Paulo Coelho
As Valkírias
Edição especial da página www.paulocoelho.com.br , venda proibida
NOTA DO AUTOR
O leitor que se dispuser a ler As Valkírias precisa saber que este livro é muito diferente de O
Diário de um Mago, O Alquimista ou Brida, títulos que o precedem. . Foi um livro muito difícil de escrever. Primeiro, porque toca em assuntos que exigem sensibilidade para serem aceitos. Segundo, porque já havia contado esta história para muitas pessoas, e temia haver desgastado a capacidade de contá-la por escrito (este temor me acompanhou da primeira à última página do livro, mas – graças a Deus – foi apenas um susto).
Terceiro motivo, e o mais importante: para relatar os eventos ocorridos, precisei entrar em vários detalhes de minha vida pessoal – notadamente o casamento, as relações com outras pessoas e a frágil distância que separa a Tradição mágica a que pertenço do homem que sou. Como qualquer ser humano, expor minhas fraquezas e minha vida particular me deixa bastante constrangido. Mas – como ficou bem claro em O Diário de um Mago – o caminho da Magia é o caminho das pessoas comuns. Um homem pode ter um mestre, seguir uma Tradição esotérica, possuir disciplina necessária para realizar rituais; mas a Busca Espiritual é feita de constantes começos (daí a palavra “Iniciado”, aquele que está sempre iniciando algo), e a única coisa que conta – sempre – é a vontade de seguir adiante. As Valkírias mostra claramente o homem que existe por detrás do mago, e isto poderia decepcionar alguns poucos que estão em busca de “seres perfeitos”, com verdades definitivas a respeito de tudo. Mas os verdadeiros Buscadores sabem que, independente de todas as nossas falhas e defeitos, o Caminho Espiritual é mais forte. Deus é amor, generosidade e perdão; se acreditamos nisto, nunca vamos deixar que nossas fraquezas nos paralisem.
Os eventos narrados neste livro se passaram entre os dias 5 de setembro e 17 de outubro de 1988. À ordem de alguns trechos está trocada, e em duas ocasiões utilizei a ficção, apenas para que o leitor pudesse compreender melhor os assuntos tratados – mas todos os fatos essenciais são verdadeiros. A carta citada no epílogo do livro está registrada no Cartório de Títulos e Documentos do Rio de Janeiro, sob o número 478038.
Paulo Coelho
PRÓLOGO
– Uma coisa que seja importante para mim? – J. pensou um pouco, antes de responder. –
Magia.
– Outra coisa – insistiu Paulo.
– Mulheres – disse J. – Magia e mulheres. Paulo riu.
– São importantes para mim também – disse. – Embora o casamento tenha me limitado um pouco.
Foi a vez de J. soltar uma gostosa gargalhada.
– Um pouco – disse ele. – Mas só um pouco.
Paulo encheu de vinho o copo de seu mestre. Estava quase quatro meses sem vê-lo pessoalmente. E esta era uma noite muito especial, queria conversar mais, fazer um pouco de suspense antes de entregar a J. o embrulho que havia trazido.
– Eu costumava imaginar os grandes mestres como pessoas longe deste mundo – disse a J. –
Se você me respondesse desta maneira há alguns anos, acho que largaria o aprendizado.
– Devia ter feito isto – respondeu J., bebendo seu vinho. – E eu teria colocado uma bela discípula em seu lugar.
Beberam a garrafa inteira, conversando sobre trabalho, magia e mulheres. J. estava eufórico com um grande negócio que acabara de fechar para a multinacional holandesa onde trabalhava. E Paulo estava contente com o pacote que trazia.
– Peça uma outra garrafa – disse Paulo.
– Para brindar o quê?
– Sua vinda ao Rio de Janeiro. O belo cenário que se vê da janela deste restaurante. E um presente que lhe trouxe.
J. olhou para fora, estavam num restaurante localizado no último andar do hotel onde se hospedava. A praia de Copacabana, lá embaixo, estava toda iluminada.
– O cenário merece um brinde – disse, chamando o garçom.
Quando já chegavam ao meio da segunda garrafa, Paulo colocou o pacote em cima da mesa.
– Se você me perguntasse o que é importante para mim – disse para J. –, eu responderia: o meu mestre. Foi ele quem me ensinou a entender que o Amor é a única coisa que não falha. Teve paciência de me conduzir pelos intrincados caminhos da magia. Teve coragem e dignidade de, apesar de seus poderes, mostrar-se sempre como uma pessoa com algumas dúvidas e certas fraquezas. Me fez entender as forças capazes de transformar nossas vidas.
– Já bebemos uma garrafa e meia – disse J. – Não quero falar de coisas sérias.
– Não estou falando de coisas sérias. Estou falando de coisas alegres, estou falando de Amor.
Ele empurrou o pacote para a frente de J.
– Abra.
– O que é isto?
– Uma maneira de dizer “obrigado”. E passar para os outros todo o amor que me ensinou. J. abriu o pacote. Eram quase duzentas páginas datilografadas. Na primeira folha estava escrito O ALQUIMISTA.
Paulo estava com os olhos brilhando.
– Isto é um novo livro – disse. – Veja a página seguinte.
Estava escrito: “Para J., alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.”
Paulo esperara ansiosamente por este momento. Conseguiu guardar total segredo a respeito de estar escrevendo um livro novo, mesmo sabendo que J. havia gostado muito do livro anterior.
– Este é o original – continuou Paulo. – Gostaria que o lesse antes de mandá-lo para a editora.
Tentava entender os olhos de seu mestre. Mas eles tinham se tornado impenetráveis.
– Tenho reuniões o dia inteiro, amanhã – disse J. – Só poderei ler à noite. Podemos marcar um almoço para daqui a dois dias.
Paulo esperava uma reação diferente. Achou que J. ficaria alegre, comovido com a homenagem.
– Está bem – respondeu, escondendo seu desapontamento. – Virei daqui a dois dias. J. pediu a conta e pagou. Caminharam juntos até o elevador, quase sem conversar. J. tocou o botão do 11o andar.
Quando o elevador parou, J. apertou o botão de “emergência”, para manter a porta aberta. Então aproximou-se de Paulo.
– Que o Cordeiro de Deus te proteja – disse, fazendo um sinal na testa do discípulo. Paulo abraçou o mestre, e desejaram-se boa noite.
– Por que não tira cópias de seus originais? – disse J. enquanto desligava o botão e saía.
– Para dar a Deus a chance de desaparecer com eles, se esta for Sua vontade.
– Sábia decisão – Paulo escutou J. dizer, enquanto a porta se fechava. – Espero que os críticos literários jamais descubram onde você os guarda.
Dois dias depois tornaram a encontrar-se no mesmo restaurante.
“Vou afrouxar um pouco”, pensou J. “Mas não muito.”
– Existem certos segredos de alquimia descritos no seu livro que eu jamais comentei com você – disse. – E, no entanto, você acertou; estão corretos.
Paulo animou-se: J. estava falando o que ele queria ouvir.
– Andei estudando – justificou.
– Não, você não andou estudando – observou J. – E, no entanto, o que você escreveu está
certo.
“Não consigo enganá-lo”, pensou Paulo. “Gostaria de passar a imagem de alguém mais dedicado, e não consigo enganá-lo.”
Ele olhou para o lado de fora. Um sol imenso brilhava, e a praia estava cheia.
– O que você está vendo neste imenso céu azul? – perguntou.
– Nuvens.
– Não – disse J. – Você está vendo a alma dos rios. Rios que acabam de renascer do mar. Que vão passear pelo céu até que, por algum motivo, se transformarão de novo em chuva e tornarão a correr pela face da Terra.
“São rios que voltam para a montanha, mas carregam a sabedoria do mar com eles.”
Encheu o copo de água mineral. Não costumava beber de dia.
– Por isso você descobriu os segredos de que não lhe falei – disse J. – Porque você é um rio. Já esteve no mar, conhece sua sabedoria, nasceu e morreu muitas vezes. Tudo que precisa fazer é lembrar. Paulo estava contente. Aquilo era uma espécie de elogio: Seu mestre estava dizendo que ele
“descobrira segredos”. Mas não tinha coragem de perguntar abertamente que segredos havia descoberto.
– Tenho uma nova tarefa para você – disse J.
“Por causa de seu livro. Porque sei que ele é importante para você, e não merece ser destruído”, pensou. Mas Paulo não precisava saber disto.
Caminharam pelo aeroporto, com J. evitando qualquer conversa, e Paulo insistindo em saber alguma coisa a mais sobre a tarefa que seu mestre lhe dera uma semana antes. Conseguiram finalmente um lugar na lanchonete.
– Só pudemos fazer duas refeições juntos nesta minha estada no Rio – disse J. – Agora fazemos a terceira, para manter o ditado: “Tudo que acontece uma vez pode nunca mais acontecer. Mas, caso aconteça duas vezes, certamente acontecerá uma terceira.”
J. estava de novo tentando mudar de assunto, mas Paulo sabia como evitar isto. Seu mestre havia gostado da homenagem, porque escutara – sem ser notado – uma conversa dele com o recepcionista do hotel. E, mais tarde, um dos amigos de J. se referira a Paulo como “o autor do livro”. Ele devia ter contado para todo mundo: afinal de contas, só existia um manuscrito original.
“Vaidade das vaidades”, disse para si mesmo. Agradecia a Deus por ter um mestre tão humano.
– Quero perguntar sobre a tarefa – disse mais uma vez. – Não quero perguntar “como”, ou
“onde”. Sei que você não vai me responder.
– Pelo menos aprendeu alguma coisa este tempo todo – riu J.
– Você, numa conversa, me contou sobre um rapaz chamado Took, que havia conseguido fazer o que me pede agora. Vou atrás dele.
– Dei também endereço?
– Falou onde morava. Não deve ser difícil chegar lá.
– Não, não é.
A todo minuto uma voz anunciava pelo alto-falante a partida de um vôo. Paulo começou a ficar tenso, com medo de que não tivessem tempo de conversar.
– Embora não queira saber nem “como”, nem “onde”, você me ensinou que existe uma pergunta que todos nós devemos fazer, sempre que começamos qualquer coisa. A pergunta é a seguinte: “Para quê? Para que tenho que fazer isto?”
– Porque a gente sempre destrói aquilo que ama – disse J.
Paulo não entendeu a resposta, e mais uma vez o alto-falante anunciou um vôo.
– É meu avião – disse J. – Tenho que ir.
– Não entendi o que você disse.
J. pediu que Paulo pagasse a conta enquanto escrevia alguma coisa num guardanapo de papel.
– Apenas no século passado um homem conseguiu escrever sobre isto – disse, estendendo o papel para o discípulo. – Embora seja verdade há muitas gerações. Paulo pegou o papel com todo cuidado. Por uma fração de segundo, imaginou que ali pudesse ter uma fórmula mágica. Mas, não, era uma poesia.
A gente sempre destrói aquilo que mais ama
em campo aberto, ou numa emboscada;
alguns com a leveza do carinho
outros com a dureza da palavra;
os covardes destroem com um beijo,
os valentes, destroem com a espada.*
O garçom veio entregar o troco, mas Paulo não notou. As palavras terríveis não saíam de sua cabeça.
– Por isso, a tarefa – disse J. depois de um longo silêncio. – Para quebrar esta maldição.
– De uma maneira ou de outra, terminei destruindo o que amava – disse Paulo. – Vi meus sonhos ruírem quando se tornaram possíveis. Vi três casamentos destruídos. Sempre me pareceu que isto fazia parte da vida. Da minha vida, e da vida de todos.
– A maldição pode ser quebrada – tornou a dizer J. – Se você realizar a tarefa. Caminharam em silêncio pelo aeroporto barulhento. J. pensava nos livros que seu discípulo escrevera. Pensava em Chris. Pensava que tudo empurrava Paulo para a iniciação mágica que aparece algumas vezes na vida de todas as pessoas.
Paulo estava perto de realizar um grande sonho.
E isto significava perigo, porque o discípulo de J. era absolutamente igual a todos os outros seres humanos. Ia achar que não merecia o que conseguiu.
– São lindas as mulheres de sua terra – disse J., quando chegaram ao controle de passaportes. – Espero voltar sempre.
Mas Paulo estava sério.
– Então é para isso – disse, enquanto seu mestre entregava o passaporte para ser carimbado.
– Para quebrar a maldição.
– Pelo amor. Pela vitória. E pela Glória de Deus – respondeu J.