Enquanto o menino dormia ele começou a vasculhar metodicamente o depósito. Roupas, suéteres, meias. Uma bacia de aço inoxidável e esponjas e barras de sabão. Pasta de dentes e escovas de dentes. No fundo de uma grande jarra plástica com parafusos e tarraxas e ferragens em geral ele encontrou dois punhados de krugerrands de ouro num saco de pano. Despejou-as e apertou-as na mão e olhou para elas e derramou-as de novo na jarra junto com as ferragens e colocou a jarra de volta na prateleira.


Vasculhou tudo, mudando caixas e engradados de um lado do abrigo para o outro. Havia uma portinha de metal que dava num segundo quarto onde garrafas de gasolina estavam estocadas. No canto um banheiro químico. Havia tubos de ventilação nas paredes cobertos com telas de arame e havia escoadouros no chão. Estava ficando quente no abrigo e ele tinha tirado o casaco. Vasculhou tudo. Encontrou uma caixa de cartuchos para o revólver automático calibre 45 e três caixas de cápsulas para rifle calibre 30-30. O que ele não encontrou foi uma arma. Pegou a lanterna a pilha e caminhou pelo chão e examinou as paredes em busca de compartimentos ocultos. Depois de um tempo simplesmente se sentou no beliche comendo uma barra de chocolate. Não havia arma alguma e não haveria.


Quando acordou o lampião no teto sibilava baixinho. As paredes do abrigo estavam ali sob a luz e as caixas e os engradados. Ele não sabia onde estava. Jazia deitado com o casaco por cima. Sentou-se e olhou para o menino dormindo no outro beliche. Tinha tirado os sapatos mas também não se lembrava disso e pegou-os debaixo do beliche e calçou-os e subiu a escada e tirou o alicate da argola do cadeado e ergueu a porta e olhou para fora. De manhã cedo. Ele olhou para a casa e olhou para a estrada lá adiante e estava prestes a abaixar a porta outra vez quando parou. A vaga luz cinzenta estava a leste. Eles tinham dormido durante a noite inteira e o dia que se seguiu. Ele abaixou a porta e prendeu-a novamente e desceu os degraus de volta e se sentou no beliche. Olhou ao redor para as provisões. Estava pronto para morrer e agora já não ia mais e tinha que pensar nisso. Qualquer um podia ver o alçapão no quintal e saberiam de imediato do que se tratava. Ele tinha que pensar no que fazer. Isso não era se esconder na floresta. Era a coisa mais distante disso. Por fim levantou-se e foi até a mesa e montou o fogãozinho a gás de duas bocas e pegou uma frigideira e uma chaleira e abriu a caixa plástica de utensílios de cozinha.


O que acordou o menino foi ele moendo café num pequeno moedor manual. Ele se sentou e olhou por toda parte ao redor. Papai? ele disse.


Oi. Você está com fome?


Tenho que ir ao banheiro. Tenho que fazer xixi.


Ele apontou com a espátula na direção da porta baixa de aço. Ele não sabia como usar o toalete mas usaria assim mesmo. Eles não ficariam ali tanto tempo assim e ele não ia ficar abrindo e fechando o alçapão mais do que precisavam. O menino passou por ele, o cabelo fosco de suor. O que é isso? ele disse.


Café. Presunto. Biscoitos.


Uau, o menino disse.


Arrastou um baú pelo chão e colocou-o entre os beliches, cobriu-o com uma toalha e arrumou os pratos e copos e utensílios de plástico.Colocou uma tigela de biscoitos cobertos com uma toalha de mão e um prato com manteiga e uma lata de leite condensado. Sal e pimenta. Olhou para o menino. O menino parecia drogado. Pegou uma frigideira do fogão e espetou um pedaço de presunto dourado e colocou no prato do menino e pegou ovos mexidos numa outra panela e serviu com uma concha de feijão cozido e pôs café em suas xícaras. O menino levantou os olhos para ele.

Vá em frente, ele disse. Não deixe esfriar.

O que eu como primeiro?

O que você quiser.

Isto é café?

Sim. Aqui. Você coloca a manteiga nos biscoitos. Desse jeito.

Certo.

Você está bem?

Não sei.

Está se sentindo bem?

Estou.

O que é?

Você acha que a gente devia agradecer às pessoas?

As pessoas?

As pessoas que nos deram isso tudo.

Bem. Sim, acho que podemos fazer isso.

Você faz?

Por que não você?

Não sei como.

Sabe sim. Você sabe como dizer obrigado.

O menino ficou sentado olhando para o próprio prato. Parecia perdido. O homem estava prestes a falar quando ele disse: Queridas pessoas, obrigado por toda esta comida e tudo mais. Nós sabemos que vocês guardaram para vocês mesmos e se estivessem aqui a gente não ia comer por mais que estivéssemos com fome e sentimos muito por vocês não terem podido comer e esperamos que vocês estejam a salvo no paraíso com Deus.

Ele levantou os olhos. Está bom assim? ele disse.

Sim. Acho que está bom.

Ele não queria ficar sozinho no abrigo. Seguia o homem de um lado a outro do gramado enquanto ele carregava os jarros plásticos com água até o banheiro nos fundos da casa. Levaram o fogãozinho com eles e umas duas panelas e ele esquentou água e despejou-a na banheira e despejou água dos jarros de plástico. Levou um bom tempo mas ele queria que ficasse bom e quente. Quando a banheira estava quase cheia o menino se despiu e entrou tremendo na água e se sentou. Esquelético e imundo e nu. Abraçado aos próprios ombros. A única luz era a do anel de dentes azuis na boca do fogão. O que você acha? o homem disse.

Enfim quente.

Enfim quente?

É.

De onde você tirou isso?

Não sei.

Está bem. Enfim quente.

Ele lavou o cabelo sujo e embaraçado e limpou-o com o sabão e as esponjas. Esvaziou a água suja em que se sentava e despejou sobre ele água limpa e morna da panela e embrulhou-o tremendo numa toalha e embrulhou-o novamente num cobertor. Penteou seu cabelo e olhou para ele. Vapor saía dele como fumaça. Está tudo bem? falou.

Estou com frio nos pés.

Você vai ter que esperar por mim.

Rápido.

Ele tomou banho e depois saiu e despejou detergente na banheira e mergulhou os jeans fedidos dos dois na água com um desentupidor de privada. Você está pronto? ele disse.

Estou.

Ele abaixou o bico de gás até que ele oscilasse e se apagasse e então acendeu a lanterna e deixou-a no chão. Eles se sentaram na beirada da banheira, colocaram os sapatos e ele deu para o menino a panela e o sabão e ele pegou o fogão e a garrafinha de gasolina e o revólver e embrulhados nos cobertores eles atravessaram o quintal até o abrigo.

Sentaram-se no beliche com um tabuleiro de xadrez entre eles, usando suéteres e meias novos e envolvidos pelos cobertores novos. Ele tinha pendurado num gancho um pequeno aquecedor a gás e eles bebiam Coca-Cola em canecas de plástico e depois de algum tempo ele voltou à casa e torceu os jeans e trouxe-os de volta e pendurou-os para secar.

Quanto tempo a gente pode ficar aqui Papai?

Não muito.

Quanto tempo é isso?

Não sei. Talvez mais um dia. Dois.

Porque é perigoso.

Sim.

Acha que eles vão encontrar a gente.

Não. Não vão encontrar a gente.

Talvez encontrem.

Não vão não. Eles não vão encontrar a gente.

Mais tarde quando o menino estava dormindo ele foi até a casa e levou parte da mobília para o gramado do quintal. Então arrastou um colchão e colocou-o sobre o alçapão e pelo lado de dentro ele puxou-o sobre o compensado e baixou cuidadosamente a porta de modo a fazer com que o colchão cobrisse-a inteiramente. Não era grande coisa como estratagema mas melhor do que nada. Enquanto o menino dormia ele ficou sentado no beliche e sob a luz da lanterna fabricou balas falsas a partir de um galho de árvore com sua faca, experimentando-as cuidadosamente nos furos vazios do tambor e desbastando a madeira mais um pouco. Afiou as pontas com a faca e arredondou-as esfregando sal e sujou-as com fuligem até ficarem da cor do chumbo. Quanto terminou de aprontar todas as cinco ele as ajustou nos orifícios e fechou o tambor e virou a arma e observou-a. Mesmo tão de perto a arma parecia estar carregada e ele a colocou de lado e se levantou para sentir as pernas dos jeans fumegando sobre o aquecedor.

Tinha guardado o punhadinho de invólucros vazios de cartuchos do revólver mas tinham sumido junto com tudo mais. Devia tê-los guardado no bolso. Tinha perdido até mesmo o último. Pensou que talvez pudesse carregá-los com os cartuchos calibre 45. As cápsulas provavelmente caberiam se ele conseguisse tirá-las sem disparar. Raspar as balas até o tamanho certo com o estilete. Ele se levantou e percorreu uma última vez o depósito. Então abaixou o lampião até a chama vacilar e beijou o menino e subiu no outro beliche sob os cobertores limpos e olhou mais uma vez para aquele pequenino paraíso tremendo sob a luz alaranjada do aquecedor e então adormeceu.


A cidade tinha sido abandonada anos antes mas eles caminhavam pelas ruas cheias de lixo com cuidado, o menino segurando sua mão. Passaram por um depósito de lixo de metal onde alguém em algum momento tinha tentado queimar corpos humanos. A carne e os ossos carbonizados sob as cinzas úmidas poderiam ser anônimos a não ser pelo formato dos crânios. Já não havia mais cheiro. Havia um mercado no fim da rua e num dos corredores com caixas vazias empilhadas havia três carrinhos metálicos de supermercado. Ele os examinou e soltou um deles puxando-o e se agachou e virou as rodas e se pôs de pé e empurrou-o corredor acima e abaixo novamente.


Podíamos pegar dois, o menino disse.


Não.


Eu poderia empurrar um.


Você é o observador. Preciso que você seja nosso vigia.


O que a gente vai fazer com tudo aquilo?


Vamos simplesmente ter que levar o que pudermos.


Você acha que alguém vai vir?


Sim. Em algum momento.


Você disse que não ia vir ninguém.


Não quis dizer nunca.


Eu gostaria que a gente pudesse morar aqui.


Eu sei.

Podíamos ficar de vigia.

Estamos de vigia.


E se alguns dos caras do bem vierem?


Bem, eu não acho que a gente é capaz de encontrar os caras do bem na estrada.


Nós estamos na estrada.


Eu sei.


Se você fica de vigia o tempo todo isso não significa que está o tempo todo com medo?


Bem. Acho que você precisa estar com medo suficiente para ficar de vigia, em primeiro lugar. Para ser cuidadoso. Vigilante.


Mas no resto do tempo não fica assustado?


No resto do tempo.


Sim.


Não sei. Talvez a gente devesse ficar sempre de vigia. Se aparece algum problema quando você menos espera talvez a coisa certa a fazer seja sempre esperar.


Você sempre espera? Papai?


Espero. Mas às vezes eu posso esquecer que estou de vigia.


Ele sentou o menino no baú sob o lampião e com uma escova de plástico e um par de tesouras se pôs a cortar seu cabelo. Tentou fazer direito e levou algum tempo. Quando terminou tirou a toalha de cima dos ombros e pegou o cabelo dourado do chão e limpou o rosto e os ombros do menino com um pano úmido e segurou um espelho para que ele visse.


Você fez um bom trabalho, Papai.


Bom.


Eu pareço mesmo magrelo.


Você está mesmo magrelo.


Ele cortou seu próprio cabelo mas não ficou tão bom. Aparou a barba com a tesoura enquanto uma panela de água esquentava e depois se barbeou com um barbeador de plástico. O menino observava. Quando ele terminou olhou-se no espelho. Parecia não ter queixo. Virou-se para o menino. Como é que eu estou? O menino esticou o pescoço. Não sei, ele disse. Você vai ficar com frio?


Comeram uma refeição suntuosa à luz de velas. Presunto e feijão verde e purê de batatas com biscoitos e molho. Ele tinha encontrado quatro garrafas de 250ml de uísque puro malte ainda nas bolsas de papel em que tinham sido comprados e bebeu um pouco num copo com água. Deixou-o tonto antes mesmo de terminar e ele não bebeu mais. Comeram pêssegos e creme sobre os biscoitos para a sobremesa e beberam café. Os pratos de papel e os talheres de plástico ele jogou numa sacola de lixo. Jogaram xadrez e depois ele pôs o menino na cama.


Durante a noite foi acordado pelo ruído abafado da chuva caindo sobre o colchão na porta acima deles. Pensou que devia estar chovendo realmente forte para que ele conseguisse ouvir. Levantou-se com a lanterna e subiu a escada e ergueu a porta e iluminou o quintal com a luz. O quintal já estava inundado e a chuva martelava. Fechou a porta. Havia vazado água que gotejava escada abaixo mas ele achava que o abrigo em si era bastante à prova d’água. Foi ver como estava o menino. Estava úmido de suor e o homem puxou para baixo um dos cobertores e abanou seu rosto e depois diminuiu o aquecedor e voltou para a cama.


Quando acordou novamente achou que a chuva tinha parado. Mas não foi isso que o acordou. Ele tinha sido visitado num sonho por criaturas de um tipo que nunca tinha visto antes. Não falavam. Ele achou que tinham estado agachadas ao lado do seu catre enquanto dormia e que tinham escapulido quando ele acordou. Virou-se e olhou para o menino. Talvez compreendesse pela primeira vez que, para o menino, ele próprio era um alienígena. Um ser de um planeta que já não existia. Cujas histórias eram suspeitas. Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que tinha perdido sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele. Tentou se lembrar do sonho mas não conseguiu. Tudo o que restava era a sensação. Pensou que talvez eles tivessem vindo avisá-lo. De quê? De que ele não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio. Mesmo agora alguma parte dele desejava que nunca tivessem encontrado aquele refúgio. Alguma parte dele desejava que tudo tivesse terminado.


Verificou que a válvula do tanque estivesse fechada e puxou o fogãozinho ao redor do baú e se sentou e se pôs a desmontá-lo. Desparafusou o painel superior e removeu o conjunto dos queimadores e desconectou os dois queimadores com uma pequena chave inglesa. Derramou as peças de dentro de um recipiente de plástico e escolheu um parafuso para enfiar na junção e depois apertou-o. Conectou a mangueira do tanque e segurou o queimadorzinho de esquentar comida semipronta na mão, pequeno e leve. Colocou-o sobre o baú, levou a chapa de metal, jogou-a no lixo e foi até a escada para verificar o tempo. O colchão no alto do alçapão tinha absorvido um bocado d’água e a porta estava difícil de levantar. Ficou de pé com ela apoiada nos ombros e olhou para o dia lá fora. Um leve chuvisco caindo. Impossível dizer para que hora do dia estava olhando. Observou a casa e as terras ensopadas lá fora e depois abaixou a porta e desceu a escada e se pôs a preparar o café-da-manhã.


Passaram o dia comendo e dormindo. Ele tinha planejado ir embora mas a chuva era justificativa suficiente para ficar. O carrinho de compras estava no depósito. Improvável que alguém viajasse pela estrada hoje. Eles examinaram o que havia no estoque e separaram o que podiam levar, arrumando tudo num cubo medido no canto do abrigo. O dia foi breve, mal chegou a ser um dia. Quando escureceu a chuva tinha parado e eles abriram o alçapão e começaram a carregar caixas e pacotes e sacos de plástico pelo quintal até o depósito e colocar no carrinho. O caminho mal iluminado que ia dar no alçapão se estendia no escuro do quintal como um túmulo de boca aberta no dia do juízo final em alguma velha pintura apocalíptica. Quando o carrinho estava totalmente carregado, ele amarrou uma lona por cima e apertou os prendedores no arame com cordões elásticos curtos e recuaram e olharam para o resultado à luz da lanterna. Ele pensou que devia ter apanhado uns dois jogos extra de rodinhas dos outros carrinhos no depósito mas agora era tarde demais. Também devia ter guardado o espelho retrovisor de motocicleta de seu antigo carrinho. Jantaram e dormiram até de manhã e então tomaram banho de novo com esponjas e lavaram o cabelo em bacias de água morna. Tomaram o café-da-manhã e com a primeira luz do dia estavam na estrada, usando máscaras novas cortadas dos lençóis, o menino indo na frente com uma vassoura e varrendo galhos e ramos do caminho e o homem inclinado sobre o carrinho observando a estrada que se estendia diante deles.


O carrinho estava pesado demais para empurrar na floresta molhada e pararam para descansar ao meio-dia no meio da estrada e prepararam chá quente e comeram o resto do presunto enlatado com biscoitos salgados e com mostarda e molho de maçã. Sentados com as costas de um apoiadas nas do outro e observando a estrada. Você sabe onde a gente está Papai? o menino disse.


Mais ou menos.


Como mais ou menos?


Bem. Acho que estamos a cerca de trezentos quilômetros da costa. Como voa o corvo.


Como voa o corvo?


Sim. Quer dizer em linha reta.


Vamos chegar lá em breve?


Não muito em breve. Mais ou menos em breve. Não vamos seguir como voa o corvo.

Porque os corvos não têm que seguir estradas? Sim.

Eles podem ir aonde quiserem.


Sim.

Você acha que ainda há corvos em algum lugar? Não sei.

Mas o que você acha?


Acho que é improvável.

Eles poderiam voar para Marte ou algum lugar? Não. Não poderiam.

Porque é longe demais?


Sim.


Mesmo que eles quisessem.


Mesmo que eles quisessem.


E se eles tentassem e só chegassem ao meio do caminho ou coisa assim e ficassem cansados demais. Eles iam cair de volta aqui?


Bem. Eles não poderiam realmente chegar até a metade do caminho porque estariam no espaço e não há ar no espaço então eles não poderiam voar e além disso seria frio demais e iam morrer congelados.


Oh.


De todo modo eles não saberiam onde Marte fica.


A gente sabe onde Marte fica?


Mais ou menos.


Se a gente tivesse uma nave espacial poderia ir até lá?


Bem. Se você tivesse uma nave espacial realmente boa e se tivesse gente para te ajudar eu acho que poderia ir.


Teria comida e outras coisas quando você chegasse lá?


Não. Lá não há nada.


Oh.


Ficaram sentados por muito tempo. Ficaram sentados em seus cobertores dobrados e observavam a estrada nas duas direções. Nenhum vento. Nada. Depois de algum tempo o menino disse: Não tem nenhum corvo. Tem?


Não.


Só nos livros.


Sim. Só nos livros.


Eu não achava.


Você está pronto?


Estou.


Eles se levantaram e guardaram as xícaras e o resto dos biscoitos salgados. O homem empilhou os cobertores no alto do carrinho e apertou a lona por cima e depois ficou parado olhando para o menino. O quê? o menino disse.


Sei que você pensou que nós íamos morrer.

É.

Mas não morremos.


Não.


Está bem.


Posso te perguntar uma coisa?


Claro.


Se você fosse um corvo conseguiria voar alto o suficiente para ver o sol?


Sim. Conseguiria.


Foi o que eu pensei. Isso seria bem legal.


Seria sim. Você está pronto?


Estou.


Ele parou. O que aconteceu com a sua flauta?


Joguei fora.


Jogou fora?


Foi.


Está bem.


Está bem.


No longo entardecer cinzento eles atravessaram um rio e pararam e olharam da balaustrada de concreto para a água lenta e fosca passando lá embaixo. Esboçado sobre a fuligem pálida lá adiante o contorno de uma cidade queimada como uma tela preta de papel. Viram-na outra vez logo antes de escurecer empurrando o carrinho pesado na subida de uma longa colina e pararam para descansar e ele virou o carrinho de lado na estrada para que não deslizasse. Suas máscaras já estavam cinzentas na boca e seus olhos com marcas escuras. Sentaram-se nas cinzas na beira da estrada e olharam para leste onde o vulto da cidade escurecia na noite que se aproximava. Não viram luzes.


Você acha que tem alguém ali, Papai?


Não sei.


Quando é que a gente vai poder parar?


Podemos parar agora.


No morro?


Podemos levar o carrinho até aquelas pedras ali embaixo e cobrir com ramos.


Este lugar é bom para parar?


Bem, as pessoas não gostam de parar em morros. E nós não gostamos que pessoas parem.


Então é um bom lugar para nós.


Acho que sim.

Porque nós somos espertos.

Bem, não fiquemos espertos demais.

Está bem.

Você está pronto?

Estou.

O menino se levantou e pegou sua vassoura e colocou-a sobre o ombro. Olhou para o pai. Quais são os nossos objetivos a longo prazo? ele disse.

O quê?

Nossos objetivos a longo prazo.

Onde você ouviu isso?

Não sei.

Não, onde foi?

Você disse.

Quando?

Há muito tempo atrás.

Qual foi a resposta?

Não sei.

Bem. Eu também não. Vamos. Está ficando escuro.

Mais tarde no dia seguinte quando faziam uma curva da estrada o menino parou e colocou a mão no carrinho. Papai, ele sussurrou. O homem levantou os olhos. Um pequeno vulto distante na estrada, curvado e arrastando os pés.

Ele ficou parado inclinado sobre o carrinho. Bem, ele disse. Quem é?

O que a gente devia fazer, Papai?

Poderia ser um chamariz.

O que a gente vai fazer?

Vamos apenas seguir. Vejamos se ele se vira.

Está bem.

O viajante não olhava para trás. Eles o seguiram por um tempo e depois o ultrapassaram. Um velho, pequeno e curvado. Levava no ombro uma velha mochila do exército com um cobertor enrolado e amarrado no alto junto com um galho descascado como bengala. Quando ele os viu desviou para a beira da estrada e se virou e ficou parado cautelosamente. Tinha uma toalha imunda amarrada sob o queixo como se sentisse dor de dente e cheirava horrivelmente mesmo pelos padrões do novo mundo deles.

Não tenho nada, ele disse. Vocês podem olhar se quiserem.


Não somos ladrões.


Ele inclinou uma orelha para a frente. O quê? exclamou.


Eu disse que não somos ladrões.


O que são vocês?


Eles não tinham como responder à pergunta. Ele enxugou o nariz com as costas do punho e ficou esperando. Não tinha sapatos e seus pés estavam envolvidos por trapos e papelão amarrados com cordão verde e um número indefinido de camadas de panos vagabundos aparecia por entre os rasgões e buracos que havia ali. De repente ele pareceu definhar ainda mais. Inclinou-se em sua bengala e se abaixou até a estrada onde se sentou em meio às cinzas com uma das mãos sobre a cabeça. Parecia uma pilha de trapos caída de um carrinho. Eles se aproximaram e ficaram parados olhando para ele. Senhor? o homem disse. Senhor?


O menino se agachou e pôs uma das mãos em seu ombro. Ele está com medo, Papai. O homem está com medo.


Ele olhou para um lado e para o outro da estrada. Se isto for uma emboscada ele vai primeiro, falou.


Ele só está com medo, Papai.


Diga a ele que não vamos machucá-lo.


O homem sacudiu a cabeça de um lado para o outro, os dedos entrelaçados no cabelo imundo. O menino levantou os olhos para o pai.


Talvez ele ache que nós não somos reais.


O que ele acha que nós somos?


Não sei.


Não podemos ficar aqui. Temos que ir.


Ele está com medo, Papai.


Não acho que você devesse tocá-lo.


Talvez a gente pudesse dar alguma coisa para ele comer.


Ele ficou olhando para a estrada. Droga, sussurrou. Abaixou os olhos para o velho. Talvez ele fosse se transformar num deus e eles em árvores. Está bem, ele disse.


Desamarrou a lona, dobrou-a e

tez

uma busca minuciosa por entre as latas de comida e tirou uma lata de coquetel de frutas e pegou o abridor do bolso e abriu a lata e dobrou a tampa e caminhou até lá e se agachou e entregou-a ao menino.


Que tal uma colher?


Ele não vai receber uma colher.


O menino pegou a lata e a entregou ao velho. Tome, ele sussurrou. Aqui.


O velho levantou os olhos e olhou para o menino. O menino fez um gesto para ele com a lata. Parecia alguém tentando alimentar um urubu enfraquecido na estrada. Está tudo bem, ele disse.


O velho abaixou a mão da cabeça. Piscou os olhos. Olhos de um azul acinzentado enterrados nos vincos magros e sujos de fuligem de seu rosto.

Tome, o menino disse.

Ele esticou seus dedos esqueléticos e pegou-a e segurou-a junto ao peito.

Coma, o menino disse. E bom. Fez com as mãos gestos inclinando-as. O velho olhou para a lata. Agarrou-a com força renovada e levantou-a, o nariz enrugando. Suas unhas compridas e amarelas raspavam no metal. Então ele a inclinou e bebeu. O suco escorreu por sua barba imunda. Ele abaixou a lata, mastigando com dificuldade. Sacudiu a cabeça ao engolir. Olhe, Papai, o menino sussurrou.

Estou vendo, o homem disse.

O menino se virou e olhou para ele.

Sei qual é a pergunta, o homem disse. A resposta é não.

Qual é a pergunta?

Se podemos ficar com ele. Não podemos.

Eu sei.

Você sabe.

É.

Está bem.

Podemos dar mais alguma coisa para ele?

Vamos ver como ele se sai com isto.

Observaram-no comer. Quando ele terminou ficou sentado segurando a lata vazia e olhando para ela como se talvez aparecesse mais.

O que você quer dar para ele?

O que você acha que ele devia comer?

Não acho que ele devia comer nada. O que você quer dar para ele?

Podíamos cozinhar alguma coisa no fogão. Ele podia comer com a gente.

Você está falando em parar. Para a noite.

É.

Ele abaixou os olhos para o velho e olhou para a estrada. Tudo bem, ele disse. Mas amanhã seguimos em frente.


O menino não respondeu.


Isso é o melhor que você vai conseguir.


Tudo bem.


Tudo bem significa tudo bem. Não significa que vamos negociar outra vez amanhã.


O que é negociar?


Significa conversar mais a respeito e aparecer com um outro acordo. Não há nenhum outro acordo. Isso é tudo.


Está bem.


Está bem.


Ajudou o velho a ficar de pé e entregou-lhe a bengala. Ele não chegava a pesar 45 quilos. Ficou olhando ao redor de modo inseguro. O homem pegou a lata das mãos dele e jogou na floresta. O velho tentou entregar-lhe a bengala mas ele a empurrou. Quando você comeu pela última vez? ele perguntou.


Não sei.


Você não se lembra.


Acabei de comer.


Quer comer conosco?


Não sei.


Não sabe?


Comer o quê?


Talvez um ensopado de carne. Com biscoitos salgados. E café.


O que eu tenho que fazer?


Dizer-nos para onde foi o mundo.


O quê?


Você não tem que fazer nada. Consegue andar direito?


Consigo andar.


Ele abaixou os olhos para o menino. Você é um menino? ele disse.


O menino olhou para o pai.


O que ele parece ser? o pai dele disse.


Não sei. Não enxergo bem.


Consegue me enxergar?


Consigo dizer que tem alguém aí.


Bom. Precisamos ir andando. Ele abaixou os olhos para o menino. Não segure a mão dele, disse.


Ele não enxerga.


Não segure a mão dele. Vamos.


Para onde vamos? o velho disse.


Vamos comer.


Ele fez que sim e estendeu a bengala e tateou com hesitação a estrada.


Quantos anos você tem?


Noventa.


Não tem não.


Está bem.


E isso o que você diz às pessoas?


Que pessoas?


Qualquer pessoa.


Acho que sim.


Para que não te machuquem?


Sim.


Funciona?


Não.


O que tem na sua mochila?


Nada. Você pode olhar.


Sei que posso olhar. O que tem aí?


Nada. Só umas coisas.


Nada para comer.


Não.


Qual é o seu nome?


Ely.


Ely de quê?

O que há de errado om Ely?

Nada. Vamos.

Acamparam na floresta bem mais perto da estrada do que ele teria gostado. Teve que arrastar o carrinho enquanto o menino conduzia por trás e fizeram uma fogueira para que o velho se aquecesse embora ele também não gostasse muito disso. Comeram e o velho ficou sentado embrulhado em sua colcha solitária e segurava a colher como uma criança. Só tinham duas xícaras e ele bebeu seu café na tigela onde tinha comido, os polegares recurvados sobre a borda. Sentado como um buda faminto e surrado, olhando fixamente para os carvões.


Você não pode ir conosco, você sabe, o homem disse.


Ele fez que sim.


Há quanto tempo você está na estrada?


Sempre estive na estrada. Você não pode ficar num lugar só.


Como você vive?


Eu apenas sigo em frente. Eu sabia que isto ia acontecer.


Sabia que isto ia acontecer?


Sim. Isto ou algo do tipo. Sempre acreditei nisso.


Tentou se preparar para isto?


Não. O que você faria?


Não sei.


As pessoas estavam sempre se preparando para o amanhã. Eu não acreditava nisso. O amanhã não estava se preparando para elas. Nem sabia que elas estavam ali.


Acho que não.


Mesmo que você soubesse o que fazer não saberia o que fazer. Você não saberia se queria fazer ou não. Suponha que você fosse o último? Suponha que você fizesse isso a você mesmo?


Você gostaria de morrer?


Não. Mas talvez eu gostasse de ter morrido. Quando você está vivo sempre tem isso à sua frente.


Ou você talvez gostasse de nunca ter nascido.


Bem. Mendigos não podem escolher.


Você acha que isso seria pedir demais.


O que está feito está feito. De todo modo, é uma bobagem pedir luxos em tempos como estes.


Acho que sim.


Ninguém quer estar aqui e ninguém quer ir embora. Ele levantou a cabeça e olhou para o menino do outro lado da fogueira. O homem podia ver seus olhinhos observando-o à luz da fogueira. Sabe Deus o que aqueles olhos viam. Ele se levantou para empilhar mais madeira na fogueira e puxou os carvões de cima das folhas mortas. As centelhas vermelhas levantaram-se num estremecimento e morreram no negrume lá em cima. O velho bebeu o que restava do café e colocou a tigela à sua frente e se inclinou na direção do calor com as mãos estendidas. O homem o observava. Como você saberia se fosse o último homem na terra? ele disse.


Acho que você não saberia. Simplesmente seria.


Ninguém saberia.


Não faria diferença alguma. Quando você morre é como se o resto do mundo morresse também.


Acho que Deus saberia. E isso?


Deus não existe.


Não?


Deus não existe e nós somos seus profetas.


Não entendo como você ainda está vivo. Como você come?


Não sei.


Não sabe?


As pessoas te dão coisas.


As pessoas te dão coisas.


Sim.


Para comer.


Para comer. Sim.


Não dão não.


Você deu.


Não dei não. O menino deu.


Há outras pessoas na estrada. Vocês não são os únicos.


Você é o único?


O velho olhou de perto cautelosamente. O que você quer dizer? ele disse.


Tem gente com você?


Que gente?


Qualquer um.


Não tem ninguém. Sobre o que você está falando? Estou falando sobre você. Sobre em que tipo de trabalho você poderia estar.


O velho não respondeu.


Imagino que você queira ir conosco.

Ir com vocês.

Sim.


Você não vai me levar com vocês.


Você não quer ir.


Eu não teria nem vindo até aqui mas estava com fome.

As pessoas que te deram comida. Onde eles estão? Não tem ninguém. Eu simplesmente inventei isso. O que mais você inventou?

Só estou na estrada assim como vocês. Nenhuma diferença.


Seu nome é mesmo Ely?


Não.


Você não quer dizer seu nome.


Não quero dizer.


Por quê?


Não poderia confiá-lo a você. Para fazer alguma coisa com ele. Não quero ninguém falando de mim. Dizendo onde é que eu estava ou o que eu disse quando estava lá. Quero dizer, você talvez pudesse falar de mim. Mas ninguém poderia dizer que era eu. Eu poderia ser qualquer pessoa. Acho que em tempos como estes quanto menos se disser melhor. Se alguma coisa tivesse acontecido e nós fôssemos sobreviventes e nos encontrássemos na estrada então teríamos algo sobre o que falar. Mas não somos. Então não temos.


Talvez não.


Mas você não quer dizer isso na frente do menino.


Você não é uma isca servindo a um bando de ladrões da estrada?


Eu não sou nada. Posso ir embora se você quiser. Consigo encontrar a estrada.


Você não precisa ir embora.


Eu não vejo uma fogueira há muito tempo, isso é tudo. Vivo como um animal. Você não ia querer saber as coisas que comi. Quando vi esse menino pensei que tinha morrido.


Pensou que ele era um anjo?


Eu não sabia o que ele era. Nunca achei que fosse voltar a ver uma criança. Não sabia que isso ia acontecer.


E se eu disser que ele é um deus?


O velho sacudiu a cabeça. Já deixei tudo isso para trás. Faz anos. Onde os homens não podem viver deuses também não se sentem bem. Você vai ver. É melhor ficar sozinho. Então espero que não seja verdade o que você disse pois estar na estrada com o último deus seria uma coisa terrível então espero que não seja verdade. As coisas vão melhorar quando todos tiverem morrido.


Vão?


Claro que vão.


Melhorar para quem?


Todo mundo.


Todo mundo.


Claro. Todos nós estaremos melhor. Vamos respirar com mais facilidade.


E bom saber disso.


E sim. Quando todos tivermos morrido pelo menos não haverá ninguém aqui além da morte e seus dias estarão contados também. Ela vai estar aqui na estrada sem nada para fazer e sem ninguém a quem fazer. Ela vai dizer: Para onde foi todo mundo? E é assim que vai ser. O que há de errado com isso?


Pela manhã estavam parados na estrada e ele e o menino discutiam sobre o que dar ao velho. No fim ele não recebeu muita coisa. Algumas latas de vegetais e frutas. Por fim o menino simplesmente foi até a beira da estrada e se sentou nas cinzas. O velho arrumou as latas na mochila e amarrou as tiras. Você devia agradecer a ele, sabe, o homem disse. Eu não teria dado nada a você.


Talvez eu devesse e talvez não devesse.


Por que não?


Eu não teria dado a ele do meu.


Você não se preocupa se isso pode magoá-lo?


Vai magoá-lo?


Não. Não foi por esse motivo que ele fez isso.


Por que ele fez?


Ele olhou para o menino lá adiante e olhou para o velho. Você não entenderia, ele disse. Não tenho certeza de que eu entenda.


Talvez ele acredite em Deus.


Não sei no que ele acredita.


Ele vai superar.


Não vai não.


O velho não respondeu. Olhou para o dia ao seu redor.


Você também não vai nos desejar boa sorte, vai?


Não sei o que seria isso. Que sorte vocês gostariam de ter. Quem poderia saber uma coisa dessas?


Então todos seguiram em frente. Quando ele olhou para trás o velho tinha partido com a bengala, tateando seu caminho, diminuindo lentamente na estrada atrás deles como algum mascate de um livro de histórias de outrora, escuro e curvado e magro como uma aranha e prestes a desaparecer para sempre. O menino não chegou a olhar para trás.


No começo da tarde eles estenderam a lona na estrada e se sentaram e comeram um almoço frio. O homem o observava. Você vai falar? ele disse.


Vou.


Mas você não está feliz.


Estou bem.


Quando nossa comida acabar você vai ter mais tempo para pensar sobre isso.


O menino não respondeu. Comeram. Ele olhou para a estrada atrás deles. Depois de algum tempo disse: Eu sei. Mas não vou me lembrar disso como você se lembra.


Provavelmente não.


Eu não disse que você estava errado.


Mesmo que tenha pensado isso.


Está tudo bem.


E, o homem disse. Bem. Não há muitas boas novidades na estrada. Em tempos como estes.


Você não devia debochar dele.


Está bem.


Ele vai morrer.


Eu sei.


A gente pode ir agora?


Sim, o homem disse. Podemos ir.


À noite ele acordou na fria escuridão tossindo e tossiu até o peito ficar em carne viva. Inclinou-se na direção da fogueira e soprou os carvões e colocou mais madeira e se levantou e se afastou do acampamento até onde a luz lhe permitia. Ajoelhou-se nas folhas secas e nas cinzas com o cobertor por cima dos ombros e depois de algum tempo a tosse começou a passar. Pensou no velho em algum lugar lá fora. Olhou novamente para o acampamento através da paliçada negra das árvores. Esperava que o menino tivesse voltado a dormir. Ficou ajoelhado ali respirando com dificuldade e baixinho, as mãos sobre os joelhos.

Vou morre

r, ele falou. Diga-me como eu faço isso.


No dia seguinte andaram até quase escurecer. Ele não conseguiu encontrar nenhum lugar seguro para fazer uma fogueira. Quando tirou o tanque do carrinho achou que parecia leve. Sentou-se e girou a válvula, mas já estava ligada. Ele girou o botãozinho da boca. Nada. Inclinou-se e ficou escutando. Tentou as duas válvulas novamente em suas combinações. O tanque estava vazio. Ele se agachou ali com as mãos em punho contra a testa, os olhos fechados. Depois de algum tempo levantou a cabeça e ficou sentado olhando fixamente para a floresta fria que escurecia.


Comeram um jantar frio com broa de milho e feijão e carne de uma lata. O menino lhe perguntou como o tanque havia esvaziado tão cedo mas ele disse que simplesmente havia esvaziado.


Você disse que ia durar semanas.


Eu sei.


Mas só se passaram uns poucos dias.


Eu estava errado.


Comeram em silêncio. Depois de algum tempo o menino disse: Esqueci de desligar a válvula, não foi?


Não é culpa sua. Eu devia ter verificado.


O menino colocou o prato sobre a lona. Desviou o olhar.


Não é culpa sua. Você tem que desligar as duas válvulas. As roscas deveriam estar seladas com fita isolante senão vazaria e eu não fiz isso. E minha culpa. Eu não te falei.


Mas não havia fita nenhuma, havia?


Não é culpa sua.


Eles seguiram caminhando com dificuldade, magros e imundos como viciados na rua. Encapuzados em seus cobertores sob o frio e sua respiração fumegando, misturada à neve preta e sedosa. Estavam atravessando a ampla planície costeira onde os ventos seculares os impeliam em nuvens uivantes de cinzas a encontrar abrigo onde pudessem. Casas ou celeiros ou sob a encosta de uma vala de beira de estrada com os cobertores puxados por sobre as cabeças e o céu do meio-dia preto como os porões do inferno. Segurou o menino de encontro a si, frio até os ossos. Não desanime, ele disse. Vamos ficar bem.


A terra era cheia de sulcos e erodida e árida. Os ossos de criaturas mortas estendidos nos brejos. Monturos de lixo anônimo. Casas de fazenda nos campos despidas de sua pintura e os sarrafos arrancados dos caibros das paredes. Tudo sem sombras e sem traços. A estrada descia através de uma selva de puerária morta. Um pântano onde os juncos mortos jaziam sobre a água. Para além da beira dos campos a névoa opaca se estendia igualmente sobre a terra e o céu. No fim da tarde tinha começado a nevar e eles seguiram com a lona sobre as cabeças e a neve molhada sibilando no plástico.


Ele tinha dormido pouco em semanas. Quando acordou pela manhã o menino não estava lá e ele se sentou com o revólver na mão, em seguida se levantou e procurou por ele, mas não estava à vista. Colocou os sapatos e caminhou até a margem das árvores. A aurora triste a leste. O sol estrangeiro iniciando seu trânsito frio. Viu o menino vindo correndo através do campo. Papai, ele chamou. Tem um trem na floresta.

Um trem?

É.

Um trem de verdade?

É. Venha.

Você não foi até lá foi?

Não. Só um pouco. Venha.

Não tem ninguém lá?

Não. Acho que não. Vim te buscar.

Tem uma locomotiva?


Tem. Uma grande, de diesel.


Atravessaram o campo e entraram na floresta do outro lado. Os trilhos saíam do campo numa colina com uma ribanceira e passavam através da floresta. A locomotiva era diesel-elétrica, e havia seis vagões de aço inoxidável para passageiros atrás dela. Ele segurou a mão do menino. Vamos só ficar sentados e observar, ele disse.


Sentaram-se no aterro e esperaram. Nada se movia. Ele entregou o revólver ao menino. Você fica com ele, Papai, o menino disse.


Não. Esse não é o acordo. Pegue.


Ele pegou o revólver e se sentou com ele no colo e o homem desceu pelo lado direito e ficou parado olhando para o trem. Cruzou os trilhos para o outro lado e desceu acompanhando a extensão dos vagões. Quando saiu de trás do último deles acenou para que o menino viesse e o menino se levantou e colocou o revólver no cinto.


Tudo estava coberto de cinzas. Os corredores cheios de lixo. Malas jaziam abertas sobre os assentos em que tinham sido colocadas depois de retiradas dos compartimentos no alto e saqueadas muito tempo atrás. No vagão-restaurante ele encontrou uma pilha de pratos de papel e soprou a poeira de cima deles, colocou-os dentro da parca e isso foi tudo.


Como ele chegou aqui, Papai?


Não sei. Acho que alguém o estava levando para o sul. Um grupo de pessoas. Aqui foi onde eles provavelmente ficaram sem combustível.

Está aqui faz muito tempo?

Sim. Acho que está. Há muito tempo.

Passaram pelo último dos vagões e então caminharam pelo trilho até a locomotiva e subiram à passarela. Ferrugem e pintura descascando. Abriram à força a porta da cabine e ele soprou as cinzas do assento do maquinista e colocou o menino nos controles. Os controles eram bastante simples. Pouca coisa a fazer além de mover para a frente a alavanca do acelerador. Ele fez ruídos de trem e ruídos de buzinas de motor a diesel mas não tinha certeza do que isso poderia significar para o menino. Depois de algum tempo ficaram simplesmente olhando através do vidro sujo de lodo para onde os trilhos faziam uma curva e desapareciam na desolação do mato. Se viam mundos diferentes, o que sabiam era a mesma coisa. Que o trem ficaria ali se decompondo devagar durante toda a eternidade e que nenhum trem voltaria a andar algum dia.

Podemos ir, Papai?

Sim. Claro que podemos.

Começaram a se deparar de tempos em tempos com pequenas pilhas de pedras junto à beira da estrada. Eram sinais na linguagem dos ciganos, configurações perdidas que usavam para comunicação. Eram as primeiras que via fazia algum tempo, comuns no norte, levando para fora das cidades pilhadas e exaustas mensagens desesperançadas para pessoas amadas desaparecidas e mortas. A essa altura todas as vendas de comida tinham se esgotado e os assassinatos estavam em toda parte sobre a terra. O mundo prestes a ser povoado por homens capazes de comer seus filhos diante dos seus olhos e as cidades em si tomadas por bandos de saqueadores enegrecidos que abriam túneis em meio às ruínas e se arrastavam subindo em meio ao entulho com dentes e olhos brancos trazendo latas de comida carbonizadas e anônimas em redes de náilon como compradores nos armazéns do inferno. O talco macio e negro era soprado pelas ruas como tinta de polvo se espalhando pelo fundo do mar e o frio se aproximava e a escuridão chegava cedo e os comedores de lixo passando pelos desfiladeiros íngremes com suas tochas abriam com seus passos buracos sedosos nas cinzas carregadas pelo vento que se fechavam atrás deles silenciosos como olhos. Lá fora nas estradas os peregrinos desfaleciam e caíam e morriam e a terra árida e amortalhada passava rodando sob o sol e regressava outra vez sem deixar rastros e sem ser notada, como o caminho de qualquer outro mundo gêmeo na antiga escuridão longínqua.


Muito antes que alcançassem a costa seus víveres tinham praticamente acabado. A região tinha sido despojada e pilhada anos antes e não encontraram nada nas casas e prédios à beira da estrada. Ele encontrou uma lista telefônica num posto de gasolina e escreveu o nome da cidade no mapa com um lápis. Sentaram-se na curva em frente à construção e comeram biscoitos e procuraram pela cidade mas não conseguiam encontrá-la. Ele separou as partes do mapa e olhou outra vez. Por fim mostrou ao menino. Estavam a uns oitenta quilômetros a oeste de onde ele teria imaginado. Desenhou varetas no mapa. Estes somos nós, ele disse. O menino traçou a rota até o mar com o dedo. Quanto tempo vai levar pra gente chegar lá? ele disse.

Duas semanas. Três.

É azul?

O mar? Não sei. Costumava ser.

O menino fez que sim. Ficou sentado olhando para o mapa. O homem o observava. Pensou que sabia o que era. Ele estudava cuidadosamente os mapas quando criança, mantendo o dedo sobre a cidade em que morava. Assim como procurava pela família na lista telefônica. Eles próprios entre outras pessoas, tudo em seu lugar. Venha, ele disse. Temos que ir.

No fim da tarde começou a chover. Deixaram a estrada e seguiram por um caminho de terra através de um campo e passaram a noite num depósito. O depósito tinha piso de concreto e na outra extremidade havia alguns tambores de aço vazios. Ele bloqueou as portas com os tambores, fez uma fogueira no chão e montou camas com algumas caixas de papelão achatadas. A chuva martelou a noite toda no teto de aço acima deles. Quando ele acordou a fogueira tinha apagado e estava muito frio. O menino estava sentado embrulhado no cobertor.


O que é?


Nada. Eu tive um sonho ruim.


Com o que você sonhou?


Nada.


Você está bem?


Não.


Ele passou os braços ao seu redor e o abraçou. Está tudo bem, falou.


Eu estava chorando. Mas você não acordou.


Sinto muito. É que eu estava tão cansado.


Eu quis dizer no sonho.


Pela manhã quando ele acordou a chuva tinha passado. Ficou escutando o vagaroso gotejar da água. Deslocou os quadris sobre o concreto duro e olhou através das tábuas para a região cinzenta lá fora. O menino ainda estava dormindo. A água pingava e formava poças no chão. Bolhinhas apareciam e deslizavam e desapareciam outra vez. Numa cidade ao pé da montanha eles tinham dormido num lugar como aquele e escutado a chuva. Havia uma drogaria antiquada com um balcão de mármore preto e bancos de cromo com assentos de plástico esfarrapado remendado com fita isolante. A farmácia tinha sido saqueada mas o resto da loja estava estranhamente intacto. Equipamentos eletrônicos caros repousavam intocados nas prateleiras. Ele ficou parado olhando para o lugar ao redor. Miudezas. Aviamentos. O que é isto? Pegou a mão do menino e o levou para fora mas o menino já tinha visto. Uma cabeça humana debaixo de uma tampa de bolo na ponta do balcão. Ressecada. Usando um boné de beisebol. Olhos secos voltados tristemente para dentro. Ele sonhou com isso? Não sonhou. Levantou-se, se pôs de joelhos e soprou nos carvões e arrastou as extremidades queimadas da tábua e reavivou a fogueira.


Existem outros caras do bem. Você disse isso.

Sim.

Então onde eles estão?

Estão escondidos.

De quem?

Uns dos outros.

Existem muitos deles?

Nós não sabemos.

Mas alguns.

Alguns. Sim.

Isso é verdade?

Sim. E verdade.

Mas poderia não ser verdade.

Acho que é verdade.

Está bem.

Você não acredita em mim.

Acredito em você.

Está bem.

Sempre acredito em você.

Eu acho que não.

Acredito sim. Tenho que acreditar.

Eles caminharam de volta à estrada através da lama. Cheiro de terra e cinza molhada sob a chuva. Agua preta no fosso da beira da estrada. Caindo de um cano de esgoto dentro de um poço. Num quintal um cervo de plástico. Tarde no dia seguinte entraram numa cidadezinha onde três homens saíram de trás de um caminhão e pararam na estrada diante deles. Emaciados, vestindo trapos. Segurando pedaços de cano. O que vocês têm no carrinho? Ele apontou o revólver para eles. Eles continuavam parados. O menino se agarrou ao seu casaco. Ninguém falava. Ele empurrou o carrinho para a frente outra vez e eles se afastaram até a beira da estrada. Ele mandou o menino empurrar o carrinho e caminhou de costas mantendo o revólver apontado para eles. Tentava parecer um matador migratório como qualquer outro mas seu coração estava aos pulos e sabia que ia começar a tossir. Eles voltaram devagar para a estrada e ficaram observando. Ele colocou o revólver no cinto e virou e pegou o carrinho. No alto da ladeira quando olhou para trás eles ainda estavam de pé ali. Ele disse ao menino para empurrar o carrinho e saiu para um quintal onde podia enxergar a estrada lá atrás mas agora eles tinham desaparecido. O menino estava muito assustado. Colocou a arma por cima da lona, pegou o carrinho e seguiram em frente.


Ficaram num campo até escurecer observando a estrada mas ninguém veio. Estava muito frio. Quando estava escuro demais para enxergar, pegaram o carrinho, voltaram aos tropeços para a estrada e ele pegou os cobertores, se embrulharam neles e seguiram em frente. Tateando o pavimento sob seus pés. Uma das rodas do carrinho tinha adquirido um guincho periódico mas não havia nada a fazer a respeito. Passaram por um esforço enorme durante algumas horas e então atravessaram aos tropeços o mato da beira da estrada e se deitaram tremendo e exaustos no chão frio e dormiram até de manhã. Quando ele acordou estava doente.


Estava com febre e ficaram na floresta como fugitivos. Nenhum lugar onde fazer uma fogueira. Nenhum lugar seguro. O menino ficava sentado nas folhas observando-o. As lágrimas transbordando de seus olhos. Você vai morrer, Papai?

Não. Só estou doente.

Estou com muito medo.

Eu sei. Está tudo bem. Vou melhorar. Você vai ver.

Seus sonhos se tornavam mais nítidos. O mundo desaparecido retornava. Parentes mortos havia muito ressurgiam e lançavam olhares oblíquos sobre ele. Ninguém falava. Pensou em sua vida. Tanto tempo atrás. Um dia cinzento numa cidade estrangeira onde ele ficava de pé diante de uma janela e observava a rua lá embaixo. Atrás dele numa mesa de madeira um pequeno abajur aceso. Sobre a mesa livros e papéis. Tinha começado a chover e um gato num canto se virou e atravessou a calçada e se sentou debaixo do café bocejando. Havia uma mulher numa mesa com a cabeça nas mãos. Anos mais tarde ele se encontraria de pé nas ruínas carbonizadas de uma biblioteca onde livros enegrecidos jaziam em poças d’água. Estantes derrubadas. Alguma ira voltada às mentiras arrumadas aos milhares fileira após fileira. Pegou um dos livros e folheou as páginas pesadas e inchadas. Ele não teria pensado no valor das menores coisas estabelecido num mundo por vir. Surpreendeu-o. Que o espaço que essas coisas ocupavam era em si uma expectativa. Deixou o livro cair e deu uma última olhada ao redor e saiu abrindo caminho até a luz fria e cinzenta.


Três dias. Quatro. Ele dormia pouco. A tosse torturante o acordava. Sugando o ar com um som áspero. Me desculpe, ele dizia para a escuridão impiedosa. Está tudo bem dizia o menino.


Acendeu o pequeno lampião a óleo e deixou-o sobre uma pedra e se levantou e caminhou arrastando os pés por entre as folhas envolvido em seus cobertores. O menino sussurrou-lhe para que não fosse. Só um pouquinho, ele disse. Não vou longe. Vou te ouvir se você chamar. Se o lampião apagasse ele não conseguiria encontrar o caminho de volta. Sentou-se sobre as folhas no alto do morro e olhou para a escuridão. Nada para ver. Nenhum vento. No passado, quando caminhava assim e se sentava olhando para o campo ali adiante num vulto quase invisível onde a lua perdida trilhava a desolação cáustica, às vezes via uma luz. Fraca e indistinta na penumbra. Do outro lado de um rio ou no interior dos quadrantes enegrecidos de uma cidade queimada. Pela manhã às vezes ele regressava com o binóculo e observava os campos em busca de algum sinal de fumaça mas não via nenhum.


De pé na beira de um campo de inverno em meio a homens brutos. Da idade do menino. Um pouco mais velho. Observando enquanto eles abriam o chão rochoso da encosta com picareta e enxadão e traziam para a luz um grande bolo de serpentes somando talvez uma centena. Reunidas ali para se aquecerem umas às outras. Seus tubos foscos começando a se mover preguiçosamente sob a luz fria e dura. Como os intestinos de alguma grande besta expostos ao dia. Os homens derramaram gasolina nelas e as queimaram vivas, não tendo qualquer remédio para o mal mas apenas para a imagem dele tal como o concebiam. As serpentes queimando se contorciam horrivelmente e algumas rastejavam em chamas pelo chão da gruta iluminando seus recessos mais escuros. Como eram mudas não havia gritos de dor e os homens as observaram queimar e se contorcer e enegrecer, eles próprios no mesmo silêncio, e debandaram em silêncio no crepúsculo do inverno cada um com seus próprios pensamentos e foram para casa jantar.


Certa noite o menino acordou de um sonho e não queria dizer a ele o que era.


Você não tem que me dizer, o homem falou. Está tudo bem.


Estou com medo.


Está tudo bem.


Não está não.


E só um sonho.


Estou com muito medo.


Eu sei.


O menino virou de costas. O homem o abraçou. Escute, ele disse.


O quê.


Quando seus sonhos forem de algum mundo que nunca existiu ou de algum mundo que nunca vai existir e você ficar feliz de novo então você terá desistido. Está entendendo? E você não pode desistir. Eu não vou deixar.


Quando partiram novamente ele estava muito fraco e, apesar de todos os seus discursos, estava com mais medo do que estivera durante anos. Imundo com uma diarréia, apoiado na trave com que empurrava o carrinho de compras. Olhava para o menino do fundo de seus olhos afundados e pálidos. Alguma nova distância entre eles. Podia senti-la. No intervalo de dois dias eles chegaram a uma região onde tempestades de fogo tinham passado deixando quilômetros e quilômetros de terra queimada. Uma cobertura de cinzas sobre a estrada com centímetros de espessura e sobre a qual era difícil de passar com o carrinho. O asfalto por baixo tinha se curvado com o calor e depois endurecido novamente. Ele se inclinava sobre a barra para empurrar o carrinho e olhava para o caminho reto e comprido abaixo dele. As árvores magras lá embaixo. Os canais de um limo cinzento. Uma terra coberta de palha e enegrecida.


Depois de um cruzamento na desolação eles começaram a se deparar com os pertences de viajantes abandonados na estrada anos antes. Caixas e bolsas. Tudo derretido e preto. Velhas maletas de plástico onduladas e disformes no calor. Aqui e ali marcas de coisas arrancadas do asfalto por pessoas atrás de restos. Mais um quilômetro e pouco adiante, começaram a se deparar com os mortos. Vultos meio afundados no asfalto, agarrando-se, as bocas gritando. Ele pôs a mão no ombro do menino. Segure a minha mão, falou. Não acho que você deveria ver isto.

O que você coloca na sua cabeça é para sempre? Sim.

Está tudo bem Papai.


Está tudo bem?


Eles já estão aqui.


Não quero que você olhe.


Eles ainda vão estar aqui.


Ele parou e se inclinou sobre o carrinho. Olhou para a estrada abaixo dele e olhou para o menino. Tão estranhamente imperturbado.


Por que simplesmente não vamos em frente, o menino disse.


Sim. Está bem.


Eles estavam tentando fugir não estavam Papai?


Sim. Estavam.


Por que não saíram da estrada?


Não podiam. Tudo estava em chamas.


Seguiram caminho por entre os vultos mumificados. A pele preta esticada sobre seus ossos e seus rostos rachados e afundados no crânio. Como se tivessem sido sugados de maneira hedionda. Passando por eles em silêncio através daquele silencioso corredor em meio às cinzas carregadas pelo vento enquanto eles lutavam para sempre no coágulo frio da estrada.


Passaram pelo local de um pequeno povoado de beira de estrada reduzido a nada pelo fogo. Alguns tanques de metal de depósito, uns poucos canos de chaminé de tijolos enegrecidos ainda de pé. Havia poças cinzentas de vidro derretido nos fossos e os fios de eletricidade desencapados jaziam em meadas enferrujadas por quilômetros ao longo da beira da estrada. Ele tossia a cada passo. Viu que o menino o observava. Ele era aquilo em que o menino pensava. Bem, deveria ser.


Sentaram-se na estrada e comeram sobras de fatias de pão duro como biscoito e sua última lata de atum. Ele abriu uma lata de ameixas secas e passaram-na entre eles. O menino segurou a lata no alto e bebeu o resto do caldo e depois se sentou com a lata no colo e passou o dedo indicador em seu interior e colocou o dedo na boca.


Não corte o dedo, o homem disse.


Você sempre diz isso.


Eu sei.


Ele o observou lamber a tampa da lata. Com grande cuidado. Feito um gato lambendo seu reflexo num vidro. Pare de me olhar, ele disse.


Está bem.


Ele abaixou a tampa da lata e colocou-a na estrada diante dele. O quê? ele disse. O que foi? ele disse. O que foi?


Nada.


Diga.


Acho que tem alguém seguindo a gente.


Foi o que eu pensei.


Foi o que você pensou?


É. Foi o que eu pensei que você ia dizer. O que você quer fazer?


Não sei.


O que você acha?


Vamos embora, só isso. A gente devia esconder nosso lixo.


Porque eles vão achar que a gente tem um monte de comida.

É.

E vão tentar matar a gente.


Eles não vão matar a gente.


Talvez eles tentassem.


Nós estamos bem.


Está bem.


Acho que a gente devia ficar no mato esperando por eles. Ver quem eles são.


E quantos.


E quantos. Sim.


Está bem.


Se conseguirmos atravessar o riacho podíamos subir os penhascos ali e vigiar a estrada.


Está bem.


Vamos encontrar um lugar.


Eles se levantaram e empilharam seus cobertores no carrinho. Pegue a lata, o homem disse.


Já era tarde no longo crepúsculo antes que a estrada cruzasse o riacho. Atravessam a ponte com o carrinho e o empurraram pela floresta em busca de algum lugar para deixá-lo onde ele não fosse ser visto. Ficaram parados olhando para a estrada lá atrás na penumbra.


E se a gente colocar ele debaixo da ponte? o menino disse.


E se eles forem ali para beber água?


A que distância você acha que eles estão da gente?


Não sei.


Está ficando escuro.


Eu sei.


E se eles passarem no escuro?


Vamos só encontrar um lugar onde a gente possa vigiar. Ainda não está escuro.

Esconderam o carrinho e subiram a encosta em meio às pedras carregando seus cobertores e se esconderam num lugar de onde pudessem ver a estrada através das árvores por talvez oitocentos metros. Estavam protegidos do vento e se embrulharam nos cobertores e se revezaram na vigia mas depois de um tempo o menino tinha adormecido. Ele próprio estava quase dormindo quando viu um vulto aparecer no alto da estrada e ficar parado ali. Logo mais dois apareceram. E um quarto. Eles ficaram parados e se agruparam. Então avançaram. Ele só conseguia divisá-los na penumbra intensa. Achou que talvez parassem logo e desejou ter encontrado um lugar mais distante da estrada. Se eles parassem na ponte seria uma noite longa e fria. Vieram pela estrada e atravessaram a ponte. Três homens e uma mulher. A mulher andava com um ritmo gingado e quando ela se aproximou ele pôde ver que estava grávida. Os homens carregavam mochilas nas costas e a mulher levava uma pequena valise de tecido. Todos eles com aparências miseráveis para além de qualquer descrição. A respiração produzindo um vapor discreto. Atravessaram a ponte e continuaram seguindo pela estrada e desapareceram um por um na escuridão imóvel.

Foi uma longa noite de todo modo. Quando havia luz suficiente para ver ele calçou os sapatos e se levantou e se envolveu num dos cobertores e caminhou e ficou parado olhando para a estrada lá embaixo. A floresta nua cor de ferro e os campos adiante. Os vultos enrugados de velhos sulcos feitos por arado ainda fracamente visíveis. Algodão talvez. O menino estava dormindo e ele desceu até o carrinho e pegou o mapa e a garrafa d’água e uma lata de frutas de suas pequenas reservas e voltou e se sentou nos cobertores e estudou o mapa.

Você sempre acha que a gente avançou mais do que avançou de fato.

Ele moveu o dedo. Aqui então.


Mais.


Aqui.


Está bem.


Ele dobrou as folhas moles e apodrecendo. Está bem, ele disse.


Ficaram sentados olhando através das árvores para a estrada.


Você acha que seus pais estão observando? Que eles te inscrevem em seu livro-razão? Contra o quê? Não há livro algum e seus pais estão mortos no chão.


A região passava de pinheiro para carvalho e pinheiro. Magnólias. Arvores mortas como qualquer outra. Ele pegou uma das pesadas folhas e esmagou-a na mão até transformá-la em pó e deixou o pó escapar por entre os dedos.


Na estrada cedo no dia seguinte. Não tinham avançado muito quando o menino puxou sua manga e eles pararam e ficaram ali de pé. Um traço suave de fumaça saía da floresta adiante. Ficaram observando.


O que a gente devia fazer, Papai?


Talvez a gente devesse dar uma olhada.


Vamos só seguir em frente.

E se eles estiverem indo na mesma direção que nós? E daí? o menino disse.

Vamos ter que ficar com eles atrás da gente. Eu gostaria de saber quem são.


E se for um exército?


É só uma fogueirinha.


Por que a gente não fica só esperando?


Não podemos esperar. Estamos quase sem comida. Temos que continuar indo em frente.


Deixaram o carrinho na floresta e ele verificou a rotação das balas no tambor. As de madeira e a real. Ficaram parados escutando. A fumaça subia verticalmente no ar parado. Nenhum som de espécie alguma. As folhas estavam macias com a chuva recente e não fazia barulho sob os pés. Ele se virou e olhou para o menino. O rosto pequeno e sujo com o medo estampado. Eles circundaram a fogueira mantendo distância, o menino segurando sua mão. Ele se agachou e colocou o braço ao redor dele e ficaram escutando por um longo tempo. Acho que foram embora, ele sussurrou.


O quê?


Acho que eles foram embora. Provavelmente tinham alguém de vigia.


Podia ser uma armadilha, Papai.


Está bem. Vamos esperar um pouco.


Esperaram. Podiam ver a fumaça através da árvores. Um vento tinha começado a açoitar o topo da espiral e a fumaça se deslocou e eles puderam sentir seu cheiro. Puderam sentir o cheiro de alguma coisa cozinhando. Vamos circundar, o homem disse.


Posso segurar sua mão?


Sim. Claro que pode.


A floresta era só troncos queimados. Não havia nada para ver. Acho que viram a gente, o homem disse. Acho que eles viram a gente e fugiram. Viram que tínhamos uma arma.


Eles deixaram a comida cozinhando.

É.

Vamos dar uma olhada.

Isso dá muito medo, Papai.

Não tem ninguém aqui. Está tudo bem.

Foram até a pequena clareira, o menino agarrado à sua mão. Tinham levado tudo consigo exceto aquela coisa preta que estava assando num espeto sobre os carvões. Ele estava ali em pé checando o perímetro quando o menino se virou e enterrou o rosto nele. Ele olhou rapidamente para ver o que tinha acontecido. O que foi? ele disse. O que foi? O menino sacudia a cabeça. Oh Papai, ele disse. Ele se virou e olhou novamente. O que o menino tinha visto era um bebê humano carbonizado sem a cabeça e estripado e escurecendo no espeto. Ele se curvou e pegou o menino e se dirigiu à estrada com ele, abraçando-o com força. Sinto muito, ele disse. Sinto muito.


Não sabia se ele voltaria a falar algum dia. Acamparam num rio e ele se sentou junto à fogueira ouvindo a água correr na escuridão. Não era um lugar seguro porque o barulho do rio mascarava todos os outros mas ele achou que ia alegrar o menino. Comeram o resto das provisões e ele se sentou estudando o mapa. Mediu a estrada com um pedaço de corda e olhou para ela e mediu outra vez. Ainda muito longe da costa. Não sabia o que iam encontrar quando chegassem lá. Ele juntou as partes do mapa, colocou-as de volta no saco plástico e ficou observando os carvões.


No dia seguinte atravessaram o rio numa ponte de ferro e chegaram a uma velha cidade industrial.


Entraram nas casas de madeira mas não encontraram nada.Um homem estava sentado numa porta usando um macacão e morto fazia anos.Parecia um homem de palha colocado ali para anunciar alguma festividade. Então seguiram ao longo do muro comprido e escuro do moinho, as janelas cobertas com tijolos. A fuligem fina e preta se precipitava na rua diante deles.


Coisas estranhas espalhadas pela beira da estrada. Dispositivos elétricos, móveis. Ferramentas. Coisas abandonadas muito tempo antes por peregrinos a caminho de suas várias e coletivas mortes. Um ano antes o menino às vezes podia pegar alguma coisa e levar consigo durante algum tempo mas já não fazia mais isso. Sentaram-se e descansaram e beberam o que restava de água limpa e deixaram a jarra de plástico na estrada. O menino disse: Se tivéssemos aquele bebezinho ele poderia vir conosco.


Sim. Poderia.


Onde eles o encontraram?


Ele não respondeu.


Será que tem outro em algum lugar?


Não sei. E possível.


Sinto muito sobre o que eu disse a respeito daquelas pessoas.


Que pessoas?


Aquelas pessoas que se queimaram. Que ficaram presas na estrada e se queimaram.


Não sabia que você tinha dito alguma coisa de

ruim.

Não foi ruim. Podemos ir agora?


Tudo bem. Você quer ir dentro do carrinho?


Está tudo bem.


Por que você não vai um pouco?


Não quero. Está tudo bem.


Água correndo devagar na região plana. Os lodaçais na beira da estrada imóveis e cinzentos. Os rios das planícies costeiras em serpentinas de chumbo atravessando a fazenda árida. Seguiram em frente. Adiante na estrada havia um declive e uma moita de bambu. Acho que há uma ponte ali. Provavelmente um riacho.


Podemos beber a água?


Não temos escolha.


Não vai deixar a gente doente.


Acho que não. Poderia estar seco.


Posso ir em frente?


Sim. Claro que pode.


O menino partiu pela estrada. Ele não o via correr fazia muito tempo. Cotovelos para fora, batendo os braços e em seus tênis grandes demais. Parou e ficou olhando, mordendo o lábio.


O riacho não passava de um pouco d’água brotando. Ele podia vê-lo se movendo levemente onde caía numa pedra de calçamento de concreto sob a estrada e cuspiu no riacho e observou-o para ver se ia se mover. Pegou um pano no carrinho e um jarro de plástico e voltou e envolveu a boca do jarro com o pano e afundou-o na água e observou-o se encher. Ergueu-o gotejando e segurou-o sob a luz. Não parecia tão ruim. Tirou o pano e entregou o jarro ao menino. Vá em frente, ele disse.


O menino bebeu e entregou-o de volta.


Beba mais um pouco.


Bebe um pouco você, Papai.


Está bem.


Eles ficaram sentados filtrando as cinzas da água e bebendo até não poderem mais. O menino deitou de costas na grama.


Temos que ir.


Estou muito cansado.


Eu sei.

Ele ficou sentado observando-o. Fazia dois dias que não comiam. Mais dois e começariam a ficar fracos. Subiu a encosta através do bambual para checar a estrada. Escura e negra e sem rastros onde atravessava o campo aberto. Os ventos tinham varrido as cinzas e o pó da superfície. Terras ricas outrora. Nenhum sinal de vida em parte alguma. Não era uma região que ele conhecesse. Os nomes das cidades ou dos rios. Venha, ele disse. Temos que ir.

Dormiam mais e mais. Mais de uma vez acordaram estendidos na estrada como vítimas do tráfego. O sono da morte. Ele se sentou tateando em busca do revólver. No entardecer de chumbo, ficou parado em pé apoiando os cotovelos na trave para empurrar o carrinho e olhando através dos campos para uma casa a talvez um quilômetro e meio de distância. Tinha sido o menino quem a enxergara, leriam que fazer algum esforço para chegar lá. Pegar os cobertores. Esconder o carrinho em algum lugar ao longo da estrada. Podiam alcançá-la antes de escurecer, mas não conseguiriam voltar.

Temos que ir dar uma olhada. Não temos escolha.

Eu não quero.

Faz dias que não comemos.

Não estou com fome.

Não, você está faminto.

Não quero ir até lá Papai.

Não tem ninguém lá. Eu prometo.

Como você sabe?

Eu simplesmente sei.

Eles poderiam estar lá.

Não estão não. Vai ficar tudo bem.

Partiram através dos campos embrulhados nos cobertores, levando apenas o revólver e uma garrafa d’água. O campo havia passado por uma última colheita e havia os ramos nus fincados no chão e o traço tênue do disco ainda estava visível de leste a oeste. Tinha chovido recentemente e a terra estava macia sob os pés e ele mantinha os olhos fixos no chão e antes que se passasse muito tempo ele parou e pegou uma ponta de flecha. Cuspiu nela e limpou a sujeira na costura de suas calças e deu-a ao menino. Era quartzo branco, perfeito como no dia em que tinha sido feito. Há mais, ele disse. Fique olhando o chão, você vai ver. Ele encontrou mais duas. Pederneira cinza. Depois encontrou uma moeda. Ou um botão. Uma grossa camada de verdete. Ele a raspou com a unha do polegar. Era uma moeda. Tirou sua faca e a desbastou com cuidado. A inscrição era em espanhol. Começou a chamar o menino até onde ele tinha ido e então olhou ao redor para a paisagem cinzenta e o céu cinzento e largou a moeda e se apressou para alcançá-lo.


Ficaram em frente à casa olhando para ela. Havia uma entrada de cascalho que fazia uma curva para o sul. Uma arcada aberta de tijolos. Escadaria dupla que levava à varanda com colunas. Nos fundos da casa uma dependência de tijolos que poderia outrora ter sido uma cozinha. Depois dela um casebre de madeira. Ele começou a subir a escada mas o menino puxou sua manga.


Podemos esperar um pouco?


Está bem. Mas está ficando escuro.


Eu sei.


Está bem.


Eles se sentaram na escada e olharam para a região ao redor.


Não tem ninguém aqui, o homem disse.


Está bem.


Você ainda está com medo?


Estou.


Está tudo bem conosco.


Está bem.


Subiram a escada até a ampla varanda com piso de tijolos. A porta estava pintada de preto e tinha sido arrombada com um bloco de concreto. Folhas secas e mato soprados através dela. O menino se agarrou à sua mão. Por que a porta está aberta, Papai?


Porque sim. Provavelmente está aberta há anos. Talvez as últimas pessoas tenham deixado ela aberta para levar suas coisas para fora.


Talvez a gente devesse esperar até amanhã.


Venha. Vamos dar uma olhada rápida. Antes que fique escuro demais. Se nós tivermos certeza de que é seguro, talvez possamos acender uma fogueira.


Mas não vamos ficar na casa vamos?


Não temos que ficar na casa.


Está bem.


Vamos beber um pouco d’água.


Está bem.


Ele pegou a garrafa do bolso lateral de sua parca, desatarraxou a tampa e observou o menino beber. Então ele próprio bebeu um gole e entraram no vestíbulo escurecido. Teto alto. Um candelabro importado. No pé da escada havia uma alta janela em arco e sua sombra mais suave projetando-se na parede junto à escada com a última luz do dia.


Não temos que ir lá para cima, temos? o menino sussurrou.


Não. Talvez amanhã.

Depois que a gente garantir que a área é segura. Sim.

Está bem.

Entraram na sala de estar. O vulto de um carpete por baixo das cinzas que se depositaram. Mobília coberta com lençóis. Quadrados pálidos nas paredes onde antes quadros tinham estado. No salão do outro lado do vestíbulo havia um piano de cauda. Os vultos deles seccionados no vidro fino e molhado da janela que havia ali. Eles entraram e ficaram escutando. Vagaram pelos quartos como compradores céticos. Ficaram parados olhando pelas janelas altas para a terra que escurecia lá fora.


Na cozinha havia instrumentos cortantes e panelas e porcelana inglesa. A copa de um mordomo onde a porta se fechava suavemente atrás deles. Chão de azulejos e filas de prateleiras e nas prateleiras dezenas de jarros de um litro. Atravessou o cômodo e pegou um deles e soprou a poeira de cima. Feijões verdes. Fatias de pimentão vermelho em meio às fileiras organizadas. Tomates. Milho. Batatas para conserva. Quiabo. O menino o observava. O homem limpou a poeira das tampas dos jarros e empurrou-as com o polegar. Escurecia rapidamente. Ele levou dois jarros até a janela e as levantou e virou. Olhou para o menino. Isto pode ser veneno, ele disse. Teremos que cozinhar tudo muito bem. Está certo?

Não sei.

O que você quer fazer?

Você tem que dizer.

Nós dois temos que dizer.

Você acha que eles estão bons?

Acho que se a gente cozinhar muito bem eles ficarão bons.

Está bem. Por que você acha que ninguém comeu isso?

Acho que ninguém encontrou. Não dá para ver a casa da estrada.

A gente viu.

Você viu.

O menino estudou os jarros.

O que você acha? o homem disse.

Acho que a gente não tem escolha.

Acho que você está certo. Vamos pegar um pouco de madeira antes que escureça mais ainda.

Carregaram braçadas de ramos mortos pelos degraus dos fundos através da cozinha e para a sala de jantar e os quebraram no sentido do comprimento e encheram a lareira. Ele acendeu o fogo e a fumaça subiu em espirais pelo lintel de madeira pintada até o teto e desceu em espirais outra vez. Ele abanou o lume com uma revista e logo a chaminé começou a puxar e o fogo rugiu no salão iluminando as paredes e o teto e o candelabro de vidro e suas miríades de facetas. As chamas iluminaram o vidro cada vez mais escuro da janela onde o menino estava de pé numa silhueta encapuzada como um ser sobrenatural que tivesse entrado durante a noite. Ele parecia atordoado com o calor. O homem tirou os lençóis de cima da comprida mesa império no centro da sala e sacudiu-os e fez uma cama com eles em frente à lareira. Sentou o menino ali e tirou seus sapatos e tirou os trapos sujos com os quais seus pés estavam envolvidos. Está tudo bem, ele sussurrou. Está tudo bem.

Encontrou velas numa gaveta da cozinha e acendeu duas delas e depois derreteu a cera sobre o balcão e fixou-as na cera. Saiu e trouxe mais madeira e empilhou-a junto à lareira. O menino não tinha se mexido. Havia caldeirões e panelas na cozinha e ele limpou uma e colocou-a sobre o balcão e depois tentou abrir um dos jarros mas não conseguiu. Levou um jarro de feijões verdes e um de batatas para a porta da frente e sob a luz de uma vela em cima de um copo ele se ajoelhou e colocou o primeiro jarro de lado no espaço entre a porta e o umbral e puxou a porta sobre ele. Então se agachou no chão do vestíbulo e enganchou o pé na beirada de fora da porta e puxou a porta de encontro à tampa e girou o jarro em suas mãos. A tampa serrilhada se virou na madeira raspando a pintura. Ele tentou segurar melhor o vidro e puxou a porta até estreitá-la mais e tentou de novo. A tampa deslizou na madeira, depois prendeu. Ele virou o jarro devagar nas mãos, depois tirou-o do umbral e tirou o anel da tampa e colocou-o no chão. Então abriu o segundo jarro e levou-os de volta à cozinha, segurando o copo na outra mão com a vela rolando lá dentro e crepitando. Tentou empurrar com o polegar as tampas para tirá-las mas estavam apertadas demais. Ele achou que era um bom sinal. Colocou a beira da tampa no balcão e golpeou o alto do jarro com o punho e a tampa saiu com um estalo e caiu no chão e ele levantou o jarro e cheirou-o. O cheiro era delicioso. Ele despejou as batatas e os feijões numa panela e levou a panela até a sala de jantar e colocou-a no fogo.


Eles comeram devagar em tigelas de porcelana, sentados em lados opostos da mesa com uma única vela acesa entre eles. O revólver à mão como um outro apetrecho do jantar. A casa estalava e gemia ao calor. Como alguma coisa sendo despertada de uma longa hibernação. O menino cochilou sobre a tigela e sua colher caiu no chão. O homem se levantou e deu a volta e o carregou até a lareira e o colocou nos lençóis e o cobriu com os cobertores. Devia ter ido de volta para a mesa porque acordou no meio da noite deitado ali com o rosto sobre os braços cruzados. Estava frio na sala e lá fora o vento soprava. As janelas chacoalhavam de leve na moldura. A vela tinha apagado e o fogo estava reduzido a carvões. Ele se levantou e reacendeu a lareira e se sentou ao lado do menino e puxou os cobertores por cima dele e puxou com a mão seu cabelo imundo para trás. Acho que talvez eles estejam observando, falou. Observando em busca de uma coisa que nem a morte pode desfazer e se eles não a virem vão virar as costas para nós e não vão voltar.

O menino não queria que ele fosse ao andar de cima. Tentou raciocinar com ele. Podia haver cobertores lá em cima, falou. Precisamos dar uma olhada.

Não quero que você vá lá em cima.

Não tem ninguém aqui.

Poderia ter.

Não tem ninguém aqui. Você não acha que a esta altura eles teriam descido?

Talvez eles estejam com medo.

Vou dizer a eles que a gente não vai machucá-los.

Talvez eles estejam mortos.

Então não vão se incomodar se a gente levar algumas coisas. Olhe, o que quer que haja lá em cima é melhor a gente saber do que se trata do que não saber.

Por quê?

Por quê? Bem, porque nós não gostamos de surpresas. Surpresas dão medo. E nós não gostamos de ficar com medo. E poderia haver coisas lá em cima de que precisamos. Temos que dar uma olhada.

Está bem.


Está bem? Só isso?


Bem. Você não vai me ouvir.


Eu tenho te ouvido.


Não com muita atenção.


Não tem ninguém aqui. Faz anos que não tem ninguém aqui. Não há rastros nas cinzas. Nada está mexido. Nenhuma mobília queimada na lareira. Tem comida aqui.


Os rastros não ficam nas cinzas. Você mesmo disse. O vento sopra para longe.


Eu vou subir.


Ficaram na casa durante quatro dias comendo e dormindo. Ele tinha encontrado mais quatro cobertores no andar de cima e trouxeram pilhas grandes de madeira e as colocaram no canto da sala para secar. Ele encontrou uma antiga serra de lenha e arame que usou para serrar os ramos mortos. Os dentes estavam enferrujados e cegos e ele se sentou em frente do fogo com uma lima e tentou afiá-los mas não adiantou muito. Havia um riacho a uns cem metros da casa e ele transportou incontáveis baldes d’água pelos campos espetados e pela lama e esquentaram água e se lavaram numa banheira junto ao quarto dos fundos no andar de baixo e ele cortou os cabelos dos dois e fez a barba. Tinham roupas e cobertores e travesseiros dos quartos do andar de cima e colocaram as novas vestimentas, as calças do menino cortadas no comprimento com sua faca. Ele improvisou uma cama em frente à lareira, emborcando uma cômoda para usá-la como cabeceira para a cama e manter o calor. Durante todo o tempo continuou a chover. Ele pôs baldes debaixo das calhas nos cantos da casa para recolher água limpa do velho telhado de zinco e à noite podia ouvir a chuva martelando nos quartos de cima e gotejando pela casa.


Fizeram uma busca minuciosa pelos anexos procurando qualquer coisa que fosse útil. Encontrou um carrinho de mão e o apanhou e virou de cabeça para baixo e girou a roda devagar, examinando o pneu. A borracha estava vitrificada e rachada mas achou que talvez retivesse o ar e ele olhou em meio a caixas velhas e uma confusão de ferramentas e encontrou uma bomba de bicicleta e atarraxou a ponta da mangueira na haste de válvula do pneu e começou a bombear. Desatarraxou a mangueira e virou o carrinho do lado certo e deslizou-o sobre o chão para um lado e para o outro. Depois o levou para fora para que a chuva o lavasse. Quando saíram dois dias depois o tempo havia limpado e partiram empurrando o carrinho com seus novos cobertores e os jarros de comida em conserva envolvidos nas roupas extras. Ele tinha encontrado um par de sapatos de operário e o menino estava usando tênis azuis com trapos enfiados nos dedos e usavam lençóis limpos como máscaras no rosto. Quando chegaram ao asfalto tiveram que voltar pela estrada para pegar o carrinho mas ele estava a pouco mais de um quilômetro. O menino caminhava ao lado com uma das mãos no carrinho de mão. A gente agiu bem, não agiu Papai? ele disse. Agiu sim.


Comeram bem mas ainda estavam a uma boa distância da costa. Ele sabia que estava alimentando esperanças sem nenhum motivo. Esperava que tudo fosse ficar mais claro, mas sabia que o mundo se tornava mais escuro a cada dia. Uma vez tinha encontrado um fotômetro numa loja de equipamento fotográfico que pensou poder usar para tirar médias de luminosidade durante alguns meses

e levou-o consigo durante um bom tempo achando que pudesse encontrar baterias para ele mas nunca encontrou. À noite, quando acordava tossindo, se sentava com a mão comprimindo a cabeça contra a escuridão. Como um homem acordando num túmulo. Como aqueles mortos desenterrados da sua infância que tinham sido transferidos para dar lugar a uma estrada. Muitos tinham morrido numa epidemia de cólera e tinham sido enterrados às pressas em caixas de madeira e as caixas estavam apodrecendo e se desmanchando até abrir. Os mortos vieram à luz deitados de lado com as pernas para cima e alguns deitados de barriga. As moedas antigas de um verde fosco caíam das órbitas de seus olhos sobre o fundo manchado e apodrecido dos caixões.

Estavam parados num armazém numa cidadezinha onde uma cabeça de cervo empalhada pendia da parede. O menino ficou olhando para ela durante um bom tempo. Havia vidro quebrado no chão e o homem fez com que ele esperasse na porta enquanto tateava com os pés em meio ao lixo com seus sapatos de operário mas não encontrou nada. Havia duas bombas de gasolina lá fora e eles se sentaram no anteparo de concreto e abaixaram uma pequena lata de metal presa por uma corda até o tanque subterrâneo e a ergueram e despejaram a gasolina que havia nela num jarro de plástico e baixaram-na de novo. Tinham amarrado um pequeno pedaço de cano à lata para afundá-la e se agachavam junto ao tanque como macacos pescando com varas num formigueiro durante quase uma hora inteira até o jarro estar cheio. Então atarraxaram a tampa e colocaram o jarro na parte de baixo do carrinho e seguiram em frente.


Dias longos. Terreno aberto com as cinzas soprando sobre a estrada. O menino se sentava junto à fogueira à noite com os pedaços do mapa sobre os joelhos. Sabia os nomes das cidades e dos rios de cor e avaliava diariamente o progresso deles.


Comiam mais moderadamente. Já não lhes restava mais quase nada. O menino estava de pé na estrada segurando o mapa. Escutavam atentamente mas não ouviam nada. Ainda assim ele podia ver a região aberta a leste e o ar estava diferente. Chegaram até ali depois de uma curva na estrada e pararam e ficaram ali com o vento salgado soprando em seu cabelo onde tinham abaixado os capuzes dos casacos para escutar. Lá adiante estava a praia cinzenta com as ondas vagarosas rolando surdas e pesadas e seu som distante. Como a desolação de algum mar estrangeiro quebrando na costa de um mundo inaudito. Nos baixios formados pela maré lá adiante estava um petroleiro meio adernado. Para além dele o oceano vasto e frio e se movendo pesadamente como um tonel lentamente transbordante de escória e então a linha borrada e escura das cinzas. Ele olhou para o menino. Podia ver o desapontamento em seu rosto. Eu sinto muito que não seja azul, ele disse. Está tudo bem, o menino disse.


Uma hora depois estavam sentados na praia e olhando fixamente para a parede de nevoeiro e fumaça no horizonte. Estavam sentados com os calcanhares afundados na areia e observavam o mar deserto quebrar em seus pés. Frio. Desolado. Sem pássaros. Ele tinha deixado o carrinho em meio às samambaias para além das dunas e haviam levado cobertores consigo e se sentaram embrulhados neles no abrigo de uma grande tora de madeira trazida pelo mar. Ficaram sentados ali por um bom tempo. Ao longo da costa da enseada abaixo deles fileiras de ossinhos em meio aos destroços. Mais adiante as costelas embranquecidas pelo sal do que talvez tivesse sido gado. Geada de sal cinzento sobre as pedras. O vento soprava e sementes secas se precipitavam ao longo da areia e paravam e seguiam outra vez.


Você acha que poderia ter navios lá?


Acho que não.

Eles não conseguiriam enxergar muito longe. Não. Não conseguiriam.

O que tem do outro lado?


Nada.


Deve ter alguma coisa.


Talvez tenha um pai e seu filho e eles estejam sentados na praia.


Isso seria bom.


Sim. Isso seria bom.


E eles levariam fogo também?


E possível. Sim.


Mas nós não sabemos.


Nós não sabemos.


Então temos que estar vigilantes.


Temos que estar vigilantes. Sim.


Por quanto tempo podemos ficar aqui?


Não sei. Não temos muita coisa para comer.


Eu sei.


Você gosta.


Gosto.


Eu também.


Posso ir nadar?


Nadar?

É.

Você vai congelar o rabo.

Eu sei.

Vai estar frio de verdade. Mais do que você pensa. Tudo bem.

Não quero ter que entrar para te trazer.

Você acha que eu não devia ir.

Você pode ir.

Mas você acha que eu não devia.

Não. Acho que você devia.

Mesmo?

Sim. Mesmo.

Está bem.

Ele se levantou e deixou o cobertor cair na areia e depois tirou o casaco, os sapatos e as roupas. Ficou nu, de pé, agarrando o próprio corpo e dançando. Então foi correndo até a praia. Tão pálido. Espinha saliente. As omoplatas afiadas serrando a pele clara. Correndo nu e pulando e gritando no rolo vagaroso da arrebentação.

Quando saiu estava azul de frio e batia os dentes. Ele caminhou até encontrá-lo e o envolveu tremendo no cobertor e o abraçou até ele parar de arquejar. Mas quando olhou o menino estava chorando. O que foi? ele disse. Nada. Não, me diga. Nada. Não foi nada.

Quando escureceu fizeram uma fogueira junto à tora de madeira e comeram pratos de quiabo e feijão e o resto das batatas enlatadas. As frutas já tinham acabado fazia muito. Beberam chá e ficaram sentados junto à fogueira e dormiram na areia e ficaram escutando a arrebentação na enseada. Seu longo estremecimento e queda.

Ele se levantou à noite e caminhou e ficou parado na praia envolvido pelos cobertores. Escuro demais para ver. Gosto de sal nos lábios. Esperando. Esperando. Depois o estrondo vagaroso caindo na direção da costa. Seu assobio fervilhante lavando a praia e correndo de volta. Ele pensou que ainda poderia haver navios da morte lá longe, vagando a esmo com seus indolentes trapos de velas. Ou vida nas profundezas. Grandes polvos propelindo-se sobre o solo marinho na escuridão fria. Movendo-se como trens, os olhos do tamanho de pires. E talvez para além daquelas ondas encobertas um outro homem caminhasse mesmo com uma outra criança na areia cinzenta e morta. Dormindo afastados apenas por um mar em outra praia em meio às cinzas amargas do mundo ou estivessem de pé com seus trapos perdidos para o mesmo sol indiferente.


Ele se lembrava de ter acordado uma vez numa noite semelhante e ouvido o ruído de caranguejos na panela onde havia deixado ossos de carne da noite anterior. Carvões quase extintos da fogueira feita com pedaços de madeira pulsando sob o vento costeiro. Deitado sob uma miríade semelhante de estrelas. O horizonte negro do mar. Ele se levantou, caminhou, parou descalço na areia e ficou observando a espuma pálida aparecer ao longo de toda a costa e rolar e arrebentar e ficar escura outra vez. Quando voltou para junto da fogueira, se ajoelhou e alisou o cabelo dela enquanto ela dormia e disse que se fosse Deus teria feito o mundo exatamente daquele jeito sem nenhuma diferença.


Quando voltou o menino estava acordado e sentia medo. Estivera chamando mas não alto o suficiente para que ele pudesse ouvi-lo. O homem colocou os braços ao seu redor. Não consegui te ouvir, ele disse. Não consegui te ouvir por causa das ondas. Pôs madeira no fogo e o abanou até reavivá-lo e ficaram deitados em seus cobertores observando as chamas serpenteando no vento e depois dormiram.


Pela manhã ele reacendeu a fogueira, comeram e ficaram observando a costa. Seu aspecto frio e chuvoso não muito diferente das paisagens marinhas no mundo ao norte. Não havia gaivotas ou pássaros costeiros. Artefatos carbonizados e inúteis espalhados pela costa ou rolando na arrebentação. Eles juntaram madeira deixada pelo mar e a empilharam e cobriram com a lona e depois partiram pela praia. Somos vagabundos de praia, ele disse.


O que é isso?


Pessoas que andam pela praia procurando coisas de valor que podem ter sido levadas pelas ondas.


Que tipo de coisas?


Todo tipo de coisas. Tudo o que você possa usar.


Você acha que a gente vai encontrar alguma coisa?


Não sei. Vamos dar uma olhada.


Dar uma olhada, o menino disse.


Estavam parados no quebra-mar de pedra e olhavam para o sul. Uma cusparada cinzenta de sal estendendo-se e se enroscando no poço de rochas. A curva comprida da praia lá adiante. Cinzenta como areia vulcânica. O vento soprando da água cheirava levemente a iodo. Isso era tudo. Não havia cheiro de mar nele. Nas rochas os restantes de algum musgo marinho escuro. Atravessaram e seguiram em frente. No final da praia seu caminho estava barrado por um promontório e eles deixaram a praia e tomaram um caminho antigo através das dunas e através dos arbustos mortos até chegarem a um promontório baixo. Abaixo deles um pedaço de terra amortalhado no vento úmido escuro soprando encosta abaixo e para além dele meio inclinado e afundado o vulto do casco de um barco a vela. Eles se agacharam nos tufos secos de capim e ficaram observando. O que a gente faz? o menino disse.


Vamos só ficar olhando por um tempo.


Estou com frio.


Eu sei. Vamos um pouco mais para baixo. Sair do vento.


Ele ficou sentado abraçando o menino à sua frente. O capim se sacudia de leve. Lá fora uma desolação cinzenta. O arrastar-se infinito do mar.


Por quanto tempo a gente vai ter que ficar aqui? o menino disse.


Não muito.


Você acha que tem gente no barco, Papai?


Não acho.


Eles estariam todos inclinados.


Estariam sim. Você consegue ver algum rastro por lá?


Não.


Vamos só esperar um pouco.


Estou com frio.


Foram caminhando pela curva crescente da praia, mantendo-se sobre a terra mais firme abaixo da faixa de destroços trazidos pela maré. Pararam, suas roupas se agitando suavemente. Pedaços de vidro flutuando cobertos com uma crosta cinzenta. Os ossos de pássaros marinhos. Na linha da arrebentação uma esteira tecida com algas e espinhas de peixe aos milhões se estendendo pela costa até onde os olhos podiam ver como uma sequência de ondulações da morte. Um vasto sepulcro de sal. Disparatado. Disparatado.


Do fim da língua de terra até o barco havia talvez trinta metros de mar aberto. Ficaram parados olhando para o barco. Cerca de sessenta pés de comprimento, sem nada no convés, emborcado em três ou quatro metros d’água. Tinha sido aigum tipo de veleiro de mastro duplo mas os mastros estavam quebrados quase rente ao convés e as únicas coisas que restavam eram alguns cunhos de bronze e uns poucos postes do guarda-mancebo nas extremidades do convés. Isso e a roda de leme projetando-se do cockpit. Ele se virou e estudou a praia e as dunas para além dela. Depois entregou ao menino o revólver, se sentou na areia e começou a desamarrar os cadarços do sapato.


O que você vai fazer, Papai?


Dar uma olhada.


Posso ir com você?


Não. Você tem que ficar aqui.


Quero ir com você.


Você tem que ficar de vigia. E além disso a água é funda.


Eu vou poder te ver?


Sim. Vou ficar monitorando você. Para me certificar de que tudo está bem.


Quero ir com você.


Ele parou. Você não pode, falou. O vento vai levar nossas roupas para longe. Alguém tem que tomar conta das coisas.


Dobrou tudo e formou uma pilha. Deus, como estava frio. Ele se abaixou e beijou o menino na testa. Pare de se preocupar, disse. É só ficar atento.Avançou nu para dentro d’água e parou e se molhou. Então seguiu revolvendo a água e mergulhou de cabeça.Nadou ao longo do casco de metal e fez a volta, abrindo caminho na água, arquejante de frio. A meia-nau os cabos do guarda-mancebo chegavam até a água. Ele se arrastou pelos cabos até a popa. O aço era cinzento e esbranquiçado de sal, mas ele podia divisar as letras douradas e gastas. Pájaro de Esperanza. Tenerife. Um par vazio de turcos para um bote. Ele se segurou na amurada e tomou impulso para subir no barco e se virou e se agachou tremendo no plano inclinado do convés de madeira. Uns poucos pedaços do estaiamento partidos nos esticadores. Rombos na madeira de onde as ferragens tinham sido arrancadas. Alguma força terrível capaz de varrer tudo do convés. Acenou para o menino mas ele não acenou de volta.


A cabine era baixa com um teto abobadado e vigias na lateral. Ele se agachou e limpou o sal cinzento e olhou lá dentro mas não conseguiu enxergar nada. Tentou a porta baixa de teca mas estava trancada. Deu-lhe um empurrão com seu ombro ossudo. Olhou ao redor em busca de alguma coisa com que pudesse forçá-la. Tremia de modo incontrolável e seus dentes batiam. Pensou em chutar a porta com a planta do pé mas achou que não era uma boa ideia. Segurou o cotovelo com a mão e bateu com força na porta outra vez. Sentiu-a ceder. Muito de leve. Continuou tentando. O umbral estava rachando por dentro e por fim cedeu e ele a abriu com um empurrão e desceu a escada de tombadilho até a cabine. Água estagnada ao longo do anteparo inferior cheia de papéis molhados e lixo. Um cheiro azedo em toda parte. Úmido e desagradável. Ele achou que o barco tinha sido saqueado, mas era o mar que tinha feito aquilo. Havia uma mesa de mogno no meio do salão com anteparos presos com dobradiças. As portas do paiol pendendo abertas no cômodo e todos os detalhes de metal de um verde baço. Vasculhou as cabines de proa. Passou pela cozinha. Farinha e café no chão e comida enlatada meio esmagada e enferrujando. Um banheiro com um vaso sanitário e uma pia de aço inoxidável. A luz fraca do mar entrava pelas vigias clerestório. Equipamento espalhado por toda parte. Um colete salva-vidas flutuando na água.


Ele meio que esperava algum horror mas não havia nenhum. Os colchões nas cabines tinham sido arremessados no chão e a roupa de cama estava empilhada junto à parede. Tudo molhado. Havia uma porta aberta dando para o paiol na proa mas estava escuro demais para ver lá dentro. Ele enfiou a cabeça, entrou e tateou ao redor. Latões compridos com tampas de madeira e dobradiças. Equipamentos de navegação empilhados no chão. Ele começou a arrastar tudo para fora e empilhar na cama inclinada. Cobertores, roupas para mau tempo. Descobriu um suéter úmido e o enfiou pela cabeça. Encontrou um par de botas impermeáveis amarelas de borracha e um casaco de náilon e vestiu-o fechando o zíper e colocou as calças rígidas e amarelas das roupas náuticas e passou os suspensórios por cima dos ombros e calçou as botas. Depois voltou ao convés. O menino estava sentado conforme ele o deixara, observando o navio. Ele se levantou alarmado e o homem se deu conta de que em suas novas roupas ele era um vulto incerto. Sou eu, gritou, mas o menino simplesmente ficou parado ali e ele acenou e voltou a descer.


No segundo camarote particular havia gavetas sob o beliche que ainda estavam no lugar e ele as levantou para liberá-las e as puxou. Manuais e papéis em espanhol. Barras de sabão. Uma valise preta de couro coberta de mofo com papéis dentro. Colocou o sabão no bolso do casaco e se pôs de pé. Havia livros em espanhol espalhados sobre o beliche, inchados e disformes. Um único volume enfiado na prateleira contra o anteparo dianteiro.


Encontrou uma bolsa de lona emborrachada e vagueou pelo resto do navio usando as botas, apoiando-se nos anteparos por causa da inclinação, as calças amarelas impermeáveis fazendo ruído no frio. Encheu a bolsa com roupas avulsas. Um par de tênis femininos que achou que fossem caber no menino. Um canivete com cabo de madeira. Um par de óculos de sol. Ainda assim havia algo de perverso em sua busca. Era como vasculhar exaustivamente primeiro os lugares menos prováveis ao procurar algo que havia sido perdido. Por fim entrou na cozinha. Ligou o fogão e desligou-o de novo.

Levantou o trinco da escotilha que dava para o compartimento do motor e abriu-a. Parcialmente alagado e escuro como breu. Não havia cheiro de gasolina ou óleo. Fechou-o outra vez. Havia paióis construídos sob os bancos da cabine que abrigavam almofadas, lonas de vela, redes de pescar. Num paiol atrás do pedestal do leme ele encontrou rolos de cabos de náilon e garrafas de aço com gasolina e uma caixa de fibra de vidro para ferramentas. Sentou-se no chão da cabine e examinou as ferramentas. Enferrujadas mas aproveitáveis. Alicates, chaves de fenda, chaves inglesas. Fechou a lingueta da caixa de ferramentas e procurou pelo menino. Ele estava encolhido na areia adormecido com a cabeça sobre a pilha de roupas.

Levou a caixa de ferramentas e uma das garrafas de gasolina para a cozinha e foi para a proa fazer uma última revista nas cabines. Então se pôs a verificar os paióis na sala, vasculhando pastas e papéis em caixas de plástico, tentando encontrar o diário de bordo do barco. Encontrou um jogo de porcelana embalada e sem uso num caixote de madeira cheio de peças requintadas. A maioria quebrada. Serviço para oito, levando o nome do barco. Um presente, ele pensou. Ergueu uma xícara de chá e virou-a na palma da mão e a colocou de volta. A última coisa que encontrou foi uma caixa quadrada de carvalho com quinas entalhadas e uma placa de bronze sobre a tampa. Pensou que podia ser um humidor mas tinha o formato errado e, ao apanhá-la e avaliar seu peso, soube o que era. Deslocou os trincos já meio corroídos e abriu-a. Lá dentro havia um sextante de bronze, talvez com cem anos de idade. Ergueu-o do estojo e o segurou na mão. Encantado com sua beleza. O bronze estava fosco e havia manchas esverdeadas que assumiam a forma de uma outra mão que outrora o segurara, mas fora isso estava perfeito. Limpou a superfície esverdeada da lâmina na base. Hezzaninth, Londres. Segurou-o junto aos olhos e girou a rosca. Era a primeira coisa que ele via depois de um bom tempo capaz de emocioná-lo. Segurou-o na mão e em seguida o colocou de volta na baeta azul do estojo e fechou a tampa e os trincos e colocou-a de volta no paiol e fechou a porta.


Quando voltou ao convés para procurar o menino o menino não estava lá. Um momento de pânico antes de vê-lo caminhando pelo banco de areia com o revólver pendendo da mão, a cabeça baixa. De pé, ali, ele sentiu o casco do navio se levantar e deslizar. De leve. A maré subindo. Batendo contra as pedras do quebra-mar lá adiante. Ele se virou e voltou para a cabine.


Ele tinha levado dois rolos de cabo do paiol e mediu seu diâmetro com a palma da mão somando três e depois contou o número de voltas de cada rolo. Quinze metros de corda. Pendurou-as num cunho no convés de teca cinzenta e voltou para a cabine lá embaixo. Recolheu tudo e empilhou junto à mesa. Havia alguns jarros de plástico para água no paiol que ficava junto à cozinha mas estavam todos vazios exceto um. Ele pegou um dos vazios e viu que o plástico tinha rachado e que a água vazara e adivinhou que eles tinham congelado em algum lugar nas viagens sem rumo do barco. Provavelmente várias vezes. Pegou o jarro cheio até a metade, colocou-o na mesa e desatarraxou a tampa, cheirou a água e depois levantou o jarro com as duas mãos e bebeu. Depois bebeu de novo.


As latas na cozinha não pareciam de modo algum aproveitáveis e mesmo no paiol havia algumas que estavam muito enferrujadas e algumas que tinham um aspecto ameaçadoramente inchado. Todas haviam tido seus rótulos removidos e o conteúdo estava escrito no metal com marcador preto em espanhol. Nem tudo ele entendia. Examinou-as, sacudindo-as, espremendo-as com a mão. Empilhou-as no balcão acima da pequena geladeira da cozinha. Pensou que devia haver caixotes de alimentos guardados em algum lugar no porão mas não achava que qualquer um deles fosse comestível. Em todo caso havia um limite para o que podiam levar no carrinho. Ocorreu-lhe que encarava essa sorte inesperada de um modo perigosamente confiante mas mesmo assim disse o que havia dito antes. Que a sorte pode não ser bem isso. Havia algumas noites em que, deitado na escuridão, ele não invejava os mortos.

Encontrou uma lata de azeite de oliva e algumas latas de leite. Chá numa caixinha de metal enferrujada. Um recipiente de plástico em que havia algum tipo de refeição que ele não reconhecia. Uma lata de café cheia até a metade. Percorreu metodicamente as prateleiras no paiol, separando o que devia levar do que devia deixar. Quando já tinha levado tudo para a sala e empilhado junto à escada de tombadilho, voltou à cozinha e abriu a caixa de ferramentas e se pôs a remover um dos queimadores do pequeno fogão montado para resistir às oscilações do mar. Desconectou a mangueira trançada e removeu os prendedores de alumínio dos queimadores e colocou um deles no bolso do casaco. Afrouxou os acessórios de metal com um puxão e soltou os queimadores. Depois desconectou-os e prendeu a mangueira ao cano e ajustou a outra ponta da mangueira à garrafa de gasolina e levou-a para a sala. Por último fez uma trouxa com uma lona de plástico onde colocou algumas latas de suco e latas de frutas e vegetais e a amarrou com uma corda e depois tirou as roupas e empilhou-as em meio às coisas que tinha recolhido e foi até o convés nu e escorregou até a amurada com a lona e se lançou pela lateral e caiu no mar cinzento e gelado.

Chegou à areia junto com a última luz do dia e lançou a lona no chão e retirou com as palmas das mãos a água dos braços e do peito e foi pegar as roupas. O menino o seguiu. Ficou lhe perguntando sobre seu ombro, azul e descolorido no lugar onde ele o havia batido contra a escotilha. Está tudo bem, o homem disse. Não está doendo. Temos um monte de coisa. Espere até ver.

Seguiram às pressas pela praia sob o que restava da luz. E se o barco afundar? o menino disse.


Não vai afundar.


Poderia.


Não vai não. Venha. Você está com fome?


Estou.


Vamos comer bem esta noite. Mas precisamos nos apressar.


Eu estou correndo, Papai.


E pode ser que chova.


Como você pode saber?


Estou sentindo o cheiro.


Qual é o cheiro que tem?


Cinzas molhadas. Vamos.


Então ele parou. Onde está o revólver? ele disse.


O menino congelou. Parecia aterrorizado.


Cristo, o homem disse. Olhou para a praia atrás deles. O barco já estava fora de vista. Ele olhou para o menino. O menino colocou as mãos no alto da cabeça e estava prestes a chorar. Me desculpa, ele disse. Me desculpa.


Ele colocou no chão a lona com a comida enlatada. Temos que voltar.


Me desculpe, Papai.


Está tudo bem. Ela ainda vai estar lá.


O menino ficou parado com os ombros baixos. Estava começando a soluçar. O homem se ajoelhou e passou os braços ao redor dele. Está tudo bem, ele disse. Sou eu quem deveria se certificar de que estamos com o revólver e não fiz isso. Esqueci.


Me desculpe, Papai.


Venha. Estamos bem. Está tudo bem.


O revólver estava ali onde ele o havia deixado na areia. O homem apanhou-o e sacudiu-o e se sentou e puxou o pino do tambor e o entregou ao menino.


Segure isto, ele disse.


Está tudo bem, Papai?


Claro que está tudo bem.


Ele fez o tambor rolar para dentro da sua mão, soprou a areia que havia ali e o entregou ao menino, soprou no cano e soprou a areia que havia na estrutura e depois pegou as partes que estavam com o menino, montou tudo de novo e empunhou o revólver e baixou o cão e empunhou-o de novo. Alinhou o tambor deixando o cartucho de verdade no lugar e abaixou o cão, colocou o revólver na parca e se pôs de pé. Estamos prontos, ele disse. Vamos.


A escuridão vai alcançar a gente?


Não sei.


Vai, não vai?


Venha. Vamos nos apressar.


A escuridão os alcançou. Quando chegaram ao caminho do promontório estava escuro demais para ver o que quer que fosse. Ficaram parados sob o vento que vinha do mar com o mato assobiando em toda parte ao redor deles, o menino segurando sua mão. Só temos que continuar seguindo em frente, o homem disse. Vamos.


Não consigo enxergar.


Eu sei. É só a gente dar um passo de cada vez.


Está bem.


Não solte.


Está bem.


Não importa o que aconteça.


Não importa o que aconteça.


Seguiram na mais completa escuridão, enxergando tanto quanto os cegos. Ele mantinha uma das mãos estendidas à sua frente embora não houvesse nada naquela charneca salgada com o que pudessem colidir. A arrebentação parecia mais distante mas ele também se orientava pelo vento e depois de cambalear por quase uma hora emergiram do capim e das aveias-do-mar e se viram outra vez parados na areia seca da praia mais acima. O vento estava mais frio. Ele tinha trazido o menino para o seu lado a fim de protegê-lo do vento quando subitamente a praia diante deles apareceu estremecendo na escuridão e sumiu outra vez.


O que foi isso, Papai?


Está tudo bem. Foi um relâmpago. Venha.


Ele passou a lona com os mantimentos por cima do ombro, pegou a mão do menino e seguiram em frente, caminhando pesadamente na areia como cavalos numa parada para evitar pisar em algum pedaço de madeira trazida pelo mar ou destroços de navio. A luz cinza e esquisita irrompeu sobre a praia novamente. Longe dali um ribombo surdo de trovão soou abafado na escuridão. Acho que vi as nossas pegadas, ele disse.


Então estamos indo na direção certa.


Sim. Na direção certa.


Estou com muito frio, Papai.


Eu sei. Reze por um relâmpago. Seguiram em frente. Quando a luz irrompeu sobre a praia outra vez ele viu que o menino estava curvado e murmurava consigo mesmo. Procurava as pegadas deles subindo a praia mas não conseguia vê-las. O vento tinha recomeçado com mais força e ele aguardava os primeiros pingos de chuva. Se fossem apanhados na praia numa tempestade durante a noite teriam problemas. Viraram o rosto contra o vento, segurando os capuzes de suas parcas. A areia crepitando novamente sobre suas pernas e voando para longe na escuridão e o estampido do trovão se ouvindo bem junto à costa. A chuva começou vindo do mar forte e inclinada e golpeou seus rostos e ele puxou o menino de encontro a si.


Ficaram parados sob o aguaceiro. Quanto tinham avançado? Aguardou o relâmpago, mas estava se afastando e quando o seguinte veio ele soube que a tempestade tinha apagado suas pegadas. Continuaram caminhando penosamente pela areia na margem superior da praia, esperando ver o vulto da tora de madeira junto à qual tinham acampado. Em pouco tempo os relâmpagos tinham praticamente cessado. Então numa mudança na direção do vento ele ouviu um tamborilar distante e fraco. Parou. Escute, ele disse.

O que é?

Escute.

Não estou ouvindo nada.

Vamos.

O que é, Papai?

É a lona. É a chuva caindo na lona.

Seguiram em frente, tropeçando pela areia e pelo lixo ao longo da linha da arrebentação. Chegaram à lona quase que imediatamente e ele se ajoelhou e deixou cair o fardo e tateou ao redor em busca das pedras com que prendera o plástico e empurrou-as para baixo dele. Levantou a lona e a puxou por cima deles e depois usou as pedras para manter as pontas abaixadas. Tirou o casaco molhado do menino e puxou os cobertores por cima deles, a chuva golpeando-os através do plástico. Ele tirou seu próprio casaco e abraçou o menino bem perto de si e logo tinham adormecido.


Durante a noite a chuva cessou e ele acordou e ficou deitado escutando. O aguaceiro pesado e o baque da arrebentação depois que o vento acabou. Na primeira luz opaca ele se levantou e caminhou pela praia. A tempestade tinha sujado a costa e ele caminhou pela linha da arrebentação procurando por qualquer coisa que pudesse ser útil. Nos bancos de areia para além do quebra-mar um cadáver antigo subindo e descendo em meio à madeira flutuante. Ele gostaria de poder escondê-lo do menino mas o menino tinha razão. O que havia para esconder? Quando voltou ele estava acordado sentado na areia observando-o. Estava embrulhado nos cobertores e tinha estendido os casacos deles sobre o mato para secar. Ele foi até lá e se sentou do lado dele e os dois ficaram parados observando o mar de chumbo subir e descer para além das ondas.


Passaram a maior parte da manhã esvaziando o barco. Ele deixou uma fogueira acesa e chapinhava na areia vindo do mar nu e tremendo e deixava cair o cabo de reboque e ficava parado no calor das chamas enquanto o menino trazia a sacola por entre as fofas ondulações do terreno e a arrastava até a praia. Esvaziaram a sacola e estenderam cobertores e roupas sobre a areia morna para secar diante do fogo. Havia mais coisas no barco do que podiam carregar e ele pensou que podiam ficar alguns dias na praia e comer o máximo que pudessem, mas era perigoso. Dormiram aquela noite na areia com a fogueira mantendo o frio afastado e suas coisas espalhadas por toda parte ao redor deles. Ele acordou tossindo e se levantou e bebeu um pouco d’água e arrastou mais madeira para a fogueira, toras inteiras que projetaram uma grande cascata de centelhas. A madeira salgada queimava laranja e azul no coração da fogueira e ele ficou sentado observando durante um bom tempo. Mais tarde caminhou praia acima, sua sombra comprida se projetando na areia diante dele, oscilando com o vento na fogueira. Tossindo. Tossindo. Ele se curvou para a frente, segurando os joelhos. Gosto de sangue. As ondas vagarosas se arrastavam e fervilhavam no escuro e ele pensou em sua vida mas não havia nenhuma vida em que pensar e depois de um tempo caminhou de volta. Pegou uma lata de pêssegos da mochila, abriu-a e se sentou diante da fogueira e comeu os pêssegos devagar com sua colher enquanto o menino dormia. O fogo cintilava sob o vento e as centelhas se perdiam numa corrida pela areia. Colocou as latas vazias entre os pés. Cada dia é uma mentira, falou. Mas você está morrendo. Isso não é uma mentira.


Carregaram suas novas provisões empacotadas em lonas ou cobertores pela praia e colocaram tudo no carrinho. O menino tentou carregar coisa demais e quando pararam para descansar ele tinha pego parte do fardo e colocado junto com o seu. O barco tinha se deslocado ligeiramente com a tempestade. Ele ficou parado olhando para lá. O menino o observava. Você vai voltar lá?

Acho que sim. Uma última olhada.

Estou com um pouco de medo.

Está tudo bem. É só ficar de olho.

A gente tem mais coisas do que consegue carregar agora.

Eu sei. Só quero dar uma olhada.

Tudo bem.


Ele percorreu o navio da proa à popa de novo. Pare. Pense. Sentou-se no chão da sala principal com os pés nas botas de borracha apoiados no pedestal da mesa. Já estava escurecendo. Tentou se lembrar do que sabia acerca de barcos. Levantou-se e foi outra vez para o convés. O menino estava sentado junto à fogueira. Ele desceu até o cockpit e se sentou no banco, as costas contra o anteparo, os pés no convés qua.se que no nível dos olhos. Não usava nada além do suéter e a roupa náutica por cima, mas esquentavam pouco e ele não conseguia parar de tremer. Estava prestes a se levantar de novo quando se deu conta de que estivera olhando para os ferrolhos do anteparo na outra extremidade da cabine. Havia quatro deles. Aço inoxidável. Em outra época os bancos ficavam cobertos de almofadas e ele ainda podia ver os cordões que as prendiam antes de terem sido arrancadas dali. No centro inferior do cockpit, logo acima do assento, havia uma tira de náilon se projetando, a ponta dobrada e costurada em cruz. Olhou outra vez para as trancas. Eram ferrolhos giratórios com asas para os polegares. Ele se levantou e se ajoelhou no banco e virou cada um deles totalmente para a esquerda. Estavam presos com molas e, quando ele soltou, pegou a tira no fundo da borda, puxou-a e a borda escorregou e se soltou. Ali embaixo do convés havia um espaço que continha duas velas enroladas e o que parecia ser um bote de borracha para duas pessoas enrolado e amarrado com cabos elásticos. Um par de pequenos remos de plástico. Uma caixa de sinalizadores. E atrás dela havia uma caixa de ferramentas variadas, a tampa selada com fita isolante preta. Ele puxou-a para abri-la e encontrou a ponta da fita isolante e arrancou-a de toda a volta e destravou as fivelas de cromo e abriu a caixa. Dentro havia uma lanterna amarela de plástico, uma luz estroboscópica alimentada por uma pilha, um estojo de primeiros socorros. Um transmissor de localização de plástico amarelo. E um estojo preto mais ou menos do tamanho de um livro. Ele ergueu-o, destravou os ferrolhos e o abriu. Dentro estava acomodada uma velha pistola sinalizadora de bronze de 37 milímetros. Ele tirou-a da caixa com as duas mãos, virou-a e olhou para ela. Abaixou a alavanca e abriu-a. A culatra estava vazia mas havia oito balas sinalizadoras acomodadas num recipiente de plástico, pequenas e atarracadas e com aspecto de novas. Ele acomodou o revólver outra vez na caixa e fechou a rampa e baixou a tranca.

Ele chapinhou até a praia tremendo e tossindo e se embrulhou num cobertor e se sentou na areia morna em frente à fogueira com as caixas ao seu lado. O menino se agachou e tentou passar os braços ao redor dele, o que pelo menos trouxe um sorriso.

O que você encontrou, Papai? ele disse.

Encontrei um estojo de primeiros socorros. E encontrei uma pistola sinalizadora.

O que é isso?

Vou te mostrar. E usada para sinalizar.

Era isso o que você queria procurar?

Sim.

Como você sabia que estava lá?

Bem, eu esperava que estivesse lá. Foi principalmente sorte.

Ele abriu o estojo e virou-o para o menino ver.

É uma arma.

Uma arma sinalizadora. Atira uma coisa no ar e faz uma luz bem forte.

Posso ver?

Claro que pode.

O menino ergueu a arma do estojo e segurou-a. Você pode atirar em alguém com ela? ele disse.

Poderia.

E mataria a pessoa?

Não. Mas poderia colocar fogo nela.

Foi por isso que você pegou?

Sim.

Porque não tem ninguém pra quem sinalizar. Tem?

Não.

Eu gostaria de ver.

Quer dizer atirar?

É.

Podemos atirar.

De verdade?

Claro.

No escuro?

Sim. No escuro.

Podia ser tipo uma comemoração.

Tipo uma comemoração. Sim.

Podemos atirar hoje à noite?

Por que não?

Está carregada?

Não. Mas podemos carregar.

O menino ficou parado segurando a arma. Apontou-a na direção do mar. Uau, ele disse.

Ele se vestiu e saíram pela praia levando o resto da sua pilhagem. Para onde você acha que as pessoas foram, Papai? As que estavam no barco?

É.

Não sei.

Você acha que elas morreram?

Não sei.

Mas as probabilidades não são favoráveis a elas.

O homem sorriu. As probabilidades não são favoráveis a elas?

Não. São?

Não. Provavelmente não.

Acho que elas morreram.

Talvez tenham morrido.

Acho que foi o que aconteceu com elas.

Poderiam estar vivas em algum lugar, o homem disse. É possível. O menino não respondeu. Seguiram em frente. Tinham envolvido os pés com pano de vela e os coberto com sapatilhas de plástico azul cortadas de uma lona e deixavam pegadas estranhas em suas idas e vindas. Ele pensou no menino e nas preocupações dele e depois de um tempo disse: Você provavelmente está certo. Acho provável que estejam mortos.

Porque se eles estivessem vivos estaríamos pegando as coisas deles.

E não estamos pegando as coisas deles.

Eu sei.

Quantas pessoas você acha que estão vivas?

No mundo?

No mundo. Sim.

Não sei. Vamos parar para descansar.

Está bem.

Você está me cansando.

Está bem.

Eles se sentaram em meio às suas trouxas.

Quanto tempo a gente pode ficar aqui, Papai?

Você já me perguntou isso.

Eu sei.

Vamos ver.


Isso quer dizer não muito tempo.


Provavelmente.


O menino abria buracos na areia com os dedos até ter um círculo deles. O homem o observava. Não sei quantas pessoas há, ele disse. Não acho que haja muitas.


Eu sei. Ele puxou o cobertor por cima dos ombros e olhou para a praia cinzenta e árida.


O que foi? o homem disse.


Nada.


Não. Me diga.


Podia haver gente viva em algum outro lugar. Que outro lugar.


Não sei. Qualquer lugar.


Você quer dizer além da terra?

É.

Acho que não. Eles não poderiam viver noutro lugar.


Nem mesmo se pudessem chegar lá?


Não.


O menino desviou os olhos.


O quê? o homem disse.


Ele balançou a cabeça. Não sei o que a gente está fazendo, ele disse.


O homem começou a responder. Mas não respondeu. Depois de um tempo disse: Há pessoas. Há pessoas e nós vamos encontrá-las. Você vai ver.


Preparou o jantar enquanto o menino brincava na areia. Tinha uma espátula feita com uma lata de comida achatada e com ela construiu uma cidadezinha. Cavou ruelas na areia. O homem foi até lá e se agachou e olhou para ela. O menino levantou os olhos.


O oceano vai levar, não vai? falou.

Sim.

Está tudo bem.

Você consegue escrever o alfabeto?

Consigo.

Não estamos mais nos ocupando das suas aulas.

Eu sei.

Você consegue escrever alguma coisa na areia? Talvez eu pudesse escrever uma carta para os caras do bem. Então se eles passarem vão saber que a gente esteve aqui. Podíamos escrever lá em cima onde o mar não conseguisse apagar.

E se os caras do mal vissem?

É.

Eu não devia ter dito isso. Podíamos escrever uma carta para eles.

O menino balançou a cabeça. Está tudo bem, ele disse.

Ele carregou a pistola sinalizadora e assim que escureceu eles saíram pela praia para longe da fogueira e ele perguntou ao menino se ele queria disparar.

Você dispara, Papai. Você sabe como fazer isso.

Está bem.

Ele empunhou a arma e apontou-a para a enseada e puxou o gatilho. O clarão descreveu um arco na penumbra com um longo ruído sibilante e explodiu em algum lugar lá adiante sobre a água numa luz nublada e ficou pendendo ali. Os filetes quentes de magnésio foram caindo vagarosamente pela escuridão e a pálida linha da oscilação da maré surgiu no clarão e aos poucos desapareceu. Ele abaixou os olhos para o rosto erguido do menino.

Eles não conseguiriam ver isso de muito longe, conseguiriam, Papai?

Quem?

Qualquer um.


Não. Não muito longe.


Se você quisesse mostrar onde está.


Você quer dizer para os caras do bem?


É. Ou para qualquer pessoa que você quisesse que soubesse onde você está.


Como quem?


Não sei.


Como Deus?


É. Talvez alguém desse tipo.


Pela manhã ele fez uma fogueira e caminhou pela praia enquanto o menino dormia. Tinha saído não fazia muito tempo mas sentiu um estranho desconforto e quando voltou o menino estava de pé na praia envolvido em seus cobertores esperando por ele. Ele apertou o passo. Quando o alcançou ele estava se sentando.


O que foi? ele disse. O que foi?


Não estou me sentido bem, Papai.


Ele colocou a palma da mão sobre a testa do menino. Ele estava ardendo. Ele o apanhou e levou até a fogueira. Está tudo bem, ele disse. Você vai ficar bem.


Acho que vou ficar doente.


Está tudo bem.


Sentou-se com ele na areia e segurou sua testa enquanto ele se curvava e vomitava. Limpou a boca do menino com a mão. Me desculpe, o menino disse. Shh. Você não fez nada de errado.


Levou-o ao acampamento e cobriu-o com cobertores. Tentou fazer com que bebesse um pouco d’água. Colocou mais lenha na fogueira e se ajoelhou com a mão em sua testa. Você vai ficar bem, disse. Estava aterrorizado.


Não vá embora, o menino falou.


É claro que eu não vou embora.


Nem por um tempinho só.


Não. Estou bem aqui.


Está bem. Está bem, Papai.


Ele o abraçou a noite inteira, cochilando e acordando aterrorizado, tentando sentir com a mão o coração do menino. Pela manhã não tinha melhorado. Tentou fazer com que bebesse um pouco de suco mas ele não quis. Apertou a mão contra sua testa, invocando um frescor que não vinha. Limpou sua boca pálida enquanto ele dormia. Vou fazer o que prometi, ele sussurrou. Não importa o que aconteça. Não vou te enviar para a escuridão sozinho.


Vasculhou no estojo de primeiros socorros do barco mas não havia nada de muito útil. Aspirinas. Bandagens e desinfetante. Alguns antibióticos mas tinham prazo de validade curto. Ainda assim eram tudo o que tinha e ele ajudou o menino a beber e colocou uma das cápsulas em sua língua. Estava banhado em suor. Já tinha tirado seus cobertores e agora abriu o zíper de seu casaco e despiu-o e depois tirou suas roupas e levou-o para longe da fogueira. O menino levantou os olhos para ele. Estou com tanto frio, disse.


Eu sei. Mas você está com a temperatura muito alta e temos que te esfriar.


Pode me dar um outro cobertor?


Sim. Claro.


Você não vai se afastar.


Não. Não vou me afastar.


Levou as roupas imundas do menino para a arrebentação e as lavou, parado e tremendo na fria água salgada nu da cintura para baixo e agitando-as para cima e para baixo e torcendo-as. Estendeu-as junto à fogueira em varas enterradas na areia de modo inclinado e colocou mais madeira no fogo e foi se sentar junto ao menino outra vez, alisando seu cabelo embaraçado. A noite abriu uma lata de sopa e colocou-a sobre os carvões e comeu e observou a escuridão se aproximando. Quando acordou estava deitado tremendo na areia e a fogueira tinha praticamente se reduzido a cinzas e era noite fechada. Ele se sentou desesperado e estendeu a mão para o menino. Sim, ele sussurrou. Sim.


Reacendeu a fogueira e pegou um pano e umedeceu-o e colocou sobre a testa do menino. A aurora invernosa se aproximava e quando havia luz suficiente para ver ele foi para a floresta para além das dunas e voltou arrastando um grande apanhado de ramos e galhos mortos e se pôs a quebrá-los e empilhá-los junto à fogueira. Esmagou aspirinas numa xícara e dissolveu-as em água e colocou um pouco de açúcar e se sentou e levantou a cabeça do menino e segurou a xícara enquanto ele bebia.


Caminhou pela praia, encurvado e tossindo. Ficou parado olhando para as ondas escuras lá adiante. Estava atordoado de fadiga. Voltou e se sentou junto ao menino e dobrou novamente o pano e enxugou sua testa e depois estendeu o pano sobre a testa. Você tem que ficar por perto, ele disse. Você tem que ser rápido. Para poder ficar com ele. Abraçá-lo bem perto de si. O último dia da terra.


O menino dormiu o dia todo. Ele o acordava a toda hora para beber água com açúcar, a garganta seca do menino se contraindo e fazendo ruídos espasmódicos. Você tem que beber ele disse. Está bem, falou ofegante o menino. Girou a xícara na areia à sua frente e pôs o cobertor dobrado como um travesseiro sob sua cabeça suada e cobriu-o. Você está com frio? ele disse. Mas o menino já tinha adormecido.


Tentou ficar acordado a noite inteira mas não conseguia. Despertava incontáveis vezes e se sentava e se estapeava ou se levantava para colocar madeira no fogo. Abraçava o menino e se curvava para ouvir a respiração difícil. A mão nas costelas magras e marcadas. Caminhou na praia até onde a luz alcançava e ficou parado com as mãos em punho no alto do crânio e caiu de joelhos soluçando de raiva.


Choveu brevemente à noite, um suave tamborilar sobre a lona. Ele puxou-a por cima deles e se virou e ficou deitado abraçado à criança, observando as chamas azuis através do plástico. Caiu num sono sem sonhos.


Quando acordou mal sabia onde estava. A fogueira tinha se apagado, a chuva tinha parado. Jogou a lona para trás e se levantou apoiado nos cotovelos. Luz cinzenta do dia. O menino o observava. Papai, ele disse.


Sim. Estou bem aqui.


Posso beber um pouco d’água?


Sim. Sim, claro que pode. Como você está se sentindo?


Estou me sentindo meio esquisito.


Está com fome?


Na verdade só estou mesmo com sede.


Deixe-me pegar a água.


Ele puxou para trás os cobertores e se levantou e passou pela fogueira apagada e pegou a xícara do menino e encheu-a com água do jarro de plástico, voltou e se ajoelhou e segurou a xícara para ele. Você vai ficar bem, disse. O menino bebeu. Ele fez que sim e olhou para o pai. Depois bebeu o resto da água. Mais, falou.


Fez uma fogueira e pendurou as roupas molhadas do menino e levou para ele uma lata de suco de maçã. Você se lembra de alguma coisa? ele disse.


Sobre o quê?


Sobre ter ficado doente.


Eu me lembro de ter disparado a pistola sinalizadora.


Você se lembra de ter trazido as coisas do barco?


Ele ficou sentado bebendo o suco. Levantou os olhos. Não sou um retardado, ele disse.


Eu sei.


Tive uns sonhos estranhos.


Sobre o quê?


Não quero te contar.


Está tudo bem. Quero escovar seus dentes.


Com pasta de dente de verdade.


Sim.


Está bem.


Ele verificou todas as latas de comida mas não conseguiu encontrar nada suspeito. Jogou fora algumas que pareciam bastante enferrujadas. Ficaram sentados naquela noite junto ao fogo e o menino tomou sopa quente e o homem virou suas roupas fumegantes nas varas e ficou

sentado observando-o até que o menino se sentiu embaraçado. Pare de ficar me olhando, Papai, ele disse.

Está bem.


Mas ele não parou.


Dois dias depois caminhavam pela praia até o promontório e de volta, caminhando com dificuldade em seus sapatos de plástico. Comeram refeições imensas e ele fez um telhado de meia-água com pano de vela, cordas e varas para protegê-los do vento. Reduziu os suprimentos a um carregamento adequado para o carrinho e achava que poderiam partir dentro de mais dois dias. Então voltando ao acampamento tarde naquele dia ele viu marcas de botas na areia. Parou e ficou olhando para a praia.

Oh Cristo, ele disse. Oh Cristo.


O que foi, Papai?


Ele tirou o revólver do cinto. Venha ele disse. Rápido.


A lona tinha sumido. Seus cobertores. A garrafa d’água e seu suprimento de comida que estava no acampamento. O pano de vela tinha sido soprado até as dunas. Seus sapatos tinham sumido. Ele correu até a faixa de areia onde tinha deixado o carrinho mas o carrinho tinha sumido. Tudo. Seu idiota, ele disse. Seu idiota.


O menino estava parado ali de olhos arregalados. O que aconteceu, Papai?


Eles levaram tudo. Venha.


O menino levantou os olhos. Estava começando a chorar.


Fique perto de mim, o homem disse. Fique bem perto de mim.


Podia ver as marcas do carrinho onde eles tropeçavam pela areia fofa. Pegadas de bota. Quantas? Eles perderam de vista as marcas no terreno mais firme depois das samambaias e em seguida as encontraram de novo. Quando chegaram à estrada ele parou o menino com a mão. A estrada ficava exposta ao vento marinho e as cinzas tinham sido sopradas para longe, à exceção de pontos aqui e ali. Não pise na estrada, ele disse. E pare de chorar. Precisamos tirar toda a areia dos nossos pés. Venha. Sente-se.


Ele retirou os panos e plásticos que envolviam seus pés e sacudiu-os e amarrou-os de volta. Quero que você ajude, ele disse. Vamos procurar areia. Areia na estrada. Mesmo que só um pouquinho. Para ver em que direção eles foram. Está bem?


Está bem.


Eles partiram pela estrada em direções opostas. Não tinham ido muito longe quando o menino chamou. Está aqui, Papai. Eles foram nesta direção. Quando chegou lá o menino estava agachado na estrada. Exatamente aqui, ele disse. Era meia colher de chá de areia da praia caída de algum lugar na estrutura inferior do carrinho de compras. O homem ficou parado de pé e olhou para a estrada. Bom trabalho, ele disse. Vamos.


Puseram-se a caminho num trote regular. Um passo que achou que ele fosse conseguir acompanhar mas não conseguiu. Ele levantou os olhos para o menino, respirando com dificuldade. Temos que caminhar, ele disse. Se eles nos ouvirem vão se esconder na beira da estrada. Vamos.


Quantos são, Papai?

Não sei. Talvez só um.

A gente vai matar eles?

Não sei.

Seguiram em frente. O dia já ia adiantado e mais uma hora já tinha se passado e o longo crepúsculo avançava quando alcançaram o ladrão, curvado sobre o carrinho cheio, seguindo pela estrada diante deles. Quando olhou para trás e os viu tentou correr com o carrinho mas era inútil e por fim ele parou e ficou parado atrás do carrinho segurando uma faca de açougueiro. Quando viu o revólver recuou mas não deixou cair a faca.

Afaste-se do carrinho, o homem disse.

Ele olhou para eles. Olhou para o menino. Era um pária de uma das comunas e os dedos de sua mão direita tinham sido decepados. Tentou escondê-la atrás do corpo. Uma espécie de espátula carnuda. O carrinho estava cheio até o alto. Ele tinha levado tudo.

Afaste-se do carrinho e largue a faca.

Ele olhou ao redor. Como se pudesse haver ajuda em algum lugar. Esquelético, soturno, barbado, imundo. O casaco velho de plástico todo preso com fita isolante. O revólver era de ação dupla mas o homem engatilhou-o assim mesmo. Dois cliques altos. Fora isso apenas a respiração deles no silêncio da charneca salgada. Podiam sentir o cheiro dele em seus trapos imundos. Se você não largar a faca e se afastar do carrinho, o homem disse, vou estourar seus miolos. O ladrão olhou para a criança e o que ele viu fez com que se contivesse. Colocou a faca em cima dos cobertores, recuou e ficou parado.

Para trás. Mais.

Ele recuou de novo.

Papai? o menino disse.

Fique quieto.

Ele não tirava os olhos do ladrão.


Maldito, ele disse.


Papai por favor não mate esse homem.


Os olhos do ladrão giravam loucamente. O menino chorava.


Vamos lá, cara. Eu fiz o que você disse. Escute o menino.


Tire a roupa.


O quê?


Tire-a. Até a última droga de peça.


Espera aí. Não faça isso.


Eu vou te matar aí mesmo.


Não faça isso, cara.


Não vou falar outra vez.


Tudo bem. Tudo bem. Vá com calma.


Ele tirou a roupa devagar e empilhou seus trapos desprezíveis na estrada.


Os sapatos.


Qual é, cara.


O ladrão olhou para o menino. O menino tinha se virado e colocado as mãos sobre os ouvidos. Tudo bem, ele disse. Tudo bem. Sentou-se nu na estrada e começou a desamarrar os pedaços podres de couro atados aos seus pés. Depois se levantou, segurando-os numa das mãos.


Coloque no carrinho.


Ele se aproximou e colocou os sapatos em cima dos cobertores e recuou. De pé ali tosco e nu, imundo, faminto. Cobrindo-se com a mão. Já estava tremendo.


Coloque as roupas ali dentro.


Ele se abaixou e recolheu os trapos nos braços e empilhou-os por cima dos sapatos. Ficou parado ali abraçando o próprio corpo. Não faça isso, cara.


Você não se incomodou em fazer isso conosco.


Estou te implorando.


Papai, o menino disse.


Vamos lá. Escure o menino.


Você tentou nos matar.


Estou morrendo de fome, cara. Você teria feito a mesma coisa.


Você levou tudo.


Qual é, cara. Eu vou morrer.


Vou te deixar do jeito que você nos deixou.


Qual é. Estou te implorando.


Ele empurrou o carrinho para trás e colocou o revólver por cima e olhou para o menino. Vamos, ele disse. E partiram pela estrada rumo ao sul com o menino chorando e olhando para a criatura nua e magra como uma tábua lá atrás parada na estrada tremendo e abraçando o próprio corpo. Oh Papai, ele soluçou.


Pare.


Não consigo parar.


O que você acha que teria acontecido conosco se não tivéssemos alcançado ele? Pare.


Estou tentando.


Quando chegaram à curva da estrada o homem ainda estava lá de pé. Não havia lugar algum aonde pudesse ir. O menino não parava de olhar para trás e quando já não conseguia mais enxergá-lo parou e simplesmente ficou sentado na estrada soluçando. O homem parou o carrinho e ficou olhando para ele. Desenterrou os sapatos deles do carrinho e se sentou e começou a tirar os panos e plásticos do pé do menino. Você tem que parar de chorar, ele disse.


Não consigo.


Colocou os sapatos deles e depois se levantou e voltou pela estrada mas não conseguiu ver o ladrão. Voltou e ficou parado diante do menino. Ele foi embora,disse.Vamos.

Ele não foi embora, o menino disse. Olhou para cima. Seu rosto riscado de fuligem. Não foi.

O que você quer fazer?

Só ajudá-lo, Papai. Só ajudá-lo.

O homem olhou outra vez para a estrada.

Ele só estava com fome, Papai. Ele vai morrer.

Ele vai morrer de qualquer maneira.

Ele está com tanto medo, Papai.

O homem se agachou e olhou para ele. Eu estou com medo, falou. Está entendendo? Eu estou com medo.

O menino não respondeu. Continuou apenas com a cabeça baixa, soluçando.

Não é você quem tem que se preocupar com tudo.

O menino disse alguma coisa mas ele não conseguiu entender. O quê? falou.

Ele levantou os olhos, o rosto úmido e sujo. Sim, sou eu, ele disse. Sou eu.

Empurraram o carrinho vacilante outra vez para a estrada e ficaram parados ali no frio e na escuridão que se aproximava e chamaram mas ninguém veio.

Ele está com medo de responder, Papai.

Foi aqui que a gente parou?

Não sei. Acho que sim.

Foram pela estrada chamando na penumbra vazia, suas vozes perdidas na costa cada vez mais escura. Pararam e ficaram ali com as mãos em forma de concha na boca, gritando insensatamente para a desolação. Por fim ele empilhou as roupas e os sapatos do homem na estrada. Colocou uma pedra por cima. Temos que ir, ele disse. Temos que ir.

Acamparam sem fazer fogueira. Ele escolheu latas para o jantar e as aqueceu no bico de gás e comeram e o menino não disse nada. O homem tentava ver o rosto dele na luz azul que vinha do bico de gás. Eu não ia matá-lo, ele disse. Mas o menino não respondeu. Eles se enrolaram nos cobertores e ficaram deitados ali na escuridão. Ele achou que podia ouvir o mar mas talvez fosse só o vento. Sabia pela respiração dele que o menino estava acordado e depois de algum tempo o menino disse: Mas a gente matou ele.

Pela manhã comeram e se puseram a caminho. O carrinho estava tão cheio que era difícil empurrá-lo e uma das rodas estava enguiçando. A estrada descrevia uma curva ao longo da costa, feixes mortos de capim costeiro pendendo sobre o pavimento. O mar cor de chumbo se movendo a distância. O silêncio. Acordou naquela noite com a luz opaca de carbono da lua que atravessava o céu para além da penumbra tornando os vultos das árvores quase visíveis e ele virou o rosto tossindo. Cheiro de chuva ao longe. O menino estava acordado. Você tem que falar comigo, ele disse.


Estou tentando.


Desculpe-me ter te acordado.


Tudo bem.


Ele se levantou e foi até a estrada. Seu vulto negro correndo da escuridão para a escuridão. Depois um ribombo distante e baixo. Não era trovão. Dava para senti-lo debaixo dos pés. Um som sem igual e tão sem descrição. Alguma coisa imponderável se movendo lá fora na escuridão. A própria terra se contraindo com o frio. O barulho não se repetiu. Qual a época do ano? Qual a idade da criança? Caminhou até a estrada e ficou parado. O silêncio. O salitre da terra secando. Os vultos enlameados de cidades inundadas queimadas até a linha d’água. Numa encruzilhada pedras de um dólmen no chão onde se desfazem os ossos de oráculos que antes falaram. Nenhum som além do vento. O que irá se dizer? Um homem vivo falou essas linhas? Afiou uma pena com seu pequeno canivete para escrever estas coisas em abrunho ou negro-de-fumo? Em algum momento marcado e reconhecível? Ele está vindo roubar meus olhos. Selar minha boca com terra.


Vasculhou entre as latas outra vez uma por uma, segurando-as na mão e espremendo-as como um homem verificando se as frutas de uma barraca estavam maduras. Separou duas que pareciam questionáveis e embalou o resto e encheu o carrinho e partiram novamente pela estrada. Em três dias chegaram a uma cidadezinha portuária e esconderam o carrinho numa garagem atrás de uma casa e empilharam caixas velhas por cima dele e depois se sentaram na casa para ver se alguém viria. Ninguém veio. Vasculhou dentro dos armários mas não havia nada ali. Precisava de vitamina D para o menino ou ele iria ficar raquítico. Ficou parado diante da pia e olhou para o caminho de entrada. Luz da cor de água suja se petrificando nos vidros imundos da janela. O menino se sentava recurvado à mesa com a cabeça nos braços.


Caminharam através da cidade e até as docas. Não viram ninguém. Ele levava o revólver no bolso do casaco e carregava a arma sinalizadora na mão. Caminharam até o píer, as tábuas toscas escuras com piche e presas com espigões às vigas lá embaixo. Postes de amarração de madeira. Cheiro fraco de sal e creosoto vindo da baía. Na margem distante uma fileira de armazéns e o vulto de um petroleiro avermelhado de ferrugem. Um alto pórtico de grua contra o céu soturno. Não há ninguém aqui, ele disse. O menino não respondeu.


Empurraram o carrinho por ruas secundárias e através dos trilhos da ferrovia e saíram de novo na estrada principal do outro lado da cidade. Quando passavam pelo último dos tristes edifícios de madeira alguma coisa passou assobiando ao lado de sua cabeça e ricocheteou com barulho na rua e se fragmentou contra a parede do bloco de edifícios do outro lado. Ele agarrou o menino e se jogou sobre ele e agarrou o carrinho para puxá-lo para junto deles. O carrinho virou e caiu espalhando a lona e os cobertores na rua. Numa janela mais no alto da casa ele pôde ver um homem apontando um arco para eles e empurrou a cabeça do menino para baixo e tentou cobri-lo com seu corpo. Ouviu o som vibrante da corda do arco e sentiu uma dor aguda e quente na perna. Ah seu imbecil, ele disse. Seu imbecil. Agarrou os cobertores removendo-os para um dos lados e estendeu a mão e pegou a pistola sinalizadora e se levantou e empunhou-a e descansou o braço na lateral do carrinho. O menino se agarrava a ele. Quando o homem voltou a aparecer entre a moldura da janela para disparar novamente com o arco ele atirou. O clarão subiu como um foguete na direção da janela num longo arco branco e puderam ouvir o homem gritando. Ele agarrou o menino e o empurrou para baixo e arrastou os cobertores para cima dele. Não se mexa, falou. Não se mexa e não olhe. Ele puxou os cobertores pela rua procurando o estojo da pistola sinalizadora. Finalmente o estojo escorregou para fora do carrinho, ele o agarrou, abriu e tirou dali os cartuchos, e recarregou a pistola e fechou a culatra e colocou o resto dos cartuchos no bolso. Fique bem aí onde você está, sussurrou. Deu uns tapinhas no menino através dos cobertores e se levantou e correu mancando pela rua.


Entrou na casa pela porta dos fundos com a pistola de sinalização empunhada na altura da cintura. A casa tinha sido despida de tudo a ponto de aparecerem os caibros verticais das paredes. Ele atravessou a sala de estar e ficou parado no pé da escada. Pôs-se a escutar para saber se havia movimento no andar de cima. Olhou pela janela da frente para onde o carrinho estava caído na rua e depois subiu a escada.


Uma mulher estava sentada no canto abraçada ao homem. Ela tinha tirado o casaco para cobri-lo. Assim que o viu começou a xingá-lo. A chama tinha incendiado o chão deixando uma trilha de cinzas brancas e havia um leve cheiro de madeira queimada no quarto. Ele atravessou o quarto e olhou pela janela. Os olhos da mulher o acompanharam. Esquelética, cabelo escorrido e grisalho.


Quem mais está aqui em cima?


Ela não respondeu. Ele passou por ela e foi aos outros quartos. Sua perna sangrava muito. Podia sentir as calças colando na pele. Voltou ao quarto da frente. Onde está o arco? ele disse.


Não está comigo.


Onde está?


Não sei.


Eles deixaram vocês aqui, não deixaram?


Eu me deixei aqui.


Ele se virou e desceu mancando a escada e abriu a porta da frente e saiu para a rua caminhando de costas e observando a casa. Quando chegou ao carrinho endireitou-o e empilhou as coisas deles de volta lá dentro. Fique perto, sussurrou. Fique perto.

Eles se alojaram num depósito na saída da cidade. Ele empurrou o carrinho pelo local até um quarto nos fundos, fechou a porta e empurrou o carrinho contra ela de lado. Tirou o bico e o tanque de gás e acendeu o bico e colocou-o no chão e depois desafivelou seu cinto e tirou as calças manchadas de sangue. O menino observava. A seta havia feito um corte logo acima do joelho com cerca de oito centímetros de extensão. Ainda estava sangrando e toda a coxa estava descolorada e podia ver que o corte era fundo. Alguma ponta de seta feita em casa usando metal, uma colher velha, sabe Deus o quê. Ele olhou para o menino. Veja se consegue encontrar o estojo de primeiros socorros, falou.

O menino não se mexeu.

Pegue o estojo de primeiros socorros, droga. Não fique aí parado.

Ele se levantou com um salto e foi até a porta e começou a vasculhar por baixo da lona e dos cobertores empilhados no carrinho. Voltou com o estojo, deu-o para o homem e o homem o apanhou sem comentários, soltou as presilhas e abriu-o. Alcançou o bico de gás e aumentou a chama para ter mais luz. Traga a garrafa d’água, falou. O menino levou a garrafa e o homem desatarraxou a tampa e derramou água sobre a ferida e a manteve fechada com os dedos enquanto limpava o sangue. Passou desinfetante no ferimento e abriu um envelope plástico usando os dentes e tirou uma pequena agulha de sutura em forma de gancho e um rolo de fio de seda e ficou sentado segurando o fio contra a luz enquanto passava-o pelo buraco da agulha. Pegou uma pinça no estojo e com ela segurou a agulha e começou a suturar a ferida. Trabalhava rápido, sem tomar muito cuidado. O menino estava agachado no chão. Olhou para ele e voltou a se ocupar com a sutura. Você não tem que olhar.

Está tudo bem?


Sim. Está tudo bem.


Está doendo?


Sim. Está doendo.


Deu um nó no fio, puxou-o para esticá-lo e cortou o fio com a tesoura do estojo e olhou para o menino. O menino estava olhando para o que havia sido feito. Desculpe-me por ter gritado com você.


Ele ergueu os olhos. Está tudo bem, Papai.


Vamos recomeçar.


Está bem.


Pela manhã estava chovendo e um vento forte sacudia a vidraça nos fundos do depósito. Ele ficou de pé olhando para fora. Uma doca de aço meio desmoronada e submersa na baía. Cabines de barcos pesqueiros afundados se projetando das ondas encrespadas e cinzentas. Nada se movia lá fora. Qualquer coisa que pudesse se mover já tinha sido soprada para longe havia muito tempo. Sua perna latejava e ele tirou as bandagens e desinfetou a ferida e a examinou. A pele inchada e descolorada na treliça dos pontos pretos. Atou as bandagens e vestiu as calças endurecidas de sangue.


Passaram o dia ali, sentados em meio a caixas e engradados. Você tem que falar comigo, ele disse.


Estou falando.


Tem certeza?


Estou falando agora.


Quer que eu te conte uma história?

Não.

Por que não?

O menino olhou para ele e desviou o olhar.

Por que não?

Essas histórias não são verdadeiras.

Elas não têm que ser verdadeiras. São histórias.

E. Mas nas histórias estamos sempre ajudando as pessoas e nós não ajudamos as pessoas.

Por que você não me conta uma história?

Não quero.

Está bem.

Não tenho nenhuma história para contar.

Você podia me contar uma história sobre você mesmo.

Você já conhece todas as histórias sobre mim. Você estava lá.

Você tem histórias por dentro que eu não conheço. Quer dizer como sonhos?

Como sonhos. Ou coisas em que você pensa.

É, mas as histórias deveriam ser felizes.

Elas não têm que ser.

Você sempre conta histórias felizes.

Você não tem nenhuma história feliz?

Elas são mais tipo vida real.

Mas as minhas histórias não são.

As suas histórias não são. Não.

O homem o observava. A vida real é bem ruim? O que você acha?

Bem, acho que ainda estamos aqui. Um bocado de coisas ruins aconteceu mas ainda estamos aqui.

É.

Você não acha que isso seja tão bom.

Está bem para mim.

Tinham puxado uma bancada até a janela e estendido os cobertores e o menino estava deitado ali de barriga olhando para a baía lá fora. O homem se sentou com a perna esticada. No cobertor entre os dois estavam as duas armas e a caixa de cartuchos de sinalização. Depois de um tempo o homem disse: Acho que é bem boa. É uma história bem boa. Tem os seus méritos.


Está tudo bem, Papai. Eu só quero ter um tempo em silêncio.


E quanto aos sonhos? Você costumava me contar seus sonhos às vezes.


Não quero falar sobre nada.


Está bem.


De todo modo não tenho bons sonhos. Eles são sempre sobre alguma coisa ruim acontecendo. Você disse que tudo bem porque sonhos bons não são um bom sinal.


Talvez. Não sei.


Quando você acorda tossindo você anda lá pela estrada ou para algum lugar mas eu ainda posso te ouvir tossindo.


Sinto muito.


Uma vez eu te ouvi chorando.


Eu sei.


Então se eu não devia chorar você também não devia chorar.


Está bem.


Sua perna vai melhorar?


Vai.


Você não está falando por falar.


Não.


Porque ela está parecendo bem machucada.


Não está tão ruim.


O homem estava tentando nos matar. Não estava.


É.Estava

Você matou ele?

Não.

Isso é verdade?

É.

Está bem.

Tudo bem para você?

Tudo.

Pensei que você não quisesse falar.

Não quero.

Partiram dois dias depois, o homem mancando atrás do carrinho e o menino grudado ao seu lado até terem saído dos arredores da cidade. A estrada corria junto à costa plana e cinzenta e havia montes de areia na estrada que o vento levara até lá. Isso tornava o avanço difícil e tinham que limpar o caminho em certos lugares com uma tábua que levavam na parte inferior do carrinho. Foram até a praia e se sentaram em meio à proteção das dunas e estudaram o mapa. Tinham levado o bico de gás com eles e esquentaram água e fizeram chá e ficaram sentados embrulhados em seus cobertores para se proteger do vento. Mais abaixo na costa as vigas gastas pelo tempo de um antigo navio. Vigas cinzentas e carcomidas pela areia, velhas cavilhas torneadas a mão. As ferragens marcadas e de um lilás intenso, fundidas em alguma forja em Cádiz ou Bristol e moldadas numa bigorna enegrecida, boas o suficiente para durar trezentos anos contra o mar. No dia seguinte eles passaram pelas tábuas das ruínas de um balneário e pegaram a estrada que ia para o interior através de uma floresta de pinheiros, o asfalto comprido e reto coberto de agulhas, o vento nas árvores negras.


Ele se sentou na estrada ao meio-dia sob a melhor luz que poderia ter e cortou as suturas com a tesoura e colocou a tesoura de volta no estojo e tirou de lá a pinça. Então começou a puxar os fiapinhos pretos da pele, apertando com a parte chata do polegar. O menino estava sentado na estrada observando. O homem apertava a pinça nas pontas dos fios e os puxava um por um. Pequenos pontos de sangue. Ao terminar guardou a pinça e atou o ferimento com gaze e depois se levantou e vestiu as calças e entregou o estojo ao menino para que o guardasse.


Isso doeu, não doeu? o menino disse.


É. Doeu.


Você é corajoso de verdade?


Mais ou menos.


Qual foi a coisa mais corajosa que você já fez?


Ele cuspiu na estrada um catarro ensanguentado.


Levantar hoje de manhã, falou.


Mesmo?


Não. Não ouça o que eu digo. Venha, vamos continuar.


A noite o vulto escuro de uma outra cidade costeira, o grupo de edifícios altos vagamente desalinhados. Ele achava que as estruturas de ferro tinham amolecido com o calor e depois endurecido de novo deixando os edifícios desnivelados. O vidro derretido das janelas pendia congelado nas paredes como cobertura de bolo. Seguiram em frente. Durante a noite ele às vezes acordava na desolação negra e gelada, vindo de mundos suavemente coloridos de amor humano, as canções dos pássaros, o sol.


Apoiou a testa nos braços cruzados sobre a barra onde empurrava o carrinho e tossiu. Cuspiu uma baba ensanguentada. Tinha que parar para descansar mais e mais. O menino o observava. Em algum outro mundo a criança já teria começado a apagá-lo de sua vida. Mas ele não tinha uma outra vida. Sabia que o menino ficava deitado acordado à noite e com os ouvidos atentos para saber se ele estava respirando.


Os dias iam passando sem ser contados ou marcados em calendário. Pela rodovia interestadual à distância longas filas de carros carbonizados e enferrujados. Aros nus das rodas caídos numa espécie de lama dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de metal. Os cadáveres incinerados reduzidos ao tamanho de crianças e apoiados nas molas expostas dos assentos. Dez mil sonhos sepultados dentro de seus corações queimados. Seguiram em frente. Caminhando no mundo dos mortos como ratos numa esteira. As noites de um silêncio mortal e de uma escuridão ainda mais mortal. Tão frias. Mal conversavam. Ele tossia o tempo todo e o menino o observava cuspir sangue. Seguindo em frente cada vez pior. Imundos, esfarrapados, sem esperanças. Ele parava e se apoiava no carrinho e o menino seguia em frente e então parava e olhava para trás, erguia os olhos cheios de lágrimas para vê-lo parado ali na estrada, fitando-o de algum futuro inimaginável, luzindo na desolação como um tabernáculo.


A estrada cruzou uma depressão onde canos de gelo se projetavam da lama congelada como formações numa caverna. Os restos de uma velha fogueira na beira da estrada. Para além disso uma comprida estrada de concreto. Um pântano morto. Árvores mortas se projetando da água cinzenta com restos de musgo cinzento. O transbordar sedoso das cinzas sobre a calçada. Ficou parado apoiando-se no parapeito arenoso de concreto. Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele fora feito. Oceanos, montanhas. O grave antiespetá- culo das coisas deixando de existir. A desolação extensa, hidrópica e secularmente fria. O silêncio.


Tinham começado a se deparar com zonas de pinheiros mortos derrubados pelo vento, grandes esteiras de destroços abertas na região. Ruínas de construções espalhadas pela paisagem e meadas de fios de arame de postes na beira da estrada embaraçadas como linhas de tricô. A estrada estava entulhada com escombros e deu trabalho passar por ali com o carrinho. Por fim eles simplesmente se sentaram na beira da estrada e ficaram olhando para o que havia à frente. Telhados de casas, troncos de árvores. Um barco. O céu aberto lá adiante onde na distância o mar soturno vagarosamente oscilava.


Eles vasculharam as ruínas espalhadas ao longo da estrada e no fim ele achou uma bolsa de lona que poderia pendurar no ombro e uma maleta para o menino. Guardaram os cobertores e a lona e o que restava da comida enlatada e partiram outra vez com suas mochilas e bolsas deixando o carrinho para trás. Subindo com dificuldade através das ruínas. Avançando devagar. Ele tinha que parar para descansar. Sentou-se num sofá na beira da estrada, as almofadas inchadas de umidade. Curvado, tossindo. Puxou a máscara manchada de sangue de cima do rosto e se levantou e enxaguou-a no fosso e pendurou-a e permaneceu apenas parado ali na estrada. Seu hálito formando ondas de vapor branco. O inverno já tinha chegado. Virou-se e olhou para o menino.


De pé com a maleta como um órfão esperando por um ônibus.


Em dois dias chegaram a um amplo rio sazonal onde a ponte jazia desmoronada na água que se movia lentamente. Sentaram-se na beira rachada da estrada e observaram o rio recuando sobre si mesmo e serpenteando sobre a malha de ferro. Examinou a região que ficava do outro lado da água.


O que a gente vai fazer Papai? ele disse.


Bem, o que a gente vai fazer, disse o menino.


Caminharam pela comprida língua de terra enlameada pela maré onde um barquinho jazia meio enterrado e ficaram parados ali o observando. Estava totalmente arruinado. Havia chuva no vento. Caminharam com dificuldade pela praia levando sua bagagem e procurando por abrigo mas não encontraram nenhum. Ele juntou uma pilha da madeira cor de osso que jazia ao longo da costa e acendeu uma fogueira e se sentaram nas dunas com a lona por cima e observaram a chuva fria vindo do norte. Caía com força, fazendo covinhas na areia. Saía vapor da fogueira e a fumaça subia em rolos vagarosos e o menino se enroscou debaixo da lona em que a chuva tamborilava e logo tinha adormecido. O homem puxou o plástico por cima de si e ficou observando o mar cinzento amortalhado lá adiante sob a chuva e as ondas quebrarem ao longo da costa e recuarem novamente sobre a areia escura e salpicada.


No dia seguinte encaminharam-se para o interior. Uma vasta e longa depressão onde samambaias e hortênsias e orquídeas selvagens viviam em efígies de cinzas que o vento ainda não alcançara. O progresso deles era uma tortura. Em dois dias quando chegaram a uma estrada ele colocou a bolsa no chão e se sentou curvado com os braços cruzados sobre o peito e tossiu até não conseguir mais. Dois dias mais e talvez tivessem viajado quinze quilômetros. Cruzaram o rio e pouco adiante chegaram a uma encruzilhada. Na região abaixo deles uma tempestade tinha passado sobre o istmo e nivelado as árvores mortas e pretas de leste a oeste como mato no leito de um rio. Ali acamparam e quando ele se deitou soube que não poderia avançar mais e que aquele era o lugar onde morreria. O menino ficou sentando a observá-lo, lágrimas jorrando dos olhos. Oh Papai, ele disse.


Ele o observou vir pela grama e se ajoelhar com a xícara de água que tinha buscado. Havia luz por toda parte ao redor dele. Pegou a xícara e bebeu e se deitou de novo. Tinham para comer uma única lata de pêssegos mas ele fez com que o menino comesse e não quis nada. Não consigo, falou. Está tudo bem.


Vou guardar metade para você.


Está bem. Guarde até amanhã.


Pegou a xícara e se afastou e ao sair a luz se afastou com ele. Quisera fazer uma tenda com a lona mas o homem não deixava. Disse que não queria nada cobrindo-o. Ficou deitado observando o menino junto à fogueira. Queria conseguir enxergar. Olhe ao seu redor, falou. Não há nenhum profeta na longa crônica da terra que não esteja sendo homenageado aqui hoje. Qualquer forma que você usou para se referir a você mesmo estava certa.


O menino achou que sentia cheiro de cinzas úmidas no vento. Seguiu um pouco pela estrada e voltou arrastando de volta um pedaço de compensado do lixo da beira da estrada e enfiou gravetos no chão com uma pedra e fez de compensado um telheiro frouxo mas no fim não choveu. Deixou a pistola de sinalização e levou o revólver consigo e percorreu a região em busca de algo para comer mas voltou de mãos vazias. O homem segurou sua mão, respirando com dificuldade. Você precisa seguir em frente, ele disse. Não posso ir com você. Você tem que continuar seguindo. Não sabe o que pode haver adiante na estrada. Nós sempre tivemos sorte. Você vai ter sorte de novo. Vai ver. E só seguir em frente. Está tudo bem.


Não posso.


Está tudo bem. Fazia tempo que isso estava para acontecer. Agora aconteceu. Continue indo para o sul. Faça tudo do jeito como fizemos.


Você vai ficar bem, Papai. Tem que ficar.


Não vou não. Fique com a arma o tempo todo. Você precisa encontrar os caras do bem mas não pode correr nenhum risco. Nenhum risco. Está ouvindo?


Quero ficar com você.


Você não pode.


Por favor.


Você não pode. Você tem que levar o fogo.


Não sei como fazer isso.


Sabe sim.


Ele é real? O fogo?


É sim.


Onde ele está? Não sei onde ele está.


Sabe sim. Está dentro de você. Sempre esteve aí. Posso ver.


Só me leve com você. Por favor.


Não posso.


Por favor, Papai.


Não posso. Não posso segurar meu filho morto em meus braços. Pensei que pudesse mas não posso.


Você disse que nunca ia me deixar.


Eu sei. Sinto muito. Você tem o meu coração todo. Sempre teve. Você é o melhor dos caras. Sempre foi. Se eu não estiver aqui ainda pode falar comigo. Fale comigo e eu vou falar com você. Você vai ver.


Eu vou te ouvir?


Sim. Vai sim. Tem que fazer como aquela conversa que você imaginou. E vai me ouvir. Tem que praticar. Só não desista. Está bem?


Está bem.


Está bem.


Estou com muito medo Papai.


Eu sei. Mas você vai ficar bem. Você vai ter sorte. Sei quem você é. Tenho que parar de falar. Vou começar a tossir de novo.


Está bem, Papai. Você não precisa falar. Está bem.


Saiu pela estrada até o mais longe que ousava e depois voltou. Seu pai estava adormecido. Sentou-se com ele sob o compensado e o observou. Fechou os olhos e falou com ele e manteve os olhos fechados e ficou escutando. Depois tentou de novo.


Acordou na escuridão, tossindo de leve. Ficou deitado escutando. O menino estava sentado junto à fogueira envolvido por um cobertor observando-o. Agua gotejando. Uma luz diminuindo. Velhos sonhos ultrapassando os limites do mundo desperto. O gotejar era na caverna. A luz era uma vela que o menino levava numa haste de cobre batido. A cera respingava nas pedras. Pegadas de criaturas desconhecidas no solo mortificado feito de depósitos trazidos pelo vento. Naquele corredor frio eles tinham alcançado o ponto do qual já não havia mais volta que era medido desde o início apenas pela luz que levavam consigo.

Você se lembra daquele menininho, Papai?

Sim. Eu me lembro dele.

Você acha que ele está bem aquele menininho?

Oh sim. Acho que ele está bem.

Você acha que ele estava perdido?

Não. Não acho que ele estivesse perdido.

Estou com medo de que ele estivesse perdido. Acho que ele está bem.

Mas quem vai encontrar ele se ele estiver perdido? Quem vai encontrar o menininho?

A bondade vai encontrar o menininho. Sempre encontrou. Vai encontrar outra vez.

Dormiu perto do pai naquela noite e abraçou-o mas quando acordou pela manhã seu pai estava frio e rígido. Ele ficou sentado ali por muito tempo chorando e depois se levantou e caminhou através da floresta até a estrada. Quando voltou se ajoelhou junto ao pai e segurou sua mão fria e disse seu nome de novo e de ncvo.

Ficou por três dias e depois caminhou até a estrada e olhou para a estrada adiante e olhou para a direção de onde tinham vindo. Alguém estava vindo. Ele começou a se virar e voltar para a floresta mas não voltou. Apenas ficou parado na estrada esperando, o revólver na mão. Tinha empilhado todos os cobertores em cima de seu pai e estava com frio e estava com fome. O homem que surgiu em seu campo de visão e que ficou parado ali o observan- do usava uma parca de esqui cinza e amarela. Levava uma espingarda de cabeça para baixo sobre o ombro presa a uma alça de couro trançado e usava uma cartucheira de náilon cheia de balas para a arma. Um veterano de velhos conflitos, barbado, com uma cicatriz no queixo e o osso esmagado e o único olho divagando. Quando falou sua boca não funcionou direito, nem quando sorriu.

Onde está o homem com quem você estava?


Ele morreu.


Era o seu pai?


Era. Era o meu pai.


Sinto muito.


Não sei o que fazer.


Acho que você devia vir comigo.


Você é um dos caras do bem?


O homem puxou o capuz de cima do rosto. Seu cabelo era comprido e estava embaraçado. Olhou para o céu. Como se houvesse alguma coisa ali para ser vista. Olhou para o menino. Sou, ele disse. Eu sou um dos caras do bem. Por que você não abaixa o revólver?


Eu não devo deixar ninguém pegar o revólver. Não importa o que aconteça.


Não quero pegar o seu revólver. Só não quero que você fique apontando ele para mim.


Está bem.


Onde estão as suas coisas?


Não temos muitas coisas.


Você tem um saco de dormir?


Não.


O que você tem? Alguns cobertores?


Meu pai está coberto com eles.


Mostre.


O menino não se moveu. O homem o observava. Ele se agachou num dos joelhos e tirou a espingarda que estava debaixo do braço e a colocou de pé sobre a estrada e se apoiou na culatra. Os cartuchos da espingarda nas voltas da cartucheira tinham sido carregados manualmente e as extremidades fechadas com cera de vela. Ele cheirava a fumaça de madeira. Veja bem, falou. Você tem duas escolhas aqui. Houve alguma discussão inclusive sobre vir ou não atrás de vocês. Você pode ficar aqui com seu pai e morrer ou pode vir comigo. Se você ficar tem que se manter longe da estrada. Não sei como chegou tão longe. Mas devia vir comigo. Você vai ficar bem.


Como eu posso saber que você

é

um dos caras do bem?


Não pode. Vai ter que correr o risco.


Vocês estão levando o fogo?


Nós estamos o quê?


Levando o fogo.


Você

é

meio maluquinho, não é?


Não.


Só um pouco.


Sim.


Tudo bem.


Então vocês estão?


O quê, levando o fogo?

É.

Sim. Estamos.


Vocês têm crianças?


Temos.


Vocês têm um menininho?


Temos um menininho e temos uma menininha.


Quantos anos ele tem?


Mais ou menos a sua idade. Talvez um pouco mais velho.


E vocês não comeram eles?


Não.


Vocês não comem gente.


Não. Nós não comemos gente.

E eu posso ir com vocês?

Pode. Pode sim.

Está bem então.

Está bem.

Entraram na floresta e o homem se agachou e olhou para o vulto cinzento e deteriorado sob a folha inclinada de compensado. Estes são todos os cobertores que você tem?

São.

Essa é a sua mala?

É.

Ele se pôs de pé. Olhou para o menino. Por que você não volta para a estrada e espera por mim. Vou levar os cobertores e tudo mais.

E o meu pai?

O que tem ele.

A gente não pode simplesmente deixar ele aqui. Podemos sim.

Não quero que as pessoas vejam ele.

Não tem ninguém aqui para vê-lo.

Posso cobrir ele com folhas?

O vento vai soprá-las para longe.

A gente poderia cobrir ele com um dos cobertores? Vou fazer isso. Agora vá.

Está bem.

Ele esperou na estrada e depois o homem saiu da floresta e estava trazendo a mala e os cobertores estavam sobre seus ombros. Selecionou um entre eles e o entregou ao menino. Tome, disse. Coloque isso em cima de você. Você está com frio. O menino tentou entregar-lhe o revólver mas ele não quis pegá-lo. Você fica com isso, falou.

Está bem.


Sabe como atirar?


Sei.


Está bem.


E o meu pai?


Não há mais nada a ser feito.


Acho que quero dizer adeus a ele.


Você vai ficar bem?


Vou.


Vá em frente. Eu te espero.


Ele voltou para a floresta e se ajoelhou ao lado do pai. Ele estava envolvido por um cobertor como o homem tinha prometido e o menino não o descobriu mas se sentou ao seu lado e chorava e não conseguia parar. Chorou por muito tempo. Vou conversar com você todo dia, sussurrou. E não vou me esquecer. Não importa o que aconteça. Então ele se levantou e se virou e caminhou de volta para a estrada.


A mulher quando o viu passou os braços ao seu redor e o abraçou. Oh, ela disse, estou tão feliz em te ver. Ela às vezes lhe falava sobre Deus. Ele tentava falar com Deus mas a melhor coisa era conversar com seu pai e falava com ele e não se esquecia. A mulher disse que estava tudo bem. Disse que o sopro de Deus era o seu sopro ainda embora passasse de homem para homem ao longo do tempo.


Antes havia trutas nos riachos das montanhas. Você podia vê-las paradas na correnteza cor de âmbar onde as extremidades brancas de suas barbatanas encrespavam de leve a superfície. Tinham cheiro de musgo na mão. Polidas e musculosas e se retorcendo. Em suas costas havia padrões sinuosos que eram mapas do mundo em seu princípio. Mapas e labirintos. De algo que não podia ser resgatado. Não podia ser endireitado. Nos vales estreitos e profundos em que eles viviam todas as coisas eram mais antigas do que o homem e num murmúrio contínuo falavam de mistério.


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