Repassou então os pacientes do consultório e um nome logo lhe despertou a atenção.

Skeet Gibson.

Pôs a fita no gravador.

- Bom dia, Doutor. O que acha desse lindo dia que lhe preparei especialmente?

- Estou-me sentindo bem hoje.

- Se eu me estivesse sentindo melhor, eles certamente me iriam trancafiar. Foi ao meu

espetáculo ontem à noite?

- Não me foi possível. Lamento.

- Foi um estouro. Jack Gould chamou-me de "o maior comediante do mundo". E quem sou

eu para discutir com um gênio Jack Gould? Devia ter ouvido o público. Eles aplaudiram freneticamente. Sabe o que isso prova?

- Que eles sabem ler os cartões de "Aplausos"?

- É muito esperto, seu diabo! É disso que eu gosto: um "espreme-crânios" que tem senso de

humor. O último que eu tive era um chato! Tinha uma barba imensa que realmente me incomodava.

- Por quê?

- Porque era uma mulher.

Risadas. - Eu o peguei desta vez, não é? Agora falando sério, uma das razões pelas quais

estou-me sentindo tão bem hoje é que acabei de investir um milhão de dólares para ajudar as crianças em Biafra.

- Não é de admirar que se sinta bem.

- Pode apostar que sim. A história saiu nas primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro.

- E isso é muito importante?


- Como assim? Quantos caras acha que podem investir tanto dinheiro assim? Tem que

começar a tocar a sua buzina, Peter Pan. Estou na maior satisfação de poder investir um dinheiro desses.

- Está falando o tempo todo em investir. O que quer dizer é doar, não é?

- Dá tudo no mesmo. A gente emprega um milhão de dólares e logo estão todos nos beijando

os pés. Eu já lhe disse que hoje é meu aniversário de casamento?

- Não. Parabéns!

- Obrigado. Quinze anos espetaculares. Acho que nunca conheceu Sally. É a rapariga mais

maravilhosa que já caminhou por esta terra de Deus. Sabe como os parentes da mulher podem ser um incômodo, não é? Pois Sally tem dois irmãos, Ben e Charley. Eu já lhe falei a respeito deles. Ben é o principal redator do meu programa de televisão e Charley é meu produtor. Eles são uns gênios!

Já tem sete anos que estou no ar. E em nenhum momento deixamos de estar entre os dez programas de maior audiência. Fui muito esperto em casar-me e entrar numa família como essa, não acha? A maioria das mulheres fica gorda e desleixada depois que agarra o marido. Mas Sally, graças a Deus, está mais esbelta agora do que no dia em que nos casamos. Que mulher! Tem um cigarro aí, Doutor?

- Tome. Pensei que tivesse parado de fumar.

- Eu apenas quis demonstrar para mim mesmo que ainda tinha a velha força de vontade, e por

isso parei. Mas agora voltei a fumar porque quero… Fiz ontem um novo contrato com a televisão. E realmente passei-os para trás. Minha hora já acabou?

- Ainda não. Por que está tão inquieto, Skeet?

- Para lhe dizer a verdade, queridinho, estou em tão boa forma que nem mesmo sei por que

continuo a vir aqui!

- Não tem problemas?

- Eu? O mundo é minha ostra e eu sou "Diamond Jim Brady". Tenho que agradecer-lhe,

Doutor. Ajudou-me de verdade. É o meu homem. Tenho a impressão de que o senhor ganha tanto dinheiro que até me dá vontade de estabelecer-me por conta própria no seu ramo. O que acha da idéia? Isso me lembra a história de um cara que vai consultar um "espreme-crânios", mas está tão nervoso que apenas se deita no divã e não diz coisa alguma. Ao final de uma hora, o médico diz que são cinqüenta dólares. A mesma cena se repete durante dois anos inteirinhos, sem que o cara fale coisa alguma. Mas, finalmente, o cara resolve abrir a boca: "Doutor, posso fazer-lhe uma pergunta?"

Diz o médico: "Mas é claro!" E o camaradinha diz: "Não gostaria de ter um sócio?"

Risadas.

- Tem uma aspirina ou algo assim?

- Claro! Está com outra das suas dores de cabeça?

- Não é nada que eu não possa controlar, companheiro… Obrigado. Isso vai resolver.

- O que acha que provoca essas suas dores de cabeça?

- Apenas a tensão normal do show-business… Esta tarde vamos fazer a leitura do script do

próximo programa.

- E isso o deixa nervoso?

- A mim? Mas claro que não! Por que eu deveria ficar nervoso? Se as minhas piadas são

horríveis, eu faço uma carranca e pisco para o público e eles engolem direitinho. Não importa o quão nojento seja um programa, o velho Skeet sempre sai cheirando como uma rosa!

- Por que acha que tem essas dores de cabeça todas as semanas?

- Como diabo eu vou saber? O senhor que é médico é que deve dizer-me. Eu não lhe pago

para passar uma hora sentado em cima desse traseiro gordo a me fazer perguntas estúpidas. Meu Deus, se um idiota como você não pode curar uma simples dor de cabeça, então eles não deveriam deixá-lo à solta confundindo a vida das pessoas. Onde é que conseguiu o seu diploma de médico?

Numa escola de veterinária? Eu não lhe confiaria os meus gatos! Não passa de um miserável

charlatão! A única razão que me fez procurá-lo foi a insistência de Sally. Só assim consegui me livrar dela. Conhece a minha definição de Inferno? É estar casado com uma mulher feia e esquelética durante quinze anos. Se está procurando mais alguns otários para explorar, fale com os dois irmãos de Sally, Ben e Charley. Ben é o principal redator do meu programa, mas não sabe qual é a ponta do lápis com que se pode escrever. E Charley é ainda mais estúpido. Eu gostaria de que todos caíssem mortos. Só estão a fim de me explorar. E pensa que eu gosto de você? Muito pelo contrário.

Não passa de um nojento! É um presunçoso, sentado aí a olhar tudo de cima. Não tenho nenhum problema, não é? E sabe porquê? Porque não existe de verdade. Tudo o que é passar o dia arriado nesse traseiro gordo a roubar o dinheiro das pessoas doentes. Pois bem, seu filho da puta, eu vou destruí-lo. Vou denunciá-lo à Associação Médica Americana…

Silêncio.

- Eu gostaria de não ter que ir à maldita leitura…

Silêncio.

- Continue firme aqui, queridinho. Até a próxima semana.

Judd desligou o gravador. Skeet Gibson, atualmente o mais famoso comediante da América,

devia ter sido internado dez anos atrás. Suas diversões eram espancar coristas jovens e louras e provocar brigas de bar. Skeet era um homem pequeno, mas começara a vida como lutador de boxe e sabia como machucar os outros. Um dos seus desportos preferidos era entrar num bar de efeminados, atrair um homossexual inocente para o banheiro e ali espancá-lo impiedosamente. Skeet fora agarrado pela polícia por diversas vezes, mas os incidentes tinham sido sempre abafados. Afinal de contas ele era o maior comediante da América. Skeet era paranóico o bastante para querer matar, e era bem capaz de matar num acesso de raiva. Mas Judd não achava que ele fosse capaz de executar um plano de vingança a sangue-frio. E Judd tinha certeza de que essa era a chave para a solução do problema. Quem quer que estava querendo matá-lo, não agia no auge de alguma emoção, mas metodicamente e com sangue-frio. Era um louco. Que não se comportava como tal.


Capítulo 11


O telefone tocou. Era o serviço de recados. Eles haviam conseguido falar com todos os seus

pacientes, à exceção de Anne Blake. Judd agradeceu à telefonista e desligou.

"Então Anne viria naquele dia"! Judd ficou perturbado ao perceber como se sentia

irracionalmente feliz pela perspectiva de vê-la novamente. Mas tinha que lembrar-se de que ela só estava vindo porque ele lhe pedira, como médico. O quanto ele sabia a respeito dela… e quão pouco!

Ele pôs uma das fitas das sessões de Anne no gravador e ficou escutando. Era uma das

primeiras visitas dela.

- Está à vontade, Srª Blake?

- Estou sim, obrigada.

- Relaxada?

- Sim.

- Está com os punhos cerrados.

- Talvez eu esteja um pouco tensa.

Um longo silêncio.

- Fale-me a respeito da sua vida em casa. Está casada há seis meses, não é?

- É, sim.

- Continue.

- Sou casada com um homem maravilhoso. Moramos numa linda casa.

- Como é a casa?

- No estilo rural francês… É uma propriedade antiga, adorável! Há um caminho longo e

sinuoso que leva até a casa. No alto do telhado fica um galo de bronze muito velho e engraçado, sem cauda. Creio que algum caçador arrancou-a com um tiro há muito tempo atrás. A propriedade possui cinco acres, a maior parte coberta de bosques. Costumo dar longos passeios. É como murar no campo.

- Gosta do campo?

- Muito.

- Seu marido também gosta?

- Creio que sim.

- Um homem não costuma comprar uma propriedade de cinco acres a menos que goste.

- Ele me ama. De qualquer maneira, teria comprado a casa para mim. É um homem muito

generoso.

- Vamos falar a respeito dele.

Silêncio.

- Ele é bem-apessoado?

- Anthony é bem bonito!

Judd sentiu uma ponta de ciúmes, irracional e nada profissional.

- São compatíveis fisicamente?

Era como língua apalpando um dente dolorido.

- Somos.

Judd sabia como ela deveria ser na cama: excitante, feminina, entregando-se toda. "Céus",

pensou ele, "mude logo de assunto"!

- Quer ter filhos?

- Quero.

- Seu marido também quer?

- Claro que sim.

Um longo silêncio, durante o qual só se ouvia o roçar da fita no gravador. Depois:

- Sra. Blake, veio procurar-me porque disse ter um problema desesperador. Tem relação com

seu marido, não é?

Silêncio.

- Vou pressupor que sim. Pelo que me disse antes, a senhora e seu marido se amam. Ambos

são fieis, ambos querem filhos. Vivem numa linda casa e seu marido é um homem de boa aparência e bem-sucedido nos negócios. Ele lhe faz todas as vontades. E está casada há apenas seis meses.

Infelizmente está parecendo a velha piada: "Mas qual é o meu problema, Doutor?"

Silêncio novamente. Só se ouvia o zumbido impessoal da fita. Finalmente ela falou:

- É… é um pouco difícil para mim falar a esse respeito. Pensei que poderia conversar com um

estranho, mas…

Judd recordou-se neste ponto, nitidamente, de como ela se virava no divã para fitá-lo com

aqueles olhos grandes e enigmáticos. Ela começara então a falar mais depressa, procurando superar as barreiras que a mantinham em silêncio.

- … mas vejo agora que é muito mais difícil. É que ouvi algumas coisas e… Provavelmente

eu tirei as conclusões erradas.

- É alguma coisa relacionada com a vida pessoal do seu marido? Mulher?

- Não.

- Com a vida profissional dele?

- Sim…

- Acha que seu marido mentiu a respeito de alguma coisa? Tentou ficar com a parte do leão

em algum negócio?

- Mais ou menos isso.

Judd pisava em terreno mais firme.

- E isso afetou a confiança que a senhora depositava nele. Mostrou-lhe um lado de seu

marido que nunca tinha visto antes.

- Eu… eu… eu não posso falar sobre isso. Sinto que sou desleal para com ele só em ter vindo

aqui. Por favor, Dr. Stevens, não me pergunte mais nada hoje.

E assim terminara aquela sessão, Judd desligou o gravador.

Então o marido de Anne fizera algum negócio não muito honesto! Talvez ele sonegasse os

impostos. Ou tivesse levado alguém a falência. Era natural que Anne ficasse transtornada. Ela era uma mulher sensível. Sua fé no marido ficaria abalada.

Judd pensou no marido de Anne como um possível suspeito. Ele estava no negócio de

construções. Judd não o conhecia pessoalmente. Mas, qualquer que fosse o problema dele, nem com muita imaginação se podia aceitar que incluísse John Hanson, Carol Roberts ou o próprio Judd. E o que dizer da própria Anne? Ela não poderia ser uma psicopata? Uma maníaca homicida? Judd recostou-se na cadeira e procurou analisá-la objetivamente.

Ele nada sabia a respeito de Anne, exceto o que ela própria lhe contara. Seus antecedentes

podiam ser fictícios, ela poderia ter inventado tudo. Mas o que teria a ganhar com isso? Se era

alguma charada elaborada para encobrir um assassinato, teria que haver uma motivação. A lembrança do rosto e da voz de Ann dominaram a mente de Judd, e ele compreendeu que ela não poderia estar envolvida naquilo. Ele era capaz de apostar a sua própria vida. A ironia da situação fê-lo sorrir.

Judd pegou as fitas de Teri Washburn. Talvez houvesse nelas alguma coisa que tivesse

deixado escapar.

Recentemente Teri andara tendo algumas sessões extras, a seu próprio pedido. Será que ela

estaria sofrendo alguma nova pressão que não lhe contara? Devido à incessante preocupação de Teri com sexo, era muito difícil determinar acuradamente nos seus progressos. Mas por que ela pedira subitamente, e com insistência, para passar mais tempo com ele?

Judd pegou uma das fitas ao acaso e colocou-a no gravador.

- Vamos falar a respeito dos seus casamentos, Teri. Já se casou cinco vezes, não é?

- Seis. Mas quem se vai importar em contar?

- Foi fiel aos seus maridos?

Risadas.

- Está querendo demais de mim. Não há um único homem capaz de satisfazer-me. É um

problema físico.

- Como assim?

- É a maneira como eu sou feita. Tudo o que sou é um buraco quente que tem que ser

enchido o tempo todo.

- Acredita mesmo nisso?

- Que o buraco tem que estar sempre cheio?

- Que você é diferente, fisicamente, das outras mulheres?

- Mas claro que sou. Foi o próprio médico do estúdio quem me disse. É um problema

glandular ou algo assim.

Uma pausa.

- Ele era uma péssima trepada.

- Já verifiquei todos os seus exames. Fisiologicamente seu corpo é normal, sob todos os

aspectos.

- Ao inferno com os exames, Charley. Por que não descobre por si mesmo?

- Já esteve apaixonada alguma vez, Teri?

- Posso estar apaixonada por você.

Silêncio.

- Não me olhe desse jeito! Não posso fazer nada. Eu já lhe disse que sou assim. É a maneira

como sou constituída. Estou sempre faminta.

- Acredito em você. Mas não é seu corpo que está faminto e sim as suas emoções.

- Nunca ninguém trepou com as minhas emoções. Quer experimentar?

- Não.

- O que quer então?

- Ajudá-la.

- Por que não vem até aqui e senta-se ao meu lado?

- Basta por hoje.

Judd desligou o gravador. Recordou-se do diálogo que haviam travado quando Teri falara

de sua carreira como grande estrela e ele perguntara por que ela deixara Hollywood.

- Dei uma trepada num palhaço antipático, numa festa em que estavam todos bêbados.

Acontece que ele era o chefão e mandou que me expulsassem de Hollywood com um chute no meu traseiro polaco.

Judd não insistira no assunto porque, na ocasião, estava mais interessado nos antecedentes

familiares de Teri. O assunto nunca mais voltara à baila. Agora ele sentia uma dúvida inquietante.

Deveria ter sondado mais um pouco. Nunca tivera por Hollywood um interesse diferente do que o que o Dr. Louis Leaky ou Margaret Mead pudessem ter pelos nativos da Patagônia. Quem poderia saber alguma coisa a respeito de Teri Washburn, a antiga e glamurosa estrela?

Norah Hadley era fanática por cinema. Judd vira, certa vez, pilhas de revistas de cinema na

casa deles e zombara de Peter por causa disso. Norah passara a noite inteira defendendo Hollywood.

Judd pegou o telefone e discou.

Norah atendeu.

- Olá - disse Judd.

- Judd!

A voz dela era cordial e afetuosa.

- Está telefonando para dizer que virá ao nosso jantar, não é?

- Falaremos disso daqui a pouco.

- É melhor que você venha. Prometi a Ingrid. Ela é linda!

Judd não tinha a menor dúvida de que era mesmo, mas não da mesma maneira como Anne!

- Se você romper outro compromisso com ela, teremos que entrar em guerra com a Suécia.

- Isso não acontecerá novamente.

- Você já se recuperou do acidente?

- Já.

- Foi uma coisa horrível…

Havia um tom hesitante na voz de Norah.

- Judd… sobre o dia de Natal. Peter e eu gostaríamos que viesse cear conosco. Por favor…

Judd sentiu a contração familiar no peito. Todos os anos acontecia a mesma coisa. Peter e

Norah eram os seus melhores amigos e detestavam vê-lo passar todos os natais sozinho, caminhando entre estranhos, perdendo-se no meio da multidão desconhecida, impelindo seu corpo a manter-se em movimento até ficar exausto demais para pensar. Era como se ele estivesse celebrando alguma terrível missa negra para os mortos. Permitia que a dor se apossasse dele e o dilacerasse, penitenciando-se em algum ritual antigo sobre o qual não tinha o menor controle. "Você está dramatizando as coisas", disse Judd para si mesmo.

- Judd…

- Desculpe, Norah. Talvez no próximo Natal…

Ela procurou não demonstrar desapontamento.

- Não há problema. Direi a Peter.

- Obrigado.

Judd recordou-se subitamente do motivo pelo qual telefonara. - Norah, você sabe quem é Teri

Washburn?

- A Teri Washburn? A estrela? Por que está perguntando?

- Eu… eu a vi em Madison Avenue esta manhã.

- Em pessoa? Está falando sério?

Norah parecia uma criança ansiosa.

- Como ela parece? Velha? Jovem? Gorda? Magra?

- Está muito bem. Ela foi uma grande estrela, não foi?

- Se foi? Ela foi a maior de todas… e em todos os sentidos, se entende o que estou querendo

dizer.

- Por que será que ela deixou Hollywood?

- Não foi exatamente assim. Ela não deixou Hollywood.

Então Teri lhe contara a verdade. Judd sentiu-se um pouco melhor.

- Vocês, médicos, vivem com a cabeça enterrada na areia. Teri Washburn esteve envolvida

num dos maiores escândalos da história de Hollywood.

- É mesmo? O que houve?

- Ela assassinou o amante.


Capítulo 12


Começara outra vez a nevar. Os ruídos do tráfego vinham flutuando da rua, quinze andares

abaixo, abafados pelos flocos brancos que dançavam no vento gelado. Numa sala acesa, do outro lado da rua, Judd pôde ver o rosto vago de uma secretária.

- Tem certeza, Norah?

- Quando se trata de Hollywood, querido, você está falando com uma enciclopédia

ambulante. Teri estava vivendo com o chefão dos Continental Studios, mas dormia também com um assistente do diretor. Uma noite ela o surpreendeu enganando-a e apunhalou-o. O chefão do estúdio usou de toda a sua influência, subornando muita gente para abafar o caso. A morte foi classificada de acidental. Cumprindo sua parte no acordo, Teri deixou Hollywood e nunca mais voltou lá.

Judd ficou olhando para o telefone, aturdido.

- Você ainda está-me ouvindo, Judd?

- Estou.

- O que houve? Você parece preocupado…

- Onde foi que ouviu tudo isso?

- Onde foi que ouvi? Mas saiu em todos os jornais e nas revistas de cinema! Todo mundo

soube da História.

Menos Judd.

- Obrigado, Norah. Dê lembranças minhas a Peter.

Ele desligou. Então fora aquele o "pequeno incidente"! Teri Washburn assassinara um homem

e nunca lhe dissera coisa alguma a esse respeito. E se ela já cometera um assassinato…

Pensativo, Judd pegou num bloco e escreveu: "Teri Washburn". O telefone tocou. Ele

atendeu.

- Dr. Stevens falando.

- Estou telefonando apenas para verificar se está bem.

Era o Detetive Angeli. Sua voz ainda estava rouca do resfriado. Um sentimento de gratidão

dominou Judd. Alguém estava do seu lado.

- Alguma novidade?

Judd hesitou. Não via nenhuma vantagem em guardar segredo a respeito da bomba.

- Eles tentaram novamente.

Judd contou a Angeli a respeito de Moody e da bomba que haviam colocado em seu carro.

- Creio que agora McGravy deve ficar convencido.

- E onde está a bomba? - indagou Angeli, excitado.

- Foi desmontada.

- Foi o quê? - indagou Angeli, incrédulo. - E quem a desmontou?

- Moody. Ele achou que não tinha nenhuma importância.

- Não tinha importância? Para que diabo ele pensa que serve o Departamento de Polícia?

Poderíamos dizer quem colocara a bomba só de olharmos para ela! Temos um arquivo completo no M. O.

- M. O.?

- Modus Operandi. As pessoas criam hábitos. É provável que continuem a fazer uma coisa

da mesma maneira com a fizeram pela primeira vez. Mas creio que não preciso dizer isso.

- Não - disse Judd, pensativo.

É claro que Moody devia saber disso. Será que ele tinha alguma razão para não querer

mostrar a bomba a McGravy?

- Como foi que contratou Moody, Dr. Stevens?

- Encontrei o nome dele nas páginas amarelas.

Soava ridículo, Judd pôde ouvir Angeli engolir em seco.

- Então quer dizer que não sabe absolutamente nada a respeito dele.

- Só sei que confio nele. Por que…

- Neste momento, Doutor, acho que não deveria confiar em ninguém.

- Mas Moody não poderia de jeito nenhum estar ligado às pessoas que querem matar-me.

Afinal de contas, escolhi o nome dele ao acaso, nas páginas amarelas.

- Não me importa como o descobriu. Algo está-me parecendo suspeito nessa história. Moody

diz que preparou uma armadilha para apanhar quem quer que estivesse tentando liquidá-lo. Mas só puxou a armadilha depois que tinham mordido a isca, de forma que ninguém foi apanhado. E depois ele lhe mostrou uma bomba em seu carro, que poderia ter sido colocada por ele mesmo. E assim ganha a sua confiança. Não é isso, Doutor?

- Creio que se podem ver as coisas por esse ângulo. Mas…

- Talvez o seu amigo Moody esteja sendo sincero, mas talvez ele possa estar metido com os

assassinos. De qualquer maneira, gostaria que continuasse a tratá-lo como se de nada desconfiasse, até que possamos descobrir tudo.

Moody contra ele? Era difícil de acreditar. Mas Judd recordou-se das suas dúvidas iniciais,

quando pensara que Moody o estivesse enviando para uma emboscada.

- O que acha que devo fazer? - indagou Judd.

- Que tal o senhor saísse da cidade? Mas sair mesmo!

- Não posso deixar meus pacientes.

- Dr. Stevens…

- Além do mais, isso não resolveria coisa alguma, não é mesmo? Eu nem saberia do que

estaria fugindo. E, quando voltasse, tudo recomeçaria.

Houve um momento de silêncio do outro lado.

- Talvez tenha razão.

Angeli deixou escapar um suspiro, seguido por um prolongado acesso de tosse.

- Quando espera receber mais notícias de Moody?

- Não sei. Ele pensa que tem uma idéia de quem está por trás de tudo.

- Já lhe ocorreu que a pessoa que está por trás desses acontecimentos pode pagar Moody

muito mais do que o senhor? Se Moody lhe pedir para ir encontrá-lo, telefone-me antes. Ficarei em casa, de cama, por mais um ou dois dias. Mas aconteça o que acontecer, Doutor, não se vá encontrar com ele sozinho!

- Acho que está fazendo uma tempestade num copo dágua. Só porque Moody removeu a

bomba do meu carro…

- É mais do que isso, Dr. Stevens. Tenho o pressentimento de que o senhor escolheu o

homem errado.

- Eu telefonarei assim que receber notícias dele - prometeu Judd.

Ele desligou, um pouco abalado. Será que Angeli não estava sendo excessivamente

desconfiado? Era verdade que Moody poderia ter mentido a respeito da bomba, a fim de conquistar a sua confiança. O próximo passo seria então bem fácil. Tudo o que ele teria de fazer seria telefonar para Judd e marcar um encontro em algum lugar deserto, sob o pretexto de que descobrira alguma prova importante. E então… Judd estremeceu. Será que ele se enganara a respeito do caráter de Moody? Recordou a sua reação ao ver Moody pela primeira vez. Julgara-o ineficiente e pouco inteligente. Depois compreendera que essa fachada simplória servia apenas para ocultar um cérebro ágil e esperto. Mas isso não significava que Moody fosse digno de confiança absoluta. E, contudo… Judd ouviu alguém abrir a porta da sala de recepção e olhou para o relógio. Anne!, pensou. Guardou rapidamente as fitas, foi até a porta que dava diretamente de sua sala para o corredor e abriu-a.

Anne estava parada no corredor. Usava um elegante vestido azul-marinho e um chapeuzinho

que emoldurava seu rosto de forma impecável. Estava imersa em seus pensamentos, sem perceber que Judd a observava. Ele estudou-a longamente, impregnando-se de sua beleza, tentando encontrar alguma imperfeição, alguma razão para dizer a si mesma que ela não seria a mulher ideal para ele, que algum dia encontraria uma outra bem melhor. A raposa e as uvas. Freud não era o pai da psiquiatria.

Esopo o era.

- Olá - disse ele finalmente.

Ela ergueu os olhos, surpresa por um momento. Depois sorriu.

- Olá.

- Entre, por favor, Sra. Blake.

Ela passou por ele e entrou na sala, o corpo firme roçando em Judd. Depois virou-se e fitou-o

com aqueles incríveis olhos violeta.

- Já descobriram o motorista que o atropelou?

Havia preocupação no rosto dela, um interesse genuíno. Judd sentiu novamente o desejo

intenso de contar-lhe tudo. Mas sabia que não podia fazê-lo. Na melhor das hipóteses, seria um truque barato para conquistar-lhe a simpatia. Na pior, poderia envolvê-la num perigo desconhecido.

Ele fê-la sentar-se. Anne examinava-lhe atentamente o rosto.

- Parece cansado. Não deveria ter voltado a trabalhar tão cedo!

"Oh, meu Deus!", pensou Judd, ele não conseguiria suportar qualquer manifestação de

simpatia. Não naquele momento. E não partindo de Anne.

- Eu estou bem. Cancelei todas as consultas para hoje, mas meu serviço de recados não

conseguiu localizá-la.

Uma expressão ansiosa surgiu no rosto dela. Com certeza receava ser uma intrusa. Anne, uma

intrusa…

- Lamento muito. Se quiser que eu vá agora…

- Por favor, não se vá - disse Judd rapidamente. - estou contente de que não tenham

conseguido localiza-la.

Aquela seria a última vez que iria vê-la. Judd acrescentou:

- Como está se sentindo?

Ela hesitou, ia dizer alguma coisa, mas depois mudou de idéia e murmurou:

- Um pouco confusa…

Anne fitava-o de maneira estranha. Havia algo em seu olhar que foi atingir uma corda sensível há muito esquecida por Judd, só que ele não conseguia recordar de pronto o que significava. Mas sentiu que dela fluía um grande afeto, um anseio físico intenso. E subitamente Judd compreendeu o que estava fazendo: atribuía as suas próprias emoções a Anne. Por um instante ele se deixara enganar, como qualquer estudante inexperiente de psiquiatria.

- Quando é que embarca para a Europa?

- Na manhã de Natal.

- Vai sozinha com seu marido?

Judd sentiu-se um idiota rematado, que só sabia dizer banalidades. Babbitt, num dia de folga.

- Que lugares vão visitar?

- Estocolmo, Paris, Londres e Roma.

"Eu adoraria mostrar-lhe Roma", pensou Judd. Ele passara um ano na capital italiana, como

interno num hospital americano. Havia ali um fantástico restaurante, bastante antigo, chamado

Cybéle, perto dos jardins de Tivoli. Ficava no alto de uma colina, junto a um antigo templo pagão, onde se podia ficar sentado ao sol, contemplando as centenas de pombos que escureciam o céu sobre os penhascos ensolarados.

E Anne estava a caminho de Roma com o marido!

- Será uma segunda lua-de-mel - disse ela.

Havia alguma tensão na voz dela, mas tão pouco perceptível que Judd talvez a estivesse

imaginando. Um ouvido menos treinado não a teria notado. Judd examinou-a com mais atenção.

Exteriormente ela aparentava calma, mas por baixo ele podia sentir nitidamente a tensão que a

dominava. Se aquela era a imagem de uma jovem apaixonada, de partida para a Europa, numa

segunda lua-de-mel, então algum pedaço do quadro estava faltando.

E subitamente Judd compreendeu o que era.

Anne não estava absolutamente entusiasmada. Ou, se estava, isso era abafado por alguma

outra emoção mais forte. Tristeza? Arrependimento?

Judd compreendeu que ela o olhava fixamente.

- Quanto… quanto tempo vão ficar fora?

Babbitt atacava novamente.

Um sorriso aflorou aos lábios de Anne, como se ela soubesse o que Judd estava pensando.

- Não tenho certeza. Os planos de Anthony são indefinidos.

- Entendo.

Judd baixou os olhos para o tapete, desesperado. Ele precisava pôr um ponto final àquela

cena. Não podia deixar que Anne partisse com a impressão de que ele era um idiota completo. Tinha que mandá-la embora imediatamente.

- Sra Blake… - Sim?

Judd procurou manter-se jovial:

- Na verdade pedi-lhe que voltasse sob um falso pretexto. Não havia necessidade de ver-me

novamente. Eu apenas queria… dizer-lhe adeus.

Estranhamente, de maneira desconcertante, ela pareceu perder um pouco da tensão.

- Eu sei. Eu queria também dizer-lhe adeus.

Havia algo na voz dela que novamente tocou algum ponto sensível de Judd. Anne começou

a levantar-se.

- Judd…

Ela fitou-o, os olhos dos dois se encontraram. Judd viu nos olhos de Anne o que ela devia

estar vendo nos olhos dele. Era o reflexo de uma corrente, um impulso tão forte que era quase físico.

Ele aproximou-se dela, mas parou no meio do caminho. Não podia deixar que ela ficasse envolvida no perigo que o rondava. Quando Judd finalmente falou, sua voz estava quase controlada:

- Mande-me um cartão-postal de Roma.

Ela continuou a fitá-lo, em silêncio, por um longo momento.

- Por favor, Judd, tome cuidado.

Ele assentiu, sem confiar em si o suficiente para falar.

E Anne se foi.

O telefone tocou três vezes antes que Judd ouvisse. Ele atendeu.

- É o senhor, Doutor?

Era Moody. Sua voz quase saía pelo telefone, de tão excitada.

- Está sozinho?

- Estou.

Havia algo estranho no tom de voz de Moody, algo que Judd não conseguia identificar

imediatamente. Seria cautela? Medo?

- Lembra-se de que eu lhe disse que tinha um palpite sobre quem estava por trás de toda essa

história, Doutor?

- Sim.

- Pois eu acertei em cheio.

Judd sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.

- Sabe quem matou Hanson e Carol?

- Sei. Sei quem foi e sei o motivo. O senhor será o próximo, Doutor.

- Diga-me…

- Não pelo telefone. É melhor encontrarmo-nos em algum lugar. Venha sozinho.

Judd olhou para o telefone em sua mão.


"VENHA SOZINHO"!


- Está-me ouvindo, Doutor?

- Estou - disse Judd rapidamente.

O que fora mesmo que Angeli dissera? “Aconteça o que acontecer, Doutor, não vá se”.

encontrar com ele sozinho “!”.

- Por que não podemos nos encontrar em meu consultório? - perguntou Judd, procurando

ganhar tempo.

- Acho que estou sendo seguido. Mas consegui despistá-los. Estou telefonando da Five Star

Meat Packig Company. Fica na Rua 23, a oeste da Décima Avenida, perto das docas.

Judd ainda achava impossível acreditar que Moody lhe estivesse preparando uma armadilha.

Resolveu experimentá-lo.

- Levarei Angeli comigo.

A voz de Moody soou ríspida:

- Não traga ninguém! Venha sozinho!

Não havia mais dúvidas.

Judd pensou no Buda gordo que estava do outro lado da linha. Seu amigo franco estava-lhe

cobrando cinqüenta dólares por dia mais despesas para atraí-lo para uma armadilha. Judd conseguiu manter a voz sob controle:

- Está certo. Irei imediatamente.

Ele tentou disparar o último tiro.

- Tem mesmo certeza de que sabe quem está por trás de tudo isso, Moody?

- Absoluta, Doutor. Já ouviu falar em Don Vinton?

E, com isso, Moody desligou.

Judd ficou imóvel, procurando controlar o turbilhão de emoções que o agitavam. Procurou

o telefone da casa de Angeli e discou. A campainha tocou cinco vezes e Judd entrou em pânico, com medo de que Angeli tivesse saído. Será que deveria ir encontrar-se com Moody sozinho?

Mas finalmente ele ouviu a voz fanhosa de Angeli:

- Alô?

- É Judd Stevens. Moody acabou de telefonar.

- E o que disse ele

Judd hesitou, sentindo um último vestígio de uma lealdade irracional e de - por que não? -

afeição pelo gordo simpático que estava planeando assassiná-lo a sangue-frio.

- Ele me pediu que fosse encontrá-lo na Five Star Meat Packing Company. Fica na Rua 23,

perto da Décima Avenida. Mandou que eu fosse sozinho.

Angeli riu, asperamente.

- Era o que eu já esperava. Não saia desse consultório, Doutor. Vou entrar em contato com

o Tenente McGreavy. Nós dois iremos apanhá-lo.

- Está bem.

Judd desligou. Norman Z. Moody, O Buda jovial das páginas amarelas. Judd sentiu uma

tristeza súbita, inexplicável. Gostava de Moody. Confiava nele.

E Moody estava à sua espera, para matá-lo.


Capítulo 13


Vinte minutos depois, Angeli e o Tenente McGravy chegavam ao consultório de Judd. Os

olhos de Angeli estavam vermelhos e lacrimejantes. Sua voz era rouca. Judd sentiu um

arrependimento momentâneo por tê-lo tirado da cama. O comprimento de McGreavy foi um aceno brusco, nada amistoso.

- Falei com o Tenente McGreavy sobre o telefonema de Norman Moody - informou Angeli.

- Pois vamos logo descobrir que diabo está acontecendo - disse McGreavy rispidamente.

Cinco minutos após eles seguiam rapidamente num carro da polícia sem identificação para

West Side. Angeli estava ao volante. A nevasca ligeira cessara e os raios débeis do sol de fim de tarde haviam desistido de penetrar a capa de nuvens que cobria o céu de Manhattam. Houve um ruído distante de trovoada e, logo em seguida, um relâmpago riscou o céu. Gotas de chuva começaram a bater no pára-brisas. O carro continuou a avançar e os edifícios altos foram cedendo lugar para as casas de cômodos de aspecto desolador, espremidas umas contra as outras, como que procurando abrigo contra o frio intenso.

O carro entrou na Rua 23, seguindo para oeste, na direção do rio Hudson. Passaram por

terrenos baldios, cheios de lixo, lojas e bares miseráveis, atravessando depois quarteirões em que só se viam garagens e armazéns de companhias de transporte. Ao se aproximarem da esquina da Décima Avenida, McGreavy disse a Angeli que parasse.

- Vamos saltar aqui.

Ele virou-se para Judd.

- Moody disse se haveria alguém com ele?

- Não.

McGreavy desabotoou o casaco e transferiu o revólver do coldre para o bolso. Angeli fez o

mesmo.

- Fique atrás de nós - disse McGreavy a Judd.

Os três homens começaram a andar, as cabeças baixas contra a chuva e o vento. no meio do

quarteirão viram um prédio quase em ruínas, com uma placa desbotada em cima da porta, onde estava escrito:


FIVE STAR MEAT PACKING COMPANY


Não havia por ali ninguém carro ou caminhão, nenhuma luz acesa, nenhum sinal de vida.

Os dois detetives aproximaram-se da porta, um de cada lado. McGreavy experimentou a

porta. Estava trancada. Ele olhou ao redor, mas não havia nenhuma campainha. Ficaram escutando.

O silêncio só era quebrado pelo ruído da chuva.

- Parece que está fechada - disse Angeli.

- Provavelmente não deve haver ninguém - comentou McGreavy.

- Na sexta-feira anterior ao Natal, a maioria das companhias encerra o expediente ao

meio-dia.

- Deve haver alguma entrada de carga.

Judd seguiu os dois detetives, avançando cautelosamente em direção aos fundos do prédio,

evitando as poças de água.

Chegaram a um beco onde puderam divisar uma plataforma de embarque, com diversos

caminhões estacionados diante dela.

Não havia ali a menor atividade. Avançaram até a plataforma.

- Muito bem - disse McGreavy para Judd. - Pode começar a chamá-lo.

Judd hesitou, sentindo-se irracionalmente triste por estar traindo Moody. Depois gritou bem

alto:

- Moody!

A única resposta foi o miado de um gato, perturbado em sua busca de um abrigo seco.

- Sr. Moody.

Em cima da plataforma havia uma imensa porta corrediça de madeira, que comunica o interior

do armazém com o local em que os caminhões eram carregados. Não havia degraus para se subir na plataforma. McGreavy içou-se para cima com uma agilidade surpreendente para alguém do seu tamanho. Angeli segui-o e depois foi a vez de Judd. Angeli aproximou-se da porta corrediça e empurrou-a. A imensa porta se abriu, com um guincho alto e estridente de protesto. O gato reagiu esperançoso, esquecendo-se da busca de um abrigo. Dentro do armazém estava escuro como breu.

- Trouxe uma lanterna? - perguntou McGreavy a Angeli.

- Não.

- Merda!

Cautelosamente, eles foram avançando pela escuridão. Judd tornou a gritar.

- Sr. Moody! Sou eu, Judd Stevens!

Não havia o menor barulho, a não ser os rangidos das pranchas de madeira que os três

homens pisavam. McGreavy tateou os bolsos e tirou uma caixa de fósforos. Acendeu um e

levantou-o. A luz fraca e vacilante projetou um brilho amarelado no que parecia ser uma imensa caverna vazia. O fósforo se apagou.

- Descubram o maldito interruptor! - disse McGreavy. - Era o meu último fósforo.

Judd ouviu Angeli tateando as paredes, à procura do interruptor de luz. Judd continuou em

frente. Não podia ver os dois.

- Moody! - gritou ele novamente.

Ouviu a voz de Angeli do outro lado:

- Encontrei um interruptor.

Houve um clique. Nada aconteceu.

- A chave geral deve estar desligada - disse McGreavy.

Judd esbarrou numa parede. Ao estender as mãos para equilibrar-se, seus dedos seguraram

uma tranca de porta. Levantou-a e puxou. Uma porta maciça se abriu e um sopro de ar gelado

atingiu-o.

- Encontrei uma porta - gritou ele.

Ele passou pelo umbral e avançou cautelosamente. Ouviu a porta se fechar atrás de si e o

coração disparou. Ali dentro estava ainda mais escuro, e ele parecia avançar para a mais profunda das trevas.

- Moody! Moody!

Silêncio total. Moody tinha que estar ali, em algum lugar! Se ele não estivesse, Judd sabia o

que McGreavy iria pensar. Seria o menino gritando "lobo" novamente.

Judd deu outro passo para a frente e subitamente sentiu uma carne fria encostar-se em seu

rosto. Deu um pulo para o lado, em pânico. Os cabelos da nuca se arrepiaram. Sentiu o cheiro forte de sangue de morte em seu redor. Havia um demônio naquela escuridão, espreitando para atacá-lo.

Judd começou a suar frio. O coração batia tão depressa que era difícil respirar. Com dedos trêmulos, ele procurou uma caixa de fósforos nos bolsos do sobretudo. Encontrou-a e acendeu um fósforo. Viu então um gigantesco olho morto diante do seu rosto. Levou um segundo para se recuperar do choque e compreender que estava diante de uma carcaça de uma vaca, pendurada num gancho. Judd ainda se apercebeu de outras carcaças de outros animais e os contornos de porta na outra extremidade antes de o fósforo se apagar. A porta provavelmente dava para um escritório. Moody talvez estivesse lá, esperando-o.

Judd avançou pela caverna escura, na direção da porta. Sentiu de novo a carne gelada de um

animal morto roçar em seu corpo. Deu um passo para o lado, rapidamente, e seguiu em direção à porta do escritório.

- Moody!

"O que será que estava detendo Angeli e McGreavy?", pensou Judd. Ele passou pelos animais

abatidos, com a sensação de que alguém, com um senso de humor macabro, estava-lhe pregando uma peça terrível, típica de um maníaco. Mas não conseguia imaginar quem, nem por quê. Ao se aproximar da porta, Judd colidiu com outra carcaça de animal.

Parou por um momento, para se orientar. Resolvera acender o último fósforo que lhe restava.

E descobriu, à sua frente, espetado no gancho de carne e sorrindo obscenamente, o corpo de Norman Z. Moody. O fósforo se apagou.


Capítulo 14


O pessoal da perícia terminou seu trabalho e se foi. O corpo de Moody foi removido e todos

partiram, à exceção de Judd, McGreavy e Angeli. Estavam estes na pequena sala do gerente,

decorada com uma coleção impressionante de calendários de nus, uma velha escrivaninha, uma cadeira giratória e dois arquivos de aço. As luzes estavam acesas e um aquecedor elétrico funcionava no máximo.

O gerente, um certo Paul Moretti, fora localizado numa festa pré-natalina e de lá arrancado

para responder a algumas perguntas. Ele explicara que havia liberado os empregados ao meio-dia, já que a semana de feriados estava começando. Trancara tudo e, ao que sabia, não ficara ninguém no interior do armazém. O Sr. Moretti estava ligeiramente embriagado. Quando McGreavy compreendeu que ele não poderia ajudar em mais nada, mandou que o levassem para casa. Judd mal se apercebera do que acontecia. Seus pensamentos estavam concentrados em Moody. Lembrava-se de como ele fora jovial e cheio de vida e indignava-o o seu cruel assassinato. E Judd atribuía a culpa a si mesmo.

Se ele não houvesse envolvido Moody no caso, o gordo detetive ainda estaria vivo.

Era quase meia-noite. Judd, exausto, já repetira dez vezes a história do telefonema de Moody.

McGreavy, encolhido dentro de seu sobretudo, fitava-o insistentemente, mastigando sem parar um charuto. Finalmente ele perguntou a Judd:

- Costuma ler histórias de detetives?

Judd ficou surpreso

- Não. Por quê?

- Vou-lhe dizer. Acho que é bom demais para ser verdadeiro, Sr. Stevens. Acreditei, desde

o início, que o Senhor estava enterrado nesse assunto até o pescoço. E eu lhe disse isso. O que

aconteceu, então? Subitamente transformou-se de assassino provável em possível vítima. Primeiro alega que um carro tentou atropelá-lo deliberadamente…

- E ele foi mesmo atropelado - recordou Angeli.

- Um recruta poderia facilitar explicar o que houve. Isso pode ter sido arrumado por alguém

que esteja trabalhando com o nosso Doutor.

McGreavy voltou a dirigir-se a Judd:

- Em seguida telefona para o Detetive Angeli com uma história delirante sobre dois homens

que estariam tentando arrombar seu consultório para matá-lo.

- E arrombaram mesmo - disse Judd.

- Não, não arrombaram coisa alguma. Usaram uma chave especial. E o senhor disse que só

existiam duas chaves: a sua e a de Carol Roberts.

- Exatamente. Mas eu já lhe expliquei que, provavelmente, eles tiraram uma cópia da chave

de Carol.

- Eu me lembro perfeitamente do que explicou. Mandei fazer um teste de parafina. A chave

de Carol nunca foi copiada, Doutor.

Ele fez uma pausa para deixar que a informação fosse absorvida.

- E como a chave dela está em meu poder… só resta a sua, não é mesmo, Doutor?

Judd estava aturdido demais para falar.

- Como eu não aceitasse a teoria do maníaco à solta, Doutor, o senhor resolveu contratar um

detetive particular pelas páginas amarelas e logo depois, convenientemente, ele descobre uma bomba instalada em seu carro. Chega então à conclusão de que já está na hora de jogar outro cadáver no meu caminho e conta a história a Angeli; uma história sobre um telefonema que recebeu de Moody.

Ele descobrira quem era o maluco que está tentando matá-lo. Mas veja o que acontece? Nós

chegamos aqui e descobrimos que Moody está pendurado num gancho de carne!

Judd ficou vermelho de raiva.

- Mas não sou responsável pelo que aconteceu!

McGreavy lançou-lhe um olhar duro.

- Sabe qual é a única razão de ainda não estar preso, Doutor? É não conseguir até agora

encontrar um motivo para este quebra-cabeças. Mas encontrarei, Doutor. É uma promessa.

Ele levantou-se. Subitamente Judd recordou-se de uma coisa:

- Espere um instante! E o que me diz de Don Vinton?

- O que há com ele?

- Moody disse-me que era o homem que estava por trás de tudo isso.

- Conhece alguém chamado Don Vinton, Doutor?

- Não. Mas… achei que a polícia deveria conhecer.

- Nunca ouvi falar nele!

McGreavy virou-se para Angeli, que sacudiu a cabeça negativamente.

- Muito bem. Mande um pedido de informação a respeito de Don Vinton para o FBI, Interpol

e para os chefes de polícia das principais cidades americanas.

Ele virou-se em seguida para Judd:

- Satisfeito?

Judd assentiu. Quem quer que estivesse por trás de tudo aquilo, não poderia deixar de ter uma

ficha criminal. Não deveria ser difícil identificá-lo.

Ele pensou novamente em Moody, seus aforismos de alegria e sua mente ágil. Deviam tê-lo

seguido até ali. Era pouco provável que tivesse falado com outra pessoa a respeito do encontro, porque ressaltara insistentemente a necessidade de segredo. Mas, pelo menos, eles sabiam agora o nome do homem que estava procurando.

Praemonitus, praemunitas.

Um homem prevenido vale por dois.

O assassinato de Norman Z. Moody foi estampado nas primeiras páginas dos jornais da

manhã seguinte. Judd comprou um jornal a caminho do consultório. Ele era mencionado, de

passagem, como uma testemunha que estava junto com a polícia quando o corpo fora encontrado.

McGreavy conseguira manter os fatos completos fora do conhecimento da imprensa. Isso significava que estava jogando com as cartas coladas no peito. Judd ficou imaginando o que Anne iria pensar.

Era sábado, e Judd costumava fazer uma ronda na clínica. Mas ele providenciara para que

alguém o substituísse. Foi para o consultório, subindo sozinho no elevador e certificando-se de que ninguém estava à espreita no corredor. Até quando uma pessoa poderia viver assim, à espera de que, a qualquer momento, um assassino o atacasse?

Por meia dúzia de vezes, durante a semana, ele estendeu a mão para pegar o telefone,

pensando em ligar para Angeli e perguntar-lhe a respeito de Don Viton. Mas em todas as vezes conteve a sua impaciência. Angeli, certamente, iria telefonar-lhe assim que soubesse de alguma coisa.

Por mais que pensasse a esse respeito, Judd não conseguia encontrar uma motivação para os atos de Don Viton. Talvez fosse um paciente que ele tratara há muitos anos, do tempo em que ainda era interno. Alguém que achava que Judd o desdenhara ou prejudicara, de alguma forma. Mas Judd não conseguia lembrar-se de nenhum paciente chamado Vinton.

Ao meio-dia ele ouviu um barulho na porta do corredor. Era Angeli. Judd nada pôde deduzir

de sua expressão, a não ser que estava mais pálido. Parecia extremamente cansado. O nariz estava vermelho e ele fungava constantemente. Entrou na sala de Judd e afundou-se pesadamente numa cadeira.

- Já recebeu alguma resposta a respeito de Don Vinton? - indagou Judd, ansiosamente.

Angeli assentiu.

- Recebemos teletipos do FBI, dos chefes de polícia das principais cidades americanas e da

Interpol.

Judd esperou, contendo a respiração.

- Ninguém jamais ouviu falar de Don Vinton.

Judd fitou Angeli, incrédulo. Sentiu subitamente um peso imenso no estômago.

- Mas isso é impossível! Alguém tem que conhecê-lo! Um homem capaz de fazer tudo isso

não pode ter surgido do nada!

- Foi o que McGreavy disse - respondeu Angeli, a voz cansada. - Doutor, eu e meus homens

passamos a noite inteira verificando cada Don Vinton que existe em Manhattam e nas localidades próximas. Investigamos até mesmo Nova Jersey e Connecticut.

Ele tirou um papel todo escrito do bolso e mostrou-o a Judd.

- Descobrimos dezessete Dons Vinton no catálogo telefônico. Mas reduzimos a lista a cinco

possíveis suspeitos e verificamos um por um. Um é paralítico. Outro é padre. O terceiro é

vice-presidente de um banco. O quarto é bombeiro que estava de serviço quando ocorreram dois dos três crimes. Só deixei fora o último da lista, que é dono de uma loja de animais domésticos e deve ter mais de oitenta anos.

A garganta de Judd estava seca. Ele compreendeu o quanto confiara em que se descobrisse

alguma coisa por aquele meio. Certamente Moody não lhe teria fornecido o nome se não tivesse certeza. E ele não dissera que Don Vinton era um simples cúmplice, mas sim um homem que estava por trás de tudo. Era inconcebível que a polícia não tivesse a ficha de um homem assim. Moody fora assassinado porque descobrira a verdade. E agora que Moody estava fora do caminho, Judd ficava completamente sozinho. O cerco estava-se fechando.

- Lamento muito - disse Angeli.

Judd olhou para Angeli e lembrou-se de que o detetive passara a noite inteira fora de casa,

apesar de estar com um forte resfriado. Disse, agradecido:

- Muito obrigado por tentar.

Angeli inclinou-se para a frente.

- Tem certeza de que ouviu bem o nome que Moody lhe disse pelo telefone?

- Tenho.

Judd fechou os olhos, concentrando-se. Ele perguntara a Moody se tinha certeza de que sabia

quem realmente estava por trás de tudo. Ouviu novamente a voz de Moody: - Absoluta. Já ouviu falar em Don Vinton? - Era isso mesmo: Don Vinton. Judd abriu os olhos.

- Tenho.

Angeli suspirou.

- Então chegamos a um beco sem saída.

Ele soltou uma risada e acrescentou:

- Sem nenhum trocadilho.

Ele espirrou novamente e Judd comentou:

- É melhor voltar para a cama.

Angeli levantou-se.

- É, acho que tem razão.

Judd hesitou antes de perguntar:

- Há quanto tempo trabalha com McGreavy?

- Este é o nosso primeiro caso juntos. Por quê?

- Acha que ele é capaz de querer incriminar-me de qualquer maneira?

Angeli espirrou novamente.

- Acho que está certo, Doutor. O melhor mesmo é eu voltar para a cama.

Ele encaminhou-se para a porta, mas Judd disse antes que Angeli deixasse a sala:

- Talvez eu tenha uma pista.

Angeli parou e virou-se.

- Continue.

Judd falou-lhe a respeito de Teri. Acrescentou que iria também investigar alguns antigos

amiguinhos de John Hanson.

- Não parece muito promissor - disse Angeli, com franqueza. - Mas acho que é melhor do que

nada.

- Estou cansado de ser um alvo passivo. Vou começar a reagir, saindo atrás deles.

- De que forma? Estamos enfrentando sombras.

- Quando as testemunhas descrevem um suspeito, a polícia manda um desenhista fazer um

esboço de todas as feições e traços descritos, não é mesmo?

Angeli assentiu.

- É um esboço de identidade, um retrato falado.

Judd começou a andar de um lado para o outro, irrequieto.

- Pois vou lhe dar um esboço da personalidade do homem que está por trás de tudo.

- Como pode fazê-lo? Nunca o viu. Ele pode ser qualquer pessoa.

- Não, não pode. Estamos procurando alguém muito especial.

- Alguém que é insano.


- A insanidade é uma coisa muito ampla. Não tem qualquer definição médica. A insanidade

é simplesmente a capacidade da mente se ajustar-se à realidade. Se não conseguimos ajustar, ou nos escondemos da realidade ou nos colocamos acima da vida, onde somos super seres que não precisam acatar as regras da sociedade.

- Então o nosso homem se julga um super ser.

- Exatamente. Numa situação de perigo, Angeli, temos sempre três opções. Fugir, chegar

a um compromisso construtivo ou atacar. O nosso homem prefere atacar.

- Então ele é um lunático.

- Não. Os lunáticos raramente matam. Eles só se conseguem concentrar em algo por um

espaço de tempo muito curto. Estamos tratando de alguém muito mais complexo. Ele pode sofrer de alguma perturbação de origem psicossomática, hipofrênica, esquizofrênica, ciclóide, ou uma combinação de todas elas. Podemos também estar enfrentando um problema de fuga, uma amnésia precedida por atos irracionais. Mas, seja como for, a aparência e o comportamento dele parecerão a todos perfeitamente normal.

- Então não temos nada em que nos basear para continuarmos.

- Está enganado. Até que já temos muita base. Posso fornecer-lhe uma descrição física do

homem que estamos procurando.

Judd cerrou os olhos, concentrou-se

- Dom Vinton é de estrutura média, corpo bem proporcionado, e constituição atlética.

Veste-se impecavelmente e é meticuloso em tudo o que faz. Não possui o menor talento artístico.

Não pinta, não escreve, não toca piano.

Angeli ficou boquiaberto. Judd continuou falando mais rapidamente agora:

- Não pertence a nenhum clube ou organização social. A não ser que os esteja dirigindo. É

um homem que tem de estar no comando, implacável e impaciente. Joga alto. Por exemplo: jamais esteve implicado em roubos miúdos. Se tem ficha na polícia, é por assalto a banco, seqüestro ou homicídio.

A agitação na mente de Judd aumentava à medida que a imagem se ia definindo com nitidez

em sua mente.

- Quando o pegarem, provavelmente irão descobrir que foi rejeitado pelo o pai ou pela mãe

quando criança.

Angeli interrompeu-o:

- Doutor, não quero esvaziar seu balão, mas pode ser algum viciado maluco que…

- Não. O homem que estamos procurando não toma drogas.

A voz de Judd era positiva.

- Vou-lhe dizer mais uma coisa a respeito dele: praticou desporto coletivo na escola. Futebol

ou hóquei. Não possui o menor interesse por xadrez, jogos de palavras ou quebra-cabeças.

Angeli estava agora visivelmente cético.

- Há mais de um homem, Doutor. Foi o senhor mesmo quem disse.

- Estou-lhe dando uma descrição de Don Vinton, o homem que está dando as ordens. E tem

mais: ele é um tipo latino.

- O que o faz pensar assim?

- Os métodos que ele usou nos crimes. Uma faca, ácido, uma bomba. Ele é sul-americano,

italiano ou espanhol.

Judd respirou fundo antes de concluir:

- Aí está seu esboço de identificação. Esse é o homem que cometeu três assassinatos e está

querendo matar-me.

Angeli engoliu em seco.

- Como diabo pode saber de tudo isso?

Judd sentou-se e inclinou-se na direção de Angeli.

- É minha profissão.

- O lado mental, sim. Mas como pode dar a descrição física de um homem que nunca viu?

- Estou-me baseando na lei das probabilidades. Um médico chamado Kretschmer descobriu

que 85 por cento das pessoas que sofrem de paranóia possuem corpo atlético, bem proporcionado.

Nosso homem é evidentemente um paranóico. Tem mania de grandeza. é um megalomaníaco que pensa estar acima da lei.

- Então porque é que ele não foi ainda apanhado?

- Porque está usando uma máscara.

- Está usando o quê?

- Todos nós usamos máscaras, Angeli. Desde a infância, ensinam-nos a esconder os nossos

sentimentos verdadeiros, a encobrir nossos ódios e medos. Mas sob tensão, Don Vinton vai acabar deixando cair a máscara e exibindo a outra face.

- Entendo.

- O ego dele é seu ponto vulnerável. Se se sentir ameaçado, realmente ameaçado, então vai

desmoronar. Ele está agora pisando em gelo fino. Não vai demorar a desmoronar por completo.

Judd hesitou, mas depois continuou, quase que falando para si mesmo:

- Ele é um homem que tem… mana.

- Tem o quê?

- Mana. É um termo usado pelos primitivos para designar um homem que exerce influências

sobre os outros por causa dos demônios que existem dentro dele. Em suma, um homem com uma personalidade dominante.

- Disse que ele não pinta, não escreve nem toca piano. Como pode saber disso?

- O mundo está cheio de artistas que são esquizofrênicos. A maioria consegue atravessar a

vida sem cometer qualquer violência porque o trabalho proporciona um meio de expressão, de

evasão. Nosso homem não possui esse desaguadouro. Por isso ele é como um vulcão. A única

maneira que tem de se livrar da pressão interior é pela erupção: ou seja, pela morte de Hanson, Carol e Moody.

- Está querendo dizer que foram crimes sem sentido que ele cometeu para…

- Ele não faz coisas sem sentido. Pelo contrário…

A mente de Judd trabalhava rapidamente. Diversos outros pedaços do quebra-cabeças se

ajustaram em seus lugares. Ele censurou-se por ter estado cego e assustado demais para vê-los antes.

- Eu sou a única pessoa que Don Vinton está realmente querendo liquidar, seu alvo principal.

John Hanson foi morto porque o confundiu comigo. Quando o assassino descobriu o erro, veio ao meu consultório para uma segunda tentativa. Eu tinha saído, mas ele encontrou Carol.

A voz de Judd estava furiosa. Ele fez uma pausa, que Angeli aproveitou para perguntar:

- Ele matou-a só para que ela não pudesse identificá-lo?

- Não. O homem que estamos procurando não é um sádico. Carol foi torturada porque ele

queria alguma coisa. Digamos que se tratasse de alguma prova incriminadora que ela não quis ou não pôde fornecer-lhe.

- Que espécie de prova, Doutor?

- Não tenho a menor idéia. Mas aí está a chave de tudo. Moody descobriu a resposta e foi por

isso que o mataram.

- Mas há uma coisa que ainda não está fazendo sentido - insistiu Angeli. - Se eles o tivessem

assassinado na rua, Doutor, então não poderiam encontrar o que estão procurando. Isso não se ajusta ao resto da sua teoria.

- É possível. Vamos supor que eles estejam procurando alguma coisa nas minhas gravações.

Por si só, talvez seja uma informação inteiramente inofensiva. Mas, eles têm duas alternativas. Ou arrancam a fita de mim ou me assassinam, a fim de que eu não possa transmitir a informação a ninguém. Primeiro eles tentaram eliminar-me, mas cometeram um engano e mataram Hanson. Depois buscaram a segunda alternativa. Tentaram arrancar de Carol a informação de que precisavam.

Quando fracassaram, decidiram concentrar-se em matar-me. Houve o acidente de carro. Provavelmente fui seguido quando contratei Moody, que por sua vez foi também seguido. Quando ele descobriu a verdade, trataram de assassiná-lo.

Angeli franziu o rosto, pensativo.

- É por isso que o assassino não vai parar enquanto não conseguir matar-me - concluiu Judd

calmamente. - Torna-se um jogo mortal, e o homem que eu descobri não suporta a idéia de perder.

Angeli estudava-o atentamente, avaliando tudo o que acabava de ouvir.

- Se está certo, Doutor, então vai precisar de proteção.

Ele tirou o revólver do coldre e verificou se estava tudo carregado.

- Obrigado, Angeli, mas não preciso de uma arma. Vou lutar contra eles com as minhas

próprias armas.

Houve um estalido agudo. A porta externa se abriu.

- Está esperando alguém, Doutor?

Judd sacudiu a cabeça.

- Não. Não tenho nenhum paciente marcado para esta tarde.

Com a arma na mão, Angeli avançou rapidamente até a porta que dava para a sala de

recepção. Ficou de lado e abriu-a bruscamente. Peter Hadley estava parado ali, com uma expressão aturdida no rosto.

Judd foi até a porta e disse a Angeli:

- Está tudo bem. Ele é amigo meu.

- Que diabo está acontecendo aqui? - indagou Peter.

- Desculpe - disse Angeli, guardando a arma.

- Este é o Dr. Peter Hadley… Detetive Angeli.

- Que espécie de clínica psiquiátrica inteiramente louca você está fazendo aqui, Judd -

indagou Peter.

- Houve um pequeno problema - explicou Angeli. - O consultório do Dr. Stevens foi…

assaltado e pensamos que fosse o ladrão que estivesse de volta.

Judd aproveitou a deixa:

- Isso mesmo. Eles não encontraram o que estavam procurando.

- Isso tem alguma relação com o assassinato de Carol? - indagou Peter.

Angeli falou antes que Judd pudesse responder:

- Não tenho certeza, Dr. Hadley. Mas, por enquanto, a polícia pediu ao Dr. Stevens que não

discutisse o caso com ninguém.

- Eu compreendo - disse Peter, olhando em seguida para Judd: - O compromisso de

almoçarmos juntos ainda está de pé?

Judd esquecera-se completamente.

- Mas claro que sim - disse ele rapidamente, dirigindo-se depois a Angeli: - Acho que já

examinamos tudo.

- Creio que sim, Doutor. Tem certeza de que não quer…

- Ele indicou o revólver.

Judd sacudiu a cabeça.

- Não, obrigado.

- Está certo. Tome cuidado, Doutor.

- Fique tranqüilo. Tomarei.


Judd mostrou-se bastante preocupado durante o almoço e Peter não o pressionou.

Conversaram sobre amigos e pacientes comuns. Peter contou a Judd que falara ao chefe de Harrison Burke. Tudo já foi providenciado para que se submetesse a um exame psiquiátrico, sendo internado numa clínica particular.

Ao café, Peter disse:

- Não sei qual é o problema que está enfrentando, Judd, mas se eu puder ajudar em alguma

coisa…

Judd sacudiu a cabeça.

- Obrigado, Peter. É um problema que terei de resolver sozinho. Eu lhe contarei quando tudo

estiver acabado.

- Só espero que não demore - disse Peter, procurando falar jovialmente.

Hesitou por um momento, mas acabou perguntando:

- Judd… você está correndo algum perigo?

- É claro que não!

O que seria verdade se não houvesse um maníaco homicida que já cometera três assassinatos

e estava determinado a fazer Judd sua quarta vítima.


Capítulo 15


Judd voltou para o escritório depois do almoço. Efetuou novamente a mesma rotina

cuidadosamente, tentando expor-se o mínimo possível.

Se é que essas preocupações adiantavam alguma coisa.

Começou a ouvir as fitas novamente, tentando achar algo que pudesse proporcionar-lhe uma

pista. Era como ligar uma torrente de grafito verbal. O jorro de som estava repleto de ódio…

perversão… medo… comiseração de si próprio… megalomania… solidão… vazio… dor…

Ao fim de três horas descobrira um único novo nome a acrescentar na sua lista: Bruce Boyd,

o homem com quem John Hanson vivera por último. Ele pôs novamente a fita de Hanson no gravador.

- …Acho que me apaixonei por Bruce à primeira vista. Era o homem mais bonito que já tinha

conhecido.

- Ele era o parceiro passivo ou dominante, John?

- Dominante. Foi uma das coisas que me atraíram nele. Bruce é muito forte. Mais tarde,

quando nos tornamos amantes, costumávamos brigar por causa disso.

- Como assim?

- Bruce não tinha consciência da sua própria força. Costumava aproximar-se por trás de mim

e dar-me um soco nas costas. Ele o fazia como um gesto de amor, mas um dia quase me quebrou a espinha. Tive vontade de matá-lo. Quando apertava a mão de alguém, quase lhe esmagava os dedos.

Ele sempre fingia estar arrependido, mas no fundo Bruce gosta de machucar as pessoas. E ele não precisava de um chicote para isso. É um homem muito forte…

Judd parou a fita e ficou imóvel, pensando. O padrão do homossexual não se ajustava ao seu

conceito do assassino. Mas por outro lado, Bruce estivera envolvido com Hanson e era sádico e egocêntrico.

Judd olhou para os dois nomes em sua lista: Teri Washburn, que matara um homem em

Hollywood e nunca mencionara o fato; Bruce Boyd, o último amante de John Hanson. Se fora um deles… qual dos dois?


Teri Washburn morava num apartamento de cobertura em Sutton Place. Todo o apartamento

era decorado num tom de rosa berrante: as paredes, os móveis, as cortinas. Havia peças caríssimas espalhadas por toda a parte. As paredes estavam cobertas de impressionistas franceses. Judd reconheceu dois Manets, dois Degas, um Monet e um Renoir, antes que Teri entrasse na sala. Ele lhe telefonara dizendo que queria visitá-la. Teri se preparava para recebê-lo. Estava usando um négligé rosa algo transparente, sem nada por baixo.

- Você veio mesmo! - exclamou ela, alegremente.

- Eu queria falar-lhe, Teri.

- Mas claro! Aceita um drinque?

- Não, obrigado.

- Pois acho que vou preparar um para mim. A ocasião merece uma comemoração.

Teri dirigiu-se ao bar que havia a um canto da imensa sala de estar. Judd ficou observando-a,

pensativo.

Ela voltou com um drinque e sentou-se perto dele, no sofá rosa.

- Então quer dizer que o sexo finalmente o trouxe até aqui, querido. Eu sabia que você não

poderia continuar a resistir à pequena Teri. Estou louquinha por você, Judd. Farei qualquer coisa que quiser. Basta dizer. Você faz com que todos os caras que já conheci na vida pareçam pobres coitados.

Teri largou o copo em cima de uma mesinha e estendeu as mãos para as calças de Judd. Ele

segurou-lhe as mãos.

- Teri, estou precisando da sua ajuda.

A mente dela estava viajando num mundo próprio.

- Eu sei, meu bem - gemeu ela. - Você vai ter de mim o que nunca recebeu em toda a vida.

- Teri, por favor, escute! Alguém está tentando assassinar-me!

Os olhos dela foram pouco a pouco manifestando surpresa. Ela estaria representando… ou

seria uma reação genuína? Judd recordou-se do desempenho dela num de seus últimos espetáculos.

Era uma reação genuína. Teri era uma boa atriz, mas não a esse ponto.

- Oh, Deus! E quem… quem está querendo assassiná-lo?

- Talvez seja alguém ligado a um dos meus pacientes.

- Mas… mas por quê?

- É isso que estou tentando descobrir, Teri. Algum dos seus amigos já falou em matar… Ou

assassinar? Talvez numa festa, por brincadeira?

Teri sacudiu a cabeça.

- Não.

- Conhece alguém chamado Don Vinton?

- Don Vinton? Não. Acha que devo conhecer?

- Teri… como se sente com relação a um homicídio?

Um pequeno estremecimento correu no corpo dela. Judd estava segurando-lhe os pulsos e

sentiu que dispararam.

- O homicídio a deixa nervosa, Teri?

- Não sei…

- Pense um pouco, Teri. A idéia de homicídio a deixa excitada?

Os pulsos dela pulavam irregularmente.

- Não! É claro que não!

- Por que não me disse nada a respeito do homem que matou em Hollywood?

Sem qualquer aviso, ela estendeu as mãos para rasgar-lhe o rosto com as unhas compridas.

Judd conseguiu contê-las.

- Seu filho da puta nojento! Isso aconteceu há vinte anos atrás. Então foi por isso que veio

até aqui! Saia! Saia!

Teri desabou no sofá, em soluços histéricos.

Judd ficou a observá-la por mais um momento. Teri era passível de ser envolvida num crime.

Sua insegurança e a ausência total de amor-próprio tornavam-na presa fácil de quem quer que

desejasse usá-la. Ela era como um pedaço de argila mole largada numa sarjeta. A pessoa que a recolhesse poderia moldá-la numa linda estátua… ou numa arma fatal. A questão era saber quem a recolhera por último. Don Vinton?

Judd levantou-se.

- Lamento muito, Teri.

E saiu do apartamento cor-de-rosa.

Bruce Boy vivia numa casa em Greenwich Village onde outrora ficavam umas cavalariças.

A porta foi aberta por um mordomo filipino de jaleco branco. Judd disse o seu nome e foi convidado a entrar e aguardar no vestíbulo. O mordomo desapareceu. Dez, quinze minutos se passaram. Judd conteve sua irritação. Deveria ter dito ao Detetive Angeli que viria até ali. Se a teoria de Judd fosse correta, a próxima tentativa de matá-lo não demoraria a ocorrer. E, dessa vez, o assassino tudo faria para garantir a consumação do crime.

O mordomo voltou.

- O Sr. Boyd irá recebê-lo.

Ele conduziu Judd até um estúdio muito bem decorado no segundo andar, retirando-se em

seguida, discretamente.

Boyd estava sentado a uma escrivaninha. Parecia ocupado em escrever algo. Era um homem

bonito, com feições delicadas, nariz aquilino, boca peluda e sensual, cabelos louros, encaracolados. levantou-se assim que Judd entrou. Tinha mais de 1,90 metros de altura, peito e ombros de atleta.

Judd pensou no esboço de identificação física do assassino que fizera. Boyd correspondia plenamente.

Judd desejou mais do que nunca ter deixado algum aviso para Angeli.

- Perdoe-me por fazê-lo esperar, Dr. Stevens - disse ele cordialmente. - Eu sou Bruce Boyd.

Estendeu a mão. Judd adiantou-se para apertá-la e, nesse momento, Boyd desferiu-lhe um

soco na boca, com um punho de granito. O golpe foi totalmente inesperado e o impacto arremessou

Judd para trás, derrubando um abajur ao cair no chão.

- Desculpe, Doutor - disse Boyd, fitando-o tranqüilamente. - Mas o senhor bem que merecia

isso. Foi um menino muito mau, não acha? Levante-se e eu lhe preparo um drinque.

Judd sacudiu a cabeça, completamente tonto. Começou a levantar-se, mas Boy chutou-o na

virilha com a ponta do sapato e Judd caiu novamente no chão, contorcendo-se de dor.

- Eu já estava esperando que me viesse procurar, Doutor.

Judd levantou os olhos, por entre as ondas incessantes de dor, para o vulto de pé à sua frente.

Tentou falar, mas não conseguiu pronunciar uma só palavra.

- Não tente falar - disse Boyd, mais benevolente. - Deve estar doendo bastante. Eu sei por

que está aqui. Quer-me fazer perguntas a respeito de Johnny.

Judd assentiu e Boyd chutou-o na cabeça. Através de uma neblina vermelha, a voz de Boyd

chegou até Judd, distante e abafada, volta e meia se desvanecendo:

- Nós nos amávamos até que ele foi procurá-lo. O senhor fez com que ele se sentisse anormal,

Doutor. Fez com que pensasse que nosso amor era algo sujo, repugnante. Sabe quem o tornou sujo assim, Dr. Stevens? Foi o senhor mesmo!

Judd sentiu algo duro bater em suas costelas, provocando um riu de dor que se espraiou por

suas veias. Ele estava agora vendo todos os objetos com cores vivas, como se a sua cabeça estivesse repleta de arcos-íris que tremeluziam.

- Quem lhe deu o direito de dizer às pessoas como devem amar, Doutor? Fica sentado lá em

seu consultório como se fosse um deus, condenando todo mundo que não pensa como o senhor!

"Mas isso não é verdade"! Judd ouviu uma parte de sua mente responder. “Hanson nunca”.

antes tivera qualquer alternativa. Foi a única coisa que fiz: proporcionar-lhe uma alternativa. E ele acabou não escolhendo “!”.

- Agora Johnny está morto - disse o gigante louro. - Matou meu Johnny, Doutor. E agora eu

vou matá-lo.

Judd sentiu outro pontapé atrás do ouvido e começou a resvalar para a inconsciência. Alguma

parte remota de sua mente observava, com um interesse distante, o resto do corpo começar a morrer.

Aquela parte pequena e isolada da sua inteligência, localizada no cerebelo, continuou a funcionar perfeitamente, sendo seus impulsos convertidos em pensamentos. Judd censurou-se por não ter chegado perto da verdade. Imaginara que o assassino fosse um tipo moreno, latino. Mas era louro.

Ficava convencido de que o assassino não era homossexual e se enganara completamente. Encontrara finalmente o seu maníaco homicida, e agora ia morrer por causa disso.

Judd perdeu os sentidos.


Capítulo 16


Alguma parte distante e remota da mente de Judd estava tentando enviar-lhe uma mensagem,

procurando comunicar-lhe algo de importância cósmica. Mas as marteladas dentro de seu crânio eram tão angustiantes que ele não podia concentrar-se em coisa alguma! Em algum lugar, perto dele, podia ouvir um gemido agudo, como o uivo de um animal ferido. Lentamente, dolorosamente, Judd abriu os olhos. Estava deitado numa cama, num quarto estranho. A um canto do quarto estava Bruce Boyd, chorando inconsoladamente.

Judd tentou senta-se. A dor lancinante em seu corpo inundou-lhe a memória com a

recordação do que lhe acontecera. E Judd sentiu-se subitamente dominado por uma fúria selvagem e incontrolável.

Boyd virou-se ao ouvir Judd mexer-se. Aproximou-se da cama e disse em tom de lamúria:

- A culpa é sua. Se não fosse você, Johnny ainda estaria seguro ao meu lado.

Sem poder dominar-se, impelido por algum instinto de vingança há muito esquecido e

enterrado profundamente em sua mente. Judd estendeu as mãos para a garganta de Boyd. Seus dedos se fecharam em torno da traquéia do brutamontes, apertando-a com toda a força. Boyd não fez o menor gesto para se defender. Continuou parado no mesmo lugar, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Judd encarou-o e foi como se visse nos olhos dele um poço que ia dar no inferno.

Lentamente, afrouxou os dedos e baixou as mãos. "Meu Deus", pensou Judd, “eu sou um médico!”.

Um homem doente me agride e a vontade que tenho é de matá-lo “! Olhar para Boyd era ver uma criança arrasada, aturdida”.

E subitamente Judd compreendeu o que seu subconsciente vinha tentando informar-lhe: Bruce

Boyd não era Don Vinton. Se fosse, Judd não estaria vivo nesse momento. Boyd era incapaz de cometer homicídio. Então ele não errara ao pensar que Boyd não se ajustava à imagem que fizera do assassino! Era um consolo irônico na situação!

- Se não fosse por você, Johnny estaria vivo agora - soluçou Boyd. - Estaria aqui comigo e

eu poderia protegê-lo.

- Eu não pedi a John Hanson que o deixasse - disse Judd, a voz cansada. - A idéia partiu dele

mesmo.

- Mentiroso!

- As coisas já estavam erradas entre você e John antes mesmo dele ir procurar-me.

Houve um longo silêncio. Depois Boyd assentiu:

- Tem razão. Nós… nós brigávamos o tempo todo.

- Ele estava procurando descobrir-se a si mesmo, e seus instintos lhe diziam que ele queria

voltar para a esposa e para os filhos. No fundo, John queria ser heterossexual.

- Tem razão - murmurou Boyd. - Ele costumava falar nisso o tempo todo, mas eu pensava

que era apenas para castigar-me.

Ele levantou os olhos e encarou Judd.

- Mas um dia ele me deixou. Ele… Simplesmente foi embora. Deixou de me amar.

Havia um desespero total em sua voz.

- Ele não deixou de amá-lo - disse Judd. - Pelo menos não como amigo.

Os olhos de Boyd estavam agora fixos no rosto de Judd.

- Quer ajudar-me?

O desespero em seus olhos era indescritível.

- Ajude-me! Tem que me ajudar!

Era um grito de angústia. Judd ficou calado por algum tempo.

- Está certo, eu o ajudarei.

- Poderei ser normal?

- Não existe conceito absoluto de comportamento. Cada pessoa carrega a sua própria

normalidade dentro de si. Não há duas pessoas que sejam iguais.

- Pode fazer de mim um heterossexual?

- Isso depende de que você o queira de verdade. Nesse caso, podemos ajudá-lo através da

psicanálise.

- E se falhar?

- Se descobrirmos que você nasceu homossexual, pelo menos poderá ajustar-se a tal situação.

- Quando podemos começar, Doutor?

Bruscamente, Judd voltou à realidade. Estava sentado ali, conversando tranqüilamente com

um paciente, quando tudo indicava que seria assassinado dentro das próximas vinte e quatro horas.

E ainda não tinha a menor idéia de quem era Don Vinton. Já eliminara os dois últimos suspeitos da sua lista, Teri e Boyd. Não sabia mais agora do que quando começara. Se sua análise de Don Vinton era correta, ele deveria estar, nesse momento, dominado por uma fúria assassina. O próximo ataque seria desfechado sem demora.

- Telefone-me na segunda-feira - disse ele a Boyd.

Judd procurou avaliar as suas possibilidades de sobrevivência, afundado num banco traseiro

de um táxi que o levava de volta ao prédio em que morava. Pareciam mínimas. O que Don Vinton poderia estar querendo tão desesperadamente? E, quem era Don Vinton? Como era possível que ele não tivesse ficha na polícia? Será que ele estaria usando outro nome? Não. Moody dissera claramente "Don Vinton".

Era difícil concentrar-se. Cada sacolejo do táxi provocava dores terríveis em seu corpo

machucado. Judd pensou nos assassinatos e tentativas cometidos até aquele momento, procurando encontrar alguma espécie de padrão que fizesse sentido. Uma vítima esfaqueada, outra torturada até à morte, um "acidente" de carro, uma bomba em seu carro, um estrangulamento. Não havia padrão algum que ele pudesse discernir. Somente uma violência implacável, maníaca. Ele não tinha como saber qual a forma que assumiria a próxima tentativa de matá-lo. Nem quem a executaria. Os lugares em que seria mais vulnerável eram o escritório e o seu apartamento. Recordou-se do conselho de Angeli. Mandaria instalar trancas mais fortes nas portas do seu apartamento. Pediria a Mike, o porteiro, e a Eddie, o ascensorista, que ficassem de alerta. Podia confiar neles!

O táxi parou diante do prédio em que morava. O porteiro abriu a porta de trás.

Era um homem totalmente desconhecido para ele.


Capítulo 17


Era um homem grande, de pele morena, rosto bexiguento e olhos negros, bem fundos. Tinha

uma cicatriz antiga na garganta. Estava usando o casaco do uniforme de Mike, apertado demais para ele.

O táxi afastou-se e Judd ficou sozinho com o desconhecido. Foi invadido por um acesso

súbito de dor. "Oh, meu Deus, agora não"! Ele cerrou os dentes.

- Onde está Mike?

- De férias, Doutor.

Doutor! Então o homem sabia quem ele era! E como Mike poderia tirar férias em Dezembro?

Havia um ligeiro sorriso de satisfação no rosto do homem. Judd olhou para um lado e outro

da rua varrida pelo vento, mas estava completamente deserta. Ele poderia tentar correr, mas não teria qualquer possibilidade de escapar, no estado em que se encontrava. Seu corpo estava dolorido e sentia dores a cada respiração.

- Parece que sofreu um acidente, Doutor.

A voz do homem era jovial. Judd virou-se sem responder e entrou no saguão do edifício.

Podia contar com Eddie para ajudá-lo.

O porteiro seguiu Judd até o saguão. Eddie estava no elevador, de costas. Judd avançou na

sua direção. Cada passo constituía-se numa agonia desesperada. Ele sabia que não podia fraquejar agora. O importante era não deixar que o homem o pegasse sozinho. Ele não teria coragem de fazer qualquer coisa diante de testemunhas.

- Eddie! - chamou Judd.

O homem no elevador virou-se.

Judd nunca o vira antes. Era uma cópia em ponto menor do porteiro. Só que não tinha a

cicatriz. Era óbvio que ambos eram irmãos.

Judd parou, encurralado entre os dois. Não havia mais ninguém no saguão.

- Vamos subir - disse o homem no elevador.

Ele tinha no rosto o mesmo sorriso de satisfação do irmão. Então eram assim os rostos da

morte! Mas Judd tinha certeza de que nenhum dos dois era o cérebro que comandava tudo. Não passavam de assassinos profissionais contratados. Será que pretendiam matá-lo ali, no saguão, ou deixariam para fazê-lo em seu apartamento? "No apartamento", concluiu Judd. Isso lhes daria mais tempo para fugir, enquanto não descobrissem o corpo.

Judd deu um passo na direção do escritório do gerente.

- Tenho que falar ao Sr. Katz sobre…

O homem maior bloqueou-lhe o caminho.

- O Sr. Katz está ocupado, Doutor - disse ele suavemente.

- Vou levá-lo lá para cima - disse o homem do elevador.

- Não, eu…

- Faça o que ele está dizendo.

Não havia qualquer emoção na voz do grandalhão.

Houve uma súbita rajada de ar gelado quando a porta do saguão se abriu. Dois homens e duas

mulheres entraram apressadamente, rindo e conversando, encolhidos dentro dos seus casacos.

- Está pior do que na Sibéria - disse uma das mulheres.

O homem que segurava o braço dela tinha um rosto rechonchudo, com um sotaque do

Centro-Oeste:

- A noite lá fora não dá para homem nem para animal.

O grupo encaminhou-se para o elevador. O porteiro e o ascensorista se entreolharam, sem

nada dizer.

A segunda mulher, uma loura oxigenada miúda, com um sotaque sulista, disse então:

- Foi uma tarde maravilhosa! Muito obrigada a vocês dois!

Ela estava despachando os homens!

O segundo homem soltou um resmungo de protesto.

- Não vai querer que a gente se vá antes de tomar um último drinque de despedida, não é?

- Já é muito tarde, George - disse a primeira mulher, sorrindo.

- Mas lá fora está abaixo de zero! Vocês têm que nos dar um anticongelante.

O outro homem suplicou também:

- Só um drinque e depois iremos embora.

- Bem…

Judd estava perdendo a respiração.

- Por favor!

A loura oxigenada terminou concordando.

- Está bem. Mas só um, entenderam?

Rindo, o grupo entrou no elevador. Judd entrou rapidamente com eles. O porteiro ficou

parado lá fora, sem saber o que fazer, olhando para o irmão. O ascensorista deu os ombros, fechou a porta e acionou o elevador. O apartamento de Judd ficava no quinto andar. Se o grupo saltasse antes, ele estaria perdido. Se saltasse depois, ele teria a possibilidade de entrar em seu apartamento, armar uma barricada e telefonar pedindo socorro.

- Qual é o andar?

A loura miúda soltou uma risada.

- Não sei o que meu marido diria se soubesse que convidei dois estranhos para o apartamento.

Ela virou-se para o ascensorista e acrescentou:

- Décimo.

Judd soltou a respiração e disse, rapidamente.

- Quinto.

O ascensorista lançou-lhe um olhar paciente e malicioso, abrindo a porta no quinto andar. A

porta do elevador se fechou.

Judd avançou para seu apartamento, quase cambaleando de dor. Tirou a chave do bolso, abriu

a porta e entrou. O coração batia-lhe descompassadamente. Tinha cinco minutos no máximo antes que eles viessem matá-lo. A corrente soltou-se em sua mão! Examinou-a e viu que tinha sido cortada da tranca de segurança. Jogou-a longe e encaminhou-se para o telefone. Foi dominado por uma tontura súbita. Ficou parado, lutando contra a dor, os olhos fechados. Seu precioso tempo se escoava. Com grande esforço, recomeçou a caminhar em direção ao telefone, movendo-se lentamente. A única pessoa para quem ele conseguia se lembrar de telefonar era Angeli, mas este estava em casa, doente. Além disso, o que poderia dizer? "Temos um novo porteiro e um novo ascensorista e acho que eles estão querendo me matar?" Judd percebeu de repente que estava segurando o telefone, paralisado, aturdido demais para fazer qualquer coisa! "Conclusão", pensou ele. Boyd poderia tê-lo matado, afinal de contas. Eles entrariam no apartamento e o encontrariam inteiramente impotente. Judd recordou-se da expressão nos olhos do grandalhão. Tinha que ser mais esperto do que eles, fazer algo que não esperassem. Mas o quê, meu Deus?

Ligou o pequeno receptor de TV que focalizava o saguão. Estava deserto. A dor voltou, em

ondas sucessivas, fazendo-o sentir-se fraco. Ele forçou a mente cansada a concentrar-se no problema.

Estava numa emergência… Isso mesmo. Uma emergência. Tinha que tomar medidas de emergência.

Isso mesmo… Sua visão estava nevoada. Os olhos focalizaram o telefone. "Emergência"… Ele

aproximou o dial dos olhos, a fim de conseguir ler os números. Lentamente, dolorosamente, ele discou. Uma voz atendeu ao quinto toque da campainha. Judd falou, as palavras enroladas, meio indistintas. Seus olhos foram atraídos por um movimento na tela de TV. Os dois homens, em roupas comuns, estavam atravessando o saguão, seguindo para o elevador.

Seu tempo se esgotava.

Os dois homens avançavam em silêncio para o apartamento de Judd e prostraram-se dos dois

lados da porta. O maior deles, Rocky, experimentou a maçaneta. A porta estava trancada. Ele tirou o cartão de celulóide e inseriu-o cuidadosamente na fechadura. Fez um gesto com a cabeça para o irmão e ambos sacaram os revólveres munidos de silenciadores. Rocky comprimiu o cartão de celulóide contra a fechadura e depois empurrou a porta, que se abriu lentamente, sem oferecer qualquer resistência. Entraram na sala de estar, os revólveres em punho. Tinham diante de si três portas fechadas. E não havia o menor sinal de Judd. O irmão menor, Nick, experimentou a primeira porta. Estava trancada. Ele sorriu para o irmão, encostou a boca da arma na fechadura e apertou o gatilho. A porta se abriu lentamente, sem qualquer barulho. Era de um quarto. Os dois homens entraram, os revólveres percorrendo o quarto de um lado ao outro.

Não havia ninguém lá dentro. Nick verificou os armários, enquanto Rock voltava para a sala

de estar. Agiam sem qualquer pressa, sabendo que Judd estava escondido no apartamento, impotente.

Havia um prazer quase deliberado nos movimentos vagarosos deles, como se estivessem saboreando os movimentos que antecediam o assassinato de Judd.

Nick experimentou a segunda porta. Estava trancada também. Ele deu um tiro na fechadura

e entrou. Era o escritório. Estava vazio e encaminharam-se para a terceira porta. Rocky segurou o braço do irmão ao passarem diante do monitor de TV. Podiam ver na tela três homens que entravam apresadamente no saguão. Dois deles usavam jalecos de internos e empurravam uma maca sobre rodinhas. O terceiro carregava uma maleta preta de médico.

- Mas que diabo!

- Fique calmo, Rocky. É só alguém doente. Deve haver, pelo menos, cem apartamentos neste

prédio.

Ficaram olhando para a tela de TV, fascinados, vendo os dois internos empurrarem a maca

para dentro do elevador. A porta do elevador se fechou.

- Vamos esperar alguns minutos - disse Nick. - Pode ter sido algum acidente. Neste caso a

polícia estará lá fora.

- Mas que azar!

- Não se preocupe, Rocky. Stevens não irá a lugar nenhum.

A porta do apartamento abriu-se inesperadamente e o médico e os dois internos entraram,

empurrando a maca. Rapidamente os dois assassinos guardaram as armas nos bolsos.

O médico aproximou-se de Rocky.

- Ele está morto?

- Ele quem?

- A vítima de suicídio. Ele está morto ou vivo?

Os dois assassinos se entreolharam, aturdidos.

- Acho que vieram ao apartamento errado.

O médico passou por eles e experimentou a porta fechada do quarto.

- Está trancada. Ajudem-me a arrombá-la.

Os dois irmãos ficaram observando, desolados, o médico e os internos arrombarem a porta.

O médico entrou no quarto.

- Tragam a maca.

Ele aproximou-se da cama, onde Judd estava deitado.

- O senhor está bem?

Judd levantou os olhos, procurando focalizar o rosto à sua frente. E murmurou:

- Hospital…

- Está a caminho de lá.

Frustrados, os dois assassinos observaram os internos colocarem Judd sobre a maca,

envolvendo-o em lençóis.

- Vamos embora - disse Rocky.

O médico ficou observando os dois homens se retirarem. Depois virou-se para Judd, que

estava estendido na maca, o rosto pálido e ansioso:

- Você está bem, Judd?

Sua voz denotava uma profunda preocupação. Judd esboçou um sorriso.

- Estou ótimo.

Ele quase não podia ouvir a própria voz.

- Obrigado, Peter.

Peter olhou para o amigo, depois fez um gesto com a cabeça para os dois internos.

- Vamos indo.


Capítulo 18


O quarto do hospital era outro, mas a enfermeira a mesma. Tinha um olhar feroz de

desaprovação. Ela foi a primeira coisa que Judd viu sentada à cabeceira de sua cama, assim que abriu os olhos.

- Então já acordamos - disse ela rispidamente. - O Dr. Harris quer vê-lo. Vou informá-lo de

que já acordou.

Ela saiu do quarto, toda empertigada.

Judd sentou-se cautelosamente. Os reflexos dos braços e das pernas estavam um pouco

lentos, mas intactos. Ele tentou localizar uma cadeira do outro lado do quarto, com um olho de cada vez. A visão estava meio enevoada.

- Deseja uma consulta?

Judd levantou os olhos. O Dr. Seymour Harris entrara no quarto. E acrescentou jovialmente:

- Você está-se tornando um dos nossos melhores clientes. Sabe em quanto vai somente a

conta dos pontos? É claro que lhe vamos dar os descontos de freqüência… Como dormiu, Judd?

Ele sentou-se na beira da cama.

- Como um bebê. O que foi que me deu?

- Uma injeção de sódio-luminol.

- Que horas são?

- Meio-dia.

- Meu Deus! Tenho que sair daqui!

O Dr. Harris tirou a ficha médica da prancheta que estava carregando.

- Sobre que gostaria de falar primeiro? Sua concussão? As escoriações? Ou as contusões?

Harris pôs a ficha de lado e disse em tom grave:

- Judd, seu corpo sofreu um severo castigo. Maior do que você imagina. Se for inteligente,

continuará nesta cama por mais alguns dias, descansando. Depois tirará férias de um mês.

- Obrigado, Seymour.

- Você diz obrigado, mas, na verdade, está querendo dizer é "não, obrigado".

- Há um problema urgente que preciso resolver.

O Dr. Harris suspirou.

- Sabe quais são os piores pacientes do mundo? Os próprios médicos.

Ele mudou de assunto rapidamente, reconhecendo a derrota.

- Peter passou a noite inteira aqui. E depois que saiu está telefonando de hora em hora. Ele

está bastante preocupado com você, Judd. Acha que alguém tentou matá-lo ontem à noite.

- Você sabe como os médicos são. Não há um que não tenha imaginação em excesso.

Harris ficou em silêncio por um momento, depois encolheu os ombros e disse:

- Você é o analista. Eu sou apenas Ben Casey. Talvez saiba o que está fazendo… mas eu não

apostaria um níquel nisso. Tem certeza de que não quer ficar na cama por alguns dias?

- Não posso ficar.

- Está certo, Tigre. Vou deixá-lo sair amanhã.

Judd fez menção de protestar, mas o Dr. Harris interrompeu-o:

- Não discuta. Hoje é domingo. Os caras que o estão surrando precisam de um descanso.

- Seymour…

- Mais uma coisa: detesto bancar a mãe judia, mas tenho que lhe perguntar se ultimamente

tem comido alguma coisa.

- Quase nada.

- Está certo. Vou dar vinte e quatro horas à Senhorita Bedpan para engordá-lo. Judd…

- O que é?

- Tome cuidado. Eu detestaria perder um cliente tão bom.

E com isso o Dr. Harris se foi.

Judd fechou os olhos para descansar por um momento. Ouviu um barulho de pratos e

abriu-os. Uma linda enfermeira irlandesa estava entrando no quarto com um carrinho de comida.

- Está acordado, Dr. Stevens?

Ela sorriu.

- Que horas são?

- Seis horas.

Ele dormia o dia inteiro. A enfermeira colocou a comida na bandeja especial para a cama.

- Vai ter um banquete esta noite: peru. Amanhã é véspera de Natal.

- Eu sei.

Judd não sentia apetite algum até engolir o primeiro pedaço. Descobriu então que estava

faminto. O Dr. Harris proibira todos os telefonemas e, por isso, ele ficou na cama sem fazer nada, recuperando-se, agrupando as forças interiores para o combate. No dia seguinte precisaria de toda energia de que pudesse dispor.

Às dez horas da manhã seguinte o Dr. Seymour Harris entrou no quarto de Judd.

- Como está o meu paciente predileto? disse ele, sorrindo. - Sabe que você está parecendo

quase humano?

- Eu me sinto quase humano - disse Judd, sorrindo também.

- Ótimo. Você tem uma visita. Mas eu não gostaria de que se assustasse. Peter. E provavelmente Norah também. Parecia que ultimamente eles passavam a maior parte do tempo a visitá-lo em hospitais. O Dr. Harris continuou:

- É o Tenente McGreavy.

O coração de Judd se contraiu.

- Está ansioso por falar-lhe e já se pôs a caminho daqui. Ele queria ter certeza de que você

estaria acordado quando chegasse.

Para prendê-lo… Com Angeli em casa doente, McGreavy estava livre para fabricar todas as

provas que pudessem incriminar Judd. E assim que McGreavy o agarrasse, não haveria mais qualquer esperança. Ele tinha que fugir do hospital antes que McGreavy chegasse.

- Poderia pedir à enfermeira que chamasse o barbeiro, Seymour? Eu gostaria de fazer a barba.

Sua voz deve ter soado de forma estranha, pois o Dr. Harris fitou-o com uma expressão

esquisita. Ou será que McGreavy dissera ao Dr. Harris alguma coisa a respeito dele?

- Mas é claro, Judd!

E o Dr. Harris retirou-se.

No momento em que a porta se fechou, Judd levantou-se. As duas noites de sono haviam

produzido nele um verdadeiro milagre. As pernas ainda estavam um pouco trêmulas, mas isso logo passaria. Precisava agir rapidamente. Levou apenas três minutos para se vestir.

Entreabriu a porta, certificou-se de que não havia ninguém no corredor para detê-lo, depois

saiu e encaminhou-se para a escada de serviço. Ao começar a descer, Judd ouviu a porta do elevador se abrir. Olhou para trás e viu McGreavy encaminhando-se para o quarto que ele acabara de deixar.

Um guarda uniformizado e dois detetives seguiam o Tenente. Judd continuou a descer rapidamente e saiu do hospital pela entrada das ambulâncias. Um quarteirão depois, fez sinal para um táxi.

McGreavy entrou no quarto do hospital e viu a cama vazia e o armário desocupado.

- Ele fugiu. Mas talvez ainda possam apanhá-lo.

Pegou o telefone. A telefonista do hospital ligou-o com a Chefatura de Polícia.

- Aqui é McGreavy - disse ele rapidamente. - Quero que expeça um boletim geral urgente…

Dr. Stevens, Judd, sexo masculino, caucasiano, idade…

O táxi parou diante do edifício onde Judd tinha seu consultório. A partir daquele momento,

não havia segurança para ele em parte alguma. Não podia voltar para seu apartamento. Teria que se hospedar em algum hotel. Voltar ao consultório era muito arriscado, mas ele precisava fazê-lo de qualquer maneira.

Tinha que pegar o número de um telefone.

Pagou ao motorista e entrou no saguão do edifício. Todos os músculos do seu corpo estavam

doloridos. Avançou rapidamente. Sabia que tinha muito pouco tempo. Era pouco provável que estivessem esperando que ele voltasse ao consultório, mas não podia correr riscos desnecessários. Agora era uma questão de saber quem o pegaria primeiro: a polícia ou os seus assassinos.

Judd abriu a porta do consultório e entrou, trancando-a imediatamente. A sua sala parecia

agora estranha e hostil. Judd sabia que não mais poderia continuar tratando os seus pacientes ali.

Estaria sujeitando-os a um perigo muito grande. Judd sentiu-se cheio de raiva pelo que Don Vinton estava fazendo com a sua vida. Poderia ver a cena que provavelmente ocorrera quando os dois irmãos haviam voltado e informado o fracasso de mais uma tentativa de matá-lo. Se ele bem compreendera o caráter de Don Vinton, o homem tivera um acesso de raiva. A próxima tentativa ocorreria a qualquer momento.

Judd atravessou a sala para pegar o telefone de Anne, pois lembrara-se de duas coisas

enquanto estivera no hospital.

Algumas sessões de Anne tinham sido imediatamente anteriores às de John Hanson.

E Anne e Carol gostavam de conversar. Inocentemente, Carol poderia ter transmitido alguma

informação fatal a Anne. Se isso ocorrera, ela talvez corresse perigo agora.

Ele tirou seu caderninho de endereços de uma gaveta fechada à chave, encontrou o telefone

de Anne e discou. A campainha tocou três vezes e uma voz neutra disse:

- Aqui é uma telefonista de auxílio. Qual foi o número que discou, por gentileza?

Judd disse o número do telefone de Anne. Momentos depois a telefonista voltou a falar:

- Lamento, mas está discando para número errado. Por gentileza, consulte o seu catálogo

telefônico ou ligue para as informações.

- Obrigado.

Judd desligou. Ficou sentado, pensando, recordando-se de que seu serviço de recados

telefônicos o informara, poucos dias atrás, de que todos os seus pacientes haviam sido localizados, à exceção de Anne. Ele procurou no catálogo, mas nem o nome do marido de Anne nem o dela constavam na lista. Subitamente Judd sentiu que era muito importante falar com Anne. Copiou o seu endereço: Woodside Avenue, 617, Bayonne, Nova Jersey.

Quinze minutos depois ele estava num balcão da Avis, alugando um carro. Havia um cartaz

por trás do balcão que dizia: "Somos a segunda por isso nos esforçamos mais". "Estamos no mesmo barco", pensou Judd.

Tudo acertado, ele saiu da garagem com o carro alguns minutos mais tarde. Deu uma volta

pelo quarteirão, certificando-se de que não estava sendo seguido, e então seguiu para a Ponte George Washington, a caminho de Nova Jersey.

Ao chegar a Bayonne, ele parou num posto de gasolina para pedir informações.

- Vire à esquerda na próxima esquina. É a terceira rua depois.

- Obrigado.

Judd prosseguiu. Só de pensar em ver Anne novamente seu coração disparou. O que poderia

dizer a ela sem alarmá-la? Será que o marido estaria em casa?

Judd entrou em Woodside Avenue. Verificou a numeração das casas. Ainda estava no

quarteirão da centena 900. As casas de ambos os lados eram pequenas, antigas, assoladas pelo tempo.

Ele entrou no quarteirão da centena 700. As casas pareciam tornar-se progressivamente ainda

menores e mais velhas.

Anne vivia numa linda propriedade, toda arborizada. Praticamente não havia árvores por ali.

Ao chegar ao endereço que Anne lhe dera, Judd já estava mais ou menos preparado para o que viu.

O número 617 de Woodside Avenue era um terreno baldio, coberto de mato.


Capítulo 19


Judd, parou o carro do outro lado do terreno baldio, procurando compreender a situação. O

número errado do telefone era um engano corriqueiro. Ou o endereço poderia ter sido um engano.

Mas não ambos. Anne lhe mentira deliberadamente. E se ela mentira em relação a quem era e onde morava, sobre o que mais poderia ter-lhe mentido. Judd forçou-se a analisar objetivamente tudo o que sabia a respeito dela. Quase nada. Ela entrara em seu consultório sem ser encaminhada por ninguém e insistira em tornar-se sua paciente. Evitava cuidadosamente revelar-lhe qual o seu problema, ao longo das quatro semanas em que o visitara. Depois, subitamente, anunciara que o problema estava resolvido e que iria viajar. Depois de cada sessão ela lhe pagava em dinheiro, de forma que não havia maneira de localizá-la agora. Mas que motivo ela poderia ter para se apresentar como sua paciente e depois desaparecer? Só havia uma resposta. E quando Judd chegou à conclusão

inevitável, sentiu-se fisicamente arrasado.

Se alguém queria preparar uma armadilha para assassiná-lo, precisando, para isso, conhecer

a sua rotina no consultório, como era a sala por dentro, que melhor maneira de descobri-lo senão fazendo-se passar por paciente? Fora o que Anne fizera. Don Vinton a mandara. Ela descobrira o que precisava e depois desaparecera, sem deixar vestígios.

Tudo não passara de fingimento, e ele se deixara lograr. Como Anne deveria ter rido ao

informar tudo a Don Vinton sobre o idiota apaixonado que se julgava um analista que conhecia a fundo as pessoas! Ele se apaixonara insensatamente por uma moça cujo único objetivo era armar o cenário para o seu assassinato. Era assim que ele julgava conhecer o caráter das pessoas? Daria um relatório dos mais divertidos para a Associação Psiquiátrica Americana.

Mas… e se isso não fosse verdade? E se Anne fora procurá-lo com um problema genuíno,

usando um nome fictício por recear prejudicar uma terceira pessoa? O problema terminara resolvendo-se por si mesmo, e ela concluíra que não precisava mais da ajuda de um analista. Mas Judd sabia que essa explicação era fácil demais. Havia um elemento ignorado a respeito de Anne que precisava ser desvendado. Judd teve o pressentimento de que a explicação para tudo o que estava acontecendo talvez estivesse nesse elemento desconhecido. Era possível que ela estivesse sendo coagida. Mas Judd sabia que estava sendo tolo. Tentava apenas imaginar Anne como uma donzela em desgraça e a ele próprio como um cavaleiro numa armadura refulgente. Será que ela preparara a armadilha para assassiná-lo? Ele tinha que descobrir, de qualquer maneira. Uma mulher idosa, num casaco puído, saiu de uma casa e ficou olhando para ele. Judd deu a volta e seguiu novamente para a Ponte George Washington.

Havia uma fila de carros atrás. Um deles poderia estar a segui-lo. Mas por que haveriam de

segui-lo? Seus amigos sabiam onde encontrá-lo. Não podia, contudo ficar sentado à espera

passivamente que o atacassem. Ele próprio tinha que atacar, apanhá-los desprevenidos, enfurecer Don Vinton até que este cometesse um erro pelo qual pudesse ser derrotado. E Judd tinha que fazer tudo isso antes que McGreavy o apanhasse. e o metesse na cadeia.

Judd seguiu para Manhattam. A única chave para o quebra-cabeças era Anne que

desaparecera sem deixar o menor vestígio. E ela sairia do país dentro de dois dias.

Judd vislumbrou então, repentinamente, uma possibilidade de encontrá-la.

Era véspera de Natal e o escritório da Pan-Am estava apinhado de viajantes e de pessoas que

esperavam uma desistência, para poderem viajar.

Judd conseguiu abrir caminho até o balcão, através das filas de espera, pedindo para falar ao

gerente. A jovem uniformizada dirigiu-lhe um sorriso profissional e pediu que esperasse.

Judd ficou parado ali, ouvindo babel de vozes.

- Quero ir para a Índia.

- Será que está muito frio em Paris?

- Quero um carro à minha espera em Lisboa.

Ele sentiu um desejo desesperado de entrar num avião e fugir. Só então compreendeu quão

exausto estava, física e emocionalmente. Don Vinton parecia ter um exército à sua disposição, mas Judd estava sozinho. Que chances poderia ter?

- Em que posso ajudá-lo?

Judd virou-se. Um homem alto e de aspecto cadavérico estava atrás do balcão.

- Meu nome é Friendly.

Ele ficou esperando que Judd apreciasse a piada. Judd sorriu para agradar-lhe e acrescentou:

- Charles Friendly. Em que posso servi-lo?

- Eu sou o Dr. Stevens. Estou tentando localizar uma paciente minha. Ela está de viagem

marcada para a Europa amanhã.

- O nome, por gentileza?

- Anne Blake.

Judd hesitou, mas acrescentou:

- Possivelmente a reserva foi feita em nome do Sr. e Sra. Anthony Blake.

- Para que cidade ela está seguindo?

- Eu… eu não tenho muita certeza.

- As reservas foram feitas para um dos nossos vôos matutinos ou para um vôo vespertino?

- Nem mesmo tenho certeza se é a sua companhia.

A cordialidade desapareceu dos olhos do Sr. Friendly.

- Então, infelizmente, não poderei ajudá-lo.

Judd foi dominado por um sentimento súbito de pânico.

- Mas é realmente muito importante! Tenho que localizá-la antes da partida!

- Doutor, a Pan-American tem um ou mais vôos diários para Amsterdã, Barcelona, Berlim,

Bruxelas, Copenhague, Dublim, Dussedorf, Frankfurt, Hamburgo, Lisboa, Londres, Munich, Paris, Roma, Shannon, Stuttgart e Viena. O mesmo acontece com as outras companhias aéreas

internacionais. Terá que procurar uma a uma. E duvido muito de que possam ajudá-lo, a menos que informe o destino e a hora da partida.

A expressão no rosto do Sr. Friendly era agora de impaciência.

- Se me dá licença…

Ele virou-se, afastando-se

- Espere um instante!

Como ele poderia explicar que aquela era a sua última chance de manter-se vivo, de descobrir

quem estava tentando matá-lo? Friendly fitava-o agora com uma hostilidade indisfarçável.

- Pois não?

Judd esforçou-se por sorrir, odiando-se por ter que fazê-lo.

- Não possuem uma espécie de sistema central de computação no qual podem descobrir os

nomes dos passageiros pelo…?

- Só se souber o número do vôo - disse o Sr. Friendly, virando-lhe as costas e afastando-se

de vez.

Judd ficou parado no balcão, sentindo-se arrasado. Estava derrotado. Não havia mais nada

que pudesse fazer.

Nesse momento entrou um grupo de sacerdotes italianos, de batinas negras que esvoaçavam,

com imensos chapéus negros. Pareciam figuras vindas diretamente da Idade Média. Carregavam malas baratas de papelão, caixas e cestos de frutas. Falaram alto, em italiano. Zombavam visivelmente do membro mais jovem do grupo, um rapaz que não parecia ter mais do que dezoito ou dezenove anos. "Os padres provavelmente estavam regressando a Roma depois de umas férias", pensou Judd, ao ouvi-lo pronunciarem a palavra Roma… "onde Anne estaria"… Anne novamente.

Os padres aproximaram-se do balcão.

- E molto bene di ritornare a casa.

- Si, d'acordo.

- Signore, per piacce, guardatemi.

- Tutto va bene?

- Si, ma…

- Dio mio, dave sono i miei biglietti?

- Cretino, hai perduto i biglietti.

- Ah, eccoli.

Os padres entregaram as passagens ao mais jovem, que se aproximou timidamente da moça

no balcão. Judd olhou para a porta de saída. Um homem gordo, de sobretudo cinza, estava parado ali.

O jovem padre estava falando com a moça:

- Diece. Dieci.

A jovem fitava-o impassível, sem compreender nada. O padre reuniu todos os seus

conhecimentos de inglês e por fim conseguiu fazer-se entender.

Ele apresentou as passagens à jovem. Ela sorriu e começou imediatamente a verificá-las. Os

padres irromperam em gritos, deliciados deram aplausos à capacidade lingüística do companheiro, batendo-lhe repetidamente nas costas.

"De nada adiantava continuar ali", concluiu Judd. Mais cedo ou mais tarde ele teria que

enfrentar o que quer que houvesse lá fora à sua espera. Judd virou-se lentamente e começou a

afastar-se do grupo de padres.

- Guardote che ha fatto il Don Vinton.

Judd estacou. O sangue afluiu-lhe ao rosto. Virou-se para o padre atarracado que falava e

segurou-lhe o braço.

- Com licença - disse ele, numa voz rouca e trêmula - mas falou em "Don Vinton"?

O padre olhou-o atônito, depois bateu no braço de Judd e fez noção de afastar-se. Judd

apertou-lhe o braço com mais força.

- Espere um instante!

O padre ficou visivelmente nervoso. Judd fez um grande esforço para falar com toda a calma:

- Don Vinton. Quem é ele? Mostre-me.

Todos os padres olharam para Judd. O padre atarracado olhou para os companheiros e disse:

- É um americano notto.

Houve um murmúrio nervoso de vozes italianas. Pelo canto dos olhos, Judd viu que Friendly

o observava do balcão. Friendly logo deu a volta ao balcão e encaminhou-se em sua direção. Judd procurou controlar o pânico crescente que o invadia. Largou o braço do padre, inclinou-se na direção dele e disse bem devagar e nitidamente:

- Don Vinton.

O padre olhou atentamente para Judd e logo seu rosto se iluminou com uma expressão

divertida.

- Don Vinton!

O gerente aproximou-se rapidamente, com uma expressão hostil. Judd sacudiu a cabeça para

o padre, encorajando-o a continuar. O padre apontou para o mais jovem do grupo.

- Don Vinton… o "grande homem", o "chefão".

E subitamente o quebra-cabeças foi decifrado.


Capítulo 20


- Calma, calma - disse Angeli, a voz muito rouca. - Assim não posso entender uma só palavra

do que está dizendo.

- Desculpe - disse Judd, respirando fundo e acrescentando: - Eu descobri a resposta!

Ele sentia-se tão aliviado por ouvir a voz de Angeli que quase gaguejava.

- Já sei quem está querendo matar-me. Sei quem é Don Vinton.

A voz de Angeli era céptica:

- Não conseguimos descobrir nenhum Don Vinton.

- Sabe por quê? Porque não é o nome de um homem e sim um título!

- Quer falar um pouco mais devagar?

A voz de Judd tremia de excitação.

- Don Vinton não é nome de pessoa. É uma expressão italiana que significa "o chefão". Foi

o que Moody quis dizer-me, que o "chefão" é que está atrás de mim.

- Não estou entendendo nada, Doutor.

- Não significa coisa alguma, em inglês, mas será que não lhe sugere nada se pensar em

italiano? Não seria uma organização de assassinos dirigida pelo Chefão?

Houve um longo silêncio do outro lado do fio.

- A Cosa Nostra?

- E quem mais poderia reunir dessa forma um grupo de assassinos e tantas armas? ácido,

bombas, revólveres! Lembra-se de que eu lhe disse que o nosso homem devia ser um europeu meridional? Pois ele é italiano.

- Isso não faz o menor sentido, Doutor. Por que a Cosa Nostra haveria de querer matá-lo?

- Não tenho a menor idéia. Mas sei que estou certo. E isso se ajusta a algo mais que Moody

me disse: que havia um grupo de homens querendo me matar.

- É a teoria mais louca que já ouvi, Doutor. - Ele fez uma pausa longa e depois acrescentou:

- Mas suponho que seja possível.

Judd sentiu-se aliviado. Se Angeli não quisesse dar-lhe atenção, ele não teria mais ninguém

a quem recorrer.

- Já falou a respeito disso com alguém, Doutor?

- Não.

- Pois não o faça - disse Angeli, com veemência inesperada. - Se está certo, sua vida depende

disso. Não chegue perto do seu apartamento nem do consultório.

- Não chegarei. Judd lembrou-se de uma coisa e perguntou:

- Já sabia que McGreavy tem um mandato de prisão contra mim?

- Já.

Angeli hesitou antes de acrescentar:

- Se McGreavy o apanhar, não chegará vivo à delegacia.

"Meu Deus"! Então ele não se enganara a respeito de McGreavy. Mas não podia acreditar

que McGreavy fosse o cérebro por trás de tudo. Havia alguém a dirigi-lo… Don Vinton. O Chefão.

- Está-me ouvindo, Doutor?

A boca de Judd estava ressequida.

- Estou.

Um homem com sobretudo cinza estava parado do lado de fora da cabine telefônica, olhando

para Judd. Seria o mesmo homem que ele vira antes?

- Angeli…

- Pois não?

- Não sei quem são os outros. Não sei como parecem. Como posso manter-me vivo até que

eles sejam apanhados?

O homem de sobretudo cinza continuava a olhar fixamente para Judd. A voz de Angeli disse

ao telefone:

- Vamos diretamente para o FBI. Tenho um amigo que tem contatos lá. Ele providenciará

para que o senhor receba proteção até que tudo esteja resolvido. Certo?

- Certo - respondeu Judd, agradecido.

Os joelhos de Judd pareciam ser de gelatina.

- Onde está agora, Doutor?

- Numa cabine telefônica no saguão da Pan-Am.

- Não saia daí. Procure ficar sempre cercado por uma multidão. Já estou indo encontrá-lo.

Houve um clique no outro lado da linha quando Angeli desligou.

Ele desligou o telefone na delegacia, sentindo uma náusea profunda invadi-lo. Ao longo dos

anos ele se acostumara a lidar com assassinos, tarados sexuais, pervertidos de toda espécie.

Desenvolvera uma carapaça protetora, que lhe permitira continuar a acreditar na dignidade e

bondade básica do homem.

Mas um policial corrupto era algo diferente.

Um policial corrupto era um câncer que afetava toda a polícia, uma ameaça a tudo aquilo

por que os policiais decentes lutavam e morriam.

Os ruídos de passos e murmúrio de vozes enchia a sala, mas ele não ouvia coisa alguma. Dois

guardas uniformizados passaram por ali, levando um gigante algemado. Um dos guardas tinha um olhar preto e o outro segurava um lenço no nariz a sangrar. A manga do seu uniforme fora rasgada pela metade. O próprio guarda é que teria de pagar a nova blusa. Aqueles homens estavam dispostos a arriscar as suas vidas todos os dias e todas as noites do ano inteiro. Mas isso não dava manchete.

Um polícia corrupto dava manchete. Um polícia corrupto era uma nódoa para toda a corporação. E acontece que o policial corrupto era o seu companheiro de trabalho.

Cansado, ele se levantou e percorreu o velho corredor até o gabinete do Capitão. Bateu a

porta uma vez e entrou.

Sentado à mesa escalavrada, marcada por pontas de cigarro de anos incontáveis, achava-se

o Capitão Bertelli. Dois agentes do FBI estavam na sala, usando ternos comuns. O Capitão Bertelli levantou os olhos quando a porta se abriu.

- E então?

O detetive assentiu.

- Está comprovado. O encarregado da guarda das provas disse que ele pegou a chave de

Carol Roberts na tarde de quarta-feira e devolveu-a a noite. Foi por isso que o teste de parafina deu negativo. Ele entrou no consultório do Dr. Stevens com uma chave original. O encarregado não pensou duas vezes no assunto, porque sabia que ele estava incumbido do caso.

- Sabe onde ele está agora? - perguntou o mais jovem dos agentes do FBI.

- Não. Tínhamos um homem a segui-lo, mas ele conseguiu despistá-lo. Pode estar em

qualquer parte.

- Certamente está procurando o Dr. Stevens - disse o segundo agente do FBI.

O Capitão Bertelli virou-se para os agentes do FBI.

- Quais são as chances do Dr. Stevens permanecer vivo?

O mais velho sacudiu a cabeça.

- Se o encontrarem antes de nós, absolutamente nenhuma.

O Capitão Bertelli assentiu.

- Temos que encontrá-lo primeiro.

Ele fez uma pausa. Quando voltou a falar, sua voz tinha um tom furioso:

- E quero Angeli também. Não me interessa a maneira como o peguem.

Ele virou-se para o detetive e acrescentou:

- Mas quero que o pegue de qualquer maneira, McGreavy.

O rádio de polícia começou a transmitir uma mensagem:

- Código dez… Código dez… Atenção todos os carros…

Angeli desligou o rádio.

- Alguém sabe que eu fui apanhá-lo?

- Ninguém.

- Falou sobre a Cosa Nostra com mais alguém?

- Só com você.

Angeli assentiu, satisfeito.

Haviam atravessado a Ponte George Washington e estavam seguindo para Nova Jersey. Só que

agora estava tudo diferente para Judd. Antes ele estivera ali cheio de apreensões. Agora, com Angeli ao seu lado, não mais se sentia como um animal caçado. Era o caçador. E o pensamento proporcionou-lhe uma imensa satisfação.

Por sugestão de Angeli, Judd deixara o seu carro alugado em Manhattam e seguia no carro

da polícia sem identificação do detetive. Angeli seguira para o norte, passando por Orangeburg.

Estavam-se aproximando agora de Old Tapan.

- Foi muito esperto percebendo o que estava acontecendo, Doutor.

Judd sacudiu a cabeça.

- Eu já deveria ter imaginado assim que soube que havia mais de um homem envolvido. Não

podia deixar de ser uma organização, usando assassinos profissionais. Creio que Moody desconfiou da verdade quando viu a bomba em meu carro. Eles tinham acesso a todos os tipos de armas.

"E Anne". Ela era parte da trama, preparando tudo para que pudessem assassiná-lo. Mesmo

assim, ele não conseguia odiá-la. Não importava o que ela fizesse, Judd jamais poderia odiá-la.

Angeli saiu da estrada principal. Habilmente dirigiu o carro por uma estrada secundária, que

levava a uma área bastante arborizada.

- Seu amigo sabe que estamos indo para a casa dele? - indagou Judd.

- Telefonei para ele. Está pronto para recebê-lo.

Abruptamente surgiu uma estrada lateral e Angeli entrou por ela. Percorreu quase dois

quilômetros e parou diante de um portão eletrificando. Judd notou uma pequena câmara de televisão instalada no alto do portão. Houve um clique e o portão se abriu, fechando-se assim que passaram.

Começaram a subir por um caminho longo e sinuoso. Através das árvores à sua frente, Judd viu o telhado de uma enorme casa. Lá no alto, rebrilhando ao sol, havia um galo de bronze - ao qual estava faltando a cauda.


Capítulo 21


No centro de comunicações à prova de som e abundantemente iluminada da Chefatura de

Polícia trabalhavam doze polícias, em manga de camisa, e seis telefonistas de cada lado. No meio da mesa havia um tubo pneumático. Os operadores tomavam notas das mensagens telefônicas, punham a anotação no tubo pneumático e despachavam-na lá para cima, onde o coordenador a transmitia imediatamente para uma delegacia ou uma radiopatrulha. Os telefonemas nunca paravam. Fluíam para ali dia e noite, como um rio de tragédia a tragar os cidadãos da gigantesca metrópole. Homens e mulheres que estavam aterrorizados… solitários… desesperados… embriagados… feridos… homicidas… Era uma cena de Hogarth, pintada com palavras vividas e angustiadas ao invés de tintas.

Naquela tarde de segunda-feira havia uma sensação maior de tragédia no ar. Cada telefonista

se concentrava em seu serviço, mas não podia deixar de perceber o fluxo constante de detetives e agentes do FBI, entrando e saindo da sala, recebendo e dando ordens, trabalhando eficientemente na vasta rede eletrônica à procura do Dr. Judd Stevens e do detetive Frank Angeli. O ambiente estava estranhamente acelerado, como um espetáculo encenado por um controlador de marionetes sombrio e nervoso.

O Capitão Bertelli estava falando com Allen Sullivan, membro da Comissão Municipal Contra o Crime, quando McGreavy entrou. McGreavy já conhecia Sullivan. Era um homem duro e honesto.

Bertelli interrompeu a conversa e virou-se para o detetive, com uma expressão interrogativa.

- As coisas estão andando - informou McGreavy. - Descobrimos uma testemunha, um vigia

noturno que trabalha no prédio em frente àquele em que fica o consultório do Dr. Stevens. Na noite de quarta-feira, quando arrombaram o consultório do Dr. Stevens, esse vigia viu dois homens entrarem no prédio em frente. A porta da rua estava trancada, mas eles abriram-na com uma chave.

O vigia pensou que trabalhavam ali.

- Obteve alguma identificação?

- Ele identificou uma fotografia de Angeli.

- Na noite de quarta-feira Angeli fora dado como estando em casa, de cama, com um forte

resfriado.

- Exatamente.

- O que me diz do outro homem?

- O vigia não conseguiu vê-lo direito.

Uma telefonista enfiou um plug por baixo de um botão vermelho a brilhar no painel, escutou

por um momento e virou-se para o Capitão Bertelli:

- É para o senhor Capitão. Patrulha Rodoviária de Nova Jersey.

Bertelli atendeu rapidamente numa extensão.

- Capitão Bertelli falando.

Ele escutou por um momento.

- Tem certeza?… ótimo!…, Pode mandar todas as unidades que tiver para lá., Bloqueie as

estradas. Quero que toda a região seja coberta. Fique em contato comigo… Obrigado.

Ele virou-se para os dois homens:

- Parece que temos uma pista. Um patrulheiro de Nova Jersey viu o carro de Angeli numa

estrada secundária perto de Orangeburg. A Patrulha Rodoviária vai começar a revistar toda a área.

- E o Dr. Stevens?

- Ele estava no carro com Angeli. Não se preocupe que iremos encontrá-los.

McGreavy tirou dois charutos do bolso. Ofereceu um a Sullivan, que recusou, e entregou o

outro a Bertelli. Pôs o que Sullivam recusara entre os dentes e acendeu-o, comentando:

- Temos uma coisa a nosso favor. O Dr. Stevens parece ter um encantamento a protegê-lo.

Falei há pouco com um amigo dele, o Dr. Peter Hadley. Na semana passada, ele foi apanhar Stevens em seu consultório e encontrou Angeli lá, com um revólver na mão. Angeli contou uma história fantástica sobre um misterioso assaltante. Meu palpite é que a chegada do Dr. Hadley salvou a vida de Stevens.

- Como foi que começou a suspeitar de Angeli? - indagou Sullivan.

- Tudo começou com certas informações de que ele andava achacando alguns comerciantes.

Fui verificar, mas as vítimas não quiseram falar. Estavam apavoradas e eu não consegui entender o motivo. Não disse nada a Angeli, mas comecei a vigiá-lo de perto. Quando Hanson foi assassinado, Angeli veio perguntar se poderia trabalhar no caso comigo. Disse que sempre me admirava e que gostaria de ser meu companheiro no caso. Eu sabia que ele devia ter um motivo para insistir, por isso resolvi dar-lhe corda, com a devida permissão do Capitão Bertelli. Não é de admirar que ele quisesse trabalhar no caso, pois estava afundado nele até o pescoço! Na ocasião eu não sabia ao certo se o Dr. Stevens estava ou não envolvido nos assassinatos de Hanson e Carol Roberts, mas decidi usá-lo para agarrar Angeli. Arquitetei uma teoria para incriminar Stevens e disse a Angeli que ia prendê-lo pelos assassinatos. Imaginei que Angeli iria relaxar e despreocupar-se, se soubesse que estava livre de

suspeitas.

- E deu certo?

- Não. Angeli surpreendeu-me, fazendo todo o possível para impedir que Stevens fosse preso.

Sullivan ficou perplexo.

- Mas por quê?

- Porque ele estava querendo liquidar Stevens e não poderia fazê-lo se fosse efetuada a

prisão.

- Quando McGreavy começou a pressionar - interveio o Capitão Bertelli - Angeli veio

procurar-me, insinuando que McGreavy estava tentando incriminar o Dr. Stevens de qualquer

maneira.

- Tivemos certeza então de que estávamos no caminho certo - retornou McGreavy. - Stevens

contratou um detetive particular chamado Norman Moody. Investiguei Moody e descobri que ele já se envolvera antes com Angeli, que prendera um cliente dele por porte de narcóticos. Moody alegou que seu cliente tinha sido incriminado falsamente. Sabendo o que eu sei agora, creio que Moody estava dizendo a verdade.


- Então Moody teve um golpe de sorte e descobriu a resposta logo de saída.

- Não foi tanto assim por sorte. Moody era um detetive particular dos mais inteligentes. Ao

encontrar a bomba no carro do Dr. Stevens, entregou-a ao FBI e pediu que eles investigassem.

- Ele teve receio de entregar a bomba à polícia, achando que Angeli poderia pegá-la e dar

sumiço nela?

- É a impressão que eu tenho. Mas alguém deu com a língua nos dentes e Angeli soube de

tudo. Compreendeu imediatamente que Moody suspeitava dele. A primeira pista que tivemos foi quando Moody falou no nome "Don Vinton".

- A expressão da Cosa Nostra para "O Chefão"?

- Exatamente. Por algum motivo, alguém da Cosa Nostra está querendo liquidar o Dr.

Stevens.

- Como foi que ligou Angeli à Cosa Nostra?

- Procurei novamente os comerciantes a quem Angeli andara arrancando dinheiro. Quando

mencionei a Cosa Nostra, eles entraram em pânico. Angeli trabalhava para uma das famílias da Cosa Nostra, mas era muito ganancioso e começou a fazer algumas extorsões por conta própria.

- Mas por que a Cosa Nostra haveria de querer matar o Dr. Stevens? - indagou Sullivan.

- Não sei. Estamos investigando diversas possibilidades.

Ele suspirou.

- No momento temos dois problemas terríveis. Angeli escapou dos homens que mandáramos

segui-lo. E o Dr. Stevens fugiu do hospital antes que eu pudesse alertá-lo a respeito de Angeli e dar-lhe a proteção necessária.

Acendeu-se outro botão vermelho no painel. O telefonista ouviu por um momento e depois

chamou:

- Capitão Bertelli.

Bertelli atendeu na extensão.

- Capitão Bertelli falando.

Ficou escutando, sem dizer coisa alguma, depois repôs o telefone no gancho e virou-se para

McGreavy:

- Eles os perderam de vista!


Capítulo 22


Anthony DeMarco tinha mana.

Judd pôde sentir a força intensa da personalidade dele do outro lado da sala, emanando em

ondas quase tangíveis. Anne não exagerara ao dizer que o marido era bonito.

DeMarco possuía um rosto romano clássico, com um perfil impecável, olhos negros como

carvão, algumas mechas grisalhas nos cabelos pretos. Tinha quarenta e poucos anos, era alto e

atlético, movia-se com uma agilidade animal algo irrequieta. A voz era grave e magnética:

- Aceita um drinque, Doutor?

Judd sacudiu a cabeça, fascinado pelo homem que estava à sua frente. Qualquer um seria

capaz de jurar que DeMarco era um homem encantador, inteiramente normal, um anfitrião perfeito a receber um hóspede distinto.

Havia cinco homens na biblioteca revestida de painéis de madeira: Judd, DeMarco, o detetive

Angeli e os dois homens que haviam tentado matar Judd em seu apartamento, Rocky e Nick Vaccro.

Os outros quatro formavam um círculo ao redor de Judd. Ele fitava os rostos de seus inimigos e sentia nisso uma estranha satisfação. Finalmente sabia contra quem estava lutando. Se é que "lutando" era a palavra certa. Ele caíra na armadilha de Angeli. Pior que isso. Ele próprio telefonara para Angeli e convidara-o a ir agarrá-lo! Angeli, o Judas que trouxera até ali para ser liquidado!

DeMarco examinou com profundo interesse os olhos negros especulativos.

- Já ouvi falar muito a seu respeito - disse ele finalmente.

Judd ficou calado.

- Perdoe-me por tê-lo trazido até aqui dessa maneira, mas era necessário para que eu pudesse

fazer-lhe algumas perguntas.

Ele sorriu, numa expressão de desculpa, irradiando simpatia. Judd sabia o que ia acontecer.

- O que andou conversando com a minha esposa, Dr. Stevens?

Judd imprimiu um tom de surpresa à sua voz:

- Sua esposa? Não conheço sua esposa.

DeMarco sacudiu a cabeça, num gesto de repreensão.

- Ela tem ido ao seu consultório duas vezes por semana, nas últimas três semanas.

Judd franziu o rosto, pensativo.

- Não tenho nenhuma paciente chamada DeMarco…

DeMarco assentiu, com uma expressão compreensiva.

- Talvez ela tenha usado outro nome. Possivelmente o seu nome de solteira, Blake, Anne

Blake.

Judd cuidadosamente manifestou sua surpresa:

- Anne Blake?

Os dois irmãos Vaccaro chegaram-se mais perto dele.

- Não! - disse DeMarco rispidamente.

Ele virou-se para Judd. A atitude afável desaparecera por completo.

- Doutor, se quiser brincar comigo, vou-lhe fazer coisas que jamais poderia acreditar.

Judd fitou-o atentamente aqueles olhos pretos e acreditou no mesmo instante. Sabia agora

que sua vida estava suspensa por um fio. Imprimiu um tom de indignação.

- Pode fazer o que bem lhe aprouver. Mas o fato é que até este momento eu não tinha a

menor idéia de que Anne Blake era sua esposa.

- Talvez seja verdade - disse Angeli. - Ele…

DeMarco ignorou Angeli inteiramente.

- O que conversou com a minha esposa durante as últimas três semanas?

Eles haviam chegado ao momento da verdade. No momento em que Judd vira o galo de

bronze no telhado, os últimos pedaços do quebra-cabeças se haviam ajustado em seus lugares. Anne não participara da conspiração para assassiná-lo. Assim como ele, Anne também era uma vítima.

Casara-se com Anthony DeMarco, próspero proprietário de uma empresa de construções, sem ter a menor idéia de quem ele realmente era. Depois devia ter acontecido alguma coisa que a levara a desconfiar de que o marido não era exatamente o que parecia, que estava envolvido em algo sombrio e terrível. Sem ninguém com quem falar, ela procurara a ajuda de um analista, um estranho, a quem pudesse fazer confidências. Mas a lealdade básica que sentia para com o marido impedira-a de discutir as suas apreensões no consultório de Judd.

- Não falamos sobre muita coisa - disse Judd calmamente. - Sua esposa recusou-se a dizer

qual era o problema dela.

- Terá que contar uma história bem melhor do que essa, Doutor.

DeMarco devia ter sentido um imenso pânico ao saber que a esposa estava consultando um

psicanalista - a esposa de um dos líderes da Cosa Nostra! Não era de admirar que DeMarco tivesse assassinado, procurando apoderar-se da ficha de Anne.

- Tudo o que ela me disse foi que se sentia infeliz por causa de alguma coisa, mas recusou-se

a dizer o que era.

- Para isso é preciso apenas dez segundos - disse DeMarco. - Tenho um registro de todos os

minutos que ela passou em seu consultório. O que lhe disse pelo resto das três semanas? Deve ter-lhe contado quem eu sou.

- Ela disse que era dono de uma empresa de construções.

DeMarco examinou-o, com uma expressão fria. Judd sentiu gotas de suor formarem-se em

sua testa.

- Estive lendo algumas coisas sobre análise, Doutor. O paciente fala tudo o que lhe vem à

cabeça.

- Isso faz parte da terapia - explicou Judd, em tom indiferente. - Foi por isso que não

consegui chegar a conclusão alguma com a Sra. Blake… com a Sra. DeMarco. Eu tencionava

dispensá-la como paciente.

- Mas não o fez.

- Não houve necessidade. Na sexta-feira ela me disse que estava de partida para a Europa.

- Anne mudou de idéia. Não quer mais ir para a Europa comigo. E sabe por quê?

Judd estava genuinamente surpreso.

- Não.

- Por sua causa, Doutor.

O coração de Judd deu um pulo. Ao falar, ele procurou cuidadosamente não demonstrar a

menor emoção na voz:

- Não estou entendendo.

- Claro que entende. Anne e eu tivemos uma longa conversa ontem à noite. Ela está achando

que o nosso casamento foi um erro, porque pensa que está apaixonada pelo senhor, Doutor.

DeMarco falava num sussurro quase hipnótico.

- Quero que me diga o que aconteceu entre os dois quando estavam a sós em seu consultório,

com ela estendida no divã.

Judd procurou controlar as emoções que o invadiam. Então Anne se importava com ele! Mas

de que adiantava isso para qualquer um dos dois! DeMarco fitava-o, esperando uma resposta.

- Nada aconteceu. Se andou lendo sobre análise, deve saber que toda paciente passa por uma

transferência emocional. Todas elas pensam, em uma ou outra ocasião, que estão apaixonadas pelo seu médico. Mas é apenas uma fase passageira.

DeMarco observava-o atentamente, os olhos negros sondando os olhos de Judd.

- Como soube que ela estava-se consultando comigo? - indagou Judd, procurando fazer com

que a pergunta soasse natural.

DeMarco olhou para Judd por um momento, depois foi até uma escrivaninha e pegou uma

adaga afiada.

- Um dos meus homens viu-a entrando no seu edifício. Há ali uma porção de escritórios de

pediatras e ele pensou que Anne estava reservando-me uma pequena surpresa. Seguiu-a e viu que ela entrou em seu consultório.

Ele virou-se para Judd.

- E foi de fato uma surpresa. Anne estava indo a um psiquiatra. A esposa de Anthony

DeMarco contando todos os meus segredos profissionais a um "espreme-crânios"!

- Eu já lhe disse que ela não…

A voz de DeMarco era suave, impedindo Judd de continuar:

- A Cammissione realizou uma reunião. Votaram para que eu a matasse, como matamos a

todos os traidores.

Ele estava agora andando de um lado para o outro, fazendo Judd pensar num animal

enjaulado.

- Mas eles não me puderam dar ordens como se eu fosse um soldado camponês. Sou Anthony

DeMarco, um Capo. Prometi-lhes que mataria o homem com quem Anne falara, se ela por acaso tivesse abordado os nossos negócios. Com estas duas mãos.

Ele ergueu as mãos, uma delas segurando-a adaga afiada.

- E o senhor é esse homem, Doutor.

DeMarco estava agora circulando-o enquanto falava. Cada vez que ele ficava às suas costas,

Judd preparava-se para receber o golpe.

- Está cometendo um erro, se…

Judd não pôde continuar, interrompido por DeMarco:

- Como ela pôde pensar que o senhor é um homem melhor do que eu? Os irmãos Vaccaro

soltaram uma risada.

- O senhor é absolutamente nada, Doutor. Não passa de um pobre coitado que se mete num

escritório todos os dias e ganha… o quê? Trinta mil dólares por ano? Cinqüenta mil? Cem mil? Eu ganho mais do que isso numa semana.

A máscara de DeMarco estava escorrendo mais depressa agora, removida pela expressão das

suas emoções. Ele estava começando a falar em explosões curtas e excitadas, as feições bonitas se distorceram. Anne vira-lhe apenas a fachada. Judd estava agora olhando para a face nua de um maníaco homicida.

- Você e a pequena putana treparam naquele maldito consultório!

- Nós não fizemos coisa alguma.

Os olhos de DeMarco pareciam arder em delírio.

- Ela nada significa para você?

- Eu já lhe disse que ela não passa de uma paciente.

- Está bem - disse DeMarco finalmente. - Irá dizer isso a ela.

- Dizer o quê?

- Que não dá a menor importância a ela. Vou mandá-la descer. E quero que fale com ela a

sós.

O pulso de Judd disparou. Ele teria uma chance de salvar a si mesmo e a Anne. DeMarco

estalou os dedos e os outros homens saíram da biblioteca. Ele virou-se em seguida para Judd. Os olhos negros estavam ocultos. Ele sorriu gentilmente, a máscara novamente no lugar.

- Desde que não saiba de nada. Anne viverá. Mas terá que convencê-la a ir comigo para a

Europa.

Judd sentiu a boca subitamente seca. Havia um brilho triunfante nos olhos de DeMarco. Judd

sabia o motivo. Ele subestimara o seu oponente.

Fatalmente.

DeMarco não era um jogador de xadrez, mas era esperto o bastante para saber que tinha um

peäo que tornava Judd impotente, Anne. Qualquer que fosse o movimento de Judd, ela estaria em perigo. Se Judd a mandasse para a Europa com DeMarco, mesmo assim a vida de Anne continuaria em perigo. Ele não acreditava que DeMarco fosse deixar que ela vivesse. A Cosa Nostra não o permitiria. DeMarco providenciaria um “acidente" na Europa. E se Judd dissesse a Anne para não ir, se ela descobrisse o que lhe estava acontecendo e tentasse interferir, então morreria naquele instante. Não havia escapatória. A opção era entre duas armadilhas fatais.

Da janela do seu quarto, no segundo andar, Anne observara a chegada de Judd e Angeli. Por

um momento de exultação ela pensara que Judd tinha vindo buscá-la, salvá-la da terrível situação em que se encontrava. Mas depois ela vira Angeli sacar um revólver e obrigar Judd a entrar na casa.

Há quarenta e oito horas que ela sabia de toda a verdade a respeito do marido. Antes disso tivera apenas uma suspeita vaga, tão inacreditável que procurava esquecer. Tudo começara alguns meses antes, quando ela fora assistir a uma peça em Manhattam e voltara para casa inesperadamente mais cedo, porque a estrela estava embriagada e a cortina se fechara definitivamente no meio do segundo ato. Anthony dissera-lhe que ia realizar uma

reunião de negócios em casa, mas que estaria terminada antes que ela voltasse. Mas quando Anne chegara, mais cedo do que o previsto, a reunião ainda prosseguia. E antes que seu surpreso marido tivesse tempo de fechar a porta da biblioteca, ela ouvira alguém gritar furiosamente:

- Meu voto é para explodirmos a fábrica esta noite e darmos um jeito naqueles filhos da puta

de uma vez por todas!

Anne ficara extremamente nervosa com a frase, a aparência rude dos estranhos que estavam

na biblioteca e a agitação de Anthony ao vê-la. Deixara-se convencer pelas explicações alongadas do marido, porque queria desesperadamente ser convencida. Nos seis meses de casamento ele sempre se mostrara um esposo terno e cheio de atenções. Ela vira-o algumas vezes explodir violentamente, mas Anthony sempre conseguira controlar-se logo.

Algumas semanas depois do incidente do teatro, ela pegara um telefone por acaso e ouvira

a voz de Anthony falando numa extensão:

- Vamos trazer um carregamento de Toronto esta noite. Terá que mandar alguém cuidar do

guarda. Ele não está conosco.

Anne desligara prontamente, bastante abalada. "Trazer um carregamento"… “Cuidar do”.

guarda “… Aquilo parecia algo terrível, mas podia ser também frases inocentes no trato de negócios”.

Cuidadosamente, como se estivesse indiferente, ela procurara interrogar Anthony a respeito dos negócios dele. Mas fora como subitamente se levantasse uma barreira de aço. Ela vira-se diante de um estranho furioso, que lhe disse que cuidasse tão-somente da casa e não se metesse nos seus negócios. Haviam discutido em termos amargos. Na noite seguinte Anthony lhe dera um colar extremamente caro e lhe pedira desculpas ternamente.

Um mês depois, ocorrera o terceiro incidente. Anne acordara as quatro da manhã, com uma

batida de uma porta. Vestira um roupão e descera para investigar. Ouvira vozes na biblioteca,

discutindo acaloradamente. Fora até lá, mas parara ao ver Anthony conversando com meia dúzia de estranhos. Temendo que ele se zangasse por ser interrompido, ela voltara em silêncio para seu quarto e se deitara. Ao café, na manhã seguinte, ela perguntara como ele dormira.

- Maravilhosamente. Fechei os olhos às dez horas e só voltei a abri-los hoje de manhã.

Anne compreendera então que estava com um problema. Não sabia que tipo de problema era,

nem qual a sua gravidade. Só sabia que o marido lhe mentira, por motivos que ela não podia

imaginar. Em que espécie de negócios ele estaria envolvido que eram tratados na calada da

madrugada, em segredo, com homens que mais pareciam bandidos? Anne sentira medo de abordar novamente o assunto com Anthony. O pânico começara a crescer dentro dela. Não havia mais ninguém com quem pudesse falar.

Algumas noites depois disso, num jantar no Country Club do qual eram sócios, alguém

mencionara um psicanalista chamado Judd Stevens, dizendo que se tratava de um profissional

excelente.

- Ele é uma espécie de analista entre os analistas, se entendem o que quero dizer. E é

incrivelmente bonito, embora isso não tenha qualquer efeito prático… pois ele é um desses tipos cem por cento dedicados à profissão.

Anne guardara cuidadosamente o nome e na semana seguinte fora procurá-lo.

A primeira sessão com Judd virara a sua vida de cabeça para baixo. Era se vira atraída a um

turbilhão emocional que a deixara profundamente abalada. Em sua confusão, mal conseguira falar com Judd na primeira sessão. Ao partir, sentia-se como uma colegial tola e prometera a si mesma que nunca mais voltaria. Mas ela voltara, para provar a si mesma que a reação que tivera fora puramente acidental. Mas na segunda vez a reação fora ainda mais forte. Ela sempre se orgulhara de ser sensata e realista, mas naquele momento vira-se agindo como uma garota de dezessete anos, apaixonada pela primeira vez. Não fora capaz de discutir o problema do marido com Judd e por isso haviam conversado a respeito de outras coisas. Depois de cada sessão, Anne descobrira que estava mais apaixonada ainda por aquele estranho sensível e afetuoso.

Ela sabia que não havia qualquer esperança, pois jamais se divorciaria de Anthony. Sentira

que devia ter algum defeito terrível, para casar-se com um homem e seis meses depois, apaixonar-se por outro. Concluíra então que seria melhor nunca mais voltar a ver Judd.

E então uma série de coisas estranhas começara a acontecer. Carol Roberts fora assassinada

e Judd atropelado em circunstâncias misteriosas. Ela lera nos jornais que Judd estava presente quando tinham encontrado o corpo de Moody na Five Star. Ela já vira o nome daquela companhia.

No cabeçalho de uma fatura na mesa de Anthony.

Uma suspeita terrível começara a se formar na mente de Anne.

Parecia incrível que Anthony pudesse estar envolvido nas coisas terríveis que vinham

acontecendo. No entanto… Anne sentira-se como que aprisionada num pavoroso pesadelo, do qual não tinha escapatória. Não podia falar sobre as suas apreensões com Judd e tinha medo de fazê-lo com Anthony. Ela dissera a si mesmo que suas suspeitas eram infundadas. Anthony nem mesmo sabia da existência de Judd.

E então, quarenta e oito horas atrás, Anthony entrara no quarto dela e começara a

interrogá-la sobre suas visitas a Judd. A primeira reação de Anne fora de raiva ao saber que ele andara a espioná-la, mas fora rapidamente substituída por todas as apreensões que se vinham acumulando dentro dela. Ao fitar o rosto furioso e contorcido do marido, ela compreendera que ele era capaz de tudo.

Até mesmo de assassinar alguém.

Durante o interrogatório, ela cometera um tremendo erro. Deixara-o saber o que sentia por

Judd. Os olhos de Anthony haviam ficado ainda mais negros e ela sacudira a cabeça, como que se esquivando de um golpe físico.

Só depois que ficara sozinha é que Anne compreendera o perigo que Judd estaria correndo.

Não poderia deixá-lo, de jeito nenhum. Dissera então a Anthony que não iria para a Europa com ele.

E agora Judd estava ali, naquela casa. A vida dele estava em perigo, por causa dela.

A porta do quarto se abriu e Anthony entrou. Ficou imóvel por um longo momento,

contemplando-a, antes de dizer:

- Você tem uma visita.

Ela entrou na biblioteca usando uma saia amarela e blusa da mesma cor, com os cabelos

soltos pelos ombros. O rosto estava pálido e parecia cansado, mas ela aparentava uma certa serenidade. Judd estava sozinho a esperá-la.

- Olá, Dr. Stevens. Anthony disse-me que o senhor estava aqui.

Judd teve a sensação de que estavam representando uma charada, em benefício de uma

audiência invisível e fatal. Intuitivamente ele percebeu que Anne estava a par da situação e punha-se nas mãos dele, disposta a seguir qualquer deixa que ele insinuasse.

E não havia nada que Judd pudesse fazer, exceto tentar mantê-la viva por mais algum tempo.

Se Anne se recusasse a ir para a Europa, DeMarco certamente a mataria ali mesmo.

Judd hesitou, escolhendo suas palavras cuidadosamente. Cada palavra poderia ser tão

perigosa quanto a bomba plantada em seu carro.

- Sra. DeMarco, seu marido está aborrecido porque a senhora mudou de idéia e não mais quer

ir para a Europa com ele.

Anne esperou, ouvindo, avaliando.

- Sinto muito - disse ela.

- Acho que deveria ir - disse Judd, alteando a voz.

Anne examinava atentamente o rosto dele, lendo-lhe os olhos.

- E se eu recusar? E se eu não quiser ir de jeito nenhum?

Judd foi dominado por um súbito alarme.

- Não deve fazer isso.


Ela jamais sairia viva daquela casa se ela tomasse tal decisão.

- Sra. DeMarco, seu marido está com a impressão errada de que a senhora se apaixonou por

mim.

Ela entreabriu os lábios para falar, mas Judd continuou rapidamente:

- Expliquei-lhe que se trata de uma parte normal da análise, uma transferência emocional que

ocorre com todas as pacientes.

Anne pegou a deixa.

- Sei disso. Infelizmente, antes de mais nada, cometi uma tolice de ir procurá-lo. Eu deveria

ter tentado resolver o meu problema sozinha.

Os olhos dela disseram-lhe que falava sinceramente, que lamentara o perigo a que o expusera.

- Estive pensando no assunto. Talvez umas férias na Europa fossem a melhor coisa para mim

neste momento.

Judd deixou escapar um pequeno suspiro de alívio. Ela compreendera.

Mas ele não tinha condições de alertá-la para o perigo real a que ainda estava exposta. Ou

será que ela sabia? E mesmo que soubesse, será que poderia fazer alguma coisa? Ele olhou além de Anne para a janela da biblioteca, pela qual se podia ver árvores formosas à distância. Ela dissera que costumava passear pelos bosques. Era bem possível que conhecesse um caminho para sair dali. Se eles conseguissem chegar à proteção dos bosques… Judd murmurou então:

- Anne…

- Já acabaram a conversinha?

Judd virou-se bruscamente. DeMarco entrara silenciosamente na biblioteca. Atrás dele

estavam Angeli e os irmãos Vaccaro. Anne virou-se para o marido:

- O Dr. Stevens acha que devo ir para a Europa com você. Vou aceitar o conselho dele.

DeMarco sorriu e olhou para Judd.

- Sabia que podia contar com o senhor.

Ele irradiava simpatia, demonstrando a satisfação expansiva de quem acabara de obter uma

vitória total. Era como se a incrível energia que fluía através de DeMarco pudesse ser convertida à vontade, passando instantaneamente da expressão do mal para um encanto irresistível. Não era de admirar que Anne se tivesse apaixonado por ele. Naquele instante, o próprio Judd achava difícil acreditar que aquele Adônis gracioso e jovial fosse um assassino psicopata, capaz de matar a sangue-frio.

DeMarco virou-se para Anne.

- Vamos partir amanhã de manhã, querida. Por que não sobe para o seu quarto e começa a

arrumar as coisas que vai levar?

Anne hesitou. Não queria deixar Judd sozinho com aqueles homens.

- Eu…

Ela olhou para Judd, desesperada. Ela assentiu, imperceptivelmente.

- Está certo - disse Anne, estendendo a mão para Judd. - Adeus, Dr. Stevens.

Judd apertou-lhe a mão.

- Adeus.

Desta vez era adeus mesmo. Não havia qualquer saída. Judd observou-a virar-se, acenar com

a cabeça para os outros e sair da sala. DeMarco ficou a contemplá-la enquanto se afastava.

- Ela não é linda?

Havia uma expressão estranha no rosto dele. Amor, posse… e algo mais. Arrependimento?

Pelo que estava prestes a fazer a Anne?

- Ela não sabe absolutamente nada - disse Judd. - Por que não a deixa fora disso?

Judd viu então a transformação de DeMarco, que foi quase física. A simpatia desaparecera

e o ódio começou a preencher a sala, numa corrente que fluía de DeMarco para Judd, sem tocar em mais ninguém. Havia agora uma expressão de êxtase, quase um orgasmo, no rosto de DeMarco.

- Vamos indo, Doutor.

Judd olhou ao redor, avaliando as suas possibilidades de escapar. DeMarco certamente

preferiria não matá-lo em sua própria casa. tinha que ser agora ou nunca. Os irmãos Vaccaro

vigiavam-no, esperando um só movimento em falso. Angeli estava perto da janela, com a mão no cabo do revólver no coldre.

- Eu não tentaria - disse DeMarco suavemente. - Já é um homem morto… mas vamos deixar

que isso se concretize à minha maneira.

Ele empurrou Judd na direção da porta. Os outros se aproximaram e seguiram todos para

o vestíbulo.

Anne subiu a escada e ficou esperando no patamar, observando o vestíbulo lá embaixo.

Recuou, ficando fora do campo de visão, ao ver Judd e os outros encaminhando-se para a porta da frente. Correu para o seu quarto e olhou pela janela. Os homens estavam empurrando Judd para dentro do carro de Angeli.

Anne rapidamente pegou o telefone e discou para a telefonista. Pareceu decorrer uma

eternidade antes que ela atendesse.

- Telefonista, quero falar com a polícia. Depressa! É uma emergência!

Uma mão de homem surgiu na frente dela e apertou o gancho do telefone. Anne deixou

escapar um grito e virou-se. Nick Vaccaro estava parado ao seu lado, sorrindo.


Capítulo 23


Angeli acendeu os faróis. Eram quatro horas da tarde, mas o sol estava enterrado em algum

lugar por trás da massa de cúmulos que corriam pelo céu, impulsionados pelo vento gelado. Estavam andando quase há uma hora.

Angeli ia ao volante, com Rocky Vaccaro ao seu lado. Judd estava no banco de trás, com

Anthony DeMarco.

No começo Judd ficara alerta para algum carro de polícia que passasse, na esperança de poder

fazer alguma tentativa desesperada de atrair a atenção dos polícias. Mas Angeli estava seguindo por estradas secundárias pouco usadas, onde quase não havia tráfego. Contornaram Morristown, entraram na Rodovia 206 e seguiram para o sul, na direção das planícies centrais de Nova Jersey, uma região desolada e escassamente povoada. O céu cinzento começou a despejar-se sobre a terra, o granizo batendo no carro como minúsculos tambores enlouquecidos.

- Vá mais devagar - ordenou DeMarco. - Não queremos sofrer um acidente.

Obedientemente, Angeli diminuiu a pressão no acelerador.

DeMarco virou-se para Judd.

- É nos pequenos detalhes que a maioria das pessoas comete os seus erros. Não costumam

planear como eu.

Judd olhou para DeMarco, examinando-o clinicamente. O homem estava sofrendo de

megalomania, fora do alcance da razão e da lógica. Não havia meio algum de atingi-lo. Faltava-lhe um senso moral, o que lhe permitia matar sem o menor remorso. Judd conhecia agora todas as respostas.

DeMarco cometera os crimes pessoalmente por uma questão de honra - uma vingança

siciliana, para apagar a mancha que ele pensara que a esposa lançara sobre ele e sobre a família da Cosa Nostra. Matara John Hanson por engano. Quando Angeli o procurara para informar o que acontecera, DeMarco voltara imediatamente ao consultório e encontrara Carol. Pobre Carol! Ela não poderia ter-lhe entregue as gravações da Sra. DeMarco porque não conhecia Anne por esse nome.

Se DeMarco se tivesse controlado, poderia ter ajudado Carol a descobrir de quem estava falando.

Mas fazia parte de sua doença não ter a menor tolerância com a frustração. Por isso, deixara-se dominar por uma raiva assassina e Carol acabara morrendo. De maneira horrível! Fora DeMarco quem atropelara Judd e mais tarde fora ao seu consultório em companhia de Angeli. Judd ficara desconcentrado pelo fato de não haverem derrubado a porta, matando-o a tiros. Mas Judd compreendia agora que, como McGreavy o considerava culpado, eles haviam decidido que sua morte deveria parecer suicídio, cometido por remorso. Isso afastaria a possibilidade de uma investigação policial mais aprofundada.

E Moody… Pobre Moody! Judd dissera-lhe os nomes dos detetives que estavam trabalhando

no caso. Ele pensara que Moody tivesse reagido ao nome de McGreavy, mas a reação fora ao nome de Angeli. Moody descobrira que Angeli estava envolvido com a Cosa Nostra. E quando seguira essa pista…

Judd olhou para DeMarco.

- O que vai acontecer com Anne?

- Não se preocupe. Eu tomarei conta dela.

Angeli sorriu.

- É mesmo…

Judd sentiu uma raiva impotente invadi-lo.

- Eu errei ao casar-me com alguém fora da família - meditou DeMarco. - As pessoas de fora

não nos podem compreender. Jamais!

Eles estavam percorrendo agora um trecho bastante ermo das planícies centrais de Nova

Jersey. De vez em quando se divisavam os contornos de uma fábrica, à distância, recortada contra o céu cor de chumbo.

- Estamos quase chegando - anunciou Angeli.

- Você fez um bom trabalho - disse-lhe DeMarco. - Vamos ter que escondê-lo, até as coisas

esfriarem por aqui. Para onde gostaria de ir?

- Gosto da Flórida.

DeMarco assentiu, aprovando a escolha.

- Não há problema. Pode ficar com alguém da família.

- Conheço umas garotas espetaculares por lá- comentou Angeli, sorrindo.

DeMarco retribuiu-lhe o sorriso, pelo espelhinho retrovisor.

- Vai voltar com o traseiro queimado de sol.

- Espero não voltar com nada mais além disso.

Rocky Vaccaro riu.

A distância, do lado direito da estrada, Judd viu os prédios acachapados de uma fábrica,

soprando fumaça para o céu. Chegaram a uma estradinha lateral que levava até a fábrica. Angeli entrou nesse caminho e avançou até um muro alto. O portão estava fechado. Angeli tocou a buzina e um homem de capa e guarda-chuva apareceu atrás do portão. Assentiu ao ver DeMarco, destrancou o portão e abriu-o. Angeli entrou e o portão foi prontamente fechado. Tinham chegado.

O Tenente McGreavy estava na sala no 19º Distrito, examinando uma lista de nomes com três

detetives, o Capitão Bertelli e os dois agentes do FBI.

- Esta é a lista das famílias da Cosa Nostra aqui no leste - disse ele. - Todos os chefes e

subchefes estão relacionados aqui. O nosso problema é que não sabemos a que família Angeli está ligado.

- Quanto tempo vai demorar para se investigarem todos? - perguntou o Capitão Bertelli.

Um dos homens do FBI falou:

- Há mais de sessenta nomes aqui. Demoraria pelo menos vinte e quatro horas, mas…

Ele parou de falar e McGreavy concluiu a frase:

- Mas o Dr. Stevens não tem a menor condição de viver por mais de vinte e quatro horas.

Um jovem guarda uniformizado entrou correndo pela porta aberta. Hesitou, ao ver o grupo

ali reunido.

- O que é? - indagou McGreavy.

- Nova Jersey não sabe se é importante, Tenente, mas pediu que informassem qualquer coisa

fora do normal. Uma telefonista recebeu um chamado de uma mulher adulta, pedindo que a ligasse com a polícia. Ela disse que era uma emergência e logo depois a linha ficou muda. A telefonista ficou esperando, mas a mulher não ligou novamente.

- De onde foi dado o telefonema?

- De uma cidadezinha chamada Old Tappan.

- A telefonista descobriu o número do telefone?

- Não. A pessoa desligou muito depressa.

- Isso é ótimo - murmurou McGreavy, amargurado.

- Esqueça - disse Bertelli. - Provavelmente era alguma velha informando que seu gato se

extraviara.

O telefone de McGreavy tocou, um toque longo e insistente. Ele atendeu.

- Tenente McGreavy falando.

Os outros que estavam na sala ficaram observando o rosto dele contrair-se de tensão.

- Certo. Diga-lhe para não fazerem nada até eu chegar aí. Já estou a caminho.

Ele bateu o telefone.

- A Patrulha Rodoviária acaba de avistar o carro de Angeli, seguindo para o sul, na rodovia

206, logo depois de Milstone.

- Estão seguindo o carro? - indagou um dos agentes do FBI.

- O carro da Patrulha Rodoviária estava indo na direção oposta. Ao terminar a curva, o carro

de Angeli já desaparecera. Eu conheço bem aquela região. Não há nada ali à exceção de algumas fábricas velhas.

Ele virou-se para um dos homens do FBI e perguntou:

- Pode providenciar-me uma relação dos nomes das fábricas da região e de seus proprietários?

- Certo.

O homem do FBI estendeu a mão para o telefone.

- Estou indo para lá - disse McGreavy. - Entre em contato comigo pelo rádio assim que tiver

a resposta.

Virou-se então para os outros homens e disse:

- Vamos indo!

Partiu para a porta, seguidos pelos três detetives e pelo outro agente do FBI.

Angeli passou pelo barracão do vigia e continuou em frente, na direção de um grupo de

estruturas de aspectos estranho que se seguiam para o céu. Haviam imensas chaminés de barro e gigantescas caixas dágua, os formatos arredondados elevando-se além da chuva, como monstros pré-históricos numa paisagem antiga e imutável.

O carro foi para junto de um complexo de canos e correias para transportadoras. Angeli e

Vaccaro saltaram. Vaccaro abriu a porta do lado de Judd, com um revólver na mão.

- Saia, Doutor.

Judd saltou do carro vagarosamente, seguido por DeMarco. Um tremendo barulho e um

vento forte os receberam. Ali perto, a uns dez metros de distância, passava um cano enorme, cheio de ar comprimido, que com um barulho enorme sugava tudo o que se aproximasse de sua boca sequiosa.


- Este é um dos maiores sistemas de transportes canalizados do país - gabou-se DeMarco,

falando alto para ser ouvido acima do barulho. - Gostaria de ver como funciona.

Judd fitou-o, incrédulo. DeMarco estava novamente representando o papel de anfitrião. Não,

ele não estava representando-o. Falava sério. O que era mais terrível ainda. DeMarco estava prestes a assassinar Judd. Seria uma rotina do negócio, algo de que teria de se livrar, assim como uma peça inútil de equipamento. Antes, porém, ele queria impressionar Judd.

- Vamos, Doutor. É bem interessante.

Aproximando-se do cano transportador, com Angeli na frente, DeMarco e Judd Lado a lado

, Vaccaro na retaguarda.

- Esta fábrica proporciona um lucro anual de cinco milhões de dólares. - disse DeMarco,

orgulhosamente. - E toda a operação é automática.

O ruído foi aumentando à medida que chegaram mais perto, até tornar-se insuportável. A cem

metros da entrada da câmara de vácuo havia uma grande corrente transportadora, que levava troncos gigantescos até uma máquina de aplainar, com seis metros de comprimento por dois de altura, equipada com meia dúzia de lâminas afiadas. Os troncos aplainados eram então conduzidos para uma máquina que parecia um porco-espinho, com lâminas afiadíssimas. O ar estava cheio de serragem e chuva, sendo tudo sugado pelo cano transportador.

- Não importa quão grandes os troncos sejam - disse DeMarco, sem esconder o orgulho que

sentia. - As máquinas reduzem-nos para caberem no cano transportador, que tem 36 polegadas.

DeMarco tirou do bolso um Colt 38, de cano curto, e gritou:

- Angeli!

Angeli virou-se.

- Faça uma boa viagem para a Flórida.

DeMarco apertou o gatilho e um buraco vermelho surgiu no peito de Angeli, que olhou para

ele com um meio sorriso perplexo no rosto, como se estivesse esperando a resposta a uma charada que acabara de ouvir. DeMarco apertou o gatilho novamente e Angeli caio no chão. DeMarco fez um gesto de cabeça para Rocky Vaccaro. O grandalhão levantou o corpo de Angeli e levou-o na direção do cano transportador.

DeMarco virou-se então para Judd.

- Angeli era um estúpido. Todos os tiras do país estão à procura dele. Se o encontrassem, ele

acabaria por me denunciar.

O assassinato a sangue-frio de Angeli foi chocante, mas o que se seguiu foi ainda pior. Judd

ficou observando, horrorizado, enquanto Vaccaro carregava o corpo de Angeli para a boca do

gigantesco cano transportador. A tremenda pressão sugou o corpo de Angeli. Vaccaro teve que segurar-se a uma alça do cano para não ser sugado também pelo mortal ciclone de ar. Judd teve uma última visão do corpo de Angeli, girando no sorvedouro, no meio da serragem de troncos. E logo desapareceu. Vaccaro segurou uma válvula junto à boca do cano transportador e girou-a. Uma tampa de metal se estendeu sobre a boca do cano, isolando o ciclone de ar. O súbito silêncio era ensurdecedor.

DeMarco virou-se para Judd e levantou a arma. Havia uma expressão exaltada e mística em

seu rosto. Judd compreendeu que o assassinato era quase uma experiência religiosa para ele. Era um cadinho purificador. Judd sabia que chegara o momento da sua morte. Não sentia medo por si mesmo, mas estava dominado por uma raiva intensa, revolta pelo fato de que aquele homem continuaria a viver, para assassinar Anne, para destruir outras pessoas decentes e inocentes. Ele ouviu um grunhido, um gemido de raiva e frustração, só depois se apercebeu que estava saindo dos seus lábios. Era como um animal encurralado, obcecado pelo desejo de matar o seu algoz.

DeMarco estava sorrindo, lendo os pensamentos de Judd.

- Vou dar o tiro na virilha, Doutor. Vai demorar mais um pouco a morrer, mas assim terá

tempo para pensar no que vai acontecer a Anne.

Havia uma esperança. Uma esperança muito tênue.

- Alguém precisa mesmo preocupar-se com ela - disse Judd. - A pobre coitada nunca teve um

homem em toda a sua vida.

DeMarco assumira uma expressão aturdida. Judd estava gritando agora, para que DeMarco

não deixasse de ouvi-lo.

- Sabe o que é seu membro? É esse revólver que está em sua mão. Sem uma faca ou revólver,

você não passa de um palhaço.

O rosto de DeMarco foi-se lentamente enchendo de raiva.

- Você não tem colhões, DeMarco. Sem um revólver, você não passa de um palhaço.

Os olhos de DeMarco estavam ficando vermelhos, no aviso da morte. Vaccaro deu um passo

para a frente. DeMarco fez-lhe um sinal para que recuasse.

- Vou matá-lo com minhas próprias mãos, sem nenhuma arma - disse DeMarco, jogando o

revólver No chão. - Com minhas mãos nuas!

Lentamente, como um animal de força excepcional, ele começou a avançar para Judd. Judd

recuou. Sabia que não tinha a menor possibilidade de vencer DeMarco, fisicamente. Sua única

esperança era continuar a trabalhar a mente doentia de DeMarco, deixando-a incapaz de funcionar.

Tinha que continuar a atacar DeMarco no seu ponto mais vulnerável: o orgulho que ele sentia por sua virilidade.

- Você é um homossexual, DeMarco!

DeMarco riu e arremessou-se contra Judd, que conseguiu desviar-se. Vaccaro pegou o

revólver no chão.

- Deixe-me acabar com ele, chefe!

- Fique fora disso! - rugiu DeMarco.

Os dois homens começaram a dar voltas, procurando a melhor posição. O pé de Judd

escorregou num monte de serragem encharcada e DeMarco então atacou-o, como um touro. O seu punho gigantesco acertou Judd no canto da boca, jogando-o para trás. Mas Judd conseguiu recuperar-se e desferiu um soco contra DeMarco, atingindo-o no rosto. DeMarco recuou, depois lançou-se para a frente, os dois punhos se chocaram no estômago de Judd. Judd perdeu o fôlego.

Tentou falar, para escarnecer de DeMarco, mas estava ofegante, em busca de ar. DeMarco estava parado à sua frente, como um gigantesco pássaro predador.

- Está sem fôlego, Doutor?

Ele soltou uma risada.

- Já fui lutador de boxe. Vou-lhe dar algumas lições. Vou-me concentrar nos seus rins e

depois na cabeça e nos olhos. Vou arrancar-lhe os olhos, Doutor. Antes que eu termine, vai implorar para que o mate com um tiro.

Judd acreditou nele. A luz sobrenatural que se irradiava do céu nublado, DeMarco parecia

um animal enfurecido. Ele avançou para Judd novamente e desferiu-lhe um soco no rosto, abrindo uma ferida na face com um anel de camafeu. Ele golpeou DeMarco, acertando-lhe o rosto com os dois punhos, DeMarco nem recuou.

DeMarco começou a dar socos nos rins de Judd, os punhos parecendo pistões. Judd

conseguiu desvencilhar-se, o corpo parecendo um oceano de dor.

- Está ficando cansado, não é, Doutor?

DeMarco começou novamente a se aproximar. Judd sabia que seu corpo não poderia

agüentar um castigo mais intenso. Tinha que continuar a falar. Era a sua única chance.

- DeMarco…

Ele ofegou. DeMarco deu um soco em falso e Judd atacou-o. DeMarco abaixou-se, riu e

bateu com o punho no meio das pernas de Judd. Judd desabou no chão, sentindo uma agonia

incrível. DeMarco imediatamente montou em cima dele, as mãos apertando-lhe a garganta.

- Com minhas mãos nuas! - gritou DeMarco. - Vou arrancar-lhe os olhos com as minhas

mãos!

E arremessou os punhos gigantescos contra os olhos de Judd.

Eles estavam passando por Bedminster, seguindo para o sul, pela Rodovia 206, quando veio

o chamado pelo rádio:

- Código três… Código três… Todos os carros de prontidão… Unidade 27 de Nova York…

Unidade 27 de Nova York…

McGreavy segurou o microfone.

- Unidade 27 de Nova York… Pode falar!

A voz excitada do Capitão Bertelli soou pelo rádio:

- Já descobrimos tudo, Mac. Há um cano transportador em Nova Jersey, a três quilômetros

de Milstone. Pertence à Five Star Corporation, a mesma proprietária do frigorífico em que foi

encontrado o corpo de Moody. É uma das fachadas de que Tony DeMarco se utiliza.

- Deve ser isso mesmo - disse McGreavy. - Já estamos no caminho.

- Estão muito longe de lá?

- A uns quinze quilômetros.

- Boa Sorte.

- Obrigado.

McGreavy desligou o rádio e acionou a sirene, pisando no acelerador até o fim.

O céu estava rodopiando em círculos úmidos e algo batia nele, dilacerando-lhe o corpo. Judd

tentou ver o que era, mas os olhos estavam tão inchados que não conseguiu abri-los. Um punho se abateu contra as suas costas e ele sentiu a dor angustiante de ossos que se quebravam. Podia sentir a respiração quente de DeMarco em seu rosto, rápida e excitada. Tentou vê-lo, mas estava encarcerado na escuridão. Abriu a boca e forçou as palavras a passarem pela língua áspera e inchada:

- Está… vendo… Era o que… eu dizia… Só pode… bater… num homem… quando… ele está…

caído…

A respiração em seu rosto cessou. Judd sentiu duas mãos agarrarem-no e levantarem-no.

- Já é um homem morto, Doutor. E eu o liquidarei com as minhas próprias mãos, desarmado.

Judd recuou para longe da voz.

- Você é… um… animal… Um psicopata… devia ser… trancafiado… num hospício…

A voz de DeMarco estava enrolada pela raiva:

- Você é um mentiroso!

- É… a verdade… - disse Judd, continuando a recuar. - Seu… seu cérebro está… doente… Sua

mente… vai desmoronar… e será… como um bebê idiota…

Judd continuou a recuar, incapaz de ver onde estava indo. Por trás ele ouviu o zumbido fraco

do cano transportador fechado, esperando como um gigante adormecido.

DeMarco arremessou-se novamente para Judd, agarrando-lhe a garganta.

- Eu vou-lhe quebrar o pescoço!

Os dedos enormes se fecharam sobre a traquéia de Judd, apertando-a.

Judd sentiu a cabeça começar a flutuar. Era sua última oportunidade. Todos os seus instintos

lhe diziam que agarrasse as mãos de DeMarco e as afastasse para longe de sua garganta, a fim de poder respirar. Em vez disso, porém, num último esforço, ele estendeu as mãos para trás, à procura da válvula do cano transportador. Sentiu que estava começando a desmaiar e foi nesse momento que suas mãos encontraram a válvula. Com uma erupção final e desesperada de energia, ele abriu a válvula e girou o corpo, de modo que DeMarco ficasse mais próximo da abertura. Um tremendo vácuo de ar envolveu-os subitamente, procurando sugá-los para o interior do aparelho. Judd agarrou-se freneticamente à válvula, com as duas mãos, resistindo à fúria ciclônica do vento. Sentiu os dedos de DeMarco se enterrarem em sua garganta, no instante em que ele começava a ser sugado para o cano. DeMarco poderia salvar-se. Mas, em sua fúria insana, ele recusava-se a largar Judd.

Judd não podia ver-lhe o rosto, mas a voz dele era o grito irado de um animal enlouquecido, as

palavras se perdendo no rugido do vento.

Os dedos de Judd começaram a escorregar da válvula. Ele ia ser sugado também para o cano,

juntamente com DeMarco. Murmurou mentalmente uma última prece e nesse instante sentiu as mãos de DeMarco largarem a sua garganta. Judd ouviu um grito estridente, que ecoou por um momento.

Depois ouviu apenas o rugido do vento. DeMarco desaparecera.

Judd ficou parado ali, num cansaço mural, incapaz de mover-se, à espera do tiro de Vaccaro.

Um momento depois veio a expulsão do tiro.

Judd continuou parado no mesmo lugar, sem compreender porque Vaccaro errara. Através da

neblina de dor ele ouviu mais tiros e o barulho de pés correndo. Em seguida gritaram o seu nome.

E então alguém passou um braço pelo seu corpo enquanto a voz de McGreavy dizia:

- Santa Mãe de Deus! Olhem só os olhos dele!

Mãos fortes agarraram-lhe o braço e puxaram-no para longe do ruído pavoroso do cano.

Algo úmido escorria-lhe pelo rosto e Judd não sabia o que era, se sangue, chuva ou lágrimas. O que afinal não importava.

Estava tudo acabado.

Ele se esforçou por abrir um olho inchado. Pela fenda estreita e ensangüentada conseguiu

divisar McGreavy.

- Anne está na casa - balbuciou Judd. - A esposa de DeMarco. Temos que tirá-la de lá.

McGreavy fitava-o com uma expressão estranha, sem se mexer. Judd compreendeu que não

conseguira emitir as palavras. Levantou a boca até o ouvido de McGreavy e falou lentamente, a voz débil, vacilante:

- Anne DeMarco… Ela está… na casa… Ajude…

McGreavy foi até o carro, pegou o microfone do rádio e transmitiu as instruções necessárias.

Judd continuou parado ali, cambaleando, ainda sendo jogado para a frente e para trás pela recordação dos socos de DeMarco, deixando que a chuva e o vento lhe castigassem ainda mais o corpo. Viu à sua frente um corpo estendido no chão e compreendeu que se tratava de Rock Vaccaro.

"Nós vencemos", pensou ele. "Nós vencemos"! Ele continuou a repetir a frase em sua mente,

sem parar. Mesmo sabendo que a frase não tinha o menor sentido. Que espécie de vitória fora aquela?

Ele sempre pensara em si mesmo com um ser humano decente e civilizado, um médico, um homem que dedicava a vida a curar os outros. Mas se transformara num animal selvagem, dominado pela ânsia de matar. Levara um homem doente à beira da insanidade e depois o assassinara. Era um fardo terrível que teria que carregar pelo resto da vida. Porque, muito embora pudesse justificar-se alegando que fora em legítima defesa, ele sabia - e que Deus o ajudasse! - que gostara de fazê-lo. E por isso jamais poderia perdoar-se. Ele não era melhor do que DeMarco ou os irmãos Vaccaro ou qualquer um dos outros. A civilização era uma camada fina e perigosamente frágil. Quando essa camada se rompia, o homem tornava-se novamente igual às bestas selvagens, resvalando de volta ao lodo dos abismos primitivos, dos quais ele se orgulhava de ter saído para sempre.

Judd estava cansado de mais para continuar a pensar nisso. Agora queria apenas certificar-se

de que Anne estava em segurança. McGreavy estava parado ao seu lado, numa atitude

estranhamente gentil.

- Há um carro da polícia a caminho da casa dela, Dr. Stevens. Certo?

Judd assentiu, agradecido.

McGreavy segurou-lhe o braço e levou-o até um carro. Ao avançar lenta e dolorosamente

pelo pátio. Judd percebeu que parara de chover. No horizonte distante as nuvens de trovoadas haviam sido varridas pelo vento forte de dezembro e o céu começava a clarear. A oeste, um pequeno raio de luz apareceu. Era o sol, lutando por atravessar a camada de nuvens, com o seu brilho tornando-se cada vez mais intenso.

Ia ser um Natal Maravilhoso.


FIM.

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