MEMÓRIAS DA MEIA NOITE
SIDNEY SHELDON
Nâo me cantem canções da luz do dia Pois o sol é o inimigo dos amantes Ao invés, cantem das sombras e da escuridâo E das «memórias da meia-noite»
PRÓLOGO
Kowloon Maio de 1949
- Tem de parecer um acidente. Consegue arranjar isso?
Era um insulto. Sentia a raiva crescer dentro de si. Isso era pergunta para se fazer a um amador que se contratava na rua. Sentiu-se tentado a responder com sarcasmo: «Oh, sim. Acho que consigo fazer isso. Prefere um acidente dentro de casa? Posso fazer que ela parta o pescoço ao cair de um lance de escadas. 0 bailarino de Marselha. Ou ela podia embebedar-se e morrer afogada na banheira. Aherdeirade Gstaad. Podiatomaruma dose excessiva deheroína. Eliminara três assim. Ou podia adormecer na cama com um cigarro aceso. 0 detective sueco no Hotel da Margem Esquerda de Paris. Ou será que prefere qualquer coisa no exterior? Posso provocar um acidente de trânsito, uma queda de avião ou um desaparecimento no mar.» Mas não disse nada disto, pois na verdade tinha medo do homem que se sentara na sua frente. Ouvira muitas histórias arrepiantes a seu respeito, e tinha razão para acreditar nelas. De forma que tudo o que disse foi - Sim, senhor, posso provocar um acidente. Ninguém irá descobrir. Mas no momento em que dizia estas palavras a ideia passou-lhe pela cabeça: «Ele sabe que eu saberei.» Ficou à espera. Estavam no segundo andar de um edifício da cidade murada de Kowloon, que fora construída em 1840 por um grupo de chineses para se protegerem dos bárbaros britânicos. As muralhas tinham sido derrubadas na Segunda Guerra Mundial, mas havia outras muralhas que afastavam os estranhos: grupos de criminosos, toxicodependentes e violadores que deambulam pelas muitas ruas estreitas Chegaram à Estrada de Mody. 0 padre taoísta que o aguardava parecia urna figura de um antigo pergaminho, com um clássico roupão oriental desbotado e uma barba branca, às farripas e comprida. Jou sahn. Jou sahn. Gei do chin. Yat-Chihn. Jou.
0 padre fechou os olhos numa oração silenciosa e começou a sacudir o chim, a taça de madeira cheia de paus de oração numerados. Caiu um pau, e a sacudidela cessou. No silêncio, o padre taoísta consultou a sua carta e virou-se para o visitante. Ele falava num inglês defeituoso.
-Os deuses dizem que em breve te livrarás de um inimigo perigoso.
0 homem sentiu um choque agradável de surpresa. Era demasiado inteligente para não compreender que a antiga arte de chim era uma mera superstição. E era demasiado inteligente para ignorá-la. Além disso, havia outro presságio de boa sorte. Hoje, era o Dia de Agios Constantinous, dia do seu aniversário.
-Os deuses abençoaram-te com boa fung shui. Do jeh.
Hou wah.
Cinco minutos depois, estava na limusina, a caminho de Kai Tak, o aeroporto de Hong Kong, onde o seu avião particular o aguardava para levá-lo de volta a Atenas. e escadas escuras que condua m às trevas. Os turistas eram avisados amanterem-se afastados, e nem mesmo a polícia se aventuraria a entrar na Rua TungTau Tsuen, nos arredores. Ele ouvia os barulhos da rua do outro lado da janela, e a poliglota estridente e roufenha de línguas que pertenciam aos residentes da cidade murada. 0 homem analisava-o com olhos frios e negros. Falou por fim. -Pois bem. Deixarei o método ao seu dispor.
-Sim, senhor. 0 alvo está aqui em Kowloon? Londres. Chama-se Catherine. Catherine Alexander.
Uma limusina, seguida por um segundo cano com dois guarda-costas armados, levou o homem para a Casa Azulem Lascar Row, na área de Tsim Sha Tsui. A Casa Azul estava aberta apenas a clientes especiais. Era visitada por chefes de estado, estrelas de cinema e presidentes de empresas. A gerência orgulhava-se da discrição. Há seis anos, uma das raparigas que trabalhava lá falara dos seus clientes a um jornalista e foi encontrada na manhã seguinte no porto de Aberdeen com a língua cortada. Na Casa Azul havia de tudo para vender; virgens, rapazes, lésbicas que se satisfaziam sem os «talos preciosos dos homens, e animais. Era o único lugar que ele conhecia onde ainda se praticava a arte do séculoXde Ishinpo. ACasaAzul era uma cornucópia de prazeres proibidos. 0 homem pedira os gémeos desta vez. Eram um par requintadamente combinado com belos atributos, corpos incríveis e sem inibições. Lembrou-se da última vez em que lá estivera... o banco de metal sem fundo e as suas línguas e dedos macios e acariciadores, e a banheira cheia de água quente aromática que transbordava para o chão de tijoleira e as suas bocas ardentes expoliando o corpo dele. Sentiu o início de uma erecção.
-Nós estamos aqui, senhor.
Três horas mais tarde, depois de ter estado com elas, saciado e satisfeito, o homem ordenou que a limusina seguisse para a Estrada de Mody. Olhou para as luzes cintilantes da cidade que nuncadormiam. Os chineses deram-lhe o nome degau-lung-nove dragões-e ele imaginava-os a espreitarem nas montanhas sobre a cidade, prontos a descerem e destruírem os fracos e os incautos. Ele não era nada disso.
Janina, Grécia Julho de 1948
Ela acordava aos gritos todas as noites e era sempre o mesmo sonho. Ela estava no meio de um lago numa tempestade feroz e um homem e uma mulher metiam-lhe a cabeça debaixo das águas geladas, afogando-a. Acordava sempre em pânico, com falta de ar, encharcada em suor. Não fazia ideia de quem ela era e não tinha lembrança do passado. Falava inglês-mas não sabia de que país vinha ou como viera parár à Grécia, no pequeno convento das Carmelitas que a abrigou. Amedida que otempo passava, havialampejos atormentadores de memória, vestígios de imagens vagas e efémeras que chegavam e partiam depressa de mais para poder retê-los, segurar e examinar. Chegavam em momentos inesperados, apanhando-a desprevenida e enchendo-a de confusão. No começo, fizera perguntas. As freiras carmelitas eram gentis e compreensivas, mas havia uma ordem de silêncio, e a única que podia falar era a Irmã Teresa, a idosa e frágil Madre Superiora.
- Sabe quem eu sou?
-Não, minha filha - disse a Irmã Teresa. - Como é que eu vim parar a este lugar?
-No sopé destas montanhas, há uma aldeia chamada Janina. Estavas num pequeno barco no lago durante uma tempestade no ano passado. 0 barco afundou-se, mas graças a Deus duas das nossas irmãs viram-te e salvaram-te. Trouxeram-te para aqui.
-Mas... de onde vim eu antes disso? -Desculpa, minha filha. Não sei. Ela não podia ficar satisfeita com isso. -Ninguém perguntou por mim? Ninguém tentou encontrar-me?
A Irmã Teresa sacudiu a cabeça. -Ninguém.
Quis gritar de frustração. Tentou de novo.
- Os jornais... Eles devem ter recebido alguma história sobre o meu desaparecimento.
-Como sabes, não nos é permitida qualquer comunicação com o mundo exterior. Temos de aceitaravontade deDeus, minhafilha. Devemos agradecer-Lhe todas as Suas graças. Estas viva.
E foi o máximo que conseguiu obter. No começo, estivera demasiado doente para se preocupar consigo própria, mas aos poucos, à medida que os meses passavam, ela recuperava as forças e a saúde. Quando se sentiu com forças para caminhar, passavams dias a trabalhar nos jardins coloridos dos terrenos do convento, sob aluz incandescente que banhava a Grécia num fulgor celestial, com os ventos suaves que traziam o aroma pungente dos limões e das vinhas. 0 ambiente era sereno e calmo, e no entanto ela não conseguia encontrar paz. «Estou perdida», pensou, «e ninguém se importa. Porquê? Fiz alguma coisa de mau? Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu?» As imagens continuavam a surgir, espontâneas. Certa manhã, acordou de repente e viu a sua própria imagem num quarto com um homem nu que a despia. Era um sonho? Ou era algo que acontecera no passado? Quem era o homem? Era algum com quem se casara? Tinha marido? Não trazia aliança de casamento. De facto, não tinha outros haveres a não ser o hábito negro da Ordem das Carmelitas que a Irmã Teresa lhe dera e um alfinete, um pequeno pássara dourado com olhos vermelho-vivos e asas abertas. Ela era anónima, uma estranha vivendo entre estranhos. Não havia ninguém para ajudá-la, nem um psiquiatra para lhe dizer que a sua mente ficara tão traumatizada que só podia ficar só quando afastasse o passado terrível.
E as imagens continuavam a surgir, cada vez mais rápidas. Era como se a sua mente se tivesse repentinamente tornado num enigma gigantesco, com peças estranhas que se iam encaixando. Mas as peças não faziam sentido. Teve uma visão de um estádio enorme cheio de homens fardados com o uniforme do exército. Pareciam estar a fazer um filme. •Era actriz?» Não, parecia estar a dar ordens. «Mas que ordens?» Um soldado entregou lhe um ramo deflores. «Terá de pagá-las•>, riu-se. Duas noites depois, teve um sonho com o mesmo homem. Estava a despedir-se dele no aeroporto, e acordou a soluçar porque o perdia. No teve mais paz depois disso. Não eram simples sonhos. Erampedaços da sua vida, do seu passado. «Tenho de saber quem sou. Quem sou.» E, inesperadamente, a meio da noite, sem mais nem menos, surgiu-lhe um nome do subconsciente. «Catherine. 0 meu nome é Catherine Alexander.»
Atenas, Grécia
0 império de Constantin Demiris não podia ser localizado em nenhum mapa; no entanto, ele era senhor de um feudo mais poderoso do que muitos países. Ele era um dos dois ou três homens mais ricos do mundo e a sua influência era incalculável. Não tinha título ou posto oficial, mas regularmente comprava e vendia primeiros-ministros, cardeais, embaixadores e reis. Os tentáculos de Demiris estavam por toda a parte, tecidos através da trama e urdidura de dezenas de países. Era um homem carismático, com uma mente brilhantemente incisiva, fisicamente notável, de altura bem acima da média, entroncado e de ombros largos. Tinha a tez morena e um nariz grego pronunciado e olhos pretos-azeitona. Tinha o rosto de um falcão, de um predador. Quando decidia dar-se ao trabalha, Demiris sabia ser extremamente encantador. Falava oito línguas e era um afamado contador de anedotas. Possuía uma das mais importantes colecções de arte do mundo, umafrota de aviões particulares e uma dúzia de apartamentos, castelos e casas de campo espalhados pelo globo. Era um entendido da beleza, e achava as mulheres belas irresistíveis. A sua reputação era a de ser um amante possante, e as suas leviandades românticas eram tão pitorescas quanto as suas aventuras financeiras. Constantin Demiris orgulhava-se de ser um patriota - a bandeira azul e branca da Grécia estava sempre hasteada na sua uilla de Kolonaki e em Psara, a sua ilha privada -, mas não pagava impôs tos. Não se sentia obrigado a obedecer às regras que se aplicavam aos homens comuns. Nas suas veias corria icor-o sangue dos deuses.
2
Quase todas as pessoas que Demiris conhecia queriam alguma coisa de si: financiamento de um projecto comercial; donativo para uma obra de caridade; ou simplesmente o poder que a sua amizade podia conferir. Demiris gostava do desafio de imaginar aquilo que as pessoas realmente pretendiam, pois raramente era o que aparentava ser. A sua mente analítica era céptica quanto a verdade superficial, e como consequência disso não acreditava em nada do que lhe diziam e não confiava em ninguém. 0 seu lema era: «Fica perto dos teus amigos, mas ainda mais perto dos teus inimigos.» Aos repórteres, que escreviam sobre a sua vida, era permitido ver apenas a sua genialidade e encanto, o homem sofisticado e urbano do mundo. Não tinham motivos para suspeitar que sob aquela fachada amável se encontrava um assassino, um lutador de sarjeta, cujo instinto era saltar para a veia jugular. Era um homem implacável que nunca esquecia uma desfeita. Para os antigos gregos a palavra dikaiosini, justiça, era muitas vezes sinónimo de ekdikisis, vingança, e Demiris era obcecado por ambas. Lembrava-se de todas as afrontas que sofrera, e aqueles que tinham o azar de incorrer na sua inimizade recebiam em paga cem vezes mais. Nunca se apercebiam do facto, pois a mente matemática de Demiris fazia da retribuição exacta um jogo, pacientemente concebendo armadilhas meticulosas e tecendo teias complexas que finalmente prendiam e destruíam os seus inimigos. Sentia prazer nas horas que passava a arquitectar ciladas para os seus adversários. Estudava as suas vítimas cuidadosamente, analisando as suas personalidades, avaliando os seus pontos fortes e fracos. Durante um jantar, Demiris ouvira por acaso um produtor de cinema referir-se a ele como «aquele grego untuoso». Demiris esperou o momento propício. Dois anos mais tarde, o produtor contratou uma actriz fascinante de renome internacional para estrelar na sua nova superprodução na qual investiu o seu próprio dinheiro. Demiris esperou até o filme estar meio concluído, e depois seduziu a actriz principal a abandonar tudo e a juntar-se a ele no seu iate.
-Vai ser uma lua~le-mel -disse-lhe Demiris.
Ela teve a lua-de-mel, mas não o casamento. 0 filme acabou por ser cancelado e o produtor entrou em bancarrota.
Havia alguns jogadores no jogo de Demiris de quem ainda não se tinhavingado, mas não tinha pressa. Gostava da antecipação, do planeamento e da execução. Nos tempos de hoje, não fazia inimigos, pois ninguém podia dar-se ao luxo de ser seu inimigo, de forma que as suas presas se limitavam àqueles que tinham atravessado o seu caminho no passado. Mas a ideia que Constantin Demiris tinha de dikaiosini éra de dois gumes. Tal como nunca esquecia umainjúria, também não se esquecia de um favor. Um pobre pescador, que abrigara o jovem rapaz, tornou-se dono de uma frota pesqueira. Uma prostituta, que vestira e alimentara o jovem quando ele era pobre de mais para lhe pagar, herdou misteriosamente um prédio de apartamentos, sem a mínima ideia de quem fosse o seu benfeitor. Demiris começara a vida como filho de um estivador em Piraeus. Tinha catorze irmãos e irmãs, e à mesa nunca havia comida que chegasse para todos. Desde muito cedo, Constantin Demiris revelava um dom excepcional para o negócio. Ganhava um dinheiro extra fazendo biscates depois da escola, e aos dezasseis anos poupara dinheiro bastante pa ra montar uma barraca de comida na doca com um sócio mais velho. 0 negócio prosperou, e o sócio enganou Demiris com a sua parte. Demiris demoroudez anos a destruiro homem. 0 jovemrapaz ardia com ambição feroz. «Euvou serrico. Vou serfamoso. Um dia todos saberão o meu nome.» Era a única canção de embalar que conseguia adormecê-lo. Não fazia ideia de como iria acontecer. Só sabia que ia acontecer. No dia do seu décimo-sétimo aniversário, Demiris leu por acaso um artigo sobre os campos petrolíferos da Arábia Saudita, e foi como se uma porta mágica para o futuro se tivesse repentinamente aberto para ele. Foi ter com o pai.
- Vou para a Arábia Saudita. Vou trabalhar nos campos de petróleo.
- Eh, pá! 0 que é que tu sabes de campos de petróleo? -Nada, pai. Vou aprender.
Um mês depois, Constantin Demiris partia.
Era política da companhia para os empregados no exterior da Corporação de Petróleo Trans-Continental assinar um contrato de trabalho de dois anos, mas Demiris não sentia apreensão em relação a isso. Tencionava ficar na Arábia Saudita o tempo necessário para fazer fortuna. Tinha visionado uma maravilhosa aventura de noites árabes, uma terra fascinante e misteriosa com mulheres de aspecto exótico e ouro negro jorrando do chão. A realidade foi um choque. Numa manhãzinha de verão, Demiris chegava a Fadili, um campo medonho no meio do deserto que constava de um velho edifício de pedra rodeado por barastis, pequenas cabanas cobertas de mato. Havia mil trabalhadores de classe inferior, a maioria sauditas. As mulheres que se arrastavam através das ruas empoeiradas e de terra batida estavam carregadas de véus. Demiris entrou no edifício onde J. J. McIntyre, o administrador do pessoal, tinha o seu gabinete. McIntyre ergueu o olhar quando o homem jovem entrou. -Então. A sede contratou-te, foi?
-Foi, sim.
-Já trabalhaste nos campos de petróleo, rapaz? Por um instante, Demiris esteve tentado a mentir. -No, senhor.
McIntyre deu um sorriso largo.
-Vais adoraristo aqui, Estás a um milhão de quilómetros de parte nenhuma, a comida não presta, não há mulheres em que possas tocar sem que te cortem os tomates, e não há patavina para se fazer à noite. Mas o dinheirocompensa, não ?
-Estou aqui para aprender-disse Demiris com sinceridade. - Sim? Então vou dizer-te o que tens de aprender para já. Tu agora estás num país muçulmano. Isso significa que não há bebidas alcoólicas. Quem for apanhado a roubarfica sem a mão direita. Da segundavez, a mão esquerda. Da terceiravez, perdes um um pé. Se matares alguém, cortam-te a cabeça.
-Não estou a pensar em matar ninguém. -Espera-grunhiu McIntyre. -Tu acabaste de chegar.
0 complexo era uma torre de Babel, gente oriunda de uma dúzia de países diferentes, todos falando as suas línguas nativas. Demiris ouvia bem e aprendia línguas depressa. Os homens estavam ali para abrir estradas no meio de um deserto inóspito, edificar habitações, instalar equipamento eléctrico, montar comunicações telefónicas, construir oficinas, arranjar abastecimentos de água e comida, conceber um sistema de drenagem, administrar cuidados médicos e, pareceu ao jovem Demiris, fazer umá centena de outras tarefas. Trabalhavam com temperaturas acima dos quarenta graus, sofrendo com as moscas, mosquitos, poeira, febre e disenteria. Mesmo no deserto haviauma hierarquia social. No topo estavam os homens encarregados de localizar o petróleo, e abaixo os operários das obras, chamados de «tesos», e os empregados, conhecidos como «calças lustrosas». Quase todos os homens envolvidos na perfuração actual - os geólogos, topógrafos, engenheiros e analistas de petróleo - eram americanos, pois a nova broca rotativa fora inventada nos Estados Unidos e os americanos estavam mais habituados ao seu funcionamento. 0 jovem decidiu tornar-se amigo deles. Constantin Demiris passava o máximo de tempo possível junto dos perfuradores e não parava de lhes fazer perguntas. Retinha a informação, absorvendo-a como as areias quentes absorvem a água. Reparou que se utilizavam dois métodos diferentes de perfuração. Aproximou-se de um dos perfuradores que trabalhava junto a uma torre de perfuração com 400 metros.
-Eu estava aqui a pensar porque é que vocês utilizam dois tipos diferentes de perfuração.
0 perfurador explicou.
-Bem, rapaz, um por cabo e o outro com a rotativa. Agora, andamos a usar mais a rotativa. Os dois métodos começam exactamente da mesma maneira.
- Ah sim?
-Sim . Para qualquer um deles tem de se erguer uma torre igual a esta para içar as peças de equipamento que têm de ser metidas dentro do poço. -Olhou para o rosto ansioso do jovem. -Aposto que não fazes a mínima ideia por que lhe chamam assim.
-Não faço, não.
-Era o nome de um famoso carrasco do século XVII. -Estou a perceber.
- A perfuração por cabo é ainda mais antiga. Há centenas de anos, os chineses abriam poços de água assim. Eles faziam um buraco na terra, levantando e deixando cair um instrumento cortante que estava pendurado num cabo. Mas hoje cerca de oitenta e cinco por cento de todos os poços são perfurados pelo método darotativa.-Virou-se para regressar à perfuração.
- Desculpe. Mas como é que funciona o método da rotativa? 0 homem parou.
- Bem, em vez de abrir um buraco na terra à pancada, basta perfurar. Estás a ver isto? No meio do piso da rotativa está uma mesa giratória de aço que a maquinaria faz girar. Esta mesa rotativa prende com firmeza e roda um tubo que desce através dela. Há uma broca presa à parte inferior do tubo.
-Parece simples, não parece?
-É mais complicado do que parece. Tem de haver um método de escavar o material libertado à medida que se perfura. Há que evitar a aluimento das paredes e vedar a água e o gás do poço.
- Com toda essa perfuração, a broca não se gasta?
- Claro. Depois temos que tirar para fora toda aquela danada série de tubos, enroscar outra broca na ponta do tubo da perfuradora e meter tudo outra vez dentro do furo. Estás com ideias de ser um perfurador?
- Não, senhor. Tenciono ter poços de petróleo. - Parabéns. Posso voltar ao trabalho agora?
Uma manhã, Demiris observava a inserção de um tubo no poço, mas em vez de perfurar o interior ele reparou que cortou pequenas áreas circulares dos lados do furo e trouxe rochas para cima.
- Desculpe-me. Para que está a fazer isso? - perguntou Demiris.
0 perfurador parou para limpar a testa.
-Isto é a medula das paredes laterais. Usamos estas rochas para análise, para ver se são portadoras de petróleo.
- Estou a perceber.
Quando as coisas corriam sem problemas, Demiris ouvia os perfuradores gritar, «Vou virar para a direita», o que significava que estavam a fazer um furo. Demiris reparou que havia dezenas de pequeníssimos furos perfurados por todo o campo, com diâmetros que não tinham mais do que cinco ou seis centímetros. -Desculpe-me. Para que são esses poços?-perguntou o jovem.
-São poços de prospecção. Indicam-nos o que existe no subsolo. Poupa um monte de dinheiro e tempo à companhia.
-Estou a ver.
Tudo era completamente fascinante para o jovem, e as suas perguntas eram infindáveis.
-Desculpe-me. Como é que sabe onde vai furar?
-Temos muitos geólogos, a malta dos calhaus, que tiram medidas dos estratos e estudam os cortes dos poços. Depois os estranguladores de cordas...
-Desculpe-me, o que é um estrangulador de cordas? -Um perfurador. Quando eles...
Constantin Demiris trabalhava desde manhãzinha até ao pôr do Sol, arrastando maquinaria através do deserto escaldante, limpando equipamento e conduzindo camiões àfrente dos raios de chama luminosos que se erguiam dos picos rochosos. As chamas ardiam noite e dia, levando para longe os gases venenosos. J. J. McIntyre dissera a verdade a Demiris. A comida não prestava, as condições de vida eram horríveis, e à noite não havia nada que fazer. Pior, Demiris sentia que todos os poros do seu corpo estavam cheios de grãos de areia. 0 deserto tinha vida, e não havia maneira de fugir a isso. A areia entrava na barraca, metia-se-lhe na roupa e no corpo, e ele pensou que ia enlouquecer. E depois piorou. 0 vento do golfo surgiu. As tempestades de areia sopravam todos os dias durante meses, conduzidas por um vento uivante com uma intensidade suficientemente forte para levar os homens à loucura. Demiris olhava fixamente pela porta da barraca para a areia rodopiante.
-Vamos trabalhar com este tempo?
- Tens toda a razão, Charlie. Isto não é uma estância termal. Faziam-se descobertas de petróleo àvolta deles. Haviauma nova descoberta em Abu Hadriya e outra em Qatif e em Harad, e os trabalhadores nunca estiveram mais ocupados.
Chegaram duas novas pessoas, um geólogo inglês e a mulher. HenryPotterandavapelos setentaanos, e amulher, Sybil, tinhapouco mais de trinta. Em qualquer outro lugar, Sybil Potter teria sido descrita como uma mulher de aspecto simplório e obesa com uma voz aguda e desagradável. Em Fadhili, ela era uma beleza delirante. Como Henry Potter estava constantemente ausente na prospecção de novos campos petrolíferos, a mulher ficava muito tempo sozinha. 0 jovem Demiris ficou incumbido de ajudá-la a mudar-se para os seus novos aposentos.
- Este é o pior lugar que eu já vi na minha vida - queixou-se Sybil Potter na sua voz plangente. - 0 Henry está sempre a arrastar-me para lugares terríveis como este, Não sei como é que aguento.
-0 seu marido está a fazer um trabalho importante-Demiris assegurou-lhe.
Ela olhou para o jovem atraente especulativamente.
-0 meu marido não faz tudo o que devia fazer. Está a entender-me?
Demiris sabia exactamente o que ela queria dizer. -Não, senhora.
- Como é que se chama?
-Demiris, senhora. Constantin Demiris. - Como é que os seus amigos o tratam? -Costa,
-Bem, Costa, acho que vamos ser bons amigos. Certamente que não temas nada em comum com esta ciganaria, pois não?
- Ciganaria?
-Sim. Estes estrangeiros.
-Tenho que voltar ao trabalho - disse Demiris.
Nas semanas seguintes, Sybil Potter arranjava constantemente desculpas para mandar chamar o jovem homem.
-Henry saiu de novo estamanhã-disse-lhe ela.-Foifazer essa perfuração estúpida-acrescentou maliciosamente. -Ele devia era fazer mais perfuração em casa.
Demiris ficou sem resposta.
- 0 geólogo era um homem importante na hierarquia da companhia, e Demiris não fazia tenções de se envolver com a mulher de Potter e pôr em perigo o seu emprego, No sabia exactamente como, mas tinha a certeza de que de uma maneira ou de outra este trabalho ia ser o seu passaporte para tudo com o que sonhara. 0 petróleo era o futuro e ele estava determinado a ser parte do mesmo.
Era meia-noite quando Sybil Potter mandou chamar Demiris. Ele entrou no complexo onde ela residia e bateu à porta. -Entre.-Sybil traziauma camisa de noitetransparente que infelizmente não escondia nada,
-Eu ... a senhora queria falar comigo?
-Queria, Costa, entre. Este candeeiro da mesinha de cabeceira parece que não funciona.
Demiris desviou o olhar e caminhou até ao candeeiro. Agarrou-o para examiná-lo.
-Não tem lâmpada... -E sentiu o corpo dela contra as suas costas e as mãos a apalpá-lo. - Senhora Potter...
Os lábios dela estavam sobre os dele e começou a empurrá-lo para cima da cama. E ele não teve controlo do que se passou a seguir. Estava nu e a afundar-se dentro dela e ela gritava de satisfação. - Isso mesmo! Oh, isso mesmo! Meu Deus, há tanto tempo! Ela deu um último grito sufocado e estremeceu. -Oh querido, eu amo-te. Demiris estava deitado em pânico. «0 que é que eu fiz? Se o Potter descobre, estou frito •> Como se lesse o seu pensamento, Sybil Potter deu um risinho. -Este vai ser o nosso segredinho, não , querido? 0 segredinho deles manteve-se durante os vários meses que se seguiram. Demiris não conseguia evitá-la e, como o marido se ausentavadurante dias consecutivos nas suas explorações, Demiris no conseguia pensar numa desculpa para evitar ir para a cama com ela. 0 pior era que Sybil Potter se apaixonara loucamente por ele.
-Tu és bom de mais para trabalhares num lugar como este, querido - disse-lhe ela. -Eu e tu vamos voltar para a Inglaterra. -A minha casa é na Grécia.
-Já não . -Ela acariciou o seu carpo longo e magro. -Tu vais regressar comigo. Divorcio-me do Henry e nós casamo-nos. Demiris teve uma sensão repentina de pânico.
-Sybil, eu.., eu não tenho dinheiro. Eu... Ela correu os lábios pelo tronco dele.
-Isso não é problema. Eu sei como é que podes ganhar dinheiro, querido.
- Sabes?
Ela sentou-se na cama.
-A noite passada, o Henry disse-me que tinha descoberto um novo campo de petróleo enorme. Ele é muito bom nisso, sabes. Seja como for, parecia excitadíssimo com o facto. Fez o relatório antes de sair e pediu-me que o enviasse no correio da manhã. Tenho-o aqui. Gostavas de vê-lo? 0 coração de Demiris começou a bater mais depressa. -Sim, Eu ... gostava. Viu-a sair da cama e mover-se pesadamente até uma mesinha danificada situada a um canto. Tirou um grande envelope amarelo e trouxe-o para a cama.
-Abre-o.
Demiris hesitou apenas por um instante. Abriu o envelope e tirou os papéis que estavam lá dentro. Havia cinco folhas. Leu-as rapidamente, depois voltou ao início e leu todas as palavras.
- Essa informação vale alguma coisa?
«Essa informação vale alguma coisa?» Era um relatório sobre um campo novo que poderia possivelmente vir a ser um dos mais ricos campos petrolíferos da história. Demiris engoliu em seco. -Sim. Podia valer.
-Pronto, aí tens-disse Sybil num tom feliz. -Agora temos dinheiro.
Ele suspirou.
-As coisas não são assim tão simples. -Por que não?
Demiris explicou.
-Isto tem valor para qualquer pessoa que possa comprar opções na terra que circunda esta área. Mas isso exige dinheiro. -Ele tinha um saldo de trezentos dólares no banco.
-Oh, não te preocupes com isso. 0 Henry tem dinheiro. Eu passo um cheque. Chegam cinco mil dólares?
Constantin Demiris não podia acreditar no que ouvia. - Sim. Eu... eu não sei o que dizer.
-É para nosso bem, querido. Pelo nosso futuro. Ele sentou-se na cama muito pensativo.
-Sybil, achas que podias aguentar esse relatório por um ou dois dias?
-Claro. Vouguardá-loaté sexta-feira.Isso dá-tetempo, querido? Ele abanou a cabeça lentamente.
-Isso dá-me tempo suficiente.
Com os cinco mil dólares que Sybil lhe deu, «não, não é um presente, é um empréstimo, disse a si próprio», Constantin Demiris comprou opções em hectares da terra em redor da nova descoberta potencial. Alguns meses depois, quando os jorros começaram a sair do campo principal, Constantin Demiris tornou-se, instantaneamente, num milionário. Devolveu a Sybil Potter os cinco mil dólares, enviou-lhe uma camisa de noite nova e regressou à Grécia. Ela nunca mais o viu. Há uma teoria que diz que na natureza nada se perde - que todos os sonsproduzidos, todas aspalavrasproferidas existem aindaalgures no espaço e no tempo e poderão um dia ser lembrados. Antes da invenção da rádio, diz-se, quem teria acreditado que o ar à nossa volta estava cheio de sons de música, de notícias e de vozes de todo o mundo? Um dia seremos capazes de viajar no tempo e ouvir o discurso de Lincoln em Gettysburgo, a voz de Shakespeare, o Sermão da Montanha... Catherine Alexander ouvia vozes do seu passado, mas eram abafadas e fragmentadas, e enchiam-na de confusão...
-Sabes que és uma rapariga muito especial, Cathy? Sentiam desde a primeira vez que te vi...
-Acabou-se. Quero divorciar-me... Amo outra pessoa...
-Eu sei que me tenho comportado mal... Gostava de reparar os meus erros.
-Ele tentou matar-me.
- Quem é que tentou matar-te? - 0 meu marido.
As vozes persistiam. Eram uma tormenta. 0 seu passado tornou-se um caleidoscópio de imagens móveis que se precipitavam continuamente no seu pensamento. 0 convento devia ter sido um abrigo maravilhoso e poeto, mas tornara-se repentinamente uma prisão. <•0 meu lugar não é aqui. Mas onde é o meu lugar?~ Ela não fazia ideia. Não havia espelhos no convento, mashaviaum lago reflector láfora, perto do jardim. Catherine, cautelosamente, evitara, receosa daquilo que ele pudesse revelar-lhe. Mas nestamanhãfoiaté lá, ajoe lhou-se lentamente e olhou para baixo. O lago reflectiu uma mulher
bronzeada de aspecto maravilhoso, de cabelo preto, feições perfeitas e uns solenes olhos cinzentos que pareciam cheios de dor.., mas talvez isso fosse uma mera ilusão da água. Viu uma boca generosa que parecia pronta a sorrir, e um nariz ligeiramente arrebitado -uma mulher bonita com pouco mais de trinta anos. Mas uma mulher sem passado e sem futuro. Uma mulher perdida. HPreciso de alguém que me ajude», pensou Catherine desesperadamente, «alguém com quem eu possa conversar.» Entrou na sala da Irmã Teresa.
-Irmã...
- Sim, minha filha?
-Eu.., acho que gostava de consultar um médico. Alguém que me possa ajudar a descobrir quem eu sou.
A Irmã Teresa olhou para ela durante um longa momento, -Senta-te.
Catherine sentou-se na dura cadeira que se encontrava á frente da velha escrivaninha, marcada pelo tempo.
A Irmã Teresa disse calmamente:
-Minha querida, Deus é o nosso médico. A seu tempo Ele fará com Sue saibas o que Ele te reserva. Além disso, não são permitidos estranhos dentro destas paredes.
Catherine teve um lampejo de memória repentino... uma vaga imagem de um homem que falava com ela no jardim do convento, entregando-lhe qualquer coisa.„ mas depois a lembrança desapareceu. - 0 meu lugar não é aqui.
- Qual o teu lugar? E esse era o problema.
-No estou certa. Ando à procura de algo. Perdoe-me, Irmã Teresa, mas sei que não está aqui.
A Irmã Teresa analisava-a, o seu rosto pensativo. -Eu compreendo. Se saísses daqui, para onde irias? - Não sei.
-Deixa-me pensar no assunto, minha filha. Voltaremos a falar em breve.
-Obrigada, Irmã.
Quando Catherine saiu, a Irmã Teresa permaneceu sentada à secretária durante muito tempo, com o olhar fixo no vazio. Era uma decisão difícil que ela tinha de tomar. Por fim, alcançou um pouco de papel e uma caneta e começou a escrever. «Prezado Senhor», principiou ela. •Aconteceu algo, que sinto o dever de chamar a sua atenção. A nossa amiga comum informou-mede que pretende abandonar o convento. Porfavor diga-me o que devo fazer.» Ele leu o bilhete uma vez, e depois recostou-se na cadeira, analisando as consequências do recado. «Com que então! A Catherine Alexander quer regressar do mundo dos mortos. É pena. Terei de livrar-me dela. Com cautela. Com muita cautela.» Na manhã seguinte, Demiris mandou o motorista levá-lo a Janina.Enquanto atravessava o campo, Constantin Demiris pensava em Catherine Alexander. Lembrava-se de como ela estava bonita quando ele a viu pela primeira vez. Era inteligente, engraçada e alegre, e estava excitada par se encontrar na Grécia. «Ela tivera tudo»,pensou Demiris. E depois os deusesvingaram-se. Catherine fora casadacom um dos seus pilotos, e o casamento deles tornara-se um inferno vivo. Quase da noite para o dia ela envelhecera dez anos e tornara-se uma bêbeda gorda e desgrenhada. Demiris suspirou. NQue desperdício.» Demiris estava sentado na sala da Irmã Teresa.
-Custou-me muito maçá-lo por causa disto-desculpou-se a Irmã Teresa -, mas a rapariga não tem para onde ir...
-Tomou adecisão certa-assegurou-lhe ConstantinDemiris.Ela lembra-se de alguma coisa do passado?
A Irmã Teresa abanou a cabeça. -Não.Apobrezinha...-Foiaté àjanela,dondeviuasfreirasque trabalhavam no jardim. - Ela está lá fora agora. Constantin Demirisfoiparajunto dela e olhou parafora dajanela. Havia três freiras de costas para ele. Esperou. Uma delas voltou-se e ele pôde ver-lhe o rosto, e a respiração prendeu-se-lhe na garganta. Ela era bela. Que acontecera àquela mulher gorda e destroçada? -É a do meio - disse a Irmã Teresa. Demiris abanou a cabeça.
-Sim. -As palavras da Irmã Teresa eram mais verdadeiras do que ela pensava.
-Que deseja que eu faça com ela?
Com cautela.
- Deixe-me pensar no caso - disse Demiris. Entrarei em contacto consigo.
É um milagre», pensou Catherine. «Um sonho realizado.» AIrmã Teresa parara junto à sua minúscula cela após as matinas.
- Trago notícias para ti, minha filha. - Sim?
A Irmã Teresa escolhia as palavras cuidadosamente.
-Boas notícias. Escrevi a um amigo do convento a teu respeito, e ele deseja ajudar-te.
Catherine sentia o seu coração a saltar. -Ajudar-me como?
-Isso é algo que tem de ser ele a dizer-te. Mas trata-se de uma pessoa muito amável e generosa. Catherine vais sair do convento. E as palavras causaram um arrepio repentino e inesperado em Catherine. Ia entrar num mundo de que nem conseguia lembrar-se. «E quem era o seu benfeitor?» Tudo o que a Irmã Teresa disse foi; -É um homem muito atencioso. Catherine devias estar agradecida. 0 carro dele virá buscar-te na segunda-feira de manhã.
Catherine não conseguiu dormir durante as duas noites seguintes. A ideia de deixar o convento e entrar no mundo exterior tornou-se de repente assustador. Sentiu-se desamparada e perdida. «Talvez seja melhor eu não saber a minha identidade. Por fa vor, Deus, olha por mim.» Na segunda-feira, a limusina parou diante do portão do convento às sete horas da manhã. Catherine estivera acordada toda a noite a pensar no futuro incerto que se apresentava à sua frente. A Irmã Teresa acompanhou-a até ao portão que se abria para o mundo exterior. -Rezaremos por ti. Lembra-te de uma coisa: se decidires voltar para junto de nós, haverá sempre lugar para ti aqui.
-Obrigada, Irmã. Não me esquecerei,
Mas no seu íntimo Catherine estava certa de que nunca voltaria.
O longo trajecto de Janina até Atenas encheu Catherine com uma série de emoções conflituosas. Era muitíssimo excitante estar do outro lado dos portões do convento, e, no entanto, havia algo sinistro sobre o mundo de que se aproximava. Ia ela saber que coisa horrível acontecera no seu passado? Tinha alguma coisa a ver com o sonho repetitivo em que alguém queria afogá-la? No início da tarde, o campo deu lugar a pequenas aldeias, até que chegaram fïnalmente aos arredores de Atenas e em breve estavam no meio da cidade animada. Parecia tudo estranho e irreal a Catherine - e, no entanto, estranhamente familiar. «Eu já cá estive», pensou Catherine excitadamente. 0 motorista dirigiu-se para leste, e quinze minutos depois chegaram a uma propriedade enorme situada no alto de uma colina. Passaram por um porto alto de ferro e uma casa de pedra à entrada, subiram uma estrada ladeada de ciprestes majestosos e pararam frente de uma enorme ailla mediterrânica branca, emoldurada por meia dúzia de estátuas magníficas. 0 motorista abriu a porta do carro para Catherine sair. Um homem aguardava na porta da frente.
-Kalimehra. -A palavra para bom-dia surgiu nos lábios de Catherine espontaneamente.
-Kalimehra.
- 0 senhor.., o senhor é a pessoa que eu vim ver?
- Oh, não. 0 senhor Demiris está à sua espera na biblioteca, Demiris. Um nome que ela nunca ouvira antes. Por que estava ele interessado em ajudá-la?
Catherine seguiu o homem por uma enorme rotunda, com um telhado em cópula assente em placas de faiançainglesade Wedgewood. Os pisos eram em mármore creme de origem italiana,
0 salão era enorme, com um tecto alto com viga e sofás grandes, baixos e confortáveis e cadeiras por toda a parte. Uma tela enorme, um Coya escuro e soturno, cobria uma parede inteira. Quando se aproximavam da biblioteca, o homem parou.
- 0 senhor Demiris está à sua espera lá dentro.
As paredes da biblioteca eram adornadas de madeira branca e dourada, e as prateleiras alinhadas nas paredes estavam cheias de livros de cabedal gravados em relevo a ouro. Um homem sentava-se atrás de uma secretária enorme. Ergueu o olhar quando Catherine entrou e levantou-se. Procurou um sinal de reconhecimento no rosto dela, mas não houve nenhum.
-Seja bem vinda. Chamo-me Constantin Demiris. Qual é o seu nome?-Ele deu à pergunta um tom informal. «Lembrava-se ela do nome?»
-Catherine Alexander.
Ele não mostrou nenhuma reacção.
-Seja bem vinda, Catherine Alexander. Por favor sente-se. - Ele sentou-se em frente dela, num sofá de cabedal negro. Ela era ainda mais maravilhosa de perto. «Ela é magnífica», pensou Demiris. «Mesmo vestida com aquele hábito preto. E uma pena destruir algo tão belo. Pelo menos morrerá feliz
-É ,., é muito amável da sua parte receber-me - disse Catherine. -Não percebo porque é que o senhor...
Ele sorriu afavelmente.
-É realmente muita simples. De vez em quando, dou um contributo à Irmã Teresa, 0 convento tem muito pouco dinheiro, e eu faço o que posso. Quando me escreveu a falar de si e me perguntou se eu podia ajudar, eu disse-Ihe que ficaria muito satisfeito em tentar.
-Isso é muito .,. -Calou-se, não sabendo como prosseguir. -A Irmã Teresa disse-lhe que eu... que eu perdi a memória?
-Sim, ela disse qualquer coisa sobre isso.-Fez uma pausa eperguntou sem cerimónia. - Lembra-se de muita coisa?
-Sei o meu nome, mas não sei donde vim, ou quem sou na realidade. - Acrescentou, esperançosamente. - Talvez eu encontre aqui alguém que me conheça.
Constantin Demiris sentiu um arrepio repentino de preocupação. Era a última coisa no mundo que ele queria.
-É possível, claro -disse cautelosamente. -Porque não falamos nisso amanhã de manhã? Infelizmente, tenho que estar presente numa reunião agora. Mandei preparar-lhe uma suite. Acho que se sentirá bem.
-Eu... eu realmente não sei como agradecer-lhe. Ele agitou uma mão.
-Não é necessário. Tratarão bem de si aqui. Sinta-se à vontade. -Obrigada, senhor. ...
-Os amigos chamam-me Costa.
Uma governanta conduziu Catherine para uma fantástica suite, decorada com tons suaves de branco, mobilada com uma cama de tamanho excessivo com uma dossel de seda, sofás e poltronas brancas, mesas e candeeiros antigos e quadros impressionistas nas paredes. Persianas de um verde-marinho polido mantinham o sol resplandecente na janela ogival. Através das janelas, Catherine podiaver o mar azul-turquês lá ao longe. A governanta disse
-0 senhor Demiris mandou trazer roupas para a senhora escolher. Pode escolher tudo o que lhe apetecer,
Catherine tomou consciência, pelaprimeiravez, de que ainda trazia vestido o hábito que lhe haviam dado no convento. -Obrigada. Afundou-se na cama macia, sentindo-se como num sonho. Quem era este estranha, e por que estava ele a ser tão amável com ela? Umahoramais tarde, chegouuma carrinha cheia de roupas. Uma modista foi conduzida ao quarto de Catherine.
- Sou Madame Dimas. Vamos ver o que temos de trabalhar. Importa-se de tirar a roupa?
- Como?
-Quer tirar a roupa? Não consigo saber quais as medidas do seu corpo debaixo dessas roupas.
Há quanto tempo não ficava nua à frente de outra pessoa? Catherine começou a despir a roupa, mexendo-se lentamente, sentindo-se embaraçada. Quando ficou nua à frente da mulher, Madame Dimas olhou-a de um modo sabido. Estava impressionada.
-Tem uma bela figura. Acho que vamos conseguir arranjar-lhe umas coisas bem bonitas.
Duas assistentes entraram com caixas de vestidos, roupa interior, blusas, saias, sapatos.
- Escolha o que quiser - disse a modista -, e vamos experimentar.
-Não posso ficar com nada disto-protestou Catherine. -Não tenho dinheiro.
A modista riu-se.
-Não me parece que o dinheiro seja problema. 0 senhor Demiris vai tratar disso.
-Mas porquê?
Os tecidos trouxeram de volta memórias tácteis de roupas que ela deve ter em tempos usado. Eram sedas, tweeds e algodões numa colecção de cores delicadas. As três mulheres eram despachadas e eficientes, e duas horas depois Catherine tinha meia dúzia de belos conjuntos, Era irresistível. Ali estava ela, sem saber o que fazer da vida. «Estou toda arranjada»,pensou, «sem terpara onde ir.» Mashavia um lugar aonde ir-à cidade. A chave para o que quer que fosse que lhe acontecera estava em Atenas. Estava convencida disso. Levantou-se. «Vamos, estranha. Vamos tentar saber quem tu és.» Catherine atravessava ovestíbulo quando ummordomo a abordou.
-Posso ajudá-la?
-Sim. Eu... eu gostava de ir à cidade. Podia chamar-me um táxi? -Estou certo de que isso não será necessário. Temos limusinas à sua disposição, Vou providenciar um motorista.
Catherine hesitou. -Obrigada.
0 senhorDemiris não gostaria que ela fosse à cidade? Ele não aimpedira.
Uns minutos depois ela estava sentada no banco de trás de uma limusina Daimler,com destino à baixa de Atenas. Catherine estava deslumbrada com a cidade barulhenta e animada e pela pungente sucessão de ruínas e monumentos que surgiam àsua volta. 0 motorista apontou para a frente e disse orgulhosamente: -Aquilo é o Pártenon, no cimo da Acrópole. Catherine fixou o olhar no conhecido edifício de mármore branco. -Dedicado a Atena, a deusa da sabedoria-deu por si a dizer. 0 motorista sorriu com um ar aprovador.
-A menina é estudante de História da Grécia? Lágrimas de frustração enevoaram a visão de Catherine. -Não sei-sussurrou ela.-Não sei.
Passaram por outra ruína.
-0 teatro de Herodes Atticus. Como pode ver, parte das paredes estão ainda de pé. Em tempos sentava mais de cinco mil pessoas. - Seis mil duzentas e cinquenta e sete - disse Catherine num tom suave. Modernos hotéis e imóveis de escritórios viam-se por toda a parte no meio das ruínas intemporais, uma mistura exótica de passado e presente. Alimusina passou por um parque enorme no centro da cidade, com fontes efervescentes e dançantes. Dezenas de mesas com mastros de cor verde e laranjaladeavam o parque, e o ar que os cobria estava atapetado com toldos azuis. «Eu já estive aqui», pensou Catherine, as suas mãos a ficarem frias. «E fui feliz.» Havia esplanadas em quase todos os quarteirões, e nas esquinas homens vendiam esponjas de recolha recente. Por todo o lado havia flores à venda, as barracas dos vendedores urna paixão de flores violentamente coloridas. A limusina havia chegado à Praça Syntagma. Quando passavam por um hotel na esquina, Catherine gritou. - Páre, por favor!
0 motorista encostou à esquina, Catherine estava com dificuldades em respirar. «Estou a reconhecereste hotel. Jáme hospedei aqui,» Quando falou, a voz tremia-lhe.
-Gostava de descer aqui. Será que me podia vir buscar dentro de duas horas?
-Claro que sim. -0 motorista apressou-se a abrir-lhe a porta, e Catherine saiu de encontro ao ar quente de verão. As pernas tremiam-lhe. -A menina está bem?
Ela não teve resposta. Sentiu como se estivesse à beira de um precipício, quase a cair num abismo desconhecido e aterrador. Movimentou-se por entre as multidões, maravilhando-se com as hordas de pessoas que se precipitavam nas ruas, criando um alarido aterador de palavras. Depois do silêncio e solidão do convento, tudo aquilo parecia irreal. Catherine deu por si a caminhar na direcção de Plaka, a parte antiga de Atenas no coração da cidade, com os seus becos serpenteados e as escadarias em ruínas e gastas que davam para casas minísculas, cafés e estruturas caiadas tortuosas. Ela achou o caminho através de algum instinto que não percebeu ou tentou controlar. Passou por uma taberna no topo de um telhado, que dava para a cidade, e ficou parada, a olhar. «Eu já estive sentada àquela mesa. Deram-me uma ementa em grego. Eramos três. 0 que é que queres comer? perguntaram. Importam-se de pedir por mim? Não vá eu pedir ao proprietário. Eles riram-se. Mas quem eram eles?» Um empregado aproximou-se de Catherine. -Goro na sas ooithiso?
-Ochi efharisto.
« Posso ajudá-la? Não, obrigada. Como é que eu soube responder? Sou grega?»
Catherine avançou precipitadamente, e era como se alguém estivesse a conduzi-la. Ela sabia exactamente para onde ir.
Tudo parecia familiar. E nada. «Meu Deus», pensou ela, «estou a enlouquecer. Estou alucinada.» Passou por um café chamado Treflinkas. Uma lembrança importunava-a nas partes remotas do pensamento. Acontecera-lhe algo aqui, algo de importante. Não conseguia lembrar-se do que era. Atravessou as ruas movimentadas e sinuosas e virou à esquerda na Voukourestiou. Havia muitas lojas elegantes. «Eu fazia compras aqui.» Começou a cruzar a rua, e uma viatura azul surgiu veloz na esquina, quase que a atropelava. Lembrou-se de uma voz que lhe disse: «Os gregos não fizeram a transição para o automóvel. No fundo, ainda andam de burro. Se queres entender os gregos, não leias os guias; lê as velhas tragédias gregas. Nós estamos repletos de paixões grandiosas, alegrias profundas e grandes mágoas, e não aprendemos a disfarçá-las com um verniz civilizado.»
Quem lhe dissera isso? Um homem descia a rua apressado, caminhando na direcção dela, olhando-a fixamente. Ele abrandou, um olhar de reconhecimento no seu rosto. Era alto e moreno, e Catherine tinha a certeza de não o ter visto antes. E no entanto...
-Viva. - Ele parecia muito feliz por vê-la.
- Olá. - Catherine respirou fundo. -0 senhor conhece-me? Ele tinha um sorriso largo.
-Claro que a conheço.
Catherine sentiu o coração saltar. Ela ia finalmente saber a verdade acerca do passado. Mas como é que se diz «Quem sou eu?» a um estranho numa rua cheia de gente?
-Podíamos... podíamos conversar?-perguntouCatherine. -Acho que devíamos.
Catherine estava à beira do pânico. 0 mistério da sua identidade estava prestes a ser solucionado. E, no entanto, sentia um medo terrível. «E se eu não quiser saber? E se eu fiz algo de terrível?» 0 homem levava-a para uma taberna ao ar livre. -Estou tão feliz por encontrá-la - disse ele. Catherine engoliu em seco.
-Também eu.
Um criado de mesa conduziu-os a uma mesa,
-0 que que gostaria de tomar?-perguntou o homem. Ela abanou a cabeça.
-Nada.
Havia tantas perguntas a fazer. «Por onde começo?»
- Você é muita bonita - disse o homem. - Foi o destino. Não concorda?
-É verdade. - Ela quase tremia de excitação. Inspirou profundamente. -Eu ... onde foi que nós nos conhecemos?
Ele sorriu mostrando os dentes.
-Isso tem importância, koritsimon? Paris ou Roma, nas corridas, numa festa. - Ele chegou-se para a frente e apertou-lhe a mão. - Você é a mais bonita que eu vi por aqui. Quanto é que leva?
Catherine olhou-o fixamente, sem perceber porum momento, depois, chocada, ergueu-se rapidamente.
-Eh! Qual o problema? Eu pago o que quiser...
Catherine voltou-se e pôs-se em fuga, descendo a rua a correr. Virou numa esquina e abrandou, os olhos cheios de lágrimas de humilhação. Em frente, havia uma pequena taberna, ondehaviaum letreiro na montra que dizia MADAME PIRIS - ASTRÓLOGA. Catherine abrandou, depois parou. «Eu conheço Madame Piris. Eu já estive aqui: >0 seu coração começou a acelerar. Sentiu que aqui, através da entrada escurecida, estava o começo do fim do mistério. Abriu a porta e entrou. Levou algunsmomentos ahabituar-se à escuridão cavernosa da sala. Havia um bar familiar no canto, e uma dúzia de mesas e de cadeiras. Um criado veio até ela e dirigiu-se-lhe em grego.
-Kalimehra.
Kalimehra. Pou inch Madame Piris?
0 criado apontou na direcção de uma mesa vazia no canto da sala, e Catherine foi até lá e sentou-se. Tudo era exactamente como se lembrava. Uma mulher incrivelmente velha, vestida de negro, com um rosto dessecado em ângulos e planos, dirigia-se à mesa.
- 0 que é que eu posso ...? -Parou, perscrutando o rosto de Catherine. Os seus olhos arregalaram-se.-Conheci-a em tempos, mas o seu rosto ... -Disse ela com a voz entrecortada. -Você voltou! -Sabe quem eu sou?-Catherine perguntou ansiosamente. A mulher fixou-a, com os olhos cheios de horror.
- Não! Você morreu! Vá-se embora!
Catherine gemeu tenuamente e sentiu o cabelo arrepiar-se-lhe.
- Por favor, eu sou...
-Vá-se embora, senhora Douglas! - Eu preciso de saber...
A velha fez o sinal da cruz, voltou-se e desapareceu rapidamente. Catherine deixou-se ficar sentada por um momemto, a tremer, depois saiu a correr para a rua. A voz segui-a na cabeça. «Senhora Douglas! E foi como se tivessem aberto uma represa. Dezenas de cenas brilhantemente iluminadas jorraram repentinamente na sua cabeça, uma série brilhante de caleidoscópios fora de controlo. «Eu sou a senhora Larry Douglas p Viu o rosto bonito do marido. Estivera loucamente apaixonada por ele, mas algo correra mal. Alguma coisa... A imagem seguinte era a sua tentativa de suicídio, e o acordar num hospital. Catherine estava na rua, receosa de que as suas pernas não andassem, deixando as imagens aos atropelos no seu pensamento. Ela tinha andado a beber muito, porque perdera Larry. Mas depois ele voltara para ela. Estavam no apartamento dela, e Larry dizia:
- Sei que me portei muito mal. Gostaria de compensar-te, Cathy. Eu amo-te. Nunca amei realmente mais ninguém. Quero mais uma oportunidade. Gostavas de fazer uma segunda lua-de -mel? Conheçoum sítiomaravilhoso aonde poderíamos ir. Chama-se Janina.
E depois o horror começara. As imagens que lhe vieram à mente agora eram aterradoras. Estava no cimo duma montanha na companhia de Larry, perdida numa neblina cinzenta e rodopiante, e ele caminhava na direcção dela, de braços estendidos, preparado para atirá-la da berma. Nesse momento, chegaram uns turistas e salvaram-na. E depois as caves.
«0 empregado do hotel falou-me dumas grutas que há aqui perto. Todos os recém-casados vão lá. E eles foram às grutas, e Larry levara-a até às profundezas e deixara-a lá para que ela morresse. Pôs as mãos sobre os ouvidos como que para afastar os terríveis pensamentos que a assaltavam. Fora salva e trazida de volta ao hotel, e um médico dera-lhe um sedativo. Mas a meio da noite ela acordara e ouvira Larry e a amante na cozinha, planeando a morte dela, o vento a fustigar-lhe as palavras.
- Nunca ninguém ir...
- Eu disse-te que me encarregava de...
- Correu mal. Não há nada que eles possam... -Agora, enquanto ela está a dormir.
E lembrava-se de terfugido naquela tempestade terrível-sendo perseguida por eles -meter-se no barco a remos, o vento fustigando o barco no meio do lago tempestuoso. 0 barco começara a afundar, e ela perdera a consciência. Catherine afundou-se num banco da rua, demasiado exausta para se mexer. Então os seus pesadelos tinham sido reais. 0 marido e a amante haviam tentado matá-la. Pensou de novo no estranho que fora visitá-la ao convento pouco depois do seu salvamento, Ele entregara-lhe um pássaro de ouro de excelente execução, com as asas suspensas para voar.. «Ninguém lhe farámal. As pessoas cruéis morreram.UAinda não conseguiuvero seu rosto com nitidez. A cabeça de Catherine começou a latejar. Finalmente, levantou-se e caminhou lentamente em direcção à rua onde ficou de se encontrar com o motorista que a levaria de volta para junto de Constantin Demiris, onde estaria em segurança.
-Porque é que a deixou sair de casa? -perguntou Constantin Demiris.
- Peço desculpa, senhor - respondeu o mordomo. - 0 senhor não disse se ela podia ou não sair, por isso...
Demiris esforçou-se para parecer calmo.
-Não tem importância. Ela, provavelmente, deve estar de volta daqui a pouco.
-Mais alguma coisa, senhor?
-Não.
Acompanhou a saída do mordomo, Demiris foi até uma janela e fixou o olhar no jardim impecavelmente tratado. Era perigoso Catherine Alexander aparecer nas ruas de Atenas, onde poderia serreconhecida. «É uma pena eu não poder deixá-la viver. Mas primeiro ... a minha vingança. Ela ficará viva até que eu me vingue. Vou divertir-me com ela. Vou mandá-la embora daqui, para um lugar onde ninguém a conheça. Londres será seguro. Podemos mantë-la sob vigilância. Vou arranjar-lhe um emprego num dos meus escritórios de lá. Uma hora mais tarde, quando Catherine regressou a casa, Constantin Demiris pôde sentir instantaneamente a mudança nela. Era como se uma cortina escura tivesse sido levantada e Catherine tivesse repentinamente ressuscitado. Usava um atraente fato de seda branco, com uma blusa branca-e Demiris ficou surpreendido pela grande alteração da sua aparência. «Nostini», pensou ele. Sedutora. -Senhor Demiris...
-Costa.
-Eu.., eu sei quem eu sou, e .., o que aconteceu. 0 rosto dele nada revelou.
-Ah sim? Sente-se, minha querida, e conte-me.
Catherine estava excitada de mais para se sentar. Começou a andar abruptamente na alcatifa, de um lado para o outro, as palavras saindo-lhe da boca aos atropelos.
-0 meu marido e a... a amante dele, Noelle, tentaram matar-me. -Parou, olhando para ele ansiosamente.-Não lhe parece uma loucura? Eu ... eu não sei, Talvez seja.
-Continue, minha querida-disse ele brandamente. -Foram umas freiras do convento que me salvaram. O meu marido trabalhava para si, não trabalhava?-disse ela sem pensar. Demiris hesitou, pesando cuidadosamente a sua resposta. -Trabalhava, sim. -Que mais poderia dizer-lhe?-Ele era um dos meus pilotos. Senti alguma responsabilidade por si. É só...
Ela olhou de frente.
-Mas o senhor sabia quem eu era. Porque não me disse hoje de manhã?
-Eu tinha receio do choque-disse Demiris num tom brando. - Achei que era melhor deixá-la descobrir as coisas por si própria. - Sabe o que aconteceu ao meu marido e a essa ... essa mulher? Onde é que eles estão?
Demiris olhou Catherine de frente. -Eles foram executados.
Ele viu o sangue escoar-se do rosto dela. Ela emitiu um curto som. De repente, sentiu-se fraca de mais para ficar de pé e afundou-se numa cadeira.
-Eu não...
-Eles foram executados pelo Estado, Catherine. -Mas... porquê?
«Cuidado. Perigo.»
-Porque eles tentaram assassiná-la. Catherine franziu o sobrolho.
-Não percebo. Por que iria o Estado executá-los? Eu estouviva... Ele interrompeu.
- Catherine, as leis gregas são muito severas. E a justiça aqui é rápida. Houve um julgamentopúblico. Uma série de testemunhas declararam que o seu marido e Noelle Page tentaram matá-la. Foram declarados culpados e condenados à morte.
- Custa a acreditar - Catherine deixou-se ficar, atordoada. - 0 julgamento...
Constantin Demiris aproximou-se e colocou uma mão sobre o ombro dela. -Tem de esquecer o seu passado. Eles tentaram fazer-lhe uma coisa terrível, e pagaram por isso. -Ele prosseguiu num tom mais animado
-Acho que Y tutu. Tem alguns planos?
Ela não 0 ouviu. «Larry>•, pensava ela. «0 rosto bonito de Larry, rindo, Os braços de Larry, a voz dele...»
-Catherine...
Ela ergueu o olhar. - Desculpe.
-Tem alguma ideia quanto ao seu fut~~~o?
-Não, eu... eu não sei o que vou fazer. uaponho que podia ficar em Atenas.,.
-Não- disse Demiris firmemente. -Não seria uma boa ideia. Iria trazer-lhe lembranças muito desagradáveis. Sugiro que deixe a Grécia.
- Mas eu não tenho para onde ir.
-Já pensei no caso-disse-lhe Demiris.-Eu possuo escritórios em Londres. Você já trabalhou para um sujeito chamado William Fraser em Washington. Lembra-se disso?
-William...? - E de repente lembrou-se. Fora uma das poucas vezes mais felizes da sua vida.
-Você era assistente administrativa dele, creio. - Sim, eu...
-Podia fazer a mesma coisa para mim em Londres. Ela hesitou,
-Não sei. Não quero parecer ingrata, mas...
- Compreendo. Sei que tudo parece estar a acontecer muito depressa. - disse Demiris num tom compreensivo. - Precisa de tempo para pensar em tudo isto, Porque é que não janta sossegadamente no seu quarto, e amanhã falamos mais?
Pedir-lhe que jantasse no seu quarto foi uma inspiração de última hora. Não podia permitir que a sua mulher se cruzasse com ela. - 0 senhor é muito atencioso -disse Catherine. - E muito generoso. Os vestidos são...Ele bateu ao de leve na mão dela e segurou-a uma fracção mais do que o necessário. -Sinto um enorme prazer.
Ela sentou-se no quarto a ver o sol flamejante pôr-se no Egeu azul numa explosão de cor. «Não vale a penareviver opassado. Há que considerar o futuro. Obrigada Senhor pelo aparecimento de Constantin Demiris.N Ele era a sua tábua de salvação. Sem ele, ela não teria em quem se apoiar. E oferecera-lhe um emprego em Londres. «Aceito?» Os seus pensamentos foram interrompidos por uma pancada na porta.
-0 seu jantar, menina.
Muito depois de Catherine ter saído, Constantin Demiris sentou-se na biblioteca a pensar na conversa que tinham tido, «Noelle.» Apenas umavez navida se havia permitido perder o controlo das suas emoções. Apaixonara-se profundamente por Noelle Page, e ela tornara-se sua amante, Nunca conhecera uma mulher como ela, Ela sabia de arte, música, negócios e tornara-se indispensável. Nada em Noelle o surpreendia. Tudo em Noelle o surpreendia. Ele estava obcecado por ela. Ela era a mulher mais bonita e mais sensual que Demiris tinha conhecido. Abandonara o estrelato para estar a seu lado. Noelle provocava-lhe emoções que nunca antes sentira. Era a sua amante, a sua confidente, a sua amiga. Demiris confiara nela por inteiro, e ela traíram com Larry Douglas. Foi um erro que Noelle pagara com a vida, Constantin Demiris combinara com as autoridades que o seu corpo fosse enterrado no chão do cemitério de Psara, a sua ilha particular no Egeu. Todos observaram que fora um gesto belo e sentimental. De facto, Demiris fizera com que o enterro fosse ali para ter o requintado prazer de caminhar sobre o túmulo da cabra. Na mesinha de cabeceira de Demiris havia uma fotografia de Noelle tirada da época em que atingira a beleza máxima, a olhar para ele e a sorrir. Sorrindo para sempre, congelada no tempo. Mesmo agora, depois de mais de um ano, Demiris era incapaz de deixar de pensar nela. Ela era uma ferida aberta que nenhum médico poderia algum dia curar. «Porquê, Noelle, porquë? Eu dei-te tudo. Eu amava-te, sua cabra. Eu amava-te. Eu amo-te. E depois apareceu Larry Douglas. Ele pagara com aviria. Mas isso não chegava para Demiris. Tinha outra vingança em mente. Uma vingança perfeita. Ele ia divertir-se com a mulher de Douglas como Douglas tinhafeito com Noelle. Depois mandaria Catherine para junto do marido.
-Costa...
Era a voz da mulher. Melina entrou na biblioteca.
Constantin Demiris era casado com Melina Lambrou, uma mulher atraente, originária de uma velha família aristocrática grega. Era alta e de aspecto régio, com uma dignidade inata.
-Costa, quem é a mulher que eu vi na entrada? -A sua voz estava tensa.
A pergunta apánhou-o desprevenido.
- 0 quê? Oh. E uma amiga de um sócio - disse Demiris. -Vai trabalhar para mim em Londres.
- Vi-a num relance. Ela faz-me lembrar alguém. -Ai sim?
- Pois foi. -Melina hesitou. - Lembra-me a mulher do piloto que trabalhava para ti, Mas isso é impossível, claro. Eles mataram-na.
- É verdade - concordou Constantin Demiris. - Eles mataram-na.
Acompanhou com o olhar a saída de Melina. Tinha de ser cuidadoso. Melina não era parva nenhuma. «Eu nunca deveria ter casado com ela», pensou Demiris. «Tinha sido um erro mau...» Dez anos antes, o casamento de Melina Lambrou e ConstantinDemiris agitara os círculos económicos e sociais desde Atenas a Riviera e a Newport com ondas de choque, 0 que fez com que o caso fosse tão excitante é que apenas um mês antes se comprometera a casar com outro homem. Quando criança, Melina Lambrou havia consternado a família com a sua obstinação. Aos dez anos, decidiu que queria ser marinheira. 0 motorista da família encontrou-a no cais, tentando penetrar a bordo de um navio, e foi para casa envergonhada. Aos doze anos, tentou fugir com um circo itinerante. Aos dezassete anos, Melina resignou-se ao seu destino-era bela, fabulosamente rica e a filha de Mihalis Lambrou. Os jornais adoravam escrever sobre ele. Ela era uma figura de um conto de fadas, cujos companheiros eram princesas e príncipes, e durante todo esse tempo, por algum milagre, Melina conseguira permanecer incólume. Melina tinha um irmão, Spyros, que era dez anos mais velho do que ela, e eles adoravam-se. Os pais morreram num desastre de barco quando Melina tinha treze anos, e foi Spyros quem a criou. Spyros protegia-a extremamente - «demasiado», pensava Melina.Quando Melina estava a caminho dos vinte anos, Spyros tornou-se ainda mais desconfiado dos pretendentes de Melina, e examinava cuidadosamente cada candidato à mão da irmã. Nenhum deles se revelava merecedor.
-Tens de ter cuidado-aconselhava ele constantemente a Melina. -És um alvo para todos os caçadores de fortunas do mundo. És nova, rica e bonita, e tens um nome famoso.
-Bravo, meu querido irmão.Isso vai-me servir de grande conforto quando eu tiver oitenta anos e morrer donzela velha.
Não te preocupes, Melina. 0 homem certo há-de aparecer. Chamava-se Conde Vassilis Manos e tinha quarenta e tal anos, um homem de negócios bem-sucedido que vinha de uma velha e distinta famffia grega. 0 conde apaixonara-se pela jovem e bela Melina instantaneamente. A sua proposta surgiu algumas semanas depois de se conhecerem.
-Ele é perfeito para ti-disse Spyros com um ar feliz. -Manos tem os pés bem assentes na terra e está louco por ti.
Melina estava menos entusiasmada.
-Ele não é excitante, Spyros. Quando estamos juntos, ele só fala de negócios, negócios, negócios. Eu gostava que ele fosse mais... mais romântico.
0 irmão disse firmemente:
-0 casamento não é só romance. Tu precisas de um marido que seja sólido e estável, alguém que se dedique a ti.
E Melina foi finalmente persuadida a aceitar a proposta do Conde Manos.
0 conde ficou excitado.
- Fizeste de mim o homem mais feliz do mundo - declarou ele. -Acabo de fundar uma nova companhia. Vou pôr-lhe o nome de Melina International.
Ela teria preferido uma dúzia de rosas. Marcou-se a data do casamento, enviaram-se mil convites e fizeram-se planos minuciosos.
Foi então que Constantin Demiris entrou na vida de Melina Lambrou, Conheceram-se numa das doze ou mais festas de noivado estavam a ser dadas para o par que ia casar-se.
0 anfitrião apresentou-os.
-Esta é Melina Lambrou , Constantin Demiris.
Demiris olhou para ela com os seus cismados olhos negros. - Quanto tempo irão eles deixá-la cá ficar? -perguntou -Perdão?
- Claro que você foi enviada do céu para que soubéssemos o que é a beleza.
Melina riu-se.
- 0 senhor é muito lisonjeiro, senhor Demiris. Ele abanou a cabeça.
-Você está para além da lisonja.
-Nada do que eu dissesse poderia fazer-lhe justiça.
Nesse momento o Conde Manos apareceu e interrompeu a conversa. Nessa noite, mesmo antes de adormecer, Melina pensava em Demiris. Ouvira falar dele, claro. Era rico, era viúvo e tinha a reputação de ser um homem de negócios implacável e um mulherengo compulsivo. «Ainda bem que não estou envolvida com ele», pensou Melina.
Os deuses riam-se.
Na manhã seguinte à festa, o mordomo de Melina entrou na sala onde se tomava o pequeno-almoço.
- Chegou uma encomenda para si, menina Lambrou. Foi entregue pelo motorista do senhor Demiris.
- Entregue-ma, por favor.
«Então o Constantin Demiris pensa que me vai impressionar com o dinheiro dele. Bem, vai apanhar um grande desapontamento. Seja o que for que mandou... uma jóia cara, ou uma antiguidade sem preço... vou devolver imediatamente.»
A encomenda era pequena e rectangular, belamente embrulhada. Curiosa, Melina abriu-a. A carta dizia simplesmente:
«Achei que ia gostar disto. Constantin»
Tratava-se de um exemplar encadernado a couro de Toda Raba de Nikos Kazantzakis, o seu autor preferido. Como é que podia ter sabido?
Melina escreveu um bilhete de agradecimento cortês e pensou: «Pronto Na manhã seguinte, chegou novo embrulho. Desta vez era um disco de Delius, o seu compositor favorito. 0 bilhete dizia:
«Talvez queira ouvir esta música enquanto lê Toda Raba.» Desse dia em diante chegavam prendas todos os dias. As flor, s preferidas, o perfume, a música, os livros. Constantin Demiris dera-se ao trabalho de saber quais eram os gostos de Melina, e ela não podia senão sentir-se lisonjeada pela sua atenção. Quando Melina telefonou a agradecer a Demiris, ele disse; - Nada que eu lhe desse lhe faria justiça. «A quantas mulheres dissera ele o mesmo?» -Almoça comigo, Melina? Ia dizer que não, mas depois pensou: «Não faz nenhum mal almoçar com o homem. Ele tem sido muito atencioso.
-Almoço, sim.
Quando disse ao Conde Manos que ia almoçar com Constantin Demiris, ele objectou.
-Para quê, minha querida? Não tens nada a ver com esse homem terrível. Para quê encontrares-te com ele?
-Vassilis, ele tem-me enviado pequenas ofertas todos os dias, Vou dizer-lhe que pare com isso.
E no momento em que Melina dizia isto, pensou: «Eu podia terlhe dito ao telefone. ConstantinDemiris reservara mesa no popularrestaurante Floca na Rua Panepistimiou e estava à espera de Melina quando ela chegou. Ele pôs-se de pé.
-Já cá está. Receava tanto que pudesse mudar de ideia. - Cumpro sempre a minha palavra.
Ele olhou para ela e disse solenemente.
- E eu cumpro a minha. Eu vou casar-me consigo. Melina abanou a cabeça, meio confusa, meio incomodada.
- Senhor Demiris, eu estou comprometida com outra pessoa. - Com o Manos? -Ele acenou uma mão num gesto de rejeição. -Ele não lhe serve.
- Oh, não ? E porquê?
- Informei-me sobre ele. Há loucura na familia dele, ele é hemofílico, procurado pela polícia por causa de uma queixa de índole sexual em Bruxelas, e é um péssimo jogador de ténis.
Melina não pôde deixar de rir, -E você?
-Eu não jogo ténis.
- Compreendo. E por isso eu devo casar consigo?
- Não. Vai casar-se comigo, porque eu vou fazer de si a mulher mais feliz de sempre.
- Senhor Demiris...
Ele cobriu a mão dela com a sua. - Costa.
Ela retirou a mão.
-Senhor Demiris, eu vim hoje aqui para lhe dizer que pare de enviar-me presentes. Não tenciono voltar a vê-lo.
Ele analisou-a por um longo momento.
- Tenho a certeza de que não é uma pessoa cruel. -Espera que não.
Ele sorriu.
- Óptimo. Então não há-de querer ver o meu coração sofrer. - Duvido de que o seu coração sofra assim tão facilmente. Você tem cá uma reputação.
- Ah, isso foi antes de conhecê-la. Há muito tempo que sonho consigo.
Melina riu-se.
- Juro. Quando era jovem, eu costumava ler sobre a família Lambrou. Você era muito rica e eu era muito pobre. Eu não tinha nada. Vivíamos ao deus-dará. 0 meu pai era estivador nas docas de Piraeus. Eu tinha catorze irmãos e irmãs, e tínhamos que lutar por tudo o que queríamos.
Mesmo não o desejando, ficou sensibilizada. - Mas agora você é rico.
- Sou. Não tão rico quanto vou ser, - 0 que é que o tornou rico?
-Afome. Eu estava sempre com fome. Ainda tenho fome. Ela podia ler a verdade nos seus olhos.
- Como é que você.., como é que você começou? - Quer mesmo saber?
E Melina deu por si a dizer. - Quero mesmo saber.
-Quando eu tinha dezassete anos, fui trabalhar para uma pequena companhia petrolífera no Médio Oriente, As coisas não me estavam a correr bem. Uma noite jantei com um jovem geólogo que trabalhava para uma grande companhia. Pedi um bife nessa noite, e ele pediu apenas sopa, e disse que era porque não tinha os dentes de trás e não tinha dinheiro para mandar fazer uma dentadura. Dei-lhe cinquenta dólares para ele comprar dentes novos. Um mês depois telefonou-me a meio da noite para me dizer que acabara de descobrir um novo depósito de petróleo. Ainda não contara ao patrão. De manhã pus-me a pedir emprestado todos os centavos que pude, e à noite eu tinha comprado opções sobre toda a terra em redor da nova descoberta. Veio a ser um dos maiores depósitos de petróleo do mundo. Melina bebia cada uma das suas palavras, fascinada.
-Isso foi o início. Eu precisava de petroleiros para transportar o meu petróleo, por isso, com o tempo adquiri uma frota. Depois, uma refinaria. Depois uma companhia área.-Ele encolheu os ombros.Não parou mais.
Só muito tempo depois de estarem casados é que Melina descobriu que aquela história do bife era pura ficção. Melina Lambrou não tivera intenção de voltar a ver Constantin Demiris. Mas por uma série de coincidências cuidadosamente preparadas,Demiris conseguiainvariavelmente aparecer namesmafesta, no mesmo teatro ou acontecimento de caridade em que Melina estava presente. E cada vez mais ela sentia o seu magnetismo poderoso. Ao pé dele, Vassilis Manos parecia-detestava admiti-lo, mesmo a si própria - um chato. Melina Lambrou gostava dos pintores flamengos, e quando Caçadores naNeue, de Bruegel, apareceu no mercado, antes que pudesse comprá-lo, Constantin Demiris enviou-lho de presente. Melina ficou fascinada pelo conhecimento excepcional que ele tinha dos seus gostos.
-Não posso aceitar que me dê um presente tão caro-protestou. -Ah, mas não se trata de um presente. Tem de pagá-lo. Jante comigo esta noite.
E ela acabou por concordar, 0 homem era irresistível.
Uma semana depois Melina rompeu o noivado com o Conde Manos.
Quando Melina contou a novidade ao irmão, ele ficou espantado. -Porquê, em nome de Deus? -perguntou Spyros. -Porquê? - Porque me vou casar com Constantin Demiris,
Ele ficou estupefacta.
-Tu deves estar louca. Não podes casar com o Demiris. Ele é um monstro. Ele vai destruir-te. Se...
-Tu estás enganado a respeito dele, Spyros. Ele é um ser maravilhoso. E nós estamos apaixonados. E...
-Tuestás apaixonada-ripostou ele. -Não sei qual é aintenção a dele, mas não tem nada a ver com amor. Sabes qual é a fama dele com as mulheres? Ele...
- Isso pertence ao passado, Spyros. Eu vou ser a mulher dele. E ele não pôde fazer nada para convencer a irmã a desistir do casamento.
Um mês depois, Melina Lambrou e Constantin Demiris estavam casados. No começo parecia um casamento perfeito. Constantin era divertido e atencioso. Era um amante excitante e apaixonado, e constantemente surpreendia Melina com presentes excessivos e viagens por lugares exóticos. Na primeira noite da lua-de-mel, disse:
-A minha primeira mulher nunca foi capaz de me dar um filho, Agora vamos ter muitos rapazes,
-Nenhuma rapariga?
-Se quiseres. Mas primeiro um rapaz.
No dia em que Melina soube que estava grávida Constantin ficou em extâse.
-Ele vai tomar conta do meu império - declarou ele, feliz.
No terceiro mês, Melina abortou. Constantin Demiris estava fora do país quando isto aconteceu. Quando regressou e soube da notícia, reagiu como um louco.
- 0 que é que tu fizeste?- gritou ele. -Como é que pôde acontecer?
- Costa, eu... -Tufoste descuidada! - Não, juro...
Ele respirou fundo.
-Pronto. 0 que está feito está feito. Teremos outro filho.
-Não.., não posso. -Ela não conseguia encará-lo de frente. 0 que é que estás a dizer?
- Sofri uma intervenção cirúrgica. Não posso ter mais filhos. Ele ficou ali, gelado, depois virou-se e saiu a largos passos sem uma palavra.
Apartir desse momento, avida de Melina tornou-se num inferno. Constantin Demiris agia como se a mulher tivesse matado o filho deliberadamente. Ignorava-a, e começou a procurar outras mulheres. Melina podia ter tolerado isso, mas o que tornava a humilhação tão dolorosa era o prazer que ele tinha em alardear publicamente as suas ligações. Tinha abertamente casos com estrelas de cinema, cantoras de ópera e mulheres de alguns dos amigos. Levava as amantes para Psara, a ilha privada que possuía perto de Chios, em cruzeiros no seu iate e a cerimónias públicas. Aimprensa narrava com júbilo as aventuras românticas de Constantin Demiris, Encontravam-se num jantar em casa de um proeminente banqueiro.
-Você e a Melina têm de vir-dissera o banqueiro. -Tenho um novo chefe oriental que faz a melhor comida oriental do mundo.
A lista de convidados era prestigiosa. À mesa do jantar estava um fascinante agrupamento de artistas, políticos e industriais. A comida era de facto maravilhosa. 0 chefe havia preparado uma sopa de barbatana de tubarão, rolos de camaão, carne de porco mu shu, pato de Pequim, costeletas de porco magras, macarrão de Cantão e uma dúzia de outros pratos. Melina estava sentada perto do anfitrião a uma das cabeceiras da mesa, o marido perto da anfïtriã na outra extremidade. À direita de Demiris, sentava-se uma jovem e bela estrela de cinema. Demiris tinha os olhos nela, ignorando todos os outros que estavam à mesa. Melina conseguia ouvir fragmentos da conversa dele.
-Quando acabar o filme, tem de vir dar um passeio no meu iate. Terumas belas férias. Faremos um cruzeiro pela costa da Dalmácia... Melina tentou não escutar, mas era impossível. Demiris não fazia nenhum esforço para baixar a voz,
-Nunca esteve em Psara, pois não? É uma ilhota adorável, completamente isolada. Vai gostar.-Melina sentiu vontade de se enfiar debaixo da mesa. Mas o pior estava ainda para vir.
Tinham acabado de comer o prato das costeletas, e os mordomos traziam taças de prata para lavar os dedos. Ao ser colocada uma taça diante da jovem actriz, Demiris disse: -Você não precisa disso. -E, com um sorriso largo, ergueu as mãos dela com as suas e começou a lamber lentamente o molho que corria nos dedos dela, um a um. Os outros convidados desviaram o olhar. Melina pôs-se de pé e virou-se para a anfitriã.
-Peço desculpa, mas estou ... estou com dores de cabeça.
Os convidados seguiram-na com o olhar enquanto ela saía da sala a toda a pressa. Demiris não foi a casa nessa noite, nem na seguinte.
Quando Spyros soube do incidente, ficou lívido.
-Diz-me só que aprovas. -0 irmão de Melina estava enfurecido -, e eu mato esse filho da puta.
-Ele não consegue evitar-defendeu-o Melina. -Ele é assim mesmo.
- Assim mesmo? Ele é um animal! Ele deve ser morto. -Por que não te divorcias dele?
Era uma pergunta que Melina se perguntara a si própria muitas vezes na quietude das noites longas e solitárias que passava sozinha. E chegava sempre à mesma resposta: «Eu amo-o».
Às cinco e meia da manhã, Catherine foi acordada por uma criada apologética.
-Bom dia, menina...
Catherine abriu os olhos e olhou em volta confusa. Em vez da minúscula cela do convento, estava num belo quarto em... Amemória veio em catadupa. «A viagem para Atenas...Você é Catherine Douglas... Eles foram executados pelo governo...»
-Menina... - Sim?
-0 senhor Demiris perguntou se quer tomar o pequeno-almoço com ele no terraço.
Catherine olhou para ela sonolentamente. Estivera acordada até às quatro horas, o seu pensamento num turbilhão.
-Obrigada. Diga ao senhor Demiris que eu já vou.
Vinte minutas depois um mordomo acompanhava Catherine até um terraço enorme que estava defronte do mar. Havia um muro de pedra baixo que dava para os jardins cinco metros abaixo. Constantin Demiris estava sentado a uma mesa, à espera. Estudava Catherine enquanto ela caminhava na sua direcção. Havia nela uma inocência excitante. Ele ia agarrá-la, possuí-la, torná-la sua. Imaginou-a nua na cama dele, ajudando-o a castigar Noelle e Larry, de novo. Demiris ergueu-se.
-Bom dia. Desculpe-me acordá-la tão cedo, mas tenho de partir para o meu escritório dentro de alguns minutos, e queria ter a oportunidade para uma pequena conversa consigo primeiro.
- Sim, claro -disse Catherine.
Ela sentou-se à enorme mesa de mármore diante dele. 0 sol estava a erguer-se, banhando o mar com mil fulgores.
-0 que é que deseja para o seu pequeno-almoço? Ela abanou a cabeça.
- Estou sem fome.
- Um pouco de café talvez? - Obrigada.
0 mordomo estava a servir o café quente numa chávena de porcelana Belleek.
- Bem, Catherine - começou Demiris. - Pensou na nossa conversa?
Catherine não pensara noutra coisa toda a noite. Não havia nada que a prendesse em Atenas, e ela não tinha outro lugar para onde ir. «Não voltarei para o convento», ela jurou. 0 convite para trabalhar para Constantin Demiris em Londres parecia tentador. «De facto», Catherine admitiu a si própria, «parece excitante. Pode ser o começo de uma nova vida.»
-Sim-disse Catherine-, pensei. - E então?
-Acho ... acho que gostava de tentar. Constantin Demiris conseguiu disfarçar o alívio.
- Fico encantado. Já alguma vez esteve em Londres?
-Não. Isso ... acho que não. -«Porque é que eu não sei ao certo?» Ainda havia tantas lacunas na sua memória. «Quantas surpresas ainda vou ter?»
-É uma das poucas cidades civilizadas que ainda há no mundo. Tenho a certeza de que irá gostar muito.
Catherine hesitou.
- Senhor Demiris, porque é que se está a maçar tanto comigo? -Digamos apenas que sinto um sentido de responsabilidade. - Fezuma pausa. -Fui eu que apresentei o seu marido a Noelle Page. -Ah-Catherine disse lentamente. «Noelle Page.» 0 nome causou-lhe um pequeno arrepio. Os dois haviam morrido um pelo outro. «0 Larry deve tê-la amado tanto»
Catherine esforçou-se para fazer uma pergunta que a atormentara toda a noite.
-Como... como é que eles foram executados? Houve uma pequena pausa.
- Eles foram mortos por um esquadrão de fuzilamento.
-Oh. - Pôde sentir as balas rasgarem a carne de Larry, dilacerando o corpo do homem que ela amara tanto. Arrependeu-se de ter perguntado.
-Deixe-me dar-lhe um conselho. Não pense no passado. Só pode magoá-la. Tem de jogar tudo para trás das costas.
Catherine disse lentamente. - Tem razão. Vou tentar.
- Óptimo. Por acaso tenho um avião que parte para Londres hoje de manhã, Catherine. É capaz de ficar pronta para partir daqui a pouco?
Catherine pensou em todas as viagens que fizera com Larry, os preparativos excitados, o fazer as malas, a antecipação.
Desta vez, não haveria com quem ir, haveria pouco para emalar e nenhuns preparativos.
- Sim. Consigo ficar pronta.
-Óptimo. A propósito-disse Demiris casualmente-,agora que recuperou a memória, talvez haja alguém que gostaria de ver, alguém do seu passado a quem quisesse informar que se encontra bem.
0 nome que nesse instante lhe saltou para amente foi o de William Fraser. Eraaúnicapessoanomundoquerestavado seupassado. Mas ela sabia que não estava pronta para enfrentá-lo agora. ~ Ela não fazia ideia de que acabara de salvar a vida de William Fraser. -Vou arranjar-lhe um passaporte. -Entregou-lhe um envelope. -Isto é um adiantamento por conta do seu salário. Não terá de preocupar-se com alojamento. A companhia tem um apartamento em Londres. Vai ficar lá. Era surpreendente. - 0 senhor é muito generoso. Ele tomou-lhe a mão. - Você acabará por achar que eu... Ele acabou por não dizer no que estava a pensar. «Trata dela com cuidado», pensou. ~ -... que eu sei ser um bom amigo. - 0 senhor é um bom amigo. Demiris sorriu. «Então espera.» Duashoras depois, ConstantinDemiris ajudouCatherine a entrar para o banco traseiro do Rolls Royce que ia levá-la ao aeroporto. -Aproveite o melhor de Londres - disse ele. -Ficarei em contacto consigo. Cinco minutos depois de o carro ter partido, Demiris estava ao telefone com Londres. - Ela vai a caminho. Catherine apressara-se, só para encontrar a recepção de Fraser cheia de dezenas de candidatas ao emprego. «Não tenho hipótese», pensou Catherine. A porta para o gabinete de William Fraser abriu -se, e ele emergiu. Era um homem alto e atraente, com cabelo louro encaracolado, de fontes já acinzentadas, olhos azuis brilhantes e um queixo forte, bastante ameaçador. Voltou-se para a recepcionista. - Preciso de um exemplar da Life. Uma edição que saiu há três ou quatro semanas. Traz uma fotografia de Estaline na capa. -Vou pedi-la, senhor Fraser-disse a recepcionista. -Sally, o senador Borah está na linha. Eu quero ler-lhe um parágrafo dessa edição. Você tem dois minutos para me conseguir uma cópia. - Entrou no gabinete e fechou a porta. As candidatas entreolharam-se e encolheram os ombros. Catherine deixou-se ficar, muito pensativa. Virou-se e saiu do escritório. Ouviu uma das mulheres dizer; - Óptimo. É menos uma. Três minutos depois, Catherine regressou ao escritório com uma cópia antiga da Life, com uma fotografia de Estaline na capa. Entregou-a à recepcionista. Cinco minutos depois Catherine encontrava-se sentada no gabinete de William Fraser. -A Sally disse-me que foi você quem trouxe a revista. -Fui eu, sim. Assumo que não trazia por acaso uma edição com três semanas na carteira. -Pois não. -Como é que a encontrou tão depressa? -Fui lá abaixo à barbearia. As barbearias e os consultórios dos dentistas têm sempre edições antigas espalhadas por lá. -Você é tão inteligente com o resto? -Não sou, não. -Havemos de descobrir isso-disse William Fraser. Estava contratada, Catherine apreciava a excitação de trabalhar para Fraser. Ele era um solteiro rico e social, e parecia conhecer toda a gente em Washington. A revista Time chamara-o «0 solteiro mais elegível do ano». Seismeses depois de Catherine começar atrabalhar para William baser, apaixonaram-se. No quarto dele, Catherine disse; 0 avião estava programado para partir do Aeroporto de Hellenikon às 9.00 da manhã. Era um Hawker Siddeley, e, para surpresa de Catherine, ela era aúnica passageira. 0 piloto, um grego de meia-idade, de rosto agradável chamado Pantelis, tratou de ver se Catherine ia confortavelmente sentada e com o cinto apertado. - Descolaremos dentro de alguns minutos -disse-lhe ele. - Obrigada. Catherine viu-o entrar na cabina para se juntar ao co-piloto, e o coração dela repentinamente começou a bater mais depressa. «Este era o avião que o Larry pilotava. A Noelle Page ter-se-ia sentado no lugar onde eu estou sentada agora?» Catherine de repente sentiu-se como se fosse desmaiar; as paredes começaram afechar-se sobre ela, Fechou os olhos e respirou fundo. «Isso acabou», pensou. «0 Demiris é que está certo. Isso pertence ao passado e nada poderá mudá-lo.» Ouviu o ronco dos motores e abriu os olhos. 0 avião estava alevantar na direcção de noroeste com rumo a Londres. «Quantas vezes tinha Larry feito este voo? Larry.» Ela estava agitada pelo misto de emoções que o seu nome causava, E as lembranças. As maravilhosas e terríveis lembranças... Corria o Verão de 1940, o ano anterior à entrada da América na guerra. Ela acabara de sair da Universidade de Northwestern e fora de Chicago para Washington, D.C., onde arranjara o seu primeiro emprego. A companheira de quarto dissera-lhe: -Sei de um emprego que talvez te interesse, Uma das raparigas da festa disse que se vai despedir para regressar ao Texas. Ela trabalha para o Bill Fraser. Ele é responsável pelas relações públicas do Departamento de Estado. Eu soube disso apenas ontem à noite, portanto, se fores já para lá, deves chegar primeiro do que as outras, - Tenho de te contar uma coisa. Sou virgem. Fraser sacudiu a cabeça admirado. - Isso é incrível. Como é que eu me envolvi com a única virgem da cidade de Washington? Um dia William Fraser disse a Catherine: -A nossa firma foi solicitada para supervisionar um filme de recrutamento do Corpo Aéreo do Exército nos estúdios da MGM em Hollywood, Gostava que te encarregasses do filme enquanto eu estiver em Londres. -Eu? Bill, eu nem sequer sei carregar umaBrownie. Que sei eu sobre um filme de treino? Fraser deu um sorriso largo, mostrando os dentes. - Quase tanto como toda a gente. Não precisas de te preocupar, Eles têm um realizador. Chama-seAllan Benjamin. 0 exército pensa usar actores no filme. - Porquê? -Acho que eles sentem que os soldados não convencem o suficiente para fazerem de soldados. -Isso é mesmo do exército. E Catherine voara para Hollywood para supervisionar o filme de treino. 0 palco estava repleto de figurantes, a maior parte deles de uniformes que não lhes assentavam bem. - Desculpe-me -disse Catherine a um homem que passou por ela. - 0 senhor Allen Benjamin está cá? - 0 cabozinho? - Ele apontou. - Acolá. Catherine virou-se e viu um homem franzino e de aspecto frágil num uniforme com divisas de cabo. Gritava com outro que usava estrelas de almirante. - Estou-me marimbando para o que disse o director do elenco. Estou farto de generais. Preciso de oficiais subalternos. Ergueu as mãos em desespero. - Querem todos ser chefes, ninguém quer ser índio. -Desculpem-me interromper-disse Catherine. -Sou Catherine Alexander. -Graças a Deus!-disse o homenzinho, -Você é que toma conta disto. Não sei o que estou a fazer aqui. Eu tinha um emprego de trinta e cinco mil dólares ao ano em Dearborn para dirigir uma revista de mobiliário e negócios, e fui recrutado para o Corpo de Sinaleiros e mandaram-me para aqui escreverfilmes de treino. Que sei eu sobre produção e direcção de filmes? -Fique com tudo isto. -Voltou-se e apressou-se para a saída, deixando Catherine ali. Um homem esguio, de cabelo grisalho e de camisola, aproximou-se dela, com um sorriso divertido no rosto. - Precisa de ajuda? -Preciso de um milagre-disse Catherine.-Estou à frente disto, e não sei quais são as minhas funções. Ele deu-lhe um sorriso aberto. -Bem vinda a Hollywood. Chamo-me Tom O'Brien, realizador assistente, -Acha-se com capacidade para realizar isto? Ela viu o canto da boca contorcer-se. -Podia tentar. Fiz seis filmes com o Willie Wyler. A situação não é tão má quanto parece. Tudo o que é preciso é um pouco de organização. 0 argumento está escrito, e o cenário está pronto. Catherine deu uma vista de olhos pelo palco. -Algumas destas fardas têm um péssimo aspecto. Vamos ver o que podemos fazer para as melhorar. O'Brien abanou a cabeça num tom aprovador. -Certo. Catherine e O'Brien foram aproximar-se do grupo de figurantes. A barulheira da conversa sobre o palco enorme era ensurdecedora. -Vamos baixar a voz, rapazes -gritou O'Brien. - Temos aqui Catherine Alexander. É quem vai mandar aqui. Catherine disse: -Vamos alinhar, de modo a podermos olhar bem para vocês. OBrien formou os homens numa fila desalinhada. Catherine ouviu gargalhadas e vozes por perto e voltou-se irritada. Um dos homens fardados estava num canto, sem prestar atenção, a falar com umas raparigas muito atentas ao que ele dizia e dando risinhos. Os modos do homem irritaram Catherine. -Desculpe. Importava-se de se juntar a nós? Ele voltou-se e perguntou, preguiçosamente: - Está a falar comigo? - Estou. Nós queríamos começar a trabalhar. Ele era extraordinariamente bonito, alto e vigoroso, com cabelo negro azulado e olhos escuros tempestuosos. A farda assentava-lhe perfeitamente. Sobre os ombros havia uns galões de capitão, e sobre o peito tinha pregado umamancha defitas brilhantemente coloridas. Catherine olhou-as fixamente. -Essas medalhas...? -Impressionam bastante, chefe?-Avoz eraprofunda e cheia de divertimento insolente. - Tire-as. - Porquê? Achei que iam dar ao filme um pouco de cor. - Esqueceu-se de um pequeno pormenor, A América ainda não está em guerra. Só as poderia ter ganho nalgum carnaval. -Tem razão - admitiu ele acanhadamente. - Não pensei nisso. Vou tirar algumas. -Vai tirar todas -ripostou Catherine. Depois da filmagem da manhã, enquanto Catherine almoçava na intendência, ele foi até à mesa dela. -Queria perguntar-lhe como é que eu me portei esta manhã. Fui convincente? Os modos dele enfureceram-na. -Você gosta de usar aquela farda e pavonear-se ao pé das raparigas, mas já pensou em alistar-se? Ele parecia chocado. - Elevar um tiro? Isso é para idiotas. Catherine estava pronta a explodir. -Eu acho que você é desprezível. - Porquê? - Se você não sabe porquê, eu nunca lhe poderia explicar. -Porque é que não tenta? Hoje ao jantar. Na sua casa. Cozinha? - Não se dê ao trabalho de voltar às filmagens - ripostou Ca therine. -Vou dizer ao senhor O'Brien que lhe envie o seu cheque para pagar esta manhã de trabalho. Como é que se chama? Douglas. Larry Douglas. A experiência com o jovem actor arrogante exasperou Catherine, e ela estava determinada a esquecer o incidente. Por alguma razão, ela estava com dificuldades em esquecê-lo. Quando Catherine regressou a Washington, William Fraser disse-lhe -Tive saudades tuas. Tenho pensado muito em ti. Amas-me? -Muito, Bill. -Eu também te amo. Porque não saímos esta noite para comemorar? Catherine sabia que era essa a noite em que ele ia pedir-lhe a mão. Foram ao exclusivo Jefferson Club. A meio do jantar, Larry Douglas entrou, usando ainda a farda do Corpo Aéreo do Exército com todas as medalhas, Catherine observava incredulamente enquanto ele caminhava até à mesa deles e cumprimentou não a ela, mas a Fraser. Bill Fraser levantou-se. - Cathy, este é o capitão Lawrence Douglas. Larry, esta é a Catherine Alexander. 0 Larry voa na RAF. Ele era o líder da esquadrilha americana. Convenceram-no a chefiar uma base de caças em Washington para preparar alguns dos nossos rapazes para combate. Como a reposição de um filme antigo, Catherine lembrou-se da ordem que lhe dera para que ele tirasse os galões e medalhas, e como ele alegremente cumprira. Elafora presunçosa, autoritária-e chamara-o de cobarde! Só teve vontade de se esconder debaixo~da mesa. No dia seguinte, Larry Douglas telefonou a Catherine para o escritório. Ela recusou aceitar as chamadas dele. Quando ela saiu do escritório, ele estava lá fora, à espera dela. Tirara as medalhas e as fitas e usava os galões de segundo-tenente. Ele sorriu e caminhou até ela. -Assim está melhor? Catherine ficou a olhar para ele. - 0 uso de insígnias indevidas não é contra os regulamentos? - Não sei. Pensei que você é que mandava nisto tudo. Ela olhou nos olhos e sabia que estava perdida. Havia nele uma força magnética que era irresistível. - 0 que é que quer de mim? -Tudo. Quero-a a si. Foram para o apartamento dele e fizeram amor. E foi uma alegria intensa que Catherine nunca pensara ser possível, uma aproximação fantástica que balançou o quarto e o universo-até que houve uma explosão que se tornou um delírio extasiante, umaviagem esmagadora e inacreditável, uma partida e uma chegada, um fim e um começo. E ela ficara ali deitada, exausta e entorpecida, abraçando-o com força, não querendo largá-lo, não querendo que esta sensação desaparecesse. Casaram-se cinco horas mais tarde no estado de Maryland. Agora, sentada no avião, a caminho de Londrespara começaruma nova vida, Catherine pensava: <~Fomos tão felizes. 0 que é que correu mal? Os filmes românticos e as canções de amor levaram-nos a todos a acreditar em finais felizes e cavaleiros de armaduras brilhantes e no amor que nunca, nunca morria. Nós realmente acreditámos que James Stewart e Donna Reed tiveram Uma Vida Maravilhosa, e sabíamos que Clark Gable e Claudette Colbert ficariam juntos para sempre depois de Aconteceu Uma Noite, e derramámos lágrimas quando Frederick March voltou para Myrna Loy por causa de OsMelhores Anos das Nossas Vidas, e tínhamos a certeza de que Joan Fountaine encontrou a felicidade nos braços de Laurence Olivier em Rebecca. E eram mentiras. Tudo mentiras. E as canções.l'llBe Loving You, alcuays.Como é que os homens medem o sempre? Com um relógio para cozer ovos? Hocu Deep Is the Ocean? Que tinha IrvingBerlin em mente? Meio metro? Um metro? E...Forever a Day. Vou-me embora. Quero o divórcio. Some Enchanted Evening. Nós vamos subir o Monte Tzoumerka...You and theNight and the Music. 0 gerente do hotel falou-me de umas caves aqui perto...(1 Love You) for Sentimental Reasons. Nunca ninguém... agora, enquanto ela está a dormir.Be My Love. E ouvimos as canções e vimos os filmes e pensámos realmente que era assim que a vida ia ser. Eu tinha tanta fé no meu marido. Poderei acreditar assim em alguém outra vez? Que fiz eu para que ele me quisesse assassinar?» -Senhorita Alexandre... Catherine olhou para cima, assustada, desfocada. 0 piloto estava ao pé dela. -Já aterrámos. Bem-vinda a Londres. Havia uma limusina à espera de Catherine no aeroporto. 0 motorista disse: -Eu encarrego-me da sua bagagem, menina Alexandrr. 0 meu nome é Alfred. Gostava de ir directamente para o apartamento? HO meu apartamento.» - Sim, será óptimo. Catherine afundou-se nas costas do banco. Inacreditável. Constantin Demiris proporcionara-lhe um avião particular e um lugar para morar. Ou ele era o homem mais generoso do mundo, ou... Ela simplesmente no conseguia pensar noutra alternativa. «Não. Ele é o homem mais generoso do mundo. Terei de achar um modo conveniente de mostrar o meu agradecimento.~> 0 apartamento, na Elizabeth Street nas imediações de Eaton Square, era totalmente luxuoso. Consistia de uma entrada enorme, uma sala de estar muito bem mobilada com um candelabro de cristal, umabiblioteca com paredes almofadadas, uma cozinhacheia de comida, três quartos atraentemente mobilados e instalações para os criados. Catherine foi cumprimentada à porta por uma mulher de quarenta e tal anos vestida de preto. -Boa tarde, menina Catherine. Chamo-me Anna. Sou a sua governanta. Claro. A minha governanta.p Catherine começou a aceitar tudo sem dificulade. -Muito prazer. 0 motorista trouxe as malas de Catherine e colocou-as no quarto de dormir. -A limusina está à sua disposição-disse lhe. -Basta apenas dizer à Anna quando estiver pronta para ir para o escritório, e eu venho buscá-la. «A limusina está à minha disposição. Naturalmente.u -Obrigada-disse Anna. -Vou desfazer as suas malas. Se precisar de mais alguma coisa, é só dizer-me. -Acho que não preciso de nada-disse Catherine honestamente. Catherine deambulou pelo apartamento até Anna acabar de dêsfazer as malas. Entrou no quarto e olhou para os belos vestidos novos que Demiris lhe comprara, e pensou: «Tudo isto parece um sonho maravilhoso.» Sentiu-se repentinamente cansada. Deitou-se na cama macia e confortável. «Vou só descansar um pouco», pensou. Fechou os olhos. Estava a afogar-se e a gritar por socorro. E Lorry nadava em direcção a ela, e quando a alcançou empurrou-a para debaixo da água. E ela estava numa gruta escura, e os morcegos atiravam-se a ela, puxando-lhe o cabelo, batendo as suas asas frias e húmidas contra o seu rosto. Catherine acordou com um sobressalto e sentou-se na cama, a tremer. Respirou fundo várias vezes para se recompor. «Chega», pensou. «Acabou. Isso foi ontem. Hoje é hoje. Ninguém te vai fazer mal. Ninguém. Já chega » Fora do quarto de Catherine, Anna, a governanta, escutara os gritos. Esperou um momento, e quando houve silêncio foi até ao hall e pegou no telefone para informar Constantin Demiris. ACorporaçãoHelénica de Comércio estava situada no número 217 da Bond Street, nas imediações de Picadilly, num velho edifício do governo, que fora transformado anos antes em edifício de escritórios. 0 exterior do prédio era uma obra-prima de arquitectura, elegante e graciosa. Quando Catherine chegou, o pessoal do escritório estava à sua espera, Havia meia dúzia de pessoas perto da porta para cumprimentá-la. -Bem-vinda, Miss Alexander. Sou Evelyn Kaye. Este é o Carl... o Tucker.., o Matthew,... a Jennie... Os nomes e os rostos tornaram-se numa mancha. -Prazer em conhecê-los. -0 seu gabinete está pronto para recebê-la. Vou mostrar-lhe o caminho, - Obrigada. Asala de recepção estava mobilada com gosto, com um grande sofá Chesterfield, flanqueado por duas cadeiras Chippendale e uma tapeçaria. Percorreram um longo corredor alcatifado e passaram p,:r uma sala de conferências com pesadas cadeiras de pinho e couro alinhadas em redor de uma mesa chéia de lustro. Catherine foi conduzida para um gabinete atraente com mobffia usada e confortável e uma poltrona de cabedal. -E todo seu. -É lindíssimo-murmurou ela. Havia flores frescas na secretária. - Do senhor Demiris. «Ele é tão atencioso.» Evelyn Kaye, a mulher que a conduzira até ao gabinete, era uma pessoa de meia-idade corpulenta com um rosto agradável e um modo tranquilo. -Vai precisar de alguns dias para se habituar ao lugar, mas as funções são realmente bastante simples. Somos um dos centros nevrálgicos do império de Demiris. Coordenamos os relatórios das di visas ultramarinas e enviamo-los para o quartel-general emAtenas. Eu sou a gerente do escritório, Você será a minha assistente. - Oh. «Então eu sou a assistente da gerente.» Catherine não tinha ideia do que esperavam dela. Fora lançada num mundo de fantasia. Aviões particulares, limusinas, um belo apartamento com criados... -Wim Vandeen é o nosso génio matemático residente. Ele faz a computadorização de todas as declarações e põe-as num mapamestre de análise fïnanceira. A mente dele trabalha mais depressa do que a maior parte das máquinas calculadoras. Venha até ao gabinete dele conhecê-lo. Desceram o corredor até um gabinete que ficava no fim do hall. Evelyn abriu a porta e ficou ali, concentrada. Wim Vandeem parecia ter pouco mais de trinta anos, um homem magro com uma boca de maxilares frouxos e uma expressão apática e aérea. Estava a olhar para o chão. -Wim, Wim! Esta é Catherine Alexander. Ele olhou para cima. - 0 verdadeiro nome de Catarina I era Marta Skowronka, era uma criada nascida em 1684 que foi capturada pelos russos, casou com Pedro I e foi imperatriz da Rússia de 1725 a 1727; Catarina a Grande era afilha de um príncipe alemão, nasceu em 1729 e casou-se com Pedro, que se tornou o Imperador Pedro III em 1762, e ela sucedeu-lhe no trono no mesmo ano depois de o mandar matar. Durante o seu reinado houve três divisões da Polónia e duas guerras contra a ~rquia... Ainformação brotava como uma fonte, num tom monótono. Catherine escutava, espantada. -Isso .., isso é muito interessante-logrou ela. Wim Vandeem desviou o olhar. Evelyn disse: -0 Wim fica envergonhado quando conhece alguém. «Envergonhado?» pensou Catherine. «0 homem é esquisito. E ele é um génio? Que tipo de emprego vai ser este?» Em Atenas, nos seus escritórios daRuaAghiou Geronda, Constantin Demiris recebia um relatório pelo telefone enviado por Alfred de Londres. - Levei a menina Alexander directamente do aeroporto para o apartamento, senhor Demiris. Perguntei-lhe se queria que a levasse a algum lugar, como o senhor sugeriu, e ela disse que não. -Ela não teve quaisquer contactos com o exterior? -Não, senhor. Anão ser que tenhafeito alguma chamada do aeroporto. Constantin Demiris não estava preocupado com isso. Anna, a governanta, informá-lo-ia. Voltou a colocar o auscultador, satisfeito. Ela não apresentava nenhum perigo imediato para ele, que trataria de mantê-la sob vigilância. Ela estava sozinha no mundo. Não tinha para quem se voltar excepto o seu benfeitor, Constantin Demiris. «Tenho de me preparar para ir para Londres em breve», pensou Demiris com um ar feliz. «Muito em breve. Catherine Alexander achou o seu novo emprego interessante. Chegavam relatórios diários do vasto império de Constantin Demiris. Havia conhecimentos de embarque de uma siderurgia no estado de Indiana, auditorias de uma fábrica de automóveis na Itália, facturas de uma cadeia de jornais na Austrália, uma mina de ouro, uma companhia de seguros, Catherine conferiu os relatórios e cuidoupara que a informação seguisse directamente para Wim Vandeem. Wim olhou de relance para os relatórios uma vez, inseriu-os no incrível computador que era o seu cérebro, e quase instantaneamente calculou as percentagens de lucro ou prejuízo para a companhia. Catherine gostou de travar conhecimento com os seus novos colegas, e ficou pasmada pela beleza do velho edifício em que trabalhava. Disse-o uma vez a Evelyn Kate na frente de Wim, e Wim disse: -Isto era uma alfândega concebidapor Sir ChristopherWren em 1721. Depois do grande incêndio de Londres, ChristopherWren rede senhou cinquenta igrejas, incluindo as de São Paulo, São Miguel e Santa Brígida. Projectou a Bolsa Real e a Casa de Buckingham. Ele morreu em 1723 e está sepultado na Catedral de São Paulo. Este edifício foi convertido em escritórios em 1907, e na Segunda Guerra Mundial, durante Blitz, o governo declarou-a como abrigo antiaéreo oficial. 0 abrigo antiaéreo era uma sala enorme à prova de bala, localizada do outro lado de uma pesada porta de ferro contígua à cave. Catherine foi ver a sala pesadamente fortificada e pensou nos bravos homens, mulheres e crianças britânicos que encontraram abrigo ali durante o terrível bombardeamento levado a cabo pela Luftwaí% de Hitler. A cave em si era enorme, ocupando toda a extensão do edifício. Tinhauma caldeira grande para aquecer todo o edifício, e estava cheia de equipamento telefónico e electrónico. A caldeira era um problema. Várias vezes Catherine tinha acompanhado um técnico até à cavepara dar uma vista de olhos. Todos eles a consertavam, declaravam-na arranjada daquilo que a importunava e iam-se embora. -Parece tão perigosa-disse Catherine. -Há alguma hipótese de explodir? -Nem pensar, minha senhora. Está a ver esta válvula de segurança aqui? Bem, se a caldeira alguma vez aquecer de mais, a válvula de segurança liberta todo o excesso de vapor, e volta tudo ao normal. Não há problema. Quando o dia de trabalho chegava ao fim, havia Londres, Londres... uma cornucópia de maravilhas do teatro, do bailado e dos concertos. Havia interessantes livrarias antigas como as de Hatchard e Foylee dúzias de museus, pequenas lojas de antiguidades e restaurantes. Catherine visitava as lojas de litografias em Cecil Court e fazia compras nos Harrods, Fortnum e Mason, Marks e Spencer e tomou chá de domingo no Savoy. De tempos a tempos, pensamentos espontâneos assaltavam a mente de Catherine. Havia tantas coisas que a faziam lembrar de Harry. Uma voz.., uma expressão... uma colónia... uma canção. «Não. 0 passado acabou. 0 futuro é o que importa.» E cada dia ela tornava-se mais forte. Catherine e Evelyn Kaye tornaram-se amigas e ocasionalmente saíam juntas. Certo domingo visitaram a exposiço de arte ao ar livre na margem do Tamisa. Havia lá dezenas de artistas, jovens e velhos, expondo os seus quadros, e todos eles tinham uma coisa em comum: eram falhados porque não conseguiram expor os seus trabalhos em nenhumagaleria. Os quadros eramhorríveis. Catherine comprouum por simpatia. - Onde é que vais colocá-lo? - perguntou Evelyn. -No quarto da caldeira-disse Catherine. Quando caminhavam ao longo das ruas de Londres depararam com os artistas dos passeios, homens que usavam giz colorido para pintar nas pedras dos passeios. Havia trabalhos espantosos: os transeuntes paravam para adurirá-los e depois lançavam algumas moedas aos artistas, Certa tarde, quando regressava do almoço, Catherine paroupara observar umhomemidoso que fazia uma bela paisagem a giz. Quando estava a acabá-la, começou a chover, e o velho ficou alia ver o seu trabalho desaparecer. «É muito idêntico à minha vida», pensou Catherine. Evelyn levou Catherine ao Mercado Shepherd. - É uma área interessante -prometeu Evelyn. Era certamente cheia de vida. Havia um restaurante com trezentos anos de nome Tiddy Dolls, uma banca de revistas, um mercado, um salâo de beleza, uma padaria, lojas de antiguidades e velhas residências de dois e três pisos. As chapas de identificação das caixas do correio eram peculiares. Uma dizia «Helen» e por baixo «Lições de Francês». Outra dizia «Rosie» e por baixo «Aqui ensina-se Grego». - Isto é uma área escolar? -perguntou Catherine. Evelyn riu-se em voz alta. - De certo modo acho que é. Só que o tipo de educação que estas raparigas dão não se pode ensinar na escola. Evelyn riu-se ainda mais alto quando Catherine corou. Catherine estava sozinha a maiorparte do tempo, mas mantinha-se ocupada de mais para se sentir solitária. Mergulhava nos dias como se estivesse a tentar compensar os momentos preciosos da vida que lhe foram roubados. Recusou preocupar-se sobre o passado ou o futuro. Visitou o Castelo de Windsor e a Cantuária com a sua bela catedral e Hampton Court. Aos fins-de-semana ia para o campo e instalava-se em pequenas e graciosas estalagens, e davalongos passeios pelos campos. «Estou viva>~, pensou. «Ninguém nasce feliz. Todos temos que construíra nossa própria felicidade. Eu souuma sobrevivente. Soujovem e sou saudável, e vão acontecer coisas maravilhosas.» Na segunda-feira voltava para o trabalho. Para junto de Evelyn, das outras raparigas e de Wim Vandeem. Wim Vandeem era um enigma. Catherine nunca conhecera ninguém como ele. Haviavinte empregados no escritório, e sem se dar ao trabalho de usar uma calculadora Wim Vandeem lembrava-se do salário de todos os empregados, do número da segurança social e dos descontos. Embora tudo isto estivesse arquivado, ele tinha todos os registos na cabeça. Sabia todo 0 movimento mensal financeiro de cada divisão e qual a comparação com osmeses anteriores, desde os últimos cinco anos, quando começara a trabalhar na companhia. Wim Vandeen lembrava-se de tudo quanto vira, ouvira ou lera. 0 âmbito do seu conhecimento era incrível. As questões mais simples sobre qualquer assunto disparariam uma torrente de informação, e no entanto ele era anti-social. Catherine falava dele com Evelyn. -Eu não consigo entender o Wim. - 0 Wim é um excëntrico - disse Evelyn. - Tens de aceitá-lo como ele é. 0 negócio dele são números. Não me parece que se preocupe com as pessoas. -Ele tem amigos? -Não. -Ele tem encontros? Quer dizer, sai com raparigas? - Não. Parecia a Catherine que Wim estava isolado e sozinho, e ela sentiu uma afinidade com ele. 0 âmbito dos conhecimentos de Wim surpreendia Catherine. Certa manhã, ela começou a ficar com dor de ouvidos. Wim disse asperamente - 0 tempo não vai ajudar. É melhor ir a um otorrino. -Obrigada, Wim. Eu... - As partes do ouvido são o aurículo, o meato auditivo, a membrana timpânica, a cadeia de ossículos ( martelo, bigorna e estribo) a cavidade timpânica, o canal semicircular, a janela oval, e a trompa de eustáquio, o nervo auditivo e o caracol. -E afastou-se. Noutro dia, Catherine e Evelyn levaram Wim a almoçar ao Ram's Head, um pub na zona. Na sala das traseiras, os clientes lançavam o dardo. - Você gosta de desporto, Wim? - perguntou Catherine. - Já alguma vez viu um jogo de basebol? -Basebol-disse Wim. -Uma bola de basebol tem vinte e cinco centímetros e quarenta milímetros de circunferência. É feita de fio enrolado sobre um cone de borracha dura com cabedal branco. 0 taco é geralmente feito de cinza, com o máximo de cinco centímetros e quarenta e um milímetros no diâmetro maior e o máximo de um metro e seis centímetros de comprimento. «Ele sabe as estatísticas todas«, pensou Catherine, «mas terá alguma vez sentido a excitação de tê-lo jogado de facto?» - Já alguma vez praticou algum desporto? Basquetebol, por exemplo? - 0 basquetebol é jogado num piso de madeira ou cimento. A bola tem uma cobertura de cabedal esférica com setenta e oito centímetros e setenta e quatro milímetros de circunferência, enchida de ar com uma bexiga de borracha à pressão de treze libras. Pesa entre cinco quilos e setecentos gramas e seis quilos e duzentos e trinta e sete gramas. 0 basquetebol foi inventado por James Naismith em 1891. Catherine obteve a resposta, Às vezes Wim podia ser um embaraço em público. Certo domingo, Catherine e Evelyn levaram Wim a Maidenhead, no Tamisa. Pararam na Compleat Angler para almoçar. 0 criado aproximou-se da mesa. -Temos bivalves frescos hoje. Catherine voltou-se para Wim. -Gosta de bivalves? Wim disse: -Há bivalves compridos, amêijoas ou bivalves redondos, navalhas, mexilhões, de uma só concha, e bivalves de sangue. 0 criado estava a olhar fixamente para ele. - 0 senhor não se importa de pedir o que deseja? -Não gosto de bivalves-ripostou Wim. Catherine gostava das pessoas com quem trabalhava, mas Wim tornou-se especial para ela. Ele era inteligente de mais para a sua compreensão, e ao mesmo tempo parecia retirado e solitário. Catherine disse a Evelyn um dia: -Não há nenhuma hipótese de o Wim levar uma vida normal? Vir a apaixonar-se e casar-se? Evelyn suspirou. -Eu já te disse. Ele não tem emoções. Ele nunca se ligará a ninguém. Mas Catherine não acreditava nisso. Por uma ou duas vezes, ela apanhara um lampejo de interesse-de afeição, de riso nos olhos de Wim, e ela sentiuvontade de puxar-lhepelalíngua, ajudá-lo. Oufora imaginação dela? Um dia, o pessoal do escritório recebeu um convite para um baile de caridade que ia realizar-se no Savoy. Catherine entrou no gabinete de Wim. - Wim, você sabe dançar? Ele fitou-a. -Um compasso e meio de música quatro-quatro-tempo perfaz uma unidade rítmica no fox-trot.Ohomem começa o passo básico com o pé esquerdo e dá dois passos para a frente. A mulher começa com o pé direito e dá dois passos para trás. Os dois passos lentos são seguidos por um passo rápido em ângulo recto para os passos lentos. Para a inclinação, o homem dá um passo em frente sobre o pé esquerdo e inclina-se lentamente, depois move-se para a frente no pé direito, lentamente. Depois move-se para a esquerda com o pé esquerdo, rápido. Depois aproxima o pé direito ao esquerdo, rápido. Catherine ficou parada, sem saber o que dizer. Ele sabe todas as Palavras, mas não conhece o significado delas. Constantin Demiris telefonou. Era já tarde, e Catherine preparava-se para se deitar. - Espero não tê-la incomodado. É Costa quem fala. -Não, claro que não. Estava feliz par ouvir a voz dele. Sentia saudades de falar com ele, de lhe pedir conselhos. Afinal de contas, ele era a única pessoa do mundo que realmente conhecia o passado dela. Ela sentiu como se ele fosse um velho amigo. - Tenho pensado em si, Catherine. Receava que pudesse achar Londres um lugar solitário. Afinal de contas, você não conhece ninguém aí. - Por vezes, sinto-me de facto sozinha -Catherine admitiu. -Mas estou a enfrentar. Lembro-me sempre do que me disse. Esquecer o passado, viver o futuro. -Isso mesmo. Por falar no futuro, vou estarem Londres amanhã. Gostaria de levé-la a jantar. -Eu gostava muitíssimo -disse Catherine entusiasticamente. Ela ansiava por isso. Teria uma oportunidade de lhe dizer como lhe estava grata. Quando Constantin Demiris pousou o auscultador, sorriu para si próprio. «A perseguição começou.» Jantaram no Ritz. A sala de jantar era elegante e a comida estava deliciosa, mas Catherine estava demasiado excitada para prestar atenção a alguma coisa que não fosse o homem que se sentava à sua frente. Ela tinha tanto para lhe contar, -Você tem um pessoal de escritório maravilhoso-disse Catherine. 0 Wim é espantoso. Nunca vi ninguém que pudesse.,. Mas Demiris não estava a prestar atenção às palavras. Estava a estudá-la, pensando como ela era tão bela e tão vulnerável. «Mas eu não devo precipitá-la», decidiu Demiris. «Não, vou fazer o jogo com calma para saborear a vitória. Esta será em tua homenagem, Noelle, e do teu amante.» -Vaificar muito tempo em Londres?-Catherine estava a perguntar. -Apenas um ou dois dias. Eu tinha um assunto para tratar. Eraverdade. Mas ele sabia que podiatê-lo resolvido pelo telefone. Não, ele viera a Londres para começar a sua campanha de aproximar Catherine mais dele, de torná-la emocionalmente dependente de si. Inclinou-se para a frente. -Catherine, já lhe falei do tempo em que trabalhei nos campos de petróleo na Arábia Saudita...? Demiris levou Catherine a jantar na noite seguinte. -A Evelyn disse-me que você está a fazer um trabalho óptimo no escritório. Vou dar-lhe um aumento. -0 senhor tem sido tão generoso-Catherine protestou.-Eu... Demiris olhou-a nos olhos. -Você não sabe como eu posso ser generoso. Catherine ficou embaraçada. «Ele está apenas a ser gentilu, pensou ela. «No posso imaginar coisas. No dia seguinte, Demiris estava pronto para partir. - Gostaria de ir até ao aeroporto comigo, Catherine? - Gostava. Ela achava-o fascinante, quase enfeitiçados. Era divertido e brilhante, e ela sentia-se lisonjeada pela sua atenção. No aeroporto, Demiris beijou Catherine ao de leve no rosto. -Estou feliz porque pudemos passar algum tempo juntos, Catherine. -Também eu. Obrigada, Costa. Ela deixou-se ficar a ver o avião dele levantar voo. «Ele é muito especial», pensou Catherine. «Vou sentir saudades dele,» Não havia ninguém que tivesse ficado espantado com a aparente amizade íntima entre Constantin Demiris e o cunhado, Spyros Lambrou. Spyros Lambrou era quase tão rico e poderoso quanto Demiris. Demiris possuía a maiorfrota de cargueiros do mundo; Spyros Lambrou possuía a segunda maior. Constantin Demiris controlava uma cadeia de jornais e linhas aéreas, campos petrolíferos, siderurgias e minas de ouro; Spyros Lambrou tinha companhias de seguro, bancos, quantidades enormes de propriedades imobiliárias e uma fábrica de produtos químicos. Pareciam concorrentes amigos; mais do que isso, companheiros. -Não é maravilhoso-diziam as pessoas-quedois doshomens mais poderosos do mundo sejam tão amigos? Na realidade, eles eram rivais implacáveis que se desprezavam. Quando Spyros Lambrou comprouum iate de trintametros, Constantin Demiris de imediato encomendou um iate de 45 metros com quatro diesels G.M., uma tripulação de treze elementos, duas lanchas rápidas e uma piscina de água doce. Quando a frota de Spyros Lambrou atingiu um total de doze petroleiros, com umatonelagem de200 000, ConstantinDemiris aumentou a sua própria frota para vinte e três petroleiros, com uma tonelagem de 650 000. Spyros Lambrou adquiriu uma série de cavalos de corrida, e Demiris comprou uma cavalaria maior para correr contra ele, e consistentemente ganhou. Os dois homens encontravam-se frequentemente, pois desempenhavam funções juntos em comités de caridade, faziam parte da administração de várias corporações, e ocasionalmente frequentavam reuniões de família. Eram exactamente o oposto em temperamento. Enquanto Constantin Demiris tinha vindo da sarjeta e subira a pulso até ao topo, Spyros Lambrou nasceu aristocrata. Era um homem magro e elegante, sempre impecavelmente vestido, com modos corteses e do Velho Mundo. Conseguiu seguir o rasto da sua árvore genealógica até Otto da Baviera, que fora em tempos rei da Grécia. Durante as primeiras sublevações políticas na Grécia, uma pequena minoria, a oligarquia, fez fortunas no comércio, transportes e terras. 0 pai de Spyros Lambrou foi um deles, e Spyros herdara o seu império. No decurso dos anos, Spyros Lambrou e Constantin Demiris levaram por diante a sua charada de amizade. Mas cada um estava convicto de que no fim cada um destruiria o outro, Demiris por causa do seu instinto de sobrevivência, Lambrou por causa do tratamento que o cunhado dava a Melina. Spyros Lambrou era um homem supersticioso. Apreciava a sua sorte na vida, e tudo fazia para não contrariar os deuses. De tempos a tempos consultava médios para pedir orientação. Era assaz inteligente para reconhecer as fraudes, mas houve uma médio que ele achara excepcional, Ela previra o aborto da irmã, o que aconteceria ao casamento, e uma dúzia de outras coisas que vieram a acontecer. Vivia em Atenas. Chamava-se Madame Piris. Constantin Demiris tinha o hábito de chegar aos seus escritórios da Rua Aghiou Geronda todas as manhãs pontualmente às seis horas. Quando os seus rivais começavam a trabalhar, já Demiris conduzira várias horas de negócios com os seus agentes numa dúzia de países. 0 gabinete particular de Demiris era espectacular. A vista era magnífica, com j anelas panorâmicas que punham a cidade de Atenas aos seus pés. 0 pavimento era de granito preto. Nas paredes havia uma colecção de arte cubista, com Légers, Braques, e meia dúzia de Picassos. Havia uma enorme secretária de vidro e uma cadeira-trono de cabedal. Sobre a secretária estava uma máscara da morte de Alexandre o Grande, incrustada em cristal, A inscrição em baixo dizia: <•Alexandros. 0 defensor do homem.» Nesta manhã particular, o telefone privado de Constantin Demiris estava a tocar quando entrou no escritório. Havia apenas meia dúzia de pessoas que tinham acesso a este número. Demiris levantou o auscultador. -Kalimehra. - Kalimehra. A voz no outro lado pertencia ao secretário particular de Spyros Lambrou, Nikos Veritos. Parecia nervoso. -Peçoimensadesculpaporestaraincomodá-lo, senhorDemiris. 0 senhor disse-me para ligar quando eu tivesse alguma informação que o senhor pudesse... - Sim. 0 que é? -0 senhor Lambrou está a pensar adquirir uma companhia chamada Aurora International. Está cotada na Bolsa de Valores de Nova Iorque. 0 senhor Lambrou tem um amigo na direcção que lhe disse que um importante contrato com o governo vai ser adjudicado à companhia para a construção de bombardeiros. Isto , obviamente, é muito confidencial. As acções sofrerão um grande aumento quando 0 anúncio... -Não estouinteressado nomercado de acções-ripostouDemiris. -Não volte a incomodar-me a não ser quando tiver algo importante a dizer-me. -Desculpe-me, senhor Demiris. Eu pensei... Demiris havia desligado. Às oito horas, quando o assistente de Demiris, Giannis Tcharos, chegou, Constantin Demiris ergueu o olhar da secretária. Há uma companhia na Bolsa de Nova Iorque, Aurora International. Informe todos os nossos jornais de que a companhia vai ser investigada por motivo de fraude. Utilize uma fonte anónima, mas passe a palavra, Quero que eles insistam na história até as acções baixarem. Depois, comece a comprar até eu ter o controlo. -Sim, senhor. É só? -Não. Depois de eu adquirir o controlo, anuncie que os rumores eram infundados. Ah, mais uma coisa. Faça com que a Bolsa de Nova Iorque tenha conhecimento de que Spyros Lambrou comprou as acções baseado em informação dada por alguém lá de dentro. Giannis Tcharos disse delicadamente: -Senhor Demiris, nos Estados Unidos, isso é crime punido por lei. Constantin Demiris sorriu. -Eu sei. A dois quilómetros de distância, na Praça de Syntagma, Spyros Lambrou trabalhava no seu gabinete. 0 seu local de trabalho reflectia o seugosto ecléctico. 0 mobiliário consistia de antiguidades raras, uma mistura franco-italiana. Três das paredes estavam cobertas com obras de impressionistas franceses. A quarta parede estava toda dedicada a uma colecção de artistas belgas, de Van Rysselberghe a De Smet, Na tabuleta da porta do gabinete exterior podia ler-se: LAMBROU E ASSOCIADOS, mas nunca houvera nenhuns associados. Spyros Lambrou herdara um negócio bem sucedido do seu pai, e com o decurso dos anos transformara-o num conglomerado de implantação mundial. Spyros Lambrou deveria ter sido um homem feliz. Era rico e bem sucedido e gozava de excelente saúde. Mas era-lhe impossível ser completamente feliz enquanto Constantin Demiris fosse vivo. 0 seu cunhado era uma antema para ele. Lambrou desprezava-o. Demiris era polymichanos, um homem fértil em artimanhas, um patife sem moral. Lambrou odiara sempre Demiris pelo forma como tratava a irmã, mas a rivalidade feroz entre eles tinha o seu próprio terrível nexo. Começara dez anos antes, quando Spyros Lambrou almoçava com a irmã. Ela nunca o vira tão excitado. -Melina, sabes que todos os dias o mundo consome todo o combustível fóssil que levou anos a criar? -Não, Spyros. -Vai haver uma grande procura de petróleo no futuro, e não vai haver petroleiros em número suficiente para transportá-lo. -Tu vais construir alguns? Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça. -Mas não apenas os petroleiros vulgares. Terão o dobro do tamanho dos actuais. -A sua voz estava cheia de entusiasmo. -Passei meses a analisar os números. Ouve isto. Um galão de petróleo de Grude transportado do golfo Pérsico para um porto da costa oriental dos Estados Unidos custa sete cêntimos. Mas num grande petroleiro 0 custo baixaria para três cêntimos o galão. Tens alguma ideia do que isso pode significar? -Spyros, onde é que tu vais arranjar dinheiro para construiruma frota como essa? Ele sorriu. -Mas essa é a melhor parte do meu plano. Não me vai custar um tostão. -0 quê? Ele inclinou-se para a frente. -Vou à América no mês que vem falar com os chefes das grandes companhias petrolíferas. Com estes petroleiros, posso transportar o petróleo deles por metade do preço. -Mas... tu não tens nenhum petroleiro desses. Ele deu um sorriso largo. -Mas se eu conseguir contratos de aluguer a longo prazo com as companhias de petróleo, os bancos emprestam-me o dinheiro de que preciso para os construir. 0 que é que achas? -Acho que tu és um génio. É um plano brilhante. Melina estava tão excitada com a ideia do irmão que se referiu a ela quando falava com Demiris nessa noite ao jantar. Quando a acabara de explicar, Melina disse: -Não é uma ideia maravilhosa? Constantin Demiris manteve-se em silêncio por um momento. - O teu irmão é um sonhador, Isso nunca resultaria. Melina olhou para ele surpresa. -Porque não, Costa? -Porque é um esquema leviano. Em primeiro lugar, não vai haver essa procura tão grande de petróleo, de forma que esses míticos petroleiros vão circular vazios. Em segundo lugar, as companhias petrolíferas não vão entregar o seu precioso petróleo a uma frota fantasma que nem sequer existe. E em terceiro, esses banqueiros a quem ele se dirigir vão ridicularizá-lo dos escritórios para fora. 0 rosto de Melina enublou-se de desapontamento. - 0 Spyros estava tão entusiástico. Importavas-te de discutir o assunto com ele? Demiris sacudiu a cabeça. - Deixam sonhar, Melina. Seria melhor que ele nem soubesse desta nossa conversa. -Está bem, Costa. Como queiras. Logo pela manhã do dia seguinte, Constantin Demiris estava a caminho dos Estados Unidos para tratar de grandes petroleiros. Ele estava consciente de que as reservas de petróleo mundiais fora dos Estados Unidos e dos territórios do bloco soviético estavam controladas pelas sete congéneres: a Standard Oil Company de Nova Jérsia, a Standard Oil Company da Califórnia, a Gulf0il, a Texas Company, a Socony Vacuum, a Royal Dutch-Shell e a Anglo-Iranian. Ele sabia que se pudesse conseguir convencer uma delas as outras certamente iriam atrás. A primeira visita de Constantin Demiris foi aos escritórios executivos da Standard Oil de Nova Jérsia. Tinha uma reunião com Owen Curtis, quarto vice-presidente. - 0 que posso fazer por si, senhor Demiris? - Tenho uma ideia que acho poder vir a ser de grande benefício financeiro para a sua companhia. -Sim, você disse isso ao telefone. -Curtis olhou de relance para o relógio de pulso. -Tenho uma reunião dentro de alguns minutos. Se pudesse ser breve... - Serei muito breve. Os senhores pagam sete cêntimos para transportar um galão de petróleo de Grude do golfo Pérsico até à costa oriental dos Estados Unidos. -Isso é verdade. -0 que diria se eu lhe dissesse que lhe posso garantir o transporte do vosso petróleo por três cêntimos o galão? Curtis sorriu protectoramente. -E como é que conseguiria esse milagre? Demiris disse calmamente. -Construindo uma frota de petroleiros que terão o dobro da capacidade de transporte dos actuais. Posso transportar todo o seu petróleo tão depressa quanto o bombeia do solo. Curtis estudava-o, o seu rosto pensativo. - Onde é que ia arranjar uma frota de grandes petroleiros? -Vou construí-los. - Lamento. Nós não estaríamos interessados em investir em.., Demiris interrompeu. -Não lhes custará um tostão. Tudo o que lhes peço é um contrato de longo prazo para transportar o vosso petróleo por metade do preço que pagam agora, Arranjarei o meu financiamento junto dos bancos. Houve um longo e significativo silêncio. Owen Curtis aclarou a voz. - Acho que devo levé-lo lá acima para conhecer o nosso presidente. Foi o começo. As outras companhias de petróleo ficaram exactamente tão ansiosas para fazer contratos com os novos petroleiros de Constantin Demiris. Quando Spyros Lambrou soube o que estava a acontecer, era demasiado tarde. Voou para os Estados Unidos e conseguiu fazer alguns contratos com algumas companhias independentes, mas Demiris tinha extraído a melhor parte do mercado. - Ele é teu marido - Lambrou esbracejava -, mas eu juro-te, Melina, que herde fazê-lo pagar pelo que fez. Melina estava infelicíssima com o sucedido. Sentiu que traíra o irmão. Mas quando confrontou o marido ele encolheu os ombros. -Eu não fui ter com eles, Melina. Eles é que vieram ter comigo. Como é que eu os podia recusar? Mas as considerações comerciais não eram nada ao pé do que Lambrou sentia pela forma como Demies tratava Melina. Ele podia ter ignorado o facto de que Constantin Demiris era um namoradeiro infame-afinal de contas, umhomem tinha de ter o seu prazer. Mas o facto de Demies ser tão espalhafatoso era um insulto não só para Melina, mas para toda a família Lambrou. 0 caso de Demirs com a actriz Noelle Page fora o caso mais insigne. Provocara títulos em jornais de todo o mundo. «Um dia», pensou Spyros Lambrou. «Um dia... Nikos Ventos, o assistente de Lambrou, entrou no gabinete. Veritos trabalhava com Spyros Lambrouhavia quinze anos. Era umhomem competente mas sem imaginação, sem futuro, cinzento e sem rosto. A rivalidade entre os dois cunhados dava a Ventos aquilo que ele considerava uma oportunidade dourada. Ele apostava na vitória de ConstantinDemirs, e de vez em quando passava-lhe informações confidenciais, esperando uma recompensa apropriada. Ventos aproximou-se de Lambrou. - Desculpe. Está lá fora um senhor Anthony Rizzoli que quer vê-lo. Lambrou suspirou. -Vamos lá a isso -disse Lambrou. - Mandem entrar. Anthony Rizzoli aparentava quarenta e tal anos. Tinha cabelo preto, um nariz fino e aquilino e olhos castanhos fundos. Movimentava-se com a elegância de um pugilista treinado. Trazia um fato bege, caro e feito por medida, uma camisa de seda amarela e sapatos de calfe. Era de falas mansas e polido, e no entanto havia nele algo de ameaçador. -Prazer em conhecê-lo, senhor Lambrou. -Sente-se, senhor Rizzoli. Rizzoli sentou-se. - Em que lhe posso ser útil? -Bem, como expliquei aqui ao senhor Ventos, gostaria de fretar um dos seus cargueiros. Sabe, eu tenho uma fábrica em Marselha e quero enviar uma maquinara pesada para os Estados Unidos. Se chegarmos a um acordo, posso vir a fazer muitos negócios consigo no futuro. Spyros Lambrou recostou-se na cadeira e estudou o homem que se sentava diante de si. «Repugante -É s6 isso que tenciona enviar, senhor Rizzoli? Tony Rizzoli franziu o sobrolho. -0 quê? Não estou a perceber. -Acho que está-disse Lambrou: -Os meus navios não estão à sua disposição. - Por que não? De que é que o senhor está a falar? - Drogas, senhor Rizzoli. 0 senhor é um traficante de drogas. Os olhos de Rizzoli contraíram-se. - 0 senhor está louco! Anda a ouvir muitos boatos. Mas eram mais do que boatos. Spyros Lambrou informara-se cuidadosamente sobre o homem. TonyRizzoli era um dos principais traficantes de drogas da Europa. Ele era da Mafia, parte da organização, e dizia-se que os meios de transporte de Rizzolihaviam acabado. Era por isso que estava tão ansioso para fazer um acordo. -Receio que tenha de ir bater a outra porta. Tony Rizzoli deixou-se ficar sentado a olhar fixamente para ele, o olhar frio. Por fim abanou a cabeça. -Muito bem, -Tirou um cartão comercial do bolso e atirou para cima da secretária. -Se mudar de ideias, eis onde me pode encontrar. -Pôs-se de pé e pouco depois partiu. Spyros Lambrou apanhou o cartão. Dizia «Anthony Rizzoli Import-Export», Havia uma morada de um hotel de Atenas e um número de telefone no fundo do cartão. Nikos Veritos permanecera ali, de olhos arregalados, escutando a conversa. Quando Tony Rizzoli saiu a porta, disse: -Ele é mesmo...? -Sim, 0 senhor Rizzoli negoceia com heroína. Se permitíssemos que ele usasse um dos nossos navios, o governo podia cancelar a actividade de toda a nossa frota. TonyRizzoli saiu do escritório de Lambrou numa fúria. «0 cabrão do grego a tratar-me como se eu fosse um labrego da rua! E como é que ele soubera das drogas? 0 envio era invulgarmente grande, com um valor de rua de pelo menos dez milhões de dólares. Mas o problemaestava em fazê-lo chegar a Nova Iorque. Os malditos agentes do combate à droga estão a invadir Atenas. Tenho que fazer um telefonema para a Itália e procurar ganhar tempo. Tony Rizzoli nunca perdera um envio e não tencionava perder este. Achava-se um vencedor nato. Crescera na Cozinha do Inferno em Nova Iorque. Geograficamente estava localizada no West Side de Manhattan, entre a Oitava Avenida e o Rio Hudson, e as suas fronteiras a norte e a sul iam das ruas Vinte e Três e Cinquenta e Nove. Mas psicológica e emocionalmente a Cozinha do Inferno era uma cidade dentro da cidade, um conclave armado. As ruas eram governadas por grupos. Havia os Gophers, o Parlor Mob, os Gorillas e o Rhodes Gang. Os contratos para matar eram vendidos a retalho por cem dólares, com acção violenta por um pouco menos. A primeira lembrança de Tony Rizzoli foi de ser atirado ao chão e terem-lhe roubado o dinheiro do leite. Tinha sete anos. Os rapazes mais velhos e maiores eram uma ameaça constante. 0 percurso para a escola era terra de ninguém, e a própria escola era um campo de batalha. Quando tinha quinze anos, Rizzoli desenvolvera um corpo forte e uma considerável aptidão como lutador. Adorava lutar, e porque era bom nisso o facto dava-lhe um sentimento de superioridade. Ele e os amigos organizavam desafios de boxe no Ginásio de Stillman. De tempos a tempos, apareciam uns membros das quadrilhas de criminosos para manter debaixo de olho os lutadores que possuíam. Frank Costello apareciaumaou duas vezes por mês, acompanhado de Joe Adonis e Lucky Luciano. Divertiam-se com os desafios de boxe que os miúdos organizavam, e em jeito de diversão começaram a fazer apostar nos combates. Tony Rizzoli vencia sempre, e logo se tornou num favorito dos chefes das quadrilhas. Um dia, enquanto Rizzoli mudava de roupa no vestiário, o jovem ouviu por acaso uma conversa entre Frank Costello e Lucky Luciano, -0 puto é uma mina de ouro-dizia Luciano,-Ganhei cinco mil com ele a semana passada. -Vais apostar no combate dele com o Lou Domenic? - Claro. Vou apostar dez notas grandes. - Que hipóteses tens para apostar? -Dez para um. Mas qual é o problema? 0 Rizzoli é um vencedor à partida. Tony Rizzoli não estava certo do significado da conversa. Foi ter com o irmão mais velho, Gino, e contou-lhe. -Puxa!-exclamou o irmão. -Esses tipos estão a apostar muita massa em ti. - Mas porquê? Eu não sou profissional. Gino pensou durante um momento. -Tu nunca perdeste nenhum combate, pois não, Tony? -Não. - 0 que provavelmente aconteceu é que eles fizeram umas apostazitas de brincadeira, e depois quando viram o que tu conseguias fazer começaram a apostar para valer. 0 rapaz mais novo encolheu os ombros. -Isso para mim não significa nada. Gino tomou-lhe o braço e disse com empenho. -Podia significar muito. Para nós dois. Presta atenção, criança... 0 combate com Lou Domenic realizou-se no Ginásio de Stillman numa tarde de sexta-feira, e todos os rapazes estavam lá -Frank Costello, JoeAdonis, AlbertAnastasi, LuckyLuciano e MeyerLansky. Gostaram de ver os rapazes combater, mas do que gostaram ainda mais foi o facto de terem achado uma maneira de ganhar dinheiro à custa dos miúdos. Lou Domenic tinha dezassete anos, era um ano mais velho que Tony e pesava mais dois quilos. Mas não era parceiro para enfrentar a aptidão para o boxe e o instinto assassino que Rizzoli possuía. 0 combate teve cinco rounds.0 primeiro assalto foi facilmente ganho pelo jovem Tony. 0 segundo assalto também foi para ele. E o terceiro. Os chefes de quadrilha já faziam contas. - 0 miúdo vai ser um campeão mundial - exultou Lucky Luciano. - Quanto é que apostaste nele? -Dez mil-respondeuFrank Costello.-As melhores diferenças que consegui foi de quinze para um. 0 miúdo já tem fama. E repentinamente, o inesperado aconteceu. A meio do quinto assalto, Lou Domenic pôs Tony Rizzoli fora de combate com um soco de baixo para cima. 0 juiz começou a contar... muito lentamente, olhando apreensivamente para o público de rostos petrificados, -Põe-te de pé, meu sacaninha-gritou Joe Adonis. -Levanta-te e luta! A contagem prosseguiu, e, mesmo a esse ritmo lento, chegou finalmente aos dez. Tony Rizzoli estava ainda no tapete, derrotada e frio. - Cabrão de merda. Um murro de sorte. Os homens começaram a somar os prejuízos. Eram substanciais. Tony Rizzoli foi levado para um dos vestiários por Gino. Tony mantinha os olhos ligeiramente fechados, com receio de que pudessem descobrir que estava consciente e lhe fizessem algo de terrível. Só quando estava em segurança em casa é que começou a relaxar. -Conseguimos! -gritou o irmão excitadamente.-Sabes quanto dinheiro fizemos? Quase mil dólares. -Não percebo, Eu... -Eu pedi dinheiro emprestado aos usurários para apostar no Domenico e consegui diferenças de quinze para um. Estamos ricos. - Eles não vão aos arames? - perguntou Tony. Gino sorriu. -Nunca saberão. No dia seguinte quando Tony Rizzoli saiu da escola uma enorme limusina preta estava à espera na curva. Lucky Luciano estava no banco traseiro. Fez sinal ao rapaz para que viesse até ao carro. - Entra. 0 coração de Tony começou a bater com força. - Não posso, senhor Luciano, Estou atrasado para... -Entra. Tony Rizzoli entrou na limusina. Lucky Luciano disse ao motorista: - Dê uma volta ao quarteirão. Graças a Deus que não o levavam para um passeio! Luciano virou-se para o rapaz, -Tu simulaste um knock out.-disse ele categoricamente. Rizzoli corou. -Não, senhor, eu... -Não me venhas com tretas. Quanto é que tu ganhaste no combate? -Nada, senhor Luciano. Eu... -Vou perguntar-te mais uma vez. Quanto é que tu ganhaste por teres simulado knock out? 0 rapaz hesitou. -Mil dólares. Lucky Luciano riu-se. -Isso é deitar água a pintas. Mas acho que para um.., que idade tens? -Quase dezasseis, -Acho que para um miúdo de dezasseis anos isso não é mau. Sabes que por tua causa eu e os meus amigos perdemos uma data de massa. - Eu peço desculpa. Eu... -Esquece. És um rapaz inteligente. Tens futuro, - Obrigado. -Eu não vou dizer nada sobre o assunto, Tony, caso contrário os meus amigos cortam-te os tomates e obrigam-te a comê-los. Mas quero que me venhas ver na segunda feira. Nós os dois vamos trabalhar juntos, Uma semana depois, Tony Rizzoli estava a trabalhar para Lucky Luciano. Rizzoli começou como agente de apostas, e depois como cobrador. Era brilhante e rápido e com o tempo esforçou-se para ser o representante de Luciano. Quando Lucky Luciano foi preso, condenado e enviado para a prisão, Tony Rizzoli permaneceu na organização de Luciano. As Famílias estavam envolvidas no jogo, na usura, na prostituição e em tudo o mais que desse lucro ilegal. 0 tráfico de drogas era geralmente desaprovado, mas alguns dos membros insistiam em envolver-se, e as Famílias relutantemente davam-lhes autorização para organizar o tráfico de drogas sozinhos. A ideia tornou-se numa obsessão para Tony Rizzoli. Do que vira, as pessoas que andavam no tráfego de drogas estavam completamente desorganizadas. «Estava cada um a trabalhar para seu lado. Com o cérebro e o músculo certo por três...» Tomou a decisão. Tony Rizzoli não era homem para entrarem nada acidentalmente. Começou a ler tudo o que conseguia encontrar sobre heroína. Aheroína estava a tornar-se rapidamente na rainha dos narcóticos. A marijuana e a cocaína provocavam uma kida às nuvens», mas a heroína criava um estado de completa euforia, sem dor, sem problemas, sem cuidados. As pessoas escravizadas pela heroína estavam dispostas a vender tudo o que possuíssem, roubar qualquer coisa ao seu alcance, cometer qualquer crime. A heroína tornou-se a sua religião, a sua razão de ser. A Turquia era um dos principais cultivadores da papoila de que a heroína derivava. A Família tinha contactos na Turquia, de forma que Rizzoli teve uma conversa com Pete Luca, um dos cabos. -Eu vou meter-me no negócio-disse Rizzoli. -Mas tudo o que eu fizer será pela Família. Quero que saibam isso. -Tu és um bom rapaz, Tony. -Eugostava de iràTurquia paraver como são as coisas. Pode tratar do caso? 0 velho hesitou, -Vou entrarem contacto. Mas eles não são como nós, Tony, Eles não têm princípios. São animais. Se não confiarem em ti, matam-te. -Terei cuidado. -Tem mesmo. Duas semanas depois, Tony Rizzoli estava a caminho da Turquia. Viajou para Esmirna, Afyon e Eskisehir, as regiões onde as papoilas crescem, e no começo Rizzoli foi cumprimentado com grande desconfiança. Era um estranho, e os estranhos não são bem-vindos. -Nós vamos fazer muitos negócios juntos-disse Rizzoli. -Eu gostava de dar uma vista de olhos pelos campos de papoilas. Um encolher de ombros. -Não sei nada de campos de papoilas. Você está a perder o seu tempo. Vá para casa. Mas Rizzoli estava determinado. Fizeram-se meia dúzia de chamadas e trocaram-se telegramas em código. Por fim, em Kilis, na fronteira turco-síria, foi autorizado a assistir à colheita do ópio na quinta de Carella, um dos grandes proprietários de terras. -Não percebo -disse Tony. -Como é que se pode obter ópio a partir de uma porcaria de uma flor? Um cientista de casaco branco explicou-lhe. -Hávários passos, senhor Rizzoli. Aheroína é sintetizada a partir do ópio, o qual é feito através do tratamento de morfina com ácido acético. Aheroína é derivada de uma classe particular de papoilas designada PapauerSomniferum, aflor do sono. A origem do ópio vem do grego opos, que significa suco, - Percebi. Durante o tempo da colheita, Tony foi convidado a visitar a propriedade principal de Carella. Cada membro da família de Carella estava munido de uma çizgi biçak, uma faca em forma de bistúri, destinada a fazer uma incisão perfeita na planta, Carella explicou: -As papoilas têm de ser colhidas num período de vinte e quatro horas ou a planta está arruinada. Havia nove membros na família e cada um trabalhava freneticamente para garantir a colheita a tempo. 0 ar estava cheio de fumos que provocavam sonolência. Rizzoli sentiu-se grogue. -Tenha cuidado-advertiu Carella. -Mantenha-se acordado. Se se deitar no campo, não voltará a levantar-se. Asjanelas e asportas da casa da quintamantinham-sefirmemente fechadas durante o período de vinte e quatro horas da colheita. Depois da apanha das papoilas, Rizzoli viu a goma branca e pegajosa transformada a partir de uma base de morfina em heroína num -Então, é assim, hein? Carella sacudiu a cabeça, -Não, meu amigo. Isto é apenas o começo. Fazer a heroína é a parte mais fácil, A habilidade é transportá-la sem sermos apanhados. Tony Rizzoli sentiu uma excitação crescer dentro de si. Era aqui que os seus conhecimentos iam sobrepor-se. Até agora, o negócio tinha sido dirigido por trapalhões. Agora ele ia mostrar-lhes como um profissional operava. -Como é que movimenta o produto? -Há muitas maneiras. Camião, autocarro, comboio, carro, mula, camelo... -Camelo...? -Costumávamos contrabandearheroína em latas dentro dabarriga dos camelos, até que os guardas começaram a usar detectores de metal. De forma que mudámos para sacos de borracha. No fim da viagem matamos os camelos. 0 problema é que por vezes os sacos rebentam no interior dos camelos, e os animais arrastam-se até à fronteira como se estivessem bêbados. Por isso os guardas descobriram. - Qual é a rota que usam? -Por vezes, a heroína segue de Aleppo, Beirute e Istambul para Marselha. Às vezes as drogas vão de Istambul para a Grécia, depois para a Sicília através da Córsega e de Marrocos e cruzam o Atlântico. - Agradeço a sua cooperação -disse Rizzoli. -Vou contar aos rapazes. Tenho mais um favor a pedir-lhe. - Sim? -Eu gostava de acompanhar o próximo envio. Houve uma longa pausa. - Isso pode ser perigoso. - Eu arrisco. Na tarde seguinte, Tony Rizzoli foi apresentado a um bandido enorme e corpulento, com um grandioso e gracioso bigode e um corpo que parecia um tanque. - Este é o Mustafa de Afyon. Em turco, afyon significa ópio. 0 Mustafa é um dos nossos melhores contrabandistas. -Uma pessoa tem de ser competente-disse Mustafa modestamente. -Há muitas perigos. Tony Rizzoli deu um sorriso largo. -Mas vale a pena o risco, hein? Mustafa disse corn dignidade; -Você está afalar de dinheiro. Para nós, o ópio é mais do que uma plantação de dinheiro. Há uma mística em relação a ele. É a única plantação que é mais do que apenas comida. A seiva branca da plan ta é um elixir dado por Deus que é um medicamento natural quando tomado em pequenas quantidades. Pode ser tomado, ou aplicado directamente sobre a pele e cura a maioria dos sofrimentos comuns, perturbaçôes no estômago, gripes, dores, sofrimento, distenções. Mas tem de ser cuidadoso. Se o tomar em grandes quantidades, não apenas irá perturbar os sentidos, como lhe roubará a sua potência sexual, e na Turquia poderá destruir tanto a dignidade de um homem como a impotência. - Certo. Tem toda a razão. A viagem desde Afyon teve início à meia-noite. Um grupo de fazendeiros, caminhando numa só fila por entre a noite escura, vieram encontrar-se com Mustafa. As mulas estavam carregadas com ópio, 350 quilos amarrados às costas de sete robustas mulas. 0 odor doce e pungente do ópio, como se de feno húmido se tratasse, pairava no ar por entre os homens. Havia uma dúzia de fazendeiros que tinham vindo tomar conta do ópio na transacção com Mustafa. Cada fazendeiro estava armado com uma espingarda. -Temos de ser cuidadosos nos dias dehoje-disse Mustafa aRizzoli.-Temos aInterpol e muitas outras polícias à nossaprocura. Nos velhos tempos tinha mais piada. Costumávamos transportar ópio através de uma aldeia ou da cidade num caixão forrado em preto. Era uma visão generosa ver as pessoas e os polícias na rua tirarem os chapéus e a cumprimentarem em sinal de respeito quando um caixão de ópio passava por perto. A província de Afyon fica no centro da parte ocidental da Turquia no sopé d.as Montanhas Sultan num planalto, remota e virtualmente isolada das principais cidades da nação. -Este terreno é muito bom para o nosso trabalho - disse Mustafa. -Não é fácil encontrarem-nos. As mulas movimentavam-se lentamente através das montanhas desoladas, e à meia-noite do terceiro dia chegaram à fronteira turco-síria. Ali foram recebidos por uma mulher vestida de negro. Conduzia um cavalo que transportava um inocente saco de farinha, e havia uma corda de cânhamo presa frouxamente ao aro da sela. A corda roçava atrás do cavalo, mas nunca tocava no chão. Era uma corda comprida, com sessenta metros de comprimento. Uma extremidade estava amarrada ao cavalo e a outra era suspensa por Mustafa e pelos quinze contrabandistas contratados que o seguiam. Caminharam agachados, cada um curvado junto ao chão, uma mão segurando a linha da corda e a outra agarrando um saco de juta com ópio. Cada saco pesava quinze quilos. Amulher e o cavalo atravessavam um extensão de terreno armadilhado corn minas contrapessoal, mashavia um caminho que fora aberto por um pequeno rebanho de carneiros que cruzara a área anteriormente. Se a corda caísse à terra, afolga era um sinal a Mustafa e aos outros de que havia gendarmes lá em cima. Se a mulher fosse levada para interrogatório, então os contrabandistas avançariam em segurança através da fronteira. Atravessaram em Kilis, o posto fronteiriço, que estava fortemente minado. Uma vez para lá da área controlada pelas patrulhas de gendarmes, os contrabandistas foram até à zona-tampão com cinco quilómetros de largura, até chegarem ao ponto de encontro, onde foram cumprimentadospelos contrabandistas sírios. Puseram os sacos de ópio no chão e foram presenteados com uma garrafa de raki, que os homens passaram entre si. Rizzoli observou o ópio ser pesado, feito em montes, amarrado e preso aos dorsos de uma dúzia de burros sírios todos sujos, 0 trabalho estava feito. «Muito bem», pensou Rizzoli. «Agora vamos ver como é que trabalham os rapazes da Tailândia. A próxima paragem de Rizzolifoi Banguecoque. Depois de as suas credenciais terem sido estabelecidas, foi autorizado a embarcar num navio de pesca tailandês que transportava drogas embrulhadas em folhas de polietileno embaladas dentro de tambores de parafina vazios, com argolas na tampa. Assim que os barcos se aproximavam de HongKongelesatiravamostamboresnumafilaordenada águarasa que circundava Lima e das Ilhas do Ladrone, onde era simples para um barco de pesca de Hong Kong apanhá-los com um arpão. -Nada mau-disse Rizzoli. «Mas tem que haver uma maneira melhor.» Os cultivadores referiam-se à heroína como <~H» e «cavalo», mas para Tony Rizzoli a heroína era ouro. Os lucros estavam a aumentar devagar. Os camponeses que cultivavam o ópio cru recebiam 350 dólares por quilo, mas quando 0 ópio era processado e vendido nas ruas de Nova Iorque, o seu valor tinha subido para 250.000 dólares. <~É tão fácil», pensou Rizzoli. HO Carella tinha razão. A habilidade não é apanhar,» Isso fora no início, dez anos antes. Mas agora era mais difícil. A Interpol, a polícia internacional, colocara recentemente o tráfico de droga no topo da lista, Todos os navios que saíam dos principais portos traficantes e parecessem mesmo minimamente suspeitos eram visitados e revistados, Foiporisso que Rizzoliprocurara Spyros Lambrou. A suafrota estavafora de suspeita. Eraimprovável que apolícia revistasse um dos seus navios cargueiros. Mas o cabrão recusara-o. «Hei-de arranjar outra maneira,Tony Rizzoli», pensou. «Mas tenho que arranjar rapidamente.» - Catherine, estou a perturbá-la? Era meia-noite. - Não, Costa, É agradável ouvir a sua voz. - Está tudo a correr bem? - Sim, graças a si. Estou realmente a gostar do meu emprego. - Óptimo. Vou a Londres dentro de algumas semanas. Estou ansioso por vê-la. -«Cuidado. Não vás tão depressa. » -Quero informar-me sobre algum do pessoal da companhia. - Muito bem. - Então, boa noite. -Boa noite. Desta vez foi ela que lhe telefonou. -Costa, não sei o que dizer. 0 medalhão é lindíssimo. Não devia ter... -É uma pequena lembrança, Catherine. A Evelyn disse-me que você a ajuda bastante. Apenas quis exprimir o meu agradecimento. É tão fácil», pensou Demiris. Pequenas ofertas e lisonjeios. Mais tarde: Eu e a minha mulher vamos separar-nos. Depois a fase do «sinto-me tão sozinho». Uma vaga conversa sobre casamento e um convite para a ilha dele no iate. A rotina nunca falhava, «Isto vai ser particularmente excitante», pensou Demiris, «porque vai ter um significado diferente. Ela vai morrer.» Telefonou a Napoleõo Chotas. 0 advogado ficou encantado por ouvi-lo. -Já faz bastante tempo, Costa. Vai tudo bem? - Sim, obrigado. Preciso de um favor. - Claro. -ANoelle Page possuía umapequena uilla em Rafina. Quero comprá-la para mim, sob o nome de outra pessoa. - Certamente. Vou mandar um dos meus advogados... - Quero que trate do caso pessoalmente. Houve uma pausa. -Muito bem. Tomarei conta do assunto. -Obrigado. Napoleon Chotas deixou-se ficar sentado, a olhar para a telefone. Auilla foi o ninho de amor onde Noelle Page e Larry Douglas tinham consumado o seu romance. Para que o queria Constantin Demiris? 0 tribunal de Arsakion na baixa de Atenas é um edificio de pedra grande e cinzento que ocupa todo o quarteirão da Rua da Universidade e Strada. Das trinta salas de audiência do edifício apenas três estão reservadas aos julgamentos criminosos: salas 21, 30 e 33. Porcausadointeresseenormegeradopelojulgamentodoassassínio de Anastasia Savalas, estava a realizar-se na sala 33. A sala de audiências tinha noventa metros por quinze de largo, e os bancos esta vam dividos em três blocos, distantes doismetrosuns dos outros, com nove bancos de madeira em cada fila. Na frente da sala havia um estrado elevado atrás de uma divisória de mogno, com cadeiras de costas altas para os três juízes que iam presidir. Em frente do estrado estava o banco das testemunhas, uma pequena plataforma elevada sobre a qual estava fixada uma estante de leitura, e contra a parede do fundo estava a banca dos jurados, ocupada agora pelos seus dez membros. Diante da banca do réu estava a mesa dos advogados. 0 julgamento do assassínio era assaz espectacular em si próprio, mas o prato-forte era o facto de que a defesa ia ser conduzida por Napoleon Chotas, um dos proeminentes advogados criminais do mundo. Chotas só aceitava casos de assassínio, e tinha um recorde de sucessos espectacular. Corria o boato de que os seus honorários eram de milhões de dólares. Napoleon Chocas era um homem magro de aspecto macilento com os olhos grandes e tristes de um cão de caça num rosto ondulado. Vestia-se mal, e a sua aparência física em nada contribuía para inspirar confiança. Mas, por detrás dos seus modos vagamente atarantados, escondia-se uma mente brilhante e mordaz. A imprensa especulara furiosamente sobre a razão por que Napoleon Chotas aceitara defender a mulher que ia ser julgada. Ele nunca poderia ganhar a questão. Fizeram-se apostas em como seria a primeira derrota de Chotas. Peter Demonides, o advogado de acusação, já se confrontara com Chotas antes, e -embora nunca o admitisse, mesmo a si próprio - espantava-se com a arte de Chotas, Desta vez, contudo, Demonides sentia que tinha pouco com que se preocupar. Se alguma vez houve um processo de assassínio de solução prevista, era o julgamento de Anastasia Savalas. Os factos eram simples: Anastasia Savalas era umajovem e belamulher casada com um homem rico de nome George Savalas, que era trinta anos mais velho do que ela. Anastasia tinha tido um caso com o jovem motorista, Josef Pappas, e, segundo as testemunhas, o marido ameaçara divorciar-se de Anastasia e excluí-la do testamento. Na noite do assassínio, ela dispensara os criados e preparara o jantar para o marido. George Savalas estava constipado. Durante o jantar, teve um ataque de tosse, A mulher trouxera-lhe o frasco do xarope. Savalas tomara um gole e caíra morto. Um caso de abrir e fechar. A sala 33 encheu-se de público logo pela manhã. Anastasia Savalas estava sentada na mesa do réu, trajando saia e blusa simples de cor preta, sem jóias e muito pouca maquilhagem. Ela estava espantosamente bela. 0 advogado de acusação, Peter Demonides, dirigia-se ao júri. -Meus senhores e minhas senhoras. Por vezes, num caso de assassínio, umjulgamento dura até trës ou quatro meses, Mas não me parece que nenhum dos senhores tenha de preocupar-se em ficar aqui esse espaço de tempo. Quando tiverem conhecimento dos factos neste caso, tenho a certeza de que concordarão, sem dúvida, que só há um veredicto possível, assassínio do primeiro grau. 0 estado provará que a ré assassinou intencionalmente o marido, porque o mesmo ameaçara divorciar-se quando descobriu que ela tinha um caso com o motorista da família. Provaremos que a ré teve o motivo, a oportunidade e os meios para levar a cabo o seu plano a sangue frio. Obrigado. - Ele voltou ao seu lugar. 0 juiz-presidente voltou-se para Chotas. -0 advogado de defesa estápreparado parafazera declaração de abertura? Napoleon Chotas ergueu-se lentamente. -Sim, Meritíssimo.-Moveu-se até à banca dos jurados com um andar incerto e arrastando os pés. Ficou ali a pestanejar para eles, e quando falou foi quase como se estivesse a falar consigo próprio. -A minha vida já vai longa, e aprendi que não há homem ou mulher que possa ocultar um mau carácter. Revela-se sempre. Certo poeta disse um dia que os olhos são as janelas da alma. Acredito que sejaverdade. Desejo, senhoras e senhores, que olhem bem dentro dos olhos da ré. Nunca acharia ela dentro do seu coração motivo para matar alguém, Napoleon Chotas ficou ali um momento como se tentando pensar em algo mais para dizer, depois arrastou-se de volta para o seu lugar. Peter Demonides ficou tomado de uma sensação repentina de triunfo. «Meu Deus. Essa foi a abertura mais fraca que eu já ouvi na vida! 0 velho já perdeu.» -0 advogado de acusação está preparado para chamar a primeira testemunha? -Sim, Meritíssimo. Gostaria de chamar Rosa Lykourgos. Uma mulher de meia-idade e de porte pesado levantou-se do banco do público e caminhou com determinação até ao cimo da sala de audiências. Fez o juramento. - Senhora Lykourgos, qual a sua profissão? -Eu sou agovernanta...-Ficou com avoz embargada.-Eu era a governanta do senhor Savalas. - Do senhor George Savalas ? -Sim, senhor. - E importa-se de dizer-nos quanto tempo foi empregada do senhor Savalas ? -Vinte e cinco anos. - Mas isso é muito tempo. Gostava do seu patrão? -Ele era um santo, - Era empregada do senhor Savalas no primeiro casamento? -Era sim, senhor. Eu estava na campa com ele quando a esposa foi enterrada. - Seria legítimo dizer-se que tinham uma boa relação? -Eles estavam loucamente apaixonados um pelo outro. Peter Demonides olhou por cima para Napoleon Chotas, à espera do seu protesto quanto à linha de interrogatório, Mas Chotas deixou-se ficar, aparentemente perdido em pensamentos. Peter Demonides prosseguiu. -E trabalhava para o senhor Savalas durante o segundo casamento, com Anastasia Savalas - Oh, sim, senhor. Claro que sim. - Ela dizia as palavras com veemência. -A senhora diria que era um casamento feliz?-Olhou uma vez mais de relance para Napoleon Chotas, mas não houve reacção. - Feliz? Não, senhor. Brigavam que nem cão e gato. -Testemunhou alguma dessas brigas? -Uma pessoa não podia evitar. Podia-se ouvi-los por toda a casa.,. e a casa é bem grande. -Vejo que se tratavam de brigas verbais, e não físicas. Isto é, o senhor Savalas nunca bateu na mulher? -Oh, claro que eram físicas. Mas era ao contrário, a senhora é que batia nele. 0 senhor Savalas estava a ficar velho, e o pobrezito já não se aguentava nas canetas. - Viu mesmo a senhora Savalas bater no marido? - Mais do que uma vez. - A testemunha olhou para Anastasia Savalas, e havia uma satisfação cruel na sua voz. -Senhora Lykourgos, na noite em que o senhor Savalas morreu, que pessoal trabalhava na casa? -Nenhum. Peter Demonides deixou que a sua voz exprimisse surpresa. -Quer dizer que numa casa que a senhora diz ser tão grande não havia nenhum membro do pessoal na casa? 0 senhor Savalas não tinha cozinheira, ou uma criada... um mordomo...? - Oh, sim, senhor. Tínhamos de tudo. Mas a senhora disse a todos que tirassem a noite de folga, Disse que queria ela própria fazer o jantar do marido. Ía ser uma segundá lua-de-mel. -A última observação foi dita com um resfôlego. - Então a senhora Savalas livrou-se de toda a gente? Desta vez, foi o juiz-presidente que olhou para Napoleon Chotas, à espera que ele protestasse. Mas o advogado manteve-se sentado, preocupado. 0 juiz-presidente virou-se para Demonides. - 0 advogada de defesa deve deixar de conduzir a testemunha. -Peço desculpa, Meritíssimo. Eu reformulo a pergunta. Demonides aproximou-se mais da senhora Lykourgos. - Está a dizer que numa noite em que os membros do pessoal deveriam estar ordinariamente todos em casa a senhora Savalas ordenou que toda a gente saísse para que ela pudesse ficar sozinha com o marido? - Sim, senhor. E o pobrezinho estava com uma terrível constipação. -A senhora Savalas cozinhava muitas vezes o jantar do marido? A senhora Lykourgos desdenhou. - Ela? Não, senhor. Ela não. Ela nunca levantou um dedo para fazer nada lá em casa. E Napoleon Chotas mantinha-se sentado, ouvindo como se fosse um mero espectador. -Obrigado, senhora Lykourgos. A senhorafoi uma grande ajuda. Peter Demonides virou-se para Chotas, tentanto ocultar a sua satisfação. 0 testemunho da senhora Lykourgos tivera um efeito perceptível sobre os jurados. Todos lançaram olhares desaprovadores para a ré. Vamos ver como é que o velho descalça esta bota. -A testemunha é sua. Napoleon Chotas ergueu um olhar de relance. -0 quê? Oh, não tenho perguntas. 0 juiz-presidente olhou para ele surpreso. -Senhor Chotas... não deseja contra-interrogar a testemunha? Napoleon Chotas levantou-se. -Não, Meritíssimo. Parece uma mulher perfeitamente honesta. - Voltou a sentar-se. Peter Demonides não acreditava na sua sorte, «Meu Deus», pensou, «ele nem sequer oferece luta. 0 velho está mesmo acabado.» Demonides saboreava já a vitória. 0 juiz-presidente virou-se para o advogado de acusação. -Pode chamar a próxima testemunha. - 0 estado gostaria de chamar Josef Pappas. Um homem novo, alto, bonito e de cabelo escuro levantou-se do banco do público e caminhou até ao banco das testemunhas. Fez o juramento, Peter Demonides começou. -Senhor Pappas, queira por favor dizer-nos qual é a sua profissão. -Sou motorista. -Encontra-se empregado? - Não. -Mas esteve empregado até há pouco. Isto é, esteve empregado até à morte de George Savalas? -Verdade. - Durante quanto tempo foi empregado da família Savalas? -Pouco mais de um ano. -Era um trabalho agradável? Josef Pappas olhava para Chotas, espera que ele viesse salvá-lo. Houve apenas silêncio. -Era um emprego agradável, senhor Pappas? -Acho que era um trabalho razoável. - Tinha um bom salário? -Tinha. - Então não acha que o emprego era mais que razoável? - Quero dizer, não havia uns extras que eram oferecidos? 0 senhor não dormia regularmente com a senhora Savalas? JosefPappas olhouparaNapoleon Chotas àprocura de ajuda. Mas não houve nenhuma. -Eu... Sim, senhor. Acho que sim. Peter Demonides era fulminante no seu escárnio. -Acha que sim? Está sob juramento. Teve um caso com ela ou não teve. Em que ficamos? Pappas contorcia-se no lugar. -Tivemos um caso. -Apesar de trabalhar para o marido dela... de ser generosamente pago por ele e viver debaixo do seu tecto? - Sim, senhor. -Não lhe incomodava receber o dinheiro do senhor Savalas semana após semana enquanto tinha um caso com a mulher dele? - Não era apenas um caso. Peter Demonides engodou a armadilha cuidadosamente. -Não era apenas um caso? Que pretende dizer com isso? Receio não estar a perceber. -Quero dizer, eu e a Anastasia tínhamos intenção de casar. Houve um murmúrio de surpresa na sala de audiências. Os jurados olhavam fixamente para a ré. - 0 casamento foi ideia sua ou da senhora Savalas ? - Bem, o desejo era de ambos. - Quem o sugeriu? -Acho que foi ela. -Ele olhou para o lugar onde Anastasia Savalas se sentava. Ela devolveu-lhe o olhar sem vacilar. -Com franqueza, senhor Pappas, estou intrigado. Como é que o senhor esperava casar-se? A senhora Savalasjá tinha marido, não tinha? Tencionava esperar que ele morresse de velhice? Ou tivesse um acidente fatal de alguma espécie? Que tinha em mente ao certo? As perguntas eram tão excitantes que a acusação e os três juízes olharam na direcção de Napoleon Chotas, aguardando que o mesmo vociferasse um protesto. Mas o advogado de defesa estava entretido afazerdesenhos numa folha de papel, sem prestar atenção. Anastasia Savalas começava também a ficar preocupada. Peter Demonides pressionou a sua vantagem. - 0 senhor não respondeu à minha pergunta, senhor Pappas. Josef Pappas mexia-se desconfortavelmente na cadeira. - Não sei ao certo. A voz de Peter Demonides foi uma chicotada. - Então deixe-me que lhe diga ao certo. A senhora Savalas planeava matar o marido para afastá-lo do caminho. Ela sabia que o marido ia excluí-la do testamento, e que ela ficaria sem nada. Ela... -Protesto! -Não veio de Napoleon Chotas, mas do juiz-presidente. -0 senhor está a pedir que a testemunha especule. Ele olhou para Napoleon Chotas, surpreendido com o silêncio do advogado. 0 velho homem permanecia sentado no banco, os olhos semicerrados. -Peço desculpa, Meritíssimo, -Mas ele sabia que tinha dito 0 que queria. Peter Demonidesvirou-se para Chotas.-Atestemunha é sua. Napoleon Chocas levantou-se. - Obrigado, senhor Demonides. Não tenho perguntas. Os três juízes viraram-se para se entreolharem, intrigados. Um deles falou: -Senhor Chotas, está consciente de que esta é a sua única oportunidade para contra-interrogar a testemunha? Napoleon Chotas pestanejou. -Sim, Meritíssimo. -Em vista do depoimento que fez, não lhe deseja fazer quaisquer perguntas? Napoleon Chotas acenou uma mão no ar e disse, vagamente: -Não, Meritíssimo. 0 juiz suspirou. -Muito bem. A acusação pode chamar a próxima testemunha. A testemunha seguinte era Mihalis Haritonides, um homem corpulento de sessenta e tal anos: Depois de Haritonides prestar juramento, o advogado de defesa perguntou: - Queira informar o tribunal da sua ocupação. - Sim, senhor. Sou gerente de hotel. -Diga-nos o nome do hotel, -Argos. -E onde fica o hotel? - Em Corfu. -Vou perguntar-lhe, senhor Haritonides, se alguém que se encontre nesta sala alguma vez se alojou no seu hotel. Haritonides olhou em volta e disse: -Sim, senhor. Ele e ela. -Que fique em acta que a testemunha está a apontar para Josef Pappas e Anastasia Savalas. -Voltou-se de novo para a testemunha. - Ficaram no seu hotel mais do que uma vez? -Oh, sim, senhor. Estiveram lá meia dúzia de vezes, pelo menos. -E passavam as noites lá, juntos, no mesmo quarto? -Passavam, sim. Vinham geralmente passar o fim-de-semana. -Obrigado, senhorHaritonides.-OlhouparaNapoleonChotas. -A testemunha é sua. -Não tenho perguntas. 0 juiz-presidente virou-se para os outros dois juízes, e entre si sussurraram por uns momentos. 0 juiz-presidente olhou para Napoleon Chotas. -Não tem perguntas para esta testemunha, senhor Chotas ? -Não, Meritíssimo. Acredito no depoimento que fez. Um belo hotel. Eu próprio já lá me hospedei. 0 juiz-presidente olhou fixamente para Napoleon Chotas durante um longo momento. Depois virou-se para a acusação. - 0 estado pode chamar a sua próxima testemunha. - 0 estado gostava de chamar o doutor Vassilis Frangescos. Um homem alto de aspecto distinto levantou-se e caminhou para o banco das testemunhas. Prestou juramento. -Doutor Vassilis Frangescos, queira ter a bondade de dizer a este tribunal que espécie de medicina pratica. - Sou médico de clínica geral, - É o mesmo que médico de família? - Sim, é uma forma diferente de o expressar. -Há quanto tempo é médico? -Há quase trinta anos. -E tem autorização oficial, claro. - Claro. - Doutor Frangescos, George Savalas foi seu doente? - Foi, sim. - Por quanto tempo? -Um pouco mais de dez anos, - E o senhor andava a tratá-lo de algum problema específico? -Bem, da primeira vez que o vi, ele consultara-me porque tinha a tensão alta. -E o senhor tratou-o? - Sim. - Mas o senhor viu-o depois disso? - Oh, sim. Ele costumava vir à consulta de tempos a tempos, quando tinha bronquite, ou alguma inflamação no fígado... nada de grave. - Quando foi a última vez que observou o senhor Savalas? - Em Dezembro do ano passado. - Foi pouco antes de ele ter morrido. -Verdade. - Ele foi ao seu consultório? -Não. Eu é que fui vê-lo a sua casa. -Costuma fazer consultas ao domicffio? -Não, geralmente não. -Mas neste caso fez uma excepção. - Sim. -Porquê? 0 médico hesitou. -Bem, ele não estava em condições de se deslocar ao consultório. -Em que condições é que ele estava? - Tinha dilacerações, umas costelas partidas e uma corrução. -Tinha sofrido algum acidente? 0 doutor. Frangescos hesitou. - Não. Disse-me que a esposa lhe tinha batido. Houve um arquejo audível na sala de audiëncias. 0 juiz-presidente disse, num tom zangado: -Senhor Chotas, não vai protestar contra o facto de se registarem em acta testemunhos auriculares? Napoleon Chotas ergueu o olhar e disse brandamente. -Oh, obrigado, Meritíssimo. Sim, protesto. Mas, claro, o mal já estava feito. Os jurados olhavam agora para a defesa com hostilidade declarada. -Obrigado, doutor Frangescos. Não tenho mais perguntas. Peter Demonides voltou-se para Chotas e disse presunçosamente: -A testemunha é sua. -Não tenho perguntas. Seguiu-se uma torrente contínua de testemunhas: uma criada que depôs que vira a senhora Savalas entrar nos aposentos do motorista em várias ocasiões... um mordomo que depôs que ouvira George Savalas ameaçar divorciar-se da mulher e alterar o seu testamento.., vizinhos que ouviram as discussões barulhentas entre os Savalas. E, no entanto, Napoleon Chotas não teve quaisquer perguntas a fazer às testemunhas. A rede apertava-se rapidamente sobre Anastasia Savalas. Peter Demonides sentia já o brilho da vitória, Na imaginação via os títulos nos jornais. Este ia ser o julgamento de homicídio mais rápido da história. «0 julgamento podia terminar mesmo hoje», pensou ele. «0 famoso Napoleon Chotas é um homem derrotado,» - Gostaria de chamar o senhor Niko Mentakis a depor. Mentakis era um homem novo, alto e diligente, que se exprimia de uma maneira lenta e cuidadosa. -Senhor Mentakis, queira dizer a sua ocupação ao tribunal, por favor. -Sim, senhor. Trabalho num viveiro, -Que cultiva exactamente? - Temos árvores e flores, e todas as espécies de plantas. -Então o senhor é um entendido ern coisas que se cultivam. - Devo ser. Há muito tempo que faço isso. -E ao que me parece uma das suas funções é garantir que as plantas que tem à venda se mantenham saudáveis? -Isso, sim. Tratamo-las muito bem. Nuncavenderíamosplantas doentes aos nossos clientes. A maior parte são regulares. -Com isso o senhor quer dizer que são sempre os mesmos clientes que o procuram? - Sim, senhor. -A sua voz estava orgulhosa. -Nós prestamos uma boa assistência. - Diga-me, senhor Mentakis, a senhora Savalas era uma cliente regular? - Oh, era, sim. A senhora Savalas adora plantas e flores. 0 juiz-presidente disse impacientemente: - Senhor Demonides, o tribunal não sente que esta linha de interrogatório seja pertinente. Queira mudar de assunto, ou... -Se o tribunal permitir que eu termine, Meritíssimo, esta testemunha tem um ponto de vista muito importante sobre o caso. 0 juiz-presidente olhou para Napoleon Chotas. -Senhor Chotas, tem alguma objecção a fazer quanto a esta linha de interrogatório? Napoleon Chotas ergueu o olhar e pestanejou. - 0 quê? Não, Meritíssimo. 0 juiz-presidente fitou-o frustrado e depois voltou-se para Peter Demonides. -Muito bem. Pode prosseguir. - Senhor Mentakis, a senhora Savalas procurou-o um dia em Dezembro e disse-lhe que algumas plantas lhe estavam a dar problemas? - Sim, senhor. É verdade. -Não é verdade que ela disse que uma infestação de insectos lhe estava a destruir as plantas? -Disse, sim. -E não lhe pediu algo que pusesse fim a isso? -Pediu, sim. Sim, senhor. -Importava-se de dizer ao tribunal do que se tratava? -Vendi-lhe um pouco de antimónio. -E importa-se de dizer ao tribunal exactamente o que é isso? -Um veneno, como o arsénico. Houve um tumulto na sala de audiências. 0 juiz-presidente bateu o seu martelo com força. -Em caso de nova desordem, mandarei o oficial de justiça evacuar a sala. -Voltou-se para Peter Demonides. -Pode continuar com o interrogatório. -Portanto, vendeu-lhe uma quantidade de antimónio. - Foi, sim. - E diz o senhor que se trata de um veneno mortal? -Comparou-o ao arsénico. - Oh, é, sim. É mesmo mortal. -E deu baixa da venda no livro de registos, como manda a lei sempre que vende qualquer veneno? - Dei, sim. - E trouxe esses registos consigo, senhor Mentakis ? -Sim, trouxe. -Entregou a Peter Demonides um livro-mestre. 0 advogado de acusação caminhou até aos juízes. - Meritíssimos, gostaria que isto fosse etiquetado como «Prova Ap. Voltou-se para a testemunha. -Não tenho mais perguntas. Olhou para Napoleon Chotas. Napoleon Chotas abanou a cabeça. -Não tenho perguntas. Peler Demonides respirou fundo. Chegou a hora da sua bomba. -Gostaria de mostrar a «Prova B». Virou-se para o fundo da sala e disse a um oficial de justiça que se encontrava junto à porta. - Trazia cá para dentro, por favor? 0 oficial de justiça saiuapressado, e algunsmomentos depois estava de volta com um frasco de xarope numa bandeja. Faltava uma quantidade apreciável. Os espectadores observavam, fascinados, quando 0 oficial de justiça entregou o frasco ao advogado de acusação. Peler Demonides colocou-a sobre a mesa em frente dos juízes. Senhoras e cavalheiros, estão a olhar para a arma do crime. Esta é a arma que matou George Savalas. Este é o xarope que a senhora Savalas administrou ao marido na noite em que ele morreu. Está cheio de antimónio. Como podem ver, avítima engoliu algum.., e vinte minutos depois estava morto. Napoleon Chotas levantou-se e disse num tom brando: -Protesto. 0 advogado de acusação não tem meios para saber se foi exactamente esse o frasco medicado ao falecido. E Peler Demonides fechou a armadilha. -Com todo o devido respeito pelo meu douto colega, a senhora Savalas confessou que deu este xarope ao marido na noite em que ele morreu, 0 frasco esteve guardado pela polícia até ser trazido a este tribunal há alguns minutos atrás. 0 médico-legista testemunhou que George Savalas morreu por envenenamento de antimónio. Este xarope contra a tosse está cheio de antimónio. -Olhou para Napoleon Chotas desafiadoramente. Napoleon Chotas sacudiu a cabeça derrotado. - Então acho que não há dúvida. Peler Demonides disse triunfantemente. -Não há nenhuma. Obrigado, senhor Chotas. A acusação dá por encerrada a apresentação de provas, 0 juiz-presidente voltou-se para Napoleon Chotas. -A defesa está pronta para o seu sumário? Napoleon Chotas levantou-se. - Sim, Meritíssimo. Deixou-se ficar um longo momento. Depois lentamente caminhou em frente. Ficou diante da bancada dos jurados, cofando a cabeça como se estivesse a tentar calcular o que ia dizer. Quando finalmente começou, falou lentamente, buscando as palavras. -Suponho que alguns dos senhores estejam a interrogar-se da razão por que não contra-interroguei nenhuma das testemunhas. Bem, para lhes dizer a verdade, pensei que o senhor Demonides fez um trabalho tão primoroso que eu não precisava de fazer nenhuma pergunta. «0 palerma está a defender o meu caso em meu nome», pensou Peler Demonides animadamente. Napoleon Chotas voltou-se para olhar o frasco de xarope durante um momento, depois virou-se de novo para os jurados. -Todas as testemunhas pareceram muito honestas. Mas de facto não provaram nada, pois não? 0 que eu quero dizer ... - Sacudiu a cabeça. -Bem, se somarmos tudo o que as testemunhas disseram, chegamos a uma só concluso: uma jovem bonita casa-se com um homem velho que provavelmente não conseguia satisfazê-la sexualmente. -Fez um sinal com a cabeça na direcção de Josef Pappas. - Então ela encontrou um homem novo que conseguia. Mas isso nós soubemos pelos jornais, não é verdade? Não há segredos na sua ligação. Todas as pessoas sabiam da sua existência. Tem sido escrita em todas as revistas escabrosas do mundo. Ora, nós podemos não aprovar o comportamento dela, senhoras e cavalheiros, mas Anastasia Savalas não está aqui a ser julgada por adultério. Ela não se encontra neste tribunal porque tem desejos sexuais normais em qualquer mulher nova. Não, ela está a ser julgada neste tribunal por homicídio. Voltou-se para olhar o frasco de novo, como se estivesse fascinado por ele. «Deixem o velho delirar», pensou Peler Demonides. Olhou de relance para o relógio de parede da sala. Faltavam cinco minutos para o meio-dia. Os juízes pediam sempre intervalo ao meio-dia. Nem sequer foi assaz esperto para esperar que o tribunal estivesse suspenso de novo. «Por que tive eu sempre medo dele?» Peler Demonides interrogava-se. Napoleon Chotas divagava. -Vamos examinar as provas juntos, sim? Algumas plantas da senhora Savalas estavam doentes e ela importava-se o bastante com elas para querer salvá-las. Procurou o senhor Mentakis, um perito em plantas, que a aconselhou a usar antimónio. De foc~ma que seguiu o conselho que ele lhe deu. E depoishá o depoimento da governanta, que disse que a senhora Savalas mandou todos os criados embora para poder ter um jantar de lua-de-mel com o marido, que ela ia preparar. Bem, o que eu acho é que a governanta estava provavelmente meio apaixonada pelo senhor Savalas. Não se trabalha para um homem durante vinte e cinco anos a não ser que se nutra sentimentos profundos por ele. Ela ressentia-se de Anastasia Savalas. Não viram isso no seu tom? -Chotas tossiu ligeiramente e aclarou a voz. -Portanto, assumamos que a ré, no fundo do coração, amavarealmente o marido, e tentava desesperadamente fazer funcionar o casamento. Como é que uma mulher mostra a um homem que o ama? Bem, uma das maneiras mais básicas, julgo, cozinhar para ele. Não é uma forma de amor? Acho que sim. -Virou-se para olhar o frasco uma vez mais. - E outra não é tratar dele quando está doente.„ na doença e na saúde? 0 relógio da parede indicava que faltava um minuto para as doze horas. Minhas senhoras e meus senhores, eu disse-lhes quando 0 julgamento começou que analisassem o rosto desta mulher. Não é o rosto de uma assassina. Não são os olhos de uma matadora. Peter Demonides observou os jurados quando eles fitaram a ré. Nunca vira uma hostilidade tão declarada. Tinha o júri no bolso. -Alei é muito clara, senhoras e senhores, Como serão informados pelos nossos Meritíssimos Juízes, para poderem entregar um veredicto de culpa, não devem ter quaisquer dúvidas sobre a culpa da ré. Nenhuma. Enquanto Napoleon Chotas falava, voltou atossir, puxando um lenço do bolso para tapar a boca. Caminhou até ao frasco de xarope que estava na mesa diante do júri. -Espremendo bem as coisas, a acusação não provou realmente nada, pois não? Tirando o facto de que este é o frasco que a senhora Savalas entregou ao marido. A verdade é que o estado não tem nenhum caso. Quando acabou a frase, teve um ataque de tosse. Inconscientemente, alcançou o frasco de xarope, levou-o aos lábios e tomou um gole enorme. Todos os presentes fixaram o olhar, hipnotizados, e houve um arquejo de horror. A sala de audiências estava num tumulto. 0 juiz-presidente disse alarmado: -Senhor Chotas.., Napoleon Chotas tomou outro gole. - Meritíssimo, o caso da acusação é uma chacota à justiça. George Savalas nãomorreu àsmãos destamulher. Adefesa dápor encerrada a apresentação de provas. 0 relógio bateu as doze. Um oficial de justiça caminhou apressado na direcção do juiz-presidente e disse qualquer coisa em voz baixa. 0 juiz-presidente bateu o martelo. -Ordem! Ordem! 0 tribunal está suspenso, 0 júri irá retirar-se e tentar chegar a um veredicto. 0 tribunal voltará a reunir-se às duas horas, Peter Demonides permaneceu sentado, petrificado. Alguém tinha trocado as garrafas! Não, isso eraimpossível. Aprova estiverapermanentemente guardada. Poderia o médico-legista ter-se enganado? Demonides voltou-se para falar ao seu assistente, e quando percorreu o olharem busca de Napoleon Chotas, este tinha desaparecido. Às duas horas, quando o tribunal se reuniu novamente, o júri entrou em fila lenta na sala de audiências e tomou os seus lugares. Napoleon Chotas estava ausente. HO filho da puta morreuU, pensou Peter Demonides. E exactamente no momento em que pensava nisso, Napoleon Chotas atravessou a porta, com um ar perfeitamente saudável. Todas as pessoas que estavam na sala se voltaram para fitá-lo, enquanto ele caminhava para o seu lugar. 0 juiz-presidente disse: - Senhores jurados, chegaram a um veredicto? 0 presidente do júri levantou-se. -Chegámos, Meritíssimo. A ré é inocente. Houve uma explosão de aplausos espontâneapor parte do público, Peter Demonides sentiu o sangue desaparecer-lhe do rosto. «0 sacana voltou a vencer-me», pensou. Ergueu o olhar num relance e Napoleon Chotas estava a olhar para ele, com um sorriso largo. Afirma de Tritsis e Tritsis era indubitavelmente a firma de advogados mais prestigiosa da Grécia. Osfundadores retiraram-se havia muito, e a firma pertencia a Napoleon Chotas. Havia meia dúzia de sócios, mas Chotas era o génio lideraste. Sempre que pessoas endinheiradas eram acusadas de homicídio, os seus pensamentos invariavelmente voltavam-se para Napoleon Chotas. A sua folha de serviços era fenomenal. Nos anos que levava na defesa de pessoas acusadas de crimes capitais, Chotas marcara sucessos contínuos. 0 recente julgamento de Anastasia Savalas fora notícia em todo o mundo. Chotas defendera uma cliente naquele que toda a gente pensava tratar-se de um caso bem definido de homicídio, e arrebatara uma vitória espectacular. Correra um grande risco ao aceitá-lo, mas soubera que era a única maneira para poder salvar a vida da sua cliente. Ria consigo próprio quando se lembrava dos rostos dos jurados ao vê-lo tomar um gole do xarope carregado com um veneno mortal. Tinha organizado cuidadosamente em termos de tempo o seu sumário de forma a ser interrompido exactamente às doze horas. Essa era a chave para tudo. Se os juízes tivessem alterado a sua rotina fixa e ido almoçar depois das doze horas... Estremeceu só de pensar no que teria acontecido. Como veio a acontecer, registara-se uma ocorre ncia inesperada que quase lhe custou a vida. Depois da interrupção, Chotas descia apressadamente o corredor quando um grupo de repórteres lhe bloqueou o caminho. -Senhor Chotas, como é que o senhor sabia que o xarope não estava envenenado...? -Pode explicar-nos como...? -Acha que alguém trocou os frascos.,.? -Anastasia Savalas tinha...? Por favor, cavalheiros, lamento, mas tenho de responder a uma chamada da natureza, Terei todo o prazer em responder às vossas perguntas mais tarde. Apressou-se até à casa de banho dos homens que ficava ao fundo do corredor. Um letreiro na maçaneta dizia: AVARIADO. Um repórter disse: -Parece que vai ter que encontrar outra casa de banho, Napoleon Chotas deu um sorriso largo. -Não aguento mais. -Arrombou a porta à força, entrou e trancou-a atrás de si, A equipa estava lá dentro à espera dele. 0 médico queixou-se: -Já estava a ficar preocupado. 0 antimónio actua rapidamente. -Disse asperamente o assistente. -Prepare a bomba gástrica. -Sim, doutor. 0 médico virou-se para Napoleon Chotas. -Deite-se no chão, Lamento, mas isto vai ser desagradável, - Quando considero a alternativa - Napoleon Chotas deu um sorriso largo -, estou certo de que não me importo. Os honorários de Napoleon Chotas para salvar a vida de Anastasia Savalas foram de um milhão de dólares, depositados numa conta bancária na Suíça. Chotas tinha uma casa palacial em Kolonarai - uma elegante área residencial de Atenas-,uma uilla na ilha de Corfu e um apartamento em Paris na Avenida Foch, Feitas bem as contas, Napoleon Chotas tinha razões excelentes para estar satisfeito com a vida. Havia apenas uma nuvem no seu horizonte. Chamava-se Frederick Stavros, e era o membro mais recente de Tritsis e Tritsis. Os outros advogados da firma queixavam-se constantemente de Stavros. -Ele é de segunda qualidade. Olugar dele não é numafirma como esta... - Stavros quase deu cabo do meu caso, 0 homem é um idiota. -Já sabe o que o Stavros fez ontem no tribunal? 0 juiz quase o pôs de lá para fora.., -Raios, por que não o despede? Ele aqui é uma quinta roda. Não precisamos dele, e ele está a prejudicar a nossa reputação. Napoleon Chocas estava bem consciente disso. E quase se sentiu tentado a deixar escapar a verdade: «não posso despedi-lo.~ Mas tudo o que dizia era: -Dêem-lhe uma oportunidade. 0 Stavros vai sair-se bem. E foi tudo o que os sócios conseguiram tirar dele. Um filósofo disse um dia: -Toma cuidado com o que desejas; podes consegui-lo. Frederick Stavros, o membro mais novo de Tritsis e Tritsis, conseguira o seu deseja, e isso fizera dele o homem mais infeliz da terra, Era incapaz de dormir ou comer, e o seu peso diminuíra alarmantemente. -Tens de ir ao médico, Frederick-insistia a mulher. Estás com muito mau aspecto. -Não, eu.,. de nada serviria. Ele sabia que o seu mal não podia ser tratado por nenhum médico. A sua consciência matava-o, Frederick Stavros era um homem novo, intenso, ansioso, am:~icioso e idealista, Durante anos trabalhara num escritório pobre eri Monastiraki, a área pobre de Atenas, defendendo clientes indigentes, muitas vezes sem receber honorários. Quando conheceu Napoleon Chotas, a sua vida mudou da noite para o dia. Um ano antes, Stavros defendera Lorry Douglas, em julgamento com Noelle Page pelo homicídio da mulher de Douglas, Catherine. Napoleon Chotas fora contratado pelo poderoso Constantin Demiris para defender a sua amante. Desde o início, Stavros ficara feliz por Chatas ter-se encarregado de ambas as defesas. Ele estava espantado com o novo advogado. -Devias ver o Chotas em acção - dizia ele à mulher. 0 homem é incrível. Quem me dera poder trabalhar na firma dele um d:.a. Quando o julgamento se aproximava do seu termo, houve uma alteração inesperada. Um Napoleon Chotas sorridente reuniu Noelle Page, Lorry Douglas e Frederick Stavros numa sala de audiências privada. Chotas disse a Stavros. -Acabei de conferenciar com os juízes. Se os réus estiverem dispostos a transformar as suas acções em culpa, os juízes concordaram em aplicar a cada um uma pena de cinco anos, sendo quatro aros de pena suspensa. De facto, não terão de cumprir mais do que seis meses. -Voltou-se para Lorry. -Pelo facto de ser americano, senhor Douglas, será deportado. Não será autorizado a regressar à Grécia. Noelle Page e Lorry Douglas concordaram ansiosamente em alteror as suas defesas. Um quarto de hora mais tarde, quando os réus e os advogados se encontravam diante do banco o juiz-presidente disse: - Os tribunais gregos nunca aplicaram a pena de morte num caso em que um homicídio não tivesse ficado definitivamente comprovado. Os meus colegas e eu ficámos, por essa razão, francamente surpreendidos quando os réus passaram as suas defesas a culpa a meio do julgamento... pronuncio que a sentença para os dois réus, Noelle Page e Lorry Douglas, será a execução por um esquadrão de fuzilamenta... a ser cumprida dentro de noventa dias a partir desta data. I E foi nesse momento que Stavros soube que Napoleon Chotas os traíra a todos. Nunca houvera nenhum acordo. Chotas fora contratado por Constantin Demiris não para defender Noelle Page, mas para garantir a sua condenação. Esta foi a vingança de Demiris sobre a mulher que o havia traído. Stavros fora um cúmplice involuntário numa trama a sangue-frio. «Não posso permitir que isto aconteça», pensou Stavros. Vou dizer ao juiz-presidente o que Chotas fez, e o veredicto sofrerá uma reviravolta. E então Napoleon Chotas viera ao encontro de Stavros e dissera: - Caso esteja livre amanhã, por que não vem almoçar comigo, Frederick? Gostaria que conhecesse os meus sócios... Quatro semanas depois, Frederick Stavros era um sócio a tempo inteiro na prestigiosa firma de Tritsis e Tritsis, com um gabinete enorme e um salário generoso. Vendera a alma ao diabo. Mas chegara à conclusão de que era terrível guardar esse segredo. - «Não posso continuar assim. Não conseguia ver-se livre dos sentimentos de culpa. «Sou um assassino», pensou. Frederick Stavros-agonizava no seu dilema e chegou por fim a uma decisão. Entrou no gabinete de Napoleon Chotas certa manhã bem cedo. - Leon... Meu Deus, homem, por que não tira umas feriazitas, Frederick? Só lhe fará bem. Mas Stavros sabia que essa não era a solução para o seu problema. - Leon, estou-lhe muito grato pelo que fez por mim, mas não posso continuar aqui. Chotas olhou para ele surpreendido. - Que está para aí a dizer? Você está a sair-se bem, -Não. Eu... eu sinto-me arrasado. -Arrasado? Não sei o que está a perturbá-lo. Frederick Stavros olhou para ele incredulamente. -0 que... o que eu e você fizemos ao Noelle Page e ao Lorry Douglas. Não.„ não sente nenhuma culpa? Os olhos de Chotas contraíram-se. NCuidado.~ -Frederick, porvezes a justiça tem de serfeita de umaforma tortuosa. -Napoleon Chotas sorriu. -Acredite-me, nós não temos que nos recriminar por nada. Eles eram culpados. -Fomos nós que os condenámos. Nós enganámo-los. Não aguento mais. Lamento. Vim entregar o meu aviso de demissão. Ficarei aqui até ao fim do mês. -Não aceito a sua demissão-disse Chotasfirmemente. Por que não faz como eu lhe sugeri,.. tire umas férias e...? - Não. Eu nunca poderia ser feliz aqui, sabendo o que sei. Peço desculpa. Napoleon Chotas analisou-a, com olhar duro. -Tem alguma ideia do que está a fazer? Está a deitar fora uma carreira brilhante... a sua vida. -Não. Estou a salvar a minha vida. -Então tomou mesmo uma decisão definitiva? -Tomei. Tenho muita pena, Leon. Mas não precisa de se preocupar, eu nunca falarei.„ do que aconteceu.-Virou-se e saiu do gabinete. Napoleon Chotas sentou-se à secretária durante muito tempo, perdido em pensamentos. Por fim, tomou uma decisão. Levantou o auscultador e marcou um número. -Comunique ao senhor Demiris que preciso de vê-lo esta tarde. Diga-lhe que é urgente. Às quatro horas dessa tarde, Napoleon Chotas estava sentado no gabinete de Constantin Demiris. -Qual é o problema, Leon?-perguntou Demiris, - Pode não haver problema - replicou Chotas cuidadosamente-, mas achei que devia dizer-lhe que o Frederick Stavros veio falar comigo esta manhã. Decidiu abandonar a firma. -Stavros? 0 advogado do Lorry Douglas? E depois? - Parece que a consciência está a pesar-lhe. Houve um silêncio pesado. -Estou a entender. -Ele prometeu não falar daquilo... daquilo que ocorreu naquele dia no tribunal. -Acredita nele? -Sim. De facto, acredito, Costa, Constantin Demiris sorriu. -Então, está bem. Não temos com que nos preocupar, pois não? Napoleon Chotas levantou-se aliviado. - Suponho que não. Apenas pensei que devia dizer-lhe. - Fez bem em dizer-me. Está livre para jantar na semana que vem? -Claro. -Eu telefono-lhe, e combinamos qualquer coisa, -Obrigado, Costa. Na sexta-feira, ao fim da tarde, a velha igreja de Kapnikarea na baixa de Atenas estava repleta com o som do silêncio, tranquilo e abafado, Num canto junto ao altar, Frederick Stavros estava ajoelhado diante do padre Konstantinou. 0 padre colocou um pano sobre a cabeça de Stavros. -Eu pequei, padre. Não tenho salvação. -0 grande problema do homem, meu filho, é que ele pensa que é apenas humano. Quais são os seus pecados? -Sou um assassino. - Tirou a vida a alguém? -Sim, padre. Não sei o que fazer para expiar. - Deus sabe o que irá fazer. Vamos perguntar-Lhe. -Deixei-me desencaminhar, por vaidade e ganância. Aconteceu há um ano. 0 julgamento corria bem. Mas depois o Napoleon Chotas„. Quando Frederick Stavros deixou a igreja meia hora depois, sentia-se um homem diferente. Foi como se lhe tivessem tirado um tremendo fardo dos ombros. Sentiu-se purificado pelo ritual secular da confissão, Contara tudo ao padre e, pela primeira vez desde aquele dia terrível, sentiu-se de novo completo. «Vou começar uma vida nova. Vou viver noutra cidade e começar tudo de novo. Tentarei de alguma forma compensar a coisa terrível que fiz. Obrigado, Pai, por me dar nova oportunidade. A escuridão caíra sobre a cidade, e o centro da Praça Ermos estava quase deserto. Assim que Frederick Stavros alcançou a esquinada rua, o sinal ficou verde e ele começou a atravessar. Quando estava a meio do cruzamento, uma limusina negra começou a descer a colina com os faróis acesos, vociferando em direcção a ele como um monstro gigantesco e irracional. Stavros arregalou os olhos, gelado. Era tarde de mais para saltar. Houve um estrondo enorme, e Stavros sentiu o corpo ser esmagado e separado em dois. Houve um instante de dor excruciante, e depois escuridão. Napoleon Chotas era madrugador. Gostava dos momentos de solidão antes que as pressões do dia começassem a devorá-lo. Tomava o pequeno-almoço sempre sozinho e lia os matutinos à refeição. Nesta manhã particular havia vários artigos de interesse. 0 primeiro-ministro Themistocles Sophoulius havia formado um novo governo sustentado por uma coligação de cinco partidos. Asforças comunistas chinesas tinham chegado à margem norte do rio Yangts. Harry Truman e Alben Barkley tomaram posse como presidente e vice-presidente dos Estados Unidos. Napoleon Chotas virou apágina, e o sangue gelou-se-lhe. A notícia que o atraiu dizia o seguinte: 0 senhor Frederick Stavros, sócio da prestigiosa firma de advogados Tritsis e Tritsis, foi atingido e morto a noite passada, por um condutor que se pôs em fuga, quando saia da Igreja de Kapnikarea. De acordo com testemunhas oculares, tratava-se de uma limusina preta sem chapa de matrícula. 0 senhor Stavros foi uma figura importante no sensacional julgamento de Noelle Page e Lorry Douglas. Era o advogado de Lorry Douglas e... Napoleon Chotas parou de ler. Sentou-se na cadeira, rígido, o pequeno-almoço esquecido. Um acidente. Foi um acidente? Constantin Demiris dissera-lhe que não precisava de preocupar-se com nada. Mas muitas pessoashaviam cometido o erro de avaliar Constantin Demiris pelo significado manifesto. Chotas pegou no telefone e ligou para Constantin Demiris. Uma secretária pô-lo em comunicação.