal quando eu era garoto. Ele se virou e olhou para o quintal abandonado. Um emaranhado de lilases mortos. A forma de uma cerca-viva. Em noites frias de inverno, quando a eletricidade tinha acabado por causa de uma tempestade, a gente se sentava diante do fogo aqui, eu e minhas irmãs, para fazer o dever de casa. O menino o observava. Observava formas que o solicitavam e que ele não podia ver. Devíamos ir, Papai. Sim, o homem disse. Mas não foi.

Passaram pela sala de jantar onde os tijolos refratários da lareira estavam tão amarelos quanto no dia em que foram colocados porque a mãe dele não podia tolerar vê-los enegrecidos. O piso estava empenado com a água da chuva. Na sala de estar os ossos de um animalzinho desmembrados e arrumados numa pilha. Possivelmente um gato. Um copo de vidro junto à porta. O menino agarrou sua mão. Subiram a escada e se viraram e seguiram pelo corredor. Pequenos cones de estuque úmido no chão. A estrutura de madeira do teto exposta. Ele parou na porta de seu quarto. Um pequeno espaço sob o telhado. Era aqui que eu dormia. Minha cama ficava encostada nesta parede. Durante milhares de noites para sonhar os sonhos da imaginação de uma criança, mundos ricos ou assustadores que talvez pudessem vir a se oferecer mas nunca o que ia de fato. Ele abriu a porta do guarda-roupa meio que esperando encontrar as coisas da infância. A luz crua e fria do dia entrava pelo teto. Cinzenta como seu coração.

A gente devia ir, Papai. Podemos ir?

Sim. Podemos ir.

Estou com medo.

Eu sei. Sinto muito.

Estou com muito medo.

Está tudo bem. Não devíamos ter vindo.

Três noites mais tarde no contraforte das montanhas orientais ele acordou na escuridão e ouviu algo se aproximando. Estava deitado com as duas mãos do lado do corpo. O chão tremia. Estava vindo na direção deles.

Papai? O menino disse. Papai?

Shh. Está tudo bem.

O que é isso, Papai?

Aproximava-se, ficando mais alto. Tudo tremendo. Então passou debaixo deles como um trem subterrâneo e se arrastou para longe no meio da noite e se foi. O menino se agarrou a ele chorando, a cabeça enterrada em seu peito. Shh. Está tudo bem.

Estou com tanto medo.

Eu sei. Está tudo bem. Já passou.

O que era, Papai?

Era um terremoto. Agora já passou. Nós estamos bem. Shh.

Naqueles primeiros anos as estradas estavam povoadas por refugiados amortalhados em suas roupas. Usando máscaras e óculos de proteção, sentados em seus trapos na beira da estrada como aviadores arruinados. Seus carrinhos de mão com pilhas de quinquilharia. Arrastando carrinhos. Os olhos brilhando no crânio. Cascas incrédulas de homens cambaleando pelas estradas como migrantes numa terra febril. A fragilidade de todas as coisas finalmente revelada. Questões antigas e perturbadoras solucionadas para se transformar em nada e noite. A última instância de uma coisa leva a categoria consigo. Apaga a luz e vai embora. Olhe ao seu redor. Para sempre é muito tempo.

Mas o menino sabia o que sabia. Que para sempre não

é

tempo algum.

Estava sentado junto a uma janela cinzenta sob a luz cinzenta numa casa abandonada no final da tarde e lia jornais velhos enquanto o menino dormia. As notícias curiosas. As preocupações exóticas. Às oito a prímula se fecha. Ficou olhando o menino dormir. Você vai conseguir? Quando o momento chegar? Vai conseguir?

Eles se agacharam na estrada e comeram arroz frio e feijão frio que tinham cozinhado dias antes. Já começando a fermentar. Nenhum lugar para fazer uma fogueira onde não fossem ser vistos. Dormiram amontoados nas colchas malcheirosas no escuro e no frio. Ele abraçava o menino bem junto do corpo. Tão magro. Meu coração, ele disse. Meu coração. Mas sabia que se fosse um bom pai ainda assim poderia ser como ela disse. Que o menino era tudo o que havia entre ele e a morte.

Mais para o fim do ano. Ele mal sabia o mês. Pensava que tinham comida suficiente para atravessar as montanhas mas não havia como saber. O desfiladeiro na vertente tinha 1.500 metros e estaria muito frio. Ele disse que tudo dependia de chegarem à costa, mas ainda assim caminhando pela noite sabia que tudo isso era vazio e sem substância. Havia uma boa chance de morrerem nas montanhas e seria tudo.

Passaram pelas ruínas de uma cidade turística e tomaram a estrada para o sul. Florestas queimadas por quilômetros ao longo das encostas e neve mais cedo do que ele teria pensado. Nenhuma marca na estrada, nada vivia em parte alguma. As grandes pedras arredondadas como vultos de ursos nas encostas densamente ocupadas pela floresta. Ele parou numa ponte de pedra onde as águas caíam murmurando num poço e se tornavam lentamente espuma cinzenta. Onde outrora ele observara as trutas se agitando na corrente, projetando suas sombras perfeitas nas pedras lá embaixo. Seguiram em frente, o menino caminhando penosamente atrás dele. Apoiado no carrinho, fazendo devagar as curvas ascendentes da estrada em ziguezague. Ainda havia fogo no alto das montanhas e à noite eles podiam ver sua luz, de um laranja intenso, em meio à fuligem. Estava ficando mais frio mas ao acampar eles faziam fogueiras durante toda a noite e as deixavam acesas depois de ir embora outra vez de manhã. Ele envolvera seus pés em sacos amarrados com cordões e até ali a neve só tinha alguns centímetros de profundidade, mas ele sabia que se ficasse muito mais funda teriam que deixar o carrinho. Já estava difícil avançar e ele parava com frequência para descansar. Caminhando penosamente para a beira da estrada de costas para o menino onde ficava curvado com as mãos nos joelhos, tossindo. Levantou-se e ficou parado

com olhos lacrimejantes. Na neve cinzenta uma leve

névoa de sangue.

Acamparam junto a uma grande pedra arredondada e ele fez um abrigo com varas e a lona. Fez uma fogueira e saíram recolhendo uma grande quantidade de gravetos para durar a noite toda. Tinham feito um colchão com galhos secos de cicuta sobre a neve e ficaram sentados embrulhados em seus cobertores, observando o fogo e bebendo o que restava do chocolate apanhado semanas antes. Estava nevando outra vez, flocos suaves caindo devagar em meio à escuridão. Ele cochilava no calor maravilhoso. A sombra do menino atravessada sobre ele. Carregando uma braçada de madeira. Observou-o atiçar as chamas. O dragão de fogo de Deus. As centelhas se levantavam e morriam na escuridão sem estrelas. Nem todas as palavras moribundas são verdadeiras e esta bênção não é menos real por estar arrancada de seu chão.

Ele acordou por volta do amanhecer com a fogueira reduzida a carvão e caminhou até a estrada. Tudo estava iluminado. Como se o sol perdido estivesse retornando enfim. A neve cor de laranja e palpitando. Um incêndio na floresta abria caminho pelas serranias inflamáveis acima deles, as labaredas brilhando e tremeluzindo contra o céu encoberto como as luzes do norte. Mesmo frio como estava ele ficou de pé ali durante um bom tempo. A cor de tudo aquilo fazia algo esquecido havia muito se mover dentro dele. Faça uma lista. Recite uma litania. Lembre-se.

Estava mais frio. Nada se movia naquele mundo alto. Um cheiro intenso de fumaça de madeira pairava sobre a estrada. Ele empurrava o carrinho através da neve. Uns poucos quilômetros a cada dia. Não tinha noção da distância que podia separá-los do topo. Comiam pouco e sentiam fome o tempo todo. Ele parou para observar a região. Um rio bem longe lá embaixo. Que distância tinham percorrido?

Em seu sonho ela estava doente e ele cuidava dela. O sonho tinha o aspecto de sacrifício mas ele pensava de modo diferente. Não cuidou dela e ela morreu sozinha em algum lugar no escuro e não há outro sonho nem outro mundo real, e não há outra história para contar. Nesta estrada não há homens inspirados por Deus. Eles se foram e eu fiquei, eles levaram consigo o mundo. Pergunta: Como faz aquilo que nunca será para ser diferente daquilo que nunca foi?

A escuridão da lua invisível. As noites agora apenas ligeiramente menos negras. Durante o dia o sol banido circunda a terra como uma mãe chorosa com uma lamparina.

Pessoas sentadas na calçada no nascer do dia meio imoladas e fumegando dentro das roupas. Como suicidas sectários malsucedidos. Outros viriam para ajudá-los. No intervalo de um ano houve incêndios nas serranias e cânticos insanos. Os gritos dos assassinados. Durante o dia os mortos empalados em estacas ao longo da estrada. O que tinham feito? Ele pensou que na história do mundo talvez até pudesse haver mais punição do que crimes, mas isso o reconfortava pouco.

O ar se tornava rarefeito e ele achava que o topo não podia estar longe. Talvez amanhã. Amanhã veio e se foi. Não voltou a nevar mas a neve na estrada tinha mais de quinze centímetros de espessura e empurrar o carrinho para subir aqueles aclives era uma tarefa exaustiva. Ele pensou que teriam que deixá-lo. Quanto poderiam carregar? Parou e olhou para as encostas áridas. A cinza caía na neve até deixá-la quase preta.

A cada curva parecia que o desfiladeiro ficava logo adiante e então certa noite ele parou e olhou ao redor e reconheceu-o. Abriu a gola de sua parca, abaixou o capuz e ficou escutando. O vento nos troncos nus e pretos de cicuta. O estacionamento vazio no mirante. O menino estava ao seu lado. Onde ele estivera com seu próprio pai num inverno muito tempo atrás. O que foi, Papai? o menino disse.

E o desfiladeiro. E ele.

Pela manhã, avançaram. Estava muito frio. A tarde começou a nevar novamente e eles acamparam cedo e se agacharam sob a cobertura da lona e ficaram observando a neve cair no fogo. Pela manhã havia vários centímetros de neve recente no chão mas a neve tinha parado de cair e estava tão quieto que quase podiam ouvir seus corações batendo. Ele empilhou madeira sobre os carvões e abanou a fogueira até reacendê-la e caminhou com dificuldade em meio à neve para desenterrar o carrinho. Escolheu alguma coisa entre as latas, voltou e eles se sentaram junto ao fogo e comeram seus últimos biscoitos e uma lata de salsichas. Num bolso da mochila ele encontrou uma última metade de pacote de chocolate em pó e preparou-o para o menino e depois colocou água quente em sua própria xícara e se sentou soprando a borda.

Você me prometeu que não ia fazer isso, o menino disse.

O quê?

Você sabe o quê, Papai.

Ele despejou a água quente de volta na panela e pegou a xícara do menino e colocou um pouco do chocolate na sua e depois a devolveu.

Tenho que ficar de olho em você o tempo todo, o menino disse.

Eu sei.

Se você descumprir promessas pequenas vai descumprir as grandes. Foi o que você disse.

Eu sei. Mas não vou.

Avançaram com dificuldade ao longo de todo o dia descendo a encosta sul da vertente. Em montes de neve mais profundos o carrinho não passava de forma nenhuma e ele tinha que arrastá-lo atrás de si com uma das mãos enquanto abria uma trilha. Em qualquer outro lugar que não fosse as montanhas eles talvez tivessem encontrado alguma coisa para usar como trenó. Uma velha placa de metal ou uma folha de flandres usada em telhados. Os sacos que envolviam seus pés estavam ensopados e ficaram com frio e molhados o dia inteiro. Ele se apoiou no carrinho para tomar fôlego enquanto o menino esperava. Ouviu-se um estalido agudo vindo de algum lugar na montanha. Depois outro. E só uma árvore caindo, ele disse. Está tudo bem. O menino olhava para as árvores mortas na beira da estrada. Está tudo bem, o homem disse. Todas as árvores do mundo vão cair cedo ou tarde. Mas não em cima da gente.

Como você sabe?

Eu simplesmente sei.

Ainda assim eles se depararam com árvores atravessadas na estrada e tiveram que esvaziar o carrinho e carregar tudo por cima dos troncos e depois guardar tudo de novo do outro lado. O menino encontrou brinquedos que tinha esquecido que tinha. Deixou do lado de fora um caminhão amarelo e seguiram em frente com o brinquedo no alto da lona.

Acamparam num banco de terra na margem mais distante de um riacho de beira de estrada congelado. O vento tinha soprado as cinzas de cima do gelo e o gelo estava preto e o riacho parecia um caminho de basalto serpenteando em meio à floresta. Juntaram lenha na parte mais ao norte da encosta, onde não estava tão molhado, avançando por cima de árvores inteiras e arrastando-as para o acampamento. Acenderam a fogueira e estenderam a lona e penduraram suas roupas molhadas fumegando e fedendo em estacas e se sentaram embrulhados nas colchas nus enquanto o homem segurava os pés do menino junto ao seu estômago para aquecê-los.

Ele acordou choramingando à noite e o homem o abraçou. Shh, ele disse. Shh. Está tudo bem.

Eu tive um sonho ruim.

Eu sei.

Eu te digo o que foi?

Se você quiser.

Eu tinha esse pinguim em que você tinha dado corda e ele andava gingando e batendo as nadadeiras. E a gente estava naquela casa em que a gente morava antes e veio pelo canto mas ninguém tinha dado corda nele e dava um medo danado.

Tudo bem.

Dava muito mais medo no sonho.

Eu sei. Sonhos podem ser bem assustadores.

Por que foi que eu tive esse sonho assustador?

Não sei. Mas está tudo bem agora. Vou colocar um pouco de lenha na fogueira. E você vá dormir.

O menino não respondeu. Em seguida ele disse: O lugar de dar corda não estava funcionando.

Levou mais quatro dias para descer e sair da neve e mesmo então havia trechos com neve em certas curvas da estrada e a estrada estava preta e molhada da água que escorria das regiões mais altas mesmo depois dali. Contornaram a beira de um desfiladeiro profundo e lá embaixo, na escuridão, um rio. Ficaram parados escutando.

Altos penhascos rochosos na outra extremidade do desfiladeiro com árvores finas e negras agarrando-se à escarpa. O som do rio diminuiu. Depois retornou. Um vento frio soprando do campo lá embaixo. Estavam o dia inteiro tentando alcançar o rio.

Deixaram o carrinho num estacionamento e foram andando pela floresta. Um ruído grave vindo do rio. Era uma cachoeira que descia de uma alta parede de pedra e caía por 25 metros através de uma mortalha cinzenta de neblina no poço lá embaixo. Podiam sentir o cheiro da água e podiam sentir o frio se desprendendo dela. Um banco de cascalho molhado do rio. Ele ficou parado observando o menino. Uau, o menino disse. Não conseguia

tirar os olhos dali.

Ele se pôs de cócoras e pegou um punhado de pedras, cheirou-as e as deixou cair fazendo barulho. Polidas até ficarem redondas e lisas como mármore ou pastilhas de pedra raiadas e listradas. Pequeninos discos pretos e pedaços de quartzo polido, todos brilhando devido à garoa que se levantava do rio. O menino se adiantou e se pôs de cócoras e pegou com as mãos um pouco da água escura.

A cachoeira caía no poço quase no centro. Um coágulo cinzento a circundava. Ficaram lado a lado chamando um ao outro sobre o ruído.

Está fria?

Está. Está gelada.

Você quer entrar?

Não sei.

Claro que quer.

Tudo bem se eu entrar?

Vamos lá.

Ele abriu o zíper da parca, deixou-a cair sobre o cascalho e o menino se pôs de pé e eles se despiram e caminharam até a água. De uma palidez fantasmagórica e tremendo. O menino tão magro que ele sentiu um aperto no coração. Mergulhou de cabeça e reapareceu arquejando e se virou e ficou parado, batendo os braços.

Ela está em cima da minha cabeça? o menino

gritou.

Não. Venha.

Ele se virou e nadou até a cachoeira e deixou a água cair sobre ele com força. O menino estava de pé no poço com a água chegando à cintura, segurando os ombros e pulando para cima e para baixo. O homem voltou e pegou-o. Segurou-o e fez com que boiasse, o menino arquejando e se debatendo na água. Você está indo bem, o homem disse. Está indo bem.

Vestiram-se trêmulos e em seguida subiram a trilha até a parte de cima do rio. Caminharam junto às pedras até onde o rio parecia terminar no espaço e ele segurou o menino enquanto se aventurava até a última saliência da pedra. O rio passava lambendo a beira e caía diretamente no poço lá embaixo. O rio inteiro. Ele se agarrou ao braço do homem.

É bem alto, ele disse.

É bastante alto.

Você ia morrer se caísse?

Ia se machucar. E uma boa queda.

Dá um medo danado.

Caminharam pela floresta. A luz estava diminuindo. Seguiram os bancos de areia ao longo da parte superior do rio entre imensas árvores mortas. Uma fértil floresta do sul onde outrora havia limão-bravo e pipsissewa. Ginseng. Os galhos mortos e crus do rododendro retorcidos e cheios de nós e negros. Ele parou. Algo no tapete de vegetação morta e cinzas. Parou e apanhou-o. Uma pequena colônia deles, encolhidos, secos e enrugados. Ele apanhou um, segurou-o e cheirou. Mordeu a ponta de um deles e mastigou.

O que é, Papai?

Morchelas. São morchelas.

O que são morchelas?

Um tipo de cogumelo.

A gente pode comer?

Pode. Dá uma mordida.

São bons?

Dá uma mordida.

O menino cheirou o cogumelo e deu uma mordida e ficou mastigando. Olhou para o pai.

São bastante bons, ele disse.

Arrancaram os cogumelos do chão, coisinhas de aspecto estranho que ele empilhou no capuz da parca do menino.

Caminharam de volta até a estrada e desceram até onde tinham deixado o carrinho e acamparam junto ao poço do rio perto da cachoeira e lavaram a terra e as cinzas que havia nos cogumelos e os colocaram de molho numa panela d’água.

Quando ele acendeu a fogueira estava escuro e ele fatiou um punhado de cogumelos num toco de madeira para o jantar e os colocou na frigideira junto com a carne de porco gorda de uma lata de feijões e colocou-os sobre o carvão para ferver. O menino o observava. Este é um bom lugar, Papai, ele disse.

Comeram os pequenos cogumelos junto com os feijões e beberam chá e comeram pêras em conserva de sobremesa. Ele abafou a fogueira na fenda de rocha onde a tinha acendido, amarrou a lona atrás deles para refletir o calor e se sentaram aquecidos em seu refúgio enquanto ele contava histórias para o menino. Velhas histórias de coragem e justiça do modo como se lembrava delas até que o menino adormeceu em meio às suas cobertas e então ele alimentou o fogo e se deitou aquecido, de barriga cheia, e ficou ouvindo o trovejar distante das cachoeiras para além de onde estavam naquela mata escura e velha.

Ele saiu de manhã e seguiu pelo caminho do rio, descendo a correnteza. O menino tinha razão, aquele era um bom lugar e ele queria conferir se havia algum sinal de outros visitantes. Não encontrou nada. Ficou observando o rio onde ele se lançava num poço e depois se encrespava e formava redemoinhos. Atirou uma pedra branca na água mas ela desapareceu tão rapidamente quanto se tivesse sido engolida. Tinha estado junto a um rio desses outrora e observado o movimento fugaz das trutas no fundo de um poço, invisível de se ver naquela água cor de chá, exceto quando se viravam de lado para se alimentar. Refletindo o sol no fundo da escuridão como o lampejo de facas numa caverna.

Não podemos ficar, ele disse. Está ficando mais frio a cada dia. E a cachoeira é uma atração. Foi para nós e será para outros e não sabemos quem serão esses outros e não podemos ouvi-los chegando. Não é seguro.

A gente podia ficar mais um dia.

Não é seguro.

Bem, talvez a gente pudesse encontrar algum outro lugar no rio.

Temos que continuar seguindo em frente. Temos que continuar indo na direção sul.

O rio não vai na direção sul?

Não. Não vai.

Posso ver no mapa?

Pode. Deixa eu pegar.

O surrado mapa da companhia de petróleo tinha sido outrora consertado com fita adesiva mas agora estava apenas organizado em folhas e numerado com giz de cera nos cantos para poderem juntá-lo. Ele procurou entre as páginas moles e estendeu aquelas que correspondiam à sua localização.

Atravessamos uma ponte aqui. Parece ficar a uns doze quilômetros ou coisa assim. Este é o rio. Indo para oeste. Seguimos a estrada aqui ao longo da encosta oriental das montanhas. Estas são as nossas estradas, as linhas pretas no mapa. As estradas estaduais.

Por que são estradas estaduais?

Porque antes pertenciam aos estados. Ao que chamávamos de estados.

Mas não existem mais estados?

Não.

O que aconteceu com eles?

Não sei ao certo. E uma boa pergunta.

Mas as estradas ainda estão aí.

Sim. Por algum tempo.

Por quanto tempo?

Não sei. Talvez um bom tempo. Não há nada para destruí-las, então devem ficar em bom estado por um tempo.

Mas carros e caminhões não vão passar nelas.

Não.

Certo.

Você está pronto?

O menino fez que sim. Enxugou o nariz na manga e colocou no ombro sua pequena mochila e o homem dobrou as seções do mapa e se levantou e o menino o seguiu em meio às estacas cinzentas das árvores até a estrada.

Quando conseguiram divisar a ponte abaixo deles havia um caminhão atravessado nela e enfiado no parapeito de ferro empenado. Estava chovendo outra vez e eles ficaram ali parados com a chuva tamborilando de leve na lona. Espiando de dentro da penumbra azulada por baixo do plástico.

A gente não pode contornar? o menino disse.

Acho que não. Podemos provavelmente passar por baixo dele. Talvez tenhamos que esvaziar o carrinho.

A ponte transpunha o rio sobre corredeiras. Puderam ouvir o barulho quando fizeram a curva na estrada. Da garganta soprava um vento e eles puxaram as pontas da lona ao redor deles e empurraram o carrinho até a ponte. Podiam ver o rio através das ferragens. Mais abaixo das corredeiras havia a ponte de uma ferrovia construída sobre pilares de calcário. As pedras dos pilares estavam manchadas bem acima da altura do rio devido às cheias e a curva estava obstruída com enormes pilhas de galhos negros e folhagens e troncos de árvores.

Havia anos que o caminhão estava ali, os pneus vazios e enrugados sob os aros. A parte da frente estava comprimida contra o parapeito da ponte e a caçamba tinha se soltado da base e se projetado para a frente, comprimindo a parte de trás da cabine. A traseira da caçamba tinha sido arremessada e vergado por cima do parapeito do outro lado da ponte e estava pendurada vários metros para fora sobre a garganta do rio. Ele empurrou o carrinho por baixo da caçamba mas a barra de empurrar não passava. Teriam que fazê-lo deslizar por baixo, deitado de lado. Deixaram-no ali, sob a chuva, com a lona por cima, passaram por baixo da caçamba e ele deixou o menino agachado ali no seco enquanto subia no degrau do tanque de gasolina e enxugava a água do vidro e espiava dentro da cabine. Voltou a descer o degrau, estendeu o braço e abriu a porta, em seguida subiu e fechou a porta depois de entrar. Ficou sentado olhando ao redor. Um velho leito atrás dos assentos. Papéis no chão. O porta-luvas estava aberto, mas vazio. Ele subiu de volta por entre os assentos. Havia um colchão tosco e úmido no beliche e uma pequena geladeira com a porta aberta. Uma mesa dobrável. Revistas velhas no chão. Ele vasculhou os compartimentos de compensado no alto mas estavam vazios. Havia gavetas sob o beliche e ele as abriu e vasculhou em meio ao lixo. Subiu de volta na cabine e se sentou no banco do motorista e olhou para fora, para o rio lá embaixo através dos pingos que escorriam lentamente no vidro. O tamborilar suave da chuva no teto de metal e a escuridão descendo devagar sobre todas as coisas.

Dormiram aquela noite no caminhão, pela manha a chuva tinha parado e descarregaram o carrinho e passaram tudo por baixo do veículo até o outro lado e colocaram as coisas de volta. Depois da ponte a uns trinta metros mais ou menos havia os restos enegrecidos de pneus que tinham sido queimados ali. Ele ficou parado olhando para a caçamba. O que você acha que há lá dentro?

Não sei.

Não somos os primeiros aqui. Então provavelmente nada.

Não tem como entrar.

Ele colocou o ouvido na lateral do compartimento e deu um tapa no metal laminado com a palma da mão. Pelo som parece vazio, disse. Provavelmente dá para entrar pelo teto. Alguém deve ter aberto um buraco na lateral a essa altura.

Com o que eles iam cortar?

Encontrariam alguma coisa.

Ele tirou a parca e a colocou no alto do carrinho e subiu no pára-lama do caminhão e depois na capota e subiu com dificuldade no teto da cabine. Ficou de pé, virou-se e olhou para o rio lá embaixo. Metal molhado debaixo dos pés. Olhou lá para baixo, para o menino. O menino parecia preocupado. Ele se virou, estendeu a mão e agarrou a frente da caçamba e se ergueu devagar. Era tudo o que podia fazer e havia bem menos volume em seu corpo para puxar. Passou uma perna por cima da beirada e ficou ali descansando. Então se ergueu e rolou por cima da beirada e se sentou.

Havia uma claraboia a cerca de um terço do caminho ao descer do teto e ele foi até lá andando agachado. A cobertura tinha sumido e o interior da caçamba cheirava a compensado úmido e àquele odor azedo que ele tinha vindo a conhecer. Ele levava uma revista no bolso junto ao quadril, pegou-a, arrancou algumas páginas e fez um chumaço, pegou seu isqueiro e pôs fogo nos papéis e jogou-os na escuridão. Um suave sibilar. Ele afastou com a mão a fumaça e olhou para o interior do compartimento. A fogueirinha queimando no chão parecia estar muito afastada. Ele se protegeu do clarão com a mão e quando fez isso pôde enxergar quase até o fundo da caçamba. Corpos humanos. Escarrapachados em todas as posturas. Secos e murchos em suas roupas podres. O pequeno chumaço de papel queimando se reduziu a um lampejo de chama e então se extinguiu deixando uma forma suave durante um breve instante na incandescência como o contorno de uma flor, uma rosa derretida. Então tudo ficou escuro outra vez.

Naquela noite acamparam na floresta, numa serrania que dava para uma vasta planície ao sopé de uma montanha, que se estendia para o sul. Acendeu uma fogueira para cozinhar junto a uma rocha e comeram o que restava dos cogumelos e uma lata de espinafre. Durante a noite uma tempestade caiu sobre as montanhas acima deles e veio re

tumbando ao descer, estalando e estrondeando e o mundo

de um cinza inflexível aparecia repetidas vezes no meio da noite, no lampejo amortalhado do relâmpago. O menino se agarrava a ele. A tempestade ia avançando. O breve estrépito do granizo e em seguida a chuva fria e vagarosa.

Quando ele acordou outra vez ainda estava escuro, mas a chuva tinha parado. Uma luz esfumaçada lá adiante no vale. Ele acordou e caminhou lá para fora na serrania. Uma névoa de fogo que se estendia por quilômetros. Ele se agachou e a observou. Podia sentir o cheiro da fumaça.

Umedeceu o dedo e ergueu-o contra o vento. Quando se levantou e se virou para voltar, a lona mostrava uma luz vinda do lado de dentro, onde o menino tinha acordado. Ali na escuridão sua sombra frágil e azulada parecia o pico de alguma última ventura nas bordas do mundo. Alguma coisa que quase não podia ser contabilizada. E era isso de fato.

Durante todo o dia seguinte eles viajaram através do nevoeiro criado pela fumaça das árvores, que ia sendo levado pelo vento. Nas bordas a fumaça saindo do chão como neblina e as árvores finas e pretas queimando nas encostas como candelabros de velas pagãs. Tarde naquele dia eles chegaram a um lugar onde o fogo tinha atravessado a estrada e o macadame ainda estava morno e mais adiante começou a ficar macio sob os pés. O piche negro e quente grudando em seus sapatos e se esticando em faixas delgadas conforme eles andavam. Pararam. Vamos ter que esperar, ele disse.

Voltaram pelo mesmo caminho e acamparam na própria estrada e quando seguiram em frente pela manhã o macadame tinha esfriado. Um pouco depois chegaram a um conjunto de marcas feitas no asfalto. Simplesmente apareceram, de um momento para o outro. Ele se pôs de cócoras e as estudou. Alguém tinha saído da floresta durante a noite e continuado pela estrada derretida.

Quem é? disse o menino.

Não sei. Quem é alguém?

Deram com ele caminhando devagar pela estrada diante deles, puxando ligeiramente uma perna e parando de tempos em tempos para ficar ali, recurvado e incerto, antes de seguir em frente outra vez.

O que é que a gente devia fazer, Papai?

Nada, por enquanto. Vamos só seguir e observar.

Dar uma olhada, o menino disse.

E. Dar uma olhada.

Seguiram-no durante um bom tempo mas na velocidade dele estavam perdendo o dia e por fim ele simplesmente se sentou na estrada e não se levantou mais. O menino se segurava no casaco do pai. Ninguém falou. Ele parecia tão queimado quanto o resto da paisagem, suas roupas chamuscadas e pretas. Um de seus olhos estava fechado devido às queimaduras e seu cabelo não passava de uma peruca piolhenta de cinzas sobre o crânio enegrecido. Quando passaram ele baixou os olhos. Como se tivesse feito algo de errado. Seus sapatos estavam amarrados com arame e envolvidos com asfalto e ele se sentava ali em silêncio, curvado sobre seus trapos. O menino continuava olhando para trás. Papai? ele perguntou. O que há de errado com esse homem?

Um raio caiu nele.

Nao podemos ajudar ele? Papai?

Não. Não podemos ajudar ele.

O menino continuava puxando seu casaco. Papai? ele disse.

Pare.

Não podemos ajudar ele Papai?

Não. Não podemos ajudar ele. Não há nada que possa ser feito por ele.

Seguiram adiante. O menino chorava. Continuava olhando para trás. Quando chegaram ao pé do morro o homem parou e olhou para ele e olhou para cima, para a estrada lá atrás. O homem queimado tinha caído e àquela distância nem era possível dizer do que se tratava. Eu sinto muito, ele disse. Mas não temos nada a oferecer para ele. Não temos como ajudá-lo. Sinto muito pelo que aconteceu com ele mas não podemos consertar. Você sabe disso, não sabe? O menino ficou parado olhando para baixo. Fez que sim com a cabeça. Então eles seguiram em frente e ele não voltou a olhar para trás.

À noite um brilho embaçado cor de enxofre vindo das árvores. A água parada nas valas de beira de estrada negras com a água que escorria das montanhas. As montanhas encobertas. Atravessaram o rio numa ponte de concreto onde meadas de cinzas e dejetos desciam devagar com a correnteza. Pedaços carbonizados de madeira. No fim, pararam e fizeram meia-volta e acamparam debaixo da ponte.

Ele carregara sua carteira até que ela fizesse um buraco nas calças. Então um dia se sentou à beira da estrada e a tirou e examinou seu conteúdo. Algum dinheiro, cartões de crédito. Sua carteira de motorista. Uma fotografia de sua mulher. Espalhou tudo por cima do pavimento. Como cartas de baralho. Arremessou a peça de couro, enegrecida pelo suor, dentro da floresta, e ficou sentado olhando para a fotografia. Então colocou-a sobre a estrada também e se levantou e seguiram em frente.

Pela manhã estava deitado olhando para os ninhos de argila que as andorinhas tinham construído nos cantos debaixo da ponte. Olhou para o menino mas o menino tinha se virado de lado e olhava para o rio, deitado.

Não há nada que nós pudéssemos ter feito.

Ele não respondeu.

Ele vai morrer. Não podemos dividir o que temos senão vamos morrer também.

Eu sei.

Então quando é que você vai voltar a falar comigo?

Estou falando agora.

Tem certeza?

Sim.

Está bem.

Está bem.

Ficaram de pé junto à margem mais afastada de um rio e chamaram-no. Deuses esfarrapados caminhando recurvados em seus trapos pela desolação. Andando pelo solo seco de um mar mineral onde este jazia rachado e partido como um prato que tivesse caído no chão. Trilhas de fogo feroz na areia coagulada. Os vultos indistintos à distância. Ele acordou e ficou ali deitado na escuridão.

Os relógios pararam à lhl7. Um longo clarão e depois uma série de pequenos abalos. Ele se levantou e foi até a janela. O que foi? ela disse. Ele não respondeu. Foi até o banheiro e ligou o interruptor mas a energia já se fora. Um brilho opaco e rosado no vidro da janela. Ele caiu sobre um dos joelhos e puxou a alavanca para tampar a banheira e depois abriu as duas torneiras ao máximo. Ela estava de pé junto à porta de camisola, segurando-se no batente, embalando a barriga com uma das mãos. O que foi? ela disse. O que está acontecendo?

Não sei.

Por que você vai tomar banho?

Não vou.

Uma vez naqueles primeiros anos ele tinha acordado numa floresta árida e ficado deitado ouvindo os bandos de aves migratórias lá em cima naquela escuridão dolorosa. Seus pios semi-abafados a quilômetros de distância lá no alto onde elas circundavam a terra de modo tão insensato quanto insetos se agrupando na beira de uma tigela. Desejou-lhes felicidades até que se foram. Nunca mais voltou a ouvi-las.

Tinha um baralho que encontrara na gaveta de uma escrivaninha numa casa e as cartas estavam velhas e furadas e duas cartas do naipe de paus estavam faltando mas mesmo assim eles jogavam de vez em quando à luz da fogueira enrolados nos cobertores. Ele tentava se lembrar das regras de velhos jogos da infância. Mico. Alguma versão do uíste. Tinha certeza de que estava jogando errado e inventava novos jogos e lhes dava nomes inventados. Fescue Anormal ou Catbarf. Às vezes o menino lhe fazia perguntas sobre o mundo que para ele não era sequer uma lembrança. Ele achava difícil responder. Não há passado. Do que você gostaria? Mas parou de inventar coisas porque essas coisas também não eram verdadeiras e contá-las fazia com que ele se sentisse mal. O menino tinha suas próprias fantasias. Como as coisas seriam no sul. Outras crianças. Ele tentava refreá-lo mas seu coração não estava presente nessa tentativa. Será que o coração de alguém estaria?

Nenhuma lista de coisas a fazer. O dia providencial a si mesmo. A hora. Não existe o mais tarde. Agora é mais tarde. Todas as coisas graciosas e belas como as que se levam guardadas no coração têm uma origem comum na dor. Nascem do pesar e das cinzas. Então, ele sussurrou para o menino adormecido. Tenho você.

Pensou na fotografia na estrada e achou que devia ter tentado mantê-la em suas vidas de algum modo mas não sabia como. Acordou tossindo e foi lá para fora de modo a não acordar o menino. Acompanhando um muro de pedra na escuridão, embrulhado no cobertor, ajoelhando-se nas cinzas como um penitente. Tossiu até conseguir sentir o gosto do sangue e disse o nome dela em voz alta. Pensou que talvez o tivesse dito enquanto dormia. Quando voltou o menino tinha acordado. Me desculpe, ele disse.

Tudo bem.

Vá dormir.

Eu queria estar com a mamãe.

Ele não respondeu. Sentou-se ao lado do vulto pequenino embrulhado nas colchas e nos cobertores. Depois de algum tempo ele disse: Você quer dizer que queria estar morto.

É.

Você não deve dizer isso.

Mas eu queria.

Não diga isso. E uma coisa ruim de se dizer.

Não dá para evitar.

Eu sei. Mas tem que evitar.

Como é que eu faço isso?

Não sei.

Somos sobreviventes ele disse a ela por cima da chama da lamparina.

Sobreviventes? ela disse.

Sim.

Do que em nome de Deus você está falando? Não somos sobreviventes. Somos os mortos-vivos num filme de terror.

Eu estou te implorando.

Não ligo. Não ligo se você chorar. Não significa nada para mim.

Por favor.

Pare com isso.

Estou te implorando. Faço qualquer coisa.

Como o quê? Eu devia ter feito isso há muito tempo. Quando havia três balas na arma em vez de duas. Fui uma idiota. Já falamos sobre tudo isso. Não fui eu que me forcei a isso. Fui forçada. E agora chega para mim. Pensei em nem te dizer. Isso provavelmente teria sido melhor. Você tem duas balas e então o quê? Não pode nos proteger. Diz que morreria por nós mas de que adianta? Eu o levaria comigo se não fosse por você. Você sabe que levaria. E a coisa certa a fazer.

Você está dizendo bobagem.

Não, estou falando a verdade. Mais cedo ou mais tarde vão nos pegar e nos matar. Vão me estuprar. Vão estuprá-lo. Vão nos estuprar e nos matar e nos comer e você não quer encarar isso. Prefere esperar que aconteça. Mas eu não posso. Não posso. Ela ficou sentada fumando um pedaço comprido de videira seca como se fosse algum charuto raro. Segurando-o com certa elegância, a outra mão sobre os joelhos onde ela os havia juntado. Ela o observava através da pequena chama. Costumávamos falar da morte, ela disse. Não falamos mais. Por que isso?

Não sei.

E porque ela está aqui. Não há mais nada para

falar.

Eu não te deixaria.

Não me importo. Não quer dizer nada. Pode pensar que eu sou uma puta infiel se quiser. Tenho um novo amante. Ele me dá o que você não consegue dar.

A morte não é um amante.

Ah é sim.

Por favor não faça isso.

Sinto muito.

Não consigo fazer isso sozinho.

Então não faça. Não posso te ajudar. Dizem que as mulheres sonham com o perigo daqueles que estão sob seus cuidados e os homens com seu próprio perigo. Mas eu não sonho com nada. Você diz que não consegue fazer isso sozinho? Então não faça. E tudo. Porque eu estou exausta deste meu coração libertino e isso já faz muito tempo. Você fala sobre tomar uma posição firme mas não há posição a tomar. Meu coração foi arrancado de mim na noite em que ele nasceu então não peça por um lamento agora. Não há nenhum. Talvez você venha a ser bom nisso. Eu duvido, mas quem sabe. A única coisa que eu posso te dizer é que você não vai sobreviver por conta própria. Eu sei porque eu nunca teria chegado tão longe. A uma pessoa que não tivesse ninguém seria aconselhável que se juntasse a algum fantasma passável. Trazê-lo à

vida com seu sopro e persuadi-lo a seguir em frente com

palavras de amor. Oferecer-lhe cada migalha fantasma e protegê-lo do perigo com seu corpo. Quanto a mim minha única esperança é o nada eterno e espero por ele com todo meu coração.

Ele não respondeu.

Você não tem nenhum argumento porque não existe um.

Você vai dizer adeus a ele?

Não. Não vou.

Só espere até de manhã. Por favor.

Tenho que ir.

Ela já tinha se levantado.

Pelo amor de Deus, mulher. O que eu digo a ele?

Não posso te ajudar.

Para onde você vai? Você não consegue nem mesmo enxergar.

Não preciso.

Ele se levantou. Estou te implorando, ele disse.

Não. Não vou. Não posso.

Ela se foi e a frieza do gesto foi seu último presente. Usaria uma lasca de obsidiana. Ele mesmo lhe ensinara. Mais afiado do que o aço. A ponta com a espessura de um átomo. E ela estava certa. Não havia argumento. A centena de noites em que eles tinham ficado sentados debatendo os prós e os contras da autodestruição com a honestidade de filósofos acorrentados à parede de um hospício. Pela manhã o menino não disse nada em absoluto, e quando eles tinham guardado suas coisas e estavam prontos para pôr o pé na estrada ele se virou e olhou para o local de seu acampamento lá atrás e disse: Ela foi embora não foi? E ele disse: Sim, foi.

Sempre tão deliberado, mal chegando a se surpreender com os eventos mais inusitados. Uma criação perfeitamente evoluída para alcançar seu próprio fim. Sentaram-se à janela e fizeram uma refeição à meia-noite vestindo seus robes à luz de velas e observaram cidades distantes queimando. Algumas noites mais tarde ela deu à luz na cama deles, sob a iluminação de uma lanterna a pilha. Luvas que serviam para lavar pratos. A aparência improvável da pequena coroa da cabeça. Listrado de sangue e cabelo preto e escorrido. O fedor do mecônio. Os gritos dela não significavam nada para ele. Para além da janela apenas o frio que aumentava, os incêndios no horizonte. Ele se debruçou sobre o corpo esquelético e vermelho tão tosco e nu e cortou o cordão com uma tesoura de cozinha e embrulhou seu filho numa toalha.

Você tinha algum amigo?

Sim. Tinha.

Muitos?

Sim.

Você se lembra deles?

Sim. Eu me lembro deles.

O que aconteceu com eles?

Morreram.

Todos eles?

Sim. Todos eles.

Você sente falta deles?

Sim. Sinto.

Para onde a gente vai?

Vamos para o sul.

Está bem.

Ficaram o dia todo na comprida estrada preta, parando à tarde para comer um pouco de seus magros suprimentos. O menino tirou seu caminhão da mochila e desenhou estradas sobre as cinzas usando uma vareta. O caminhão avançou por elas devagar. Ele fazia ruídos de caminhão. O dia parecia quase quente e eles dormiram sobre as folhas com as mochilas debaixo da cabeça.

Alguma coisa o despertou. Ele se virou de lado e se pôs a escutar. Ergueu a cabeça devagar, o revólver na mão. Baixou os olhos para o menino e quando olhou de volta na direção da estrada os primeiros deles já estavam visíveis. Deus, ele sussurrou. Estendeu a mão e sacudiu o menino, sem tirar os olhos da estrada. Eles vinham arrastando os pés pelas cinzas jogando as cabeças encapuzadas para um lado e para o outro. Alguns usando máscaras de gás. Um deles com uma roupa de proteção contra agentes químicos e biológicos. Manchados e imundos. Andando recurvados com porretes nas mãos, pedaços de cano. Tossindo. Então ele ouviu na estrada atrás dele o que parecia ser um caminhão a diesel. Rápido, sussurrou. Rápido. Empurrou o revólver para dentro do cinto e agarrou o menino pela mão e arrastou o carrinho através das árvores e inclinou-o de um jeito que ele não fosse tão facilmente visto. O menino estava paralisado de medo. Ele o puxou contra si. Está tudo bem, disse. Temos que correr. Não olhe para trás. Venha.

Ele atirou a mochila por cima do ombro e abriram caminho por entre as samambaias que se despedaçavam. O menino estava aterrorizado. Corra, ele sussurrou. Corra. Ele olhou para trás. O caminhão surgiu com um estrondo em seu campo de visão. Homens de pé na caçamba olhando ao redor. O menino caiu e ele o puxou de volta. Está tudo bem, ele disse. Venha.

Ele podia ver uma abertura entre as árvores que pensava ser uma vala ou um canal e eles saíram por entre o mato até uma velha estrada. Pedaços de macadame rachado aparecendo em meio a montes de cinza. Empurrou o menino para baixo e se agacharam sob a encosta escutando, arquejantes. Podiam ouvir o motor a diesel lá na estrada, funcionando a base Deus sabe do quê. Quando ele se levantou para olhar só podia ver o teto do caminhão movendo-se pela estrada. Homens de pé na caçamba, alguns deles segurando rifles. O caminhão passou e a fumaça preta do diesel formava espirais em meio à floresta. O som do motor viscoso. Falhando e indolente. Depois parou.

Ele afundou e colocou a mão no alto da cabeça. Deus, ele disse. Puderam ouvir a coisa chacoalhando e se agitando até parar. Depois apenas o silêncio. Ele estava com o revólver na mão, nem mesmo se lembrava de tê-lo tirado do cinto. Podiam ouvir os homens conversando. Ouvi-los abrir a porta e levantar o capô. Ele se sentou com o braço ao redor do menino. Shh, ele disse. Shh. Depois de algum tempo ouviram o caminhão começar a se movimentar. Pesadamente, estalando, como se fosse um navio. Não tinham outra maneira de fazê-lo pegar se não fosse empurrando e não conseguiam fazer com que fosse rápido o suficiente naquela encosta. Depois de uns poucos minutos o motor tossiu e deu solavancos e morreu outra vez. Ele levantou a cabeça para olhar e vindo por entre a floresta a uns seis metros de distância estava um deles desafivelando o cinto. Ambos ficaram paralisados.

Engatilhou o revólver e apontou-o para o homem e o homem estava de pé com uma das mãos ao lado do corpo, a máscara suja e amarrotada que ele usava subindo e descendo com a respiração.

Continue andando.

Ele olhou para a estrada.

Não olhe para lá. Olhe para mim. Se você gritar está morto.

Ele se aproximou, segurando o cinto com uma das mãos. Os buracos ali marcavam o progresso do seu emagrecimento e o couro num dos lados tinha um aspecto laqueado onde ele costumava afiar a lâmina da faca. Foi caminhando até a beira da estrada e olhou para a arma e olhou para o menino. Olhos marcados por rodelas de fuligem e muito fundos. Como um animal dentro de um crânio espiando pelas órbitas. Ele usava uma barba que tinha sido cortada rente com tesoura e tinha no pescoço uma tatuagem de um pássaro desenhado por alguém que não tinha uma noção muito precisa de sua aparência. Era magro, rijo, raquítico. Vestia um macacão azul imundo e um boné preto com o logotipo de alguma empresa desaparecida bordado na frente.

Aonde você está indo?

Eu ia cagar.

Aonde você está indo com o caminhão.

Não sei.

O que você quer dizer com não sei? Tire a máscara.

Ele tirou a máscara por cima da cabeça e ficou parado segurando-a.

Quero dizer que não sei, ele disse.

Você não sabe aonde está indo?

Não.

O caminhão está funcionando com o quê.

Diesel.

Quanto vocês têm?.

Temos tambores de duzentos litros na caçamba.

Têm munição para aquelas armas?

Ele olhou para a estrada lá atrás.

Eu te disse para não olhar para lá.

Temos. Temos munição sim.

Onde foi que conseguiram?

Encontramos.

Mentira. O que vocês comem?

Qualquer coisa que encontrarmos.

Qualquer coisa que encontrarem.

É. Ele olhou para o menino. Você não vai atirar, ele disse.

E o que você pensa.

Você só tem duas balas. Talvez uma só. E eles vão ouvir o tiro.

Eles vão sim. Mas você não.

Por que você acha isso?

Porque as balas são mais rápidas do que o som. Ela vai estar no seu cérebro antes que você possa ouvi-la. Para ouvi-la você precisa de um lobo frontal e coisas com nomes como colículo e giro temporal e você não vai tê-los mais. Vai ser tudo só uma sopa.

Você é médico?

Não sou nada.

Temos um homem ferido. Você seria recompensado.

Eu tenho cara de imbecil?

Não sei do que você tem cara.

Por que você está olhando para ele?

Eu olho para onde quiser.

Não olha não. Se você olhar para ele de novo eu atiro.

O menino estava sentado com as duas mãos no alto da cabeça e olhando por entre os antebraços.

Aposto que esse menino está com fome. Por que

você simplesmente não vem até o caminhão? Pegar alguma coisa para comer. Não precisa ser tão cabeça-dura.

Você não tem nada para comer. Vamos lá.

Vamos aonde?

Vamos lá.

Eu não vou a lugar nenhum.

Não vai?

Não. Não vou.

Você acha que eu não vou te matar mas está errado. Mas o que eu preferiria fazer seria te levar por essa estrada por um quilômetro e meio ou coisa assim e depois te libertar. É só dessa distância que nós precisamos. Você não vai nos encontrar. Não vai nem saber em que direção seguimos.

Sabe o que eu acho?

O que você acha.

Que você é um covarde.

Ele soltou o cinto e este caiu na estrada com os acessórios pendurados. Um cantil. Uma velha bolsa de lona do exército. Uma bainha de couro para faca. Quando ele ergueu os olhos, o rato de estrada segurava a faca na mão. Ele só tinha dado dois passos mas estava quase entre ele e o menino.

O que você pensa que vai fazer com isso?

Ele não respondeu. Era um homem grande mas muito rápido. Abaixou-se rapidamente e agarrou o menino e rolou e se levantou segurando-o de encontro ao peito com a faca em sua garganta. O homem já tinha caído no chão e girado com ele e apontado o revólver e atirado segurando-o com as duas mãos apoiado nos dois joelhos a uma distância de menos de dois metros. O homem caiu para trás instantaneamente e ficou caído com sangue brotando do buraco em sua testa. O menino estava deitado em seu colo sem qualquer expressão no rosto. Ele meteu o revólver no cinto e lançou a mochila por cima do ombro e levantou o menino e virou-o de lado e ergueu-o acima da cabeça e colocou-o em cima dos ombros e partiu pela velha estrada numa corrida desenfreada, segurando os joelhos do menino, o menino agarrado à sua testa, coberto de sangue e mudo como uma pedra.

Chegaram a uma velha ponte de ferro na floresta onde a estrada desaparecida cruzava um riacho praticamente desaparecido. Ele tinha começado a tossir e mal tinha fôlego suficiente para suportar a tosse. Saiu da estrada e entrou

na floresta. Virou-se e ficou de pé arquejante, tentando escutar. Não ouviu nada. Cambaleou por mais uns oitocentos metros ou coisa assim e finalmente caiu de joelhos e colocou o menino no chão entre as cinzas e folhas. Limpou o sangue de seu rosto e o abraçou. Está tudo bem, ele disse. Está tudo bem.

Durante a longa e fria noite com a escuridão caindo ele só os ouviu uma vez. Abraçou forte o menino. Havia uma tosse em sua garganta que nunca passava. O menino tão frágil e magro através do casaco, tremendo como um cão. Os passos nas folhas pararam. Então eles seguiram em frente. Não se falavam nem chamavam uns aos outros, o que deixara tudo mais sinistro. Com a investida final da escuridão o frio intenso se instalou e o menino a essa altura tremia violentamente. A lua não surgiu para além da escuridão e não havia para onde ir. Tinham um só cobertor na mochila e ele tirou-o e cobriu o menino com ele e abriu o zíper de sua parca e abraçou o menino junto de si. Ficaram ali deitados por um longo tempo mas estavam congelando e por fim ele se levantou. Temos que continuar, ele disse. Não podemos simplesmente ficar deitados aqui. Ele olhou ao redor mas não havia nada para ver. Ele falou para um negrume sem profundidade ou dimensão.

Ficou segurando a mão do menino enquanto tropeçavam pela floresta. A outra mão ele estendia diante de si. Não enxergaria pior se estivesse de olhos fechados. O menino estava embrulhado no cobertor e ele lhe disse para não deixá-lo cair porque nunca mais voltariam a encontrá-lo. Ele queria ser carregado mas o homem lhe disse que ele tinha que continuar andando. Eles tropeçaram e caíram pela floresta durante toda a noite e bem antes do nascer

do sol o menino caiu e não se levantou mais. Ele o envolveu em sua própria parca e o envolveu no cobertor e ficou sentado abraçado a ele, embalando-o para a frente e para trás. Uma única bala restava no revólver. Você não quer encarar a realidade. Não quer encarar.

Na luz incerta que passava por dia ele colocou o menino sobre as folhas e ficou sentado examinando a floresta. Quando ficou um pouco mais claro ele se levantou e caminhou e descreveu um perímetro ao redor do acampamento selvagem deles em busca de sinais mas além de sua própria trilha tênue através das cinzas não viu nada. Voltou e levantou o menino. Temos que ir, ele disse. O menino ficou sentado abaixado, o rosto inexpressivo. A sujeira seca em seu cabelo e seu rosto com veios de sujeira. Fale comigo, ele disse, mas ele não falava.


Rumaram para leste em meio às árvores mortas, ainda de pé. Passaram por uma velha casa de estrutura de madeira e cruzaram uma estrada de terra. Um pedaço de terreno limpo talvez outrora um jardim. Parando de tempos em tempos para tentar escutar. O sol invisível não projetava sombras. Eles chegaram à estrada inesperadamente e ele parou o menino com uma das mãos e eles se agacharam na vala da beira da estrada como leprosos e se puseram a escutar. Nenhum vento. Silêncio absoluto. Depois de algum tempo ele se levantou e caminhou até a estrada. Olhou para o menino lá atrás. Venha, ele disse. O menino se aproximou e o homem apontou para as marcas nas cinzas por onde o caminhão tinha passado. O menino ficou de pé embrulhado no cobertor olhando para o chão.


Ele não tinha como saber se eles haviam conseguido fazer o caminhão funcionar outra vez. Não tinha como saber por quanto tempo estariam dispostos a ficar aguardando, numa emboscada. Tirou a mochila do ombro com o dedo e se sentou e a abriu. Precisamos comer, ele disse. Está com fome?


O menino sacudiu a cabeça.


Não. E claro que não. Ele tirou dali a garrafa d’água de plástico e desatarraxou a tampa e estendeu-a, e o menino a apanhou e ficou de pé bebendo. Abaixou a garrafa, tomou fôlego, se sentou na estrada e cruzou as pernas e bebeu novamente. Então devolveu a garrafa e o homem bebeu e atarraxou a tampa outra vez e vasculhou dentro da mochila. Comeram uma lata de feijão branco, passando-a de um para o outro, e ele jogou a lata vazia na floresta. Seguiram novamente pela estrada.


As pessoas do caminhão tinham acampado na própria estrada. Tinham feito uma fogueira ali e pedaços queimados de madeira jaziam enfiados no asfalto derretido junto com cinza e ossos. Ele se agachou e colocou a mão por cima do asfalto. Um calor suave desprendendo-se dali. Pôs-se de pé e olhou para a estrada adiante deles. Então levou o menino consigo para o interior da floresta. Quero que você espere aqui, ele disse. Não vou estar longe. Vou poder te ouvir se você chamar.


Me leva com você, o menino disse. Parecia estar prestes a chorar.


Não. Quero que você espere aqui.


Por favor, Papai.


Pare. Quero que você faça o que estou dizendo. Pegue a arma.


Não quero a arma.


Não te perguntei se você queria. Pegue.


Ele caminhou pela floresta até o lugar onde tinham deixado o carrinho. Ainda estava ali mas tinha sido pilhado. As poucas coisas que não tinham levado espalhadas sobre as folhas. Alguns livros e brinquedos que pertenciam ao menino. Seus sapatos velhos e uns trapos de roupas. Endireitou o carrinho e colocou as coisas do menino ali dentro e o empurrou até a estrada. Depois voltou. Não havia nada ali. Sangue seco e escuro nas folhas. A mochila do menino tinha sumido. Voltando ele encontrou os ossos e a pele empilhados juntos com pedras por cima. Uma poça de vísceras. Ele empurrou os ossos com a ponta do sapato. Pareciam ter sido cozidos. Nenhuma peça de roupa. A escuridão estava voltando e já fazia muito frio e ele se virou e foi para onde tinha deixado o menino e se ajoelhou e passou os braços ao redor dele.


Empurraram o carrinho pela floresta até onde ia a estrada velha e deixaram-no ali e se encaminharam para o sul ao longo da estrada apressando-se antes que escurecesse. O menino estava tropeçando de tão cansado e o homem pegou-o e o passou por cima do ombro e seguiram em frente. Quando chegaram à ponte já mal havia luz. Ele colocou o menino no chão e eles encontraram seu caminho tateando, descendo pelo aterro. Sob a ponte ele pegou o isqueiro, acendeu-o e varreu o chão com a luz bruxuleante. Areia e cascalho trazidos pelo riacho. Ele colocou no chão a mochila e apagou o isqueiro e segurou o menino pelo ombro. Mal podia divisá-lo na escuridão. Quero que você espere aqui, ele disse. Vou procurar madeira. Temos que acender uma fogueira aqui.


Estou com medo.


Eu sei. Mas eu só vou demorar um pouquinho e vou poder te ouvir então se ficar com medo pode me chamar que eu venho no mesmo instante.

Estou com muito medo.

Quanto mais cedo eu for mais cedo vou voltar e vamos ter uma fogueira e você não vai mais ficar com medo. Não se deite. Se você se deitar vai adormecer e então se eu te chamar você não vai responder e eu não vou conseguir te encontrar. Está entendendo?

O menino não respondeu. Ele estava a ponto de perder a paciência quando percebeu que ele balançava a cabeça na escuridão. Está bem, ele disse. Está bem.

Escalou a encosta e voltou para a floresta, mantendo as mãos estendidas à sua frente. Havia mata em toda parte, ramos mortos e galhos espalhados pelo chão. Ele caminhava arrastando os pés e chutando-os até formar uma pilha e quando já tinha uma braçada ele se abaixou e apanhou tudo e chamou o menino e o menino respondeu e falou com ele até que ele conseguisse voltar para a ponte. Ficaram sentados no escuro enquanto ele aparava espetos com sua faca e formava uma pilha e quebrava os galhinhos com a mão. Tirou o isqueiro do bolso e girou a roda com o polegar. Ele usava gasolina no isqueiro e ele queimava com uma chama azul e fraca e ele se curvou e acendeu a isca e observou enquanto o fogo subia através dos ramos. Empilhou mais madeira e se curvou e soprou de leve na base do pequeno lume e arrumou a madeira com as mãos, ajeitando a fogueira.

Fez mais duas viagens à floresta, arrastando braçadas de mato seco e ramos para a ponte e empurrando-as pela lateral. Podia ver o lume do fogo de alguma distância mas não achava que podia ser visto da outra estrada. Abaixo da ponte ele podia divisar um poço escuro de água parada em meio às pedras.Uma beira de gelo se formando.Ficou de pé na ponte e empurrou a última pilha de madeira, sua respiração branca sob o lume da fogueira.

Sentou-se na areia e fez um inventário do conteúdo da mochila. O binóculo. Um frasco de meio quartilho de gasolina quase cheio. A garrafa d’água. Um alicate. Duas colheres. Colocou tudo numa fileira. Havia cinco latinhas de comida e ele escolheu uma lata de salsichas e uma de milho e abriu-as com o pequeno abridor de latas do exército e colocou-as na beira da fogueira e ficou observando os rótulos queimando e se enroscando. Quando o milho começou a fumegar ele pegou as latas do fogo com o alicate e se sentaram debruçados sobre elas com suas colheres, comendo devagar. O menino estava dando cabeçadas de sono.


Quando tinham comido ele levou o menino para a faixa de cascalho embaixo da ponte, empurrou com um graveto a fina camada de gelo da superfície e se ajoelharam enquanto ele lavava o rosto e o cabelo do menino. A água estava tão fria que o menino chorava. Afastaram o cascalho para encontrar água limpa e ele lavou o cabelo dele de novo da melhor forma que conseguiu e finalmente parou porque o menino gemia com o frio da água. Enxugou-o com o cobertor, ajoelhando-se ali no brilho da luz com a sombra da estrutura inferior da ponte se projetando na paliçada de troncos de árvores para além do riacho. Este é o meu filho, ele disse. Eu lavo os miolos de um homem morto do seu cabelo. Essa é a minha tarefa. Então ele o embrulhou no cobertor e o levou para a fogueira.


O menino ficou sentado vacilando. O homem o observava para que ele não caísse em cima das chamas. Abriu com o pé buracos na areia para os quadris e para os ombros do menino onde ele dormiria e ficou abraçado a ele enquanto mexia em seu cabelo diante do fogo para secá-lo. Tudo isto feito uma antiga extrema-unção. Que seja então. Evoque as formas. Onde você não tem mais nada construa cerimônias do ar e sopre nelas.


Ele acordou no meio da noite com o frio e se levantou e quebrou mais madeira para o fogo. Os vultos de raminhos de árvore queimando com um alaranjado incandescente nos carvões. Soprou nas chamas até avivá-las, empilhou a madeira e ficou sentado com as pernas cruzadas, apoiado no pilar de pedra da ponte. Pesados blocos de calcário empilhados sem argamassa. Lá em cima as ferragens marrons de ferrugem, os rebites presos com martelo, os dormentes e as vigas transversais de madeira. A areia onde ele se sentava estava morna ao toque mas a noite para além da fogueira era de um frio lancinante. Ele se levantou e arrastou mais madeira para baixo da ponte. Ficou de pé escutando. O menino não se movia. Ele se sentou ao lado dele e afagou seu cabelo pálido e embaraçado. Cálice dourado, próprio para hospedar um deus. Por favor não me diga como a história termina. Quando ele olhou outra vez para a escuridão para além da ponte estava nevando.


Toda a madeira que tinham para queimar era madeira fina e a fogueira ficaria acesa por não mais do que uma hora ou talvez um pouco mais. Ele arrastou o resto do mato para debaixo da ponte e partiu-o, ficando de pé em cima dos ramos e rachando-os no comprimento. Achou que o barulho fosse acordar o menino, mas não acordou.


A madeira molhada sibilava nas chamas, a neve continuava a cair. Pela manhã eles veriam se havia rastros na estrada ou não. Aquele havia sido o primeiro ser humano além do menino com quem ele falava em mais de um ano. Meu irmão pelo menos. Os cálculos traiçoeiros naqueles olhos frios e rápidos. Os dentes cinzentos e apodrecidos. Com carne humana grudada. Que transformou o mundo numa mentira a cada palavra. Quando ele voltou a acordar a neve tinha parado e a aurora granulosa delineava a floresta para além da ponte, as árvores pretas contra a neve. Ele estava deitado encurvado com as mãos no meio dos joelhos e se sentou e alimentou a fogueira e colocou uma lata de beterrabas nas brasas. O garoto o observava encolhido no chão.


A neve recente estava caída em montes em toda parte na floresta, ao longo dos ramos e empilhada nas folhas, toda ela já suja com as cinzas. Eles caminharam até onde tinham deixado o carrinho e ele colocou a mochila nele e empurrou-o até a estrada. Nenhuma marca de rodas. Ficaram parados escutando no silêncio absoluto. Então partiram pela estrada através da neve suja e cinzenta, meio derretida, o menino ao lado dele com as mãos nos bolsos.


Caminharam com dificuldade durante o dia inteiro, o menino em silêncio. A tarde a neve cinzenta já tinha derretido na estrada e à noite ela já estava seca. Não pararam. Quantos quilômetros? Dez, vinte. Costumavam jogar malha na estrada com quatro arruelas grandes de aço que tinham encontrado numa loja de ferragens mas elas tinham sumido junto com tudo mais. Naquela noite acamparam numa ravina e fizeram uma fogueira junto a uma pequena ribanceira de pedra e comeram sua última lata de comida. Ele a havia deixado por último porque era a favorita do menino, porco e feijão. Observaram-na borbulhar lentamente sobre os carvões e ele pegou a lata com o alicate e comeram em silêncio. Ele lavou a lata vazia com água e deu-a para o menino beber e foi tudo. Eu devia ter tomado mais cuidado, ele disse.


O menino não respondeu.


Você tem que falar comigo.


Está bem.


Você queria saber como eram os caras do mal. Agora já sabe. Pode acontecer de novo. Minha tarefa é tomar conta de você. Eu recebi essa tarefa de Deus. Vou matar qualquer um que toque em você. Está entendendo?


Estou.


Ele ficou sentado ali encapuzado com seu cobertor. Depois de algum tempo levantou os olhos.

Nós ainda somos os caras do bem? ele disse.


Somos. Ainda somos os caras do bem.


E sempre vamos ser.


Sim. Sempre vamos ser.


Está bem.


Pela manhã eles saíram da ravina e seguiram pela estrada novamente. Ele tinha entalhado para o menino uma flauta com um pedaço de bambu de beira de estrada e tirou-a do casaco e deu-a a ele. O menino a apanhou sem dizer nenhuma palavra. Depois de algum tempo ficou para trás e o homem pôde ouvi-lo tocando. Uma música informe para a era que estava para vir. Ou talvez a última música na Terra fosse evocada das cinzas de sua ruína. O homem se virou e olhou para ele, lá atrás. Estava perdido em sua concentração. O homem pensou que ele parecia alguma criança trocada, um

changeling,

perdido e solitário, anunciando a chegada de um espetáculo itinerante em vilarejos e aldeias, sem saber que atrás dela os atores foram todos levados pelos lobos.

Ele estava sentado de pernas cruzadas sobre as folhas no topo de uma serrania e vasculhava o vale lá embaixo com o binóculo. A forma imóvel e derramada de um rio. As hastes negras de tijolos de um moinho. Tetos de ardósia. Uma velha torre d’água presa com arcos de ferro. Nenhuma fumaça, nenhum movimento de vida. Abaixou o binóculo e ficou sentado observando.

O que você está vendo? o menino disse.

Nada.

Entregou-lhe o binóculo. O menino passou a correia por trás do pescoço, colocou-o junto aos olhos e ajustou o foco. Tudo ao redor deles parecia tão imóvel.

Estou vendo fumaça, ele disse.

Onde.

Atrás daquelas construções.

Que construções?

O menino devolveu o binóculo e ele reajustou o foco. Um fiapo tênue. Sim, ele disse. Estou vendo.

O que a gente devia fazer, Papai?

Acho que devíamos dar uma olhada. Só temos que ser cuidadosos. Se for uma comuna eles terão barricadas. Mas pode ser que sejam só refugiados.

Como nós.

Sim. Como nós.

E se forem os caras do mal?

Vamos ter que correr o risco. Precisamos encontrar alguma coisa para comer.

Deixaram o carrinho na floresta e cruzaram um trilho de ferrovia e chegaram a uma encosta íngreme através de hera seca e negra. Ele levava o revólver na mão. Fique perto, falou. Ele obedeceu. Avançaram pelas ruas feito saqueadores. Um quarteirão de cada vez. Um leve cheiro de fumaça de madeira no ar. Esperaram numa loja e ficaram observando a rua mas nada se movia. Atravessaram o lixo e o entulho. Gavetas de armário espalhadas pelo chão, papel e caixas de papelão inchadas. Não encontraram nada. Todas as lojas tinham sido saqueadas anos antes, as janelas já praticamente não tinham vidro. Lá dentro estava quase escuro demais para enxergar. Subiram os degraus de aço com nervuras de uma escada rolante, o menino segurando sua mão. Uns poucos ternos empoeirados pendendo de uma arara. Procuraram por sapatos mas não havia nenhum. Vasculharam entre o lixo mas não havia nada ali que um dos dois pudesse usar. Quando voltaram ele tirou os paletós dos ternos de seus cabides e sacudiu-os e os dobrou por cima do braço. Vamos, ele disse.

Ele achava que alguma coisa devia ter passado despercebida, mas não. Vasculharam com os pés o lixo nos corredores de um mercado. Velhas embalagens e papéis e as eternas cinzas. Ele percorreu rapidamente as prateleiras em busca de vitaminas. Abriu a porta de uma geladeira industrial mas o fedor azedo dos mortos saiu da escuridão e ele rapidamente fechou-a outra vez. Ficaram parados na rua. Olhou para o céu cinzento. O vapor suave de suas respirações. O menino estava exausto. Ele o segurou pela mão. Temos que procurar mais um pouco, ele disse. Temos que continuar procurando.


As casas nos limites da cidade ofereciam pouco mais. Subiram os degraus dos fundos de uma cozinha e começaram a vasculhar nos armários. As portas dos armários todas abertas. Uma lata de fermento. Ele ficou ali olhando para ela. Vasculhou as gavetas de um aparador na sala de jantar. Foram até a sala de estar. Rolos de papel de parede caídos no chão como documentos antigos. Deixou o menino sentado na escada segurando os paletós enquanto ele subia.


Tudo cheirava a umidade e podridão. No primeiro quarto um cadáver ressecado com as cobertas na altura do pescoço. Restos de cabelo apodrecido no travesseiro. Ele segurou a bainha inferior do cobertor e puxou-o para fora da cama e o sacudiu e dobrou debaixo do braço. Vasculhou as cômodas e os armários. Um vestido de verão num cabide de arame. Nada. Desceu novamente a escada. Estava ficando escuro. Pegou o menino pela mão e saíram pela porta da frente até a rua.


No alto da colina ele se virou e examinou a cidade. Escuridão chegando rápido. Escuridão e frio. Ele colocou dois dos paletós sobre os ombros do menino, envolvendo-o, parca e tudo.


Estou com muita fome, Papai.


Eu sei.


Vamos conseguir encontrar nossas coisas?


Sim. Eu sei onde elas estão.


E se alguém encontrar?


Não vão encontrar.


Espero que não.


Não vão. Venha.


O que foi isso?


Não ouvi nada.


Escute.


Não estou ouvindo nada.


Ficaram escutando. Então na distância ouviram um cachorro latir. Ele se virou e olhou na direção da cidade que escurecia. E um cachorro, ele disse.


Um cachorro?


Sim.


De onde veio?


Não sei.


Não vamos matá-lo, vamos, Papai?


Não. Não vamos matá-lo.


Ele baixou os olhos para o menino. Tremendo sob os casacos. Curvou-se e o beijou no rosto áspero. Não vamos machucar o cachorro, ele disse. Eu prometo.


Dormiram num carro estacionado debaixo de um viaduto com os paletós e o cobertor empilhados em cima deles. Na escuridão e no silêncio ele podia ver lampejos de luz que apareciam a esmo na grade da noite. Os andares mais altos dos prédios estavam todos escuros. As pessoas teriam que carregar água lá para cima. Podiam ser desentocadas. O que eles estavam comendo? Sabe Deus. Eles estavam sentados embrulhados nos paletós olhando pela janela. Quem são eles, Papai?


Não sei.


Acordou durante a noite e ficou escutando. Não conseguia se lembrar de onde estava. O pensamento o fez sorrir. Onde estamos? ele disse.

O que foi, Papai?

Nada. Está tudo bem. Vá dormir.


Vamos ficar bem, não vamos, Papai?


Sim. Vamos sim.


E nada de ruim vai acontecer com a gente.


Isso mesmo.


Porque trazemos o fogo.


Sim. Porque trazemos o fogo.


Pela manha uma chuva fria caía. Arremessava-se contra o carro em lufadas mesmo sob o viaduto e dançava na estrada lá adiante. Ficaram sentados observando através da água no vidro. Quando diminuiu, boa parte do dia já tinha passado. Deixaram os casacos e o cobertor no chão do banco de trás e saíram pela estrada para vasculhar mais algumas casas. Fumaça de madeira no ar úmido. Não voltaram a ouvir o cachorro.


Encontraram alguns utensílios e algumas peças de roupa. Um suéter. Um pedaço de plástico que podiam usar como lona. Ele tinha certeza de que estavam sendo observados, mas não via ninguém. Numa despensa eles encontraram parte de um saco de fubá que ratos tinham comido tempos antes. Peneirou a farinha com um pedaço da tela da janela e pegou um punhado de excrementos secos e eles acenderam uma fogueira na varanda de concreto da casa e fizeram bolos com a farinha e cozinharam-nos num pedaço de folha-de-flandres. Comeram-nos devagar um a um. Ele embrulhou os poucos que sobraram num papel e colocou-os na mochila.


O menino estava sentado nos degraus quando viu alguma coisa se mover nos fundos da casa do outro lado da estrada. Um rosto olhava para ele. Um menino, mais ou menos da sua idade, usando um casaco de lã grande demais com as mangas dobradas. Ele se pôs de pé. Correu pela estrada e até a entrada dos carros. Ninguém ali. Olhou na direção da casa e então correu até os fundos do quintal através do mato seco até um riacho parado e negro. Volte, ele disse. Não vou te machucar. Ele estava de pé ali chorando quando seu pai veio correndo do outro lado da estrada e o agarrou pelo braço.


O que você está fazendo? ele sibilou. O que você está fazendo?


Tem um menininho, Papai. Tem um menininho.


Não tem menininho nenhum. O que você está fazendo ?


Tem sim. Eu vi ele.


Disse para você ficar quieto. Não disse? Agora temos que ir. Venha.


Eu só queria ver ele, Papai. Só queria ver ele.


O homem levou-o pelo braço e eles voltaram através do quintal. O menino não parava de chorar e não parava de olhar para trás. Vamos, o homem disse. Temos que ir.


Quero ver ele, Papai.


Não há ninguém para ver. Você quer morrer? E isso o que você quer?


Não me importo, o menino disse, soluçando. Não me importo.


O homem parou. Parou e se agachou e o abraçou. Me desculpe, ele disse. Não diga isso. Você não deve dizer isso.


Voltaram passando pelas ruas molhadas até o viaduto e pegaram os casacos e o cobertor no carro e seguiram até o aterro da ferrovia onde subiram e atravessaram os trilhos até chegar à floresta e pegaram o carrinho e se encaminharam para a rodovia.


E se o menininho não tiver ninguém para cuidar dele? falou. E se ele não tiver um Pai?


Há pessoas aqui. Elas só estavam escondidas.


Ele empurrou o carrinho para a estrada e ficou parado ali. Podia ver as marcas do caminhão nas cinzas molhadas, fracas e desbotadas, mas ali. Achava que podia sentir o cheiro delas. O menino puxava seu casaco.


Papai, ele disse.


O quê?


Estou preocupado com aquele menininho.


Eu sei. Mas ele vai ficar bem.


A gente devia ir buscar ele, Papai. A gente podia pegar ele e trazer ele junto com a gente. A gente podia pegar ele e podia pegar o cachorro. O cachorro podia encontrar alguma coisa para comer.


Não podemos.


E eu daria para aquele menininho a metade da minha comida.


Pare. Não podemos.


Ele estava chorando outra vez. Mas e o menininho? ele soluçava. Mas e o menininho?


Numa encruzilhada eles se sentaram com o pôr-do-sol e espalharam os pedaços do mapa na estrada e os estudaram. Ele abaixou o dedo. Nós estamos aqui, ele disse. Bem aqui. O menino não queria olhar. Ele ficou sentado estudando a rede retorcida de caminhos em vermelho e preto com o dedo no entroncamento onde ele achava que poderiam estar. Como se pudesse ver eles próprios pequeninos agachados ali. Podíamos voltar, o menino disse baixinho. Não é tão longe. Não está tão tarde.


Acamparam numa floresta não longe da estrada. Não conseguiram encontrar um lugar abrigado para fazer uma fogueira que não fosse ser vista então não fizeram nenhuma. Cada um deles comeu dois dos bolos de fubá e dormiram juntos acotovelando-se no chão nos casacos e cobertores. Ele abraçou a criança e depois de algum tempo a criança parou de tremer e depois de algum tempo dormiu.


O cachorro de que ele se lembra nos seguiu por dois dias. Eu tentei chamá-lo de forma amigável para que se aproximasse, mas ele não vinha. Fiz um laço de arame para prendê-lo. Havia três cartuchos no revólver. Nenhum sobrando. Ela foi caminhando pela estrada. O menino olhou para ela e depois olhou para mim e depois olhou para o cachorro e começou a chorar e pediu pela vida do cachorro e eu prometi que não ia machucar o cachorro. Um cachorro que mais parecia um pedaço de treliça com a pele esticada por cima. No dia seguinte ele tinha ido embora. Esse é o cachorro de que ele se lembra. Não se lembra de nenhum menininho.


Tinha posto um punhado de uvas-passas num pano em seu bolso e ao meio-dia eles se sentaram na grama seca na beira da estrada e as comeram. O menino olhou para ele. E tudo o que a gente tem, não é?


Sim.


Nós vamos morrer agora?


Não.


O que vamos fazer?


Vamos beber um pouco d água. Depois vamos continuar seguindo pela estrada.


Está bem.


A noite eles vagaram por um campo tentando encontrar um lugar onde sua fogueira não fosse vista. Arrastando o carrinho atrás deles pelo chão. Tão poucas promessas naquela região. No dia seguinte encontrariam alguma coisa para comer. A noite os surpreendeu numa estrada enlameada. Eles a atravessaram até chegar num campo e caminharam com dificuldade na direção de um grupo distante de árvores destacadas duras e negras contra o fim do mundo visível. Quando chegaram lá já era noite fechada. Ele segurou a mão do menino e chutou ramos e moitas e acendeu uma fogueira. A madeira estava molhada mas ele raspou a casca com sua faca e empilhou o mato e as hastes ao redor para secar no calor. Estendeu então a folha de plástico no chão e pegou os casacos e cobertores do carrinho e tirou os sapatos úmidos e enlameados de ambos e eles ficaram sentados ali em silêncio com as mãos estendidas para o fogo. Ele tentou pensar em algo para dizer mas não conseguia. Já tinha tido esse pensamento antes, para além do torpor e do desespero embotado. O mundo encolhendo em torno de um núcleo cru de entidades analisáveis. Os nomes das coisas lentamente seguindo essas coisas rumo ao esquecimento. Cores. Os nomes dos pássaros. Coisas para comer. Finalmente os nomes das coisas que se acreditava serem verdadeiras. Mais frágeis do que ele teria pensado. Quanto já tinham desaparecido? O idioma sagrado cortado dos referenciais e portanto da realidade. Recolhendo-se como alguma coisa tentando preservar o calor. No momento de oscilar e se perder para sempre.


Dormiram a noite toda em sua exaustão e pela manhã a fogueira tinha apagado e estava preta no chão. Ele puxou os sapatos enlameados e foi juntar lenha, soprando em suas mãos juntas em cunha. Tão frio. Poderia ser novembro. Poderia ser depois disso. Acendeu a fogueira e foi até a beira da floresta e ficou olhando para a região rural. Os campos mortos. Um celeiro a distância.


Caminharam pela estrada de terra ladeando um morro onde outrora tinha havido uma casa. Ela pegara fogo havia muito tempo. O vulto enferrujado de uma fornalha erguendo-se na água preta do porão. Lâminas de metal carbonizadas que antes tinham feito parte do telhado enrugadas no campo para onde o vento as havia soprado. No celeiro eles juntaram uns poucos punhados de algum cereal que ele não reconheceu no chão empoeirado de um depósito de metal e pararam para comê-lo com poeira e tudo. Depois se puseram a caminho da estrada através dos campos.


Seguiram um muro de pedra atravessando as ruínas de um pomar. As árvores em suas fileiras ordenadas retorcidas e pretas e seus ramos caídos profusamente no chão. Ele parou e olhou através dos campos. Vento a leste. As cinzas macias movendo-se nos sulcos. Parando. Movendo-se outra vez. Ele tinha visto tudo aquilo antes. Manchas de sangue coagulado no capim seco e rolos cinzentos de vísceras onde as pessoas mortas violentamente tinham sido estripadas e arrastadas para outro lugar. O muro adiante ostentava um friso de cabeças humanas, todas com rostos parecidos, secos e murchos com seu arreganhar teso de dentes e os olhos afundados. Usavam argolas de ouro nas orelhas de couro e no vento seu cabelo ralo e surrado enroscava-se no crânio. Os dentes nas mandíbulas feito moldes dentários, as tatuagens cruas gravadas com alguma tintura caseira desbotadas sob o sol mendigado. Aranhas, espadas, alvos. Um dragão. Slogans em runas, credos escritos de maneira errada. Antigas cicatrizes com antigos motivos alinhavados nas beiradas. As cabeças que não tinham sido golpeadas com porretes até ficarem disformes tinham sido esfoladas e os crânios nus pintados e marcados na testa com garranchos e um crânio de ossos brancos tinha as suturas dos ossos pintadas cuidadosamente com tinta feito um projeto para montagem. Ele olhou para o menino atrás dele. Parado junto ao carrinho sob o vento. Olhou para o capim seco onde ele se movia e para as árvores escuras e retorcidas em suas fileiras. Uns poucos trapos de roupa soprados de encontro ao muro, tudo cinzento sobre as cinzas. Ele caminhou junto ao muro passando pelas máscaras numa última revista e subindo degraus até sair para onde o menino estava esperando. Passou o braço pelo ombro dele. Está bem, ele disse. Vamos.


Ele tinha passado a ver uma mensagem em cada uma dessas últimas histórias, uma mensagem e uma advertência, e era isso o que mostrava ser aquele quadro dos mortos e dos devorados. Acordou pela manhã e se virou no cobertor e olhou para a estrada lá atrás através das árvores para o caminho pelo qual tinham vindo a tempo de ver as pessoas marchando aparecendo em fileiras de quatro, ombro a ombro. Vestidas com roupas de todas as descrições, todas usando lenços vermelhos no pescoço. Vermelhos ou laranja, o mais próximos do vermelho que puderam encontrar. Ele pôs a mão na cabeça do menino. Shh, ele disse.


O que foi, Papai?


Gente na estrada. Fique com a cabeça abaixada. Não olhe.


Nenhuma fumaça da fogueira extinta. O carrinho não estava visível. Ele se afundou no chão e ficou deitado observando através do antebraço. Um exército de tênis, caminhando pesadamente. Carregando pedaços de cano com um metro de comprimento envolvidos em couro. Correias na cintura. Alguns dos canos estavam enroscados com pedaços de corrente de cuja ponta pendia todo tipo de porrete. Passaram com um estrépito, marchando com um vaivém como o de bonecos de corda. Barbados, seu hálito fumegando através das máscaras. Shh, ele disse. Shh. A falange que se seguia carregava lanças ornadas com fitas, as lâminas compridas feitas com martelo usando molas de caminhão em alguma ferraria tosca do interior. O menino estava deitado com o rosto entre os braços, aterrorizado. Passavam a sessenta metros de distância, o chão tremendo de leve. Com passos pesados. Atrás deles vinham vagões arrastados por escravos usando arreios e lotados com artigos de guerra e depois deles as mulheres, talvez uma dúzia delas, algumas grávidas, e por fim uma companhia suplementar de catamitas com roupas insuficientes para o frio, usando coleiras de cachorro e presos uns aos outros. Todos passaram. Eles ficaram ouvindo.


Já foram, Papai?


Sim, já foram.


Você viu eles?


Sim.


Eram os caras do mal?


Sim, eram os caras do mal.


Tem um bocado deles, desses caras do mal.


Tem sim. Mas eles já foram.


Puseram-se de pé e limparam as roupas, ouvindo o silêncio a distância.


Para onde eles vão, Papai?


Não sei. Estão em movimento. Isso não é um bom sinal.


Por que não é um bom sinal?


Simplesmente não é. Precisamos pegar o mapa e dar uma olhada.


Puxaram o carrinho do mato com o qual o haviam coberto e ele o levantou, empilhou os cobertores ali e os casacos, empurraram-no até a estrada e ficaram olhando para onde a última pessoa daquela horda esfarrapada parecia pender como uma imagem persistente no ar imóvel.


À tarde começou a nevar outra vez. Ficaram observando os flocos de um cinza pálido caindo como que de uma peneira da penumbra sombria. Continuaram caminhando com dificuldade. Um pouco de neve suja se acumulando na superfície escura da estrada. O menino estava a todo momento ficando para trás e ele parava para esperar. Fique comigo, falou.


Você anda rápido demais.


Vou mais devagar.


Seguiram em frente.


Você não está falando de novo.


Estou falando.


Quer parar?


Sempre quero parar.


Temos que tomar mais cuidado. Eu tenho que tomar mais cuidado.


Eu sei.


Vamos parar. Está bem?


Está bem.


Só temos que encontrar um lugar.


Está bem.


A neve que caía os encortinava. Não havia modo de ver coisa alguma em qualquer dos dois lados da estrada. Ele tossia outra vez e o menino tremia, os dois lado a lado sob a folha de plástico, empurrando o carrinho de supermercado através da neve. Por fim ele parou. O menino tremia de modo incontrolável.


Temos que parar, ele disse.


Está muito frio.


Eu sei.


Onde a gente está?


Onde a gente está?

É.

Não sei.

Se a gente fosse morrer você ia me dizer?

Não sei. Nós não vamos morrer.

Deixaram o carrinho virado num campo de junça e ele pegou os casacos e os cobertores envolvidos pela lona de plástico e seguiram adiante. Segure-se no meu casaco, falou. Não solte. Atravessaram a junça até chegar a uma cerca e passaram por ela, segurando o arame um para o outro com as mãos. O arame estava frio e estalava nos grampos. Escurecia rápido. Seguiram em frente. O lugar aonde chegaram era uma floresta de cedros, as árvores mortas e pretas mas ainda cheias o bastante para segurar a neve. Sob cada uma um precioso círculo de terra preta e folhas mortas de cedro.

Eles se arrumaram debaixo de uma árvore e empilharam os cobertores e casacos no chão e ele envolveu o menino com um dos cobertores e começou a juntar as agulhas mortas numa pilha. Abriu com o pé uma clareira na neve onde o fogo não fosse incendiar a árvore e pegou madeira das outras árvores, quebrando os ramos e sacudindo a neve deles. Quando acendeu o isqueiro junto à fértil isca o fogo pegou instantaneamente e ele soube que não duraria muito. Olhou para o menino. Tenho que ir buscar mais lenha, ele disse. Vou estar nos arredores. Está bem?

Onde são os arredores?

Só quer dizer que não vou estar longe.

Está bem.

A neve a essa altura já alcançava uns quinze centímetros no chão. Ele tropeçou entre as árvores puxando os galhos caídos de onde eles se projetavam na neve e, quando já tinha uma braçada cheia e voltou para a fogueira, esta já estava reduzida a um ninho de brasas trêmulas. Jogou os galhos no fogo e saiu novamente. Difícil se afastar. A floresta estava ficando escura e a luz da fogueira não alcançava longe. Se ele se apressasse só ficava mais fraco. Quando olhou para trás o menino caminhava com dificuldade através da neve que chegava até o meio das suas canelas juntando ramos e empilhando-os nos braços.

A neve caía e não parou de cair. Ele acordou a noite inteira e se levantou e reavivou a fogueira. Tinha desdobrado a lona e escorado uma ponta debaixo da árvore para tentar refletir o calor da fogueira. Olhou para o rosto do menino dormindo sob a luz laranja. As bochechas afundadas sujas de preto. Lutou contra a raiva. Era inútil. Ele não achava que o menino pudesse viajar muito mais. Mesmo que parasse de nevar a estrada ficaria quase intransitável. A neve sussurrava na quietude e as centelhas se elevavam e enfraqueciam e morriam no negrume eterno.


Ele estava meio adormecido quando ouviu um estrondo na floresta. Depois mais um. Sentou-se. A fogueira estava reduzida a chamas espalhadas em meio às brasas. Ele ficou escutando. O estalar comprido e seco de ramos se partindo. Depois outro estrondo. Estendeu o braço e sacudiu o menino. Acorde, ele disse. Temos que ir.


Ele esfregou os olhos para tirar o sono com as costas das mãos. O que foi? ele disse. O que foi, Papai?


Venha. Temos que ir.


O que foi?


São as árvores. Elas estão caindo.


O menino se sentou e olhou ao redor desesperadamente.


Está tudo bem, o homem disse. Venha. Temos que correr.


Ele pegou as cobertas e as dobrou e as envolveu com a lona. Olhou para cima. A neve caiu em seus olhos. A fogueira já quase não passava de carvões e não emitia luz alguma e a floresta tinha quase desaparecido e as árvores estavam caindo por toda parte ao redor deles na escuridão. O menino se agarrava a ele. Afastaram-se e ele tentou encontrar um lugar desimpedido na escuridão mas por fim colocou a lona no chão e eles simplesmente se sentaram e ele puxou os cobertores por cima e abraçou o menino junto de si. O estrondo das árvores caindo e o baque fraco dos montes de neve explodindo no chão faziam o chão estremecer. Ele abraçou o menino e disse que ficaria tudo bem e que ia acabar logo e depois de algum tempo acabou. A surda confusão morrendo na distância. E mais uma vez, solitário e muito distante. Depois nada. Pronto, ele disse. Acho que isso é tudo. Ele cavou um túnel debaixo de uma das árvores caídas, puxando a neve para fora com os braços, as mãos congeladas escondidas dentro das mangas. Arrastaram as cobertas lá para dentro e a lona e depois de algum tempo dormiram novamente apesar do frio intenso.


Quando o dia raiou ele abriu caminho para fora da toca deles, a lona pesada de neve. Ele se pôs de pé e olhou ao redor. Tinha parado de nevar e os cedros estavam espalhados em morros de neve e ramos quebrados e alguns poucos troncos que ainda estavam de pé desfolhados e queimados naquela paisagem cada vez mais acinzentada.Ele caminhou com dificuldade através dos montes de neve deixando o menino adormecido sob a árvore como algum animal hibernando. A neve chegava quase aos seus joelhos. No campo a junça morta tinha sido levada até quase se perder de vista e a neve estava acumulada em montes pontiagudos sobre o arame da cerca e fazia um silêncio impassível. Ele ficou apoiado numa coluna tossindo. Fazia pouca ideia de onde o carrinho se encontrava e achou que estava ficando estúpido e que sua cabeça não estava funcionando direito. Concentre-se, ele disse. Você tem que pensar. Quando ele se virou para voltar o menino o chamava.

Temos que ir, ele disse. Não podemos ficar aqui.

O menino olhava tristemente para os montes cinzentos de neve.

Vamos.

Abriram caminho por entre a cerca.

Aonde a gente vai? o menino disse.

Temos que encontrar o carrinho.

Ele apenas ficou ali, as mãos nas axilas da parca.

Venha, o homem disse. Você tem que vir.

Ele atravessou os campos cobertos de montes de neve. A neve estava funda e cinzenta. Já havia uma camada recente de cinzas sobre ela. Esforçou-se por mais alguns metros e depois se virou e olhou para trás. O menino tinha caído. Ele largou os cobertores e a lona que levava no braço, voltou e o levantou. Ele já estava tremendo. Ele o levantou e o abraçou.

Me desculpe, ele disse.

Me desculpe.

Demoraram muito tempo para encontrar o carrinho. Ele o apanhou no meio dos montes de neve e o endireitou e cavou para tirar a mochila e a balançou e abriu e enfiou ali um dos cobertores. Colocou a mochila e os outros cobertores e os casacos no carrinho e pegou o menino e colocou-o no alto e desfez os laços dos seus sapatos e tirou-os. Então ele pegou sua faca e se pôs a cortar um dos casacos e a envolver os pés do menino. Usou o casaco inteiro e então cortou quadrados grandes de plástico da lona e os juntou por baixo e envolveu os pés e os amarrou na altura dos tornozelos do menino com o forro das mangas dos casacos. Recuou. O menino olhou para baixo. Agora você, Papai, ele disse. Ele envolveu o menino com um dos casacos e então se sentou na lona na neve e envolveu seus próprios pés. Levantou-se e aqueceu a mão dentro de sua parca e então guardou os sapatos deles na mochila junto com o binóculo e o caminhão do menino. Sacudiu a lona e a dobrou e amarrou junto com os outros cobertores no alto da mochila e então colocou-a sobre os ombros e deu uma última olhada no interior do carrinho, mas isso era tudo. Vamos, falou. O menino deu uma última olhada para o carrinho e a seguir o acompanhou até a estrada.

Era mais difícil prosseguir do que ele tinha imaginado. Depois de uma hora tinham avançado talvez um quilômetro e meio. Ele parou e olhou para o menino lá atrás. O menino parou e ficou esperando.

Você acha que nós vamos morrer, não acha?

Não sei.

Nós não vamos morrer.

Está bem.

Por que você acha que nós vamos morrer?

Não sei.

Pare de dizer não sei.


Está bem.


Por que você acha que nós vamos morrer?


Não temos nada para comer.


Vamos encontrar alguma coisa.


Está bem.


Quanto tempo você acha que as pessoas podem aguentar sem comida?


Não sei.


Mas quanto tempo você acha?


Talvez alguns dias.


E depois disso o quê? Você cai morto?

É.

Bem não cai. Leva muito tempo. Nós temos água. Isso é o mais importante. Você não dura muito tempo sem água.


Está bem.


Mas você não acredita em mim.


Não sei.


Ele o estudou. De pé ali com as mãos nos bolsos do paletó risca-de-giz grande demais.


Você acha que eu minto para você?


Não.


Mas você acha que talvez eu minta para você sobre morrer.


Acho.


Está bem. Talvez. Mas nós não vamos morrer.


Está bem.


Ele estudou o céu. Havia dias em que as nuvens no céu cinzento ficavam mais delgadas e agora as árvores que se erguiam ao longo da estrada faziam uma sombra suave sobre a neve. Seguiram em frente. O menino não ia bem. Parou e examinou seus pés e amarrou de novo o plástico. Quando a neve começasse a derreter seria difícil manter os pés secos. Paravam com frequência para descansar. Ele não tinha forças para carregar a criança. Sentaram-se na mochila e comeram punhados da neve suja. À tarde ela já começava a derreter. Passaram por uma casa queimada, somente a chaminé de tijolos de pé no quintal. Ficaram na estrada o dia todo, o que podiam chamar de dia. Tão poucas horas. Talvez tivessem avançado uns cinco quilômetros.


Ele achava que a estrada estaria tão ruim que ninguém passaria por ela mas estava errado. Acamparam quase que na própria estrada e fizeram uma grande fogueira, arrastando ramos mortos da neve e empilhando-os sobre as chamas para vê-los sibilar e fumegar. Não havia outro modo. Os poucos cobertores que tinham não iam mantê-los aquecidos. Ele tentou ficar acordado. Despertava abruptamente com um salto e tateava ao redor procurando o revólver. O menino estava tão magro. Ele o observou enquanto dormia. Rosto esticado e olhos encovados. Uma beleza estranha. Ele se levantou e levou mais madeira para a fogueira.


Caminharam até a estrada e pararam. Havia marcas na neve. Uma carreta. Algum tipo de veículo com rodas. Algo com pneus de borracha a tomar pelas marcas estreitas. Pegadas de botas entre as rodas. Alguém tinha passado na escuridão indo para o sul. Ao raiar do dia pelo menos. Correndo pela estrada à noite. Ele ficou parado pensando naquilo. Caminhou com cuidado pelas marcas. Tinham passado a menos de quinze metros da fogueira e nem diminuíram para olhar. Ele ficou parado olhando para a estrada lá atrás. O menino o observava.

Temos que sair da estrada.

Por que, Papai?

Alguém está vindo.


São os caras maus?


São. Eu temo que sim.


Podiam ser os caras do bem. Não podiam?


Ele não respondeu. Olhou para o céu por puro hábito mas não havia nada para ver.


O que a gente vai fazer, Papai?


Vamos embora.


Podemos voltar para a fogueira?


Não. Venha. Provavelmente não temos muito


tempo.


Estou com muita fome.


Eu sei.


O que a gente vai fazer?


Temos que nos esconder. Sair da estrada.


Eles vão ver as nossas pegadas?


Vão.


O que a gente pode fazer?


Não sei.


Eles vão saber o que a gente é?


O quê?


Se eles virem as nossas pegadas. Vão saber o que a gente é?

Ele olhou para as grandes marcas redondas na neve. Vão fazer uma ideia, ele disse.

Então parou.


Temos que pensar nisso. Vamos voltar para a fogueira.


Ele pensou em encontrar algum lugar na estrada onde a neve tivesse derretido completamente mas então pensou que, já que as pegadas deles não iam reaparecer do outro lado, não adiantaria. Chutaram neve para cima da fogueira e foram até as árvores e as circundaram e voltaram. Correram, deixando um labirinto de pegadas, e depois rumaram para o norte através da floresta sem perder a estrada de vista.

O lugar que escolheram foi simplesmente o mais alto que encontraram e dali enxergavam ao norte ao longo da estrada e também podiam ver suas pegadas. Ele estendeu a lona na neve molhada e envolveu o menino com os cobertores. Você vai ficar com frio, ele disse. Mas talvez não fiquemos aqui por muito tempo. Em menos de uma hora dois homens vieram pela estrada quase correndo. Depois que passaram ele se pôs de pé para observá-los. E quando fez isso um deles parou e olhou para trás. Ele gelou. Estava envolvido com um dos cobertores cinzentos e seria difícil enxergá-lo mas não impossível. Mas pensou que eles provavelmente só tinham sentido o cheiro da fumaça. Ficaram parados conversando. Depois seguiram em frente. Ele se sentou. Está tudo bem, ele disse. Só temos que esperar. Mas acho que está tudo bem.

Não tinham comido nada e haviam dormido pouco durante cinco dias e nessas condições, nos arredores de uma cidadezinha, chegaram a uma mansão de outrora num lugar elevado sobre a estrada. O menino ficou parado segurando sua mão. A neve já tinha derretido bastante no macadame e nos campos e florestas que davam para o sul. Ficaram parados ali. Os sacos de plástico em volta dos pés já tinham vazado havia muito e seus pés estavam úmidos e frios. A casa era alta e imponente com colunas dóricas brancas na frente. Uma entrada para carros na lateral. Uma passagem de cascalho que subia em curvas através de um campo de grama morta. As janelas estavam estranhamente intactas.

Que lugar é este, Papai?


Shh. Vamos só ficar aqui e escutar.


Não havia nada. O vento farfalhando entre as samambaias mortas na beira da estrada. Um estalido a distância. Porta ou veneziana.


Acho que devíamos dar uma olhada.


Papai não vamos subir ali.


Está tudo bem.


Não acho que a gente devia subir ali.


Está tudo bem. Temos que dar uma olhada.


Aproximaram-se devagar subindo pela passagem. Não havia marcas nos trechos de neve derretendo espalhados ao acaso. Uma sebe alta de alfeneiro morto. Um velho ninho de pássaros alojado em seu vime escuro. Ficaram parados no quintal estudando a fachada. Os tijolos da casa feitos à mão da mesma terra em que ela ficava. A pintura que descascava pendendo em tiras compridas e secas das colunas e da parte inferior, vergada. Uma lamparina que pendia de uma corrente lá no alto. O menino se agarrava a ele enquanto subiam os degraus. Uma das janelas estava ligeiramente aberta e uma corda saía dela e através da varanda para desaparecer na grama. Ele segurou a mão do menino enquanto cruzavam a varanda. Escravos haviam outrora passado por ali levando comida e bebida em bandejas de prata. Foram até a janela e olharam para dentro.


E se tiver alguém aqui, Papai?


Não tem ninguém aqui.


A gente devia ir, Papai.


Temos que achar alguma coisa para comer. Não temos escolha.

Podíamos achar alguma coisa em outro lugar.

Vai ficar tudo bem. Venha.

Ele pegou o revólver do cinto e forçou a porta. Ela girou devagar em suas grandes dobradiças de metal. Ficaram parados escutando. Entraram num amplo vestíbulo com piso num dominó de azulejos de mármore preto e branco. Uma ampla escadaria ascendente. Fino papel Morris nas paredes, manchado de água e caindo. O teto de gesso estava inchado em grandes bolsões e a cornija amarelada e mofada estava arqueada e solta das paredes de cima. Para a esquerda através do vão da porta ficava um grande aparador de nogueira onde devia ser a sala de jantar. As portas e as gavetas já não existiam mais, mas o resto era grande demais para queimar. Ficaram parados na porta. Empilhado numa janela num dos cantos da sala estava um monte grande de roupas. Roupas e sapatos. Cintos. Casacos. Cobertores e velhos sacos de dormir. Ele teria bastante tempo mais tarde para pensar naquilo. O menino segurava sua mão. Estava aterrorizado. Atravessaram o vestíbulo até a sala do outro lado, entraram nela e pararam. Um salão enorme com teto duas vezes mais alto do que a porta. Uma lareira com tijolos aparentes de onde o console e os outros detalhes de madeira tinham sido arrancados e queimados. Havia colchões e roupa de cama dispostos no chão em frente à lareira. Papai, o menino sussurrou. Shh, ele disse.


As cinzas estavam frias. Havia algumas panelas enegrecidas por ali. Ele se pôs de cócoras e pegou uma delas e cheirou-a e colocou de volta. Levantou-se e olhou pela janela lá para fora. Grama cinzenta e pisoteada. Neve cinzenta. A corda que saía pela janela estava amarrada a um sino de metal e o sino estava preso numa guia tosca de madeira que tinha sido pregada à moldura da janela. Ele segurou a mão do menino e os dois seguiram por um estreito corredor dos fundos até a cozinha. Lixo empilhado por toda parte. Uma pia enferrujada. Cheiro de mofo e excrementos. Foram para o quartinho anexo, talvez uma despensa.


No chão desse quartinho havia uma porta ou alçapão e estava trancada com um grande cadeado feito de placas de metal empilhadas. Ele ficou parado olhando.


Papai, o menino disse. Devíamos ir, Papai.


Há uma razão para que isto esteja trancado.


O menino puxava sua mão. Estava à beira das lágrimas. Papai? ele disse.


Temos que comer.


Não estou com fome, Papai. Não estou.


Temos que encontrar um pé-de-cabra ou algo

assim.

Empurraram a porta dos fundos e saíram, o menino pendurando-se nele. Ele enfiou o revólver no cinto e ficou parado olhando para o quintal. Havia um caminho de tijolos e o vulto torcido e mais parecendo arame do que outrora havia sido uma fileira de buxos. No quintal havia um velho arado de ferro apoiado em pilares de tijolos empilhados e alguém tinha metido entre as barras um caldeirão de ferro fundido de 150 litros do tipo usado para cozinhar porcos. Debaixo dele havia as cinzas de uma fogueira e pequenas toras enegrecidas de madeira. Num dos lados uma pequena carroça com pneus de borracha. Todas essas coisas ele viu e não viu. Na outra extremidade do quintal havia um velho defumador de madeira e um depósito de ferramentas. Ele foi até lá meio que arrastando a criança e se pôs a vasculhar entre as ferramentas que estavam de pé num barril sob o telhado do depósito. Voltou com uma pá muito manuseada e ergueu-a com a mão. Venha, ele disse.


De volta à casa, golpeou a madeira em torno da argola do cadeado e por fim meteu a pá debaixo do grampo e arrancou-o. Estava preso através da madeira e a coisa inteira saiu, cadeado e tudo. Ele enfiou com o pé a lâmina da pá debaixo das pontas das tábuas e parou e pegou o isqueiro. Então subiu na haste da pá e levantou a ponta do alçapão e se inclinou e segurou-a. Papai, o menino sussurrou.


Ele parou. Escute, ele disse. Pare com isso. Estamos morrendo de fome. Está entendendo? Então ele levantou a porta do alçapão e abriu-a e deixou-a cair no chão atrás.


Espere aqui, ele disse.


Vou com você.


Achei que você estava com medo.


Estou com medo.


Está bem. Fique bem atrás de mim.


Ele começou a descer os degraus toscos de madeira. Enfiou a cabeça ali e acendeu o isqueiro e varreu a escuridão com a chama como se fosse uma oferenda. Frio e umidade. Um fedor terrível. O menino agarrado ao seu casaco. Ele podia ver parte de uma parede de pedra. Chão de argila. Um velho colchão manchado de escuro. Ele se agachou e desceu mais um pouco e segurou a luz estendida. Amontoadas junto à parede estavam pessoas nuas, homens e mulheres, todos tentando se esconder, ocultando o rosto com as mãos. No colchão estava deitado um homem cujas pernas estavam faltando até a altura dos quadris e os cotos escuros e queimados. O cheiro era hediondo.


Jesus, ele sussurrou.


Então um a um eles se viraram e piscaram os olhos na luz fraca. Ajude-nos, eles sussurraram. Por favor ajude-nos.


Cristo, ele disse. Oh Cristo.


Ele se virou e agarrou o menino. Rápido, ele disse. Rápido.


Tinha deixado cair o isqueiro. Não havia tempo para procurar. Empurrou o menino escada acima. Ajude- nos, eles gritaram.


Rápido.


Um rosto barbado apareceu piscando os olhos ao pé da escada. Por favor, ele disse. Por favor.


Rápido. Pelo amor de Deus rápido.


Ele empurrou o menino pelo alçapão e ele caiu estatelado. Levantou-se e segurou a porta e deixou que ela batesse e se virou para segurar o menino mas o menino tinha se levantado e estava dançando sua pequena dança de terror. Pelo amor de Deus venha, ele sibilou. Mas o menino estava apontando para a janela e quando ele olhou ficou gelado. Através do campo na direção da casa vinham quatro homens barbados e duas mulheres. Ele agarrou o menino pela mão. Cristo, ele disse. Corra. Corra.


Ele irrompeu pela casa até a porta da frente e escada abaixo. Na metade do caminho de descida ele arrastou o menino para o campo. Olhou para trás. Estavam parcialmente ocultos pelas ruínas do alfeneiro mas sabia que no máximo tinham alguns minutos e talvez nenhum minuto em absoluto. Na extremidade do campo eles atravessaram uma moita de bambu morto e saíram para a estrada e a atravessaram para a floresta do outro lado. Ele redobrou o aperto no punho do menino.


Corra, ele sussurrou.Temos que correr.


Ele olhou na direção da casa mas não conseguia ver nada. Se eles descessem pela passagem, o veriam correndo em meio às árvores com o menino. Este

é

o momento. Ele caiu no chão e puxou o menino para si. Shh, ele disse. Shh.

Eles vão matar a gente? Papai?

Shh.

Eles ficaram deitados nas folhas e nas cinzas com o coração aos pulos. Ele ia começar a tossir. Teria que pôr a mão sobre a boca mas o menino a estava segurando e não soltava e com a outra mão ele segurava o revólver. Tinha que se concentrar para abafar a tosse e ao mesmo tempo tentava escutar. Ele girou o queixo em meio às folhas, tentando ver. Fique com a cabeça abaixada, ele sussurrou.

Eles estão vindo?

Não.

Rastejaram devagar por entre as folhas na direção do que parecia ser um terreno mais baixo. Ele ficou deitado escutando, abraçado ao menino. Podia ouvi-los na estrada falando. Voz de uma mulher. Depois ouviu-os nas folhas secas. Pegou a mão do menino e colocou o revólver nela. Pegue, ele sussurrou. Pegue. O menino estava aterrorizado. Colocou o braço em torno dele e o abraçou. O corpo tão magro. Não tenha medo, ele disse. Se eles te acharem você vai ter que fazer isto. Está entendendo? Shh. Não chore. Está me ouvindo? Você sabe como fazer. Coloca dentro da boca e aponta para cima. Faça rápido e com força. Está entendendo? Pare de chorar. Está entendendo?

Acho que sim.

Não. Está entendendo?

Estou.

Diga estou entendendo Papai.


Estou entendendo Papai.


Baixou os olhos para ele. Tudo o que viu foi terror. Tirou a arma dele. Não está não, ele disse.


Eu não sei o que fazer, Papai. Eu não sei o que fazer. Onde é que você vai estar?


Está tudo bem.


Eu não sei o que fazer.

Shh. Eu estou bem aqui. Não vou te deixar. Promete.

Sim. Prometo. Eu ia correr. Tentar atraí-los para longe. Mas não posso te deixar.


Papai?


Shh. Fique abaixado.


Estou com tanto medo.


Shh.


Ficaram deitados escutando. Você consegue fazer isto? Quando o momento chegar? Quando o momento chegar não vai haver tempo. O momento é agora. Amaldiçoe Deus e morra. E se não disparar? Você poderia esmagar esse crânio adorado com uma pedra? Há um ser dentro de você sobre o qual você não sabe nada? Será possível? Segure-o nos braços. Assim mesmo. A alma é rápida. Puxe-o na sua direção. Beije-o. Rápido.


Ele esperou. O pequeno revólver niquelado em sua mão. Ia tossir. Concentrou a mente toda no esforço de reter a tosse. Tentava escutar mas não conseguia ouvir nada. Não vou te deixar, ele sussurrou. Não vou te deixar nunca. Está entendendo? Ficou deitado nas folhas abraçado ao menino trêmulo. Segurando com força o revólver. Durante todo o longo crepúsculo e pela escuridão adentro.


Fria e sem estrelas. Abençoada. Começou a acreditar que tinham uma chance. Só temos que esperar, ele sussurrou. Tanto frio. Ele tentava pensar mas sua mente rodava. Ele estava tão fraco. Toda essa conversa sobre correr. Ele não podia correr. Quando estava realmente escuro ele desatou as tiras da mochila e puxou os cobertores e estendeu-os sobre o menino e logo o menino estava adormecido.


Durante a noite ele ouviu gritos medonhos vindo da casa e tentou cobrir as orelhas do menino e depois de algum tempo os gritos pararam. Ficou deitado escutando. Quando tinha passado através da moita de bambu na direção da estrada ele tinha visto uma caixa. Algo como uma casinha de crianças. Deu-se conta de que era ali que ficavam observando a estrada. Deitados aguardando e tocando o sino na casa para que seus companheiros viessem. Cochilou e acordou. O que está vindo? Passos nas folhas. Não. Apenas o vento. Nada. Ele se sentou e olhou na direção da casa mas só o que conseguia ver era escuridão. Sacudiu o menino para acordá-lo. Vamos, ele disse. Temos que ir. O menino não respondeu, mas sabia que ele estava acordado. Ele puxou os cobertores e prendeu-os com as correias à mochila. Venha, sussurrou.


Eles se puseram a caminho através da floresta escura. Havia uma lua em algum lugar para além das nuvens cinzentas e só conseguiam divisar as árvores. Cambaleavam como bêbados. Se eles encontrarem a gente vão nos matar, não vão Papai.

Shh. Chega de conversa.

Não vão Papai.

Shh. Sim. Vão sim.

Ele não tinha ideia da direção que poderiam ter tomado e seu medo era o de que pudessem andar em círculo e voltar para a casa. Tentou se lembrar se sabia de alguma coisa sobre aquilo ou se era apenas uma fábula. Em que direção os homens perdidos se desviavam? Talvez mudasse com os hemisférios. Ou com serem destros ou canhotos. Por fim tirou aquilo da cabeça. A noção de que podia haver algo por que se corrigir. Sua mente o estava traindo. Fantasmas que não se ouviam fazia mil anos erguendo-se devagar do sono. Corrija-se por isso. Os passos do menino vacilavam. Pediu para ser carregado, tropeçando e falando de modo quase ininteligível, e o homem o carregou e ele adormeceu em seu ombro instantaneamente. Ele sabia que não aguentaria por muito tempo.


Acordou na escuridão da floresta sobre as folhas tremendo violentamente. Sentou-se e tateou ao redor em busca do menino. Pôs a mão sobre as costelas magras. Calor e movimento. Coração batendo.


Quando acordou novamente havia quase luz suficiente para enxergar. Jogou para trás o cobertor e se pôs de pé e quase caiu. Endireitou-se e tentou ver ao seu redor na floresta cinzenta. Quanto tinham avançado? Andou até o alto de uma elevação e se agachou e observou o dia nascer. A aurora avarenta, o mundo frio e ilúcido. Na distância o que parecia ser uma floresta de pinheiros, crua e preta. Um mundo sem cor feito de arame e crepe. Voltou, pegou o menino e fez com que ele se sentasse. Sua cabeça não parava de cair para a frente. Temos que ir, ele disse. Temos que ir.


Carregou-o através do campo, parando para descansar a cada cinquenta passos contados. Quando chegou aos pinheiros ajoelhou-se e o colocou sobre o chão arenoso de folhas mortas e cobriu-o com os cobertores e ficou sentado observando-o. Parecia saído de um campo de extermínio. Faminto, exausto, doente de medo. Inclinou-se, beijou-o, se levantou e caminhou até a borda da floresta e depois caminhou pelo perímetro ao redor para ver se estavam a salvo.


Do outro lado do campo rumo ao sul podia ver o vulto de uma casa e um celeiro. Para além das árvores a curva de uma estrada. Um longo caminho com grama morta. Hera morta sobre um muro de pedra e uma caixa de correio e uma cerca ao longo da estrada e as árvores mortas depois. Tudo frio e silencioso. Envolvidos pela mortalha da névoa de carbono. Ele caminhou de volta e se sentou ao lado do menino. Tinha sido o desespero que o levara a tamanho descuido e ele sabia que não podia fazer aquilo de novo. Não importava o quê.


O menino dormia havia horas. Imóvel como se estivesse petrificado de medo. Tinha acontecido antes. Ele pensou em acordá-lo mas sabia que ele não se lembraria de nada se fizesse isso. Ele o havia treinado a se entocar na floresta como um filhote de corça. Por quanto tempo? No fim tirou o revólver do cinto e deixou-o do lado dele sob os cobertores e se levantou e se pôs a caminho.


Chegou ao celeiro vindo pelo morro acima dele, parando para observar e para escutar. Abriu caminho entre as ruínas de um velho pomar de maçãs, tocos pretos e nodosos, a grama morta na altura de seus joelhos. Ficou parado na

entrada do celeiro escutando. Tirinhas de luz pálida. Caminhou pelas baias empoeiradas. Ficou parado no centro do celeiro escutando mas não havia nada. Subiu a escada para o sótão e estava tão fraco que não tinha certeza de conseguir chegar até o alto. Foi até o final do sótão e olhou pela alta janela com empena para a região lá embaixo, a terra loteada morta e cinzenta, a cerca, a estrada.

Havia fardos de feno no chão do sótão e ele se agachou e separou um punhado de sementes e se sentou mastigando-as. Ásperas e secas e empoeiradas. Tinham que conter algum nutriente. Ele se levantou e rolou dois dos fardos pelo chão e deixou-os cair no celeiro lá embaixo. Dois baques empoeirados. Ele voltou para junto da empena e ficou estudando o que podia ver da casa para além da quina do celeiro. Então desceu a escada.


A grama entre a casa e o celeiro parecia intocada. Ele atravessou até a varanda. A tela da varanda podre e caindo. Uma bicicleta de criança. A porta da cozinha estava aberta e ele atravessou a varanda e parou na porta. Revestimento barato de compensado curvado com a umidade. Desmoronando dentro da cozinha. Uma mesa vermelha de fórmica. Atravessou a cozinha e abriu a porta da geladeira. Havia alguma coisa numa das prateleiras sob uma camada de pêlo cinza. Ele fechou a porta. Lixo em toda parte. Pegou uma vassoura num canto e cutucou ao redor com o cabo. Subiu no bdcão e tateou em meio à poeira no alto dos armários. Uma ratoeira. Um pacote de alguma coisa. Ele soprou a poeira. Era um pó com sabor de uva para fazer bebidas. Colocou num bolso do casaco.


Vasculhou a casa quarto por quarto. Não encontrou nada. Uma colher na gaveta da mesa-de-cabeceira. Colocou-a no bolso. Pensou que poderia haver algumas roupas num armário ou roupa de cama mas não havia nada. Voltou e foi até a garagem. Examinou as ferramentas. Ancinhos. Uma pá. Frascos de vidro com pregos e parafusos numa estante. Um estilete. Segurou-o sob a luz, olhou para a lâmina enferrujada e colocou-o de volta. Depois pegou-o de novo. Apanhou uma chave de fenda numa lata de café e abriu o cabo. Dentro havia quatro lâminas novas. Tirou a lâmina velha e deixou-a na prateleira e colocou uma das novas e aparafusou o cabo do estilete outra vez e recolheu a lâmina e colocou o estilete dentro do bolso. Depois pegou a chave de fenda e colocou-a no bolso também.


Voltou para o celeiro lá fora. Tinha um pedaço de pano que pretendia usar para juntar sementes dos fardos de feno mas quando chegou ao celeiro parou e ficou escutando o vento. Um estalar de folha-de-flandres em algum lugar no teto acima dele. Havia um odor remanescente de vacas no celeiro e ele ficou parado em pé ali pensando em vacas e se dando conta de que estavam extintas. Era verdade? Poderia haver uma vaca em algum lugar sendo alimentada e cuidada. Poderia? Alimentada com o quê? Guardada para quê? Do outro lado da porta aberta a grama morta fazia um som áspero e seco sob o vento. Ele foi lá para fora e ficou parado olhando através dos campos para a floresta de pinheiros onde o menino dormia. Caminhou através do pomar e entao parou outra vez. Tinha pisado em alguma coisa. Recuou um passo e se ajoelhou e afastou a grama com as mãos. Era uma maçã. Apanhou-a e segurou-a sob a luz. Dura e marrom e murcha. Limpou-a com o pano e mordeu-a. Seca e quase sem gosto. Mas uma maça. Comeu-a inteira, sementes e tudo. Segurou o cabo entre o polegar e o indicador e deixou-o cair. Então começou a caminhar cuidadosamente pela grama. Seus pés ainda estavam envolvidos pelos restos do casaco e os pedaços da lona e ele se sentou e desamarrou tudo e enfiou os trapos no bolso e percorreu as fileiras de árvores descalço. Quando chegou ao outro lado do pomar tinha mais quatro maçãs e colocou-as no bolso e voltou. Caminhou fileira por fileira até ter percorrido um quebra-cabeça na grama. Tinha mais maçãs do que conseguia carregar. Tateou nos espaços ao redor dos troncos e encheu os bolsos e empilhou maçãs no capuz de sua parca atrás da cabeça e carregou maçãs empilhadas junto aos antebraços de encontro ao peito. Despejou-as numa pilha na porta do celeiro e se sentou ali e envolveu com os trapos seu pé entorpecido.


Na entrada da cozinha tinha visto um velho cesto de vime cheio de jarros. Arrastou o cesto para o chão e tirou os potes de dentro e virou o cesto de cabeça para baixo e deu pancadinhas para tirar a poeira. Depois parou. O que tinha visto? Um cano de escoamento. Uma treliça. A serpentina escura de uma parreira morta correndo por ela como a trajetória de alguma empresa num gráfico. Ele se levantou e atravessou de novo a cozinha e saiu para o quintal e ficou parado olhando para a casa. As janelas refletindo o dia cinzento e sem nome. O cano descia pelo canto da porta. Ele ainda segurava o cesto e colocou-o na grama e subiu os degraus novamente. O cano descia pela coluna lateral e ia dar num tanque de concreto. Ele limpou o lixo e alguns pedaços apodrecidos de tela da tampa. Voltou para a cozinha e pegou a vassoura e saiu e varreu a tampa e colocou a vassoura no canto e levantou a tampa do tanque. Lá dentro havia uma bandeja cheia de um lodo úmido e cinzento do teto misturado com um composto de folhas mortas e galhos. Ele removeu a bandeja e colocou-a no chão. Sob ela havia cascalho branco. Ele afastou o cascalho com a mão. O tanque ali embaixo estava cheio de carvão, pedaços queimados de galhos e ramos inteiros em efígies de carbono das próprias árvores. Ele colocou a bandeja de volta. No chão havia um anel verde de metal para puxar. Ele estendeu a mão e pegou a vassoura e varreu as cinzas. Havia linhas de serragem nas bordas. Ele limpou as bordas com a vassoura e se ajoelhou e colocou o dedo no anel e levantou a porta do alçapão e abriu-a. Lá embaixo na escuridão havia uma cisterna cheia de água tão doce que ele podia sentir o cheiro. Deitou-se de barriga no chão e esticou o braço. Só conseguia tocar a água. Chegou mais para a frente e estendeu o braço de novo e pegou um punhado e cheirou e provou e então bebeu. Ficou deitado ali por um bom tempo, levando a água à boca um punhado de cada vez. Nada em sua memória em parte alguma de algo tão bom.


Voltou à entrada da cozinha e retornou com dois dos potes e uma velha panela esmaltada azul. Limpou a panela e mergulhou-a até enchê-la de água e usou-a para limpar os potes. Então estendeu o braço e afundou um dos jarros até estar cheio e levantou-o gotejante. A água era tão clara. Segurou-a sob a luz. Um único pedacinho de sedimento serpenteando no jarro em algum vagaroso eixo hidráulico. Inclinou o jarro e bebeu e bebeu devagar mas ainda assim bebeu quase o jarro inteiro. Ficou sentado ali com o estômago inchado. Podia ter bebido mais mas não bebeu. Derramou o restante da água no outro jarro e enxaguou-o e encheu os dois jarros e abaixou a tampa de madeira sobre a cisterna e se levantou com os bolsos cheios de maçãs e levando os jarros d’água seguiu através dos campos na direção da floresta de pinheiros.


Ele tinha ficado afastado por mais tempo do que pretendia e se apressou ao máximo, a água sacudindo e gorgolejando na bolsa murcha do seu estômago. Parou para descansar e recomeçou. Quando chegou à floresta o menino não parecia ter sequer se mexido e ele se ajoelhou e colocou os jarros cuidadosamente sobre as folhas mortas e pegou o revólver e colocou-o no cinto e ficou sentado ali olhando para ele.


Passaram a tarde sentados embrulhados nos cobertores e comendo maçãs. Bebericando a água dos jarros. Ele pegou o pacote com sabor de uva do bolso e abriu-o e despejou-o no jarro e mexeu e deu para o menino. Você fez bem Papai, ele disse. Dormiu enquanto o menino ficava de guarda e à noite eles pegaram os sapatos e os colocaram e foram até a casa e pegaram o restante das maçãs. Encheram três jarros com água e encontraram algumas tampas que serviram para fechá-las. Entao ele embrulhou tudo num dos cobertores e guardou na mochila e amarrou os outros cobertores no alto da mochila e colocou-a nos ombros. Ficaram parados na porta observando a luz baixando sobre o mundo a oeste. Então desceram pelo caminho de entrada e foram para a estrada novamente.


O menino se segurava no casaco dele e ele se mantinha na beira da estrada e tentava sentir o pavimento sob seus pés na escuridão. Podia ouvir trovões a distância e depois de algum tempo apareciam pálidos tremores de luz à sua frente. Ele tirou a folha de plástico da mochila mas mal restava o suficiente para cobri-los e depois de um tempo começou a chover. Eles seguiam lado a lado aos tropeços. Não havia lugar algum aonde ir. Usavam os capuzes de seus casacos mas os casacos estavam ficando molhados e pesados com a chuva. Ele parou na estrada e tentou rearrumar a lona. O menino tremia muito.


Você está congelando, não está?


Estou.


Se a gente parar vai ficar com muito frio.


Eu estou com muito frio agora.


O que você quer fazer?


Podemos parar?


Sim. Está bem. Podemos parar.


Foi a noite mais longa de que ele se lembrava em meio a um número bastante grande de noites assim. Ficaram deitados no chão molhado ao lado da estrada sob os cobertores com a chuva martelando a lona e ele abraçado ao menino e depois de algum tempo o menino parou de tremer e depois de algum tempo adormeceu. Os trovões seguiram ribombando para o norte e cessaram e ficou só a chuva. Ele dormiu e acordou e a chuva diminuiu e depois de um tempo parou. Ele se perguntava se seria sequer meia-noite. Estava tossindo e a tosse piorava e acordava a criança. A aurora demorou muito para chegar. Ele se levantava de tempos em tempos para olhar na direção leste e depois de algum tempo era dia.


Amarrou os casacos cada um por vez em torno do tronco de uma arvorezinha e torceu a água. Fez o menino tirar a roupa e o embrulhou num dos cobertores e enquanto ele ficava ali de pé tremendo torceu a água das roupas dele e as devolveu. O chão onde tinham dormido estava seco e se sentaram ali com os cobertores em dobras ao redor e comeram maças e beberam água. Então partiram pela estrada outra vez, cabisbaixos e encapuzados e tremendo em seus trapos como frades mendicantes enviados para obter seu sustento.


À noite pelo menos estavam secos. Estudaram os pedaços do mapa mas ele tinha pouca noção de onde estavam. Ficou parado numa elevação da estrada e tentou se orientar no crepúsculo. Deixaram a estrada principal e seguiram por uma estrada estreita através dos campos e por fim chegaram a uma ponte e a um riacho seco e rastejaram para baixo da encosta e se aninharam lá embaixo.


Podemos acender uma fogueira? o menino disse.


Não temos isqueiro.


O menino afastou os olhos.


Sinto muito. Deixei cair. Não queria te dizer.


Está tudo bem.


Vou encontrar uma pederneira para a gente. Andei procurando. E ainda temos aquela garrafinha de gasolina.


Tudo bem.


Você está com muito frio?


Estou bem.


O menino ficou deitado com a cabeça no colo do homem. Depois de algum tempo disse: Eles vão matar aquelas pessoas, não vão?


Sim.


Por que eles precisam fazer isso?


Não sei.


Vão comer elas?


Não sei.


Vão comer elas, não vão?


Vão.


E a gente não podia ajudar porque senão eles iam comer a gente também.


Sim.


E é por isso que a gente não podia ajudar.


Sim.


Está bem.


Atravessaram cidades que avisavam as pessoas para se afastarem com mensagens rabiscadas nos quadros de anúncios. Os quadros tinham sido pintados de branco usando finas camadas de tinta para que se pudesse escrever neles e através da tinta podiam-se ver anúncios de produtos que já não existiam. Sentaram-se na beira da estrada e comeram o resto das maçãs.


O que foi? o homem disse.


Nada.


Vamos encontrar alguma coisa para comer. Sempre encontramos.


O menino não respondeu. O homem o observava.


Não é isso, é?


Está tudo bem.


Diga.


O menino olhou para longe na estrada.


Quero que você me diga. Está tudo bem.


Ele balançou a cabeça.


Olhe para mim, o homem disse.


Ele se virou e olhou. Parecia ter andado chorando.


Diga.


A gente nunca comeria outras pessoas, comeria?


Não. E claro que não.


Mesmo se estivéssemos famintos?


Nós estamos famintos agora.


Você disse que não estávamos.


Eu disse que não estávamos morrendo. Não disse que não estávamos famintos.


Mas a gente não comeria.


Não. Não comeria.


Não importa o quê.


Não. Não importa o quê.


Porque nós somos os caras do bem.


Sim.


E levamos o fogo.


E levamos o fogo. Sim.


Está bem.


Ele encontrou pedaços de pederneira e sílica numa vala mas no fim foi mais fácil passar o alicate na lateral de uma pedra na base da qual ele tinha feito uma pequena pilha de iscas molhadas com gasolina. Dois dias mais. Três. Estavam realmente famintos. A região estava saqueada, pilhada, devastada. Tinham levado cada migalha. As noites eram de um frio cortante e de um negrume de breu e o longo raiar da manhã trazia um silêncio terrível. Como a aurora antes de uma batalha. A pele cor de cera do menino estava quase translúcida. Com seus grandes olhos vidrados ele tinha o aspecto de um alienígena.


Começava a achar que a morte finalmente os alcançara e que eles deviam encontrar um lugar para se esconder onde não fossem ser encontrados. Havia momentos quando ele ficava sentado observando o menino dormir em que soluçava incontrolavelmente mas não era por causa da morte. Ele não tinha certeza do motivo mas achava que era por causa da beleza ou da bondade. Coisas nas quais ele já não tinha nenhum modo de pensar em absoluto. Eles se agachavam numa floresta árida e bebiam água de uma vala coada com um trapo. Ele tinha visto o menino num sonho deitado numa maca de defunto e acordou aterrorizado. O que ele podia tolerar durante a vigília não podia tolerar à noite e ficou sentado de olhos abertos com medo de que o sonho voltasse.


Vasculhavam as ruínas carbonizadas de casas em que não teriam entrado antes. Um cadáver flutuando na água preta de um porão entre lixo e canos enferrujados. Estava numa sala de estar parcialmente queimada e aberta para o céu. As tábuas empenadas por causa da água inclinadas sobre o quintal. Livros ensopados numa estante. Apanhou um e abriu-o e colocou-o de volta. Tudo úmido. Apodrecendo. Numa gaveta encontrou uma vela. Não havia como acendê-la. Colocou-a no bolso. Caminhou para a luz cinzenta lá fora e ficou parado de pé e viu por um breve momento a verdade absoluta do mundo. As voltas frias e incansáveis da terra morta e abandonada. Escuridão implacável. Os cães cegos do sol em sua corrida. O vácuo preto e esmagador do universo. E em algum lugar dois animais caçados tremendo como marmotas em seu abrigo. Tempo usurpado e mundo usurpado e olhos usurpados com os quais lamentá-lo.


Nos arredores de uma cidadezinha eles se sentaram na cabine de um caminhão para descansar, olhando fixamente através do vidro lavado pelas chuvas recentes. Uma leve poeira de cinzas. Exaustos. Na beira da estrada estava uma tabuleta que alertava do risco de morte, as letras desbotadas com os anos. Ele quase sorriu. Você consegue ler aquilo? ele disse.

Sim.

Não ligue. Não tem ninguém aqui.

Eles estão mortos?

Acho que sim.

Eu gostaria que aquele menininho estivesse com a gente.

Vamos, ele disse.

Sonhos maravilhosos agora dos quais ele abominava despertar. Coisas já não mais conhecidas no mundo. O frio o impelia para a frente a fim de ajeitar a fogueira. Memória dela atravessando o gramado na direção da casa cedo pela manhã numa leve camisola rosa que se colava aos seus seios. Ele achava que cada memória lembrada devia cometer algum ato de violência às suas origens. Como num jogo numa festa. Diga a palavra e passe adiante. Então seja moderado. O que você altera ao se recordar ainda mantém uma realidade, conhecida ou não.


Caminharam pelas ruas envolvidos nos cobertores imundos. Ele levava o revólver na cintura e segurava o menino pela mão. No outro lado da cidade encontraram uma casa solitária num campo e atravessaram e entraram e caminharam pelos quartos. Depararam-se consigo num espelho e ele quase sacou o revólver. Somos nós, Papai, o menino sussurrou. Somos nós.


Ele ficou parado na porta dos fundos e olhou para os campos lá fora e para a estrada depois deles e a terra árida depois da estrada. No pátio havia uma churrasqueira feita de um tambor de duzentos litros cortado de uma ponta à outra com uma tocha e apoiado numa moldura de ferro soldado. Umas poucas árvores mortas no quintal. Uma cerca. Um depósito de metal para ferramentas. Ele encolheu os ombros para deixar cair o cobertor e passou-o sobre os ombros do menino.


Quero que você espere aqui.


Quero ir com você.


Só vou até lá dar uma olhada. Fique sentado aqui. Você vai poder me ver o tempo todo. Prometo.


Atravessou o quintal e empurrou a porta para abri-la, ainda segurando a arma. Era uma espécie de depósito de jardinagem. Chão de terra. Prateleiras de metal com alguns vasos de plástico para flores. Tudo coberto por cinzas. Havia ferramentas de jardinagem apoiadas no canto. Um cortador de grama. Um banco de madeira debaixo da janela e ao lado dele um armário de metal. Ele abriu o armário. Velhos catálogos. Pacotes de sementes. Begônia. Ipoméia. Enfiou-os nos bolsos. Para quê? Na prateleira do alto havia duas latas de óleo de motor e ele colocou o revólver no cinto e estendeu o braço e as apanhou e as colocou no banco. Eram muito velhas, feitas de papelão com tampas de metal. O óleo tinha vazado através do papelão mas ainda assim pareciam estar cheias. Recuou e olhou lá para fora pela porta. O menino estava sentado nos degraus dos fundos da casa embrulhado nos

cobertores

observando-o. Quando ele se virou viu uma lata de gasolina no canto atrás da porta. Sabia que não podia haver gasolina lá dentro e no entanto quando a inclinou com o pé e deixou-a cair para trás mais uma vez se fez um suave ruído de líquido. Apanhou-a, levou-a até o banco e tentou remover a tampa mas não conseguiu. Pegou o alicate no bolso do casaco e abriu as pontas e tentou. Cabia exato e ele rodou a tampa até abri-la e colocou-a no banco e cheirou a lata. Cheiro ruim. Anos de idade. Mas era gasolina e pegaria fogo. Ele atarraxou de volta a tampa e colocou o alicate no bolso. Olhou ao redor em busca de algum recipiente menor mas não havia nenhum. Não devia ter jogado fora a garrafa. Procure na casa.


Atravessando o gramado ele se sentiu quase prestes a desmaiar e teve que parar. Perguntou-se se seria por ter cheirado a gasolina. O menino o observava. Quantos dias até a morte? Dez? Não muito mais do que isso. Ele não conseguia pensar. Por que tinha parado? Virou-se e baixou os olhos para a grama. Caminhou de volta. Experimentando o chão com os pés. Parou e se virou novamente. Então voltou para o depósito. Retornou com uma pá de jardinagem e no lugar onde tinha parado enfiou a pá no chão. Ela afundou até a metade e parou com um som oco de madeira. Ele começou a cavar para tirar a terra.


Devagar. Por Deus ele estava cansado. Apoiou-se na pá. Ergueu a cabeça e olhou para o menino. O menino estava sentado como antes. Ele se curvou e voltou ao trabalho. Não se passou muito tempo até que estivesse descansando entre cada retirada de terra com a pá. O que finalmente desenterrou foi uma peça de compensado coberta com uma folha isolante. Cavou junto às beiradas. Era uma porta com talvez noventa centímetros por um metro e oitenta. Numa das extremidades havia uma argola e um cadeado atados com fita num saco plástico. Ele ficou descansando, segurando-se ao cabo da pá, a testa na curva do braço. Quando levantou os olhos de novo o menino estava de pé no quintal a uns poucos metros dele. Estava muito assustado. Não abra, Papai, ele sussurrou.

Está tudo bem.

Por favor, Papai. Por favor.

Está tudo bem.

Não está não.

Ele estava com os punhos fechados junto ao peito e se balançava para cima e para baixo de medo. O homem deixou cair a pá e colocou os braços ao redor dele. Venha, ele disse. Vamos nos sentar lá na porta e descansar um pouco.


Depois a gente pode ir?


Vamos só nos sentar um pouco.


Está bem.


Sentaram-se embrulhados nos cobertores e ficaram olhando para o jardim lá fora. Ficaram sentados por um bom tempo. Ele tentou explicar ao menino que não havia ninguém enterrado no quintal mas o menino apenas começou a chorar. Depois de algum tempo ele pensou que talvez a criança tivesse razão.


Vamos só ficar sentados. Não vamos nem conversar.


Está bem.


Andaram pela casa outra vez. Ele encontrou uma garrafa de cerveja e um velho trapo de cortina e rasgou uma ponta do pano e enfiou-o no gargalo da garrafa com um cabide. Esta é a nossa nova lamparina, ele disse.


Como podemos acender?


Encontrei um pouco de gasolina no depósito. E um pouco de óleo. Vou te mostrar.


Está bem.


Venha, o homem disse. Está tudo bem. Eu prometo.


Mas quando ele se curvou para ver o rosto do menino sob o capuz do cobertor teve muito medo de que algo tivesse desaparecido e não pudesse mais ser consertado.


Saíram e atravessaram o quintal até o depósito. Ele colocou a garrafa no banco e pegou uma chave de fenda e abriu um buraco numa das latas de óleo e depois abriu um outro menor para ajudar a escorrer. Puxou o pavio da garrafa e encheu-a até mais ou menos a metade, velho óleo para uso em determinada temperatura, espesso e gélido com o frio e que demorou muito tempo para despejar. Ele girou a tampa da lata de gasolina até removê-la e fez um pequeno funil de papel com um dos pacotes de sementes e despejou gasolina na garrafa e colocou o polegar sobre a boca e sacudiu. Então despejou um pouco num prato de argila e pegou o trapo e enfiou-o de novo na garrafa com a chave de fenda. Pegou um pedaço de pederneira do bolso e o alicate e raspou a pederneira com a extremidade serrilhada. Tentou algumas vezes e então parou e despejou mais gasolina no prato. Isto talvez pegue fogo, ele disse. O menino fez que sim. Ele deixou caírem faíscas sobre o prato e elas se transformaram numa chama com um leve farfalhar. Estendeu o braço e pegou a garrafa e inclinou-a e acendeu o pavio e soprou a chama no prato até apagá-la e entregou a garrafa fumegando para o menino. Aqui está, ele disse. Pegue.


O que a gente vai fazer?


Segure a mão na frente da chama. Não deixe

apagar.

Ele se levantou e tirou o revólver do cinto. Esta porta parece a outra porta, ele disse. Mas não é. Sei que você está com medo. Está tudo bem. Acho que talvez haja coisas ali e precisamos dar uma olhada. Não há nenhum outro lugar aonde ir. Isso é tudo. Quero que você me ajude. Se você não quiser segurar a lamparina vai ter que segurar o revólver.


Vou segurar a lamparina.


Está bem. Isso é o que os caras do bem fazem. Eles continuam tentando. Não desistem.


Está bem.


Ele conduziu o menino até o quintal lá fora arrastando a fumaça preta da lamparina. Colocou o revólver no cinto e pegou a pá e começou a arrancar a argola do cadeado do compensado. Ele forçou a pá por baixo e fez uma alavanca para puxá-la e depois se ajoelhou e segurou o cadeado e girou a coisa toda até soltá-la e jogou o cadeado na grama. Forçou a pá sob a porta e pôs os dedos debaixo dela e então se pôs de pé e a ergueu. A terra caiu com barulho pelas tábuas. Ele olhou para o menino. Tudo bem com você? falou. O menino fez que sim em silêncio, segurando a lamparina diante dele. O homem abriu a porta e deixou-a cair na grama. Degraus toscos feitos de dois em dois às dezenas e conduzindo à escuridão lá embaixo. Ele estendeu o braço e pegou a lamparina do menino. Começou a descer a escada mas depois se virou e se inclinou e beijou o menino na testa.


O abrigo tinha paredes de blocos de concreto. Um chão de concreto coberto com azulejos de cozinha. Havia um par de beliches de ferro com molas nuas, um junto a cada uma das paredes, os colchões enrolados ao pé deles à maneira do exército. Ele se virou e olhou para o menino agachado acima dele piscando os olhos sob a fumaça que saía da lamparina e então ele desceu os degraus mais abaixo e se sentou e estendeu o braço com a lamparina. Oh meu Deus, ele sussurrou. Oh meu Deus.


O que foi Papai?


Desça até aqui. Oh meu Deus. Desça até aqui.


Caixotes e mais caixotes de produtos enlatados. Tomates, pêssegos, feijões, damascos. Presunto enlatado. Carne em salmoura. Centenas de litros d’água em jarros plásticos de cerca de quarenta litros. Toalhas de papel, papel higiênico, pratos de papel. Sacos plásticos de lixo cheios de cobertores. Ele apoiou a testa na mão. Oh meu Deus, ele disse. Olhou para o menino atrás dele. Está tudo bem, ele disse. Desça até aqui.


Papai?


Desça até aqui. Desça até aqui e veja.


Ele colocou a lamparina sobre o degrau e subiu e tomou o menino pela mão. Venha, ele disse. Está tudo bem.


O que você encontrou?


Encontrei tudo. Tudo. Espere para ver. Ele o levou pela escada e pegou a garrafa e segurou a chama no alto. Consegue ver? ele disse. Consegue ver?


O que são essas coisas todas, Papai?


São comida. Você consegue ler.


Pêras. Ali diz pêras.


Sim. Diz sim. Oh diz sim.


Só havia altura suficiente para ele ficar de pé. Passou abaixado sob um lampião com uma cúpula verde de metal pendendo de um gancho. Segurou o menino pela mão e percorreram as fileiras de caixotes de papelão reproduzidos por estêncil.

Chile

, milho, ensopado, sopa, molho de espaguete. A riqueza de um mundo desaparecido. Por que isto está aqui? o menino disse. E real?


Oh sim. E real.


Ele puxou para baixo uma das caixas e rasgou-a para abri-la e pegou uma lata de pêssegos. Está aqui porque alguém pensou que poderia ser necessário.


Mas eles não chegaram a usar.


Não. Não chegaram.


Eles morreram.


Sim.


Tudo bem se a gente pegar?


Sim. Tudo bem. Eles gostariam que a gente pegasse. Assim como a gente gostaria que eles pegassem.


Eles eram os caras do bem?


Sim. Eram.


Como a gente.


Como a gente. Sim.


Então tudo bem.


Sim. Tudo bem.


Havia facas e utensílios de plástico e talheres e instrumentos de cozinha numa caixa de plástico. Um abridor de latas. Havia maçaricos elétricos que não funcionavam. Ele encontrou uma caixa de baterias e pilhas secas e examinou-as. A maior parte corroída e vazando uma substância pegajosa e ácida mas algumas pareciam em bom estado. Ele finalmente conseguiu fazer uma das lanternas funcionar e colocou-a sobre a mesa e apagou com um sopro a chama fumarenta da lamparina. Arrancou um pedaço da caixa de papelão aberta e afastou com ela a fumaça e então subiu e fechou o alçapão e se virou e olhou para o menino. O que você quer para o jantar? ele disse.


Pêras.


Boa escolha. Teremos pêras.


Ele pegou duas tigelas de papelão de uma pilha delas embrulhada em plástico e colocou-as na mesa. Desenrolou os colchões sobre os beliches para que eles se sentassem e abriu a caixa de pêras e pegou uma lata e colocou-a na mesa e furou a tampa com o abridor de latas e começou a girar a roda. Olhou para o menino. O menino estava sentado em silêncio no beliche, ainda envolvido no cobertor, observando. O homem pensou que ele provavelmente não tinha se entregado totalmente a nada daquilo. Você podia acordar na floresta escura e úmida a qualquer momento. Essas vão ser as melhores pêras que você já provou, ele disse. As melhores. Espere só.


Sentaram-se lado a lado e comeram a lata de pêras. Depois comeram uma lata de pêssegos. Lamberam as colheres e viraram as tigelas e beberam seu xarope rico e doce. Olharam um para o outro.


Mais uma.


Não quero que você fique doente.


Não vou ficar doente.


Faz muito tempo que você não come.


Eu sei.


Está bem.


Ele colocou o menino na cama e alisou seu cabelo imundo no travesseiro e tapou-o com os cobertores. Quando subiu e levantou a porta estava quase escuro lá fora. Foi até a garagem, pegou a mochila, deu uma última olhada ao redor e então desceu os degraus e puxou a porta para fechá-la e passou um dos cabos do alicate através da pesada argola do cadeado do lado de dentro. A luz da lanterna elétrica começava a enfraquecer e ele vasculhou em meio ao depósito até encontrar alguns recipientes de óleo em latas de três litros. Pegou uma das latas e colocou-a sobre a mesa e desatarraxou a tampa e removeu o selo de metal com uma chave de fenda. Então tirou o lampião do gancho no teto e encheu-o. Já tinha encontrado uma caixa plástica de acendedores de butano e acendeu o lampião com um deles e ajustou a chama e pendurou-o de volta. Então simplesmente ficou sentado no beliche.


Загрузка...