A ENTRADA

INFRATORES SERÃO PROCESSADOS

– Não acredite – disse a Valkíria. – Eles não têm como ficar vigiando isto.

Era uma velha mina de ouro abandonada. Vahalla usava uma lanterna, e começaram a andar com cuidado para não bater com a cabeça nas vigas do teto. Paulo notou que, aqui e ali, a terra havia deslizado. Talvez fosse perigoso mesmo – mas não era hora de pensar nisso. À medida que entravam, a temperatura ia descendo, até tornar-se agradável. Ficou com medo de faltar ar, mas Vahalla andava como se conhecesse o lugar muito bem – já devia ter estado ali muitas vezes, e continuava viva. Também não era hora de pensar nisso.

Depois de dez minutos de caminhada, a Valkíria parou. Sentaram-se no chão, e ela colocou a lanterna no meio dos três.

– Anjos – disse ela. – Anjos são visíveis para quem aceita a luz. E rompe o acordo das trevas.

– Não tenho acordo com as trevas – respondeu Paulo. – Já tive. Não tenho mais.

– Não falo de acordo com Lúcifer, ou com Satã, ou com… – de repente ela começou a falar o nome de diversos demônios, e seu rosto parecia estranho.

– Não pronuncie estes nomes – interrompeu Paulo. – Deus está nas palavras, e o demônio também.

Vahalla riu.

– Parece que você aprendeu a lição. Agora rompa o acordo.

– Não tenho acordo com o mal – repetiu.

– Falo do contrato de derrota.

Paulo lembrou-se do que J. dissera – o homem sempre destruía o que mais amava. Mas J. não falara em acordos; conhecia Paulo o suficiente para saber que seu acordo com o mal já fora rompido há

muito tempo. O silêncio dentro da mina era pior que o do deserto. Não se ouvia absolutamente nada, exceto a voz de Vahalla – que parecia diferente.

– Temos um contrato entre nós: não vencer, quando é possível a vitória – insistiu ela.

– Jamais fiz um acordo desses – disse Paulo pela terceira vez.

– Todos fizeram. Em algum momento na vida, todos nós fizemos este acordo. Por isso há

um anjo com uma espada de fogo na porta do Paraíso. Para deixar entrar apenas os que rompem este acordo. Sim, ela tem razão, pensava Chris. Todos fizeram.

– Você me acha bonita? – perguntou Vahalla, mudando de novo o tom de voz.

– Você é uma mulher linda – respondeu Paulo.

– Um dia, quando eu era adolescente, vi minha melhor amiga chorando. Saíamos juntas sempre, tínhamos um imenso amor uma pela outra, e perguntei o que se passava. Depois de muito insistir, ela terminou me contando que seu namorado estava apaixonado por mim. Eu não sabia, mas naquele dia fiz o acordo. Sem compreender direito por que, comecei a engordar, a cuidar mal de meu corpo, a ficar feia. Porque

– inconscientemente – achava que minha beleza era uma maldição, fez sofrer minha melhor amiga.

“Em pouco tempo, passei a destruir também o sentido de minha vida, porque já não ligava para mim mesma. Até que chegou o momento em que tudo à minha volta tornou-se insuportável; pensei em morrer.”

Vahalla riu.

– Como vê, rompi o acordo.

– É verdade – disse Paulo.

– Sim, é verdade – disse Chris. – Você é linda.

– Estamos no ventre da montanha – continuou a Valkíria. – Lá fora brilha o sol, e aqui, tudo é escuro. Mas a temperatura é agradável, podemos dormir, não precisamos nos preocupar com nada. Aqui é a escuridão do Acordo.

Ela levou a mão ao zíper de seu casaco de couro.

– Rompa o acordo – disse. – Pela glória de Deus. Pelo amor. E pela vitória. Começou a abaixar o zíper lentamente. Não usava nada por baixo. Os seios apareceram. E a luz da lanterna fazia brilhar, entre eles, uma medalha de ouro.

– Pegue – disse.

Paulo tocou a medalha. O arcanjo Miguel.

– Tire do meu pescoço.

Ele retirou a medalha, e a manteve entre suas mãos.

– Segurem, os dois, a medalha.

– Não preciso ver meu anjo! – Era a primeira vez que Chris falava desde que entraram na mina. – Não preciso, basta conversar com ele!

Paulo parou com a medalha na mão.

– Já comecei essa conversa – continuou Chris. – Sei que posso e isso basta. Paulo não acreditou. Mas Vahalla sabia que era verdade; lera isto em seus olhos, quando estavam do lado de fora. Sabia também que seu anjo queria que estivesse ali, junto com o marido. Mesmo assim, precisou testar sua coragem. Era a regra da Tradição.

– Está bem – disse a Valkíria.

Com um rápido movimento, apagou a lanterna. E a escuridão foi completa.

– Coloque o cordão em seu pescoço – disse para Paulo. – E segure a medalha com as mãos juntas, em oração.

Paulo fez o que ela estava mandando. Tinha medo de uma escuridão tão completa; lembrava coisas que ele não queria recordar.

Sentiu que Vahalla se aproximava por detrás. Suas mãos tocaram a cabeça de Paulo. A escuridão parecia sólida. Nada, nem uma fresta de luz entrava ali. Vahalla começou a fazer uma oração numa língua estranha. Primeiro ele tentou identificar o que ela dizia. Depois, à medida que os dedos dela passavam por sua cabeça, Paulo sentia a medalha esquentando. Ele concentrou-se no calor em suas mãos.

A escuridão se transformava. Várias cenas de sua vida começaram a passar diante dele. Luz e sombras, luz e sombras, e – de repente, estava de novo na escuridão.

– Não quero me lembrar disso… – pediu para a Valkíria.

– Lembre. Seja o que for, procure lembrar-se de cada minuto.

A escuridão mostrava-lhe terrores. Terrores ocorridos há quatorze anos.

Havia um bilhete em cima da mesa do café. “Eu te amo. Volto logo.” Embaixo, ela havia colocado a data inteira: “25 de maio de 1974”.

Engraçado. Colocar data em um bilhete de amor.

Tinha acordado um pouco tonto, ainda surpreso com o sonho. Nele, o diretor da gravadora lhe oferecia um emprego. Não precisava de emprego: o diretor da gravadora é que funcionava como seu empregado – dele e de seu parceiro. Os discos estavam nos primeiros lugares em execução, vendiam milhares de cópias, e de todos os cantos do Brasil chegavam cartas. As pessoas queriam saber o que era a Sociedade Alternativa.

“Basta prestar atenção na letra da música”, pensou consigo mesmo. Não era uma música –

era um mantra de ritual mágico, com as palavras da Besta do Apocalipse sendo lidas atrás, em tom baixo. Quem cantasse aquela música estaria invocando as forças das Trevas. E todos cantavam. Ele e o parceiro já haviam preparado tudo. O dinheiro ganho com direitos autorais estava sendo aplicado na compra de um terreno perto do Rio de Janeiro. Lá, sem que o governo militar soubesse, recriariam o que, quase cem anos atrás, a Besta procurou fazer em Cefalu, na Sicília. Mas a Besta fora expulsa pelas autoridades italianas. Ela errara em muitos pontos – não conseguira discípulos em número suficiente, não sabia como ganhar dinheiro. Dissera a todos que seu número era 666, que vinha criar um mundo onde os fortes seriam servidos pelos fracos, e a única lei seria fazer tudo que se tivesse vontade. Mas não soube espalhar direito suas idéias – poucas pessoas tinham levado suas palavras a sério. Ele e seu parceiro – Raul Seixas – bem, era completamente diferente! Raul cantava, o país inteiro ouvia. Eram jovens, e estavam ganhando dinheiro. Sim, verdade que o Brasil vivia debaixo de uma ditadura militar, mas o governo estava preocupado com guerrilheiros. Não perdia seu tempo com um cantor de rock; muito pelo contrário – as autoridades achavam que aquilo mantinha os jovens longe do comunismo.

Tomou o café e chegou à janela. Ia dar um passeio, depois encontraria o parceiro. Não tinha a menor importância que ninguém o conhecesse, e que seu amigo fosse famoso. O que contava é que estava ganhando dinheiro, isto permitiria que colocasse as idéias em andamento. As pessoas do meio musical, e as pessoas do meio mágico – ah, estas sabiam! O anonimato para o grande público era até

engraçado – mais de uma vez saboreou o gostinho de ver alguém comentando sobre seu trabalho – sem perceber que o autor estava perto escutando.

Voltou-se para colocar o tênis. Quando abaixou, sentiu uma vertigem. Levantou a cabeça. O apartamento parecia mais escuro do que deveria estar. Fazia sol lá

fora, ele havia acabado de voltar da janela. Alguma coisa estaria queimando – um aparelho elétrico, talvez, porque o fogão estava desligado. Procurou em todos os cantos. Nada. O ar estava pesado. Resolveu sair logo – calçou o tênis de qualquer maneira e, pela primeira vez, aceitou o fato de que estava passando mal.

“Pode ser alguma coisa que comi”, disse para si mesmo. Mas quando comia alguma coisa errada, seu corpo inteiro dava o sinal, já conhecia isso. Não estava com enjôo, nem vômitos. Só aquela tontura que não queria passar.

Escuro. A escuridão aumentava cada vez mais, parecia uma nuvem cinzenta à sua volta. Sentiu, de novo, a vertigem. Sim, tinha que ser alguma coisa que havia comido – “ou talvez um efeito retardado do ácido”, pensou. Mas não tomava LSD há quase cinco anos. Os efeitos retardados tinham desaparecido nos seis primeiros meses, e nunca mais voltaram. Ele estava com medo, precisava sair.

Abriu a porta – a vertigem ia e voltava, e podia passar mal na rua. Era arriscado sair, melhor ficar em casa e esperar. Tinha aquele bilhete em cima da mesa – daqui a pouco ela estava em casa –

podia esperar. Sairiam juntos até a farmácia, ou a um médico, embora detestasse médicos. Não podia ser nada grave. Ninguém tem ataque de coração com 26 anos.

Ninguém.

Sentou-se no sofá. Precisava se distrair, não devia pensar nela, senão o tempo demorava mais a passar. Tentou ler o jornal, mas a vertigem, a tontura, ia e voltava, cada vez com mais força. Alguma coisa o estava puxando para dentro de um buraco negro que parecia se formar no meio da sala. Começou a ouvir barulhos – risos, vozes, coisas quebrando. Nunca tinha acontecido aquilo – nunca! Sempre que tomava algo, sabia que estava drogado, que era uma alucinação, e passaria com o tempo. Mas aquilo – aquilo era terrivelmente real!

Não, não podia ser real. A realidade eram os tapetes, a cortina, a estante, a mesa do café

ainda com restos de pão. Fez um esforço para concentrar-se no cenário à sua volta, mas a sensação de buraco negro à sua frente, as vozes, os risos, tudo continuava.

Definitivamente, não estava acontecendo nada daquilo. Tinha praticado magia durante seis anos. Feito todos os rituais. Sabia que tudo não passava de sugestão, de efeito psicológico – tudo jogava com a imaginação – nada mais.

O pânico aumentava, a vertigem estava mais forte – puxando para fora do corpo, para um mundo escuro, para aqueles risos, aquelas vozes, aqueles barulhos – reais!

“Não posso ter medo. O medo faz a coisa voltar.”

Tentou controlar-se, foi até a pia e lavou o rosto. Sentiu-se melhor, a sensação parecia ter acabado. Colocou o tênis e procurou esquecer tudo. Brincou com a idéia de contar ao parceiro que entrara num transe, tivera contato com os demônios.

E foi só pensar nisso que a vertigem voltou – mais forte.

“Volto logo”, dizia o bilhete, e ela não chegava!

“Nunca tive resultados concretos no plano astral.” Nunca tinha visto nada. Nem anjos nem demônios nem espíritos dos mortos. A Besta escreveu em seu diário que materializava coisas, mas era mentira, a Besta não tinha chegado lá, ele sabia disso. A Besta tinha fracassado. Ele gostava das suas idéias porque eram idéias rebeldes, chiques, das quais poucas pessoas haviam escutado falar. E as pessoas sempre respeitam mais aquele que diz coisas que ninguém entende. Do resto – Hare Krishna, Meninos de Deus, Igreja de Satã, Maharishi –, do resto todo mundo participava. A Besta – a Besta só para os eleitos! “A lei do forte”, dizia um texto dela. A Besta estava na capa do Sargent Pepper’s, um dos mais conhecidos discos dos Beatles – e quase ninguém sabia. Talvez nem os Beatles soubessem o que estavam fazendo quando colocaram aquela fotografia lá.

O telefone começou a tocar. Podia ser sua namorada. Mas, se estava escrito “volto logo”, para que telefonar?

Só se alguma coisa estivesse acontecendo.

Por isso ela não chegava. A vertigem agora voltava em intervalos menores, e tudo ficava negro de repente. Sabia – alguma coisa lhe dizia – que não podia deixar aquela aquela sensação tomar conta. Algo terrível podia acontecer – talvez entrasse ali, naquela escuridão, e nunca mais saísse. Precisava manter o controle a qualquer custo – precisava ocupar sua mente, ou aquela coisa o dominaria. O telefone. Concentrou-se no telefone. Falar, conversar, distrair o pensamento, levá-lo para longe daquela escuridão, aquele telefone era um milagre, uma saída. Sabia disso. Sabia, de alguma maneira, que não podia se entregar. Precisava atender o telefone.

–Alô?

Era uma voz de mulher. Mas não era a namorada – era Argéles.

–Paulo?

Ele ficou quieto.

–Paulo, você está me ouvindo? Preciso que você venha aqui em casa! Está acontecendo uma coisa esquisita!

–O que está acontecendo?

–Você sabe, Paulo! Me explique, pelo amor de Deus!

Desligou antes de ouvir o que não queria. Não era um efeito retardado de droga. Não era um sintoma de loucura. Não era um ataque cardíaco. Era real. Argéles participava dos rituais, e “aquilo”

também estava acontecendo com ela.

Entrou em pânico. Ficou alguns minutos sem pensar, e a escuridão foi se apossando dele, chegando cada vez mais perto, fazendo com que pisasse na beira do lago da morte. Ele ia morrer – por tudo o que tinha feito sem acreditar, por tanta gente envolvida sem saber, por tanto mal espalhado sob a forma de bem. Morreria, e as Trevas existiam, porque se manifestavam agora, diante dos seus olhos, mostrando que as coisas terminavam funcionando um dia, cobrando seu preço pelo tempo em que foram usadas, e ele tinha que pagar – porque não quisera saber o preço antes, pensou que era grátis, que tudo era mentira ou sugestão da mente!

Os anos no colégio jesuíta voltaram, e ele pediu forças para chegar até uma igreja, pedir perdão, pedir ao menos que Deus salvasse sua alma. Precisava conseguir. Sempre que mantinha a mente ocupada, conseguia dominar um pouco a vertigem. Precisava de tempo suficiente para ir até a igreja… Que idéia ridícula!

Olhou a estante. Resolveu saber quantos discos tinha – afinal de contas, sempre adiara esta providência! Sim, era algo muito importante saber o número exato de seus discos, e começou a contar: um, dois, três… conseguia! Conseguia segurar a vertigem, o buraco negro que puxava. Contou todos os discos –

e recontou para ver se estava certo. Agora os livros. Precisava contar para saber quantos livros tinha. Teria mais livros que discos? Começou a contar. A vertigem parava, e tinha muitos livros. E revistas. E jornais alternativos. Ia contar tudo, anotar num papel, saber realmente quantas coisas possuía. Era importantíssimo.

Estava contando os talheres da casa quando a chave girou na porta. Ela estava chegando, afinal. Mas não podia se distrair – não podia sequer conversar sobre o que estava acontecendo; em algum momento, aquilo ia parar. Tinha certeza disso.

Ela foi direto para a cozinha e abraçou-o chorando.

–Socorro… tem alguma coisa estranha. Você sabe o que é, me ajude!

Ele não queria perder a conta dos talheres – era a sua salvação. Manter a mente ocupada. Melhor que ela não tivesse chegado – não estava ajudando nada. E pensava como Argéles – que ele sabia tudo, que sabia como parar aquilo.

–Mantenha a mente ocupada! – gritou, como se estivesse possuído. – Conte quantos discos tem! E quantos livros!

Ela olhou sem entender. E como um robô caminhou em direção à estante. Mas não conseguiu chegar até lá. De repente, atirou-se ao chão.

–Quero minha mãe… – repetia, em voz baixa. – Quero minha mãe…

Ele também queria. Queria ligar para os pais, pedir socorro – os pais que não via nunca, que pertenciam a um mundo burguês, já há muito abandonado. Tentou continuar a contagem dos talheres, mas ela estava ali, chorando como criança, arrancando os próprios cabelos. Aquilo era demais. Ele era o responsável pelo que estava acontecendo, porque a amava, e havia ensinado os rituais, garantido que ela ia conseguir o que queria, que as coisas melhoravam a cada dia (embora nem por um momento acreditasse no que falava!). Agora ela estava ali, pedindo ajuda, confiando nele – e ele não sabia o que fazer.

Por um instante pensou em dar outra ordem, mas já havia esquecido quantos talheres possuía, e o buraco negro apareceu de novo com força.

–Me ajude você – disse. – Eu não sei.

E começou a chorar.

Chorava de medo, como quando era criança. Queria os pais, como ela. Estava suando frio, e tinha certeza de que morreria. Pegou-a pela mão, as mãos dela também estavam frias, embora as roupas estivessem empapadas de suor. Foi até o banheiro para lavar o rosto – era assim que faziam quando o efeito da droga estava muito forte. Funcionava também para “aquilo” – ele já havia experimentado. O corredor parecia imenso, a coisa agora estava mais forte – já não contava discos, livros, lápis, talheres. Não tinha mais como fugir.

“Água corrente.”

O pensamento vinha de um outro canto de sua cabeça, um lugar onde a escuridão parecia não penetrar. Água corrente! Sim, existia o poder das trevas, o delírio, a loucura – mas existiam outras coisas!

–Água corrente – disse para ela, enquanto lavavam o rosto. Água corrente afasta o mal. Ela notou a segurança na voz dele. Ele sabia, sabia tudo. Ia salvá-la. Ele abriu o chuveiro, e os dois entraram – com roupas, documentos, dinheiro. A água fria molhou seus corpos e, pela primeira vez desde que tinha acordado, sentiu um certo alívio. A vertigem sumira. Ficaram uma, duas, três horas debaixo da água, sem conversar, tremendo de frio e de medo. Saiu do chuveiro apenas uma vez, a fim de ligar para Argéles e pedir que fizesse o mesmo. A vertigem voltou, e teve que retornar correndo para debaixo da água. Ali tudo parecia calmo, mas precisava desesperadamente entender o que acontecia.

–Eu nunca acreditei – disse.

Ela o olhou sem entender. Há dois anos eram hippies sem um tostão, e agora as músicas dele eram ouvidas de norte a sul do país. Estava no auge do sucesso – embora poucas pessoas soubessem seu nome; e dizia que tudo aquilo era fruto dos rituais, dos estudos ocultos, do poder da magia.

–Nunca acreditei – continuou. – Ou não teria me arriscado por esses caminhos! Jamais teria me arriscado, e arriscado você.

–Faca alguma coisa, pelo amor de Deus! – disse ela. – Não podemos ficar para sempre aqui debaixo!

Saiu mais uma vez do chuveiro, de novo experimentou a tontura, o buraco negro. Foi até a estante, e voltou com uma Bíblia. Tinha uma Bíblia em casa – apenas para ler o Apocalipse, ter certeza do reino da Besta. Fazia tudo conforme mandavam os seguidores da Besta – e, no fundo, não acreditava em nada.

–Vamos rezar para Deus – pediu. Sentia-se ridículo, desmoralizado diante da mulher que tentara impressionar durante todos aqueles anos. Era fraco, ia morrer, precisava humilhar-se, pedir perdão. O mais importante agora era salvar sua alma. Tudo era verdade, afinal. Abraçou-se com a Bíblia e rezou as orações que aprendera na infância – Pai-Nosso, Ave- Maria, Credo. Ela relutou no início, depois passou a acompanhá-lo. Então ele abriu o livro ao acaso. A água do chuveiro castigava as páginas, mas ele conseguia ler a história de alguém que pede algo a Jesus, e este diz para que o sujeito tenha fé. O sujeito responde: “Senhor, eu creio – ajudai minha incredulidade.”

–Senhor, eu creio, ajudai minha incredulidade! – gritou, entre o ruído da água que caía.

–Eu creio, Senhor, ajudai minha incredulidade! – disse ela, baixinho, aos prantos. Começou a sentir-se estranhamente calmo. Se existia o mal terrível que experimentavam, então era verdade que o reino dos céus também existia, e, junto com ele, tudo o mais que havia aprendido e negado durante toda a vida.

–Existe a vida eterna – disse, embora sabendo que ela nunca mais acreditaria em suas palavras. – Não me importa morrer. Você não pode também ter medo.

–Não tenho medo – ela respondeu. – Não tenho medo, mas acho uma injustiça. Uma pena. Tinham 26 anos. Era realmente uma pena.

–Vivemos tudo que alguém da nossa idade podia viver – respondeu ele. – Tem gente que não chegou nem perto.

–É verdade – disse ela. – Podemos morrer.

Ele virou o rosto para cima, e o barulho da água em seus ouvidos parecia um trovão. Não estava mais chorando, nem com medo; apenas pagava o preço de sua ousadia.

–Senhor, eu creio, ajudai minha incredulidade – repetiu. – Queremos fazer uma troca. Oferecemos qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, pela salvação de nossas almas. Oferecemos nossas vidas, ou tudo que temos. Aceitai, Senhor.

Ela olhava para ele com desprezo. O homem que admirava tanto. O poderoso, o misterioso, o corajoso homem que admirava tanto, que havia convencido tantas pessoas sobre a Sociedade Alternativa, que pregava um mundo onde tudo era permitido, onde os fortes dominariam os fracos. Aquele homem estava ali, chorando, chamando a mãe, rezando como uma criança, e dizendo que sempre tivera muita coragem –

porque não acreditava em nada.

Ele virou-se, pediu que os dois olhassem para cima e fizessem a troca. Ela fez. Havia perdido seu homem, sua fé, e sua esperança. Não tinha mais nada a perder. Então ele colocou a mão na torneira e lentamente começou a fechá-la. Agora podiam morrer, Deus os havia perdoado.

O jato de água transformou-se em pingos, e depois houve um silêncio completo. Os dois, ensopados até os ossos, se olhavam. A vertigem, o buraco negro, os risos e os barulhos, tudo havia desaparecido.


Estava deitado no colo de uma mulher, e chorava. A mão dela tocava seus cabelos.

– Fiz esse acordo – disse, entre lágrimas.

– Não – respondeu a mulher. – Foi uma troca. E houve a troca.

Paulo segurou a medalha do arcanjo com mais força. Sim, houve a troca – e o castigo veio com toda a severidade. Dois dias depois daquela manhã de 1974, eles eram presos pela polícia política brasileira, acusados de subversão por causa da Sociedade Alternativa. Ficou numa cela escura, igual ao túnel negro que vira em sua sala; foi ameaçado de morte, apanhou, mas era uma troca. Quando saiu, rompeu com o parceiro, e foi expulso do mundo musical por longo tempo. Ninguém lhe dava emprego – mas era uma troca. Outras pessoas do grupo não tinham feito a troca. Sobreviveram ao “buraco negro”, passaram a chamá-lo de covarde. Perdeu os amigos, a segurança, a vontade de viver. Passou anos com medo de sair na rua – a vertigem podia voltar, os policiais podiam voltar. E, ainda pior, desde que saiu da prisão, nunca mais tornara a ver sua companheira. Em alguns momentos, arrependeu-se da troca – era preferível morrer do que continuar vivendo daquela maneira. Mas agora era tarde para mudar de novo.

– Houve um acordo – insistiu Vahalla. – Qual foi este acordo?

– Prometi abandonar meus sonhos – disse.

Durante sete anos pagou o preço da troca, mas Deus era generoso, e permitiu que reconstruísse sua vida. O diretor da gravadora, justamente com quem tinha sonhado naquela manhã de maio, arranjou-lhe um emprego e se transformou no único amigo. Voltou a compor, mas sempre que seu trabalho começava a crescer, alguma coisa terminava acontecendo e jogando tudo por água abaixo.

“A gente destrói aquilo que ama”, lembrou-se do que J. dissera.

– Sempre achei que fosse parte da troca – falou.

– Não – respondeu Vahalla. – Deus foi duro. Mas você foi mais duro que Ele.

– Prometi jamais crescer de novo. Achei que nunca mais teria segurança nas minhas palavras.

A Valkíria apertou sua cabeça de encontro aos seios nus.

– Fale dos terrores – disse. – Do terror que vi ao seu lado, quando nos encontramos na lanchonete.

O terror… – ele não sabia como começar, porque parecia que estava dizendo um absurdo. –

O terror não me deixa dormir à noite nem descansar durante o dia. Chris agora entendia seu anjo. Precisava estar ali, escutar tudo aquilo, porque ele jamais lhe contara…

– … eu agora tenho uma mulher que amo, encontrei J., fiz o sagrado Caminho de Santiago, e escrevi livros. Estou sendo de novo fiel aos meus sonhos, e este é o terror. Porque tudo está andando como eu queria, e sei que tudo será destruído em breve.

Era terrível dizer aquilo. Jamais havia comentado com ninguém – nem consigo mesmo. Sabia que Chris estava ali, escutando tudo – e tinha vergonha.

– Foi assim com as músicas – continuou, forçando as palavras para fora. – E foi assim com tudo que fiz desde então. Nada durou mais de dois anos.

Sentiu as mãos de Vahalla retirando o medalhão de seu pescoço. Ele levantou-se. Não queria que ela acendesse a luz, não tinha coragem de enfrentar Chris. Mas Vahalla acendeu a lanterna, e os três começaram a sair, em silêncio.

– Nós duas vamos sair na frente, e você virá depois – disse Vahalla, quando já estavam quase chegando ao final do túnel.

Paulo estava certo de que, assim como sua namorada de quatorze anos atrás, Chris nunca mais confiaria nele.

– Hoje acredito no que faço – tentou dizer, antes que as duas se afastassem. A frase soava como um pedido de desculpas, uma justificativa.

Ninguém respondeu nada. Deram mais alguns passos, e Vahalla desligou a lanterna. Já

entrava luz suficiente para que pudessem enxergar.

– A partir do momento em que você colocar os pés lá fora – disse a Valkíria –, prometa, em nome do arcanjo São Miguel, que nunca mais – NUNCA MAIS – irá levantar a mão contra você mesmo.

– Tenho medo de dizer isto – respondeu ele. – Porque não sei como cumprir.

– Você não tem escolha se quiser ver o seu anjo.

– Eu não sabia o que estava fazendo comigo mesmo, e posso continuar me traindo.

– Agora você já sabe – respondeu Vahalla. – E a verdade liberta. Paulo concordou com a cabeça.

– Ainda vão acontecer muitos problemas em sua vida. Coisas difíceis, ou coisas passageiras. Mas, a partir de agora, apenas a mão de Deus será responsável por tudo – você não vai mais interferir.

– Prometo, em nome de São Miguel.

As duas saíram. Ele esperou um momento, e começou a caminhar. Tinha ficado nas trevas tempo suficiente.

Os raios, refletidos na rocha, indicavam o caminho. Havia uma porta de grade, uma porta que dava para um reino proibido, uma porta que o assustava – porque ali estava o reino da luz, e ele vivera muitos anos nas trevas. Uma porta que parecia fechada – e, no entanto, quem chegasse perto descobriria que estava aberta.

A porta da luz estava adiante. Queria atravessá-la. Podia ver o sol dourado brilhando lá fora; resolveu não colocar os óculos escuros. Precisava de luz. Sabia que o arcanjo Miguel estava a seu lado, varrendo as trevas com sua lança.

Durante anos acreditara na implacável mão de Deus, no seu castigo. Mas era sua própria mão, e não a de Deus, que causara tanta destruição. Nunca mais, em todo o resto de sua vida, faria isso de novo.

– Rompo o acordo – disse para as trevas da mina, e para a luz do deserto. – Deus tem o direito de me destruir. Eu não tenho este direito.

Pensou nos livros que escrevera, e sentiu-se feliz. O ano ia acabar sem nenhum problema –

porque o acordo estava rompido. Com toda certeza surgiriam problemas com seu trabalho, com o amor, com o caminho da magia – coisas sérias, ou coisas passageiras, como dissera Vahalla. Mas, a partir de agora, ele lutaria lado a lado com seu anjo da guarda.

– Você deve ter feito um grande esforço – falou para seu anjo. – E, no final, eu estragava tudo, e você ficava sem entender.

Seu anjo estava escutando. Ele também sabia do acordo e ficou contente por não precisar gastar suas energias evitando que Paulo se destruísse.

Encontrou a abertura na porta, e saiu. O sol dourado cegou-o por muito tempo, mas ele manteve os olhos abertos – precisava de luz. Viu os vultos de Vahalla e Chris se aproximando.

– Ponha a mão no ombro dele – a Valkíria disse para Chris. – Seja a testemunha. Chris obedeceu.

Vahalla tirou um pouco de água de seu cantil, e fez uma cruz em sua cabeça – como se o batizasse novamente. Então ajoelhou-se, e pediu que todos fizessem o mesmo.

– Em nome do arcanjo Miguel, o acordo foi conhecido pelo céu. Em nome do arcanjo Miguel, o acordo foi rompido.

Colocou a medalha em sua testa, e pediu que repetissem suas palavras. Santo anjo do Senhor,

meu zeloso guardador…

A oração da infância ecoava nas paredes das montanhas, e se espalhava por aquela parte do deserto.

Se a ti me confiou

a piedade divina

sempre me rege, e guarda

governa e ilumina.

Amém.

– Amém – disse Chris.

– Amém – repetiu ele.


As pessoas se aproximaram. Havia curiosidade em seus olhos.

– São lésbicas – disse alguém.

– São loucas – disse outro.

As Valkírias amarraram um lenço no outro até formar uma espécie de corda. Depois sentaram-se no chão, em círculo – os braços apoiados nos joelhos, segurando os lenços unidos. Vahalla estava no meio, em pé. Continuou a chegar gente. Quando uma pequena multidão já

se havia formado, as Valkírias entoaram um salmo.

“Nas margens dos rios da Babilônia

nós nos sentamos e choramos.

Nos salgueiros que lá havia

penduramos nossas harpas.”

As pessoas olhavam, sem compreender nada. Não era a primeira vez que aquelas mulheres apareciam na cidade. Já tinham estado ali antes, falando de coisas estranhas – embora certas palavras se parecessem com as que os pastores diziam na televisão.

– Tenham coragem – a voz de Vahalla soava alta e firme. – Abram o coração e escutem o que ele lhes diz. Sigam seus sonhos, porque só um homem que não tem vergonha de si é capaz de manifestar a glória de Deus.

– O deserto enlouquece – comentou uma mulher.

Algumas pessoas se afastaram logo. Estavam fartas de pregações religiosas.

– Não existe pecado além da falta de amor – continuou Vahalla. – Tenham coragem, sejam capazes de amar, mesmo que o amor pareça uma coisa traiçoeira e terrível. Alegrem-se no amor. Alegrem-se na vitória. Sigam o que seus corações mandarem.

– É impossível – disse alguém na multidão. – Temos obrigações a cumprir. Vahalla virou-se na direção da voz. Estava conseguindo – as pessoas prestavam atenção!

Diferente de cinco anos atrás, quando caminhavam pelo deserto, chegavam nas cidades, e ninguém se aproximava.

– Existem os filhos. Existem o marido e a mulher. Existe o dinheiro a ganhar – disse outra pessoa.

– Cumpram, pois, suas obrigações. Mas elas jamais impediram alguém de seguir seus sonhos. Lembrem-se de que são uma manifestação do Absoluto, e façam nesta vida apenas coisas que valham a pena. Só os que agirem assim entenderão as grandes transformações que estão por vir.

“A conspiração”, pensou Chris enquanto escutava. Lembrou-se do tempo em que ia cantar na praça, junto com outros de sua igreja, para salvar os homens do pecado. Naquela época não falavam em um novo tempo – falavam da volta de Cristo, dos castigos e do inferno. Não havia uma conspiração, como agora.

Caminhou entre a multidão, e viu Paulo. Estava num banco, longe da aglomeração. Resolveu juntar-se a ele.

– Quanto tempo vamos ficar viajando com elas? – perguntou.

– Até que Vahalla me ensine como ver anjos.

– Mas já se passou quase um mês.

– Ela não pode negar. Fez o juramento da Tradição. E terá que cumpri-lo.

A multidão aumentava cada vez mais. Chris ficou pensando como devia ser difícil falar para aquelas pessoas.

– Não vão levá-las a sério – comentou. – Não com estas roupas, e estes cavalos.

– Guerreiam por idéias muito antigas – disse Paulo. – Hoje em dia os soldados se camuflam, se disfarçam, se escondem. Mas os guerreiros antigos iam com suas roupas mais coloridas e mais vistosas para os campos de batalha.

“Queriam que o inimigo os visse. Tinham orgulho da luta.”

– Por que agem assim? Por que pregam nas praças públicas, nos bares, no meio do deserto?

Por que nos ajudam a conversar com os anjos?

Ele acendeu um cigarro.

– Você está certa na sua brincadeira – disse Paulo. – Existe uma conspiração. Ela riu. Se tivesse razão, Paulo já teria dito antes. Não, não existia uma conspiração. Ela criara a denominação porque os amigos do marido pareciam agentes secretos, sempre preocupados em não conversar certas coisas diante dos outros, sempre mudando de assunto – embora jurassem, de pés juntos, que nada existia de oculto na Tradição.

Mas Paulo parecia estar falando sério.

– Os portões do Paraíso foram abertos de novo – disse. – Deus afastou o anjo que estava na porta, com a espada de fogo. Por algum tempo – ninguém sabe exatamente quanto – qualquer um pode entrar, desde que perceba que os portões estão abertos.

Enquanto falava com Chris, Paulo lembrou-se da velha mina de ouro abandonada. Até

aquele dia – uma semana atrás – havia escolhido ficar do lado de fora do Paraíso.

– Quem garante isso? – perguntou ela.

– A Fé. E a Tradição – foi a resposta.

Foram até um vendedor ambulante e compraram sorvetes. Vahalla continuava falando, e seu discurso parecia não ter fim. Daqui a pouco representariam aquela estranha peça teatral, usando os espectadores – e só então o comício estaria terminado.

– Todos sabem dos portões abertos? – perguntou ela.

– Algumas pessoas perceberam – e estão chamando as outras. Mas existe um problema. Paulo apontou para um monumento no meio da praça.

– Suponhamos que ali seja o Paraíso. E cada pessoa está num lugar desta praça.

– Cada uma tem um caminho diferente para chegar lá.

– Por isso é que as pessoas conversam com seus anjos. Porque somente eles conhecem o melhor caminho. Não adianta recorrer aos outros.

“Sigam seus sonhos, e corram seus riscos!”, escutava Vahalla dizer.

– Como será este mundo?

– Será apenas dos que entrarem no Paraíso – respondeu Paulo. – O mundo da “conspiração”, como você diz. O mundo das pessoas capazes de ver as transformações do presente, das pessoas com coragem de viver seus sonhos, escutar seus anjos. Um mundo de todos que acreditarem nele. Houve um burburinho entre os espectadores. Chris sabia que a peça de teatro havia começado. Teve vontade de ir até lá e ver; mas o que Paulo estava dizendo era muito mais importante.

– Durante séculos, choramos nas margens dos rios da Babilônia – continuou Paulo. –

Penduramos nossas harpas, éramos proibidos de cantar, fomos perseguidos, massacrados, mas nunca esquecemos que havia uma terra prometida. A Tradição sobreviveu a tudo.

“Aprendemos a lutar, estamos fortalecidos pela luta. As pessoas agora voltam a falar do mundo espiritual, o que há poucos anos parecia coisa de gente ignorante, acomodada, e existe um fio invisível unindo os que estão do lado da luz – como os lenços amarrados das Valkírias. E este fio forma um cordão forte, brilhante, seguro pelos anjos, um corrimão que os mais sensíveis percebem e em que podemos nos apoiar. Porque somos muitos, espalhados pelo mundo inteiro. Movidos pela mesma fé.”

– A cada dia este mundo tem um nome – disse ela. – Nova Era, Sexta Raça Dourada, Sétimo Raio etc.

– Mas é o mesmo mundo. Eu garanto a você.

Chris olhou para Vahalla, no meio da praça, falando de anjos.

– E por que ela tenta convencer os outros?

– Não, ela não tenta. Viemos do Paraíso, nos dispersamos pela Terra, e estamos voltando. Vahalla pede às pessoas para pagarem o preço desta volta.

Chris lembrou-se da tarde na mina.

– Às vezes é um preço muito alto.

– Pode ser. Mas existem pessoas que estão dispostas a pagar. Elas sabem que as palavras de Vahalla são verdadeiras, porque lhes recordam algo esquecido. Todos ainda carregam na alma as memórias e visões do Paraíso. E podem passar anos sem lembrar – até que acontece alguma coisa: um filho, uma perda séria, a sensação de perigo iminente, um pôr-do-sol, um livro, uma música, ou um grupo de mulheres com roupas de couro falando em Deus. Qualquer coisa. De repente, estas pessoas se recordam.

“Isto é o que Vahalla está fazendo. Lembrando que existe um lugar. Alguns escutam, e outros não – estes passarão pela porta sem notar.”

– Mas ela fala deste novo mundo.

– São apenas as palavras. Na verdade, elas retiraram suas harpas do salgueiro, e estão tocando de novo – e milhões de pessoas, pelo mundo inteiro, cantam novamente as alegrias da Terra Prometida. Ninguém está mais sozinho.

Escutaram o ruído dos cavalos. A peça havia acabado. Paulo começou a andar em direção ao carro.

– Por que você nunca comentou isto comigo? – perguntou ela.

– Porque você já sabia.

Sim, ela sabia. Mas só agora havia lembrado.


As Valkírias seguiam em direção ao Vale da Morte. Iam de cidade em cidade com seus cavalos, chicotes, lenços, roupas estranhas. E falavam em Deus. Paulo e Chris seguiam com elas. Quando acampavam perto de cidades, eles dormiam em hotéis. Quando paravam no meio do deserto, dormiam no carro. Elas acendiam uma fogueira, e o deserto deixava de ser perigoso à noite – os animais não se aproximavam. Podiam dormir ouvindo o uivo dos coiotes, e vendo as estrelas.

A partir da tarde na mina, Paulo começou a praticar a canalização. Tinha medo de que Chris pensasse que ele não sabia direito o que ensinava.

– Eu conheço J. – ela disse, quando tocaram no assunto. – Não precisa me provar isso.

– Minha namorada daquela época também conhecia a pessoa que me ensinava – respondeu ele.

Sentavam-se juntos todas as tardes, destruíam a barreira da segunda mente, oravam para o seu anjo e invocavam sua presença.

– Acredito neste novo mundo – disse para Chris quando terminavam mais um exercício de canalização.

– Estou certo de que você acredita. Ou não faria as coisas que faz em sua vida.

– Mesmo assim, não sei se me comporto à altura.

– Seja generoso consigo – respondeu ela. – Você está dando o melhor de si – poucas pessoas saem pelo mundo atrás de anjos. Não esqueça que você rompeu o acordo. O acordo rompido na mina: J. ia ficar feliz! Embora Paulo tivesse quase certeza de que ele já sabia de tudo, e por isso não impedira a viagem para o deserto.

Quando os dois acabavam os exercícios de canalização, ficavam horas seguidas conversando sobre anjos. Mas conversavam apenas entre eles – Vahalla nunca mais tocara no assunto.

Numa daquelas tardes, depois da conversa, procurou a Valkíria.

– Você conhece a Tradição – disse. – Não pode interromper um processo que começou.

– Não estou interrompendo nada – respondeu ela.

– Mas daqui a pouco terei que voltar ao Brasil. Ainda falta aceitar o perdão. E fazer uma aposta.

– Não estou interrompendo o processo – respondeu mais uma vez.

Sugeriu que fossem dar um longo passeio a pé pelo deserto. Sentaram-se lado a lado, assistiram ao pôr-do-sol juntos, falaram de rituais e cerimônias. Vahalla perguntou sobre a maneira de J. ensinar, e Paulo quis saber os resultados da pregação no deserto.

– Preparo o caminho – disse ela, displicentemente. – Cumpro a minha parte, e espero cumpri-la até o final. Depois, saberei qual o próximo passo.

– Como vai saber que chegou o momento de parar?

Vahalla mostrou o horizonte.

– Temos que dar onze voltas pelo deserto, passar onze vezes pelos mesmos lugares, repetir onze vezes as mesmas coisas. Foi tudo o que me disseram para fazer.

– Seu mestre disse?

– Não. O arcanjo Miguel.

– E que volta é esta?

– A décima.

A Valkíria encostou-se no ombro de Paulo, e ficou longo tempo em silêncio. Ele teve vontade de afagar seus cabelos, colocá-la no colo – como ela fizera com ele na mina abandonada. Era uma guerreira, e também precisava de repouso.

Ficou algum tempo na dúvida, mas desistiu. E os dois voltaram ao acampamento.


À medida que os dias passavam, Paulo começou a suspeitar que Vahalla estava ensinando tudo que ele precisava saber – só que à maneira de Took, sem mostrar diretamente o caminho. Passou então a observar tudo que as Valkírias faziam; podia descobrir uma pista, um ensinamento, uma nova prática. E, quando Vahalla chamou-o para ver o entardecer do deserto – ela agora fazia isto sempre –, resolveu tocar no assunto.

– Nada lhe proíbe que me ensine diretamente – disse. – Você não é uma mestra. Não é como Took, ou J., ou como eu mesmo, que conhecemos duas Tradições.

– Sou uma mestra, sim. Aprendi através da revelação. Está certo que não fiz cursos, não participei de covens*, nem me inscrevi em sociedades secretas. Mas sei muitas coisas que você não sabe, porque o arcanjo Miguel me ensinou.

– Por isso estou aqui. Para aprender.

Os dois estavam sentados na areia, recostados numa rocha. Vahalla pediu que Paulo abrisse as pernas.

– Preciso de carinho – disse ela. – Preciso muito de carinho.

Paulo abriu as pernas. Vahalla saiu de seu lugar, e deitou-se no meio delas, com a cabeça apoiada em seu colo. Ficaram um longo tempo em silêncio, olhando o horizonte. Foi Paulo quem falou primeiro. Não gostava do que ia dizer, mas era preciso.

– Vou partir em breve, você sabe.

Ficou aguardando a reação. Ela não disse nada.

– Preciso aprender a visão do anjo. Creio que você já está me ensinando, e eu não estou percebendo.

– Não. Meus ensinamentos são claros como o sol do deserto.

Paulo tocou nos cabelos ruivos que cobriam seu colo.

– Você tem uma bela mulher – disse Vahalla.

Paulo entendeu o comentário, e retirou as mãos.

Ao voltar para junto de Chris, aquela noite, comentou o que Vahalla dissera a seu respeito. Chris sorriu, e não disse nada.

Continuaram viajando juntos. Mesmo depois do comentário de Vahalla – sobre a clareza dos seus ensinamentos – Paulo continuava a prestar atenção a tudo que as Valkírias faziam. Mas a rotina não se alterava muito: viajar, falar nas praças, executar rituais que ele já conhecia, e seguir adiante. E namorar. Namoravam homens que encontravam no caminho. Geralmente eram viajantes solitários, montados em possantes motocicletas, com coragem suficiente para se aproximar do grupo. Quando isso acontecia, havia um acordo – não escrito – de que Vahalla teria o direito da primeira escolha. Se ela não se interessasse, qualquer outra podia se aproximar do recém-chegado. Os homens não sabiam disso. Tinham a sensação de que estavam com a mulher que tinham escolhido – embora a escolha já tivesse sido feita muito antes. Por elas. As Valkírias bebiam cerveja e falavam em Deus. Executavam rituais sagrados e namoravam nas rochas. Nas cidades maiores, iam para um lugar público representar a estranha peça de teatro – que envolvia algumas pessoas da platéia.

No final, pediam que colaborassem com algumas moedas. Vahalla nunca participava do espetáculo – mas dirigia o que estava acontecendo, e depois passava seu lenço entre os presentes. Sempre conseguia recolher dinheiro suficiente.

Toda tarde, antes que Vahalla viesse chamar Paulo para passear no deserto, ele e Chris praticavam a canalização, e conversavam com seus anjos. Embora o canal ainda não estivesse completamente aberto, sentiam a presença da proteção constante, do amor e da paz. Ouviam frases sem sentido, tinham algumas intuições, e muitas vezes a única sensação era de alegria – nada mais. Entretanto, sabiam que conversavam com anjos, e que os anjos estavam contentes.

Sim, os anjos estavam contentes porque tinham sido contatados de novo. Qualquer pessoa que resolvesse conversar com eles, descobriria que aquela não era a primeira vez. Já haviam conversado antes, na infância, quando apareciam sob a forma de “amigos ocultos”, companheiros de longas conversas e brincadeiras, afastando o mal e o perigo.

E toda criança conversava com seu anjo da guarda – até chegar o famoso dia em que os pais notavam que o filho estava falando com gente que “não existia”. Então, ficavam intrigados, culpavam o excesso de imaginação infantil, consultavam pedagogos e psicólogos, e chegavam à conclusão de que a criança devia acabar com aquele tipo de comportamento.

Os pais sempre insistiam em dizer aos filhos que os amigos ocultos não existiam – talvez porque esquecessem que também eles conversaram com anjos um dia. Ou, quem sabe, pensavam que viviam num mundo que não tinha mais lugar para anjos. Desencantados, os anjos voltavam à presença de Deus, sabendo que não podiam impor sua presença.

Mas um novo mundo estava começando. Os anjos sabiam onde estava a porta do Paraíso, e conduziriam para lá todos aqueles que acreditassem neles. Talvez nem precisassem acreditar – bastava que precisassem dos anjos, e eles retornavam com alegria.

Paulo passava as noites imaginando por que Vahalla se comportava daquela maneira –

adiando as coisas.

Chris sabia a resposta. E as Valkírias também sabiam – sem que ninguém no grupo tivesse feito qualquer comentário a respeito.

Chris esperava o bote. Mais cedo ou mais tarde aconteceria. Por isso a Valkíria não havia se livrado deles, não ensinara o resto do encontro com o anjo.


Certa tarde começaram a aparecer imensas montanhas no lado direito da estrada. Depois, o lado esquerdo também foi se enchendo de montanhas, de canyons, enquanto uma gigantesca planície de sal, brilhando muito, formava-se no meio.

Chegaram ao Vale da Morte.

As Valkírias acamparam perto de Furnace Creek – o único local, em muitos quilômetros de distância, onde se podia conseguir água. Chris e Paulo resolveram ficar com elas, porque o único hotel no Vale da Morte estava lotado.

Naquela noite, o grupo inteiro sentou-se em volta da fogueira, conversando sobre homens, cavalos e – pela primeira vez em muitos dias – anjos. Como faziam sempre antes de deitar, as Valkírias amarraram os lenços, seguraram o longo cordão formado, e repetiram uma vez mais o salmo que falava dos rios da Babilônia e das harpas penduradas nos salgueiros. Não podiam esquecer, nunca, que eram guerreiras. Terminado o ritual, o silêncio desceu sobre o acampamento, e todos foram dormir. Menos Vahalla.

Ela afastou-se um pouco do lugar, e ficou um longo tempo contemplando a lua no céu. Pediu ao arcanjo Miguel que continuasse a aparecer para ela, dando os conselhos certos e ajudando a manter sua mão firme.

“Tu venceste as batalhas com outros anjos”, rezou. “Me ensina a vencer. Que eu não disperse este rebanho de oito pessoas, para que um dia possamos ser milhares, milhões. Perdoai meus erros, e enchei meu coração de entusiasmo. Me dá forças para ser homem e mulher, dura e suave. Que minha palavra seja a tua lança.

Que o meu amor seja a tua balança.”

Fez o sinal-da-cruz e ficou quieta, escutando o uivo de um coiote ao longe. Estava sem sono, e começou a pensar um pouco em sua vida. Lembrou-se do tempo em que era apenas uma funcionária do Chase Manhattan Bank, em que sua vida se resumia ao marido e aos dois filhos.

– Mas vi meu anjo – falou para o deserto silencioso. – Ele apareceu coberto de luz, e me pediu para cumprir essa missão. Não me obrigou, não fez ameaças nem prometeu recompensas. Apenas pediu.

Largou tudo no dia seguinte e foi para o Mojave. Começou pregando sozinha, falando das portas abertas do Paraíso. O marido pediu divórcio, e conseguiu a guarda dos filhos. Não entendia direito por que estava fazendo aquilo, mas sempre que chorava por causa da dor e da solidão, o anjo contava histórias de outras mulheres que tinham aceito as mensagens de Deus; falava da Virgem Maria, de Santa Teresa, de Joana D’Arc. Dizia que tudo que o mundo precisava era de exemplos, de pessoas capazes de viver seus sonhos e lutar por suas idéias.

Ficou quase um ano vivendo perto de Las Vegas. Gastou logo o pouco dinheiro que conseguiu levar consigo, passou fome e dormiu ao relento. Até que um dia caiu em suas mãos uma poesia. Os versos contavam a história de uma santa, Maria Egipcíaca. Ela estava viajando para Jerusalém, e não tinha dinheiro para pagar a travessia de um rio. O barqueiro, olhando a bela mulher à sua frente, disse-lhe que, embora não dispusesse de dinheiro, tinha o seu corpo. Maria Egipcíaca entregou-se então ao barqueiro. Quando chegou a Jerusalém, um anjo apareceu e abençoou-a por seu gesto. Depois de sua morte, foi canonizada pela Igreja, apesar de hoje em dia quase ninguém se lembrar. Vahalla interpretou a história como um sinal. Pregava o nome de Deus durante o dia, e duas vezes por semana ia aos cassinos, arranjava alguns namorados ricos, e conseguia dinheiro. Nunca perguntou ao seu anjo se estava agindo certo – e ele tampouco disse nada. Aos poucos, conduzidas pelas mãos invisíveis de outros anjos, suas companheiras começaram a chegar.

– Falta apenas uma volta – disse de novo, em voz alta, para o deserto silencioso. – Falta apenas uma volta para que a missão seja cumprida, e eu possa voltar ao mundo. Não sei o que me espera, mas quero voltar. Preciso de amor, de carinho, preciso de um homem que me proteja na Terra, da mesma maneira que meu anjo me protege no céu. Cumpri minha parte; não me arrependo, mas foi muito difícil. Fez de novo o sinal-da-cruz, e retornou ao acampamento.

Ao voltar, reparou que o casal de brasileiros continuava sentado em frente à fogueira, olhando as chamas.

– Quantos dias faltam para completar quarenta? – perguntou a ele.

– Onze.

– Então, amanhã, às dez horas da noite, no Canyon de Ouro, eu o farei aceitar o perdão. O

Ritual Que Derruba os Rituais.

Paulo ficou pasmo. Tinha razão! A resposta estava o tempo todo debaixo do seu nariz!

– De que maneira? – perguntou.

– Pelo ódio – respondeu Vahalla.

– Está bem – disse, procurando disfarçar a surpresa. Mas Vahalla sabia que Paulo jamais utilizara o ódio no Ritual Que Derruba os Rituais.

Deixou o casal e foi até o lugar onde Rotha estava dormindo. Passou carinhosamente a mão em seus cabelos, até que a menina acordasse – talvez estivesse fazendo contato com os anjos que aparecem em sonhos, e Vahalla não queria interromper abruptamente a conversa. Rotha finalmente abriu os olhos.

– Amanhã você aprenderá a aceitar o perdão – disse Vahalla. – E, em breve, também poderá

ver seu anjo.

– Mas já sou uma Valkíria.

– Claro. E, mesmo que não consiga ver seu anjo, continuará a ser uma Valkíria. Rotha sorriu. Tinha 23 anos, e estava orgulhosa de caminhar pelo deserto com Vahalla.

– Não use a roupa de couro amanhã, do momento do nascer do sol até acabar o Ritual Que Derruba os Rituais.

Abraçou-a com todo carinho.

– Agora pode voltar a dormir – disse.

Paulo e Chris continuaram olhando o fogo durante quase meia hora. Depois, colocaram algumas roupas como travesseiro, e se prepararam para dormir. Pensavam em comprar sacos de dormir em toda cidade grande por onde passavam, mas não tinham paciência de entrar em lojas, fazer compras. Além do mais, viviam na esperança de encontrar um hotel em cada canto. Por isso, quando precisavam acampar com as Valkírias, terminavam sendo obrigados a dormir dentro do carro ou perto da fogueira. O cabelo dos dois já

havia sido chamuscado várias vezes pelas fagulhas – embora nada de mais grave tivesse acontecido até o momento.

– O que ela quis dizer? – perguntou Chris quando já estavam deitados.

– Nada importante. – Ele estava com sono, e tinha bebido um pouco. Mas Chris insistiu. Precisava de uma resposta.

– Tudo na vida é ritual – disse Paulo. – Para os bruxos e para os que nunca ouviram falar em bruxaria. Tanto uns como outros tentam sempre executar, com perfeição, seus rituais. Que os bruxos tivessem rituais, Chris entendia. E que a vida comum também tivesse –

casamentos, batizados, formaturas –, ela também entendia.

– Não, não estou falando dessas coisas óbvias – prosseguiu impaciente, queria dormir, mas ela fingiu não ouvir a agressão. – Falo que tudo é ritual. Assim como uma missa é um grande ritual, composto de várias partes, o dia da vida de qualquer ser humano também o é.

“Um ritual cuidadosamente elaborado, que ele procura executar com precisão porque tem medo de – caso quebre qualquer parte – tudo vir abaixo. O nome deste ritual é ROTINA.”

Resolveu sentar-se. Estava tonto por causa da cerveja, e, se continuasse deitado, não conseguiria terminar a explicação.

– Enquanto somos jovens, nada é muito grave. Mas lentamente esse conjunto de rituais diários vai se solidificando, e passa a nos comandar. Uma vez que as coisas comecem a andar mais ou menos como imaginamos, não ousamos mais quebrar o ritual e correr riscos. Fingimos reclamar, mas nos satisfazemos com o fato de um dia ser igual ao outro. Pelo menos não existe o perigo inesperado.

“Desta maneira conseguimos evitar qualquer crescimento interior ou exterior, exceto aqueles já previstos pelo ritual: tantos filhos, tais promoções, tais conquistas financeiras.”

“Quando o ritual se consolida, o homem passa a ser seu escravo.”

– Acontece também com os bruxos e magos?

– Claro. Usam o ritual para o contato com o mundo invisível, para destruir a segunda mente e entrar no Extraordinário. Mas, também para nós, o terreno conquistado torna-se familiar. É preciso partir para novas terras. Entretanto, qualquer mago, qualquer bruxa tem medo de mudar de ritual. Medo do desconhecido, ou medo de que novos rituais não funcionem – mas é medo irracional, fortíssimo, que jamais desaparece sem uma ajuda.

– E o que é o Ritual Que Derruba os Rituais?

– Como o mago não consegue mudar seus rituais, a Tradição resolve mudar o mago. É uma espécie de Teatro Sagrado, em que ele precisa viver um novo personagem. Ele deitou-se de novo, virou para o lado, e fingiu dormir. Podia ser que ela pedisse mais explicações – e quisesse saber por que a Valkíria dissera “ódio”. Nunca, no teatro sagrado, os sentimentos baixos eram invocados. Ao contrário, pessoas que participavam dele procuravam trabalhar com o Bem, viver personagens fortes, iluminados. Assim, se convenciam de que eram melhores do que pensavam, e – quando acreditavam nisto – suas vidas mudavam. Trabalhar os sentimentos baixos significaria a mesma coisa. Ele terminaria se convencendo de que era pior do que imaginava.


Passaram a tarde do dia seguinte visitando o Canyon de Ouro, uma série de desfiladeiros cheios de curvas tortuosas, com paredes de aproximadamente seis metros de altura. No momento do pôr-dosol, enquanto faziam o exercício de canalização, entenderam por que o lugar tinha aquele nome: os raios se refletiam em milhares de minerais brilhantes encravados nas rochas, fazendo com que as paredes parecessem ouro.

– Hoje será noite de lua cheia – disse Paulo.

Já tinham visto uma lua cheia no deserto; era um espetáculo extraordinário.

– Acordei hoje pensando em um trecho da Bíblia – continuou ele. – Um trecho de Salomão:

“Bom é que retenhas isto, e também daquilo não retires tua mão; pois quem teme a Deus sairá de tudo ileso.”

– Estranho texto – disse Chris.

– Muito estranho.

– Meu anjo fala cada vez mais comigo. Começo a entender suas palavras. Entendo perfeitamente o que você contou na mina, porque nunca acreditei que isso pudesse acontecer. Ele ficou contente. E contemplaram juntos o final da tarde; desta vez Vahalla não tinha aparecido para passear com ele.

Já não existiam mais as pedrinhas brilhantes que viram à tarde. A lua projetava uma luz estranha, fantasmagórica, no desfiladeiro. Podiam escutar os próprios passos na areia, e caminhavam sem conversar, prestando atenção a qualquer barulho. Não sabiam onde as Valkírias estavam reunidas. Chegaram quase até o final, onde a fenda aumentava de largura, formando uma pequena clareira. Nenhum sinal delas.

Chris rompeu o silêncio.

– Podem ter desistido – disse.

Ela sabia que Vahalla ia prolongar ao máximo aquele jogo. Queria acabar logo.

– Os animais estão fora de suas tocas. Tenho medo das serpentes – continuou. – Vamos embora.

Mas Paulo olhava para cima.

– Veja – disse. – Elas não desistiram.

Chris acompanhou seu olhar. No alto da rocha que formava a parede direita da fenda, um vulto de mulher olhava para eles.

Ela sentiu um arrepio.

Outro vulto de mulher chegou. E mais outro. Chris foi para o meio da clareira; pôde ver mais três mulheres do outro lado.

Faltavam duas.

– Bem-vindos ao teatro! – a voz de Vahalla ecoou por entre as paredes de pedra. – Os espectadores já chegaram, e aguardam o espetáculo!

Era assim que as Valkírias começavam suas peças em praça pública.

“Mas eu não estou no espetáculo”, pensou Chris. Quem sabe, talvez devesse subir ao alto da rocha.

– Aqui, o preço da entrada é pago na saída – continuou a voz, repetindo o que diziam nas praças. – Pode ser um preço alto, ou podemos devolver o ingresso. Quer correr o risco?

– Quero – respondeu Paulo.

– Por que tudo isto? – gritou Chris de repente. – Por que tanta encenação, tanto ritual, tanta coisa para ver um anjo? Não basta canalizar, conversar com ele? Por que vocês não se comportam igual a todos, simplificam o contato com Deus e com o que há de sagrado neste mundo?

Não houve resposta. Paulo achou que Chris estava estragando tudo.

– O Ritual Que Derruba os Rituais – disse uma das Valkírias, do alto do rochedo.

– Silêncio! – gritou Vahalla. – A platéia só se manifesta no final! Aplaude ou vaia – mas paga a entrada!

Vahalla finalmente apareceu. Trazia o lenço amarrado na testa, como um índio. Costumava colocá-lo daquela maneira quando realizavam as orações do final do dia. Era a sua coroa. Trazia com ela uma moça descalça, de bermuda e camiseta. Quando chegaram mais perto, e a luz da lua iluminou seus rostos, Chris viu que era uma das Valkírias – a mais jovem do grupo. Sem a roupa de couro e o ar agressivo, não passava de uma menina.

Ela colocou a moça diante de Paulo. Começou a traçar um grande quadrado em volta deles. Em cada um dos cantos, parava e dizia umas palavras. Paulo e a menina repetiam as palavras em latim –

sendo que a garota errou o trecho algumas vezes, e tiveram que recomeçar.

“Não sabe nem o que está dizendo”, pensava Chris. Aquele quadrado, e aquelas palavras, não faziam parte do espetáculo que apresentavam nas praças.

Quando terminou de riscar a areia, pediu que os dois se aproximassem; mas eles continuavam dentro do quadrado, e ela se mantinha do lado de fora. Vahalla virou-se para Paulo, olhou-o no fundo dos olhos, e entregou-lhe seu chicote.

– Guerreiro, você está preso no seu destino, pelo poder destas linhas e destes nomes sagrados. Guerreiro vencedor de uma batalha, você está em seu castelo, e receberá a recompensa. Paulo criou, mentalmente, as paredes do castelo. A partir daquele momento, o desfiladeiro, as Valkírias, Chris, Vahalla, tudo o mais perdia a importância. Era um ator do Teatro Sagrado. O Ritual Que Derruba os Rituais.

– Prisioneira – disse Vahalla para a garota –, é humilhante tua derrota. Não soubeste defender com honra o teu exército. As Valkírias virão dos céus recolher teu corpo quando estiveres morta. Mas, até lá, receberás o merecido castigo dos perdedores.

Com um gesto abrupto, rasgou a blusa da garota.

– Começa o espetáculo! Eis, guerreiro, seu troféu!

Empurrou com violência a menina. Ela caiu de mau jeito, e feriu o queixo. Um pouco de sangue começou a sair.

Paulo ajoelhou-se ao seu lado. Suas mãos apertavam o chicote de Vahalla, que parecia ter força própria. Aquilo assustou-o, e por alguns momentos saiu das paredes imaginárias do castelo e voltou ao desfiladeiro.

– Ela está machucada de verdade – disse Paulo. – Precisa de cuidados.

– Guerreiro, este é o seu troféu! – repetiu Vahalla, se afastando. – A mulher que conhece o segredo que você procura. Arranque este segredo dela, ou desista para sempre.

“Non nobis, Domine, non nobis. Sed nomini Tuo da Gloriam”,* disse em voz baixa, repetindo o moto templário. Tinha que tomar uma decisão rápida. Lembrou-se da época em que não acreditava em nada, achava que não passava de uma encenação – e, mesmo assim, as coisas se transformaram no que eram: verdade.

Estava diante do Ritual Que Derruba os Rituais. Um momento sagrado na vida de um mago. E havia uma menina ferida aos seus pés.

“Sed nomini Tuo da Gloriam” disse mais uma vez. E, no momento seguinte, vestiu seu corpo astral com o personagem que Vahalla havia sugerido. O Ritual Que Derruba os Rituais começava a surgir. Nada mais tinha importância – apenas aquele caminho desconhecido, aquela mulher assustada aos seus pés, e um segredo que precisava ser arrancado. Andou em volta da sua vítima, lembrando-se da época em que a moral era outra – possuir as mulheres fazia parte das leis do combate. Era por isso que os homens arriscavam suas vidas nas guerras: por ouro e por mulheres.

– Eu venci – gritou para a menina. – E você perdeu.

Ajoelhou-se e pegou-a pelos cabelos. Os olhos dela fixaram-se nos seus.

– Venceremos – disse a menina. – Conhecemos as leis da vitória. Ele atirou-a de volta ao chão com violência.

– A lei da vitória é vencer.

– Vocês pensam que ganharam – continuou a prisioneira. – Ganharam uma batalha apenas. Nós venceremos.

Quem era aquela mulher que ousava falar com ele assim? Tinha um belo corpo – mas isto podia esperar. Precisava descobrir o segredo que buscava por tanto tempo.

– Me ensine a visão do anjo – disse, procurando fazer com que sua voz soasse calma. – E

você será libertada.

– Sou livre.

– Não, você não conhece as leis da vitória – disse ele. – Foi por isso que derrotamos vocês. A mulher pareceu desnortear-se um pouco. O homem falava em leis.

– Me fale sobre essas leis – respondeu ela. – E eu contarei o segredo do anjo. A prisioneira fazia uma troca. Podia torturá-la, destruí-la. Estava ali, caída aos seus pés – e, mesmo assim, propunha uma troca.

“É uma mulher estranha”, pensou. Talvez não confessasse com tortura. Era melhor fazer a troca. Falaria sobre as cinco leis da vitória, porque ela jamais sairia viva dali.

– A Lei Moral: é preciso lutar do lado certo, e por isso vencemos. A Lei do Tempo: uma guerra na chuva é diferente de uma guerra ao sol, uma batalha no inverno é diferente de uma batalha no verão. Podia enganá-la agora. Mas não conseguia inventar, em tão pouco tempo, leis falsas. A mulher notaria sua hesitação.

– A Lei do Espaço – continuou, falando a verdade. – Uma guerra no desfiladeiro é diferente de uma guerra no campo. A Lei da Escolha: o guerreiro sabe escolher quem lhe dá conselhos, e quem vai ficar ao seu lado durante o combate. Um chefe não pode cercar-se de covardes ou traidores. Ficou um momento pensando se devia ou não continuar. Mas já havia falado de quatro leis.

– A Lei da Estratégia – disse, afinal. – A maneira como se planeja a luta. Isto era tudo. Os olhos da menina brilhavam.

– Agora fale-me dos anjos.

Ela ficou olhando para ele sem dizer nada. Havia conseguido a fórmula, embora fosse tarde demais. Aqueles guerreiros valentes jamais perdiam uma batalha – e a lenda dizia que usavam cinco leis de vitória. Agora ela já sabia.

Mesmo que não adiantasse para nada, já sabia. Podia morrer em paz. Merecia o castigo que ia receber.

– Fale-me dos anjos – repetiu o guerreiro.

– Não, não falarei dos anjos.

Os olhos do guerreiro mudaram, e ela ficou contente. Ele não teria piedade. Este era seu medo – que o guerreiro se deixasse levar pela Lei Moral, e poupasse sua vida. Não merecia isso. Tinha culpa

– dezenas, centenas de culpas acumuladas durante toda sua curta vida. Decepcionara seus pais, decepcionara os homens que haviam se aproximado dela. Decepcionara os guerreiros que lutavam ao seu lado. Tinha se deixado prender – era fraca. Merecia o castigo.

– Ódio! – escutaram uma voz distante de mulher dizer. – O sentido do ritual é o ódio!

– Houve uma troca – repetiu o guerreiro, e desta vez sua voz era cortante como aço. –

Cumpri a minha parte.

– Você não me deixará sair viva – ela disse. – Mas, pelo menos, consegui o que queria. Mesmo que não sirva para nada.

“Ódio!” A distante voz de mulher já fazia efeito. Ele deixava que os seus piores sentimentos surgissem. O ódio foi crescendo no coração do guerreiro.

– Você irá sofrer – disse – os piores tormentos que alguém já sofreu.

– Sofrerei.

“Mereço isto”, pensava. Merecia a dor, a punição, a morte. Desde criança havia se recusado a lutar – acreditava que não era capaz, aceitava tudo dos outros, sofria em silêncio as injustiças de que era vítima. Queria que todos entendessem como era boa, um coração sensível capaz de ajudar todo mundo. Queria que gostassem dela a qualquer preço. Deus lhe dera uma bela vida, e ela não foi capaz de aproveitar. Em vez disso, mendigou o amor dos outros, viveu a vida que os outros queriam que ela vivesse, tudo para mostrar que tinha bondade em seu coração, e que era capaz de agradar a todos. Tinha sido injusta com Deus, jogou fora sua vida. Agora precisava de um carrasco que a mandasse rápido para o inferno.

O guerreiro sentiu o chicote ganhando vida própria em suas mãos. Por um minuto, seus olhos tornaram a se cruzar com os da prisioneira.

Esperou que ela mudasse de idéia, pedisse perdão. Mas, em vez disso, a prisioneira contraiu seu corpo esperando o golpe.

A Lei Moral. De repente tudo havia desaparecido, menos a raiva de ter sido traído por uma prisioneira. O ódio vinha em ondas, e ele estava descobrindo o quanto era capaz de ser cruel. Sempre fora enganado, sempre deixara que seu coração fraquejasse nos momentos em que precisava executar a justiça. Sempre perdoara – não porque fosse uma pessoa boa, mas porque era um covarde, tinha medo de não conseguir chegar até o fim.

Vahalla olhou para Chris. Chris olhou para Vahalla. A lua não permitia que vissem claramente os olhos uma da outra, e isto era bom.

As duas tinham medo de mostrar o que estavam sentindo.

– Pelo amor de Deus! – a mulher gritou mais uma vez, antes que o golpe descesse. O guerreiro parou o chicote no alto.

Mas o inimigo havia chegado.

– Chega – disse Vahalla. – É o suficiente.

Os olhos de Paulo estavam vidrados. Ele segurou Vahalla pelos ombros.

– Tenho este ódio! – gritava. – Não estou representando! Soltei os demônios que não conhecia!

Vahalla retirou o chicote de suas mãos, e foi ver se Rotha estava ferida. A menina chorava com o rosto entre os joelhos.

– Tudo era verdade – disse, abraçando-se a Vahalla. – Eu provoquei, eu o usei para que me castigasse. Queria que ele me destruísse, que acabasse comigo. Meus pais me culpam, meus irmãos me culpam, só tenho feito coisas erradas na vida.

– Vá colocar outra blusa – disse Vahalla.

Ela levantou-se, ajeitou a blusa rasgada.

– Quero continuar assim – disse.

Vahalla hesitou por um momento, mas não disse nada. Em vez disso, caminhou para a parede do canyon, e começou a subir. Quando chegou lá em cima, ao lado de três Valkírias, fez um sinal para que eles também subissem.

Chris, Rotha e Paulo escalaram a parede em silêncio; a lua iluminava o caminho, as pedras tinham muitas rachaduras, não havia qualquer dificuldade especial. Lá no alto, a vista era como se estivessem numa enorme planície, cheia de fendas.

Vahalla pediu que a menina e Paulo se aproximassem um do outro, e ficassem frente a frente, encostados.

– Machuquei? – perguntou a Rotha. Estava horrorizado consigo mesmo. Rotha fez “não” com a cabeça. Tinha vergonha – jamais conseguiria ser como uma daquelas mulheres ao seu lado. Era fraca.

Vahalla pegou os lenços de duas Valkírias, uniu-os – e passou pela cintura do homem e da mulher, amarrando-os juntos. De onde estava, Chris podia ver a lua formando um halo em volta dos dois. Era uma cena linda – se não fosse por tudo que tinha acontecido, se aquele homem e aquela mulher não estivessem tão distantes e tão próximos um do outro.

– Sou indigna de ver meu anjo – disse a Valkíria. – Sou fraca, meu coração se enche de vergonha.

– Sou indigno de ver meu anjo – disse Paulo, para que todos escutassem. – Tenho ódio em meu coração.

– Meu coração amou várias mulheres. E afastou o amor dos homens – disse Rotha.

– Alimentei ódios durante anos, e me vinguei quando nada daquilo tinha mais importância –

continuou Paulo. – Sempre fui perdoado por meus amigos, e jamais soube perdoá-los.

Vahalla virou-se em direção à lua.

– Estamos aqui, arcanjo. Seja feita a vontade do Senhor. Nossa herança é o ódio e o medo, a humilhação e a vergonha. Seja feita a vontade do Senhor.

“Por que não bastou fechar as portas do Paraíso? Precisava também fazer com que carregássemos o inferno na alma? Mas se esta é a vontade do Senhor, saiba que toda a humanidade a vem cumprindo através das gerações.”

(Vahalla caminha em torno dos dois)

PREFÁCIO E SAUDAÇÃO

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado. Falam Contigo os guerreiros da culpa.

Aqueles que sempre usaram as melhores armas que possuíam – contra si mesmos. Os que se julgam indignos das bênçãos. Os que acham que não foram feitos para a felicidade. Os que se sentem piores que os outros.

Falam Contigo os que chegaram às portas da libertação, olharam o Paraíso, e disseram para si mesmos: “Não devemos entrar; não merecemos.”

Falam Contigo aqueles que experimentaram um dia o julgamento de seu próximo: e acharam que a maioria tinha razão.

Falam Contigo aqueles que julgaram e condenaram a si mesmos.

(Uma das Valkírias entrega o chicote para Vahalla. Ela levanta o chicote para o céu.)

PRIMEIRO ELEMENTO: O AR

Aqui está o chicote. Se somos assim, castiga-nos.

Castiga-nos porque somos diferentes. Porque somos aqueles que ousaram sonhar, e acreditar em coisas em que ninguém acredita mais.

Castiga-nos porque desafiamos o que existe, o que todos aceitam, o que a maioria não quer mudar.

Castiga-nos porque falamos de Fé, e nos sentimos sem esperança. Falamos de Amor, e não recebemos nem o carinho nem o conforto que julgamos merecer. Falamos de liberdade e estamos presos às nossas culpas.

E no entanto, Senhor, mesmo que eu levantasse este chicote tão alto, a ponto de tocar as estrelas, eu não encontraria Tua mão.

Porque ela está sobre nossas cabeças. E ela nos afaga e nos diz: “Não sofram mais. Eu já

sofri o suficiente.”

“Também sonhei, acreditei num mundo novo. Falei de Amor, e ao mesmo tempo pedi ao Pai para afastar meu cálice. Desafiei o que existia, e que a maioria não desejava mudar. Julguei ter agido errado, quando fiz meu primeiro milagre: transformar água em vinho só para animar uma festa. Senti o olhar duro do meu semelhante, gritei ‘Pai, Pai, por que me abandonaste?’”

Eles já usaram em mim o chicote. Vocês não precisam sofrer mais.”

(Vahalla larga o chicote no chão, e espalha areia ao vento.)

SEGUNDO ELEMENTO: A TERRA

Pertencemos a este mundo, Senhor. E ele está povoado por nossos temores. Escreveremos nossas culpas na areia, e o vento do deserto se encarregará de dissipá-las. Mantém nossa mão firme, e faz com que não desistamos de lutar, mesmo nos sentindo indignos da batalha.

Usa nossa vida, alimenta nossos sonhos. Se somos feitos da Terra, a Terra também é feita de nós. Tudo é uma coisa só.

Nos instrui e nos usa. Somos teus para sempre.

A Lei foi reduzida a um mandamento: “Ama o próximo como a ti mesmo.”

Se amarmos, o mundo se transforma. A luz do Amor dissipa as trevas da culpa. Nos mantém firmes no Amor. Faz com que aceitemos o Amor de Deus por nós. Nos mostra nosso amor por nós mesmos.

Nos obriga a procurar o amor do próximo. Mesmo com medo da rejeição, dos olhares severos, da dureza do coração de alguns – faz com que jamais desistamos de procurar o Amor.

(Uma das Valkírias estende uma tocha para Vahalla. Ela pega seu isqueiro e acende o fogo, e levanta a tocha em direção ao céu.)

TERCEIRO ELEMENTO: O FOGO

Tu disseste, Senhor: “Vim atear fogo à Terra. E vigio para que arda.”

Que o fogo do amor arda em nossos corações.

Que o fogo da transformação arda em nossos gestos.

Que o fogo da purificação queime nossas culpas.

Que o fogo da justiça conduza nossos passos.

Que o fogo da sabedoria ilumine nosso caminho.

Que o fogo que espalhaste sobre a Terra não se apague jamais. Ele está de volta, e nós o carregamos conosco.

As gerações anteriores passavam seus pecados para as gerações seguintes. E assim foi, até

os nossos pais.

Agora, entretanto, passaremos adiante a tocha do Teu fogo.

Somos guerreiros e guerreiras da Luz, esta luz que carregamos com orgulho. O fogo que, ao ser aceso pela primeira vez, nos mostrou nossas faltas e nossa culpa. Nós ficamos surpresos, assustados, e nos sentimos incapazes.

Mas era o fogo do Amor. E ele queimou o que havia de mau em nós, quando o aceitamos. Ele nos mostrou que não somos nem piores nem melhores que aqueles que nos olhavam com severidade.

E por isso aceitamos o perdão. Não há mais culpa, podemos voltar ao Paraíso. E

conduziremos o fogo que arderá na Terra.

(Vahalla prende a tocha em uma rocha. Então, abre seu cantil e derrama um pouco de água na cabeça de Paulo e Rotha.)

QUARTO ELEMENTO: A ÁGUA

Tu disseste: “Quem beber desta água jamais terá sede.”

Pois bem, estamos bebendo desta água. Lavamos nossas culpas, por amor da Transformação que vai sacudir a Terra.

Escutaremos o que os anjos dizem, seremos mensageiros e mensageiras de suas palavras. Lutaremos com as melhores armas e os cavalos mais velozes.

A porta está aberta. Somos dignos de entrar.

“Senhor Jesus Cristo, que dissestes a vossos apóstolos, ‘minha paz vos deixo, minha paz vos dou’, não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima vossa assembléia.”

Chris conhecia aquele trecho. Era semelhante ao usado no ritual católico.

– Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós – concluiu Vahalla, desamarrando o lenço que unia os dois.

– Estão livres.

Vahalla então aproximou-se de Paulo.

“O bote”, pensou Chris. “O bote da serpente virá agora. O pagamento é ele. Ela está

apaixonada. Se a Valkíria disser o preço, ele vai aceitar, e terá prazer. Então não vou poder dizer nada –

porque sou uma mulher comum, não conheço as leis do mundo dos anjos. Nenhum deles vê que já morri muitas vezes neste deserto, e nasci outras tantas. Não percebem que converso com o anjo, e que minha alma cresceu. Estão acostumados comigo, sabem o que penso.”

“Eu o amo. Ela está apenas apaixonada.”

– AGORA SOU EU E VOCÊ, VALKÍRIA!! O Ritual Que Derruba os Rituais!

O grito de Chris ecoou pelo deserto sinistro, banhado pela luz da lua. Vahalla já esperava este grito. Já havia vencido a culpa, e sabia que o que estava querendo não era um crime. Apenas um capricho. Merecia cultivar seus caprichos – seu anjo havia lhe ensinado que estas coisas não afastavam ninguém de Deus e da tarefa sagrada que cada um tem que realizar na vida. Lembrou-se da primeira vez que vira Chris, numa lanchonete. Um arrepio tinha percorrido seu corpo, e estranhas intuições – que não conseguia compreender – haviam se apossado dela. “O mesmo deve ter se passado com ela”, pensou.

Paulo? Havia cumprido sua missão com ele. E, sem que ele soubesse, o preço que cobrou foi alto – enquanto caminhavam pelo deserto, aprendera vários rituais que J. usava apenas com seus discípulos. Ele havia contado tudo.

Também o desejava como homem. Não pelo que era – mas pelo que sabia. Um capricho, e seu anjo perdoava os caprichos.

Olhou de novo para Chris.

“Estou na décima volta. Também preciso mudar. Esta mulher é um instrumento dos anjos.”

– O Ritual Que Derruba os Rituais – respondeu a Valkíria. – Que Deus envie os personagens!

Aceitava o desafio. Seu momento de crescer havia chegado.

As duas começaram a andar em torno de um círculo imaginário, como faziam os velhos cowboys do oeste antes do duelo. Não se ouvia um ruído – era como se o tempo tivesse parado. Quase todo mundo ali entendia o que estava acontecendo, porque todas eram mulheres, acostumadas a lutar pelo amor. E fariam isso até às derradeiras conseqüências, usando truques, artifícios –

fariam isso por causa daquela espécie estranha chamada Homem, que justificava suas vidas e seus sonhos. O cenário mudava, o personagem de Chris começava a aparecer. As roupas de couro iam surgindo, o lenço amarrado na cabeça, a medalha do arcanjo Miguel entre os seios. Ela se vestia com o personagem da força, da mulher que admirava e que gostaria de ser. Ela se vestia de Vahalla. Chris fez um gesto com a cabeça, e as duas pararam. Vahalla havia reconhecido o personagem da outra – estava diante de um espelho imaginário.

Podia se olhar. Sabia de cor a arte da guerra, e esquecera as lições do amor. Conhecia as cinco leis da vitória, dormia com todos os homens que tivesse vontade, mas havia esquecido a arte do amor. Olhou para si mesma refletida na outra; tinha poder suficiente para derrotá-la. Mas seu personagem estava aparecendo, tomando forma, e era um personagem que, embora também repleto de poder, não estava acostumado com aquele tipo de luta.

O personagem surgia – estava vendo com tanta claridade! Transformava-se em uma mulher apaixonada, que seguia junto com o seu homem, carregando sua espada quando necessário e o protegendo de todos os perigos. Era uma mulher forte, embora parecesse fraca. Era alguém que trilhava o caminho do amor como a única estrada possível para chegar até a Sabedoria, um caminho onde os mistérios se revelavam através da Entrega e do Perdão.

Vahalla se vestia de Chris.

E Chris se olhava, refletida na outra.

Começou a andar lentamente em direção à beira do despenhadeiro. Vahalla imitou-a; as duas se aproximaram do abismo. Uma queda dali podia ser mortal, ou causar sérios danos; mas elas eram mulheres – as mulheres não conhecem limites. Chris parou na beirada, dando tempo de a outra se aproximar e fazer o mesmo.

O chão estava dez metros abaixo, e a lua, milhares de quilômetros acima. Entre a lua e o chão, duas mulheres se enfrentavam.

– Ele é meu homem. Não o toque só por capricho. Você não o ama – disse Chris. Vahalla ficou em silêncio.

– Vou dar mais um passo – continuou. – Sobreviverei. Sou uma mulher de coragem.

– Irei com você – respondeu Vahalla.

– Não faça isto. Você agora conhece o amor. É um mundo imenso, terá que usar toda a sua vida para entendê-lo.

– Não farei, se você não fizer. Você agora conhece sua força. Seu horizonte passou a ter montanhas, vales, desertos. Sua alma é grande, e crescerá cada vez mais. Você descobriu sua coragem, e isto basta.

– Basta, se o que te ensinei servir como o preço que ia cobrar. Houve um longo silêncio. De repente, a Valkíria caminhou até Chris. E beijou-a.

– Aceito o preço – disse. – Obrigada por ter me ensinado.

Chris retirou o relógio de seu pulso. Era tudo que tinha para oferecer naquele momento.

– Obrigada por ter me ensinado – disse. – Conheço agora minha força. Jamais conheceria se não tivesse vivido uma estranha, bonita e poderosa mulher.

Com todo carinho, colocou o relógio no pulso de Vahalla.


O sol brilhava no Vale da Morte. As Valkírias amarraram os lenços, tapando o rosto –

deixando apenas olhos de fora. Os cavalos estavam ariscos e excitados. Vahalla se aproximou, puxando seu animal pelas rédeas.

– Não podem ir conosco. Precisa ver o seu anjo.

– Falta algo – disse Paulo. – A aposta.

– As apostas e os pactos são feitos com os anjos. Ou com os demônios.

– Não sei como vê-lo – respondeu ele.

– Você já rompeu o acordo. Já aceitou o perdão. Seu anjo aparecerá para a aposta. Os cavalos não paravam de se mover. Ela colocou o lenço no rosto, montou seu animal e virou-se para Chris.

– Estarei sempre em você – disse Chris. – E você sempre estará em mim. Vahalla tirou a luva, e atirou na direção dela. Depois, levantou o chicote. Os cavalos partiram, deixando para trás uma gigantesca nuvem de poeira.


Um homem e uma mulher andavam pelo deserto. Paravam em cidades com milhares de habitantes, e em vilarejos com apenas um motel, um restaurante e um posto de gasolina. Ninguém perguntava nada – e, à tarde, eles passeavam pelas rochas e montanhas, sentavam-se voltados para o lugar onde a primeira estrela ia nascer, e conversavam com seus anjos.

Ouviam vozes, sentiam impulso de dar conselhos um para o outro, lembravam coisas que pareciam definitivamente esquecidas em algum lugar do passado.

Ela terminava de canalizar a proteção e a sabedoria de seu anjo, e olhava o pôr-do-sol no deserto.

Ele continuava sentado, esperando. Aguardava que seu anjo descesse e se mostrasse em toda a sua glória. Tinha feito tudo certo, agora precisava esperar.

Esperava uma, duas, três horas. Só levantava quando a noite descia por completo; então, pegava sua mulher e retornavam à cidade.

Jantavam, voltavam para o hotel. Ela fingia que dormia, ele ficava olhando o vazio. Ela se levantava no meio da noite, e ia até onde ele estava, pedia que se deitasse ao seu lado. Fingia que havia dormido, que estava com medo de ficar sozinha na cama por causa de algum sonho mau. Ele estendia-se ao seu lado e continuava quieto.

– Você já está conversando com seu anjo – costumava dizer nestas horas. – Tenho escutado você falar enquanto está canalizando. São coisas que você nunca disse na vida, são conselhos de sabedoria –

seu anjo está presente.

Ele acariciava sua cabeça, e continuava quieto. Ela se perguntava se aquela tristeza era realmente por causa do anjo, ou por uma mulher que havia partido, e que nunca tornariam a ver. Esta pergunta ficava trancada em sua garganta, e voltava para o silêncio de seu coração.

Paulo pensava na mulher que havia partido, sim. Mas não era o que o deixava triste. O

tempo estava passando, em breve estaria de volta a seu país. Ia reencontrar-se com o homem que lhe ensinara que os anjos existem.

“Este homem”, imaginava Paulo, “me dirá que o que fiz foi o bastante, que rompi um acordo que precisava ser rompido, que aceitei um perdão que deveria ter aceito há muito tempo. Sim, este homem continuará a me ensinar o caminho da sabedoria e do amor, e eu estarei cada vez mais próximo de meu anjo, conversando com ele todos os dias, agradecendo sua proteção e pedindo seu auxílio. Este homem me dirá que isso é o suficiente.”

Sim, porque J. o ensinara, desde o começo, que existiam fronteiras. Que era necessário ir o mais longe possível – mas havia certos momentos em que era preciso aceitar o mistério, e entender que cada um tinha seu dom. Alguns sabiam curar, outros tinham a palavra da sabedoria, outros conversavam com espíritos, e daí por diante. Era através da soma destes dons que Deus podia mostrar a Sua glória, usando o homem como instrumento. As portas do Paraíso estariam abertas para aqueles que resolvessem entrar. O

mundo estava nas mãos daqueles que tivessem coragem de sonhar – e viver seus sonhos. Cada qual com seu talento. Cada qual com seu Dom.

Mas nada daquilo servia de consolo para Paulo. Ele sabia que Took vira o anjo. Que Vahalla vira o anjo. Que muitas outras pessoas haviam deixado livros, histórias, relatos, contando como tinham visto anjos.

E ele não conseguia ver o seu.


Faltavam seis dias para deixarem o deserto, e começaram o caminho de volta. Pararam na praça de uma pequena cidade, onde a maior parte da população era constituída de velhos. Aquele lugar conhecera seus momentos de glória – quando a mina de ferro que funcionava ali trazia empregos, prosperidade, e esperança aos seus habitantes. Mas, por alguma razão – que eles desconheciam – a companhia havia vendido as casas aos antigos funcionários, e fechara a mina.

– Agora se foram nossos filhos – dizia uma mulher, que havia sentado na mesa deles. – Não resta ninguém, a não ser os mais velhos. Um dia esta cidade vai desaparecer, e todo o nosso trabalho, tudo o que construímos, não significará mais nada.

Há muito tempo não aparecia alguém na cidade. A velha estava contente por ter com quem conversar.

– O homem vem, constrói, tem a esperança de que aquela obra que está fazendo seja importante – continuou ela. – Mas, de uma hora para outra, descobre que estava exigindo mais do que a terra podia dar. Então deixa tudo e segue adiante, sem dar-se conta de que carregou outros para seu sonho – outros que, por serem mais fracos, acabam ficando para trás. Como as cidades fantasmas do deserto.

“Talvez isto esteja acontecendo comigo”, pensava Paulo. “Eu mesmo me trouxe, eu mesmo me abandonei.”

Lembrou-se que, certa vez, um domador lhe contou como conseguiam manter os elefantes presos. Os animais, ainda pequenos, ficavam amarrados por correntes a um toco de pau. Tentavam sair, e não conseguiam, tentavam a infância inteira, mas o pedaço de pau era mais forte que eles. Então acostumaram-se ao cativeiro. E, quando grandes e fortes, bastava o domador colocar a corrente em uma das patas, e amarrar em qualquer lugar – até mesmo num graveto – que não ousavam tentar sair. Estavam presos ao passado.

As longas horas do dia pareciam não acabar nunca. O céu pegava fogo, a terra fervia, e tinham que esperar, esperar, esperar – até que a cor do deserto se transformasse de novo nos tons suaves do tijolo e do rosa. Então era o momento de sair da cidade, tentar mais uma vez a canalização, e esperar mais uma vez o anjo.

– Alguém já disse que a terra produz o suficiente para satisfazer a necessidade, e não a cobiça – continuou a velha.

– A senhora acredita em anjos?

A velha espantou-se com a pergunta. Mas este era o único assunto que interessava a Paulo.

– Quando a gente é velho, e está perto da morte, passa a acreditar em qualquer coisa –

respondeu ela. – Mas não sei se acredito em anjos.

– Eles existem.

– Você viu algum? – havia uma mistura de incredulidade e esperança nos seus olhos.

– Converso com meu anjo da guarda.

– Ele tem asas?

Era a pergunta que todo mundo fazia. Esquecera de perguntar isto para Vahalla.

– Não sei, ainda não o vi.

Por alguns minutos, a velha pensou em levantar-se da mesa. A solidão do deserto enlouquecia as pessoas. Podia ser também que aquele homem estivesse brincando com ela, tentando passar o tempo.

Sentiu vontade de perguntar de onde aquele casal vinha, e o que fazia num lugar como Ajo. Não conseguia identificar o estranho sotaque.

“Talvez venham do México”, pensou. Mas não pareciam mexicanos. Perguntaria quando a oportunidade surgisse.

– Não sei se vocês estão brincando comigo – disse ela – mas, como disse antes, estou próxima de minha morte. Posso durar mais cinco, dez, vinte anos – entretanto, com esta idade a gente termina entendendo que vai morrer.

– Também sei que vou morrer – disse Chris.

– Não, não como um velho sabe. Para você, a morte é uma idéia remota, que pode acontecer um dia. Para nós, é algo que pode vir amanhã. Por isso, muitos velhos passam o tempo que lhes sobra olhando apenas numa direção: o passado. Não é que gostem muito das lembranças; mas sabem que ali não vão encontrar o que temem.

“Poucos velhos olham para o futuro, e eu sou um deles. Quando fazemos isso, descobrimos o que o futuro realmente nos reserva: a morte.”

Paulo não disse nada. Não podia falar da importância da consciência da morte para os que praticam a magia. A velha ia levantar-se da mesa se soubesse que ele era um mago.

– Por isso, gostaria de acreditar que vocês estão falando sério. Que anjos existem –

continuou ela.

– A morte é um anjo – disse Paulo. – Eu já o vi duas vezes nesta encarnação, mas muito rapidamente, não deu para ver seu rosto. Entretanto, conheço pessoas que já o viram, e outras que foram carregadas por ele, e me contaram depois. Essas pessoas dizem que seu rosto é bonito, e seu toque é suave. Os olhos da velha fitaram Paulo. Ela queria acreditar.

– Tem asas?

– É formado de luz – respondeu ele. – Assumirá a forma que for mais fácil para você

receber, quando chegar o momento.

A velha ficou algum tempo quieta. Depois levantou-se.

– Perdi meu medo. Rezei agora em silêncio, e pedi que o anjo da morte tivesse asas quando viesse me visitar. Meu coração me diz que serei atendida.

Deu um beijo em cada um. Não tinha importância saber de onde vinham.

– Foi meu anjo que enviou vocês. Muito obrigada.

Paulo lembrou-se de Took. Eles também haviam sido instrumentos de um anjo.

Quando o sol começou a descer, foram para uma montanha perto de Ajo. Sentaram-se, voltados para o leste, esperando a primeira estrela nascer. Iniciariam a canalização quando isso acontecesse. Chamavam de “contemplação do anjo”. Era a primeira cerimônia criada depois que o Ritual Que Destrói os Rituais varrera as anteriores.

– Nunca perguntei – disse Chris, enquanto esperavam – por que você quer ver seu anjo.

– Mas já me explicou várias vezes que não tinha a menor importância. Sua voz soava irônica. Ela fingiu não ligar.

– OK. Então isto tem importância para você. Me explique o porquê.

– Já contei tudo no dia do encontro com Vahalla – respondeu.

– Você não precisa de um milagre – insistiu ela. – Você quer satisfazer um capricho.

– Não existem caprichos no mundo espiritual. Você aceita, ou não.

– E então? Você não aceitou este seu mundo? Ou tudo que falou é mentira?

“Ela deve estar se lembrando da história na mina”, pensou Paulo. Era difícil responder –

mas ia tentar.

– Eu já vi milagres – começou. – Muitos milagres. Já vimos inclusive alguns milagres juntos. Vimos J. abrir buracos em nuvens, encher de luz a escuridão, mudar coisas de lugar.

“Você já me viu adivinhar certos pensamentos, fazer ventar, executar rituais de poder. Vi a magia funcionar repetidas vezes em minha vida – para o mal, e para o bem. Não tenho dúvidas a este respeito.”

Fez uma longa pausa.

– Mas também nós nos acostumamos aos milagres. E sempre precisamos mais. A fé é uma conquista difícil, que exige combates diários para ser mantida. A estrela ia surgir, precisava acabar logo a explicação. Mas Chris o interrompeu.

– Assim tem sido nosso casamento – disse. – E eu estou exausta.

– Não entendo. Estou falando do mundo espiritual.

– Só consigo entender o que você está falando, porque conheço o seu amor – disse. –

Estamos juntos há muito tempo e, depois que se passaram os dois primeiros anos de alegria e paixão, cada dia passou a ser para mim um desafio. Tem sido muito difícil manter a chama do amor acesa. Ficou um pouco arrependida de ter começado o assunto – mas agora iria até o final.

– Certa vez você me disse que o mundo se dividia entre os agricultores – que amam a terra e a colheita – e os caçadores, que amam florestas escuras e conquistas. Me falou que eu era uma agricultora, como J. Que trilhava o caminho da sabedoria através da contemplação.

“Mas que estava casada com um caçador.”

Sua cabeça funcionava rápido, não conseguia parar de falar. Tinha medo que a estrela surgisse.

– Como foi, e como é difícil ser casada com você! Você é como Vahalla, como as Valkírias, que nunca estão sossegadas, sabem viver apenas a emoção forte da caçada, dos riscos, das noites escuras em busca da presa. No início, achei que não conseguiria conviver com isso; eu, que buscava uma vida igual a tantas outras mulheres, casada com um mago! Um mago cujo mundo é regido por leis que não conheço – uma pessoa que só acredita que está vivendo sua vida quando se encontra diante de um desafio. Encarou-o nos olhos.

– J. não é um mago muito mais poderoso que você?

– Muito mais sábio – respondeu Paulo. – Muito mais vivido e experiente. Segue o caminho do agricultor, e neste caminho encontra seu poder. Eu só conseguirei encontrar o meu poder no caminho do caçador.

– Então por que o escolheu como discípulo?

Paulo riu.

– Pela mesma razão que você me escolheu como marido. Porque somos diferentes.

– Vahalla, você, e todos os seus amigos, só pensam na Conspiração. Nada mais tem importância – estão fixados nesse negócio de mudanças, de mundos novos que vão surgir. Acredito neste novo mundo mas – poxa! – tem que ser assim?

– Assim como?

Ela pensou um minuto. Não sabia exatamente por que dissera aquilo.

– Com conspirações.

– Você é que criou o termo.

– Mas sei que é verdade. E você confirmou.

– Falei que as portas do Paraíso estavam abertas, por um tempo, para quem quisesse entrar. Mas também disse que cada um tinha o seu caminho – e só o anjo pode dizer qual o rumo certo.

“Por que estou agindo assim? O que está acontecendo comigo?”, pensou ela. Lembrou-se das gravuras que via na infância, onde os anjos conduziam crianças pela beira de um abismo. Estava surpresa com as próprias palavras. Já brigara muitas vezes com ele, mas jamais havia falado de magia como falava agora.

Entretanto – naqueles quase quarenta dias de deserto –, sua alma crescera, descobrira uma segunda mente, tinha enfrentado uma mulher de poder. Morrera muitas vezes, e renascera mais forte.

“Tive prazer na caçada”, pensou.

Sim. Era isso que a estava deixando louca. Porque, desde o dia em que convidou Vahalla para o duelo, ficou com a sensação de que havia desperdiçado sua vida.

“Não, não posso aceitar isso. Conheço J., ele é um agricultor, e é uma pessoa iluminada. Conversei com meu anjo antes de Paulo. Sei falar com ele tão bem quanto Vahalla – embora a linguagem dele ainda seja um pouco confusa.”

Mas estava apreensiva. Talvez tivesse errado quando escolheu sua maneira de viver.

“Preciso continuar falando”, pensou. “Preciso convencer a mim mesma de que não errei.”

– Você precisa de mais um milagre – disse –, e irá precisar sempre. Jamais estará satisfeito, e nunca vai entender que o reino dos céus não pode ser tomado de assalto. (“Deus, faz com que o anjo dele apareça, porque isto é muito importante para ele! Faz com que eu esteja errada, Senhor!”)

– Você não me deixou falar – disse ele.

Mas, neste momento, a primeira estrela surgiu no horizonte.

Era hora da canalização.

Sentaram-se e, depois de um pequeno período de relaxamento, começaram a concentrar-se na segunda mente. Chris não conseguia parar de pensar na frase final de Paulo – realmente não permitira que ele respondesse.

Agora era tarde. Precisava deixar que a segunda mente contasse seus problemas aborrecidos, repetisse diversas vezes a mesma coisa, mostrasse as preocupações de sempre. A segunda mente, naquela noite, queria ferir seu coração. Dizia que ela escolhera um caminho errado, e que só havia descoberto seu destino ao experimentar o personagem Vahalla.

A segunda mente dizia que era tarde demais para mudar, que sua vida havia fracassado, que ela passaria o resto da vida andando atrás do seu homem – sem experimentar o gosto das florestas escuras e da busca da presa.

A segunda mente lhe dizia que tinha encontrado o homem errado – que melhor seria casar com um agricultor. A segunda mente lhe dizia que Paulo tinha outras mulheres, e que eram mulheres caçadoras, que ele encontrava em noites de lua, e em secretos rituais mágicos. A segunda mente lhe dizia que devia deixá-lo, para que ele pudesse ser feliz com uma mulher igual a ele. Ela argumentou algumas vezes – disse que não tinha importância saber que existiam outras mulheres, não pretendia largá-lo nunca. Porque o amor não tem lógica, nem razão. Mas a segunda mente voltava à carga – e ela resolveu parar de discutir, escutar em silêncio, até que a conversa foi morrendo, e silenciou.

Então, uma espécie de névoa começou a tomar conta de seu pensamento. A canalização começara. Uma indescritível sensação de paz apossou-se dela, como se as asas de seu anjo cobrissem o deserto inteiro, para que nada de mau lhe acontecesse. Quando canalizava, sentia um imenso amor por si mesma, e pelo Universo.

Manteve os olhos abertos, para não perder a consciência, mas as catedrais começaram a surgir. Apareciam do meio das brumas, imensas igrejas que nunca havia visitado, e que, no entanto, existiam em algum lugar da Terra. Nos primeiros dias eram apenas coisas confusas, cantos indígenas misturados com palavras sem sentido; mas agora, seu anjo lhe mostrava catedrais. Aquilo tinha um sentido, embora ainda não pudesse entender qual.

Mas estavam apenas começando uma conversa. A cada dia que passava, era capaz de entender melhor o seu anjo. Em breve, teriam uma comunicação tão clara como tinha com qualquer pessoa que falava sua língua. Era tudo uma questão de tempo.

O despertador de pulso de Paulo tocou. Vinte minutos se passaram. A canalização terminava.

Ela olhou-o. Sabia o que ia acontecer agora: ele continuaria em silêncio, e dentro em pouco ficaria triste. O anjo não havia aparecido. Então voltariam para o pequeno motel em Ajo, e ele sairia para um passeio, enquanto ela tentava dormir.

Esperou que ele se levantasse, e levantou-se também. Só que, em vez de tristeza, havia um brilho estranho em seus olhos.

– Verei meu anjo – disse ele. – Sei que verei. Fiz a aposta.

“A aposta você fará com seu anjo”, dissera Vahalla. Nunca, em momento algum, havia dito:

“A aposta, você fará com seu anjo, quando ele aparecer.” E, no entanto, ele havia entendido isto. Esperara, durante uma semana, que o anjo surgisse à sua frente. Estava pronto para aceitar qualquer aposta, porque o anjo era a Luz, e a Luz era o que justificava a existência do homem. Confiava na Luz, da mesma maneira que, quatorze anos antes, duvidara das trevas. Ao contrário da traiçoeira experiência das trevas, a Luz estabelecia suas regras antes – para que, quem as aceitasse, soubesse que também se comprometia com amor e misericórdia.

Havia cumprido duas condições, e quase falhado na terceira – a mais simples! Entretanto, a proteção do anjo não havia faltado e, durante a canalização… ah, como era bom ter aprendido a conversar com anjos! Agora sabia que podia vê-lo, porque a terceira condição estava satisfeita.

– Rompi um acordo. Aceitei um perdão. E, hoje, fiz uma aposta. Tenho fé e acredito – disse.

– Acredito que Vahalla sabe o caminho da visão do anjo.

Os olhos de Paulo brilhavam. Não haveria caminhadas noturnas, nem insônia naquela noite. Ele tinha absoluta certeza de que ia ver seu anjo. Meia hora atrás, pedia um milagre – e agora isso não tinha mais importância.

Então, aquela noite, seria a vez de Chris ficar sem dormir, e caminhar pelas ruas desertas de Ajo, implorando a Deus que fizesse um milagre, porque o homem que ela amava precisava ver um anjo. Seu coração estava apertado, mais apertado que nunca. Talvez tivesse preferido um Paulo em dúvida, um Paulo que precisava de um milagre, um Paulo que parecia ter perdido a fé. Se o anjo aparecesse, muito bem; caso contrário, sempre podia culpar Vahalla por ter ensinado errado. Assim, não passaria por uma das mais amargas lições que Deus ensinou ao homem, quando fechou as portas do Paraíso: a decepção. Mas não; tinha agora diante de si um homem que parecia apostar sua vida na certeza de que se podia ver anjos. E sua única garantia era a palavra de uma mulher que andava a cavalo pelo deserto, falando em novos mundos que iam chegar.

Talvez Vahalla nunca tivesse visto anjos. Ou talvez o que servia para ela, não servia para os outros – Paulo dissera isto na praça! Será que ele não escutava suas próprias palavras?

O coração de Chris foi ficando cada vez menor enquanto notava os olhos brilhantes do marido.

Neste momento, o rosto inteiro dele começou a brilhar.

– Luz! – gritou Paulo. – Luz!

Ela virou-se. No horizonte, perto de onde a estrela havia aparecido, três luzes brilhavam no céu.

– Luz! – ele repetiu mais uma vez. – O anjo!

Chris sentiu uma imensa vontade de ajoelhar-se, e agradecer, porque sua prece havia sido ouvida, e Deus enviara seu exército de anjos.

Os olhos de Paulo começaram a encher-se de água. O milagre havia acontecido, fizera a aposta certa.

Ouviu-se um estrondo do lado esquerdo, e outro sobre suas cabeças. Agora eram cinco, seis luzes brilhantes no céu; o deserto estava todo iluminado.

Por um momento perdeu a voz: estava também vendo seu anjo! Os estrondos iam ficando cada vez mais fortes, passando pelo lado direito, lado esquerdo, em cima da cabeça dos dois, trovões enlouquecidos que não vinham de cima, mas de trás, dos lados – e se dirigiam para o lugar onde estavam as luzes.

As Valkírias! As verdadeiras Valkírias, filhas de Votan, cavalgando pelos céus e carregando os guerreiros! Colocou a mão nos ouvidos, com medo.

Percebeu que Paulo estava fazendo o mesmo – e seus olhos já não tinham o mesmo brilho de antes.

Imensas bolas de fogo nasciam no horizonte do deserto, enquanto eles sentiam o chão tremendo a seus pés. Trovões nos Céus e na Terra.

– Vamos embora – disse ela.

– Não há perigo – ele respondeu. – Estão longe, muito longe. Aviões de guerra. Mas os caças supersônicos quebravam a barreira do som perto deles, num ruído aterrador. Os dois se abraçaram, e ficaram, durante muito tempo, assistindo àquele espetáculo macabro, com fascínio e terror. Não conseguiam ver os trovões, mas agora sabiam o que eram – porque havia bolas de fogo no horizonte, e aquelas luzes verdes – agora eram mais de dez – caindo lentamente do céu, iluminando o deserto inteiro, para que ninguém, mas ninguém mesmo, pudesse se esconder.

– É apenas um treinamento de guerra – ele tentava tranqüilizá-la. – Um exercício da Força Aérea. Existem muitos campos desses nesta região.

Mas um dia aquilo seria verdade. E ela imaginou que, nesse dia -–também por acaso, como aqui –, o destino pudesse colocá-la numa cidade iluminada por aquelas luzes, e as bolas de fogo não estariam no horizonte, mas em cima, embaixo, do lado dela.

– Tinha visto no mapa – Paulo repetiu, tentando falar o mais alto possível. – Mas preferi acreditar que eram anjos.

“São instrumentos de anjos”, ela pensou. “Anjos da morte.”

O brilho amarelo das bombas caindo no horizonte misturava-se às fortíssimas luzes verdes que desciam lentamente, de pára-quedas – para que tudo embaixo fosse visível, e para que os aviões não errassem ao despejar suas cargas mortais.

O exercício durou quase meia hora. E, assim como haviam chegado, os aviões desapareceram, e o deserto voltou ao silêncio. As derradeiras luzes verdes chegaram ao chão e se apagaram. Agora podiam ver de novo as estrelas no céu, e o chão não tremia mais.

Paulo respirou fundo. Fechou os olhos e pensou com toda a força: “Ganhei a aposta. Não posso duvidar de que ganhei a aposta.” A segunda mente ia e voltava, dizendo que não, que era tudo imaginação dele, que seu anjo não revelara o rosto. Mas ele cravou a unha do indicador no polegar, e apertou até que a dor se tornasse insuportável; a dor sempre evita que as pessoas fiquem pensando besteiras.

– Verei meu anjo – ele tornou a dizer, enquanto desciam da montanha. O coração dela tornou a apertar. Mas não devia pensar nisso – ele poderia perceber. A única maneira rápida de mudar de assunto era escutar o que a segunda mente estava dizendo, e perguntar a Paulo se ela estava com a razão.

– Quero fazer uma pergunta – disse.

– Não me pergunte sobre o milagre. Ele acontecerá, ou não acontecerá. Não vamos desperdiçar energia em palavras.

– Não, não é sobre isso.

Hesitou muito antes de falar. Paulo era seu marido. Ele a conhecia melhor do que ninguém. Tinha medo de sua resposta, porque suas palavras – como as de qualquer marido – possuíam um peso diferente das palavras dos outros.

Mas resolveu perguntar de qualquer jeito; não agüentaria ficar com aquilo na sua cabeça.

– Você acha que eu errei na minha escolha? – disse. – Que desperdicei minha vida semeando, alegre ao ver o campo crescendo ao meu redor, em vez de experimentar a grande emoção da caçada?

Ele caminhava olhando o céu. Ainda pensava na aposta, e nos aviões.

– Muitas vezes – disse finalmente –, olho para as pessoas como J., que estão em paz, e através desta paz encontram a comunhão com Deus. Olho para você, que conseguiu conversar com seu anjo antes de mim – embora eu tenha vindo aqui para isso. Olho você dormindo com facilidade, enquanto eu vou para a janela e me pergunto por que não acontece o milagre que estou esperando. E me pergunto: será que escolhi o caminho errado?

Virou-se para ela.

– O que você acha? Escolhi o caminho errado?

Chris segurou as mãos dele.

– Não. Você seria infeliz.

– Você também, se tivesse escolhido meu caminho.

“Que bom saber disso”, pensou.


Antes que o despertador tocasse, ele levantou sem fazer barulho. Olhou para fora: ainda estava escuro.

Chris dormia ao seu lado, um sono agitado. Por uma fração de segundo, pensou em despertá-la também, dizer aonde ia, pedir que rezasse por ele – mas logo desistiu. Podia contar tudo quando voltasse. Além do mais, não estava indo para nenhum lugar perigoso. Acendeu a luz do banheiro, e encheu o cantil na pia. Depois, bebeu o máximo de água que podia – não sabia quanto tempo ficaria lá fora.

Vestiu-se, pegou o mapa, relembrou o seu itinerário. Então, preparou-se para sair. Mas não conseguia encontrar a chave do carro. Procurou nos bolsos, na mochila, na mesade-cabeceira. Pensou em acender o abajur – mas não, seria muito arriscado, a luz que vinha do banheiro já

iluminava o suficiente. Não podia perder mais tempo – cada minuto gasto ali era um minuto a menos na espera do seu anjo. Dentro de quatro horas, o sol do deserto se tornaria insuportável.

“Chris escondeu a chave” pensou. Ela agora era uma outra mulher – conversava com seu anjo, sua intuição aumentara consideravelmente. Talvez tivesse descoberto seus planos – e estava com medo.

“Por que teria medo?” Na noite em que a vira na beira do precipício com Vahalla, os dois fizeram um juramento sagrado; prometeram nunca mais arriscar de novo a vida naquele deserto. Várias vezes o anjo da morte havia passado perto, e não era aconselhável ficar testando a paciência do anjo da guarda. Chris o conhecia o bastante para saber que ele jamais deixaria de cumprir o que prometera. Por isso estava saindo pouco antes de o sol raiar – para evitar os perigos da noite, e os perigos do dia. E no entanto, ela estava com medo, e havia escondido a chave.

Dirigiu-se para a cama, decidido a acordá-la. E parou.

Sim, havia um motivo. Não era preocupação com sua segurança, com riscos que ele podia correr. Era medo, mas um medo diferente – medo de que seu marido fosse derrotado. Ela sabia que Paulo tentaria alguma coisa. Faltavam apenas dois dias para deixarem o deserto.

“Foi bom tomar esta providência, Chris”, pensava, rindo consigo mesmo. “Uma derrota destas demoraria uns dois anos para ser esquecida, e enquanto isso você teria que me agüentar, passar noites em claro comigo, suportar meu mau humor, sofrer com minha frustração. Seria muito pior do que estes dias que passei sem descobrir como fazer a aposta.”

Revirou as coisas dela: a chave estava no cinto onde guardava o passaporte e o dinheiro. Então lembrou-se da promessa sobre a segurança – aquilo tudo podia ter sido um aviso. Aprendera que ninguém saía para o deserto sem deixar, pelo menos, uma indicação do local aonde vai. Mesmo sabendo que logo estaria de volta, mesmo sabendo que o lugar não era, afinal, tão longe – e se algo acontecesse com o carro, podia chegar a pé até a estrada – resolveu não arriscar. Afinal de contas, tinha feito um juramento. Colocou o mapa em cima da pia do banheiro. E usou o spray do sabão de barba para fazer um círculo em torno de um local: Glorieta Canyon.

Aproveitou e escreveu NÃO VOU ERRAR no espelho, usando o mesmo spray. Depois, calçou o tênis e saiu.

Quando ia ligar o carro, descobriu que havia deixado a chave na ignição.

“Ela deve ter mandado fazer uma cópia”, pensou. “O que estava imaginando? Que ia deixála no meio do deserto?”

Foi então que lembrou-se do estranho comportamento de Took, quando esquecera a lanterna no carro. Foi graças à chave que deixou marcado o local aonde ia. Seu anjo estava fazendo com que tomasse todos os cuidados possíveis.

As ruas de Borrego Springs estavam desertas. “Não muito diferentes de durante o dia”, pensou consigo mesmo. Recordou a primeira noite ali, quando haviam deitado no chão do deserto para imaginar seus anjos. Naquela época, tudo que queria era conversar com um deles. Dobrou à esquerda, saiu da cidade, e começou a andar em direção ao Glorieta Canyon. As montanhas estavam do seu lado direito – as montanhas que os dois desceram de carro, depois de descobrir que o deserto começava de repente, sem aviso. “Naquela época”, pensou consigo mesmo, e se deu conta de que não havia passado tanto tempo assim. Apenas 38 dias.

Mas, também como Chris, sua alma havia morrido muitas vezes naquele deserto. Andou atrás de um segredo que já conhecia, viu o sol se transformar nos olhos da morte, encontrou mulheres que pareciam anjos e demônios ao mesmo tempo. Voltou para uma escuridão que parecia esquecida. Descobriu que, embora falasse tanto de Jesus, jamais aceitara completamente seu perdão. Encontrou também sua mulher – justamente quando acreditava que a tinha perdido para sempre. Porque (e Chris jamais podia saber disso) havia se apaixonado por Vahalla. E foi então que entendeu a diferença entre paixão e amor. Assim como conversar com anjos, era uma coisa muito simples.

Vahalla era parte da fantasia de seu mundo, a mulher guerreira, caçadora, que conversava com anjos, e estava sempre disposta a enfrentar todos os riscos para superar seus próprios limites. Para ela, Paulo era o homem que possuía o anel da Tradição da Lua, o mago que sabia mistérios ocultos, o aventureiro capaz de largar tudo e ir em busca de anjos. Um sempre teria o outro – enquanto fosse exatamente o que imaginava.

Isso era a paixão: criar a imagem de alguém, e não avisar.

Um dia, porém, quando a convivência revelasse a verdadeira identidade de ambos, descobririam que atrás do Mago e da Valkíria viviam um homem e uma mulher. Com poderes, talvez, com alguns conhecimentos preciosos, mas – não podiam fugir desta realidade – um homem e uma mulher. Com a agonia, o êxtase, a força e a fraqueza de todos os outros seres humanos. E, quando um deles se mostrasse como realmente é, o outro iria afastar-se – porque isto significava destruir o mundo que havia criado.

Descobrira o amor na beira de um despenhadeiro, com duas mulheres se entreolhando e a imensa lua brilhando atrás. O amor era – dividir o mundo com o outro. Ele conhecia bem uma daquelas mulheres, com ela dividia seu Universo. Viam as mesmas montanhas, as mesmas árvores, embora cada qual as olhasse de maneira diferente. Ela conhecia suas fraquezas, seus momentos de ódio, de desespero, e mesmo assim estava ao seu lado.

Dividiam o mesmo Universo. Embora, muitas vezes, tivesse a sensação de que tal Universo já não tinha mais segredos, ele descobrira – aquela noite no Vale da Morte – que tal sensação era uma mentira.

Parou o carro. Diante dele, um desfiladeiro entrava montanha adentro. Havia escolhido aquele lugar apenas por causa do nome – afinal de contas, os anjos estão presentes em todos os momentos, e em todos os lugares do mundo. Saltou, bebeu um pouco mais da água que trazia sempre em um grande vasilhame na mala do automóvel, e colocou o cantil na cintura.

Ainda pensava em Vahalla e Chris, quando começou a andar para o desfiladeiro. “Acho que me apaixonarei muitas outras vezes”, falou consigo mesmo. Não se sentia culpado por isso. A paixão era algo bom, divertido, e que podia enriquecer muito a vida.

Mas era diferente do amor. E o amor vale qualquer preço, não merecia ser trocado por nada.

Parou na entrada do desfiladeiro, e olhou o vale à frente. O horizonte começou a ficar vermelho. Era a primeira vez que estava vendo um amanhecer no deserto; mesmo quando dormiam ao ar livre, sempre acordava com o sol já alto.

“Que grande espetáculo perdi”, pensava. O topo das montanhas, ao longe, começou a brilhar, e a luz cor-de-rosa ia cobrindo o vale, as pedras, as pequenas plantas que insistiam em viver quase sem água. Ficou algum tempo contemplando a cena.

Lembrou-se do livro que acabara de publicar no Brasil, no qual – em determinado momento

– o pastor Santiago vai para uma montanha olhar o deserto. Exceto pelo fato de não estar em cima de uma montanha, surpreendia-se da semelhança com o que havia escrito oito meses antes. Como também, só agora, estava se dando conta do nome da cidade onde haviam desembarcado nos Estados Unidos. Los Angeles. Que, em espanhol, quer dizer: Os Anjos.

Mas não era hora de pensar nos sinais do caminho.

– Este é teu rosto, meu anjo da guarda – disse, em voz alta. – Eu te vejo. Estiveste sempre na minha frente, e quase nunca te reconheci. Escuto tua voz, cada dia a escuto mais claramente. Sei que existes, porque falam de ti em todos os recantos da Terra.

“Talvez um homem, ou uma sociedade inteira, pudesse estar errado. Mas todas as sociedades, e todas as civilizações, em todos os lugares do planeta, sempre falaram de anjos. Hoje em dia, as crianças, os velhos, e os profetas escutam. Mesmo assim, continuarão falando em anjos através dos séculos porque sempre existirão os profetas, as crianças e os velhos.”

Uma borboleta azul começou a brincar na sua frente. Era seu anjo respondendo.

– Rompi um acordo. Aceitei um perdão.

A borboleta corria de um lado para o outro. Haviam visto diversas borboletas brancas no deserto – aquela, porém, era azul. Seu anjo estava contente.

– E fiz uma aposta. Naquela noite, no alto da montanha, apostei toda a minha fé em Deus, na vida, no meu trabalho, em J., apostei tudo o que tinha. Apostei que, quando eu abrisse os olhos, você se mostraria para mim. Coloquei minha vida inteira em um prato da balança. Pedi que você colocasse seu rosto no outro prato.

“E, quando abri os olhos, tinha diante de mim o deserto. Por alguns instantes, achei que havia perdido. Mas então – ah, como me lembro com carinho! –, então você falou.”

Uma pequena risca de luz apareceu no horizonte. O sol estava nascendo.

– Lembra-se do que disse? Você disse: “Olha em volta, eis a minha face. Sou o lugar onde você estiver. Meu manto te cobrirá com os raios de sol, de dia, e com o brilho das estrelas, de noite.” Eu ouvi claramente tua voz!

“E você ainda disse: ‘Precises sempre de mim!’”

O seu coração estava alegre. Ia esperar o sol nascer, olhar bastante a face do seu anjo naquela manhã. Depois ia contar para Chris sobre a aposta. E dizer que ver o anjo era ainda mais fácil que conversar com ele! Bastava acreditar que anjos existem, bastava precisar de anjos. E eles se mostravam, brilhantes como o raiar da manhã. E ajudavam, cumpriam a tarefa de proteger e guiar, para que cada geração levasse sua presença para a geração seguinte – de modo que jamais fossem esquecidos.

“Escreve algo”, escutou uma voz dizer dentro de sua cabeça.

Engraçado. Não estava procurando canalizar – apenas contemplava a face de seu anjo. No entanto, alguma coisa dentro dele exigia que escrevesse algo. Tentou concentrar-se no horizonte e no deserto, mas não conseguiu mais.

Foi até o carro, pegou um papel e uma caneta. Tivera algumas experiências de psicografia, mas sem ir muito longe – J. dissera que aquilo não era para ele, e que devia ir em busca de seu verdadeiro dom.

Sentou-se no chão do deserto, com a caneta entre os dedos, e procurou relaxar. Daqui a pouco, a caneta começaria a mover-se sozinha, faria alguns riscos, e as palavras começariam a surgir. Para isso, precisava perder um pouco a consciência, deixar que algo – um espírito ou um anjo – o possuísse. Entregou-se completamente, aceitou ser um instrumento. Mas nada aconteceu. “Escreve algo”, escutou de novo a voz em sua cabeça.

Ficou assustado. Não ia ser incorporado por um espírito. Estava canalizando sem querer –

como se seu anjo estivesse ali, falando com ele. Não era psicografia. Pegou a caneta de maneira diferente – agora com firmeza.

As palavras começaram a surgir, nítidas. E ele ia copiando, sem tempo de pensar no que escrevia:

Por amor de Sião, não me calarei,

e por amor de Jerusalém não descansarei,

até que desponte para ela a justiça, qual astro,

e a sua salvação qual facho ardente.

Aquilo nunca havia acontecido antes. Estava escutando uma voz, dentro dele, ditando as palavras:

E chamar-te-ão com um nome novo,

pronunciado pela boca do Senhor;

e serás brilhante coroa na mão do Senhor,

e real diadema na palma do teu Deus.

Não serás mais chamada “desamparada”

nem a tua terra, “abandonada”;

mas chamar-te-ão de “esta me agrada”

e a tua terra, “desposada”.

Tentou conversar com a voz. Perguntou a quem dizer isto.

“Já foi dito”, respondeu a voz. “Está apenas sendo lembrado.”

Paulo sentiu um nó na garganta. Era um milagre, ele dava graças ao Senhor. O disco dourado do sol foi aos poucos aparecendo no horizonte. Ele largou o bloco e a caneta, levantou-se, e estendeu as mãos em direção à luz. Pediu para que toda aquela energia de esperança – a esperança que um novo dia traz para milhões de pessoas na face da Terra – entrasse por seus dedos e repousasse em seu coração. Pediu para acreditar sempre no novo mundo, nos anjos, nas portas abertas do Paraíso. Pediu proteção ao seu anjo e à Virgem – para ele, para todos que amava, e para seu trabalho. A borboleta veio e, como obedecendo a um sinal secreto do anjo, pousou em sua mão esquerda. Ele ficou absolutamente imóvel, porque estava na presença de mais um milagre; seu anjo havia respondido.

Sentiu o Universo parar naquele momento: o sol, a borboleta, o deserto à sua frente. E, no momento seguinte, o ar à sua volta sacudiu. Não era vento. Era uma sacudidela do ar –

a mesma que se tem quando um carro ultrapassa um ônibus em alta velocidade. Um arrepio do mais absoluto terror correu por sua espinha.

Alguém estava presente.

“Não olhe para trás”, escutou de novo a voz.

O coração estava disparado, e ele começou a ficar tonto. Sabia que era medo, um medo terrível. Continuava imóvel, as mãos estendidas para frente, a borboleta pousada.

“Vou desmaiar de pavor”, pensou.

“Não desmaie”, disse a voz.

Tentava manter o controle, mas suas mãos ficaram frias, e começou a tremer. A borboleta voou para longe, e ele abaixou os braços.

“Ajoelhe-se”, disse a voz.

Ele se ajoelhou. Não conseguia pensar em nada. Não tinha para onde fugir.

“Limpe o chão.”

Ele fez o que a voz dentro de sua cabeça mandava. Limpou uma pequena área na areia diante dele, de modo que ficasse lisa. O coração continuava disparado, e ele sentia-se cada vez mais tonto, e pensava que podia ter um ataque cardíaco.

“Olhe o chão.”

Uma luz imensa, quase tão forte como o sol da manhã, brilhava do seu lado esquerdo. Ele não queria olhar, queria apenas que acabasse rápido tudo aquilo. Numa fração de segundo recordou a infância, quando lhe contavam das aparições de Nossa Senhora para as crianças. Costumava passar noites em claro, pedindo a Deus que jamais mandasse a Virgem aparecer para ele – porque teria medo. Pavor. O mesmo pavor que estava sentindo agora.

“Olhe o chão”, insistiu a voz.

Ele olhou para a areia que havia acabado de limpar. E foi então que o braço dourado, brilhante como o sol, apareceu, e começou a escrever algo.

“Eis o meu nome”, disse a voz.

A tontura do medo continuava. O coração batia cada vez mais rápido.

“Acredite”, escutou a voz dizer. “As portas estão abertas por algum tempo.”

Reuniu todas as forças que ainda tinha.

– Quero falar – disse em voz alta. O calor do sol parecia restaurar as suas forças. Não escutou nada, nenhuma resposta.

Uma hora depois, quando Chris chegou – havia acordado o dono do hotel, e exigido que a levasse de carro até lá –, ele continuava olhando o nome escrito no chão.

Os dois ficaram vendo Paulo preparar o cimento.

– Que desperdício de água, em pleno deserto – riu Took.

Chris pediu que ele não brincasse assim, seu marido ainda estava sob o impacto da visão.

– Descobri de onde é o trecho – disse Took. – O profeta Isaías o escreveu.

– Por que este trecho? – perguntou Chris.

– Não tenho a menor idéia. Mas ficarei atento.

– Fala de um mundo novo – continuou ela.

– Talvez seja por isso – respondeu Took. – Talvez seja por isso.

Paulo chamou-os. A argamassa estava pronta.

Os três rezaram uma Ave-Maria. Depois Paulo subiu na pedra, colocou o cimento, e pôs em cima a imagem de Nossa Senhora, que carregava sempre com ele.

– Pronto. Está feito.

– Talvez os guardas retirem quando passarem por aqui – disse Took. – Vigiam o deserto como se fosse um campo de flores.

– Pode ser – respondeu Paulo. – Mas o lugar fica marcado. Será, para sempre, um dos meus lugares sagrados.

– Não – disse Took. – Lugares sagrados são lugares individuais. Aqui foi ditado um texto. Um texto que já existia, que fala de esperança, e tinha sido esquecido. Paulo não queria pensar nisso agora. Ainda tinha medo.

– Aqui a energia da alma do mundo girou – continuou Took –, e continuará girando sempre. É um lugar de Poder.

Juntaram o plástico onde Paulo tinha misturado o cimento, colocaram na mala do carro, e foram deixar Took no velho trailer.

– Paulo! – disse ele, ao se despedir. – Acho bom você saber um velho ditado da Tradição: Quando Deus quer enlouquecer alguém, satisfaz todos os seus desejos.

– Pode ser – respondeu Paulo. – Mas valeu o risco.

EPÍLOGO

Certa tarde, um ano e meio depois da aparição do anjo, reparei que minha correspondência trazia uma carta de Los Angeles. Era uma leitora brasileira, Rita de Freitas, me cumprimentando por O

ALQUIMISTA.

Num impulso, escrevi de volta pedindo que fosse até o Glorieta Canyon, perto de Borrego Springs, ver se ainda existia uma estátua de Nossa Senhora de Aparecida que eu havia colocado lá. Depois que a carta foi colocada no correio, pensei comigo mesmo: “Que bobagem. Esta mulher nunca me viu, foi apenas uma leitora que quis me dizer algumas palavras agradáveis, e jamais vai fazer o que estou pedindo. Não vai pegar um carro, e dirigir seis horas até o deserto, apenas para ver se ainda existe uma imagem.”

Pouco antes do Natal de 1989 recebi uma carta de Rita, a qual adapto a seguir. Estava escrito:

“Aconteceram algumas ‘coincidências’ ótimas. Eu tive uma semana de folga do meu trabalho, por causa do Dia de Ação de Graças. Eu e meu namorado (Andrea, um músico italiano) estávamos planejando ir a um lugar bem diferente.

“Foi então que chegou sua carta! E o lugar que você me sugeriu era perto de uma reserva indígena. Resolvemos ir.

(…)

“No terceiro dia fomos procurar o Glorieta Canyon, e encontramos. Era justamente o Dia de Ação de Graças. Foi interessante porque nós íamos bem devagar, de carro, e eu não vi nada relativo à

imagem. Chegamos no final do canyon, paramos, e começamos a escalar a montanha, até bem no alto. Tudo que vimos foram algumas trilhas de coiotes.

“A esta altura, concluímos que não havia mais imagem.

(…)

“Quando a gente estava voltando, vimos umas flores nas pedras. Paramos o carro e descemos, e então vimos umas velas pequeninas que haviam sido acesas, uma borboleta de pano dourada, e uma cesta de palha jogada ao lado. Concluímos que ali devia ser o lugar onde a santa estava, mas não estava mais.

“O interessante é que eu tenho quase certeza de que não havia nada disto antes, quando eu passei. Tiramos uma foto – anexa – e continuamos.

“Quando estávamos quase no final do canyon, nós vimos, de repente, uma mulher toda de branco, com essas roupas árabes, turbante, longa túnica, andando no meio da estrada. Mas foi muito estranho – como é que ia aparecer uma mulher no meio do deserto?

“Eu fiquei pensando: será que foi esta mulher que colocou as flores, e acendeu as velas?

Não vi nenhum carro, e perguntei a mim mesma: como ela chegou até aqui?

“Mas eu estava tão surpresa que não consegui conversar com ela.”

Olhei a foto que Rita enviou: era exatamente o lugar onde havia colocado a santa. Era o Dia de Ação de Graças. E, eu tenho certeza, por ali caminhavam anjos.


Escrevi este livro em janeiro/fevereiro de 1992, pouco depois do final da Terceira Guerra Mundial – onde os combates foram muito mais sofisticados que os travados com armas convencionais. Segundo a Tradição, esta guerra começou nos anos 50, com o bloqueio de Berlim, e acabou quando o Muro de Berlim caiu por terra. Teve vencedores, o império derrotado foi dividido e acabou exatamente como uma guerra convencional. A única coisa que não aconteceu foi o holocausto nuclear – e isto não acontecerá nunca, porque a Obra de Deus é grande demais para ser destruída pelo homem. Agora, segundo a Tradição, uma nova guerra vai começar. Uma guerra mais sofisticada ainda, da qual ninguém pode escapar – porque é através de suas batalhas que o crescimento do homem se completará. Veremos os dois exércitos – de um lado, aqueles que ainda acreditam na raça humana, que acreditam nos poderes ocultos do homem, e sabem que nosso próximo passo está no crescimento dos dons individuais. Do outro lado estarão os que negam o futuro, os que acham que a vida termina na matéria e –

infelizmente – aqueles que, embora tenham fé, acreditam que descobriram o caminho da iluminação e querem obrigar os outros a seguir por ali.

Por isso os anjos estão de volta, e precisam ser ouvidos, porque só eles podem nos mostrar o caminho – e ninguém mais. Podemos dividir nossas experiências – como procurei dividir a minha, neste livro

– mas não existem fórmulas para este crescimento. Deus colocou generosamente Sua sabedoria e Seu amor ao nosso alcance, e é fácil, muito fácil encontrá-los. Basta permitir a canalização – um processo tão simples que eu mesmo custei muito para aceitar e reconhecer. Como os combates serão travados – em sua maioria – no plano astral, serão nossos anjos da guarda que empunharão a espada e o escudo, nos protegendo dos perigos e nos guiando para a vitória. Mas nossa responsabilidade também é imensa: cabe a nós, neste momento da História, desenvolver os próprios poderes, acreditar que o Universo não acaba nas paredes do nosso quarto, aceitar os sinais, seguir os sonhos e o coração.

Somos responsáveis por tudo que acontece neste mundo. Somos os Guerreiros da Luz. Com a força de nosso amor, de nossa vontade, podemos mudar o nosso destino, e o destino de muita gente. Um dia chegará em que o problema da fome poderá ser resolvido com o milagre da multiplicação dos pães. Um dia chegará em que o amor será aceito por todos os corações, e a mais terrível das experiências humanas – a solidão, que é pior que a fome – será banida da face da Terra. Um dia chegará em que os que batem na porta verão ela se abrir; os que pedem, receberão; os que choram, serão consolados. Para o planeta Terra, este dia ainda está muito longe. Entretanto, para cada um de nós, este dia pode ser o dia de amanhã. Basta aceitar um simples fato: o amor – de Deus e do próximo – nos mostra o caminho. Não importam nossos defeitos, nossos perigosos abismos, nosso ódio reprimido, nossos longos momentos de fraqueza e desespero: se quisermos nos corrigir primeiro para depois partir em busca de nossos sonhos, não chegaremos nunca ao Paraíso. Se, entretanto, aceitarmos tudo que há de errado em nós – e, ainda assim, achar que merecemos uma vida alegre e feliz, então estaremos abrindo uma imensa janela para o Amor entrar. Aos poucos, os defeitos vão desaparecer por si mesmos, porque quem está feliz só consegue olhar o mundo com Amor – esta força que regenera tudo que existe no Universo. No livro Os Irmãos Karamazov, Dostoievski nos conta a história do Grande Inquisidor, que repito agora com minhas palavras:

Durante as perseguições religiosas em Sevilha, quando todos que não concordam com a Igreja estão sendo presos e queimados vivos, Cristo volta à Terra e se mistura com a multidão. O Grande Inquisidor nota a presença de Jesus, e manda prendê-lo.

De noite, vai visitar Jesus em sua cela. E pergunta por que ele havia resolvido voltar justamente naquele momento. “Você está nos atrapalhando”, diz o Grande Inquisidor. “Afinal de contas, os seus ideais eram muito bonitos, mas somos nós que estamos conseguindo colocá-los em prática.” Argumenta com Jesus, dizendo que embora a Inquisição fosse ser julgada severamente no futuro, ela era necessária, e estava cumprindo seu papel. Não adiantava ficar falando de paz, quando o coração do homem vivia em guerra; nem falar de um mundo melhor, quando havia tanto ódio e tanta pobreza no coração do homem. Não adiantava sacrificar-se em nome de toda a raça humana, porque o homem ainda sofria seus sentimentos de culpa. “Você falou que todos os homens eram iguais, que tinham a luz divina dentro de si, mas se esqueceu que os homens são inseguros, e precisam de alguém, precisam da gente para orientá-los. Não atrapalhe nosso trabalho, vá embora”, diz o Grande Inquisidor, fazendo desfilar diante de Jesus uma série de argumentos brilhantes.

Quando termina de falar, há um silêncio muito grande na cela da prisão. Então Jesus se aproxima do Grande Inquisidor e o beija no rosto.

“Você pode ter razão”, diz Jesus. “Mas meu amor é mais forte.”

Não estamos sós. O mundo se transforma, e nós somos parte desta transformação. Os anjos nos guiam e nos protegem. Apesar de todas as injustiças, apesar de coisas que não merecemos acontecerem conosco, apesar de nos sentirmos incapazes de mudar o que está errado na gente e no mundo, apesar de todos os brilhantes argumentos do Grande Inquisidor – o Amor ainda é mais forte, e nos ajudará a crescer. E só

então seremos capazes de entender estrelas, anjos e milagres.


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