A OUTRA FACE
(THE NAKED FACE)
Escrito por Sidney Sheldon, em 1970.
18ª Ediçäo.
Judd Stevens é um psicanalista que subitamente se torna vítima de uma estranha conspiração.
Vários crimes ocorrem ao seu redor e ele suspeita de que seja ele próprio o verdadeiro autor dos assassinatos. Mas seria essa a verdade ou ele estaria começando a sofrer de paranóia, matando as vítimas em momentos de privação de sentidos?
O que quer que fosse, Judd Stevens tinha que encontrar a verdade. Em si mesmo ou nos outros.
Estaria a verdade em John Hanson, um homem casado, pai de três filhos, dominado por uma invencível compulsão para o homossexualismo?
Estaria a verdade em Teri Washburn, outrora grande estrela de Hollywood, ninfomaníaca que ocultava um crime terrível em seu passado?
E o que dizer de Anne Blake, jovem, meiga e linda paciente por quem Judd Stevens se apaixonara, mas sobre a qual quase nada sabia?
Talvez a verdade fosse encontrada em Harrison Burke, paranóico com tendências homicidas, vice-presidente de uma poderosa empresa de âmbito internacional.
E quem seriam os misteriosos assassinos? Amadores? Profissionais? Gente da Costa Nostra?
Em busca da verdade Judd Stevens enfrenta todos os perigos, num crescendo de emoção que só o autor como Sidney Sheldon nos poderia proporcionar.
Capítulo 1
Faltavam dez minutos para as onze horas da manhã quando o céu explodiu numa chuva de
confeites brancos, que rapidamente estendeu uma mortalha branca sobre a cidade. A neve macia se esparramou pelas ruas já congeladas de Manhattam, cobrindo-as com um lençol acinzentado. O vento frio de dezembro fustigou os que faziam as compras de Natal, obrigando-os a procurar refúgio em suas casas e apartamentos.
Em Lexington Avenue, um homem alto e magro, metido numa capa de chuva amarela,
deslocava-se no meio da apressada multidão de Natal, mas num ritmo próprio. Ele caminhava
rapidamente, mas seus passos não eram frenéticos como os dos outros transeuntes, que procuravam escapar ao frio. Estava com a cabeça levantada e parecia alheio às outras pessoas, que volta e meia nele esbarravam. Estava livre depois de uma vida de purgatório, e ia para casa, para dizer a Mary que tudo acabara. O passado ia enterrar seus mortos e o futuro era brilhante e promissor. E ele pensava no rosto de Mary, radiante quando ele lhe contasse as boas-novas. Ao chegar à esquina da Rua 59, o sinal mudou para vermelho e ele parou, com a multidão impaciente. A poucos passos estava um Papai Noel do Exército da Salvação, junto a um enorme caldeirão. O homem meteu a mão no bolso para pegar algumas moedas e ofertá-las aos deuses da sorte. Nesse mesmo instante alguém bateu-lhe nas costas, um golpe súbito e doloroso, que se espalhou por todo o seu corpo. Era algum bêbado de Natal excessivamente entusiasmado, procurando demonstrar a sua cordialidade para com o mundo.
Ou então Bruce Boyde, que nunca compreendera a força que tinha e jamais perdera o hábito
infantil de magoá-lo fisicamente. Mas ele não via Bruce há mais de um ano. O homem alto e magro tentou virar a cabeça para ver quem lhe batera nas costas. Foi nesse momento que percebeu, espantado, que seus joelhos estavam começando a se dobrar. Em câmara lenta, como se estivesse a observar a si próprio à distância, ele viu seu corpo cair na calçada. A dor nas costas era intensa e se irradiava pelo resto do corpo. Ele começou a sentir dificuldade em respirar. Diante do seu rosto havia um desfile de sapatos, que pareciam animados por uma vida própria. Começou a sentir o rosto entorpecido pelo frio da calçada. Sabia que não deveria ficar ali deitado. Abriu a boca para pedir a alguém que o ajudasse, e uma torrente quente e vermelha por ela escorreu, misturando-se com a neve semiderretida. Ele ficou observando, fascinado e aturdido, o rio vermelho avançar pela calçada e desaparecer na sarjeta. A dor estava pior agora, mas ele não lhe deu a menor importância, ao se recordar subitamente da boa notícia que levava para Mary. Ele estava livre. E ia dizer a Mary que estava livre. Fechou os olhos, contra a brancura ofuscante do céu. A neve começou a se transformar em granizo, mas ele não o mais podia sentir coisa alguma.
Capítulo 2
Carol Robert ouviu a porta da sala de recepção abrir e fechar e os homens entrarem. E antes
mesmo de levantar os olhos já sabia o que eles eram. Eram dois. Um tinha quarenta e poucos anos e era grande, com mais de 1,90 metros, muito forte. A cabeça era imensa, com olhos azuis fundos e glaciais, a boca contraída numa expressão de cansaço e sem qualquer cordialidade. O outro era mais jovem. Tinha feições delicadas e sensíveis, olhos castanhos e alertas. Os dois pareciam completamente diferentes, mas para Carol era como se fossem gêmeos idênticos.
Eram tiras. Era a isso que cheiravam. Quando se aproximaram de sua mesa, Carol sentiu
gotas de suor escorrerem por suas axilas, apesar do escudo antitranspirante. Freneticamente, sua mente rebuscou todas as áreas traiçoeiras em que era vulnerável. "Chick? Oh, não, há mais de seis meses que ele não se metia em encrencas"! Desde aquela noite no apartamento dele, quando Chick a pedira em casamento e prometera largar a quadrilha.
“Sammy? Ele estava no exterior, na Força Aérea. Se algo tivesse acontecido ao seu irmão”,
não mandariam dois tiras levar-lhe a notícia. não, eles tinham vindo até ali para agarrá-la “. Ela tinha erva na bolsa e um miserável a denunciara. Mas porquê dois? Carol disse a si mesma que eles não podiam pegá-la assim, sem mais nem menos. Ela não era mais uma garota negra do Harlem que os tiras prenderiam quando bem desejassem. Isso pertencia ao passado. Ela era agora a recepcionista de um dos maiores psicanalistas do país. Mas entrou em pânico. não perdera ainda a lembrança terrível dos muitos anos que passara escondendo-se em casas de cômodos fedorentos e apinhadas, enquanto a Lei dos brancos arrombava a porta e levava um pai, uma irmã ou um primo.
Mas Carol não deixou que a perturbação que sentia transparecesse em seu rosto. A vista,
tudo o que os dois detetives puderam ver foi uma jovem negra, num elegante vestido bege. A voz de Carol era fria e impessoal quando indagou:
- Posso ajudá-los em alguma coisa?
O Tenente Andrew McGreavy, o mais velho dos dois, percebeu a mancha de suor aumentar
sob a axila de Carol. Automaticamente ele classificou a informação como interesse, para algum uso futuro. A recepcionista do médico estava tensa. McGreavy tirou a carteira com o emblema pregado na imitação de couro rachada pelo uso.
- Tenente McGreavy, do 19º Distrito.
Ele sacudiu a cabeça na direção do companheiro e acrescentou:
- Detetive Angeli. Somos da divisão de Homicídios. "Homicídios"? - um músculo do braço de Carol começou a tremer, involuntariamente. "Chick! Ele matara alguém. Quebrara a promessa que lhe fizera e voltara para a quadrilha, praticara um assalto e atirara em alguém ou… Será que fora ele quem levara o tiro? Estaria morto? Era isso que tinham vindo dizer-lhe?", - pensou. Carol sentiu a mancha de suor aumentando. E subitamente ela compreendeu que McGreavy percebera a mancha de suor, apesar de estar olhando para o rosto dela. Carol e os McGreavys desse mundo não precisavam de palavras. Eles se reconheciam mutuamente à primeira vista. Afinal, há centenas de anos que se conheciam.
- Gostaríamos de falar com o Dr. Judd Stevens - disse o detetive mais jovem.
A voz era gentil e polida, combinando com a sua aparência. Carol notou pela primeira vez que ele segurava um pequeno embrulho, o papel pardo preso por um barbante. Carol levou um longo momento para compreender plenamente as palavras dele. "Então não era Chick… Nem Sammy… Nem a erva"!
- Lamento - disse ela, sem conseguir disfarçar inteiramente o seu alívio -, mas o Dr. Stevens está agora com um paciente.
- Vamos tomar-lhe apenas alguns minutos - disse McGreavy. - Queremos apenas fazer-lhe
algumas perguntas.
Ele fez uma pausa e acrescentou, a voz incisiva:
- Pode ser aqui ou lá na delegacia.
Carol ficou aturdida. “Mas que diabo dois detetives da Divisão de Homicídios podiam querer”.
falar com o Dr. Stevens? O que quer que a polícia pudesse pensar, o Dr. Stevens não fizera
absolutamente nada de errado. Ela o conhecia bem para ter certeza disso. Há quanto tempo fora?
Quatro anos “. Tudo começara no tribunal noturno…”.
Eram três horas da madrugada e a luz fraca do tribunal esparramava sobre todos uma palidez
doentia. A sala era velha e cansada, indiferente, saturada de cheiro rançoso do medo, que ali se acumulava ao longo dos anos com demãos de tinta descamadas.
Era muito azar de Carol que o Juiz Murphy estivesse novamente de plantão. Ela fora levada
à presença dele apenas duas semanas antes, conseguindo escapar com um sursis. Sua primeira
condenação. Ou seja, a primeira vez que os tiras miseráveis tinham-na agarrado. Ela sabia que, desta vez, o juiz não iria perdoá-la.
O caso em julgamento antes de Carol estava quase terminado. Um homem alto, de aparência
tranqüila, estava parado diante do juiz e dizia alguma coisa a respeito do seu cliente, um homem gordo, algemado, com o corpo todo a tremer. Carol calculou que o homem tranqüilo devia ser advogado. Ele tinha um ar confiante, fazendo com que Carol sentisse que o homem gordo tinha muita sorte por tê-lo como advogado. Ela não tinha ninguém para defendê-la.
Os homens afastaram-se e Carol ouviu seu nome ser chamado. Ela levantou-se, mantendo os
joelhos bem juntos, para impedi-los de tremer. O meirinho empurrou-a gentilmente para a frente. Um funcionário do tribunal entregou o sumário de acusação ao juiz.
O Juiz Murphy olhou para Carol e depois para o papel em sua mão.
- Carol Roberts. Prostituição, vagabundagem, posse de maconha e resistência à prisão.
A última acusação era uma mentira deslavada. O guarda empurrou-a com toda a força e ela
desferira-lhe um pontapé certeiro. Afinal de contas, era cidadã americana e tinha que ser tratada com respeito.
- Você esteve aqui há poucas semanas, não é, Carol?
Carol procurou fazer com que sua voz não soasse trêmula.
- Acho que sim, Meritíssimo.
- E eu a deixei sair com sursis.
- Exatamente, senhor.
- Quantos anos você tem, Carol?
Ela já devia imaginar que iam fazer-lhe aquela pergunta.
- Dezesseis anos. E hoje é o meu aniversário. Feliz aniversário para mim!
Carol desatou a chorar, as lágrimas corriam copiosamente pelo seu rosto e os soluços sacudiam-lhe o corpo todo.
O homem alto e tranqüilo estava de pé, junto a uma mesa ao lado, arrumando alguns papéis e guardando numa maleta de couro. Ao ver Carol soluçando, ele olhou para o juiz e depois ficou a contemplá-la por um momento. Disse então alguma coisa ao Juiz Murphy.
O juiz declarou o tribunal um recesso e os dois homens desapareceram na sala reservada ao
juiz, atrás do tribunal. Quinze minutos depois o meirinho levou Carol até lá. O homem tranqüilo conversava inteiramente à vontade com o juiz.
- Você é uma garota de sorte, Carol! - disse o Juiz Murphy. - Vai ter outra oportunidade. O
tribunal entregá-la-á à custódia pessoal do Dr. Stevens.
"Com que então o cara alto não era um advogado, mas sim um médico"! Carol não se teria
importado mesmo que ele fosse Jack, o Estripador. Tudo o que ela queria era sair daquele tribunal nojento antes que descobrissem que não era o seu aniversário.
O médico levou-a para o apartamento dele, limitou-se a uma conversa trivial que não exigia
nenhuma resposta. Mas com isso Carol pôde recuperar a calma em sua situação. Ele parou o carro diante de um moderno prédio de apartamentos, na Rua 71, de frente para o East River. O prédio tinha porteiro e ascensorista. Pela maneira indiferente como cumprimentaram o médico, era de se imaginar que ele todos os dias chegava às três da madrugada, trazendo em sua companhia uma garota negra de 16 anos.
Carol nunca tinha visto um apartamento como o do médico. A sala de estar era toda branca,
com dois sofás compridos e baixos, forrados com um tecido axadrezado, de tons cremes. Entre os sofás havia uma intensa mesa de café quadrada, com o tampo de vidro. Em cima estava um tabuleiro de xadrez, com as peças esculpidas em cristal veneziano. Quadros modernos estavam pendurados nas paredes. Na parede do vestíbulo havia um receptor de televisão de circuito fechado, mostrando o saguão lá em baixo. A um canto da sala de estar, um bar de vidro fosco mostrando as prateleiras repletas de copos e garrafas de cristal. Olhando pela janela, Carol viu inúmeros barcos lá embaixo, bem pequenos, singrando o East River.
- Os tribunais sempre me deixam com fome - comentou Judd. - Que acha de eu preparar um
pequeno jantar de aniversário?
Ele levou-a para a cozinha, onde Carol ficou observando-o preparar rapidamente uma omelete
mexicana, batatas fritas francesas e muffins ingleses, além de uma salada e café.
- É uma das vantagens de ser solteiro - comentou ele. - Posso cozinhar quando me dá
vontade.
Então ele era solteiro e não tinha mulher em casa. Se ele jogasse as cartas direito, aquilo ia
ser um maná. Quando Carol acabou de devorar a refeição, o médico levou-a para o quarto de
hóspedes. Era todo pintado de azul, com uma cama de casal, sobre a qual estava estendida uma colcha quadriculada. A um canto havia uma cômoda de madeira escura, com ferragens de latão dourado.
- Pode passar a noite aqui - disse ele. - Vou arrumar um pijama para você.
Correndo os olhos pelo quarto muito bem decorado, ela pensou: “Carol, boneca, você tirou”.
a sorte grande! Esse cara está a fim de uma carne negra arrancada da cadeia! E é você quem vai lhe dar isso “! Ela despiu-se e passou a meia hora seguinte debaixo do chuveiro. Quando saiu do banheiro, com uma toalha enrolada no corpo reluzente e voluptuoso, viu que o filho da mãe deixara um pijama em cima da cama. Carol riu, maliciosamente, e não tocou no pijama. Deixou cair a toalha e dirigiu-se para a sala de estar. Ele não estava lá. Ela olhou pela porta que dava para uma pequena saleta. O médico estava sentado ali, sentado a uma escrivaninha grande, na qual havia um abajur antiquado.
A saleta estava atulhada de livros, do chão ao teto. Carol foi prostrar-se atrás dele e beijou-o no pescoço, sussurrando:
- Vamos começar logo de uma vez, meu bem. Você me deixou tão excitada que não me
agüento mais.
Ela comprimiu-se contra ele e acrescentou:
- O que está esperando, papaizinho? Se não me levar para a cama depressa, acho que vou
ficar maluca.
Ele fitou-a, os olhos castanhos, bem escuros, pensativos. A voz era suave quando falou:
- Não acha que já se meteu em encrenca suficiente? Não pode mudar o fato de ter nascido
negra, mas quem lhe disse que precisa ser também uma puta maconheira aos 16 anos de idade?
Carol ficou aturdida, sem saber o que dissera de errado. Talvez ele precisasse excitar-se
primeiro, chicoteando-a por exemplo, antes de chegar ao ponto. Ou talvez ele fizesse o gênero do reverendo. Ia rezar por sua carne negra, reformá-la e depois levá-la para a cama. Ela tentou de novo.
Estendeu a mão por entre as pernas dele, acariciando-o.
- Vamos, meu bem, enfia tudo isso dentro de mim.
Ele desvencilhou-se gentilmente e sentou-a numa poltrona. Carol nunca ficara tão
desconcertada antes. Ele não parecia bicha, é verdade, mas atualmente nunca se sabe.
- Qual é a sua, meu bem? Diga-me do que gosta e farei tudo por você.
- Está certo. Vamos bater um papo.
- Você quer… falar?
- Exatamente.
E como conversaram! A noite inteira. Foi a mais estranha das noites que Carol já vivera. O
Dr. Stevens pulou rapidamente de um assunto para outro, sondando-a, experimentando-a. Perguntou a sua opinião sobre o Vietnã, os guetos e os motins universitários. Cada vez que Carol imaginava que finalmente descobrira o que ele estava querendo, o Dr. Stevens passava para outro assunto. Falaram de coisas que ela jamais ouvira antes e abordaram assuntos nos quais ela se julgava a maior autoridade viva do mundo. Meses depois Carol ainda ficava acordada de noite, procurando recordar e identificar a palavra mágica, a idéia, a frase-chave que provocara a sua transformação. Nunca chegou a descobrir, pois finalmente compreendeu que não houve qualquer palavra mágica. O que o Dr. Stevens fizera fora um bem simples. Ninguém jamais o fizera antes. Ele a tratara como um ser humano, uma pessoa igual a ele, cujas opiniões e sentimentos eram-lhe importantes.
Em um momento qualquer, no decorrer da noite, ela subitamente teve consciência de sua nudez. Ela foi até o quarto e vestiu o pijama. Ele foi sentar-se na beira da cama e conversaram mais um pouco. Falaram de Mão Tsé-tung, dos distúrbios raciais, da pílula. E de se ter um pai e uma mãe que jamais haviam casado. Carol disse-lhe coisas que jamais contara antes a alguém. Coisas que há muito estavam enterradas em seu subconsciente. E quando ela finalmente dormiu, estava completamente vazia. Era como se tivesse sido submetida a uma intervenção cirúrgica e um rio de veneno escorresse para fora do seu corpo.
Pela manhã, depois do café, ele entregou-lhe uma nota de cem dólares. Carol hesitou, mas
finalmente disse:
- Eu menti. Ontem não era meu aniversário.
- Eu sei - disse ele sorrindo. - Mas não vamos contar ao juiz.
Ele fez uma pausa e mudando o tom, acrescentou:
- Pode pegar esse dinheiro e ir embora que ninguém a incomodará, até a próxima em que a
polícia a apanhar. Mas estou precisando de uma recepcionista e acho que você seria maravilhosa para o lugar.
Carol não podia acreditar.
- Mas não sei taquigrafia nem datilografia.
- Poderia aprender, se voltasse a estudar.
Carol ficou em silêncio por um momento e depois disse, entusiasmada:
- Ei, eu nunca tinha pensado nisso antes! Até que não é má idéia!
Mas o que ela queria mesmo era sair daquele apartamento com a nota de cem dólares e
mostrá-la para os rapazes e garotas na Fishman' Drug Store, no Harlem, onde a turma se reunia. Com aquele dinheiro poderia comprar doses suficientes para uma semana. Quando entrou no Fishman's foi como se nunca se tivesse afastado de lá. Viu os mesmos rostos amargurados e ouviu as mesmas conversas mórbidas de derrotados. Ela estava em casa. Mas não conseguia parar de pensar no apartamento do médico. Não era os móveis que faziam a diferença. É que era tudo… tão limpo! E tranqüilo também. Uma ilhota perdida do outro mundo! O que tinha a perder? Podia pelo menos tentar, só para se divertir, para mostrar ao médico que ele estava errado, que ela jamais podia mudar.
Para sua própria surpresa, Carol matriculou-se numa escola. Deixou o quarto mobiliado em
que vivia, com a pia manchada de ferro, o vaso quebrado e a persiana verde toda arrebentada, com a cama de ferro cheia de calombos, onde costumava sonhar as lindas fantasias. Era uma herdeira deslumbrante em Paris, Londres ou Roma, e o homem que estava em cima dela era um príncipe deslumbrante e rico, morrendo de vontade de casar com ela. E assim que cada homem tinha seu orgasmo e saía de cima dela, o sonho se desvanecia. Até a vez seguinte.
Carol deixou o quarto e todos os seus príncipes sem olhar para trás e voltou a morar com os
seus pais. O Dr. Stevens deu-lhe uma mesada enquanto estudava. Ela terminou a escola secundária com notas excelentes. O médico compareceu à cerimônia de formatura, seus olhos castanhos brilhando de orgulho. Carol também sentia orgulho, de si mesma. Alguém acreditava nela. Arrumou um emprego na Nedick's durante o dia e fez um curso de secretariado à noite. No dia em que terminou, começou a trabalhar para o Dr. Stevens, podendo então ter o seu próprio apartamento.
Nos quatro anos que haviam passado o Dr. Stevens sempre a tratava com a mesma cortesia
formal da primeira noite. A princípio Carol ficara esperando que ele fizesse alguma referência ao que ela fora e ao que ela era. Mas finalmente ela descobrira que ele sempre a vira como ela era agora.
Tudo o que ele fizera fora ajudá-la a ser o que sempre fora. Sempre que Carol tinha um problema, ele achava tempo para discuti-lo. Recentemente ela começara a pensar que precisava falar-lhe sobre o que acontecia entre ela e Chick, mas estava sempre adiando. Carol era capaz de fazer qualquer coisa pelo Dr. Stevens. Deitar-se com ele, matar por ele…
E agora ali estavam aqueles dois caras da Divisão de Homicídios, querendo falar com o Dr.
Stevens.
McGreavy começou a ficar impaciente.
- E então?
- Tenho ordens para jamais incomodá-lo quando está com um paciente - disse Carol.
Ela viu a expressão furiosa que surgiu nos olhos de McGreavy e acrescentou:
- Mas vou falar com ele pelo telefone.
Ela pegou o fone e apertou a campainha de intercomunicação. Depois de trinta segundos o
Dr. Stevens disse:
- Pois não?
- Há dois detetives aqui fora querendo falar-lhe, Doutor. São da Divisão de Homicídios.
Carol ficou esperando que houvesse alguma alteração na voz dele. Nervosismo, talvez medo.
Porém nada houve.
- Pois eles vão ter que esperar.
E o Dr. Stevens desligou, Carol ficou radiante de orgulho. Os detetives podiam fazê-la entrar
em pânico, mas jamais conseguiriam fazer com que seu Dr. Stevens perdesse a calma! Ela fitou-os com uma expressão desafiadora e disse:
- Ouviram o que ele disse.
- Quanto tempo mais o paciente vai ficar lá dentro? - indagou Angeli, o mais jovem.
Carol olhou para o relógio que estava na sua mesa.
- Mais vinte e cinco minutos. É o último paciente de hoje.
Os dois homens se entreolharam. McGreavy suspirou.
- Pois vamos esperar. Eles sentaram-se. McGreavy examinou-a atentamente, comentando:
- Você me parece familiar.
Carol não se deixou enganar. O tira estava jogando uma isca.
- Creio que sabe o que se costuma dizer - respondeu ela. - Todas nós parecemos iguais.
Exatamente vinte e cinco minutos após, Carol ouviu a batida da porta lateral que levava ao
gabinete particular do Dr. Stevens diretamente para o corredor. Momentos depois, o Dr. Stevens abriu a porta que dava do seu gabinete para a sala da recepção. Hesitou por um instante ao ver McGreavy dizendo:
- Já nos encontramos antes.
Só que ele não conseguia lembrar-se onde.
- Já sim… Sou o Tenente McGreavy.
Ele acenou com a cabeça na direção de Angeli.
- Detetive Frank Angeli.
Judd e Angeli apertaram-se as mãos.
- Entrem, por gentileza.
Os dois detetives entraram no gabinete particular de Judd e a porta foi fechada. Carol ficou
olhando para a porta, tentando compreender a situação. O detetive grandalhão dera a impressão de antagonizar o Dr. Stevens. Mas talvez isso fosse apenas uma disposição natural dele. Carol só tinha certeza de uma coisa: teria que mandar o seu vestido para a tinturaria.
O gabinete de Judd parecia mais uma sala de estar de uma casa de campo. Não havia uma
escrivaninha, mas algumas poltronas e uma mesa no centro, com abajures realmente antigos. No outro lado havia uma porta que levava para o corredor. No chão estendia-se um tapete de padrões intrincados, e, a um canto, ficava um divã forrado com um tecido adamascado. McGreavy percebeu logo que não havia diplomas nas paredes. Mas ele verificara antes. Se o Dr. Stevens quisesse, poderia cobrir todas as paredes de diplomas e certificados.
- É o primeiro consultório de psiquiatra em que eu entro - disse Angeli, visivelmente
impressionado. - Eu bem que gostaria que minha casa fosse assim.
- Serve para descontrair meus pacientes - comentou Judd, calmamente. - E por falar nisso,
eu sou psicanalista.
- Desculpe o engano. Mas qual é a diferença?
- Cerca de cinqüenta dólares a mais por hora - comentou McGreavy. - Meu parceiro jamais
sonhou em ganhar tanto assim!
"Parceiro"! Foi então que Judd se lembrou. O parceiro de McGreavy fora baleado e morto
e o próprio McGreavy ficara bastante ferido durante um assalto a uma loja de bebidas quatro ou cinco? anos antes. Um vagabundo, chamado Amos Ziffren, fora preso pelo crime. O advogado de Ziffren alegara que seu cliente era inocente, por insanidade mental, Judd fora convocado como perito pela defesa e pediram-lhe que examinasse o réu. Constatara que Ziffren era, de fato, insano e sofria de uma paresia bem adiantada. Com base no depoimento de Judd, Ziffren escapara à sentença de morte e fora enviado para um asilo de doentes mentais.
- Estou me lembrando de você agora - disse Judd. - O caso Zifren. Você levou três tiros e seu
companheiro foi morto.
- Pois eu também me lembro muito bem - disse McGreavy. - Conseguiu fazer com que o
assassino escapasse.
- Em que posso ajudá-los?
- Precisamos de uma informação, Doutor - disse McGravy.
Ele fez um gesto com a cabeça para Angeli, que começou a desamarrar o embrulho que
trazia.
- Precisamos que identifique algo para nós - acrescentou McGreavy.
Sua voz era controlada, não deixando transparecer qualquer emoção. Angeli terminou de
abrir o embrulho e exibiu uma capa de chuva amarela.
- Já viu isso antes?
- Parece que é a minha - disse Judd, surpreso.
- É, de fato, a sua. Pelo menos está escrito por dentro.
- Onde a encontraram?
- Onde acha que nós a encontramos?
Os homens não pareciam mais indiferentes. Uma mudança subtil ocorrera em suas expressões.
Judd estudou McGreavy por um momento e depois pegou um cachimbo numa mesinha, começando a enchê-lo com tabaco tirado de um jarro.
- Acho bom me contarem logo o que significa tudo isso - disse ele calmamente.
- Se a capa lhe pertence, Dr. Stevens, queremos saber como deixou de estar em seu poder -
disse McGreavy.
- Não há mistério nenhum nisso. Estava chovendo quando saí de casa esta manhã. Como meu
sobretudo está na tinturaria, usei a capa impermeável. Costumo usá-la em minhas pescarias. Um dos meus pacientes apareceu aqui sem capa. Como estava nevando bastante na hora em que ele saiu, emprestei-lhe a minha capa.
Ele fez uma pausa, assumindo uma expressão subitamente preocupada.
- O que aconteceu com ele?
- Aconteceu a quem?
- Ao meu paciente, John Hanson.
- Exatamente - disse Angeli gentilmente. - Acertou em cheio. A razão para o Sr. Hanson não poder devolver-lhe a capa é o fato de estar morto.
Judd sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.
- Morto?
- Alguém enfiou-lhe uma faca nas costas - informou McGreavy.
Judd fitou-o, incrédulo. McGreavy tirou a capa das mãos de Angeli e virou-a, mostrando a
Judd o rasgão atrás e as manchas escuras de sangue. Uma sensação de náusea invadiu Judd.
- Mas quem poderia querer matá-lo?
- Esperávamos que nos pudesse dizer, Dr. Stevens - disse Angeli. - Quem poderia saber
melhor do que o seu psicanalista?
Judd sacudiu a cabeça, desolado.
- Quando foi que aconteceu?
Foi McGreavy quem respondeu:
- Às onze horas desta manhã. Em Lexington Avenue, acerca de um quarteirão daqui.
Algumas dezenas de pessoas devem tê-lo visto cair, mas estavam tão ocupadas voltando para suas casas, a fim de se prepararem para as comemorações do nascimento de Cristo, que o deixaram estendido na neve, sangrando até à morte.
Judd apertou a borda da mesa e os nós dos dedos ficaram brancos.
- A que horas Hanson chegou aqui esta manhã? - perguntou Angeli.
- Dez horas.
- Quanto tempo demoram as suas consultas, Doutor?
- Cinqüenta minutos.
- Ele foi embora assim que acabou?
- Foi. Eu já tinha outro paciente à espera.
- Hanson saiu pela sala da recepção?
- Não. Meus pacientes entram pela sala da recepção e saem por aquela porta - disse Judd,
apontando para a porta que dava diretamente para o corredor. - Dessa maneira, eles jamais se
encontram.
MacGreavy assentiu.
- Então quer dizer que Hanson foi morto alguns minutos depois de sair daqui. Porquê ele
estava-se tratando?
Judd hesitou.
- Lamento, mas não posso revelar o relacionamento entre o paciente e seu médico.
- Mas alguém o matou, Dr. Stevens? Talvez nos possa ajudar a encontrar o assassino.
O cachimbo de Judd estava agora apagado. Ele se demorou acendendo-o novamente.
- Há quanto tempo ele vinha se consultando?
Desta vez quem perguntou foi Angeli. Um exemplo típico de trabalho de equipa da polícia.
- Há três anos.
- E qual o problema dele?
Judd hesitou. Recordou-se de John Hanson que vira naquela manhã excitado, sorridente,
ansioso em desfrutar de sua nova liberdade.
- Ele era homossexual.
- Oh, não! - exclamou McGreavy. - Outro caso de bonecas!
- Ele era homossexual - disse Judd firmemente. - Hanson estava curado. Esta manhã eu lhe
disse que não precisava mais do tratamento. Estava pronto para voltar a viver com a família. Ele tem… tinha mulher e dois filhos.
- Um bicha com família? - indagou McGreavy.
- Isso acontece com freqüência.
- Talvez um dos seus amiguinhos não tenha gostado da história de ele se libertar. Tiveram
uma briga. O outro perdeu a calma e enfiou uma faca nas costas de Honson.
Judd pensou na teoria por um momento.
- É possível, mas não creio muito.
- Por que não, Dr. Stevens? - perguntou Angeli.
- Porque Hanson, há mais de um ano, não tinha qualquer contato homossexual. É mais
provável que tenha sido uma tentativa de assalto. Hanson era o tipo de homem que não rejeitava uma briga.
- Um bicha casado e valente - murmurou MacGreavy, tirando o charuto do bolso e
acendendo. - Só há uma coisa errada com essa teoria de assalto, Doutor. A carteira dele não foi tocada. E tinha mais de cem dólares.
Ele calou-se, observando a reação de Judd. Foi então a vez de Angeli falar:
- Se tivéssemos que procurar um doido, seria mais fácil de encontrar.
- Mas se um homem está doido…?
- Não precisa necessariamente aparentar a sua loucura _ explicou Judd. - Para cada caso evidente de desequilíbrio mental, há pelo menos dez que não são diagnosticados.
McGreavy examinava Judd com um interesse óbvio.,
- Conhece um bocado da natureza humana, não é mesmo, Doutor?
- Não existe essa coisa a que chamam natureza humana - disse Judd. - Assim como não existe
uma natureza animal. Tentem encontrar as afinidades naturais entre um coelho e um tigre. Ou entre um esquilo e um elefante.
- Há quanto tempo pratica psicanálise? - perguntou McGreavy.
- Doze anos. Por quê?
McGreavy sacudiu os ombros.
- É um homem de boa aparência, Doutor. Aposto que uma porção de pacientes se apaixonam
pelo senhor não é mesmo, Doutor?
Os olhos de Judd ficaram extremamente frios.
- Não estou entendendo aonde quer chegar.
- Ora, Doutor, claro que entende. Somos ambos homens vividos. Um bicha entra aqui e
encontra um médico bem apessoado a quem pode contar os seus problemas. Vai querer dizer-me que, durante três anos de sessão, Hanson nunca lhe fez qualquer insinuação?
Judd ficou em silêncio por um momento, sem demonstrar qualquer reação.
- É essa idéia que faz de um homem vivido, Tenente?
McGreavy não se perturbou.
- Pode perfeitamente ter acontecido. E não apenas isso. Tivemos um caso. Disse então a
Hanson que não queria mais vê-lo. Talvez ele não tenha gostado. Em três anos de relacionamento ele ficou inteiramente dependente do senhor. Os dois tiveram uma briga.
O rosto de Judd tentou transparecer toda a raiva que ele estava sentindo. Foi Angeli quem
rompeu a tensão:
- Pode-se recordar de alguém que tivesse motivo para odiá-lo, Doutor? Ou alguém a quem
ele pudesse odiar?
- Se tal pessoa existisse, eu poderia dizer. Creio que eu sabia tudo quanto dizia respeito a
John Hanson. Ele era um homem feliz. Não odiava ninguém e não sei de ninguém que o odiasse.
- Maravilhoso para ele. Deve ser um médico e tanto, Doutor - comentou McGreavy. - Agora
dê-nos a ficha dele, que vamos levá-la.
- Não.
- Podemos obter uma ordem judicial.
- Pois então obtenha. Não há nada na ficha de Judd Hanson que possa ajudá-los.
- Então que mal pode haver em nos entregá-la? - indagou Angeli.
- Pode prejudicar a esposa e os filhos de Hanson. Creio que vocês estão na pista errada. Não
tardarão a descobrir que Hanson foi morto por um estranho.
- Tenho certeza que não - disse McGreavy, rispidamente.
Angeli tornou a embrulhar a capa e prendeu o barbante.
- Devolveremos a capa depois que tivermos feito mais alguns testes nela, Doutor.
- Pode ficar com ela.
McGreavy abriu a porta que dava para o corredor.
- Voltaremos a procurá-lo, Doutor.
Ele saiu. Angeli acenou para Judd e saiu também.
Judd ainda estava parado junto à porta, os pensamentos tumultuados, quando Carol entrou.
- Está tudo bem? - indagou ela, hesitante.
- Alguém matou John Hanson.
- Matou?
- Ele foi apunhalado.
- Oh, meu Deus! Mas por quê?
- A polícia não sabe.
- Mas que coisa terrível!
Carol notou a dor que havia nos olhos de Judd e acrescentou:
- Há alguma coisa que eu possa fazer, Doutor?
- Poderia fechar o consultório, Carol? Vou procurar a Srª Hanson. Quero eu mesmo
transmitir-lhe a notícia.
- Pode deixar que eu cuido de tudo, Doutor.
- Obrigado.
E Judd partiu.
Trinta minutos depois Carol acabara de pôr as fichas em ordem e estava trancando a sua
escrivaninha quando a porta do corredor se abriu. Já passava das seis horas da tarde e o prédio estava fechado. Carol levantou os olhos para ver o homem sorrir e avançar em sua direção.
Capítulo 3
Mary Hanson parecia uma boneca: pequena, bonita, de feições delicadas. Por fora, ela era
toda suavidade, uma típica representante do desamparo feminino do sul. Mas, por dentro, era feita de granito. Judd conhecera-a uma semana depois de ter iniciado o tratamento do marido. Ela se manifestara histericamente contra o tratamento, e Judd pedira-lhe que fosse conversar com ele.
- Por que se opõe a que seu marido faça um tratamento de psicanálise?
- Não quero que todos os nossos amigos digam que me casei com um maluco - dissera ela
a Judd. - Peça-lhe que me dê o divórcio primeiro. Depois pode fazer o que bem entender…
Judd explicara que um divórcio naquele momento poderia destruir John completamente.
- Não resta mais nada que destruir - gritou Mary. - Se eu soubesse que ele era um efeminado,
acha que eu me teria casado? Ele não é homem, mas mulher!
- Há um pouco de mulher em cada homem, assim como há um pouco de homem em cada
mulher. No caso do seu marido, há alguns problemas psicológicos difíceis que ele precisa superar.
E ele está tentando arduamente, Sra. Hanson. Tem que ajudá-lo. Deve isso a ele e às crianças.
Ele argumentara durante mais de três horas e ela, finalmente, concordara, embora relutante,
em suspender a ação de divórcio por algum tempo. Nos meses que se seguiram ela se tornara, a princípio, interessada e, depois, envolvida na batalha que John estava travando. Judd tinha como princípio jamais tratar de marido e mulher, mas Mary pedira para ser sua paciente e ele descobrira que isso ajudava bastante. À medida que ela começava a compreender a si mesma e a descobrir onde fracassara com esposa, os progressos de John haviam sido dramaticamente rápidos.
E agora Judd estava ali para dizer-lhe que o marido fora assassinado, o que não fazia o menor
sentido. Mary fitou-o em silêncio, incapaz de acreditar no que ele acabara de dizer, certa de que se tratava de alguma espécie de piada macabra. Mas logo ela compreendeu que não, que era mesmo verdade. E pôs-se a gritar:
- Ele nunca mais vai voltar para mim! Ele nunca mais vai voltar para mim!
Ela começou a rasgar as roupas, num acesso de desespero, parecendo um animalzinho ferido.
Os gêmeos de seis anos entraram na sala neste momento e a situação se tornou incontrolável. Judd conseguiu acalmar as crianças e levou-as para a casa de uma vizinha. Deu um sedativo à Sra. Hanson e telefonou para o médico da família. Só foi embora quando teve certeza de que nada mais pudesse fazer. Entrou no carro e partiu sem rumo, imerso em seus pensamentos. Hanson lutara valentemente para sair de um inferno e no momento de sua vitória… Não fazia o menor sentido. Teria sido John Hanson assassinado por algum homossexual? Por algum antigo amante, que se sentira frustrado porque Hanson o deixara? Era possível, é claro, mas Judd não acreditara em tal possibilidade. O Tenente McGreavy dissera que Hanson fora assassinado a um quarteirão do seu consultório. Se o assassino fosse um homossexual, cheio de ódio em seu coração, teria marcado um encontro com Hanson em algum lugar mais íntimo, onde poderia tentar persuadir Hanson a voltar ou então despejar as suas recriminações, antes de assassiná-lo. Jamais iria esfaqueá-lo numa rua cheia de gente e depois fugir.
Numa esquina à sua frente ele viu uma cabine telefônica e só então se lembrou de que
prometera jantar com o Dr. Peter Hadley e sua esposa, Norah. Eram os amigos mais chegados de Judd, mas naquela noite ele não estava com disposição de ver ninguém. Estacionou o carro e entrou na cabine a fim de telefonar para Hadley. Foi Norah quem atendeu:
- Você está atrasado, Judd! Onde é que está agora?
- Norah, acho que vou ter que pedir-lhe que me perdoe por não ir jantar com vocês esta noite.
- Mas você não pode fazer uma coisa dessas! Tenho uma loura sensual aqui em casa,
morrendo de vontade de conhecê-lo.
- Vamos deixar para outra noite, Norah. Hoje não vai mesmo ser possível. Por favor,
apresente a ela as minhas desculpas.
- Vocês, médicos, são todos iguais! Espere um instante que vou chamar o seu colega.
Peter veio ao telefone.
- Algo errado, Judd?
Judd hesitou, mas acabou não contando nada.
- Apenas um dia difícil, Peter. Amanhã eu lhe conto tudo.
- Pois saiba que está perdendo um delicioso hors d'oeuvre escandinavo.
- Eu a conhecerei em outra ocasião.
Ele ouviu um sussurro abafado e depois Norah voltou ao telefone.
- Ela virá cear conosco na noite de Natal, Judd. Você não quer vir também?
Ele hesitou.
- Falaremos sobre isso depois, Norah. E mais uma vez peço desculpas por esta noite.
Judd desligou. Gostaria de encontrar uma maneira delicada de fazer com que Norah parasse
de procurar arrumar-lhe uma esposa.
Judd casara-se no último ano da universidade. Elizabeth estava-se formando também, em
Ciências Sociais. Era uma moça inteligente, alegre e afetiva. Estavam profundamente apaixonados um pelo outro e tinham planos maravilhosos de refazerem o mundo para todos os filhos que iam ter.
E no primeiro natal em que estavam casados Elizabeth e seu filho que ainda não nascera haviam morrido num acidente de automóvel. Judd passara a se concentrar em seu trabalho e, com o passar dos anos, transformara-se num dos mais conceituados psicanalistas do país. Mas ainda não podia suportar a companhia de outras pessoas a comemorar o Natal. De certa forma, embora ele constantemente repetisse a si mesmo que estava errado, o Natal era uma data que pertencia a Elizabeth e ao seu filho que não nascera.
Ele empurrou a porta da cabine telefônica. Havia uma jovem esperando do lado de fora. Era
bonita e usava uma blusa apertada, com uma minissaia e uma capa por cima, aberta na frente. Judd saiu da cabine.
- Desculpe a demora.
Ela sorriu-lhe jovialmente.
- Não há problema.
Havia uma expressão de ansiedade em seu rosto. Judd já vira aquele olhar antes. Era a
solução tentando romper a barreira que ele inconscientemente erguera ao seu redor.
Se Judd sabia que tinha alguma coisa que atraía as mulheres, então isso estava enterrado no
fundo de seu subconsciente. Ele jamais procurava analisar o fato, em busca de uma explicação. Era mais uma desvantagem que uma vantagem descobrir que as suas pacientes sempre se apaixonavam por ele. Algumas vezes isso criava situações bem difíceis.
Ele passou pela moça com um aceno cordial. Sentiu que ela ficou parada ali, debaixo da
chuva, observando-o entrar no carro e afastar-se.
Judd virou em East Drive e seguiu para o Merrit Parkway. Uma hora e meia depois estava
em Connecticut Turnpike. A neve em Nova York era suja e semiderretida, mas a mesma tempestade magicamente transformara a paisagem de Connecticut num cartão-postal de Currier e Ives.
Ele passou por Westport e Danbury, deliberadamente forçando sua mente a concentrar-se na
faixa de estrada que voava sob as rodas e na paisagem de inverno que o cercava. Cada vez que seus pensamentos voltavam a John Hanson, ele se obrigava a pensar em outras coisas. Durante horas guiou pela escuridão dos campos de Connecticut, até que, emocionalmente exausto, decidiu que já estava na hora de voltar para casa.
Mike, o porteiro de rosto vermelho, que normalmente o cumprimentava efusivamente, sempre
sorrindo, estava preocupado e distante. "Problemas de família", calculou Judd. Geralmente Judd conversava um pouco com Mike sobre o filho adolescente dele e as filhas casadas. Mas naquela noite Judd não estava com a menor vontade de conversar. Pediu a Mike que levasse o seu carro para a garagem.
- Pois não, Dr. Stevens.
Mike deu a impressão de que ia dizer mais alguma coisa, mas mudou de idéia. Judd entrou
no prédio. Ben Katz, o sindico, estava atravessando o saguão. Ele viu Judd, acenou-lhe nervosamente e seguiu em frente apressado, entrando em seu apartamento.
"Mas que diabo está acontecendo com todo mundo esta noite?", pensou Judd. “Ou serei eu”.
que estou nervoso demais “? Ele entrou no elevador. Eddie, o ascensorista, sacudiu a cabeça”.
- Boa noite, Dr. Stevens.
- Boa noite, Eddie.
Eddie engoliu em seco e olhou para o outro lado, embaraçado.
- Há algo errado, Eddie?
Eddie sacudiu a cabeça rapidamente e manteve os olhos afastados de Judd. "Meu Deus!",
pensou Judd. "Outro candidato a meu divã de analise"! Parecia que o prédio se enchera rapidamente de gente que estava precisando dos seus serviços profissionais.
Eddie abriu a porta do elevador e Judd saiu. Encaminhou-se para seu apartamento. Não ouviu
a porta do elevador fechar-se e, por isso, virou-se. Eddie estava olhando para ele. Judd começou a falar, mas Eddie rapidamente fechou a porta do elevador. Judd foi para o seu apartamento, abriu a porta e entrou.
Todas as luzes estavam acesas. O Tenente McGreavy estava abrindo uma gaveta da sala de
estar. Angeli saía do quarto. Judd sentiu a raiva irromper lá do fundo.
- Mas o que vocês estão fazendo no meu apartamento?
- Estávamos à sua espera, Dr. Stevens - disse McGreavy.
Judd avançou e fechou a gaveta violentamente, por pouco não imprensando os dedos de
McGreavy.
- Como foi que entraram aqui?
- Temos um mandado de busca - informou Angeli.
Judd fitou-o com uma expressão de incredulidade.
- Um mandado de busca? Para meu apartamento?
- Nós é que fazemos as perguntas, Doutor - disse McGreavy.
- Não precisa respondê-las - acrescentou Angeli. - Isto é, não precisa responder nada sem a
presença do seu advogado. E devemos também informá-lo de que tudo o que disser poderá ser usado como prova contra o senhor.
- Quer chamar um advogado? - perguntou McGreavy.
- Não preciso de advogado nenhum! Já lhe disse que emprestei minha capa a John Hanson
esta manhã e não tornei a vê-la até que a levaram a meu escritório, à tarde. Eu não poderia Tê-lo matado. Passei o dia inteiro com meus pacientes. A senhorita Roberts pode confirmar.
McGreavy e Angeli trocaram um olhar misterioso.
- Onde foi depois que saiu do seu escritório esta tarde, Doutor? - indagou Angeli.
- Fui ver a Sra. Hanson.
- Já sabíamos disso - falou McGreavy. - Queremos saber onde foi depois.
Judd hesitou.
- Fui dar uma volta de carro.
- Aonde?
- Fui até Connecticut.
- Onde foi que parou para jantar?
- Não parei. Estava sem fome.
- Então ninguém o viu?
Judd pensou por um momento.
- Acho que não.
- Talvez tenha parado em algum posto para encher o tanque - sugeriu Angeli.
- Não parei em lugar nenhum. Mas que diferença faz o lugar onde fui esta noite? Honson foi
morto pela manhã.
- Não voltou ao seu consultório depois que saiu de lá no fim da tarde? A voz de McGreavy
era quase indiferente.
- Não. Por quê?
- É que foi arrombado.
- O quê? Quem fez isso?
- Não sabemos. E eu gostaria de que fosse até lá conosco para dar uma olhada. Poderá
dizer-nos se está faltando alguma coisa.
- Mas claro que sim. Quem foi que informou o arrombamento?
- O vigia noturno - disse Angeli. - Guarda alguma coisa de valor em seu consultório,
Doutor? Dinheiro? Drogas? Alguma coisa assim.
- Só o dinheiro para as despesas miúdas do consultório. E nenhum narcótico. Não existe lá
qualquer coisa que valha a pena roubar. Isso não faz o menor sentido.
- Está certo - disse McGreavy. - Mas agora vamos embora.
No elevador Eddie lançou para Judd um olhar de quem pedia desculpas. Judd fitou-o e
sacudiu a cabeça, indicando que compreendia.
“Evidentemente a polícia não podia suspeitar de que ele arrombara o seu próprio”.
consultório “, pensou Judd. Parecia que McGreavy estava determinado a atribuir-lhe a culpa de”.
alguma coisa, para se vingar do seu companheiro morto. Mas só que isso acontecera há cinco anos.
Será que McGreavy passara todos aqueles anos remoendo o caso e chegando à conclusão de que ele era o culpado? Será que ficara esperando o tempo todo por uma oportunidade para agarrá-lo.
Havia um carro de polícia não identificado a poucos metros da entrada do prédio. Entraram os três e seguiram para o consultório de Judd, em silêncio. Ao chegarem, Judd assinou o registro que havia no saguão. Bigelow, o vigia noturno, olhou-o com uma expressão estranha. Ou seria apenas imaginação de Judd?
Subiram no elevador até o décimo quinto andar e percorreram o corredor até o consultório
de Judd. Um guarda uniformizado estava parado diante da porta. Ele acenou para McGreavy e deu um passo para o lado. Judd meteu a mão no bolso para tirar a chave.
- A porta está aberta - disse Angeli.
Ele empurrou a porta e os três entraram. Judd seguiu na frente. A sala de recepção era um
caos. Todas as gavetas tinham sido arrancadas da escrivaninha e o chão estava coalhado de papeis.
Judd não queria acreditar no que estava vendo, sentindo um choque de violação pessoal.
- O que acha que estavam procurando, Doutor? - indagou McGreavy.
- Não tenho a menor idéia.
Ele encaminhou para a porta que dava para o seu gabinete pessoal e abriu-a. McGreavy veio
logo atrás dele.
Duas mesinhas baixas tinham sido viradas, um abajur quebrado estava caído no chão, o tapete
ensopado de sangue.
No outro lado da sala, estendido de maneira grotesca, estava o corpo de Carol Roberts. Ela
estava nua, as mãos amarradas nas costas com uma corda de piano. Haviam-lhe jogado ácido no rosto, nos seios e entre as coxas. Os dedos da mão direita estavam quebrados. O rosto estava bastante machucado e inchado, e um lenço embolado fora enfiado em sua boca. Os dois detetives ficaram observando Judd, em silêncio, enquanto ele contemplava o corpo de Carol, aturdido.
- Está muito pálido - disse Angeli. - É melhor sentar-se.
Judd sacudiu a cabeça e respirou fundo por diversas vezes. Quando falou, a voz tremia de
raiva:
- Mas… mas quem poderia ter feito uma coisa dessas?
- É o que estamos esperando que nos diga, Dr. Stevens - disse McGreavy.
Judd fitou-o em silêncio por um minuto, perplexo.
- Ninguém jamais poderia querer fazer uma coisa dessas com Carol. Ela jamais fez mal a
alguém em toda sua vida.
- Acho que já está na hora de começar a cantar outra melodia - comentou MacGreavy. -
Ninguém podia querer fazer mal a Hanson, mas enfiaram uma faca nas costas dele. Ninguém poderia querer fazer mal a Carol, mas derramaram ácido por todo o corpo dela e torturaram-na até à morte.
McGreavy fez uma pausa. Ao continuar, seu tom era bem mais ríspido:
- E depois disso ainda tem a coragem de dizer que ninguém poderia querer fazer mal aos dois!
Mas que diabo é, afinal? Cego, mudo e idiota? Essa garota trabalhou aqui durante quatro anos. O senhor é um psicanalista. Vai querer dizer-me que nunca soube de nada, nem jamais se importou com a vida pessoal dela?
- Mas é claro que eu me importava - disse Judd, a voz tensa. - Ela tinha um namorado, e eles
iam-se casar…
- É Chick. Nós já falamos com ele.
- Mas ele jamais faria uma coisa dessas! É um rapaz decente e amava Carol…
- Quando foi a última vez que viu Carol viva? - perguntou Angeli.
- Já lhes disse isso. Foi quando saí daqui para ir falar com a Sra. Hanson. Pedi a Carol que
fechasse o consultório para mim.
A voz de Judd estava trêmula. Ele engoliu em seco e respirou fundo, procurando controlar-se.
- Tinha mais algum paciente marcado para hoje quando saiu?
- Não.
- Acha que o crime foi obra de algum maníaco, Doutor?
- Só pode ter sido um maníaco. Mas… mesmo um maníaco precisa de alguma motivação.
- É o que eu também acho - disse McGreavy.
Judd olhou mais uma vez para o corpo de Carol. Tinha o aspecto triste de uma boneca de
trapos desfigurada. Furioso, ele indagou aos detetives:
- Por quanto tempo pretendem deixá-la assim?
- Eles já vão levá-la - informou Angeli. - O legista e os outros técnicos já terminaram o seu
serviço.
Judd virou-se para McGreavy.
- Quer dizer que a deixaram assim só por minha causa?
- Exatamente. E vou perguntar novamente: há alguma coisa aqui que alguém pudesse querer
desesperadamente, a ponto de - ele fez uma pausa e indicou o corpo de Carol - ter feito isso?
- Não.
- O que me diz das fichas dos seus pacientes?
Judd sacudiu a cabeça.
- Não há nada de importante nelas.
- Não está querendo cooperar, não é mesmo, Doutor?
- Acha que também não quero descobrir quem fez uma coisa dessas? Se houvesse qualquer
coisa nas fichas que pudesse ajudar, eu seria o primeiro a dizer. Conheço bastante bem os meus pacientes. Não há nenhum que fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Tenho certeza de que o crime foi cometido por alguém de fora, por um estranho.
- Como sabe que não era alguém que estava atrás dos seus arquivos?
- Meus arquivos nem foram tocados, McGreavy
- Como pode saber disso? Nem mesmo olhou.
Judd foi até a parede do outro lado da sala. Apertou a parte inferior do painel e a parede se
abriu, revelando diversas prateleiras embutidas. Estavam cheias de fitas de gravação.
- Gravo todas as sessões com meus pacientes - explicou Judd. - E guardo as fitas aqui.
- Não poderiam ter torturado Carol numa tentativa de obrigá-la a dizer onde estavam as fitas?
- Não há nada nessas fitas que possa ter algum valor para alguém. Certamente ela foi
assassinada por algum outro motivo.
Judd olhou novamente para o corpo mutilado de Carol e sentiu-se dominado por uma raiva
cega e impotente.
- Vocês têm que descobrir quem fez isso!
- É justamente o que eu pretendo fazer - disse McGreavy, olhando fixamente para Judd.
Na rua deserta e varrida por um vento frio, em frente ao prédio em que ficava o consultório
de Judd, McGreavy disse a Angeli que levasse o médico de volta para casa.
- Tenho ainda um trabalho a fazer - informou McGreavy, virando-se em seguida para Judd.
- Boa noite, Doutor.
Judd ficou olhando o vulto corpulento e desajeitado descer a rua rapidamente.
- Vamos indo - disse Angeli. - Estou morrendo de frio.
Judd sentou-se no banco da frente, ao lado de Angeli, que imediatamente deu a partida.
- Tenho de ir falar com a família de Carol - disse Judd.
- Nós já estivemos lá.
Judd assentiu, cansado. Mesmo assim, ele queria falar com os pais de Carol, mas isso podia
esperar. Houve um grande silêncio. Judd indagou-se sobre qual seria o trabalho que McGreavy teria ido fazer àquela hora da madrugada. Como se lesse seus pensamentos, Angeli disse:
- McGreavy é um bom polícia. Ele acha sinceramente que Ziffren merecia a cadeira elétrica
por ter matado o seu companheiro.
- Ziffren era um desequilibrado mental.
Angeli sacudiu os ombros.
- Aceito a sua palavra, Doutor.
"Mas McGreavy jamais aceitará", pensou Judd. Ele pensou em Carol, recordando a sua
permanente jovialidade, a sua inteligência, o seu afeto, o orgulho que ela sentia do seu trabalho.
Percebeu então que Angeli estava-lhe dizendo alguma coisa e viu que haviam chegado ao prédio em que morava.
Cinco minutos depois Judd estava em seu apartamento. Não havia a menor possibilidade de
conseguir conciliar o sono. Ele serviu-se de um conhaque e foi para o escritório. Recordou-se da noite em que Carol ali entrara, nua e linda, esfregando o seu corpo quente e flexível contra o dele.
Judd bancara o frio e indiferente porque sabia que essa era a única forma de ajudá-la. Mas ela jamais soubera quanta força de vontade ele tivera que empregar para resistir ao desejo. Ou será que ela compreendera? Judd ergueu o copo e esvaziou-o de um só gole.
O necrotério municipal parecia igual a qualquer outro necrotério às três horas da madrugada.
A única diferença é que alguém pendurara na porta uma coroa de Natal. "Alguém dotado de muito espírito de Natal ou então com um senso de humor macabro", pensou McGreavy.
Ele esperou impacientemente no corredor até que a autópsia estivesse concluída. Quando o
legista o chamou, ele entrou na sala de autópsia, toda branca. O legista estava lavando as mãos numa pia enorme. Era um homem pequeno, de voz estridente, com movimentos rápidos e nervosos. Ele respondeu a todas as perguntas de McGreavy rapidamente, retirando-se logo em seguida. McGreavy ficou ali por mais alguns minutos, absorvido no que acabara de saber. Depois saiu para a noite gelada lá fora, à procura de um táxi. Não havia nenhum. "Os desgraçados devem estar todos de férias nas Bermudas", pensou McGreavy. Mas ele não podia ficar a madrugada inteira ali na rua, até congelar.
Viu uma radiopatrulha e fez sinal. Mostrou a sua identificação ao soldado que a estava dirigindo e ordenou-lhe que o levasse ao 19º Distrito. Era contra os regulamentos, mas que diabo! Afinal, ia ser uma longa noite.
Quando McGreavy entrou na delegacia, Angeli já o estava esperando.
- Eles já acabaram a autópsia de Carol Roberts - informou McGreavy.
- E o que descobriram?
- Ela estava grávida.
Angeli exibiu uma expressão de perplexidade.
- E já de três meses. Um pouco tarde para um aborto seguro e um pouco cedo para que se
pudesse notar.
- Acha que isso tem relação com o assassinato dela? - indagou Angeli.
- É uma boa pergunta. Se foi o namorado de Carol que a engravidou e ele pretendia casar-se
com ela, por que haveria de fazer uma coisa dessas? O único problema seria terem um filho poucos meses depois do casamento, antes da data que seria natural. Mas essas coisas acontecem todos os dias. Por outro lado, se ele a engravidou e não queria se casar… qual o problema? Ela simplesmente teria um filho e não teria marido. Isso acontece com mais freqüência ainda.
- Nós conversamos com Chick. Ele queria de fato casar-se com ela.
- Eu sei disso. Assim, o que temos que nos perguntar é onde isso nos deixa. E a resposta é
simples: temos uma garota negra que está grávida, vai procurar o pai da criança e conta-lhe tudo. Ele a mata para proteger-se.
- Mas ele teria de ser um louco para fazer uma coisa dessas!
- Ou muito esperto. Eu fico com a segunda hipótese. Vistas as coisas por este ângulo: Carol
vai procurar o pai da criança, dá a má notícia e diz que não pretende abortar; que vai ter o filho.
Talvez a intenção dela fosse fazer chantagem, obrigá-lo a casar. Mas suponhamos que ele não
pudesse casar-se com ela, por já ser casado. Ou talvez por ser um branco. Suponhamos que fosse um médico bastante conhecido, com uma clientela elegante. Se uma coisa dessas transpirasse, ele ficaria arruinado. Quem haveria de querer tratar-se com um psicanalista que engravidou a sua recepcionista negra e teve que se casar com ela?
- Stevens é médico - disse Angeli. - Ele poderia tê-la matado de uma dúzia de maneiras
diferentes, sem despertar qualquer suspeita.
- Talvez sim, talvez não. Mas se alguém desconfiasse, sempre seria possível chegar até ele.
Se comprasse veneno, o seu nome estaria registrado. Se comprasse uma corda ou uma faca, sempre se poderia descobrir. Pense agora se ele poderia ter armado um cenário mais inteligente. Aparece um maníaco e, sem razão alguma, assassina sua recepcionista. Ele está à vontade para bancar o patrão abalado com a tragédia, a exigir da polícia que prenda o assassino.
- Acho uma história meio difícil de acreditar.
- Ainda não acabei. Vamos ver agora o caso do paciente dele, John Hanson. Outro crime sem
motivo, praticado pelo maníaco desconhecido. Sabe de uma coisa, Angeli? Eu não acredito em coincidências. E duas coincidências assim, no mesmo dia, deixam-me nervoso. Por isso, fiquei me perguntando que relação podia haver entre a morte de John Hanson e a de Carol Roberts e, finalmente, cheguei à conclusão de que não houve tanta coincidência assim. Suponhamos que Carol tenha entrado na sala de Stevens e dado a má notícia de que ia ser pai. Tiveram uma briga e ela tentou fazer chantagem. Disse que Stevens tinha que se casar, dar-lhe dinheiro, qualquer coisa, enfim. John Hanson estava esperando na sala de recepção, escutando tudo. Talvez Stevens não soubesse que ele ouvira a discussão até Hanson se deitar em tal divã. Hanson ameaçou denunciá-lo. Ou tentou levá-lo para a cama.
- Acho que está fazendo suposições demais.
- Mas será que não vê que tudo se ajusta? Quando Hanson saiu, Stevens foi atrás dele e
liquidou-o para que nada contasse. Depois ele tinha que voltar para livrar-se de Carol. Fez com que parecesse um crime de algum maníaco. Foi então visitar a Sra. Hanson e fez um passeio a Connecticut, achando que todos os seus problemas estavam resolvidos. E, enquanto ele fica sentado calmamente, a polícia quebra a cabeça atrás de algum maníaco que simplesmente não existe.
- Não aceito essa teoria - disse Angeli. - Está tentando preparar uma acusação de homicídio
sem ter a menor prova concreta.
- O que você chama de prova concreta, Angeli? Não se esqueça de que temos dois cadáveres.
Um deles é o de uma garota grávida que trabalhava para Stevens. O outro é o de um de seus
pacientes, assassinado a um quarentão do consultório dele. O cara estava se tratando porque era homossexual. Quando pedi a Stevens para ouvir as gravações das sessões que teve com Hanson, ele simplesmente não deixou. Por quê? A quem o Dr. Stevens está querendo proteger? Perguntei-lhe se alguém poderia ter arrombado seu consultório à procura de alguma coisa. Talvez pudéssemos então seguir a teoria de que haviam torturado Carol para que ela dissesse onde estava a tal coisa misteriosa.
Mas lembra-se do que Stevens disse? Que não há nada de misterioso em seu consultório. Ele não guardava narcóticos no consultório. Nem dinheiro. Portanto, só nos resta procurar um maníaco. Não é isto mesmo? Só que eu não concordo com isso. Acho que devemos procurar é o Dr. Judd Stevens.
- Eu acho que você está querendo agarrá-lo de qualquer maneira - disse Angeli calmamente.
O rosto de McGreavey ficou vermelho de raiva.
- Porque eu tenho a certeza de que ele é culpado!
- Vai prendê-lo?
- Agora não. Vou dar-lhe primeiro bastante corda. E, enquanto Stevens estiver-se
enforcando, vou descobrir todos os seus segredos. Quando eu o prender, ninguém vai conseguir mais soltá-lo.
McGreavy virou-se e afastou-se.
Angeli ficou olhando-o, pensativo. Se ele não tomasse nenhuma providência, era bem possível que McGreavy tentasse meter o Dr. Stevens na cadeia de qualquer maneira. Ele não podia deixar que isso acontecesse. Angeli disse a si mesmo que, pela manhã, conversaria com o Capitão Bertelli a esse respeito.
Capítulo 4
Os jornais da manhã publicaram em manchete o sensacional assassinato de Carol Roberts,
torturada até a morte. Judd sentiu-se tentado a cancelar todas as consultas que tinha marcado para aquele dia. Não se deitara e sentia os olhos pesados e irritados. Mas verificou a relação dos pacientes que receberia naquele dia e concluiu que dois ficariam desesperados se cancelasse suas consultas, três ficariam um tanto transtornados, e os outros poderiam agüentar sem maiores problemas. Decidiu que era melhor manter a sua rotina normal, em parte pelo bem de seus pacientes, em parte por si mesmo, pois seria uma boa terapia tentar manter os pensamentos afastados do que acontecera.
Judd chegou cedo ao consultório, mas o corredor já estava apinhado de repórteres, pessoal
de televisão e fotógrafos. Ele recusou-se a deixá-los entrar e a fazer declarações, conseguindo finalmente livrar-se de todos eles. Abriu a porta de sua sala lentamente, apreensivo. Mas o tapete manchado de sangue fora removido e tudo recolocado nos devidos lugares. A sala parecia normal.
Só que Carol nunca mais entraria ali novamente sorridente e cheia de vida.
Judd ouviu a porta externa abrir-se. Seu primeiro paciente acabara de chegar.
Harrison Burke era um homem de aparência distinta, cabelos prateados, o protótipo de um
executivo dos altos escalões. O que na verdade era, pois ocupava o cargo de vice-presidente da Internacional Steel Corporation. Quando Judd se encontrara com Burke pela primeira vez, ficara imaginando se fora o executivo que criara a imagem estereotipada ou se a imagem é que criara o executivo. Algum dia ele escreveria um livro a respeito das aparências, como a atitude cordial e íntima do médico, a exuberância do advogado no tribunal, o rosto dramático da atriz. Eram imagens universalmente aceites, sempre superficiais, nunca se procurando os valores básicos.
Burke deitou-se no divã e Judd concentrou-se nele. Burke fora-lhe enviado pelo Dr. Peter
Hadley dois meses atrás. Judd levara apenas dez minutos para verificar que Burke era um paranóico, com tendências homicidas. Os jornais matutinos traziam estampada em manchetes a notícia do brutal assassinato que ocorrera ali no consultório na noite passada, mas Burke não mencionou o assunto.
O que era típico do seu estado. Ele estava totalmente absolvido em si mesmo.
- Não acreditou no que eu lhe disse antes, mas agora tenho provas concretas de que eles estão
querendo liquidar-me - disse Burke.
- Pensei que concluíamos que não deveríamos ser precipitados, Harrison - disse Judd,
cauteloso. - Lembre-se de que ontem concordamos em que a imaginação pode…
- Mas não é imaginação minha! - gritou Burke.
Ele sentou-se, com os punhos cerrados.
- Eles estão mesmo tentando me matar!
- Por que não se deita e procura relaxar? - sugeriu Judd, suavemente.
Burke levantou-se bruscamente.
- É tudo o que tem a dizer? Nem mesmo está querendo ouvir as minhas provas!
Seus olhos se estreitaram sombriamente e ele acrescentou:
- E como é que posso saber que o senhor não é um deles?
- Sabe perfeitamente que não sou um deles. Sou seu amigo. Estou tentando ajudá-lo.
Judd sentiu um quê de desapontamento. O progresso que pensava terem feito ao longo do
último mês desaparecera completamente. Ele estava olhando agora para o mesmo paranóico aterrorizado que entrara em seu consultório dois meses antes.
Burke começara na Internacional Steel como office boy. Em vinte e cinco anos a sua boa
aparência e a personalidade afável haviam-no levado até quase ao alto da escada executiva da
corporação. Ele chegara a se tornar candidato natural à presidência. E então, quatro anos antes, a esposa e os três filhos tinham morrido num incêndio na casa de verão da família, em Southampton.
Burke, na ocasião, estava nas Bahamas, com a amante. A tragédia marcou-o mais fundo do que se poderia imaginar. Educado na tradição do catolicismo, Burke não conseguira livrar-se do sentimento de culpa. Passara a remoer a tragédia, encontrando-se cada vez menos com os amigos. Passava as noites em casa, revivendo as agonias da esposa e filhos, sendo queimados até a morte, enquanto outra parte da mente recordava-lhe que, nesse momento, estava na cama com a amante. Era como um filme, que passava repetidamente na tela de sua mente. Ele assumiu toda a culpa pela morte da família. Se estivesse presente, poderia tê-los salvo. A idéia tornara-se uma obsessão. Ele era um monstro! Sabia disso e Deus também sabia! E evidentemente muitos outros podiam perceber também!
Deviam odiá-lo tanto quanto ele odiava a si mesmo. As pessoas sorriam-lhe e demonstravam-lhe simpatia, mas estavam apenas à espera de que ele se traísse, para poderem encurralá-lo. Mas ele era mais esperto do que todos os outros. Parou de ir almoçar no refeitório dos executivos, passando a comer na intimidade de sua própria sala. Evitava os outros o mais possível.
Dois anos antes, quando a companhia precisara de um novo presidente, haviam posto Burke
de lado e contrataram um executivo de fora. Um ano antes ficara vago o cargo de vice-presidente executivo e novamente haviam passado por cima de Burke e designado outro para o lugar. Ele tivera então todas as provas de que precisava para ter certeza de que havia uma conspiração contra ele.
Começou a espionar as pessoas ao seu redor. De noite escondia gravadores nos escritórios dos outros executivos. Seis meses atrás fora apanhado. Só não fora despedido sumariamente por causa dos muitos anos na companhia e do posto que ocupava.
Querendo ajudá-lo e aliviar um pouco da pressão que havia em cima de Burke, o presidente
da companhia reduziu-lhe bastante as atribuições. Mas, em vez de ajudar, isso só serviu para ainda mais convencer Burke de que eles estavam tentando liquidá-lo. Eles tinham medo dele porque era mais inteligente. Se se tornasse presidente, eles todos iriam perder os seus empregos, porque eram muito estúpidos. Começou a cometer erros e mais erros. Quando lhe apontavam esses erros, ele negava, indignado, tê-los cometido. Alguém estava deliberadamente alterando os seus relatórios, mudando as cifras e estatísticas que apresentava, só para desacreditá-lo. Logo descobriu que não era apenas as pessoas da companhia que estavam contra ele. Havia também muitos espiões lá fora. Era seguido na rua. Interceptavam suas conversas ao telefone, liam-lhe a correspondência. Tinha receio de comer, porque achava que iam envenenar sua comida. Começou a emagrecer alarmantemente. O preocupado presidente da companhia marcara uma consulta com o Dr. Peter Hadley, e insistira para
que Burke comparecesse. Depois de meia hora de conversa com Burke, Hadley telefonara para Judd.
Judd não tinha nenhuma hora disponível, mas Peter insistira em que o problema era grave e urgente, e ele terminara concordando em aceitar o novo cliente.
E agora Harrison Burke estava deitado no divã, com os punhos cerrados.
- Fale-me das provas que descobriu.
- Arrombaram a minha casa ontem à noite. Queriam matar-me. Mas sou mais esperto do que
eles. Estou dormindo agora no escritório e instalei trancas duplas nas portas, para que não me possam apanhar.
- Comunicou o arrombamento à polícia?
- Mas é claro que não! A polícia está do lado deles. Tem ordens para atirar em mim. Mas não
se atreverão a fazê-lo enquanto houver outras pessoas por perto. Por isso é que agora fico sempre no meio de uma multidão.
- Fico satisfeito de que me tenha dado essa informação.
- O que pretende fazer com ela? - indagou Burke, ansioso.
- Escutei atentamente tudo o que disse. Está tudo aqui na fita gravada. Assim, se o matarem,
teremos uma prova gravada da conspiração.
Burke se levantou bruscamente, o rosto radiante.
- Por Deus! Isto é ótimo! Vai realmente dar um jeito neles!
- Por que não se deita novamente? - sugeriu Judd.
Burke assentiu e voltou a acomodar-se no divã. Fechou os olhos.
- Estou exausto. Há meses que não durmo. Não posso dar-me ao luxo de fechar os olhos.
Não faz idéia do que significa saber que todo mundo está querendo acabar com a gente.
"Será que não?", pensou Judd, recordando-se de McGreavy.
- O seu criado ouviu as pessoas que arrombaram a casa?
- Eu não lhe disse? Despedi-o há duas semanas.
Judd repassou rapidamente as duas últimas sessões com Harrison Burke. Somente três dias
antes Burke relatara uma briga que tivera naquele dia com o seu criado particular. Isso significava que a noção de tempo dele estava ficando totalmente desorientada.
- Acho que não falou a esse respeito - disse Judd, sem qualquer ênfase. - Tem certeza mesmo
de que há duas semanas que o mandou embora?
- Eu não cometo erros. Como diabos acha que me tornei vice-presidente de uma das maiores
empresas do mundo? Porque tenho uma inteligência brilhante, Doutor, e não me esqueço de nada.
- Por que o despediu?
- Ele tentou envenenar-me.
- Como?
- Com um prato de ovos com presunto, cheio de arsênico.
- Chegou a provar?
- Mas é claro que não!
- E como sabia que a comida estava envenenada?
- Senti o cheiro do veneno.
- E o que disse ele?
Uma expressão de satisfação se estampou no rosto de Burke.
- Eu não disse coisa alguma. Simplesmente o mandei à merda.
Judd sentiu-se dominado por uma sensação de frustração. Se tivesse tempo, ele certamente
poderia ajudar Harrison Burke. Mas o tempo se esgotara. Na psicanálise há sempre o perigo de que, ao impulso da livre associação de idéias, a tênue camada que envolve o id se rompa e deixe escapar todas as paixões e emoções primitivas que se amontoam no fundo da mente, como bestas selvagens aterrorizadas à espreita, numa noite escura. Mas a primeira etapa de tratamento é sempre a de se permitir ao paciente dar vazão a tudo o que tem dentro de si. No caso de Burke, isso atuara como um bumerangue. As sessões haviam liberado todas as hostilidades latentes que estavam trancadas em sua mente. Burke parecera melhorar a cada sessão, concordando com Judd em que não havia conspiração alguma, que seu único problema era excesso de trabalho e esgotamento nervoso. Judd pensara que estava levando Burke a um ponto em que poderia começar uma análise profunda, atacando a raiz do problema. Mas Burke estivera simplesmente mentindo o tempo todo. Testando Judd, levando-o a cair em sua própria armadilha, para descobrir se o médico não era um deles.
Harrison Burke era uma bomba-relógio que poderia explodir a qualquer momento. Não havia nenhum parente próximo a quem se pudesse alertar. Judd deveria ligar para o presidente da companhia e comunicar-lhe a sua opinião? Se o fizesse, isso destruiria inteiramente o futuro de Burke. Ele teria que ser internado numa instituição para desequilibrados mentais. Mas será que ele estava certo em seu diagnóstico de que Burke era um paranóico potencial homicida? Ele gostaria de ter outra opinião médica a esse respeito, mas sabia que Burke jamais consentiria que outro médico o examinasse. Judd teria de tomar a decisão sozinho.
- Eu gostaria de que me prometesse uma coisa, Harrison.
- Prometer o quê? - indagou Burke, cauteloso.
- Se eles querem apanhá-lo, vão querer que você faça algo violento para poderem então
prendê-lo… Mas você é esperto demais para fazer o jogo deles. Não importa o quanto o provoquem, quero que me prometa que não fará nada contra eles. Dessa maneira, não poderão tocá-lo.
Os olhos de Burke se iluminaram. - Por Deus, você tem toda a razão! Então é esse o plano
deles! Mas somos espertos demais para eles, não é mesmo?
Judd ouviu a porta da sala de recepção se abrir e fechar. Olhou para o relógio. O paciente
seguinte já chegara. Ele desligou o gravador e disse calmamente:
- Acho que já chega por hoje.
- Gravou tudo o que conversamos? - indagou Burke, ansiosamente.
- Tudo. Não há a menor possibilidade de alguém atingi-lo agora.
Judd hesitou, mas terminou acrescentando:
- Não creio que deva ir ao escritório hoje. Por que não vai para casa e descansa um pouco?
- Não posso - murmurou Burke, a voz impregnada de desespero. - Se eu não aparecer no
escritório, vão tirar o meu nome da porta e pôr o de algum outro.
Ele se inclinou para Judd e disse baixinho:
- Tome cuidado. Se eles souberem que o senhor é meu amigo, vão tentar pegá-lo também.
Burke encaminhou-se até à porta que dava diretamente para o corredor. Entreabriu-a e
espiou para um lado e para outro. Depois saiu rapidamente.
Judd ficou imóvel por um momento, amargurado com o que teria de fazer com a vida de
Harrison Burke. se Burke o tivesse procurado seis meses antes… E então um pensamento súbito fez com que um calafrio lhe percorresse o corpo. E se Harrison Burke já fosse um assassino? Era possível ele estar envolvido nas mortes de John Hanson e Carol Roberts? Tanto Burke quanto Hanson eram pacientes. Poderiam facilmente ter-se encontrado. Por diversas vezes, nos últimos meses, as consultas de Burke haviam sido depois das de Hanson. E Burke chegara atrasado mais de uma vez. Talvez tivesse esbarrado com Hanson no corredor. O fato de ter visto Hanson várias vezes poderia perfeitamente ter acionado a sua paranóia, levando-o a pensar que o outro o estava seguindo, ameaçando-o. Quanto a Carol, Burke vira-a todas às vezes em que estivera no consultório. Será que sua mente doentia imaginara alguma ameaça da parte dela, que só poderia ser afastada com a morte?
Há quanto tempo Burke estava mentalmente afetado? A esposa e os três filhos haviam morrido num incêndio acidental. Acidental? Judd tinha que descobri-lo, de alguma forma.
Ele foi até a porta que dava para a sala de recepção e abriu-a.
- Entre, por favor.
Anne Blake levantou-se graciosamente e avançou com rapidez, com um sorriso afetuoso a
iluminar-lhe o rosto. Judd sentiu novamente a mesma emoção que o dominara quando a vira pela primeira vez. Não experimentara alguma reação emocional profunda por uma mulher desde a morte de Elizabeth.
Elas não eram absolutamente parecidas. Elizabeth era loura e miúda, de olhos azuis. Anne
Blake tinha cabelos pretos e olhos violeta deslumbrantes, emoldurados por pestanas compridas e negras. Era alta, com um corpo maravilhoso, cheio e com muitas curvas. Aparentava uma inteligência extraordinária. Sua beleza era clássica, aristocrata, o que faria com que parecesse inacessível se não fosse pelo brilho dos olhos. A voz era baixa e suave, ligeiramente rouca.
Anne tinha vinte e poucos anos. Era, indubitavelmente, a mulher mais bonita que Judd até
então vira. Mas fora algo além da sua beleza que impressionara Judd. Era uma força quase palpável que o atraía para ela, alguma reação inexplicável que o fazia sentir como se a conhecesse desde a infância. O sentimento que ele julgara há muito desaparecido havia novamente aflorado à superfície, surpreendendo-o por sua intensidade.
Ela aparecera no consultório de Judd três semanas antes, sem hora marcada. Carol
explicara-lhe que ele estava com todas as horas ocupadas e que não podia de maneira alguma aceitar novos pacientes. Mas Anne perguntara calmamente se poderia esperar. Ao fim de duas horas de espera, Carol se condoera e a introduzira no gabinete de Judd.
Ele sentira imediatamente uma reação emocional bem forte ao ver Anne, de tal forma que
não teve idéia do que ela disse nos primeiros minutos. Recordava-se de que a convidara a sentar-se e que ela disse seu nome, Anne Blake. Era dona-de-casa. Judd perguntara-lhe qual o seu problema.
Ela hesitara e depois dissera que não sabia. Nem mesmo sabia se tinha de fato um problema. Um médico amigo dela dissera que Judd era um dos melhores analistas do país. Mas quando Judd indagara qual fora o médico, Anne desconversara. Pelo que Judd sabia, ela podia ter descoberto o nome dele no catálogo telefônico.
Ele tentara explicar que todas as suas horas estavam ocupadas, que não podia aceitar mais
nenhum paciente. Oferecera-se para recomendar meia dúzia de outros bons analistas. Mas Anne insistia em que só queria se tratar com ele e mais nenhum. Ao final, Judd acabara acedendo.
Exteriormente, excetuando-se o fato de que parecia estar sob alguma tensão, Anne aparentara ser perfeitamente normal. Judd concluíra que o problema dela deveria ser relativamente fácil, podendo ser resolvido sem maiores complicações. Ele quebrou a regra que se impusera de jamais aceitar um paciente sem a indicação de outro médico e abrira mão da sua hora de almoço para tratar de Anne.
Nas últimas três semanas ela fora ao seu consultório duas vezes por semana. Judd sabia agora a respeito dela praticamente a mesma coisa que descobrira na primeira sessão. Mas sabia algo novo a respeito de si mesmo: estava apaixonado, pela primeira vez desde a morte de Elizabeth.
Na primeira sessão, Judd perguntara-lhe se amava o marido, odiando-se a si mesmo por
desejar que ela respondesse que não. Mas não fora o que ela respondera:
- Amo, sim. Ele é um ótimo homem, muito firme.
- Acha que ele representa a figura de seu pai?
Anne fixara nele aqueles incríveis olhos violeta.
- Não. Jamais procurei um homem que pudesse ser a imagem de meu pai. Tive uma infância
bem feliz.
- Onde nasceu?
- Em Revere, uma cidadezinha perto de Boston.
- Seu pai e sua mãe ainda são vivos?
- Papai está vivo. Mamãe morreu de derrame quando eu tinha doze anos.
- Seu pai e sua mãe tinham um bom relacionamento?
- Tinham. Eram profundamente apaixonados um pelo outro.
"É o que transparece em você", pensara Judd, alegremente. Vendo tanta aberração, miséria
e sofrimento todos os dias, a presença de Anne era como uma refrescante brisa de primavera.
- Algum irmão ou irmã?
- Não. Sou filha única. Fui uma garota mimada.
Ela sorrira, um sorriso franco e cordial, sem qualquer artifício ou afetação. Anne contara-lhe
que vivera no exterior com o pai, que era do Departamento de Estado. Quando ele casara novamente e fora viver na Califórnia, ela ficara em Nova York, indo trabalhar como intérprete na ONU. Falava fluentemente Francês, Italiano e Espanhol. Conhecera o futuro marido nas Bahamas, aonde fora em férias. Ele era dono de uma firma de construção. Anne não se sentira atraída, a princípio, mas ele se mostrara persistente e persuasivo. Dois meses depois de conhecê-lo, Anne casara-se com ele. Estava agora casada há quase seis meses. Moravam numa casa grande em Nova Jersey.
E isso fora tudo o que Judd conseguira descobrir a respeito dela em meia dúzia de sessões.
Ele ainda não tinha a menor pista para descobrir qual era o problema dela. Anne tinha um bloqueio emocional que a impedia de discuti-lo. Ele se recordava ainda das perguntas que fizera nas primeiras sessões.
- O problema que tem envolve o seu marido, Sra. Blake.
Não houvera resposta.
- A senhora e seu marido são compatíveis fisicamente?
- Somos.
Um constrangimento visível.
- Desconfia de que ele tem um caso com outra mulher?
- Não.
Resposta divertida.
- Tem a senhora por acaso, um romance com outro homem?
- Não.
Resposta indignada.
Judd hesitara, procurando a melhor maneira de romper a barreira. Ele se decidira pela técnica
do tiro em esmo, abordando todas as categorias principais até sentir que acertara no alvo.
- Discutem por causa de dinheiro?
- Não. Ele é um homem extremamente generoso.
- Têm problemas com as respectivas famílias?
- Ele é órfão. E meu pai vive na Califórnia.
- A senhora ou seu marido já foram viciados em drogas?
- Não.
- Desconfia de que seu marido seja homossexual?
Uma risada discreta, mas sincera.
- Não.
Ele insistira, porque tinha de fazê-lo.
- Já teve algum relacionamento sexual com outra mulher?
- Não.
Um tom de sinceridade na voz dela.
Judd abordara o alcoolismo, frigidez, uma possível gravidez que ela talvez tivesse medo de
enfrentar. Falara de tudo o que pudesse pensar. E em todas às vezes ela o fitara com os olhos
pensativos e inteligentes, sacudindo a cabeça negativamente. Sempre que ele se tornara mais
insistente, ela se esquivava gentilmente:
- Por favor, seja paciente comigo. Vamos fazer as coisas à minha maneira.
Com outro paciente qualquer Judd já teria desistido. Mas ele sentia que precisava de ajudá-la.
E tinha que continuar a vê-la.
Deixara-a falar sobre qualquer assunto que escolhesse. Ela visitara uma dúzia de países com
o pai e conhecera pessoas fascinantes. Tinha a mente ágil e um bom humor inesperado. Judd descobrira que apreciavam os mesmos livros, a mesma música, as mesmas peças teatrais. Ela era cordial e afetuosa, mas Judd jamais percebera qualquer reação a ele, a não ser como médico. Era uma amarga ironia. Subconscientemente ele vinha procurando alguém como Anne há anos. E agora que ela surgira na sua vida, ele tinha que resolver o problema que a atormentava, qualquer que fosse, mandando-a de volta para o marido.
E, quando Anne entrou naquela manhã em sua sala, Judd afastou-se, esperando que ela se
deitasse no divã.
- Hoje não - disse ela calmamente. - Vim apenas ver se podia ajudar em alguma coisa.
Judd fitou-a, sem conseguir falar por um momento. Ele ficara tão tenso nos dois últimos dias
que a solidariedade inesperada de Anne chegou a irritá-lo. E sentiu um impulso furioso de contar a Anne tudo o que lhe estava acontecendo. Falar-lhe do pesadelo que o estava dominando, sobre McGreavy e suas suspeitas idiotas. Mas ele sabia que não poderia fazê-lo. Ele era o médico e ela a paciente. Pior do que isso: ele estava apaixonado por Anne e ela era a esposa intocável de um homem que ele nem conhecia.
Anne estava parada no meio da sala, fitando-o. Judd sacudiu a cabeça, sem se sentir confiante
o bastante para falar qualquer coisa.
- Eu gostava muito de Carol - disse Anne. - Por que alguém haveria de querer matá-la?
- Não sei.
- A polícia já tem alguma idéia de quem foi o assassino?
"Mas claro que sim!", pensou Judd, amargurado. "Se ela soubesse…". Anne continuava a
fitá-lo, curiosa.
- A polícia tem algumas teorias - explicou Judd, vagarosamente.
- Imagino como deve estar se sentindo. Vim apenas para dizer-lhe o quanto lamento o que
aconteceu. Nem mesmo tinha certeza de encontrá-lo hoje no consultório.
- Pensei em não vir trabalhar hoje. Mas… aqui estou. E já que ambos estamos aqui, por que
não conversamos um pouco a seu respeito?
Anne hesitou.
- Não estou muito certa de que haja mais alguma coisa sobre que possamos conversar.
Judd sentiu o coração disparar. “Por favor, meu Deus, não deixe que ela diga que nunca mais”.
vou vê-la “!”.
- Vou para a Europa com meu marido na semana que vem.
- Mas isso é maravilhoso - Judd conseguiu balbuciar.
- Infelizmente desperdicei o seu tempo, Dr. Stevens, e peço-lhe desculpas.
- Ora, não há de quê.
Judd descobriu que estava com a voz rouca. Ela estava saindo de sua vida, o que era terrível.
Mas é claro que ela não podia saber disso. Ele estava sendo infantil. Sua mente dizia-lhe isso
clinicamente, enquanto o estômago sentia uma dor física pela partida dela. Para sempre.
Anne abriu a bolsa e tirou algum dinheiro. Ela tinha o hábito de pagar-lhe em dinheiro depois
de cada sessão, ao contrário dos demais pacientes, que normalmente lhe enviavam um cheque.
- Não - disse Judd rapidamente. - Veio como amiga e eu… lhe sou muito grato por isso.
Judd fez então algo que nunca fizera antes com nenhum outro paciente.
- Gostaria de que voltasse aqui mais uma vez.
Ela fitou-o em silêncio por um instante, com uma expressão serena no rosto.
- Para Quê?
"Porque não posso suportar a idéia de permitir que se vá tão cedo", pensou Judd. “Porque”.
nunca mais encontrarei ninguém como você. Porque a desejo desde da primeira vez em que a vi. Porque eu a amo “. Em voz alta, ele se limitou a dizer”:
- Acho que poderíamos… deixar tudo esclarecido. Quero certificar-me de que já superou o
seu problema.
Ela sorriu, brejeiramente.
- Está querendo dizer que quer que eu volte para receber o diploma de formatura?
- Mais ou menos isso. Vai voltar?
- Se quiser… é claro que sim. Não lhe dei a menor oportunidade de ajudar-me. Mas sei que
é um médico maravilhoso. Se um dia eu precisar de ajuda de verdade, pode ter a certeza que virei procurá-lo.
Ela estendeu a mão e Judd apertou-a. Ela tinha um aperto de mão firme e afetuosa. Ele
tornou a sentir aquela corrente compulsiva que o contato dos dois gerava, admirando-se de ela não sentir coisa alguma.
- Eu virei então na sexta-feira.
- Está certo.
Judd ficou observando-a sair pela porta que dava para o corredor, e depois afundou-se numa
poltrona. Ele nunca se sentiu tão sozinho em toda a sua vida. Mas não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. Tinha que haver uma resposta. E se McGreavy não pretendia descobri-la, ele tinha que fazê-lo antes que McGreavy o destruísse. O Tenente McGreavy suspeitava de que ele cometera dois assassinatos. Ele não podia provar que não os cometera. Podia ser preso a qualquer momento, o que significaria a destruição de sua vida profissional. Além disso, estava apaixonado por uma mulher casada, a quem iria ver só mais uma vez. Esse era o lado negro da situação. Mas havia também o lado bom. Judd esforçou-se por pensar nos aspectos favoráveis. E não encontrou absolutamente nenhum.
Capítulo 5
O resto do dia se passou como se ele estivesse debaixo dágua. Uns poucos de pacientes
fizeram referências à morte de Carol, mas a maioria estava tão absorvida em seus próprios egos que não conseguiam pensar em outra coisa além dos seus problemas pessoais. Judd procurou se concentrar, mas seus pensamentos constantemente se afastavam dos pacientes, em busca das respostas para o que acontecera. Mais tarde ele ouviria as gravações, para verificar o que perdera.
Às sete horas da noite, depois de acompanhar o último paciente até à porta, Judd abriu o
armário embutido de bebidas e serviu-se de uma dose pura de scotch. Sentiu um choque ao tomá-la, recordando-se subitamente de que não comera coisa alguma ao café nem ao almoço. A idéia de comer deixou-o enjoado. Afundou numa poltrona e pensou nos dois crimes. Não havia nada nas fichas dos seus pacientes que pudesse levar alguém a cometer assassinato. Um chantagista talvez pudesse roubar as gravações. Mas os chantagistas são covardes, aproveitando-se da fraqueza dos outros. Se Carol tivesse surpreendido um chantagista arrombando o consultório e ele resolvesse matá-la, teria agido rapidamente, desferindo um único golpe. Jamais a teria torturado. Não, tinha que haver outra explicação.
Judd ficou sentado ali por um longo tempo, repassando lentamente os acontecimentos dos
dois últimos dias. Finalmente suspirou e desistiu. Olhou no relógio e ficou surpreso ao descobrir que era tão tarde.
Ao sair do consultório já passava das nove horas. Uma rajada de vento gelado atingiu-o
quando saiu para a calçada. Começara outra vez a nevar. A neve rodopiava pelo céu, desmanchando os contornos de todas as coisas. A cidade parecia pintada numa tela cujas tintas não tinham ainda secado e escorria lentamente, fundindo os edifícios e as ruas nos mesmos tons aguados, brancos e cinzentos. Um grande cartaz branco e vermelho, do outro lado da Lexington, anunciava:
"FALTAM APENAS 6 DIAS PARA O NATAL".
"Natal"… Judd afastou seus pensamentos do Natal e começou a caminhar.
A rua estava deserta, à exceção de um pedestre bem distante, seguindo apressado para casa,
ao encontro da esposa ou da namorada. Judd descobriu-se procurando imaginar o que Anne estaria fazendo naquele momento. Ela provavelmente estava em casa com o marido, conversando sobre o dia no escritório, interessada, apaixonada. Ou então eles tinham ido para a cama e… "Pare com isso"!, ordenou Judd a si mesmo.
Como não havia carro algum na rua varrida pelo vento frio, Judd começou a atravessá-la
antes de chegar à esquina, dirigindo-se para a garagem onde deixara o carro durante o dia. Ao chegar ao meio da rua ouviu um barulho atrás de si e virou-se. Uma imensa limusine preta, de faróis apagados avançava em sua direção. Parecia que os pneus não conseguiam aderir muito bem ao asfalto, coberto de uma fina camada de neve. Estava a menos de três metros de distância. "O bêbado idiota", pensou Judd. "Está derrapando e vai acabar se matando". Judd virou-se e pulou de volta para o meio-fio, onde estaria seguro. A frente do carro virou atrás dele, e o motor foi acelerado. Só tarde demais é que Judd compreendeu que o motorista estava deliberadamente tentando atropelá-lo.
A última coisa que se lembrou foi de algo duro batendo em seu peito e de um estrondo que
parecia o de uma trovoada. A rua escura iluminou-se subitamente de fogos de artifício, que pareciam explodir dentro de sua cabeça. Judd subitamente soube a resposta a tudo. Sabia por que John Hanson e Carol Roberts tinham sido assassinados. Teve uma sensação de júbilo. Precisava dizer a McGreavy.
Mas logo todas as luzes se apagaram e restou apenas o silêncio da fria escuridão.
Pelo lado de fora, o 19º Distrito parecia um prédio escolar antigo, castigado pelo tempo, de
tijolos vermelhos, reboco na fachada, as cornijas embranquecidas pelos dejetos de muitas gerações de pombos. O 19º Distrito era responsável pela manutenção da ordem pública numa vasta área de Maniatam, da rua 59 à rua 86, da Quinta Avenida até o East River.
O telefonema do hospital, informando do atropelamento seguido de fuga do motorista,
chegou à mesa telefônica da delegacia alguns minutos depois das dez horas da noite, sendo transferido para a sala dos detetives. O 19º Distrito estava enfrentando uma noite das mais atarefadas. Por causa do tempo aumentava consideravelmente os números de estrupos e assaltos. As ruas desertas haviam-se transformado numa terra-de-ninguém congelada, onde os saqueadores se punham à espreita dos infelizes extraviados que se aventurassem por seu território.
Quase todos os detetives estavam fora, atendendo a chamados. O único que se encontrava
naquele momento na sala dos Detetives era Frank Angeli, que estava interrogando, justamente com um sargento, um suspeito de incêndio criminoso.
Foi Angeli que atendeu ao telefone. Era uma enfermeira, que estava cuidando da vítima de
um atropelamento no hospital municipal. O paciente pedira para falar com o Tenente McGreavy. Mas McGreavy, naquele momento, estava na Sala dos Arquivos. Quando a enfermeira disse a Angeli o nome do paciente, ele declarou que iria imediatamente para o hospital.
Angeli estava desligando quando McGreavy entrou. Angeli relatou-lhe rapidamente o
telefonema.
- É melhor irmos imediatamente para o hospital - disse Angeli.
- Ele não vai sair de lá. Antes quero conversar com o capitão da delegacia em cuja jurisdição
ocorreu o acidente.
Angeli ficou observando McGreavy discar. O Capitão Bertelli teria falado com McGreavy a
respeito da conversa que tivera naquela manhã com Angeli? A conversa fora breve e incisiva.
- O Tenente McGreavy é um bom polícia - dissera Angeli -, mas tenho a impressão de que
está influenciado pelo o que aconteceu há cinco anos.
O Capitão Bertelli fitou-o longamente, sem nada dizer, com uma expressão fria.
- Está por acaso acusando-o de querer incriminar o Dr. Stevens?
- Não o estou acusando de nada, Capitão. Achei apenas que o senhor deveria ser informado
da situação.
- Pois já estou informado.
E a reunião assim se encerrara.
A conversa de McGreavy ao telefone demorou três minutos. McGravy resmungou por
diversas vezes e tomou anotações, enquanto Angeli caminhava impaciente de um lado para outro.
Dez minutos depois, os dois detetives estavam numa radiopatrulha a caminho do hospital.
A enfermaria de Judd ficava no sexto andar, no final de um longo e sombrio corredor, que
tinha o cheiro adocicado e enjoativo de todos os hospitais. A enfermeira que telefonara os
acompanhava até o quarto de Judd.
- Qual é o estado dele, enfermeira? - indagou McGreavy.
- O Doutor é que poderá dizer-lhes - falou ela, formalmente.
Logo em seguida, num impulso, acrescentou:
- É um milagre que o homem não tenha sido morto. Possivelmente sofreu uma contusão, tem
algumas escoriações nas costelas e o braço esquerdo está machucado.
- Ele está consciente? - indagou Angeli.
- Está. A grande dificuldade é mantê-lo na cama.
Ela virou-se então para McGreavy e acrescentou:
- Ele insiste em falar-lhe de qualquer maneira.
Entraram na enfermaria. Havia lá seis camas, todas ocupadas. A enfermeira indicou um leito
no fundo, cercado por uma cortina. McGreavy e Angeli foram até lá.
Judd estava na cama, aconchegado entre muitos travesseiros. O rosto estava pálido e na testa
havia um emplastro adesivo. O braço esquerdo estava numa tipóia.
- Soube que sofreu um acidente - disse McGreavy.
- Não foi acidente - disse Judd. - Alguém tentou matar-me.
A voz era fraca e trêmula.
- Não sei, mas foi isso mesmo o que aconteceu - respondeu Judd, virando-se depois para
McGreavy. - Os assassinos não estavam querendo matar John Hanson e Carol Roberts. Eles queriam a mim.
McGreavy ficou surpreso.
- O que o leva a pensar assim?
- Hanson foi morto porque estava usando a minha capa amarela. Devem ter me visto entrando
no edifício com a capa. Quando Hanson saiu com ela, pensaram que era eu.
- É possível - comentou Angeli.
- Claro que é possível - disse McGreavy. - E, quando descobriram que tinham matado o
homem errado, eles foram até seu consultório, rasgaram suas roupas e verificam que o senhor era na realidade, uma linda moça negra. Ficaram então furiosos e o espancaram até a morte.
- Carol foi morta porque a encontraram no lugar onde eu deveria estar - explicou Judd.
McGreavy meteu a mão no bolso do casaco e tirou algumas anotações.
- Acabei de falar com o capitão da delegacia em cuja jurisdição o acidente ocorreu.
- Não foi acidente.
- Segundo o relatório da polícia, Dr. Stevens, o senhor atravessou a rua descuidadamente,
fora do lugar.
- Não havia nenhum carro e por isso…
- Havia um carro - corrigiu Mcgreavy. - Só que não o viu. Estava nevando e a visibilidade era
péssima. O senhor surgiu no meio da rua inesperadamente. O motorista pisou no freio e derrapou, e o carro o atingiu. Ele entrou em pânico e fugiu.
- Não foi isso que aconteceu. E, além do mais, os faróis do carro estavam apagados.
- E acha que isso é prova que era o mesmo homem que matou John Hanson e Carol Roberts?
- Alguém tentou matar-me - repetiu Judd, insistente.
McGreavy sacudiu a cabeça.
- Não vai adiantar nada, Doutor.
- O que não vai adiantar?
- Espera mesmo que eu saia por aí à procura de um assassino imaginário, enquanto o senhor
fica inteiramente a salvo?
McGreavy fez uma pausa. Sua voz subitamente áspera.
- Sabia que a sua recepcionista estava grávida, Doutor?
Judd fechou os olhos e deixou a cabeça afundar novamente nos travesseiros. “Então era isso”.
que Carol desejava falar-lhe. Ele já imaginava. E agora McGreavy ia pensar “… Judd voltou a abrir os olhos”.
- Não, eu não sabia.
A cabeça de Judd começou a latejar novamente. A dor estava voltando. Ele engoliu em seco,
procurando dominar a náusea. Queria chamar a enfermeira, mas não ia dar aquela satisfação a
McGreavy, de jeito nenhum.
- Andei examinando os arquivos da polícia - disse McGreavy. - Sabe que eu descobri que a
sua linda recepcionista era uma vigarista antes de ir trabalhar em seu consultório.
A cabeça de Judd passou a latejar ainda mais forte. A dor tornou-se insuportável.
- Sabia disso, Doutor? Não precisa responder. Eu responderei pelo senhor. Sabia sim, porque
a tirou de um tribunal noturno há quatro anos, quando ela estava sendo julgada por prostituição.
Não acha que é um tanto estranho um médico respeitável contratar uma vigarista para ser
recepcionista de seu elegante consultório?
- Nenhuma mulher nasce vigarista - disse Judd, com a voz cansada. - Eu estava tentando
ajudar uma garota de dezesseis anos a ter uma oportunidade na vida.
- E aproveitar para ter também um lombo negro à sua disposição, não é mesmo?
- Seu bastardo de mente suja!
McGreavy sorriu, sem qualquer humor.
- Para onde levou Carol depois que a recolheu no tribunal noturno?
- Para o meu apartamento.
- E ela dormiu lá?
- Dormiu.
McGreavy sorriu novamente.
- É um homem incrível, Doutor! Pega uma jovem prostituta bonita e a leva para seu
apartamento, para passar a noite. O que está procurando? Uma parceira para o xadrez? Se não se deitou com ela, Doutor, então é porque talvez seja um homossexual. E adivinha a quem isso o liga? Isso mesmo, a John Hanson. Se se deitou com Carol, então é possível que tenha continuado a levá-la para a cama, até que ela engravidasse. E como pode ter o descaramento de ficar deitado aí e contar-me uma história da carochinha sobre um maníaco que gosta de atropelar as pessoas e fugir em seguida, que se transforma num assassino e sai matando as pessoas a torto e a direito?
McGreavy virou-se bruscamente e saiu da enfermaria, o rosto vermelho de raiva. O latejar
na cabeça de Judd transformara-se numa agonia insuportável, Angeli observava-o, preocupado.
- Está se sentindo melhor, Doutor?
- Tem que me ajudar! Alguém está querendo matar-me!
O apelo soou como um lamento fúnebre aos ouvidos de Judd.
- Quem teria motivos para matá-lo, Doutor?
- Não sei.
- Tem algum inimigo?
- Não.
- Dormiu recentemente com a esposa ou a namorada de alguém?
Judd sacudiu a cabeça, e no mesmo instante arrependeu-se do movimento.
- É herdeiro provável de alguma fortuna? Tem parentes que queira tirá-lo do caminho?
- Não.
Angeli suspirou.
- Então aparentemente não há motivo algum para que alguém queira assassiná-lo. E o que me
diz dos seus pacientes? Acho melhor que nos forneça uma relação, a fim de que possamos investigá-lo.
- Não posso fazer uma coisa dessas!
- Tudo o que estou pedindo é que nos forneça os nomes deles.
- Lamento, mas não é possível - disse Judd, falando com imenso esforço. - Se eu fosse um
dentista ou calista, não haveria o menor problema. Será que não pode compreender? As pessoas que me procuram têm problemas, alguns bastante sérios. Se vocês começarem a interrogá-las, não apenas iriam deixá-las abaladas como também destruiriam a confiança que elas depositam em mim. Eu não teria mais condições de tratá-las. Por isso é que não posso fornecer a relação dos meus pacientes.
Judd voltou a afundar nos travesseiros, exausto. Angeli fitou-o em silêncio por um minuto
antes de perguntar:
- Como se chama o homem que pensa que todo mundo está querendo matá-lo?
- Um paranóico.
Judd viu a expressão no rosto de Angeli e acrescentou rapidamente:
- Não está pensando que eu…?
- Ponha-se no meu lugar, Doutor. Se eu estivesse agora nessa cama e começasse a falar-lhe
do jeito que me está falando, Doutor, o que iria pensar a meu respeito?
Judd fechou os olhos novamente, numa defesa contra as pontadas de dor em sua cabeça.
Ouviu a voz de Angeli acrescentar:
- McGreavy está-me esperando lá fora.
Judd abriu os olhos.
- Espere… Dê-me uma oportunidade de provar que estou dizendo a verdade.
- Como?
- Quem quer que esteja querendo matar-me, irá tentar-lo novamente. Quero que algum polícia
seja designado para acompanhar-me. Assim poderá prender o assassino, em sua próxima tentativa.
- Dr. Stevens, se alguém deseja matá-lo, nem todos os polícias do mundo juntos o poderiam
impedir. Se não o pegar hoje, irá pegá-lo amanhã. Se não o pegar aqui, irá pegá-lo em algum outro lugar. Não importa que seja um rei ou um presidente, não importa que seja um simples Joäo-ninguém. A vida é um fio muito curto. Basta uma fração de segundo para rompê-lo.
- Então quer dizer que não há nada, absolutamente nada, que possa fazer?
- Posso-lhe dar alguns conselhos. Ponha fechaduras novas nas portas de seu apartamento,
verifique sempre se as janelas estão bem trancadas. Não deixe ninguém entrar em seu apartamento, a menos que o conheça. Nem mesmo entregadores, a não ser que tenha encomendado pessoalmente alguma coisa.
Judd assentiu, com a garganta seca e ardendo.
- O prédio em que mora tem porteiro e ascensorista, Doutor. Pode confiar neles?
- O porteiro trabalha no prédio há dez anos, o ascensorista há oito. Eu lhes confiaria a minha
vida.
Angeli assentiu, aprovadoramente.
- Ótimo. Peça-lhes para ficarem atentos. Assim sendo, será difícil alguém entrar no prédio
sem ser visto. E o que me diz do consultório? Pretende contratar uma nova recepcionista?
Judd pensou numa estranha sentada à mesa de Carol e sentiu um tremor de ódio impotente
perpassar-lhe o corpo.
- Não imediatamente.
- Talvez pudesse contratar um homem, Doutor.
- Vou pensar no assunto.
Angeli virou-se para sair, mas parou no meio do caminho e disse um tanto hesitante:
- Tenho um a idéia, mas é um tiro no escuro.
- E qual é?
Judd odiou a ansiedade que havia em sua voz.
- Esse homem que matou o antigo parceiro de McGreavy…
- Ziffren.
- Ele era realmente desequilibrado?
- Era. Mandaram-no para o hospital Estadual Matteawan, para criminosos desequilibrados.
- Talvez ele o culpe por ter sido enfurnado num hospício. Vou verificar se ainda está lá.
Telefone-me pela manhã.
- Obrigado.
- Não precisa agradecer. É meu trabalho. Mas, se o senhor estiver envolvido nesses crimes,
pode ter a certeza de que ajudarei McGreavy a agarrá-lo.
Angeli virou-se para sair, mas parou novamente.
- Não precisa dizer a McGreavy que vou verificar se Ziffren ainda está no hospício.
- Nada direi.
Os dois homens sorriram um para o outro. Angeli partiu. Judd ficou sozinho novamente.
Se a situação era terrível naquela manhã, agora era ainda pior. Judd sabia que já teria sido
preso por homicídio se fosse por uma coisa: o caráter de McGreavy. O detetive queria vingança, tão intensamente que pretendia providenciar todas as provas necessárias a uma condenação antes de efetuar a prisão. "Será que o seu atropelamento fora, de fato, um acidente?", pensou Judd. "Havia bastante neve na rua e o carro poderia ter deslizado acidentalmente, indo atingi-lo. Mas por que então os faróis estavam apagados? E de onde o carro surgira tão subitamente"?
Judd estava convencido de que fora atacado por um assassino… e de que seria atacado
novamente. E com esse pensamento, adormeceu.
Cedo, na manhã seguinte, Peter e Norah Hadley foram ao hospital visitar Judd. Souberam do
acidente pelos noticiários matutinos. Peter era da idade de Judd, mais baixo e terrivelmente magro.
Haviam sido criados na mesma cidadezinha do Nebraska e tinham cursado juntos a faculdade de medicina.
Norah era inglesa. Tinha cabelos louros e era rechonchuda, com seios um pouco grandes
demais para o seu 1,60 metros de altura. Era animada e jovial. Depois de cinco minutos de conversa com ela, as pessoas ficavam com a impressão de que a conheciam há muitos anos.
- Você está com um aspecto horrível - disse Peter, examinando Judd criticamente.
- É a sua característica que mais aprecio, Doutor: a maneira como conforta os doentes.
A cabeça de Judd não latejava mais e a dor do corpo desaparecera quase que completamente.
Norah entregou-lhe um buquê de cravos.
- Nós lhe trouxemos algumas flores, querido.
Ela inclinou-se e beijou-o no rosto.
- Como aconteceu? - indagou Peter.
Judd hesitou.
- Um carro me atropelou e fugiu em seguida.
- Tudo acontece ao mesmo tempo, não é? Li no jornal o que aconteceu com a pobre Carol.
- Foi terrível - disse Norah - Eu gostava muito dela.
Judd sentiu um nó na garganta.
- Eu também gostava.
- Há alguma possibilidade de apanhar o desgraçado que a matou? - perguntou Peter.
- Eles estão trabalhando no caso.
- O jornal desta manhã disse que um tal Tenente McGreavy está prestes a efetuar uma
prisão. Sabe de alguma coisa a esse respeito?
- Mais ou menos - disse Judd secamente. - McGreavyz deu-me algumas informações.
- Nunca se tem idéia de como os polícias são maravilhosos até que se precisa deles -
comentou Norah.
- O Dr. Harris deixou-me dar uma olhadela nas suas radiografias - disse Peter. - Houve
algumas escoriações sérias, mas nenhuma fratura. Dentro de poucos dias poderá sair daqui.
Judd sabia que não tinha tempo a perder.
Passaram a meia hora seguinte numa conversa superficial, evitando cuidadosamente qualquer
referência à morte de Carol Roberts, Perter e Norah não sabiam que John Hanson fora paciente de Judd. Por algum motivo especial, McGreavy não fornecera tal informação aos jornais.
Quando eles se levantaram para ir embora, Judd pediu para falar a sós com Peter. Enquanto
Norah esperava lá fora, Judd relatou a Peter as suas conclusões a respeito de Harrison Burke.
- Lamento muito, Judd. Quando o encaminhei para vocês, sabia que sua paranóia estava
muito avançada, mas esperava que ainda houvesse tempo de ajudá-lo. É claro que você tem de tomar uma providência imediata. Quando pretende pedir o internamento dele?
- Assim que sair daqui.
Mas Judd sabia que estava mentindo. Não queria que Harrison Burke fosse internado
imediatamente. Ainda não. Queria primeiro descobrir se fora Burke quem cometera os dois
assassinatos.
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer por você, companheiro, é só telefonar.
Peter saiu do quarto.
Judd ficou deitado, imóvel, planeando o que iria fazer. Como não havia nenhum motivo
racional para que alguém quisesse matá-lo, não restava a menor dúvida de que os crimes tinham sido cometidos por alguém mentalmente desequilibrado, alguém que imaginava ter motivos de ressentimentos contra ele. As únicas duas pessoas que se enquadravam nessa categoria eram Harrison
Burke e Ziffren, o homem que matara o companheiro de McGreavy. Se Burke não tivesse um álibi para a manhã em que Hanson fora assassinado. Judd pediria ao Detetive Angeli que investigasse o caso. Se Burke tinha álibi, ele então iria concentrar-se em Ziffren. Judd sentiu que se desvanecia a depressão que o dominava até aquele momento. Estava fazendo alguma coisa. Subitamente teve uma vontade desesperada de deixar o hospital.
Tocou a campainha, chamando a enfermeira, a quem disse que desejava falar com o Dr.
Harris. Dez minutos depois, Seymour Harris entrou no quarto. Era quase um anão, com olhos azuis de um brilho intenso e tufos de cabelo negros nas faces. Judd conhecia-o há bastante tempo e sentia por ele o maior respeito.
- Ora, ora, a Bela Adormecida já despertou! Você está com um aspecto horrível!
Judd já estava começando a ficar cansado de ouvir aquela frase. Mentiu deliberadamente:
- Pois estou me sentindo muito bem. E quero sair daqui.
- Quando?
- Agora. O Dr. Harris assumiu uma expressão de censura.
- Você acaba de ser internado. Por que não fica aqui por alguns dias? Eu lhe mandarei
algumas enfermeiras ninfomaníacas para lhe fazerem companhia.
- Obrigado, Seymour, mas preciso realmente sair daqui.
O Dr. Harris suspirou.
- Está certo. Você é que é o médico, Doutor. Pessoalmente, eu não deixaria o meu gato sair
na rua no estado em que você está.
Ele lançou um olhar compreensivo para Judd e acrescentou:
- Posso ajudar em alguma coisa?
Judd sacudiu a cabeça.
- Vou pedir que lhe tragam as suas roupas.
Trinta minutos depois, a jovem no balcão de recepção do hospital chamou um táxi para Judd.
às dez horas e quinze minutos, ele estava de volta ao seu consultório
Capítulo 6
A primeira paciente de Judd para aquele dia, Teri Washburn, estava á espera no corredor.
Vinte anos atrás, Teri fora uma das maiores estrelas do firmamento de Hollywood. Mas sua carreira malograra da noite para o dia, ela se casara com madeireiro de Orgon e sumira. Desde então, Teri se casara cinco ou seis vezes. No momento vivia em Nova York com seu último marido, um importador. Ela levantou a cabeça com uma expressão furiosa quando Judd apareceu no corredor.
- Então…
O discurso de censura que ela ensaiara acabou quando viu o rosto de Judd.
- Mas o que lhe aconteceu, Doutor? Parece ter sido lançado para dentro de uma misturadora
de cimento.
- Sofri um pequeno acidente. Desculpe o atraso.
Ele abriu a porta e introduziu Teri na sala de recepção. A cadeira e mesa vazias de Carol eram
como fantasmas a espreitá-lo.
- Li a notícia a respeito de Carol - disse Teri, com alguma excitação na voz. - Foi um crime
sexual?
- Não - respondeu Judd bruscamente.
Ele abriu a porta de sua sala e pediu:
- Por favor, dê-me dez minutos para resolver alguns problemas urgentes.
Entrou no seu gabinete. Consultou a agenda e começou a telefonar para diversos pacientes,
cancelando as consultas para aquele dia. Só não conseguiu falar com três pacientes. O braço e o peito doíam a cada movimento, a cabeça começou a latejar novamente. Pegou dois comprimidos de Darvan numa gaveta e engoli-os com um copo de água. Depois foi até à porta da recepção, abriu-a e chamou Teri. Concentrando-se para tirar do pensamento tudo que não fossem os problemas de sua paciente, pelos próximos cinqüenta minutos. Teri deitou-se no divã, a saia levantada. Começou imediatamente
a falar.
Vinte anos atrás, Teri Washburn fora uma beldade deslumbrante. Ainda restava alguns
vestígios dessa beleza. Ela possuía os olhos maiores, mais suaves e mais inocentes que Judd já vira em toda a sua vida. Havia algumas rugas nos cantos da boca, mas os lábios ainda eram extremamente sensuais. Os seios eram firmes e arredondados por baixo do vestido estampado Pucci, bem justo.
Judd suspeitava de que ela tomava injeções de silicone, mas preferia esperar que ela mencionasse o fato. O resto do corpo de Teri ainda estava em boa forma e as pernas eram particularmente deslumbrantes.
Mais cedo ou mais tarde, a maioria das pacientes de Judd julgavam estarem apaixonadas por
ele. Era a transferência natural do relacionamento paciente-médico para paciente-protetor-amante.
Mas o caso de Teri era diferente. Desde o primeiro minuto em que entrara em seu consultório, Teri estava tentando ter um romance com ele. Procurara seduzi-lo por todos os meios que conhecia - e Teri era, de fato, perita nessa arte. Judd finalmente advertira-a de que, a menos que se comportasse, teria que encaminhá-la a outro médico. Desde então, Teri vinha-se comportando de forma mais comedida. Procurava sondá-lo, descobrir o seu calcanhar-de-aquiles. Um eminente médico inglês é que encaminhara Teri a Judd, depois de um desagradável escândalo internacional em Antibes. Um colunista francês acusara Teri de passar um fim-de-semana no iate de um famoso armador grego, de quem ela estava noiva tendo-se deitado com os três irmãos do armador, enquanto ele voava para Roma a fim de tratar de negócios. O escândalo fora rapidamente abafado e o colunista publicara uma
retratação, sendo em seguida despedido do jornal. Na primeira sessão com Judd, Teri se gabara de que o caso era verdadeiro.
- É incontrolável - dissera ela. - Sinto necessidade de sexo o tempo todo. Jamais fico
satisfeita.
Ela esfregara as mãos nos quadris, erguendo a saia e fitando Judd com uma expressão
inocente:
- Entende o que estou querendo dizer, não é, querido?
Desde a primeira sessão Judd descobrira muitas coisas a respeito de Teri. Ela nascera numa
pequena cidade mineira da Pensilvânia.
- Meu pai era um Polaco estúpido. Todos os sábados de noite se embriagava e dava uma
surra na minha mãe.
Aos treze anos Teri tinha um corpo de mulher e o rosto de um anjo. Descobriu que podia
ganhar alguns níqueis indo para trás dos depósitos de carvão com os mineiros. No dia em que o pai descobrira, aparecera na pequena cabana em que moravam gritando incoerentemente, em polonês, expulsando de lá a mãe de Teri. Trancara a porta, tirara o cinto grosso e começara a espancar Teri.
Ao acabar, violentara Teri.
Judd ficara em silêncio, observando Teri descrever a cena, o rosto desprovido de qualquer
emoção.
- Foi a última vez em que vi o meu pai e a minha mãe.
- Fugiu de casa, não é?
Teri virara no divã, surpresa.
- Como?
- Depois que seu pai a violentou…
- Se eu fugi?
Teri jogara a cabeça para trás, rindo a valer.
- Mas eu gostei! Foi a cadela da minha mãe que me expulsou de casa!
Judd ligou o gravador para iniciar a nova sessão e indagou:
- Sobre o que gostaria de falar?
- De trepar. Por que não o analisamos, Doutor, e descobrimos por que você é tão puro?
Judd ignorou o comentário.
- Por que acha que a morte de Carol pode ter sido uma agressão sexual?
- Porque tudo me faz pensar em sexo, querido.
Ela remexeu-se no divã e a saia levantou-se ainda mais.
- Abaixe a saia, Teri.
Ela fitou-o com uma expressão inocente.
- Oh, desculpe… Perdeu uma grande festa de aniversário na noite de sábado, Doutor.
- Fale-me a esse respeito.
Ela hesitou, com uma nota inesperada de preocupação em sua voz:
- Não vai detestar-me se eu contar?
- Já lhe disse que não precisa de minha aprovação para nada, Teri. A única pessoa de quem
deve querer aprovação é de você mesma. O certo e o errado são regras que fabricamos para
podermos relacionar-nos com as outras pessoas. Sem regras, não poderia haver tal relacionamento.
Mas não se esqueça de que as regras são artificiais.
Houve um longo silêncio.
- Foi uma festa com música ao vivo. O meu marido contratou um conjunto de seis músicos.
Judd ficou esperando. Ela virou-se para fitá-lo.
- Tem certeza que não perderá o respeito por mim?
- Quero ajudá-la, Teri. Todos nós já fizemos coisas de que nos envergonhamos, mas isso não
significa que tenhamos de continuar a fazê-las.
Teri examinou-o atentamente.
- Já lhe disse que desconfiava de que meu marido, Harry, é impotente?
- Já.
Ela falava sobre isso constantemente.
- Ele não fez nada comigo desde que nos casamos. Tem sempre alguma desculpa… Pois
bem…
Ela fez uma pausa, torcendo a boca numa expressão amargurada.
- Pois bem… sábado à noite eu me entreguei a todos os seis músicos, enquanto Harry olhava.
Ela começou a chorar, Judd entregou-lhe um lenço de papel e ficou calado, observando-a.
Ninguém jamais dera algo a Teri Washburn sem cobrar bem alto. Ao chegar a Hollywood,
ela arrumara um emprego de garçonete num drive-in, gastando a maior parte do que ganhava com um professor de arte dramática de terceira classe. Uma semana depois o professor convidara-a a morar com ele, obrigando-a a fazer todas as tarefas domésticas e restringindo as aulas ao quarto.
Algumas semanas depois, Teri compreendera que jamais conseguiria um lugar de atriz daquele jeito, mesmo que o professor quisesse arrumá-lo. Deixara-o, então, e conseguira um emprego de caixa na drugstore de um hotel em Beverly Hills. Na véspera do Natal aparecera um executivo da indústria cinematográfica, querendo comprar um presente de último minuto para a esposa. Ele dera o seu cartão a Teri, pedindo que lhe telefonasse. Uma semana depois, Teri fazia um teste para o cinema.
Ela era desajeitada e não tinha a menor experiência, mas três fatores estavam a seu favor. Possuía um rosto e um corpo sensacionais, era extremamente fotogênica e o executivo tornou-se seu amante.
Teri Washburn aparecera em pequenas pontas numa dúzia de filmes, naquele primeiro ano.
Começara a receber correspondência dos fãs. Suas partes nos filmes foram aumentando. Um ano depois seu benfeitor morrera de um ataque do coração. Teri ficara com medo de que o estúdio fosse despedi-la. Em vez disso, porém, o novo executivo a chamara ao seu gabinete e informara que tinha grandes planos para ela. Teri ganhara um novo contrato, um salário maior e um novo apartamento, que tinha um quarto todo espelhado. Os papéis de Teri foram aumentando gradativamente, até que ela se tornou a estrela principal de filmes de classe B. E, finalmente, com o público sempre aumentando as bilheteiras dos seus filmes, Teri Washburn tornara-se uma estrela de filmes de classe A.
Tudo isso acontecera muito tempo atrás. E, pensando em todos esses fatos, Judd sentia pena
dela, ao vê-la deitada no divã do seu consultório, soluçando.
- Quer um copo de água, Teri?
- Não, obrigada. Eu… eu estou bem.
Ela tirou um lenço do bolso e assoou o nariz.
- Desculpe eu ter-me comportado como uma idiota - disse ela, sentando-se.
Judd continuou calado, esperando que ela recuperasse o controlo.
- Por que é que eu me caso com homens como Harry?
- É uma pergunta da maior importância. Tem alguma idéia da resposta?
- Mas como diabo eu posso saber! Você é que é o psiquiatra e tem que me dizer! Acha que
se eu soubesse antes como era, iria casar-me com homens como Harry?
- Qual é a sua opinião?
Teri ficou chocada.
- Está achando que eu me casaria, mesmo que soubesse? - Ela levantou-se, furiosa. - Seu filho
da puta nojento! Está pensando que eu gostei de trepar com todos os músicos?
- E gostou?
Num acesso de raiva. Teri pegou um vaso e arremessou-o contra Judd. O vaso foi-se espatifar
em cima da mesa.
- Isso responde à sua pergunta.
- Não. Esse vaso custou 200 dólares. Vou pôr na sua conta.
Teri fitou-o em silêncio por um minuto, desesperada. E finalmente sussurrou:
- Será que gostei?
- Você é quem pode dizer.
A voz dela ficou ainda mais baixa.
- Eu devo estar doente. Oh, Deus, como eu devo estar doente! Por favor, Judd, ajude-me!
Judd levantou-se e aproximou-se dela.
- Você é que tem de ajudar-se a si mesma, Teri.
Ela assentiu, com uma expressão aturdida.
- Quero que vá para casa e pense como se sente, Teri. Não enquanto está fazendo essas
coisas, mas antes de fazê-las. Pense nos motivos que a levam a ter vontade de fazê-las. Quando souber disso, saberá uma porção de coisas a respeito de si mesma.
Teri relaxou visivelmente. Tornou a tirar o lenço da bolsa e assuou o nariz.
- Você é um homem maravilhoso, Charlie Brown - disse ela, pegando as luvas e a bolsa. - Até
a próxima semana?
Judd abriu a porta do corredor e Teri saiu. Ele sabia a resposta ao problema de Teri, mas ela
teria que chegar lá por si mesma. Teria que aprender que não se pode comprar o amor, que se trata de uma coisa que tem de ser dada gratuitamente. E Teri não podia aceitar esse fato enquanto não começasse a acreditar que era digna de merecer o amor. Até que isso acontecesse, Teri continuaria a procurar comprar o amor, usando a moeda de que dispunha: seu corpo. Judd sabia a agonia que ela estava enfrentando, o desespero infinito do auto-desprezo. Sentiu pena dela. Mas a única maneira que tinha de ajudá-la era mostrar-se impessoal e indiferente. Judd sabia que, para os seus pacientes, aparentava sempre ser remoto e alheio aos problemas de cada um, dispensando a sua sabedoria de uma terapia. Na verdade Judd se preocupava intensamente com os problemas de seus pacientes. Eles ficariam surpresos se soubessem com quanta freqüência os demônios que investiam contra os
baluartes de suas emoções apareciam nos pesadelos de Judd.
Durante os seis primeiros meses de sua carreira com psiquiatra, enquanto se submetia aos
necessários dois anos de análise para se tornar psicanalista, Judd começara a ter dores de cabeça terríveis. Assumira empaticamente os problemas dos seus pacientes e levara quase um ano para aprender a canalizar e a controlar o seu envolvimento emocional.
E agora, depois de guardar a gravação da sessão com Teri Wasburn. Judd voltou a
concentrar-se em seu próprio dilema. Foi até o telefone e discou para as Informações, pedindo o telefone do 19º Distrito.
A telefonista transferiu a ligação para a Sala dos Detetives. Ele ouviu a voz grave de
McGreavy ao telefone.
- Tenente McGreavy falando.
- O Detetive Angeli, por gentileza.
- Espere um momento.
McGreavy largou o telefone em cima da mesa. Um momento depois a voz de Angeli soou ao
telefone:
- Detetive Angeli.
- Judd Stevens. Será que já tem aquela informação?
Houve um instante de hesitação.
- Já verifiquei - disse Angeli cuidadosamente.
- Tudo o que precisa dizer é sim ou não.
O coração de Judd estava disparado. Custou-lhe um grande esforço formular a pergunta
seguinte:
- Ziffren ainda está em Matteawan?
Pareceu decorrer uma eternidade antes que Angeli respondesse:
- Sim, ele ainda está lá.
Uma onda de desapontamento invadiu Judd.
- Entendo…
- Sinto muito.
- De qualquer forma, obrigado.
E, lentamente, Judd desligou.
Assim, só restava Harrison Burke, um paranóico irremediável, que julgava que todos
querendo matá-lo. Será que Burke decidira atacar primeiro? John Hanson deixara o consultório de Judd às 10:50 de segunda-feira sendo assassinado alguns minutos depois. Judd precisava descobrir se Harrison Burke estava em seu consultório nessa ocasião. Ele procurou o telefone de Burke e discou.
- International Steel
A voz possuía o timbre remoto e impessoal de um autômato.
- O Sr. Harrison Burke, por gentileza.
- Sr. Harrison Burke… Um momento, por favor
Judd estava contando que a secretária de Burke atendesse ao telefone. Se ela tivesse saído
por um momento da sala e o próprio Burke atendesse…
- Gabinete do Sr. Burke.
Era voz de mulher.
- Aqui é o Dr. Judd Stevens. Será que poderia fornecer-me algumas informações?
- Mas claro que sim, Dr. Stevens!
Havia um tom de alívio na voz dela, misturado com alguma apreensão. Ela devia saber que
Judd era o analista de Burke. Será que esperava que Judd a ajudasse? O que Burke teria feito com ela?
- É sobre a conta do Sr. Burke… - começou Judd.
- A conta?
Ela não fez o menor esforço para disfarçar o desapontamento. Judd continuou rapidamente:
- Minha recepcionista foi… não está mais comigo e estou procurando pôr tudo em ordem.
Verifiquei que ela cobrou uma consulta do Sr. Burke às nove e meia da manhã da última
segunda-feira e gostaria que visse na agenda dele se realmente veio ao meu consultório.
- Espere um momento, por favor.
A voz dela era visivelmente desaprovadora. Judd podia adivinhar o que ela estava sentindo.
O patrão estava desmoronando e o analista preocupava-se apenas com o dinheiro que lhe pagava. Ela voltou ao telefone alguns minutos depois.
- Infelizmente a sua recepcionista cometeu um engano, Dr. Stevens. O Sr. Burke não podia
ter ido ao seu consultório na manhã de segunda-feira.
- Tem certeza? - insistiu Judd. - Está anotado aqui. De nove e meia até…
- Não importa o que a sua recepcionista tenha anotado, Dr. Stevens.
Ela estava agora visivelmente irritada com a insensibilidade dele.
- O Sr. Burke passou toda manhã de segunda-feira numa reunião de diretoria, que começou
às oito horas.
- Ele não poderia ter saído sem ser visto durante uma hora?
- Não, Doutor. O Sr. Burke nunca sai do escritório durante o dia.
O tom de acusação na voz dela era evidente. Será que não entende que ele está doente? O
que está fazendo para ajudá-lo?
- Quer que eu chame o Sr. Burke, Doutor?
- Não é necessário. Obrigado.
Judd teve vontade de acrescentar alguma coisa que pudesse tranqüilizá-la, mas não havia nada
que ele pudesse dizer. Por isso, desligou rapidamente.
Judd não tinha mais para onde se virar. Se nem Zifren nem Harrison Burke tinham tentado
matá-lo… então não havia mais ninguém que tivesse um motivo para fazê-lo. Ele estava de volta ao ponto de partida. Alguma pessoa - ou pessoas - assassinaram a sua recepcionista e um dos seus pacientes. O seu atropelamento podia ter sido deliberado ou acidental. No momento em que ocorrera, parecera-lhe um ato deliberado. Mas, recordando agora o fato imparcialmente, Judd chegou a conclusão de que estava bastante perturbado pelos acontecimentos recentes. Poderia ter transformado um simples acidente em algo sinistro. A verdade pura e simples é que não havia ninguém que tivesse motivos para assassiná-lo. Ele possuía um excelente relacionamento com todos os seus pacientes, não tinha quaisquer problemas nas relações com os amigos. Ao que soubesse, nunca prejudicara ninguém.
O telefone tocou. Ele imediatamente reconheceu a voz baixa e meio rouca de Anne.
- Está ocupado?
- Não. Posso falar.
A voz dela era preocupada.
- Li no jornal que foi atropelado. Quis telefonar-lhe antes, mas não sabia onde encontrá-lo.
Judd procurou fazer com que sua voz soasse jovialmente.
- Não foi nada sério. Mas servirá para fazer com que eu passe a atravessar as ruas com mais
cuidado.
- Os jornais dizem que o motorista fugiu depois do acidente.
- É verdade.
- Descobriram quem era?
- Não. Provavelmente era algum garoto numa farra.
Numa limusine preta com os faróis apagados?
- Tem certeza? - indagou Anne.
A pergunta apanhou-o de surpresa.
- Como assim?
- Não sei muito bem - disse Anne, a voz hesitante. - É que… Carol foi assassinada. E agora
isso.
Então ela também juntara os acontecimentos.
- Até parece… que há um maníaco à solta, ao seu redor.
- Se isso é verdade - assegurou Judd - a polícia irá apanhá-lo.
- Está correndo algum perigo?
Judd ficou enternecido com a preocupação dela.
- É claro que não.
Houve um silêncio constrangedor. Havia tanta coisa que Judd queria dizer, só que não podia.
Ele não podia confundir um telefonema cordial com outra coisa qualquer. Anne estava demonstrando apenas a preocupação natural de um paciente para com o seu médico. Ela era do tipo que telefonaria para qualquer pessoa conhecida que estivesse em dificuldades. Não havia mais nada além disso.
- Irei vê-la na próxima sexta-feira? - indagou Judd.
- Claro.
Havia um tom estranho na voz dela. Será que pensava em mudar de idéia.
- Então o encontro está confirmado - disse ele rapidamente.
Só que não seria um encontro, mas sim uma consulta profissional.
- Está. Até lá, Dr. Stevens.
- Até lá, Sra. Blake. Obrigado pelo telefonema. Muito obrigado mesmo.
Ele desligou. E ficou pensando em Anne. Será que o marido dela tinha idéia de como era um
homem de sorte?
E por falar nisso, como seria o marido dela? Pelo pouco que Anne falara. Judd formara a
imagem de um homem atraente e atencioso. Era um desportista, inteligente e bem sucedido nos negócios. Doava dinheiro para as artes. Parecia o tipo de homem que Judd apreciaria ter como amigo. Em outras circunstâncias.
Qual poderia ser o problema de Anne, que ela receava discutir com o marido? Ou com seu
analista? Em se tratando de uma mulher com o caráter de Anne, provavelmente era algum sentimento de culpa originado por um romance que tivera antes ou depois de se casar. Judd não podia imaginá-la tendo romances ligeiros, que não deixavam marca alguma. Talvez ela lhe contasse tudo na próxima sexta-feira. Quando a veria pela última vez.
O resto da tarde passou rapidamente. Judd recebeu os poucos pacientes cujas consultas não
conseguira cancelar. Quando o último partiu, ele pegou a gravação da última sessão de Harrison Burke e, enquanto escutava, tomou algumas anotações.
Ao acabar, desligou o gravador. Não havia qualquer alternativa. Tinha que telefonar pela
manhã para o presidente da companhia de Burke e informá-lo do estado de seu vice-presidente.
Olhou pela janela e ficou surpreso ao ver que a noite já caíra. Eram quase oito horas. Agora que não mais estava concentrado em seu trabalho, Judd sentiu-se tenso e exausto. As costelas doíam e o braço latejava. Iria para casa e tomaria um bom banho quente.
Guardou todas as fitas no armário embutido na parede. Exceto a de Burke, que trancou
numa gaveta de uma mesinha lateral. Iria entregá-lo a um psiquiatra designado pelo Tribunal. Vestiu o casaco e estava se encaminhando para a porta quando o telefone tocou. Atendeu-o.
- Dr. Stevens falando.
Ninguém disse nada. Judd ouviu uma respiração pesada, anasalada.
- Alô?
O silêncio continuou, Judd desligou. Ficou imóvel por um momento, franzindo o rosto.
Número errado, concluiu finalmente. Apagou as luzes do consultório, trancou as portas e seguiu para o corredor dos elevadores. Todos os ocupantes das outras salas há muito que tinham ido embora. Era cedo demais para o pessoal da faxina noturna. Fora Bigelow, o vigia noturno, o prédio estava inteiramente vazio.
Judd foi até os elevadores e apertou o botão. O indicador de andar não se mexeu. Apertou
novamente o botão. Nada aconteceu.
E, nesse momento, todas as luzes do corredor se apagaram.
Capítulo 7
Judd ficou parado diante do elevador. A escuridão o envolvia como se fosse algo físico.
Sentiu o coração quase parar e, em seguida, disparar. Um medo súbito, atávico, dominou seu corpo.
Ele tateou nos bolsos, à procura de uma caixa de fósforos. Deixara-a no consultório. Talvez as luzes estivessem acessas nos andares inferiores. Andando lenta e cautelosamente, ele encaminhou-se para a porta que dava para a escada. Abriu-a. A escada também estava às escuras. æ distância, lá embaixo, viu o feixe de luz de uma lanterna subindo. Judd sentiu-se subitamente aliviado. Era Bigelow, o vigia noturno.
- Bigelow! Bigelow! Sou eu, o Dr. Stevens!
Sua voz ricocheteou nas paredes de concreto, ecoando lugrubemente pela escada. A pessoa
que segurava a lanterna continuou a subir, em silêncio, inexoravelmente.
- Quem está aí? - gritou Judd.
A única resposta foi o eco de suas próprias palavras.
E Judd soube subitamente quem estava ali, subindo a escada. Deviam ser pelo menos dois.
Um cortara a luz, no porão, enquanto o outro bloqueava a escada para impedir a sua fuga.
A luz da lanterna estava chegando perto, apenas dois ou três andares abaixo. O corpo de Judd
ficou gelado de medo. O coração batia-lhe descompassadamente, as pernas estavam fracas. Judd virou-se e subiu rapidamente os poucos degraus de volta ao seu andar. Abriu a porta e ficou parado, escutando. E se alguém estivesse esperando ali em cima, no corredor às escuras?
O som de passos, subindo a escada, estava agora mais perto. A boca seca, Judd virou-se e
percorreu o corredor escuro. Passou pelos elevadores e começou a contar as portas. Ao chegar ao seu consultório, ouviu a porta da escada se abrir novamente. As chaves escorregaram dos seus dedos nervosos e caíram no chão. Judd tateou freneticamente à procura delas, encontrou-as, abriu a porta da sala de recepção e entrou. Deu duas voltas na chave. Ninguém podia abrir aquela porta sem uma chave especial.
Ouviu passos que se aproximavam, no corredor lá fora. Judd entrou em sua própria sala e
apertou o interruptor. Nada aconteceu. Não havia luz alguma em todo o prédio. Ele trancou a porta que dava para a sala de recepção e foi até o telefone. Discou para a telefonista de auxílio. A campainha tocou três vezes antes que a telefonista atendesse. Era o único vínculo de Judd com o mundo exterior.
- Telefonista, é uma emergência. Aqui é o Dr. Stevens. Quero falar com o Detetive Frank
Angeli, no 19º Distrito. Por favor, depressa! - Pois não! O número do seu telefone, por favor?
Judd disse-o.
- Um momento por favor.
Judd ouviu alguém experimentando a porta que dava do corredor diretamente para a sua
sala. Não poderiam entrar por ali, porque a porta não tinha nenhuma maçaneta pelo lado de fora.
- Depressa, telefonista!
- Um momento, por favor.
A voz da telefonista era impessoal, sem nenhuma pressa. Houve um zumbido na linha e
depois a telefonista da polícia disse:
- 19º Distrito.
O coração de Judd deu um salto.
- Quero falar com o Detetive Angeli. É urgente!
Lá fora, no corredor, algo estava acontecendo. Judd podia ouvir os sons de vozes afastadas.
Alguém se juntara ao primeiro homem. O que estariam planeando? Uma voz familiar soou ao telefone:
- O Detetive Angeli não está. Aqui é o companheiro dele, Tenente McGreavy. Pode…
- Aqui é Judd Stevens. Estou em meu consultório. As luzes estão apagadas e alguém está
tentando arrombar a porta para matar-me!
Houve um silêncio profundo do outro lado. Finalmente McGreavy disse:
- Olhe, Doutor, por que não vem até aqui e conversamos…
- Mas não posso ir até aí! Alguém está tentando assassinar-me!
Houve outro silêncio profundo e quase interminável do outro lado. McGreavy não acreditava
nele e não ia ajudá-lo. Judd ouviu a porta lá fora se abrir, em seguida vozes soaram na sala de
recepção. Eles já estavam na sala de recepção! Eles não teriam podido entrar se não tivessem uma chave. Mas ele podia ouvi-los aproximando-se da porta de sua sala.
A voz de McGreavy estava soando ao telefone, mas Judd nem escutou. Era tarde demais!
Judd repôs o fone no gancho. Agora não tinha mais importância alguma que McGreavy concordasse em vir. Os assassinos já estavam ali. A vida é um fio muito fino e basta uma fração de segundo para rompê-lo. O medo que dominara Judd transformou-se numa raiva cega. Ele se recusava a ser trucidado como Carol e John Hanson. Ia lutar até o fim. Tateou na escuridão em busca de uma possível arma. Um cinzeiro… um espátula… Eram objetos inúteis. Os assassinos estariam com revólveres. Era um pesadelo kafkiano. Ele estava sendo condenado sem razão alguma por carrascos sem rostos.
Ouviu-os junto à porta interna da sala de recepção e compreendeu que só lhe restava um ou
dois minutos de vida. Com uma calma estranha e impessoal, como se fosse o seu próprio paciente, Judd examinou os seus pensamentos finais. Pensou em Anne e uma sensação terrível de perda o dominou. Pensou em seus pacientes e de quanto precisavam dele. Harrisom Burke. Com uma pontada súbita, ele recordou-se de que ainda não dissera ao superior de Burke que era preciso interná-lo. Ele deixaria as fitas gravadas onde pudessem ser… O coração de Judd deu um salto.
Talvez ele tivesse uma arma com que lutar! Ele ouviu a maçaneta girando. A porta estava trancada à chave, mas era frágil. Judd tateou na escuridão rapidamente, até à mesa onde trancara a fita da última sessão de Burke. Ouviu o rangido da porta sendo empurrada com força. Depois ouviu alguém mexendo na fechadura. "Por que simplesmente não derrubam a porta?", pensou ele. Em algum ponto, no fundo da sua mente, sentiu que a resposta era importante. Mas não tinha tempo para pensar nisso agora. Com os dedos trêmulos, Judd abriu a gaveta na qual guardara a fita. A pressão na porta aumentou, Judd proferiu uma prece rápida, silenciosa. E disse em voz alta:
- Sinto muito as luzes terem-se apagado, Harrison, mas tenho certeza de que darão um jeito
nisso em poucos minutos. Por que não se deita e procura relaxar?
O barulho na porta cessou subitamente. Judd ajeitou a fita no gravador. Apertou o botão.
Nada aconteceu. Mas é claro! Toda a energia do prédio fora desligada. Judd ouviu os homens
recomeçarem a mexer na fechadura. Sentiu-se desesperado e disse bem alto:
- Assim é melhor. Procure ficar o mais confortável possível.
Ele procurou a caixa de fósforos em cima da mesa e acabou encontrando-a. Acendeu um
fósforo. Havia um botão onde estava escrito bateria. Girou o botão. Apertou novamente o botão de play. Nesse momento houve um súbito clique na fechadura e a porta se abriu. A última defesa de Judd fora superada!
Judd ficou paralisado, sem coragem de se mexer, o coração batendo forte.
E então a voz de Burke soou na sala:
- E isso é tudo o que tem a dizer? Nem mesmo está querendo ouvir as minhas provas! Como
é que posso saber que o senhor não é um deles?
A voz de Judd também saiu do gravador:
- Sabe perfeitamente que não sou um deles. Sou seu amigo. Estou tentando ajudá-lo…
Fale-me das provas que descobriu.
- Arrombaram minha casa ontem à noite - disse a voz de Burke. - Queriam matar-me. Mas
sou mais esperto do que eles. Estou dormindo agora no escritório e instalei trancas duplas nas portas, para que não possam me apanhar.
Os sons na sala de recepção haviam cessado. A voz de Judd soou novamente:
- Comunicou o arrombamento à polícia?
- Mas é claro que não! A polícia está do lado deles. Tem ordens para atirar em mim. Mas não
se atreverão a fazê-lo enquanto houver outras pessoas por perto. Por isso é que agora fico sempre no meio de uma multidão.
- Fico contente de que me tenha dado essa informação.
- O que pretende fazer com ela?
- Escutei atentamente tudo o que disse. Está tudo aqui…
Nesse momento, estourou um brado de alerta na mente de Judd: as próximas palavras na fita
eram "na fita gravada".
Ele inclinou-se rapidamente para o aparelho e desligou-o, dizendo em voz alta:
- …na minha mente. E vamos encontrar a melhor maneira de usar essa informação.
Não tinha como tocar o gravador novamente, pois não sabia onde se iniciava a frase seguinte.
Sua única esperança era de que os homens lá fora estivessem de fato convencidos de que estava com um paciente. Mas mesmo que acreditassem, será que isso iria detê-los?
- Caso como esse são mais comuns do que imagina, Harrison - disse Judd.
Ele soltou uma exclamação de impaciência e acrescentou:
- Desejaria que a luz voltasse logo de uma vez. Sei que seu motorista está lá embaixo
esperando e, com certeza, vai subir para ver o que está acontecendo.
Judd ficou imóvel, escutando atentamente. Ouviu cochichos na sala de recepção. O que será
que eles estavam decidindo? Da rua lá embaixo se elevou subitamente o gemido insistente de uma sirene que se aproximava. Os sussurros cessaram. Judd ficou esperando pelo ruído da porta externa se fechando, mas nada ouviu. Será que eles estavam esperando lá fora? O gemido de sirene ficou mais forte. Veio para diante do prédio.
E, de repente, todas as luzes se acenderam novamente.
Capítulo 8
- Aceita um drinque?
McGreavy sacudiu a cabeça com uma expressão carrancuda, examinando Judd. Enquanto
McGreavy o observava sem fazer qualquer comentário, Judd serviu-se de uma dose dupla de scotch.
Suas mãos ainda estavam tremendo. À medida que o calor do uísque começou a se espalhar pelo seu corpo, ele foi relaxando.
McGreavy entrara em seu consultório dois minutos depois de as luzes terem voltado a se
acender. Com ele estava um impassível sargento de polícia, que tomava notas taquigráficas das declarações de Judd.
- Vamos repassar toda a história, Dr. Stevens - pediu McGreavy.
Judd respirou fundo e pôs-se a contar tudo novamente, procurando manter a voz calma e
baixa:
- Fechei o consultório e segui para o elevador. As luzes do corredor se apagaram. Achei que
as luzes dos andares inferiores talvez estivessem funcionando e comecei a descer a escada.
Judd hesitou, revivendo todo o medo que sentira.
- Vi alguém subindo a escada com uma lanterna. Gritei-lhe. Pensava que fosse Bigelow, o
vigia noturno. Não era.
- E quem era, então?
- Eu já lhe disse que não sei. Ninguém me respondeu.
- E o que o faz pensar que estavam subindo para matá-lo?
Uma resposta irritada aflorou nos lábios de Judd, mas ele se conteve. Era fundamental que
McGreavy acreditasse nele.
- Eles me seguiram até aqui.
- Acha que havia dois homens querendo matá-lo?
- Pelo menos dois. Ouvi-os sussurrando na sala de recepção.
- Disse que trancou a porta que dava para o corredor ao entrar na sala de recepção. Não foi
isso mesmo?
- Foi.
- E que, quando entrou aqui nesta sala, trancou a porta que dá para a sala de recepção.
- Exatamente.
McGreavy foi até a porta que dava para a sala de recepção.
- Eles tentaram forçar a porta?
- Não.
Judd recordou-se de que ficara surpreso com isso.
- É preciso uma chave especial para se abrir do corredor a porta da sala de recepção, não é?
Judd hesitou. Sabia aonde McGreavy estava querendo chegar.
- É, sim.
- E quem tinha as chaves que abriam aquela porta?
Judd sentiu seu corpo ficar vermelho.
- Carol e eu.
A voz de McGravy era afável.
- E o pessoal da faxina? Como é que entra aqui?
- Tínhamos um acerto especial. Carol chegava mais cedo três vezes por semana e deixava o
pessoal da faxina entrar. Eles acabavam de limpar tudo antes da chegada do meu primeiro paciente.
- Parece-me um tanto inconveniente. Por que não lhes permitia entrar aqui livremente, como
acontece em todos os outros escritórios?
- Porque os meus arquivos são altamente confidenciais. Prefiro a inconveniência a ter
estranhos por aqui, sem ninguém de confiança presente.
McGravy olhou para o sargento, para certificar-se de que estava anotando tudo. Satisfeito,
voltou a concentrar-se em Judd.
- Quando entramos na sala de recepção, a porta estava aberta. Não tinha sido arrombada, mas
sim aberta normalmente.
Judd não disse nada. McGreavy continuou:
- Acabou de dizer-nos que somente o senhor e Carol tinham chaves daquela porta. E nós
estamos com a chave de Carol. Pense bem, Dr. Stevens. Quem mais tinha uma chave daquela porta?
- Ninguém.
- Então como acha que os homens conseguiram entrar?
Subitamente Judd compreendeu.
- Eles tiraram uma cópia da chave de Carol quando a mataram.
- É possível - admitiu McGreavy, exibindo um sorriso frio. - Se tiraram mesmo uma cópia,
vamos encontrar vestígios de parafina na chave. Mandarei fazer um teste no laboratório.
Judd assentiu. Teve a sensação de obter uma vitória, mas a satisfação foi de curta duração.
- Na sua opinião, Dr. Stevens, dois homens, e vamos admitir por enquanto que não havia
mulher alguma envolvida, tiraram uma cópia da chave para poderem entrar em seu consultório e matá-lo. Certo?
- Certo.
- Disse há pouco que trancou a porta interna ao passar para a sua sala. Certo?
- Certo.
A voz de McGreavy era quase humilde:
- Mas encontramos a porta aberta também.
- Eles deviam ter também uma chave dessa porta.
- E por que não o mataram depois de abri-la?
- Eu já lhe expliquei: eles ouviram as vozes no gravador e…
- Está querendo-me dizer que dois assassinos desesperados prepararam tudo, apagaram as
luzes, encurralaram-no aqui dentro, conseguiram entrar… e depois sumiram no ar sem tocar num só fio de seu cabelo?
A voz de McGravy tinha um tom inconfundível de desprezo. Judd sentiu uma raiva fria
irromper dentro de si.
- O que está querendo dizer?
- Vou trocar em miúdos, Doutor. Não creio que ninguém tenha estado aqui e não acredito
que estejam querendo matá-lo.
- Não precisa aceitar a minha palavra tão-somente - disse Judd furioso. - E o que me diz das
luzes? E o que me diz do vigia noturno, Bigelow? - Ele está lá no saguão.
O coração de Judd parou por uma batida.
- Morto?
- Não estava quando nos abriu a porta. Houve um defeito na casa de força e Bigelow desceu
ao porão para concertar. Tinha acabado o serviço quando chegamos.
Judd fitou-o por um longo tempo em silêncio, completamente aturdido. Finalmente exclamou:
- Oh!
McGreavy encaminhou-se para a porta, acrescentando:
- E faça-me um favor: não me telefone novamente. Pode deixar que eu voltarei a procurá-lo.
O sargento fechou seu bloco ruidosamente e acompanhou-o.
Os efeitos do uísque se dissiparam. A euforia desapareceu e Judd mergulhou numa profunda
depressão. Não tinha a menor idéia do que fazer agora. Estava mergulhado num quebra-cabeças que não tinha nenhuma chave para ser decifrado. Sentia-se como um garoto que gritava "lobo". Só que os lobos eram fantasmas mortais e invisíveis, que pareciam desaparecer toda vez que McGreavy se aproximava. Fantasmas ou… Havia uma outra possibilidade. Era tão terrível que Judd não podia sequer admiti-la. Mas precisava fazê-lo.
Tinha que enfrentar a possibilidade de ele ser um paranóico.
Uma mente excessivamente tensa pode gerar ilusões que lhe parecem reais. Ele andava
trabalhando demais! Há anos que não tirara férias! Era bem possível que as mortes de Hanson e Carol tivesse sido o agente catalizador que empurrara sua mente em algum precipício emocional, no qual os fatos mais insignificantes assumem proporções extremas e despropositadas. As pessoas que sofrem de paranóia vivem num mundo em que as coisas comuns do cotidiano constituem terrores incríveis. O acidente com o carro, por exemplo. Se fosse uma tentativa deliberada de matá-lo, o motorista do carro certamente teria saltado para se certificar de que o trabalho fora feito. E os dois homens que haviam aparecido ali naquela noite. Ele nem sequer se apercebeu se eles estavam armados. A primeira suposição de um paranóico não seria a de que tinham vindo matá-lo? O mais lógico seria imaginar que eram apenas ladrões. Ao ouvirem as vozes em sua sala, tinham tratado de fugir. Se fossem mesmo assassinos, teriam escancarado a porta e tratado de matá-lo. Mas como ele podia descobrir a verdade? Judd sabia que era inútil apelar novamente à polícia. Não havia ninguém a quem pudesse recorrer…
Uma idéia começou a tomar forma em sua mente. Era uma conseqüência do seu desespero.
Mas, quanto mais a examinava, mais achava que não tinha outra saída. Pegou o catálogo telefônico e começou a folhear as páginas amarelas.
Capítulo 9
Às quatro horas da tarde do dia seguinte Judd deixou seu consultório e seguiu para um
endereço no West Side. Era uma casa de apartamentos antiga e decadente, escurecida pelo passar do tempo. Ao parar o carro em frente ao prédio, Judd começou a sentir apreensões. Talvez tivesse anotado o endereço errado. Mas logo uma placa numa janela do primeiro andar chamou sua atenção:
NORMAN Z. MOODY
Investigador Particular
Satisfação Garantida
Judd saltou do carro. Era um dia frio, com muito vento, anunciando a neve que não tardaria
a cair. Ele atravessou rapidamente a calçada gelada e entrou no vestíbulo do prédio.
O lugar tinha o cheiro rançoso de muitas refeições cozinhadas e de urina. Judd apertou o
botão marcado "Norman Z. Moody - 1". Um momento depois soou uma campainha. Ele passou para um corredor escuro e logo encontrou o apartamento 1. Uma placa na porta dizia:
MORMAN Z. MOODY
Investigador Particular
TOQUE A CAMPAINHA E ENTRE
Judd tocou a campainha e entrou.
Evidentemente Moody não era um homem dado a gastar dinheiros com luxos desnecessários.
O escritório parecia ter sido mobiliado por um rato do campo, desses que gostam de pegar e guardar tudo o que se encontra, cego e com um problema de tireóide. Bugigangas se acumulavam em todos os centímetros disponíveis na sala. A um canto havia um biombo japonês, bastante avariado. Perto, um abajur de pé empilhado e, em frente, uma mesa escalavrada no estilo dinamarquês moderno.
Jornais e revistas velhas estavam empilhados por toda a parte.
Subitamente abriu-se uma porta interna e Norman Z. Moody apareceu. Ele devia ter cerca
de 1,65 metros de altura e pesava aproximadamente 150 quilos. Sacudia-se todo ao andar fazendo Judd pensar num Buda animado. O rosto era redondo e jovial, com olhos azuis grandes, claros e francos. Era totalmente calvo e sua cabeça tinha um formato de ovo. Era impossível definir-lhe a idade.
- Sr. Stevenson?
- Dr. Stevens.
- Sente-se, sente-se.
Buda com um sotaque arrastado dos sulistas.
Judd olhou em redor, procurando um lugar onde sentar-se. Removeu uma pilha de revistas
de mudismo e de aperfeiçoamento corporal de cima de uma poltrona de couro de aspecto
escrofuloso, com muitas tiras rasgadas, e sentou-se cautelosamente.
Moody sentou seu corpo imenso numa cadeira de balanço de tamanho descomunal.
- Muito bem… O que posso fazer pelo senhor?
Judd compreendeu que cometera um erro. Pelo telefone, fornecera seu nome completo a
Moody. Um nome que estivera nas primeiras páginas de todos os jornais de Nova York nos últimos dias. E conseguira escolher o único detetive particular de toda a cidade que ainda não ouvira falar nele. Judd procurou rapidamente algum pretexto para sair dali imediatamente.
- Quem me recomendou?
Judd hesitou, não querendo ofendê-lo.
- Encontrei seu nome nas páginas amarelas.
Moody riu.
- Não sei o que faria sem as páginas amarelas. A maior invenção do mundo desde o uísque
de milho.
Ele soltou outra risadinha brusca. Judd levantou-se. Não havia a menor dúvida de que estava
mesmo tratando com um idiota completo.
- Lamento ter tomado o seu tempo, Sr. Moody. Gostaria de pensar mais um pouco antes de…
- Claro que compreendo. Mas terá que me pagar pela entrevista.
- Não há problema.
Judd meteu a mão no bolso e tirou algumas notas.
- Quanto é?
- Cinqüenta dólares.
- Cinqüenta…?
Judd engoliu em seco, furioso, mas separou algumas notas e colocou-as na mão de Moody,
que contou o dinheiro cuidadosamente.
- Muito obrigado - disse Moody.
Judd encaminhou-se para a porta, sentindo-se um tolo.
- Doutor…
Judd virou-se, Moody estava sorrindo, com uma expressão benevolente, enfiando o dinheiro
no bolsinho do colete.
- Já que gastou os seus cinqüenta dólares, poderia muito bem sentar-se de novo e contar-me
o seu problema. Eu sempre digo que nada alivia mais que pôr para fora as coisas que nos estão oprimindo.
A ironia da observação, partindo daquele gordo tolo, quase fez Judd rir. Ele devotaria toda
a sua vida a ouvir as pessoas que estavam precisando desabafar. O que tinha a perder? Talvez
conversar com um estranho pudesse ajudar. Lentamente ele voltou para a poltrona e sentou-se.
- Parece que está carregando todo o peso do mundo, Doutor. Eu sempre digo que quatro
ombros valem mais do que dois.
Judd não tinha muita certeza de quantos aforismos de Moody conseguiria suportar. Moody
observava-o atentamente.
- O que o trouxe aqui, Doutor? Mulheres? Ou dinheiro? Eu sempre digo que, removendo-se
as mulheres e o dinheiro, quase todos os problemas do mundo estão resolvidos.
Moody continuou a olhar para Judd, esperando por uma resposta.
- Eu… eu acho que alguém está querendo matar-me.
Os olhos azuis piscaram.
- Acha?
Judd ignorou a pergunta.
- Talvez pudesse fornecer-me o nome de alguém especializado na investigação desse tipo de
coisas.
- Mas é claro que posso: Norman Z. Moody. O melhor do país.
Judd suspirou de desespero.
- Por que não me conta tudo, Doutor? Vamos ver se duas cabeças juntas conseguem pensar
melhor.
Judd não conseguiu conter o sorriso. Moody parecia-se tanto com ele próprio! “Apenas”.
deite-se e diga qualquer coisa que lhe passe pela cabeça “. Por que não? Judd respirou fundo e”.
relatou a Moody, o mais concisamente possível, os acontecimentos dos últimos dias. Ele estava, na realidade, falando para si mesmo, traduzindo em palavras todas as coisas atordoantes que haviam ocorrido. Evitou cuidadosamente qualquer referência às suas apreensões a respeito da sua própria sanidade mental. Quando Judd acabou, Moody fitou-o com uma expressão jovial.
- Está com um problema e tanto, Doutor. Ou alguém está mesmo querendo matá-lo ou então
o senhor está com medo de se transformar num paranóico esquizofrênico.
Judd ficou surpreso. Tinha que reconhecer que Norman Z. Moody marcara o primeiro ponto.
- Disse que há dois detetives trabalhando no caso, Doutor. Lembra-se dos nomes deles?
Judd hesitou. Estava relutante em se comprometer mais a fundo com aquele homem gordo.
Tudo o que realmente queria agora era sair dali. Mas acabou dizendo:
- Frank Angeli e Tenente McGreavy.
Houve uma mudança quase imperceptível na expressão de Moody.
- Que razão alguém poderia ter para matá-lo, Doutor?
- Não tenho a menor idéia. Pelo que sei, não tenho nenhum inimigo.
- Ora, deixe disso. Todo mundo tem inimigos. Eu sempre digo que os inimigos são o sal do
pão da vida.
Judd procurou não estremecer.
- Casado?
- Não.
- É bicha, por acaso?
Judd suspirou.
- Escute, já conversei tudo isso com a polícia e…
- Eu sei. Só que agora está-me pagando para ajudá-lo - disse Moody, imperturbável. - Deve
dinheiro a alguém?
- Só as contas mensais normais.
- O que me diz dos seus pacientes?
- O que deseja saber a respeito deles?
- Eu sempre digo que, quando se quer encontrar conchas é preciso ir à praia. Seus pacientes
são todos pirados, não é mesmo?
- Não - disse Judd rispidamente. - São pessoas com problemas.
- Problemas emocionais que não podem resolver sozinhos. Algum deles poderia ter algo
contra o senhor? Não me estou referindo a um motivo real de queixa, mas talvez alguém alimente um ressentimento imaginário.
- É possível. Só que a maioria dos meus pacientes está-se tratando comigo há um ano ou
mais. E nesse tempo pude conhecê-los tão bem quanto um ser humano pode conhecer a outro.
- Eles nunca ficam com raiva do senhor? - indagou Moody, com uma expressão inocente.
- Algumas vezes. Mas não estamos procurando alguém que possa ter raiva de mim e sim um
paranóico homicida que já matou pelo menos duas pessoas e fez mais de uma tentativa para me matar.
Judd hesitou, mas depois viu-se obrigado a acrescentar:
- Se eu tenho um paciente nessas condições e não sei, então o senhor está olhando para mais
um incompetente psicanalista que já existiu.
Judd ergueu os olhos e viu que Moody o examinava atentamente.
- Eu sempre digo que devemos tratar primeiro das coisas que vêm em primeiro lugar - disse
Moody, jovialmente. - E a primeira coisa que temos de descobrir é se alguém está mesmo tentando liquidá-lo ou se o senhor está ficando maluco. Não é mesmo, Doutor?
Ele abriu um sorriso largo, que iluminava qualquer possibilidade de insulto em suas palavras.
- E como vamos descobrir?
- É bem simples, Doutor. Seu problema é que está rebatendo bolas que descrevem uma curva
e não sabe se há alguém que as lança. Em primeiro lugar, vamos descobrir se está mesmo havendo um jogo. Depois descobriremos quem são os jogadores. Tem carro?
- Tenho.
Judd já esquecera completamente a idéia de sair dali e ir procurar outro detetive particular.
Sentia agora que, por baixo do rosto inocente e afável de Moody e de suas máximas de algibeira havia uma capacidade tranqüila e inteligente.
- Acho que está com os nervos abalados, Doutor. Quero que tire uns dias de férias.
- Quando?
- A partir de amanhã.
- Mas isso é impossível! Tenho pacientes marcados e…
Moody interrompeu-o:
- Cancele todas as consultas.
- Mas de que vai adiantar…
- Eu por acaso lhe digo como deve cuidar dos seus negócios? Quando sair daqui, quero que
vá direto a uma agência de viagens. Peça que lhe façam uma reserva…
Moody pensou por um momento antes de continuar:
- …No Grossinger's. É uma bela viagem de carro através das montanhas Catskills. O prédio
em que mora tem garagem?
- Tem.
- Pois então peça que preparem seu carro para a viagem. Não vá querer enguiçar no meio do
caminho!
- Não posso deixar para a próxima semana? Amanhã tenho um dia cheio…
- Depois que fizer a reserva, vá direto para seu consultório e ligue para todos os seus
pacientes. Diga-lhes que se trata de uma emergência e que estará de volta dentro de uma semana.
- Mas não posso realmente fazer isso. É fora de…
- É melhor telefonar para Angeli. Não quero que a polícia comece a procurá-lo depois de
partir.
- Mas por que tenho de viajar?
- Para proteger os seus cinqüenta dólares. O que me faz lembrar de uma coisa: vou precisar
de mais duzentos como sinal. Cobro cinqüenta dólares por dia mais as despesas.
Moody ergueu o corpo imenso da cadeira de balanço.
- Quero que saia bem cedo amanhã, para que chegue antes do anoitecer. Pode partir por volta
das sete horas da manhã?
- Creio que sim. O que irei encontrar quando chegar lá em cima?
- Com um pouco de sorte, talvez consiga marcar um ponto no jogo em que está metido.
Cinco minutos depois, Judd voltava a seu carro, pensativo. Dissera a Moody que não poderia
partir assim de repente, cancelando as consultas com tão pouca antecedência. Mas sabia que era exatamente isso o que iria fazer. Estava literalmente pondo a sua vida nas mãos daquele falstaff do mundo da investigação particular. Ao arrancar, ele olhou novamente para a placa que estava pendurada na janela:
"SATISFAÇÃO GARANTIDA".
"É bom que seja mesmo", pensou Judd, sombriamente.
Os planos para a viagem foram executados sem qualquer contratempo. Judd parou numa
agência de viagens de Madison Avenue. Reservaram-lhe um quarto no Grossinger's e forneceram-lhe um mapa rodoviário da região e diversos folhetos coloridos sobre as montanhas Catskills. Em seguida ele ligou para o serviço de recados telefônicos e pediu que telefonassem para todos os pacientes e cancelassem as consultas, até nova comunicação. Depois telefonou para o 19º Distrito e pediu para falar com o Detetive Angeli.
- Angeli está em casa, doente - disse uma voz impessoal. - Quer o número da casa dele?
- Quero.
Momentos depois, Judd estava falando com Angeli. Pela voz dele, devia estar com um
tremendo resfriado.
- Cheguei à conclusão que estou precisando sair da cidade por alguns dias - disse Judd. - Vou
partir amanhã de manhã. Mas antes queria informá-lo.
Houve um silêncio prolongado do outro lado, enquanto Angeli pensava no assunto.
- Até que não é má idéia, Doutor. Para onde pretende ir?
- Pensei em ficar no Grossinger's.
- Está certo. Não se preocupe. Resolverei tudo com McGreavy.
Angeli hesitou por um instante.
- Já soube o que aconteceu em seu consultório ontem à noite.
- Está querendo dizer que ouviu a versão de McGreavy, não é? - Conseguiu ver os dois
homens que tentaram matá-lo?
"Então pelo menos Angeli acreditava nele".
- Não.
- Não há o que possa dizer para ajudar-nos a encontrá-los? Cor, idade, altura?
- Lamento, mas não vi nada. Estava tudo escuro.
Angeli fungou.
- Está bem. Continuarei a procurar. Talvez eu já tenha alguma notícia quando voltar. Tome
cuidado, Doutor.
- Certo - disse Judd, agradecido, desligou logo.
Em seguida, ele telefonou para o presidente da companhia em que Burke trabalhava e
explicou-lhe rapidamente a situação. Não havia outra alternativa senão interná-lo o mais depressa possível. Judd ligou depois para Peter, explicou-lhe que tinha de sair da cidade por uma semana e pediu-lhe que tomasse as providências necessárias com relação a Burke. Peter concordou.
As cartas estavam na mesa.
O que mais perturbava Judd era que não podia ver Anne na próxima sexta-feira. Talvez nunca
mais tornasse a vê-la.
Judd pensou em Norman Z. Moody ao voltar para seu apartamento. Tinha a impressão que
sabia qual o plano de Moody. Fazendo com que Judd comunicasse a todos os seus pacientes que estava de partida, Moody queria certificar-se de que, se um deles fosse o assassino, e se é que existisse mesmo um assassino, ele iria ser atacado. Tratava-se de uma armadilha. E o próprio Judd era a isca.
Moody determinara que ele deixasse o endereço para onde estava indo com seu serviço de
recados telefônicos e com o porteiro do prédio em que morava. Era para que todos pudessem saber onde Judd se encontrava.
Quando Judd estacionou diante do seu prédio, Mike estava parado ali para cumprimentá-lo.
- Vou viajar amanhã de manhã, Mike. Poderia pedir que preparassem o carro e enchessem o
tanque?
- Pode deixar que eu cuido de tudo, Dr. Stevens. A que horas vai precisar do carro?
- Pretendo sair às sete horas da manhã.
Judd sentiu que Mike o observava enquanto entrava no prédio. Subiu para o seu apartamento
e trancou todas as portas, verificando cuidadosamente as janelas. Tudo parecia estar em ordem.
Tomou duas pílulas de codeína, despiu-se e entrou num banho quente, massageando
cuidadosamente o corpo dolorido, sentindo que as tensões iam-se esvaindo das costas e do pescoço.
Ficou por muito tempo estendido na banheira cheia de água quente, pensando. Por que Moody o alertara para providenciar a fim de que o carro não enguiçasse na estrada? Porque seria o local mais provável para atacarem-no, em algum ponto da estrada deserta nas Catskills? E o que Moody poderia fazer se Judd fosse então atacado? Moody recusara-se a lhe contar qual era o seu plano - se é que tinha algum plano. Quanto mais Judd pensava no caso, mais convencido ficava de que estava indo direto para uma armadilha. Moody dissera que estava armando para os perseguidores de Judd. Mas não importava quantas vezes Judd assim o dissesse a si mesmo, a resposta parecia ser sempre a mesma: a armadilha parecia preparada para apanhá-lo. Mas por quê? Que interesse Moody poderia ter em vê-lo morto? "Meu Deus", continuou pensando Judd, "escolhi um nome ao acaso nas páginas amarelas do Catálogo Telefônico de Manhattam e já estou começando a pensar que ele quer que eu seja assassinado! Sou de fato um paranóico"!
Ele sentiu que os olhos começavam a se fechar. As pílulas e o banho quente haviam atuado
eficientemente. Cansado, ele saiu da banheira, enxugou cuidadosamente o corpo dolorido com uma toalha felpuda e vestiu um pijama. Foi para a cama e fixou o relógio elétrico para despertar as seis da manhã. E caiu na cama num sono profundo de exaustão.
Judd acordou instantaneamente quando o despertador tocou, às seis horas da manhã. E, como
se não houvesse decorrido tempo algum, seu primeiro pensamento foi: "Não acredito numa série de coincidências e não creio que um dos meus pacientes seja um maníaco homicida. Portanto, ou sou um paranóico ou estou-me tornando um". O que ele precisava era de consultar outro psicanalista.
Telefonaria para o Dr. Robbie. Sabia que isso significaria o fim de sua carreira profissional, mas não havia outra alternativa. Se estava sofrendo de paranóia, teria que ser internado. Será que Moody desconfiava de que estava tratando com um desequilibrado mental? Será que fora por isso que sugeria que tirasse uma semana de férias? Não porque pensasse que alguém estava querendo matar Judd, mas porque estava vendo todos os sinais de um colapso nervoso? Talvez a melhor coisa a fazer fosse mesmo aceitar o conselho de Moody e passar alguns dias nas Catskills. Sozinho, sem nenhuma das pressões que o estavam atormentando, ele poderia avaliar a si mesmo com toda a calma, procurar descobrir quando a sua mente começara a enganá-lo, quando começara a perder o contato com a realidade. Quando voltasse, marcaria uma consulta com o Dr. Robbie e entregar-se-ia aos seus cuidados.
Foi uma decisão difícil, mas Judd sentiu-se melhor depois de tomá-la. Vestiu-se, arrumou uma mala com roupas suficientes para cinco dias e depois foi para o elevador.
Eddie ainda não entrara de serviço e o elevador estava ligado ao automático. Judd desceu até
a garagem, no subsolo. Procurou Wilt, o garagista, mas ele não estava por ali. A garagem estava deserta.
Judd localizou o seu carro estacionado a um canto, encostado na parede de cimento. Foi até
lá, pôs a valise no banco de trás, abriu a porta da frente e sentou-se ao volante. Ao estender a mão para a chave de igniçäo um homem surgiu ao lado do carro, como que materializado no ar. O coração de Judd disparou.
- É bastante pontual, Doutor.
Era Moody.
- Não sabia que viria desejar-me boa viagem.
O rosto de Moody se iluminou. Suas feições de querubim se abriram num sorriso largo.
- Eu não tinha coisa melhor para fazer e não consegui dormir.
Judd sentiu-se subitamente agradecido pela maneira hábil como Moody estava controlando
a situação. Ele não fizera qualquer referência ao provável desequilíbrio mental de Judd, insinuando apenas que ele fosse para as montanhas e descansasse um pouco. Logo, o mínimo que Judd poderia fazer era continuar a aparentar que estava tudo normal.
- Cheguei à conclusão de que estava certo e vou até as Catskills para ver se consigo marcar
um ponto no jogo.
- Não precisa ir a lugar nenhum para isso, Doutor. O ponto já foi marcado.
Judd fitou-o com uma expressão aturdida.
- Não estou entendendo…
- É simples. Eu sempre digo que se deve começar a cavar quando se quer chegar ao fundo
de alguma coisa.
- Sr. Moody…
Moody apoiou-se na porta do carro.
- Sabe o que me estava despertando curiosidade em seu probleminha, Doutor? É que parecia
que a cada cinco minutos alguém estava tentando matá-lo… talvez. E esse "talvez" me fascinava. Não havia nada que pudéssemos fazer enquanto não descobríssemos se alguém estava realmente querendo transformá-lo num cadáver ou se simplesmente o senhor estava ficando maluco.
- Mas as Catskillls… - disse Judd, debilmente.
- Ora, Doutor, Jamais pensei que fosse mesmo para as Catskills.
Moody abriu a porta do carro.
- Saia, Doutor.
Aturdido, Judd saiu do carro.
- A viagem foi apenas publicidade. Eu sempre digo que é preciso jogar sangue na água
primeiro quando se quer apanhar um tubarão.
Judd continuava a fitá-lo, sem entender nada.
- Infelizmente nunca conseguiria chegar às Catskills - disse Moody, gentilmente.
Ele foi até a frente do carro e levantou o capô. Judd prostrou-se ao seu lado. Havia três
bastões de dinamite ligados ao distribuidor. Dois fios soltos pendiam da ignição.
- Ia explodir assim que ligasse o carro - disse Moody.
- Mas como pôde…
Moody sorriu.
- Eu já lhe disse que sou dado a insônia. Cheguei aqui por volta da meia-noite. Dei algum
dinheiro ao vigia noturno para sair, e divertir-se um pouco e fiquei esperando nas sombras. E vou ter que dar mais vinte dólares ao vigia noturno. Não quis que o negócio saísse barato.
Judd sentiu uma afeição súbita por aquele homem gordo.
- E viu quem foi?
- Não. Colocaram a dinamite antes de eu chegar. Às seis horas da manhã achei que ninguém
ia aparecer e resolvi dar uma olhada.
Ele apontou para os fios soltos e acrescentou:
- Seus amigos são realmente espertos. Ligaram um segundo fio de maneira que a dinamite
explodisse também se o senhor levantasse o capô totalmente. A mesma coisa aconteceria se ligasse a ignição. Há dinamite bastante para destruir metade da garagem.
Judd sentiu-se subitamente nauseado o estômago embrulhado. Moody fitou-o com uma
expressão de simpatia.
- Anime-se, Doutor. Pense no progresso que já fizemos. Já sabemos duas coisas. Em primeiro
lugar, temos certeza agora de que não está pirado. Em segundo lugar…
Moody fez uma pausa, o sorriso desaparecera-lhe do rosto.
- …Sabemos também que alguém está ansioso por assassiná-lo, Dr. Stevens.
Capítulo 10
Eles estavam sentados na sala de estar do apartamento, conversando. O corpo imenso de
Moody se esparramava sobre o sofá. Moody guardara todas as peças da bomba desarmada na mala do próprio carro.
- Não deveria tê-la deixado no lugar, para que a polícia pudesse examinar? - perguntou Judd.
- Eu sempre achei que a coisa que mais confunde no mundo é o excesso de informações.
- Mas isso iria provar ao tenente McGreavy que estou dizendo a verdade!
- Iria mesmo?
Judd compreendeu imediatamente. McGravy certamente iria pensar que fora ele próprio quem
colocara os bastões de dinamite. Não obstante, parecia-lhe estranho que um detetive particular
ocultasse informações à polícia. Sua impressão era de que Moody se parecia com um iceberg. A maior parte do homem estava oculta sob a superfície, por trás daquela fachada de gordo bonachão de cidade pequena. Naquele momento, ouvindo Moody falar, Judd sentiu-se exultante. Ele não era um insano e o mundo estava subitamente repleto de terríveis coincidências. Havia um assassino à solta. Um assassino de carne e osso. E, por alguma razão ignorada, ele escolhera Judd como seu alvo.
"Meu Deus", pensou Judd, "como nossos egos podem ser facilmente destruídos"! Alguns minutos atrás ele estava pronto a acreditar que era um paranóico. A sua dívida para com Moody era incalculável.
- …Afinal, o senhor é médico - estava dizendo Moody. - Eu sou apenas um velho detetive.
E sempre digo que se deve ir à colméia quando se quer uma abelha.
Judd estava começando a compreender o jargão de Moody.
- Quer saber a minha opinião sobre o tipo do homem ou homens que estamos procurando?
- Isso mesmo. Estamos às voltas com um maníaco homicida que fugiu de um hospício ou
temos que procurar mais fundo?
- Temos que ir mais fundo - disse Judd rapidamente.
- O que o leva a pensar assim, Doutor?
- Antes de mais nada, porque foram dois homens que tentaram arrombar meu consultório
ontem à noite… Eu ainda poderia engolir a história de lunático, mais dois lunáticos trabalhando juntos é demais!
Moody assentiu, aprovando o raciocínio.
- Entendido. Continue.
- Em segundo lugar, porque uma mente desequilibrada pode ter uma obsessão, mas age de
acordo com um padrão determinado. Não sei por que John Hanson e Carol Roberts foram
assassinados. Mas, a menos que eu esteja completamente errado, estou marcado para ser a terceira e última vítima.
- O que o leva a pensar que será o último?
- Porque se houvesse outros para serem assassinados, eles teriam ido apanhá-los assim que
fracassaram na primeira tentativa de matar-me. Em vez disso, porém, eles estão-se concentrando exclusivamente na tentativa de liquidar-me.
- Sabe, Doutor, acho que tem uma inclinação natural para o trabalho de detetive.
Judd franziu o rosto.
- Mas há diversas coisas que não fazem o menor sentido.
- Tais como?
- Em primeiro lugar, o motivo. Não sei de ninguém que…
- Falaremos disso depois. O que mais?
- Se alguém está realmente tão ansioso por matar-me, já poderia tê-lo feito facilmente.
Quando aquele carro me atropelou, tudo que o motorista precisava fazer era dar macha à ré e passar com o carro por cima de mim. Eu estava desmaiado.
- Ah! É nesse ponto que o Sr. Benson entra na história.
Judd fitou-o, sem entender.
- O Sr. Benson é a testemunha do acidente - explicou Moody, benevolente. - Descobri o
nome dele no relatório da polícia sobre o acidente e fui procurá-lo assim que o senhor saiu do meu escritório. O táxi custou-me três dólares e cinqüenta, Certo?
Judd assentiu, aturdido demais para conseguir falar.
- O Sr. Benson… Devo dizer que ele é peleiro. Tem coisas muito bonitas. Se quiser comprar
algo para a sua namorada, fale comigo que lhe arranjarei um desconto especial. Seja como for, na terça-feira, o dia do acidente, ele estava saindo de um prédio onde a sua cunhada trabalha. Tinha levado alguns remédios para o seu irmão Matthew, que é vendedor de Bíblias e estava muito gripado.
A cunhada ia levar os remédios para casa.
Judd controlou a impaciência. Se Norman Z. Moody sentisse vontade de recitar toda a
Declaração de Independência, ele escutaria sem reclamar.
- O Sr. Benson deixou os remédios com a cunhada e estava saindo do prédio quando a
limusine avançou em sua direção. É claro que ele não sabia na ocasião, que se tratava do senhor, Doutor.
Judd simplesmente assentiu.
- O carro andava um pouco de lado. Do ponto em que estava, Benson teve a impressão que
derrapava. Quando viu o carro atropelá-lo, saiu correndo em sua direção. A limusine recuou para atropelá-lo novamente. O motorista viu então o Sr. Benson e fugiu em disparada.
Judd engoliu em seco.
- Então quer dizer que se o Sr. Benson por acaso não estivesse por perto…
- Isso mesmo. Nós dois não nos teríamos conhecido. Os rapazes não estão brincando em
serviço. Estão mesmo a fim de liquidá-lo, Doutor.
- O que me diz do ataque ao meu consultório? Porque é que eles simplesmente não
derrubaram a porta?
Moody ficou em silêncio por um momento.
- Não dá para entender. Eles poderiam ter arrombado a porta e matado o senhor e quem quer
que estivesse em sua companhia, sem que ninguém os visse. Mas foram embora quando pensaram que o senhor não estava sozinho. Isso não combina com o resto da história.
Moody ficou novamente em silêncio, mordendo o lábio inferior.
- A menos…
- A menos o quê?
Uma expressão especulativa surgiu no rosto de Moody.
- Por enquanto vou guardar só para mim. Tive uma idéia, mas não faz sentido enquanto não
encontrarmos um motivo.
Judd sacudiu os ombros, desolado.
- Não sei de ninguém que tenha motivo para matar-me.
Moody pensou no assunto por um momento.
- Será que não partilhou nenhum segredo com o tal de Hanson e com Carol Roberts, Doutor?
Algo que somente os três soubessem?
Judd sacudiu a cabeça.
- Os únicos segredos que tenho são segredos profissionais, a respeito dos meus pacientes. E
não há absolutamente nada nos casos deles que possa justificar um homicídio. Nenhum de meus pacientes é agente secreto, espião estrangeiro ou foragido da justiça. São pessoas comuns, donas-de-casa, profissionais liberais, altos funcionários de grandes organizações, pessoas com problemas que não conseguem enfrentar sozinhas.
Moody fitou-o com uma expressão inocente.
- Tem certeza de que não há nenhum maníaco homicida entre os seus pacientes, Doutor?
A voz de Judd era firme:
- Certeza absoluta. Ontem talvez eu não tivesse muita certeza. Para dizer a verdade, estava
começando a pensar que eu próprio sofria de paranóia e que o senhor procurava confirmar essa teoria naquele nosso primeiro encontro.
Moody sorriu.
- A idéia me passou pela cabeça. Depois que me telefonou marcando o encontro, andei
fazendo umas averiguações. Telefonei para dois médicos, amigos meus. O senhor tem uma reputação e tanto, Doutor.
Então o "Sr. Stevenson" fazia parte da fachada de caipira que Moody assumia.
- Se formos procurar a polícia agora com o que já sabemos - disse Judd -, poderemos, pelo
menos, conseguir com que eles se ponham à procura de quem está por trás disso tudo.
Moody fitou-o com uma expressão um tanto surpresa.
- Acha mesmo? Mas não temos muita coisa para falar, não é mesmo, Doutor?
Era verdade.
- Não quero que fique desanimado. Acho que estamos realmente progredindo. Já
conseguimos diminuir consideravelmente o nosso campo de busca.
Quando Judd falou, havia um tom de frustração em sua voz:
- Claro. Já sabemos agora que pode ser qualquer pessoa dos Estados Unidos.
Moody ficou imóvel por um momento, contemplando o teto. Finalmente sacudiu a cabeça
e murmurou:
- Famílias…
- Famílias? - Acredito quando me diz que conhece os seus pacientes por dentro e por fora,
Doutor. Se me diz que eles não poderiam cometer os crimes, eu tenho que acreditar. Afinal de contas, é a sua colméia, e é quem cuida das abelhas.
Ele recostou-se no sofá e acrescentou:
- Mas diga-me uma coisa: costuma entrevistar as famílias dos seus pacientes?
- Não. Às vezes a família nem mesmo sabe que o paciente está sendo submetido à psicanálise.
Moody exibiu uma expressão de satisfação.
- Aí está!
- Está pensando que um parente de algum dos meus pacientes esteja tentando me matar?
- É possível.
- Nenhum teria mais motivos que qualquer um dos meus pacientes. Provavelmente até menos.
Moody levantou-se com bastante dificuldade.
- Nunca se sabe, não é mesmo, Doutor? Vou dizer o que gostaria que fizesse: arrume-me uma
lista de todos os pacientes que teve nas últimas quatro ou cinco semanas. É impossível?
Judd hesitou.
- Não - disse ele finalmente.
- Está pensando nessa história do relacionamento confidencial entre médico e paciente? Creio
que está na hora de contornar um pouco essa regra. A sua vida está em jogo.
- Acho que está na pista errada. O que tem acontecido não possui a menor relação com meus
pacientes ou suas famílias. Se houvesse algum caso de insanidade nas famílias dos meus pacientes, eu já teria descoberto na psicanálise.
Judd sacudiu a cabeça e acrescentou:
- Lamento, Sr. Moody, mas tenho que proteger os meus pacientes.
- Disse que não havia em seu arquivo nada de importante.
- Nada que seja importante para nós.
Judd pensou em algumas das revelações que constavam em seus arquivos. John Hanson
apanhando marinheiros nos bares de invertidos da Terceira Avenida. Teri Washburn fazendo amor com todos os músicos do conjunto que fora tocar em seu apartamento. Evelyn Warshak, prostituta de catorze anos…
- Lamento - disse ele novamente - mas não posso mostrar-lhe os meus arquivos…
Moody sacudiu os ombros.
- Está certo. Mas sendo assim, terá de fazer uma parte do trabalho para mim.
- O que deseja que eu faça?
- Pegue as gravações de todas as pessoas que se deitaram em seu divã no último mês. Ouça
atentamente cada uma. Só que desta vez não deve escutar como médico e sim como detetive. Procure alguma coisa que lhe pareça estranha e inexplicável.
- É o que sempre faço. Meu trabalho é justamente esse.
- Pois faça-o novamente. E fique bastante atento. Não quero perdê-lo até que este caso esteja
resolvido.
Pegou o sobretudo, lutando para entrar dentro dele. Parecia executar os passos de um balé
de elefante. Diz-se que os homens gordos têm movimentos graciosos, pensou Judd. Mas o Sr. Moody não se incluía nessa categoria.
- Sabe o que eu acho mais estranho em toda essa história, Doutor?
- O que é?
- É o fato de dois homens terem tentado arrombar o seu consultório. Talvez um homem
pudesse ter essa ânsia incontrolável de matá-lo… mas porquê dois?
- Não sei.
Moody ficou pensativo por um longo tempo. Exclamou de repente:
- Por Deus!
- O que é?
- Acabo de ter uma idéia. Se eu estiver certo, pode ser que haja mais de dois homens nessa
história.
Judd mostrou-se incrédulo.
- Está querendo dizer que pode haver todo um bando de maníacos atrás de mim? Mas isso
não faz sentido!
Havia uma expressão de excitamento crescente no rosto de Moody.
- Doutor, tenho a impressão de que sei quem é o juiz neste jogo. Ainda não sei como nem
porquê…,. mas talvez eu possa saber quem.
- Quem?
Moody sacudiu a cabeça.
- O senhor me mandaria para um hospício se eu lhe dissesse. Eu sempre digo que se precisa
ter certeza de que a arma está de fato carregada antes de se começar a disparar. Quero antes praticar um pouco de tiro ao alvo. Se eu tiver certeza de que estou na trilha certa, virei contar-lhe tudo.
- Espero que esteja - disse Judd, ansioso.
- Não, Doutor. Se aprecia a sua vida, um pouco que seja, deve rezar para que eu esteja
errado.
E com isso Moody partiu.
Judd tomou um táxi e seguiu para o seu consultório.
Era meio-dia de sexta-feira. Faltando apenas três dias para o Natal, as ruas estavam apinhadas
de pessoas que faziam compras de última hora, encolhendo-se contra o vento gelado que soprava no rio Hudson. As vitrinas das lojas eram festivas e iluminadas, com árvores de Natal e figuras esculpidas da Natividade, Paz na Terra. Nata, Elizabeth e o filho que não chegara a nascer. Se conseguisse sobreviver, não estaria longe o dia que alcançaria a sua própria paz, libertando-se de um passado morto e enterrado. Ele sabia que, com Anne, teria… Judd conteve-se firmemente. De que adiantava
fazer fantasias com uma mulher casada que estava perto de ir para longe com o marido, a quem ela amava?
O táxi parou diante do edifício em que ficava seu consultório e Judd saltou, olhando
nervosamente ao redor. Mas o que ele devia procurar? Não tinha a menor idéia de qual seria a arma assassina e nem de quem a estaria empunhando.
Chegando ao consultório, Judd trancou cuidadosamente a porta externa, depois foi ao
armário embutido onde guardava as gravações das sessões e abriu-o. As fitas estavam arquivadas cronologicamente, sob o nome de cada paciente. Ele tirou as mais recentes e levou-as para o gravador. Com todas as consultas daquele dia canceladas, poderia concentrar-se inteiramente em tentar descobrir alguma pista que pudesse envolver amigos e parentes dos seus pacientes. Judd tinha a impressão de que a sugestão de Moody era inútil, mas passara a ter respeito bastante pelo detetive particular para ignorá-la.
Ao colocar a primeira fita no gravador, recordou-se da última vez em que usava o gravador.
"Será que fora mesmo apenas na noite anterior"? A recordação produziu nele uma sensação aguda de pesadelo. Alguém planeara assassiná-lo naquela sala, o mesmo lugar em que haviam assassinado Carol.
Judd compreendeu subitamente que nem se lembrara dos pacientes da clínica gratuita onde
trabalhava uma vez por semana. Provavelmente porque os assassinos tinham aparecido no seu
consultório e não no hospital. Mesmo assim… Ele foi até à parte do armário embutido onde estava escrito "CLÍNICA", examinou as fitas e selecionou meia dúzia. Pôs a primeira no gravador.
Rose Graham.
- …um acidente, Doutor. Nancy chora demais. Está sempre gemendo. Assim, quando bato
nela, é para o seu próprio bem, entende?
- Já procurou alguma vez descobrir por que Nancy chora tanto? - indagou a voz de Judd.
- É porque ela é mimada. O pai estragou-a completamente e depois foi embora e nos deixou.
Nancy sempre se julgou a filhinha do papai. Mas como Harry poderia amá-la, se nos abandonou desse jeito?
- Você e Harry nunca se casaram, não é?
- Bem… nós vivíamos maritalmente. É assim que chamam, não é? ïamo-nos casar.
- Há quanto tempo viviam juntos?
- Quatro anos.
- Quanto tempo depois de Harry tê-la abandonado é que você quebrou o braço de Nancy?
- Acho que uma semana depois. Eu não tinha intenção de machucá-la. Mas ela não parava de
se lamuriar e acabei pegando a vara da cortina e batendo nela.
- Acha que Harry amava Nancy mais do que a você?
- Não. Harry era louco por mim.
- Então por que acha que ele a deixou?
- Porque ele era homem. E sabe como os homens são? Uns animais! Todos vocês! Deviam
ser massacrados como porcos!
Soluços.
Judd desligou o gravador e ficou pensando em Rose Graham. Ela era uma misantropa
psicopata e quase matara de pancada a filha de seis anos, em duas ocasiões. Mas os padrões dos crimes não se ajustavam à psicose de Rose Grahan.
Ele pôs outra fita de pacientes da Clínica no gravador.
Alexandre Fallon.
- A polícia diz que atacou o Sr. Champion com uma faca, Sr. Fallon?
- Fiz apenas o que me mandaram.
- Alguém o mandou matar o Sr. Champiom?
- Ele me disse para fazê-lo.
- Ele quem?
- Deus.
- Porque é que Deus o mandou matar o sr. Champion?
- Porque Champion é um homem do diabo. Ele é um ator. Eu o vi no palco. Beijou aquela
mulher, aquela atriz, na frente de todo o mundo. Beijou-a e…
Silêncio.
- Continue.
- Segurou-lhe… a teta.
- E isso o perturbou?
- Mas claro que sim! Deixou-me transtornado. Será que não compreende o que aquilo
significava? Que ele tinha um conhecimento carnal dela! Quando saí do teatro, a sensação que tive foi de que acabara de voltar de Sodoma e Gomorra. Eles tinham que ser punidos.
- E então decidiu matá-lo?
- Não fui eu quem decidiu. Deus é quem o fez. Eu apenas executei as Suas ordens.
- Deus lhe fala com muita freqüência?
- Somente quando há trabalho Seu para ser feito. Ele me escolheu como Seu instrumento
porque sou puro. Sabe o que me torna puro? E sabe o que é a coisa mais purificadora do mundo?
Exterminar os maus.
Alexandre Fallon. Trinta e cinco anos. Assistente de padeiro. Fora enviado para um hospício
durante seis meses e depois solto. Será que Deus lhe ordenara que destruísse Hanson, um
homossexual, e Carol, uma antiga prostituta, além de Judd, o benfeitor de ambos? Judd concluiu que era improvável. Os processos mentais de Fallon obedeciam a espasmos breves e dolorosos. Quem quer que tivesse planeado os crimes, era inegavelmente uma pessoa altamente eficiente e organizada.
Ele tocou diversas fitas dos pacientes da clínica, mas nenhuma delas se ajustava ao padrão
que estava procurando. Não, não era nenhum paciente da clínica.