-Vamos pôr-nos a mexer daqui para fora.

-SÓ um minuto.-Ele tinha o peito do doente aberto e estava a remover pedaços de estilhaços ensanguentados.

-Alan!

Mas ele não podia ir-se embora. Estava concentrado no que fazia, alheio ao som das bombas que caíam à sua volta. Nunca ouviu o som da bomba que caiu no edifício. Esteve em coma durante seis dias, e quando acordou soube que, entre outros ferimentos, os ossos da sua mão direita tinham sido esmagados. Foram consertados e pareciam normais, mas não voltaria a operar. Levou quase um ano a ultrapassar o trauma de ver o seu futuro destruído. Esteve sob os cuidados de um psiquiatra, um médico competente que disse:

-Vão sendo horas de deixar de sentir pena de si próprio e iniciar uma vida nova.

-Afazer o quê?-Alan perguntara amargamente.

- 0 que tem andado a fazer.., só que de uma maneira diferente. -Não estou a perceber.

-Você é um médico, Alan. Cura os corpos das pessoas. -Bem, isso já não pode voltar a fazer. Mas é igualmente importante curar as mentes das pessoas. Você daria um óptimo psiquiatra. É inteligente e tem compaixão, Pense nisso.

Revelara-se uma das decisões mais compensadoras que jamais tomara. Gostava tremendamente do que fazia. Em certo sentido, achava ainda mais satisfatório trazer pacientes que viviam no desespero de volta à vida normal do que ocupar-se do seu bem-estar físico. A sua reputação crescera rapidamente, e durante os três últimos anos fora forçado a rejeitar novos doentes. Concordara em receber Catherine só para lhe recomendar outro médico. Mas algo nela o deixara sensibilizado. «Tenho de ajudá-la Quando Catherine regressou ao escritório depois da consulta com o doutor Alan Hamilton, foi ver Wim.

-Fui hoje ao doutor Hamilton-disse Catherine.

-Ai sim? No reajustamento sócio-psiquiátrico, a escala classificativa pela morte do cônjuge é de cem, divórcio setenta e três, separação marital de um parceiro sessenta e cinco, detenção numa prisão sessenta e trës, morte de um parente chegado sessenta e três, ferimento pessoal ou doença cinquenta e três, casamento cinquenta, despedimento quarenta e sete...

Catherine ficou a ouvir. «Como é que será», interrogou-se ela, «pensar nas coisas só em termos matemáticos? Não conhecer outra pessoa como um ser humano, não ter um amigo verdadeiro. Eu sinto-mecomo se tivesse encontrado um novo amigo», pensou Catherine. «Gostava de saber há quanto tempo ele é casado.» «Tu tentaste destruir-me. Falhaste. Prometo-te que teria sido melhor para ti se tivesses conseguido. Mas primeiro vou destruir a tua irmã.» As palavras de Constantin Demiris ainda soavam nos ouvidos de Lambrou. Não tinha dúvida de que Demiris tentaria levar por diante a sua ameaça. 0 que é que em nome de Deus pôde ter corrido mal com Rizzoli? Tudo fora tão cuidadosamente planeado. Mas não havia tempo para especular sobre o que acontecera. 0 que importava agora era precaver a irmã. A secretária de Lambrou entrou no gabinete.

- 0 seu compromisso das dez horas está à espera. Quer que mande...?

- Não. Cancele todos os meus compromissos. Não voltarei esta manhã.

Pegou no telefone, e cinco minutos depois ia a caminho do encontro com Melina. Ela aguardavam no jardim da villa.

-Spyros. Parecias tão preocupado ao telefone! 0 que é que se passa?

-Temosde conversar.-Levou-apara umbanco que ficava nùm miradouro coberto de videiras. Ficou a olhar para ela e pensou. «Que mulher tão encantadora. Trouxe sempre afelicidade a todos quantos a sua vida tocou. Não fez nada para merecer isto.»

- Não me vais dizer o que se passa? Lambrou respirou fundo.

-Vai ser muito doloroso, querida. -Estás a começar a preocupar-me.

-É essa a minha intenção. A tua vida está em perigo. - 0 quê? Ameaçada por quem?

Ele mediu as palavras cuidadosamente. -Penso que o Costa vai tentar matar-te. Melina olhava-o fixamente, boquiaberta, -Estás a brincar.

-Não, Melina, é a sério.

- Querido, o Costa pode ser muita coisa, mas não é um assassino. Ele não poderia...

-Estás enganada. Ele já matou. 0 rosto dela empalidecera.

- 0 que é que estás a dizer?

-Oh, ele não o faz com as próprias mãos. Contrata pessoas para matarem em vez dele, mas...

-Não acredito em ti.

-Lembras-te da Catherine Alexander? - A mulher que foi assassinada...

- Ela não foi assassinada. Está viva. Melina sacudiu a cabeça.

- Ela... não pode estar. Quer dizer.., as pessoas que a mataram foram executadas.

Lambrou tomou a mão da irmã na sua.

-Melina, o Larry Douglas e a Noelle Page não mataram a Catherine. Durante todo o julgamento, o Demiris manteve-a escondida. Melina estava espantada, muda, lembrando-se da mulher que vira de relance na casa.

«Quem é a mulher que eu vi no hall?» «E uma amiga de um sócio. Vai trabalhar para mim em Londres.» «Eu vi-a de relance. Ela faz-me lembrar alguém. Faz-me lembrar a mulher do piloto que trabalhava para ti. Mas isso é impossível, claro. Eles mataram-na.» «É verdade, eles mataram-na,~ Tornou a falar.

-Ela esteve cá em casa, Spyros. 0 Costa mentiu-me sobre ela. -Ele é louco. Quero que faças as malas e saias deste lugar. Ela olhou para ele e disse lentamente:

-Não, esta é a minha casa.

-Melina, eu não conseguiria aguentar se te acontecesse alguma coisa.

Havia algo na voz dela.

- Não te preocupes. Nada me irá acontecer. 0 Costa não é nenhum idiota. Ele sabe que se fizesse alguma coisa para me prejudicar iria pagar bem caro por isso.

-Ele é teu marido, mas tu não o conheces. Receio pelo que te possa acontecer.

-Eu sei encarregar-me dele, Spyros.

Olhou para ela e sabia que não havia maneira de persuadi-la a mudar de ideias.

-Se não quiseres ir embora, faz-me um favor. Promete que não ficarás sozinha com ele.

Ela bateu-lhe ao de leve na face. - Prometo.

Melina não fazia tenções de manter essa promessa.

Quando ConstantinDemiris chegou acasa nessanoite, Melina estava à espera dele. Ele fez-lhe um sinal com a cabeça e seguiu para o quarto dele.

Melina seguiu.

-Acho que devíamos ter uma conversa-disse Melina. Demiris olhou para o relógio.

-SÓ disponho de uns minutos. Tenho um compromisso. -Tens? Estás a planear matar alguém esta noite?

Ele voltou-se para ela.

-Que delírio é esse que estás para aí a ter? - 0 Spyros veio ver-me hoje de manhã.

-Vou ter de avisar o teu irmão para que se afaste da minha casa. -Também é a minha casa -disse Melina em tom de desafio. - Tivemos uma conversa interessantíssima.

- Realmente? Sobre o quê?

- Sobre ti, Catherine Douglas e Noelle Page. Conseguira a atenção toda dele agora. -Isso é história antiga.

-É? 0 Spyros diz que tu mataste duas pessoas inocentes, Costa. - 0 Spyros Lambrou é um idiota.

-Eu vi a rapariga aqui, nesta casa.

- Ninguém vai acreditar em ti. Não voltarás a vê-la. -Arranjei uma pessoa para me livrar dela.

E Melina de repente lembrou-se dos três homens que vieram jantar. «Vocês partem para Londres logo de manhã. Tenho a certeza de que tudo será resolvido.» Ele aproximou-se de Melina e disse suavemente:

-Sabes, estou a ficar farto de ti e do teu irmão. -Agarrou-a por um braço e apertou-o com força. - 0 Spyros Lambrou tentou arruinar-me. Eledeviater-memorto.-Apertoucommaisforça.-Vocês os dois vãa desejar que ele o tivesse feito.

- Pára com isso, estás-me a magoar.

- Minha querida esposa, tu não sabes o que é a dor. Mas vais aprender. - Largou-lhe o braço. - Vou ~íivorciar-me. Quero uma mulher a sério. Mas não sairei da tuavida. Oh, não. Tenho planas maravilhosos para ti e para o teu querido irmão. Bem, já conversámos. Se me dás licença, vou-me mudar. Não é boa educação fazer uma senhora esperar. Virou-se e entrou no quarto de vestir. Melina deixou-se ficar, o coração aos pulos. 0 Spyros Lambrou tem razão. «Ele é louco.» Ela sentiu-se completamente desamparada, mas não temia pela própriavida. «Que coisame prende àvida?», Melinapensavaamargamente. 0 marido despojara-a de toda a dignidade e fizera-a descer ao seu nível. Pensou em todas as vezes que ele a humilhara, a maltratara em público. Ela sabia que era objecto de pena entre os seus amigos. Não, já não se preocupava consigo própria. «Estou disposta a morrer», pensou, «mas não posso consentir que faça mal ao Spyros.» E no entanto que podia ela fazer para impedi-lo? Spyros era poderoso, mas o marido era mais poderoso. Melina sabia com uma certeza terrível que se ela o deixasse o marido cumpriria a sua ameaça. «Tenho de impedi-lo de alguma forma. Mas como? Como...?» Adelegação dos executivos de Atenas mantinha Catherine ocupada. Elamarcava-lhes reuniões com executivos de outras companhias e informavas das operações de Londres. Eles estavam maravilhados com a sua eficiência. Ela conhecia todas as fases da transacção, e eles estavam impressionados. Os diasde Catherine estavam cheios, e as distracções mantinham-lhe o pensamento afastado dos seus próprios problemas. Ela foi conhecendo cada um dos homens um pouco melhor. Jerry Haley era a ovelha negra da família. 0 pai fora um abastado homem do petróleo, e o avô, um juiz respeitado. Quando Jerry Haley tinha vinte e um anos, cumprira já três anos em centros de detenção juvenil por roubo de automóveis, assalto e invasão, e violação. A família enviara-o por fim para a Europa para se ver livre dele.

-Mas eu endireitei-me-disse Haley a Catherine com orgulho. -Virei uma página nova.

Yves Renard era um homem amargo. Catherine soube que os pais o abandonaram, e ele fora educado por uns parentes distantes que o maltrataram.

-Eles tinham uma quinta perto de Vichy, e obrigavam-me trabalhar que nem um cão, de sol a sol. Fugi de lá quando tinha quinze anos e fui trabalhar para Paris.

0 italiano Dino Mattusi, sempre bem-disposto, nasceu na Sicília, filho de pais da classe média.

-Quando tinha dezasseis anos, causei um grande escândalo ao fugir com uma mulher casada dez anos mais velha do que eu. Ah, ela era belíssima.

- Que é que aconteceu? Suspirou.

-Trouxeram-me para casa e depois mandaram-me para Roma para fugir à ira do marido da mulher.

Catherine sorriu.

- Estou a ver. Quando é que começou a trabalhar na firma do senhor Demiris ?

Ele disse evasivamente.

- Mais tarde. Fiz muitas coisas primeiro. Sabe... todo o tipo de trabalhos. Tudo para ganhar a vida.

- E depois conheceu a sua mulher? Ele fitou Catherine nos olhos e disse: -A minha mulher não está aqui.

Ele observava-a, falava com ela, escutava o som da suavoz, sentia o seu perfume. Quis sabertudo a seurespeito. Gostava damaneira comoela se movimentava e gostaria de saber como seria o corpo dela sob o vestido. Em breve saberia. Muito em breve. Mal podia esperar. Jerry Haley entrou no gabinete de Catherine. - Gosta de teatro, Catherine?

- Claro que sim. Eu...

-Estreouum novo musical. OArco-íris deFinian. Eu gostava de ir ver hoje à noite.

-Terei todo o prazer em arranjar-lhe uma entrada.

-Não teria muita piada ir sozinho, pois não? Tem que fazer? Catherine hesitou.

- Não. - Deu por si a olhar fixamente para as suas mãos enormes e inquietas.

- Óptimo! Vá buscar-me ao hotel às sete horas. - Era uma ordem. Ele voltou-se e saiu da sala.

«Era estranho», pensou Catherine. «Ele parecia tão amável e aberto e no entanto...

«Euendireitei-me.•> Ela não conseguia afastar a imagem daquelas mãos enormes da ideia.

Jerry Haley estava à espera de Catherine no salão do Hotel Savoy, e foram para o teatro numa limusina da firma.

- Londres é uma grande cidade - disse f erry Haley. - Gosto sempre de voltar aqui. Está cá há muito tempo?

-Há alguns meses. -Você é americana? - Sou. De Chicago. -Uma bela cidade. Passei lá uns bons tempos. «A violar mulheres?»

Chegaram ao teatro e misturaram-se com a multidão. 0 espectáculo foi maravilhoso e o elenco era excelente, mas Catherine não consegui concentrar-se. Jerry Haley passou o tempo a tamborilar com os dedos no braço da cadeira, no colo, nos joelhos. Foi incapaz de manter as suas enormes mãos sossegadas. Quando a peça acabou, Haley virou-se para Catherine e disse: -Está uma noite tão bonita. Porque é que não arrumamos o carro e vamos dar uma volta por Hyde Park?

-Eu tenho que estar amanhã bem cedo no escritório-disse Catherine. -Talvez numa outra altura.

Haley analisou-a, um sorriso enigmático no seu rosto. - Certo - disse ele. - Temos muito tempo. Yves Renard estava interessado por museus.

-É claro-disse o francês a Catherine-que em Paris temos o maior museu do mundo. Já foi ao Louvre?

-Não-disse Catherine.-Nunca estive em Paris.

-É pena. Devia ir lá um dia. -Mas, apesar de o ter dito, pensou ele consigo: «Sei que ela não irá. -Eu gostava de ver os museus de Londres. Talvez no sábado pudéssemos ir visitar alguns.

Catherine planeara pôr em dia algum do trabalho do escritório no sábado. Mas Constantin Demiris pedira-lhe para cuidar dos visitantes.

- Está bem - disse ela. - Sábado será óptimo.

Catherine não ansiava passar um dia com o francês. Ele é tão amargo. Comporta-se como se ainda andassem a maltratá-lo.

0 dia começou bastante agradavelmente. Primeiro, foram ao Museu Britânico, onde deambularam por entre galerias com magníficos tesouros do passado. Viram uma cópia da Magna Carta, uma proclamação assinada por Isabel I e tratados de batalhas combatidas em séculos anteriores. Havia algo em Yves Renard que incomodava Catherine, e só depois de estarem há quase uma hora no museu é que ela se apercebeu do que se tratava. Estavam a olharparaumavitrina que continha um documento escrito pelo Almirante Nelson.

-Acho que esta é uma das peças mais interessantes em exibição - disse Catherine. - Foi escrita momentos antes de o almirante Nelson partir para a batalha. Sabe, é que ele não sabia se tinha autoridade... -E ela de repente apercebeu-se de que Yves Renard não estava a prestar atenção. E uma outra percepção apossou-se dela: ele não prestara quase nenhuma atenção às exposições que havia no museu. Nâo estava interessado. «Então porque é que ele me disse que queria ver museus?» interrogou-se Catherine.

A seguir foram ao Museu Victoria e Albert, e a experiência repetiu-se. Destavez, Catherine observava-o de perto. YvesRenard ia de sala em sala elogiando da boca para fora o que viam, mas a sua mente estava obviamente noutro lugar. Quando terminaram, Catherine perguntou:

- Gostava de ir visitar a Abadia de Westminster? Yves Renard fez um sinal afirmativo com a cabeça. - Sim, claro.

Percorreram a imponente abadia, parando para ver os túmulos doshomensfamosos dahistória que ali estavm sepultados, poetas, estadistas e monarcas.

-Olhe -disse Catherine -, aqui é onde o Keats está sepultado. Renard baixou o olhar num relance.

-Ah, Keats. -E depois continuou a andar.

Catherine ficou ali atendendo. «De que anda ele à procura? Porque é que está a desperdiçar assim o dia?»

Quando estavam de regresso ao hotel, Yves Renard disse: - Obrigado, Miss Alexander. Gostei muito. «Ele está a mentir», pensou Catherine. «Mas porquê?»

- Ouvi dizer que há um lugar muito interessante. Stonehenge. Dizem que fica no Planalto de Salisbúria,

- Fica aí, sim - disse Catherine.

- Porque não vamos até lá visitar, talvez sábado que vem? Catherine interrogou-se se ele acharia Stonehenge mais interessante do que os museus.

- Seria óptimo.

Dino Mattusi era um gastrónomo. Entrou no gabinete de Catherine com um guia.

- Tenho aqui uma lista dos melhores restaurantes de Londres. Está interessada?

- Bem, eu...

- Óptimo! Hoje ã noite vou levá-la a jantar ao Connaught. Catherine disse:

-Esta noite tenho de...

- Nada de desculpas. Vou buscá-la às oito. Catherine hesitou.

-Muito bem. Mattusi ficou radiante.

-Bene!-Inclinou-se para a frente. -Não tem piada fazer as coisas sozinha, pois não?-0 significado era inconfundível. «Mas ele é tão óbvio»,pensou Catherine, «que é de facto completamente inofensivo.»

Ojantar no Connaught estava delicioso. Jantaram salmão escocês fumado, rosbife e pudim de Yorkshire. Quando comiam a salada, Dino Mattusi disse: -Acho-a fascinante, Catherine. Adoro as mulheres americanas. -Oh. A sua mulher é americana?-Catherine perguntou inocentemente. Mattusi encolheu os ombros.

-Não, é italiana. Mas é muito compreensiva. -Isso para si deve ser óptimo -disse Catherine. Ele sorriu.

-É óptimo.

- Só quando estavam a comer a sobremesa é que Dino Mattusi disse:

- Gosta do campo? Tenho um amigo que tem carro. Achei que pudéssemos ir dar um passeio no domingo.

Catherine começou por dizer não, e depois repentinamente pensou em Wim. Ele parecia tão sozinho. Talvez gostasse de ir dar uma volta de carro pelo campo.

-Parece ser divertido.

- Prometo-lhe que vai ser interessante. - Será que posso trazer o Wim?

Ele sacudiu a cabeça.

- É um carro pequeno. Vou tratar das coisas.

Os visitantes de Atenas eram exigentes, e Catherine viu-se com muito pouco tempo para si própria. Haley, Renard e Mattusi tinham tido várias reuniões com Wim Vandeen, e Catherine achava piada à maneira como as suas atitudes se haviam alterado.

- Ele faz tudo sem calculadora - disse Haley maravilhado. - É verdade.

- Nunca vi nada parecido.

Catherine estava impressionada com Atavas Stavich. 0 rapaz era o trabalhador mais esforçado que ela conhecera. Ele já estava no escritório quando Catherine chegava de manhã, eficavalá depois de todos os outros saírem. Estava sempre a sorrir e ansioso por agradar. Fazia lembrar a Catherine um cachorrinho agitado. Algures no seu passado, alguém o tratara muito mal. Catherine resolveu falar de Atavas a Alan Hamilton. «Tem de haverumamaneira de construir a sua autoconfiança, pensou Catherine. «Estou certa de que o Alan o poderia ajudar.»

- Sabes que o garoto está apaixonado por ti, não sabes? - disse Evelyn um dia.

- De que é que estás a falar?

-Do Atavas. Não viste o olhar de adoração nos olhos dele? Ele segue-te como se fosse uma ovelha tresmalhada.

Catherine riu-se. - Estás a exagerar. Num impulso, Catherine convidou Atavas para almoçar.

-Num.. num restaurante? Catherine sorriu.

- Sim, claro.

0 rosto dele corou.

- Não... não sei, Miss Alexander. Baixou os olhos pela roupa imprópria.

-A senhora sentiria vergonha de ser vista na minha companhia. -Eu não julgo as pessoas pela roupa que vestem -disse Catherine com firmeza. -Vou tratar da reserva.

Levou Atavas a almoçar ao Lyons Corner House. Ele sentou-se à frente dela, espantado com o ambiente.

-Nunca estive num lugar como este. É tão bonito. Catherinef cou sensibilizada.

- Quero que peças tudo o que te apetecer. Ele analisou a ementa e abanou a cabeça. -É tudo tão caro.

Catherine sorriu.

-Não te preocupes com isso, Tu e eu trabalhamos para um homem muito rico. Tenho a certeza de que ele gostaria que nós comêssemosuma boa refeição.-Não lhe disse que quem ia pagar seria ela.

Atavas pediucocktail de camarão e salada, um frango assado com batata frita e terminou a refeição com bolo de chocolate com gelado. Catherine viu comer espantada. Ele tinha uma estrutura tão pequena.

- Onde é que metes isso tudo? Atavas disse envergonhado: -Eu não engordo,

- Gostas de Londres, Atavas?

Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça. -Do que vi gostei muito. -Trabalhavas como paquete em Atenas? Disse que sim com a cabeça.

- Para o senhor Demiris.-Houve uma nota de amargura na sua voz.

- Não gostaste?

-Desculpe-me... não sou eu quem deve dizer, mas o senhor Demiris não me parece boa pessoa. Eu... não gosto dele.-Ojovem olhou emvolta num relance como se alguém o tivesse ouvido sem querer.Ele... não importa, Catherine pensou que era melhor não perguntar mais.

- 0 que é que te fez decidir vir para Londres, Atavas?

Atavas disse qualquer coisa tão baixinho que Catherine não conseguiu ouvi-lo.

-Como?

- Eu quero ser médico. Ela olhou para ele, curiosa. -Médico?

-Sim, senhora. Sei que parece uma parvoíce.-Hesitou, depois prosseguiu. -A minha família é de Macedónia e toda a minha vida ouvi histórias sobre os turcos que entravam na nossa aldeia para matar e torturar o nosso povo. Não havia médicos para ajudar os feridos. Agora, a aldeia já não existe e a minha família foi exterminada. Mas ainda há muitas pessoas feridas no mundo, Eu quero ajudá-Ias. - Baixou os olhos, embaraçado. -A senhora deve pensar que eu sou maluco.

-Não – disse Catherine num tom calmo.-Acho que isso é maravilhoso. Então tu vieste para Londres com o intuito de estudar medicina?

- É verdade. Vou trabalhar de dia e estudar de noite. Vou ser médico.

Havia um toque de determinação naquela voz. Catherine fez um sinal afirmativo com a cabeça.

-Acredito que sim.

-Havemos de falar mais sobre isso, nós os dois. Tenho um amigo que te poderá ajudar. E conheço um restaurante maravilhoso onde poderemos almoçar na semana que vem.

À meia-noite, uma bomba explodiu na villa de Spyros Lambrou. A explosão destruiu a frente da casa e matou dois criados. 0 quarto de Spyros Lambrou ficou destruído, e ele sobreviveu simplesmente porque à última hora ele e a mulher mudaram de planos e decidiram ir a um jantar oferecido pelo presidente da Câmara de Atenas. Na manhã seguinte, chegou ao seu escritório uma nota que dizia «Marte aos capitalistas». Estava assinado. Partido Revolucionário Helénico.

-Por que te fariam eles uma coisa deste género? -perguntou Melina horrorizada.

-Não foram eles - disse Spyros bruscamente. - Foi o Costa. -Tu... não tens provas.

-Não preciso de provas nenhumas. Ainda não percebeste com quem estás casada?

-Não sei o que pensar.

-Melina, enquanto esse homem for vivo, nós os dois estaremos em perigo. Nada o deterá.

-Não podes ir à polícia?

- Tu própria o disseste. Não tenho provas. Eles iam rir-se na minha cara. -Ele tomou as mãos dela nas suas. -Quero que saias daqui. Por favor. Vai para o lugar mais longe possível.

Ela deixou-se ficar durante muito tempo. Quando por fim falou, foi como se tivesse tomado uma decisão de grande importância. -Muito bem, Spyros. Farei o que devo fazer.

Ele abraçou-a.

-Óptimo. E não te preocupes. Arranjaremos um meio de impedi-lo.

Melina ficou no quarto durante a longa tarde, a sua mente tentando aceitar o que estava a acontecer. Era verdade, o marido falara a sério quando ameaçara destruí-la a ela e ao irmão. Ela não podia deixar que ele concretizasse essaameaça. E, se as suas vidas estavam em perigo, também estava a vida de Catherine Douglas. «Ela vai trabalhar para mim em Londres. Eu vou adverti-la», pensou Melina. «Mas preciso de fazer mais do que isso. Preciso de destruir o Costa. Preciso de impedi-lo que faça mal a outras pessoas. Mas como?» E foi então que lhe surgiu a resposta. «Claro!», pensou ela. «E a única maneira. Porque é que não pensei nisso antes?»

C: Desculpe o atraso, Alan. Houve uma reunião de última hora no escritório.

A: Não há problema. A delegação de Atenas ainda está em Londres?

C: Está. Eles... estão a pensar partir no fim da semana que vem.

A: Você parece aliviada. Eles têm sido difíceis?

C: Não propriamente difíceis, só que tenho uma sensação estranha em relação a eles.

A: Estranha?

C: Édifícilexplicar.Podeparecerparvoíce,mas...háalgodeesquisito em todos eles.

A: Eles fizeram alguma coisa que...?

C: Não. Apenas me deixam pouco à vontade. A noite passada, voltei a ter o pesadelo.

A: Aquele sonho em que algum tentava afogá-la?

C: Sim. Não tinha esse sonho há uns tempos, E desta vez foi diferente.

ARQUIVO CONFIDENCIAL Transcrição da Sessão com Catherine Douglas

A: De que maneira?

C: Era mais... real. E não terminou onde terminara antes.

A: Foi além do momento em que algum tentava afogá-la?

C: Sim. Estavam a tentar afogar-me e de repente eu estava num lugar seguro.

A: No convento?

C: Não tenho a certeza. Podia ter sido. Era um jardim. E apareceu um homem para me ver. Acho que já sonhei com qualquer coisa assim antes, mas só que desta vez eu pude ver-lhe o rosto.

A: Reconheceu-o?

C: Sim. Era o Constantin Demiris.

A: Portanto, no seu sonho...

C: Alan, não foi apenas um sonho. Foi uma recordação verdadeira. De repente lembrei-me que o Constantin Demiris me deu o alfinete de ouro que possuo.

A: Acreditaqueoseusubconscientelhetrouxeàmemóriaalgoque realmente aconteceu? Tem a certeza de que não era...

C: Eu conheço-o. 0 Constantin Demiris deu-me esse alfinete no convento.

A: Disse que foi salva do lago por umas freiras que a recolheram no convento?

C: É verdade.

A: Catherine, alguém sabia que esteve no convento? C: Não, acho que não.

Então como é que o Constantin Demiris podia ter sabido que estavalá? Eu... eu não sei. Apenas sei que isso aconteceu. Acordei sobressaltada. Parecia que o sonho era uma espécie de aviso. Sinto que algo de terrível vai acontecer. Os pesadelos podem ter esse efeito em nós. 0 pesadelo é um dos mais velhos inimigos do homem. A palavra tem a sua origem no inglês médio nitz, ou

Assim que lá chegou, a porta foi aberta por um homem que não reconheceu.

- Boa noite, senhor Demiris.

Lá dentro, Demiris viu meia dúzia de agentes da polícia. - 0 que é que se passa aqui? - perguntou Demiris.

- Sou o tenente de Polícia Theophilos. Eu...

Demiris afastou-o e entrou na sala de estar. Era uma carnificina. Era óbvio que acontecera uma luta terrível. Mesas e cadeiras estavam de pernas para o ar. Um dos vestidos de Melina estava caído no chão, rasgado. Demiris apanhou e fitou-o.

-Onde é que está a minha mulher? Eu vinha encontrar-me com ela aqui.

0 tenente de polícia disse:

-Ela não está aqui. Nós revistámos a casa e percorremos a praia por todo o lado. Parece que a casa foi assaltada.

-Bem, onde é que está a Melina? Ela telefonou-Ihe? Esteve cá? -Sim, pensamos que ela esteve aqui. -Ele mostrou um relógio de mulher. O vidro foi partido e os ponteiros pararam nas três horas. -Este relógio é da sua esposa?

-Parece que sim.

-Atrás há uma gravação: «Para Melina com amor, Costa.~> - Então é. Foi um presente de aniversário.

0 detective Theophilos apontou para umas manchas no tapete. -Aquilo são manchas de sangue, -Apanhou uma faca que estava no chão, cauteloso para não tocar no cabo. Alâmina estava coberta de sangue.

-Já alguma vez viu esta faca?

Demiris olhou-a num breve relance.

- Não. Está a querer dizer-me que ela morreu?

-Por certo é uma possibilidade. Encontrámos gotas de sangue na areia que vai até à àgua.

-Meu Deus-disse Demiris.

- Para nossa sorte, há algumas impressões digitais nítidas na faca.

Demiris sentou-se pesadamente.

- Então o senhor vai apanhar quem quer que o tenha feito. -Certamente, se asimpressões digitais estiverem no arquivo. Há impressões digitais por toda a casa. Temos de classificá-las. Caso não se importe de nos dar as suas impressões digitais, senhor Demiris, podemos eliminá-las já. Demiris hesitou. -Sim, claro.

Ali o sargento pode encarregar-se disso. Demiris caminhou até um polícia fardado que tinha uma prancha de impressões digitais. - Queira colocar aqui os seus dedos. - Pouco depois estava pronto. - 0 senhor compreende que se trata apenas de uma formalidade.

- Claro.

0 tenente Theophilos entregou a Demiris um pequeno cartão comercial.

- Sabe alguma coisa sobre isto, senhor Demiris?

Demiris olhou para o cartão. Dizia o seguinte: «Agência de Detectives Katelanos-Investigações Particulares» Devolveu o cartão. , -Não. Tem algum significado?

- Não sei. Estamos a verificar.

-Naturalmente que é meu desejo que os senhores façam tudo 0 que puderem para encontrarem o responsável. E informem-me se souberem alguma coisa sobre a minha mulher.

0 tenente Theophilos olhou para ele e fez um sinal afirmativo com a cabeça.

-Não se preocupe. Não deixaremos de fazê-lo.

«Melina. A rapariga de ouro, atraente, brilhante e divertida. Fora tão maravilhoso no início. E depois ela matara o filho, e por isso nunca poderia haver perdão... apenas a morte.

A chamada chegou ao meio-dia do dia seguinte. Constantin Demiris estava a meio de uma conferência quando a secretária tocou. -Peço desculpa, senhor Demiris...

- Eu disse-lhe que não queria ser incomodado.

-Pois disse, mas um tal inspector Lavanos está ao telefone. Diz que é urgente. Quer que lhe diga para...?

-Não. Vou atender. -Demiris virou-se para os homens que se sentavam à volta da mesa da conferência. -Desculpem-me por um momento. - Pegou no telefone. - Demiris.

Uma voz disse:

- Aqui é o inspector Lavanos, senhor Demiris, da Esquadra Central. Temos umainformação quepensamos poder interessar-lhe. Será que podia vir até aqui ao comando-geral da polícia?

-Tem notícias da minha mulher?

- Eu preferia não discutir o assunto ao telefone, se não se importa.

Demiris hesitou por um momento.

-Vou já para aí. -Pousou o telefone e virou-se para os outros. -Surgiu uma coisa urgente. Porque é que nâo vão para a sala de reuniões e discutem a minha proposta, que eu estarei de volta para lhes fazer companhia ao almoço? Houve um murmúrio geral de concordância. Cinco minutos depois, Demiris estava a caminho do comando-geral. Haviameia dúzia dehomens à sua espera nogabinetedo comissário da polícia. Demiris reconheceu os polícias que vira na casa de praia. -... e este é o promotor público especial Delma.

Delma era um homem baixo e entroncado, com sobrancelhas carregadas,uma face redonda e uns olhos cínicos.

-Que é que aconteceu? -Demiris perguntou. -Há notícias da minha mulher?

0 inspector-chefe disse:

- Para ser totalmente franco, senhor Demiris, deparamos com coisas que nos intrigam. Esperávamos que o senhor nos pudesse ajudar.

-Infelizmente há muito pouco que eu possa fazer para os ajudar. Tudo isto é tão chocante...

-0 senhor tinha marcado um encontro com a sua esposa na casa de praia por volta da uma hora de ontem à tarde?

- 0 quê? Não. A senhora Demiris telefonou-me e pediu-me para que me encontrasse com ela lá às sete horas.

0 promotor Delma disse num tom brando:

- Ora, essa é uma das coisas que nos está a intrigar. Uma criada sua disse-nos que o senhor telefonou à sua mulher por volta das duas horas e lhe pediu que fosse à casa de praia sozinha e esperasse por si.

Demiris franziu o sobrolho.

-Ela está a fazer confusão. A minha mulher é que me telefonou a pedir-me que fosse ter com ela lá às sete horas a noite passada. -Entendo. Então a criada enganou-se.

-Obviamente.

-Sabe que razão a sua esposa terá tido para lhe pedir que fosse à casa de praia?

-Suponho que queria tentar convencer-me a desistir do divórcio. - 0 senhor tinha dito à sua esposa que ia divorciar-se dela? -Tinha.

- A criada diz que ouviu uma conversa ao telefone durante a qual a senhora Demiris lhe disse que ela é que ia divorciar-se de si. -Estou-me nas tintas para o que a criada disse. 0 senhor terá de crer na minha palavra.

- Senhor Demiris, o senhor tem calções de banho na casa de praia?-perguntou o inspector~hefe.

-Na casa de praia? Não. Deixei de nadar no mar há anos. Uso a piscina na casa da cidade.

0 inspector-chefe abriu uma gaveta da secretária e tirou um par de calções de banho que estavam dentro de um saco de plástico. Tirou-os e segurou-os para que Demiris os visse.

- Estes calções são seus, senhor Demiris ? - Poderiam ser meus, acho eu.

- Têm as suas iniciais.

- Sim. Parece que estou a reconhecê-los. São meus.

- Encontrárno-los no funda de um roupeiro na casa de praia. -E daí Provavelmente foram lá deixados há muito tempo. Porque é que...?

- Ainda estavam molhados com água salgada. A análise revelou que a água é igual à que está em frente à sua casa de praia. As manchas vermelhas são sangue.

0 gabinete estava a ficar muito quente. -Entãoumaoutrapessoadevetê-losvestido-disse Demiris firmemente.

0 promotor especial disse:

-Por que razão iria alguém fazer isso? Essa é uma das coisas que está a incomodar-nos, senhor Demiris.

0 inspector-chefe abriu um pequeno envelope que estava sobre a secretária e tirou um botão dourado.

-Um dos meus homens achou isto debaixo de um tapete da casa de praia. Reconhece-o?

-Não.

-É de um dos seus casacos. Tomámos a liberdade de mandar um detective a sua casahoje de manhã para verificar o seuguarda-fatos. Faltava um botão num dos casacos. As linhas condizem perfeitamente. E o casaco chegou da lavandaria há exactamente uma semana. -Eu não.,.

- Senhor Demiris, o senhor afirmou ter dito à sua mulher que queria,divorciar-se e que ela estava a tentar dissuadi-lo?

- E correcto.

Oinspector ergueu o cartão comercial que foramostrado aDemiris na casa de praia na véspera.

- Um dos nossos homens visitou hoje a Agência de Detectives Katelanos.

- Eu já disse aos senhores que nunca ouvi falar deles. -A sua esposa contratou-os para que a protegessem. A notícia surgiu como um choque.

- Melina? Protegê-la de quê?

-De si. De acordo com o proprietário da agência, a sua mulher vinha ameaçando com um pedido de divórcio, e o senhor disse que, se ela levasse a ideia por diante, a mataria. Ele perguntou-lhe por que razão não pedia ela protecção à polícia, e ela disse que queria manter o assunto em privado. Não queria publicidade.

Demiris pôs-se de pé.

-Não vou ficar aqui a ouvir essas mentiras. Não há...

0 inspector meteu a mão numa gaveta e tirou a faca manchada de sangue que fora encontrada na casa de praia.

-0 senhor disse ao agente na casa de praia que nunca tinha visto esta faca?

- É verdade.

-As suas impressões digitais estão nesta faca. Demiris olhava fixamente para a faca.

-As minhas.., as minhas impressões digitais? Deve haver engano, Isso é impossível!

A sua mente galopava. Analisava velozmente as provas que se amontoavam contra si: a criada afirmando que telefonara à mulher às duas horas para lhe dizer que fosse ter com ele à casa de praia sozinha... um par de calções de banho com manchas de sangue... um botão rasgado do blusão... uma faca com as suas impressões digitais...

-Não estão a ver, seus idiotas? É uma trama-gritou ele. -Alguém levou esses calções de banho para a casa de praia, derramouum pouco de sangue sobre eles e sobre a faca, puxou um botão do meu casaco, e... 0 promotor especial interrompeu.

-Senhor Demiris, pode explicar como é que as suas impressões digitais foram parar a esta faca?

-Eu... não sei... Espere aí. Pois. Já me lembro. AMelina pediu-me que eu lhe abrisse um pacote. Deve ser essa faca que ela me deu. Por isso as minhas impressões estão aí.

-Entendo. 0 que é que havia no pacote? - Eu... não sei.

- Não sabe o que havia no pacote?

- Não. Só cortei o fio. Ela nunca chegou a abri-lo.

-Pode explicar as manchas de sangue no tapete, ou na areia a caminho da praia, ou...?

- Óbvio. -Ripostou Demiris. -Tudo o que a Melina teve de fazerfoi fazer um pequeno golpe e depois caminhar na direcção da água, para que se pensasse que eu a assassinei. Ela está a tentar vingar-se de mim porque eu disse-lhe que meia divorciar dela. Neste preciso momento, ela está escondida algures a rir-se porque pensa que o senhor me vai prender. A Melina está tão viva quanto eu. 0 procurador especial disse num tom grave:

- Oxalá isso fosse verdade. Retirámos o seu corpo do mar esta manhã. Ela foi apunhalada e afogada. 0 senhor vai ficar sob prisão, senhor Demiris, pela morte da sua mulher. percebeste? Acabou. Não quero mais nada contigo. Sai daqui, metes-me nojo. Melina ficou a olhar para ele. Por fim disse num tom calmo: -Muito bem. Faz o que quiseres. -Virou-se e deixou o escritório com a faca na mão.

-Esqueceste-te do embrulho-gritou Demiris. Ela já tinha saído.

Melinaentrouno quartodevestirdomaridoeabriuaportadoroupeiro. Havia uma centena de fatos pendurados no roupeiro com uma parte reservada a casacos desportivos. Agarrou num dos casacos e arrancou um botão dourado. Meteu o botão no bolso dela. A seguir abriu uma gaveta e tirou uns calções de banho do marido com as suas iniciais. «Estou quase pronta», pensou Melina. AAgência de Detectives Katelanos ficava localizada numa esquina da Rua Sofokleous num velho edifício de tijolo desbotado. Melina foi conduzida ao gabinete do proprietário da agência, o senhor Katelanos, um homenzinho careca com um bigode fino.

- Bom dia, senhora Demiris. Posso ajudá-la? -Preciso de protecção.

- Que espécie de protecção? - Do meu marido.

Katelanosfranziu o sobrolho. Cheirava-lhe a esturro. Não era de modo algum o caso que ele antecipara. Seria muito imprudente fazer algo que pudesse ofender um homem tão poderoso como Constantin Demiris.

-Já pensou em ir à polícia? - perguntou ele.

-Não posso. Não quero publicidade de qualquer espécie.

- Quero manter isto privado. Eu disse ao meu marido que queria divorciar-me dele, e ele ameaçou matar-me se eu fosse por diante. Por isso vim procurá-lo.

- Compreendo. 0 que é que deseja exactamente que eu faça? - Quero que contrate uns homens para me protegerem. Katelanos pôs-se a estudá-la. «É uma mulher bonita», pensou.,

«Obviamente neurótica.» Era inconcebível que o marido lhe pudesse fazer mal. Tratava-se provavalmente de um pequeno arrufo doméstico que passaria dentro de poucos dias. Mas, entretanto, poderia cobrar. No começo, Melina não fizera ideia de como iria executar o plano. Apenas sabia que o marido tencionava destruir o irmão, e ela não podia permitir que isso acontecesse. De alguma forma, Costa tinha de ser detido. A vida dela já não tinha importância. Os seus dias e as suas noites estavam cheios de dor e humilhação. Lembrava-se de como Spyros tentara preveni-la contra o casamento. «Tu não te podes casar com o Demiris. Ele é um monstro. Ele vai destruir-te». Como ele estava certo. E ela estava demasiado apaixonada para prestar atenção. Agora o marido tinha de ser destruído. Mas como? «Pensa como o Costa.» E foi o que ela fizera. Pela manhã, Melina preparara todos os pormenores. Feito isso, o resto fora simples. Constantin Demiris estava no escritório de casa a trabalhar quando Melina entrou. Trazia um embrulho ando com um barbante grosso. Tinha uma faca enorme na mão.

- Costa, importavas-te de me abrir isto? Acho que não consigo. Ele ergueu o olhar e disse impacientemente

-Claro que não podes. Não sabes que não se deve seguraruma faca pela lâmina? - Ele arrancou-lhe a faca e começou a cortar o barbante.

- Não podias ter pedido a um criado que fizesse isso? Melina não respondeu.

Demiris acabou de cortar o barbante.

- Pronto! - Ele pousou a faca e Melina apanhou-a cuidadosamente pela lâmina.

Ela olhou para ele e disse:

-Costa, nós não podemos continuar assim. Eu ainda te amo. Tu ainda deves sentir alguma coisa por mim. Lembras-te dos tempos maravilhosos que passámos juntos? Lembras-te da noite da nossa lua-de-mel quando...?

-Pelo amor de Deus-disse Demiris bruscamente.--lhe uns bons honorários. Feitas as contas, Katelanos decidiu que valia a pena o risco.

- Muito bem - disse ele. - Tenho um homem de confiança a quem posso entregar o seu caso. Quando deseja que ele comece? -Na segunda-feira.

Portanto ele estava certo. Não havia urgëncia. Melina Demiris pôs-se de pé.

-Depois telefono-lhe. Tem um cartão da firma? -Naturalmente que sim. -Katelanos entregou-lhe o cartão da firma e conduziu-a até ao exterior. «É uma boa cliente», pensou. «0 nome dela vai impressionar os outros clientes.» Quando Melina voltou para casa, telefonou ao irmão:

- Spyros, tenho uma boa notícia. - A sua voz estava cheia de excitação. - 0 Costa quer uma trégua.

- 0 quê? Eu não confio nele, Melina. Deve ser algum truque. Ele...

- Não. É a sério. Ele acha que é uma estupidez vocês os dais andarem sempre a brigar. Ele quer ter paz na fami7ia.

Houve um silêncio. -Não sei.

- Dá-lhe pelo menos uma oportunidade. Ele quer encontrar-se contigo no teu pavilhão de caça de Acrocorinto hoje à tarde às três horas.

- Mas isso são três horas de carro. Porque é que não podemos encontrar-nos na cidade?

-Ele não disse-adiantou-lhe Melina-mas sevai serpormotivo de paz...

- Está bem. Eu vou. Mas faço-o por ti. -Por nós-disse Melina. -Adeus, Spyros. -Adeus.

Melina telefonou a Constantin para o escritório. A voz dele foi abrupta.

-0 que é? Estou ocupado.

-Acabei de receber um telefonema do Spyros. Ele quer fazer as pazes contigo.

Houve um riso breve e desdenhoso.

-Aposto que sim. Quando eu tiver acabado com ele, ele vai ter a paz que sempre desejou...

- Ele disse que não vai competir mais contigo, Costa. - Ele está disposto a vender-te a frota dele.

-Vender-me a... Tens a certeza? -A voz dele ficou de repente cheia de interesse.

-Tenho. Ele disse que já está farto.

-Muito bem. Ele que mande os contabilistas dele ao meu gabinete, e...

-Não . Ele quer encontrar-se contigo esta tarde às três horas em Acrocorinto.

-No pavilhão de caça dele?

- Sim. E um lugar retirado, Serão só vocês os dois. Ele quer sigilo absoluto sobre o assunto.

«Aposto que quer>, pensou Demiris com satisfação. «Quando se souber, ele vai ser motivo de riso.» -Está bem-disse Demiris.-Podes dizer-lhe que eulá estarei. A viagem para Acrocorinto era longa, com estradas cheias de curvas que serpenteavam por entre o pavilhão de caça luxuriante, fragrante com os odores dasvinhas, doslimões e do feno. Spyros Lambrou passou por antigas ruínas ao longo do caminho. Na distância, viu os pilares caídos do Elefsis, os altares em ruínas de deuses menores. Pensou em Demiris. Lambrou foi o primeiro a chegar ao pavilhão de caça. Estacionou à frente da cabana e ficou sentado dentro do automóvel por um momento, a pensar no encontro que ia ter. Constantin queria mesmo uma trégua, ou era mais um dos seus truques? Se lhe acontecesse algumacoisa, pelo menos Melina sabia aonde ele tinhaido. Spyros saiu do carro e entrou na casa deserta.

0 pavilhão de caça era um velho e belo edifício de madeira com vista sobre Corinto que se erguia em baixo. Quando era rapaz, Spyros Lambrou passara fins-de-semana com o pai ali, atrás de caça pequena nas montanhas. Agora a caça era maior. Quinze minutos depois, chegou ConstantinDemiris. ViuSpyros lá dentro, à espera, o que lhe deu uma satisfação intensa. «Portanto, depois de todos estes anos, o homem está finalmente disposto a admitir que foi derrotado.» Saiu do carro e entrou na cabana. Os dois homens fitaram-se mutuamente.

-Bem, meu caro cunhado-disse Demiris-,chegamos então ao fim da estrada.

- Eu quero que esta loucura tenha um fim, Costa. Foi longe de mais.

-Não podia concordar mais contigo. Quantos navios é que tens, Spyros?

Lambrou olhou para ele surpreendido. - 0 quê?

-Quantos navios é que tu tens? Compro~s todos. Com um desconto substancial, naturalmente.

Lambrou não podia acreditar no que ouvia. -Comprares-me os meus navios?

-Estou disposto a comprá-los todos. Fará de mim dono da maior frota do mundo.

-Estás maluco? 0 que é que... que te faz pensar que eu quero vender os meus navios?

Foi a vez de Demiris reagir.

- É por isso que estamos aqui, não ?

- Estamos aqui porque tu pediste uma trégua. Aface de Demiris escureceu.

-Eu.., quem é que te disse isso? - Foi a Melina.

A verdade revelou-se-lhes no mesmo momento. -Ela disse-te que eu queria uma trégua?

-Ela disse-te que eu queria vender-te os meus navios?

- Estúpida de merda- exclamou Demiris. -Suponho que ela pensou que pelo facto de nos reunirmos poderíamos chegar a uma espécie de acordo. Ainda é mais idiota do que tu, Lambrou. Perdi uma tarde par causa de ti.

Constantin Demiris voltou-se e saiu furioso porta fora. Spyros Lambrou olhou para ele, a pensar: «A Melina não nos devia ter mentido. Ela devia saber que eu e o marido dela nunca haveremos de reconciliar-nos. Não é agora. É demasiado tarde. Foi sempre tarde de mais »

Às duas horas dessa tarde, Melina chamou a criada. - Andrea, importa-se de me trazer um pouco de chá?

- Não , minha senhora. - A criada saiu do quarto e, quando voltou com a bandeja do chá dez minutos depois, a patroa falava ao telefone. 0 tom era zangado.

-Não, Costa, já decidi. Tenciono divorciar-me de ti, e vou fazer o maior escândalo público que eu puder.

- Embaraçada, Andréa colocou a bandeja e dirigiu-se para a porta. Melina fez-lhe sinal para que ficasse.

Melina falava para o telefone desligado.

- Podes fazer-me todas as ameaças. Eu não vou mudar de ideias... Nunca... Pouco me rala o que estás para aí a dizer... Tu não me metes medo, Costa... Não ... De que é que adiantava?... Está bem. Vou ter contigo à casa de praia, mas não vai servir de nada. Está bem, vou sozinha. Dentro de uma hora. Está muito bem.

Lentamente, Melina pousou o telefone, com um olhar preocupado no rosto. Virou-se para Andrea.

-Vou à casa de praia para me encontrar com o meu marido. Se eu não tiver voltado até às seis horas, quero que chame a polícia. Andrea engoliu nervosamente.

-A senhora deseja que o motorista a leve?

- Não. 0 senhor Demiris pediu-me para eu ir sozinha. - Sim, senhora.

Havia mais uma coisa a fazer. A vida de Catherine Alexander estava em perigo. Tinha de ser avisada. Era alguém da delegação que jantara em casa. «Não vais voltar a vê-la. Mandei uma pessoa dar-lhe um fim.» Melina pediu uma chamada para os escritórios do marido em Londres.

- Há uma pessoa de nome Catherine Alexander que trabalha aí~? -Ela nâo se encontra de momento. Pode ser com outra pessoa? Melina hesitou. 0 recado era úrgente de mais para confiar noutra pessoa, mas não teria tempo de voltar a ligar.

Lembrou-se de Costa ter mencionado o nome de Wim Vandeen, um génio no escritório.

- Poderia falar com o senhor Vandeen? - Só um momento.

Uma voz de homem surgiu na linha. -Estou.

Ela quase não o percebia.

-Tenho um recado para a Catherine Alexander. É muito importante. Importa-se de lho transmitir?

-À Catherine Alexander.

-Sim. Diga-lhe... diga-lhe que a vida dela corre perigo, Alguém vai tentar mofa-la. Acho que poderá ser um dos homems que foi de Atenas.

-Atenas... - Sim.

Atenas tem uma população de oitocentas e sessenta mil... Pareceu a Melina que o homem não a entendeu. Desligou o telefone. Fizera o melhor que pudera. Wim ficou à secretária, digerindo a chamada telefónica. «Alguém vai tentar matar a Catherine. Cento e catorze mortes foram cometidas na Inglaterra este ano, a Catherine será a número cento e quinze. Um dos homens queveio deAtenas. Jerry Haley,Yves Renard, Dino Mattusi. Um deles vai matar a Catherine.» A mente de computador de Wim logo se encheu com dados sobre os três homens. «Acho que sei qual é.» Quando Catherine regressou mais tarde, Wim não lhe disse nada sobre o telefonema. Ele tinha curiosidade em saber se estava certo. Catherine saía com um membro diferente da delegaçâo todas as noites, e quando vinha trabalhar todas as manhãs Wim estava lá, à espera. Ele parecia desapontado em vê-la. «Quando é que ela ia permitir que ele o fizesse?» Wim interrogou-se. «Talvez devesse informá-la sobre o recado. Mas isso seria fazer batota. Não seria justo alterar as apostas Aviagem para a casa de praia levou uma hora de tempo real e vinte anos de memórias. Havia tanto para Melina reflectir, tanto para recordar. Costa, jovem e bonito, dizendo, «Claro quevocê foienviadados céus para nos mostrar o que é a beleza. Você está além do galanteio. Nada do que eu pudesse dizer lhe faria justiça...» Os cruzeiros maravilhosos no iate e as frias idílicas em Psara... Os dias dos amorosos presentes-surpresa e as noites de amor selvagem. E depois o aborto, a série de amantes e o caso com Noelle Page. E os espancamentos e ashumilhações públicas. «Monnareemou! Tu não tens umarazão para viver», dissera-lhe ele. «Porque é que não te matas?» E, por fim, a ameaça para destruir Spyros. Isso foi o que, no fim, Melina não conseguiu suportar. Quando Melina chegou à casa de praia, estava deserta. 0 céu estava nublado, ehaviaum vento desagradável que soprava dos mares. «Um presságio», pensou ela. Entrou na casa confortável e amistosa e percorreu o olhar pela última vez. Depois começou a virar a mobília e a partir os candeeiros. Rasgou o vestido e deixou-o cair no chão, Tirou o cartão da agência de detectives e colocou-o na mesa. Levantou o tapete e pôs o botão sob o mesmo. A seguir tirou o relógio de ouro que Costa lhe dera e esmagou-o contra a mesa, Apanhou os calções de banho do marido que trouxera de casa e levou-os ã praia. Molhou-os na água e voltou a entrar na casa. Finalmente, só faltava fazer uma coisa. «Chegou a hora», pensou ela. Respirou fundo e lentamente apanhou a faca e desembrulhou-a, tomando cuidado para não deslocar o papel que cobria o cabo. Melina segurou-a, fitando-a. Era a parte crucial. Tinha de e sfaquear-se com força suficiente para parecer homicídio, e ao mesmo tempo ter energia bastante para levar por diante o resto do plano. Fechou os olhos e espetou a faca bem fundo no seu corpo. A dor foi excruciante. 0 sangue começou a jorrar. Melina segurava os calções de banho a seu lado, e quando ficaram cobertos de sangue ela dirigiu-se a um roupeiro e atirou-os lá para dentro. Começa va a sentir-se tonta. Olhou em volta para ter a certeza de que não se esquecera de nada, depois foi a tropeçar até à porta que dava para a praia, o sangue manchando a alcatifa com um vermelho brilhante. Caminhou na direcção do oceano. 0 sangue saía agora mais rápido, e ela pensou, «Não vou conseguir.» 0 Costa vai ganhar. Não posso deixar que isso aconteça. A caminhada até ao mar parecia nunca mais acabar. «Mais um passo», pensou. «Só mais um passo.» Ela continuava a andar, combatendo a tontura que tomava conta de si. A visão começou a enevoar -se. Caiu de joelhos. Não posso parar agora. Ergueu-se e continuou a andar até que sentiu a água fria bater-lhe nos pés. Quando a água salgada lhe tocou no ferimento, deu um grito alto por causa da dor insuportável. «Faço isto pelo Spyros», pensou ela. «Querido Spyros.» Ao longe, viu uma nuvem baixa que pairava sobre o horizonte. Começou a nadar na sua direcção, deixando um rasto de sangue. E aconteceu um milagre. A nuvem desceu sobre ela, e ela sentiu a sua maciez branca envolvê-la, banhá-la, acariciá-la. A dor desaparecera, e ela sentiu uma paz maravilhosa apoderar-se de si. «Vou paracasa», pensou Melina feliz. «Voufinalmente para casa.»

-Vou prendê-lo pela morte da sua esposa.

Depois disso, tudo parecia acontecer em movimento lento. Preencheu a ficha, e tiraram-lhe as impressões digitais de novo. Foi fotografado e colocado numa cela. Era inacreditável que ousassem fazer-lhe isto a ele.

-Mande-me chamar Pete Demonides. Diga-lhe que quero falar com ele agora mesmo.

-0 senhorDemonidesfoi suspensodassuasfunções. Estásobinvestigação.

De modo que não havia a quem socorrer. «Eu vou-me safar disto», pensou. «Eu sou Constantin Demiris.»

Mandou chamar o promotor especial. Delma chegou à prisão uma hora mais tarde, -Pediu para falar comigo,

-Pedi, sim - disse Demiris. -Sei que fixou a hora da morte da minha mulher às três horas.

-É correcto.

- Então, antes que o senhor se meta a si e à polícia em mais sarilhos, posso provar-lhe que não estive em lugar nenhum perto da casa dé praia ontem a essa hora.

- Pode provar isso?

-Claro. Tenho uma testemunha.

Eles estavam sentados no gabinete do comissário de polícia quando Spyros Lambrou chegou. 0 rosto de Demiris iluminou-se quando o viu.

-Spyros, graças a Deus que chegaste! Estes idiotas pensam que eu matei a Melina, Tu sabes que eu não o poderia ter feito. Diz-lhes. -Spyros Lambrou franziu o sobrolho,

-Digo-lhes o quê?

-A Melina foi morta ontem às três da tarde. Nós estávamos juntos em Acrocorinto às três horas. Eu não podia ter chegado à casa de praia antes das sete. Conta-lhes o nosso encontro, Spyros Lambrou olhava-o fixamente. -Que encontro?

0 sangue começou a esgotar-se do rosto de Demiris,

-0... o encontro que tu e eu tivemos ontem. No pavilhão de caça em Acrocorinto.

-Deves estar a fazer confusão, Costa. Eu ontem estive fora sozinho. Não vou mentir por tua causa.

0 rosto de Constantin Demiris encheu-se de raiva.

-Tu não podes fazer isto! -Ele agarrou as bandas do casaco de Lambrou. -Diz-lhes a verdade.

Spyros Lambrou empurrou-o.

-A verdade é que a minha irmã está morta, e foste tu que a mataste.

-Mentiroso! -gritou Demiris -Mentiroso! -Ele avançou na direcção de Lambrou de novo e dois polícias tiveram de detê-lo. -Seu filho da puta. Sabes que estou inocente.

-Isso quem vai decidir são os juízes. Acho que vais precisar de um bom advogado.

E Constantin Demiris apercebeu-se de que só havia um homem que poderia tê-lo salvo : Napoleon Chotas.

ARQLIVO COSF[DENCIAL Transcrição da Sessão com Catherine Dotcglas

C: Acredita em premonições, Alan?

A: Elas não são cientificamente aceites, mas eu de facto acredito. Tem tido premonições?

C: Tenho. Tenho a sensação de que algo de terrível me vai acontecer.

A: Faz parte do seu velho sonho?

C: Não. Eu disse-lhe que o senhor Demiris enviou uns homens de Atenas...

A: É verdade.

C: Ele pediu-me que tratasse deles, de forma que os tenho visto com alguma frequência.

A: Sente-se ameaçada por eles?

C: Não. Não exactamente. É difícil de explicar. Eles não fizeram nada, e no entanto eu ... estou sempre à espera que alguma coisa aconteça.

A: Fale-me deles.

C: Háum francës, o Yves Renard. Insiste em irmos a museus, mas quando lá chegamos verifico que ele não está interessado, Pediu-me que o levasse a Stonehenge sábado que vem.

Há o Jerry Haley. É americano. Parece bastante agradável, mas há nele algo de perturbador. Depoishá o Dino Mattusi. Vem creditado como executivo dafirma do senhor Demiris, masfaz muitas perguntaspara as quais ele devia ter a resposta. Convidou-me para um passeio de carro. Pensei em levar o Wim comigo... E isto agora é outra coisa.

É?

0 Wim tem agido com estranheza. Em que sentido? Quando chego ao escritório de manhã, o Wim está sempre à minha espera, coisa que nunca costumava fazer. E quando me vê quase como se estivesse zangado poreu estar ali. Nada distofaz sentido, pois não? chegada dos estranhos de Atenas, e Atenas era a cena do passado traumático. A parte sobre Wim intrigou Alan. Estaria Catherine a imaginá-la? Ou estava Wirn a comportar-se de uma forma atípica? «Vou ver o Wim dentro de algumas semanas», pensou Alan. «Talvez eu antecipe a consulta dele.» Alan ficou a pensar em Catherine. Embora tivesse estabelecido que nunca se deixaria envolver emocionalmente com as suas doentes, Catherine era uma pessoa especial. Era bela e vulnerável e...«Que estou eu a fazer? Não posso permitir-me pensar assim. Vou concentrar-me noutra coisa.» Mas os seus pensamentos voltavam sempre para ela.

A: Tudo faz sentido quando tiver a solução, Catherine. Tem tido mais sonhos?

C: Sonhei com Constantin Demiris. É muito vago.

A: Conte-me o que se lembra.

C: Perguntei-lhe por que razão era tão amável comigo, por que razão me ofereceu o emprego em Londres e um lugar para morar. E por que razão me deu o alfinete de ouro.

A: E o que é que ele disse?

C: Não me lembro. Acordei aos gritos.

0 doutor Alan Hamilton estudou a transcrição cuidadosamente, à procura dos vestígios inobservados do subconsciente, em busca de uma pista que explicasse o que perturbava Catherine. Ele estava razoavelmente certo de que a apreensão dela se relacionava com a Catherine não conseguia afastar Alan Hamilton da ideia. «Não sejas idiota», disse Catherine a si própria. «Ele é um homem casado. Todas as pacientes se sentem assim em relação ao seu analista.» Mas nada do que Catherine dizia a si própria ajudava. «Talvez eu deva consultar um analista por causa do meu analista: ~ Ela ia voltar a ver Alan dentro de dois dias. «Talvez eu deva cancelar a consulta» pensou Catherine, «antes que me envolva muito mais. Tarde de mais.» Namanhã em que tinha a consulta com Alan, Catherine vestiu-se muito cuidadosamente foi ao salão de beleza. «Já que não vou voltar a vê-lo depois de hoje», raciocinou Catherine, «não há mal em apresentar-me bonita: No momento em que entrou no gabinete dele, a sua resolução dissipou-se. «Por que tem ele de ser tão atraente? Porque é que não nos conhecemos antes de ele se casar? Porque é que ele não me conheceu quando eu era um ser normal e são? Por outro lado, se eu fosse um ser humano são e normal, nunca o teria procurado, pois não?»

- Perdão?

Catherine apercebeu-se de que falara em voz alta. Agora era altura de lhe dizer que esta era a última consulta.

Respirou fundo.

-Alan..,-E a suadeterminação quebrou-se. Olhoupara afotografia que estava sobre a mesa. - Há quanto tempo é casado?

-Casado?-Ele seguiu o relance de Catherine.-Oh, Essa é a minha irmã e o filho.

Catherine sentiu uma vaga de alegria invadi-la.

-Oh, isso é maravilhoso! Quero dizer, ela... tem um aspecto maravilhoso.

-Você está bem, Catherine ?

Kirk Reynolds passara a vida a perguntar-lhe o mesmo. «Eu naquela altura não estava bem», pensou Catherine, «mas agora estou.» -Estou óptima-disse Catherine.-Vocë não é casado?

-Não.

«Quer jantar comigo? Quer levar-me para a cama? Quer casar comigo?•> Se ela dissesse alguma destas coisas em voz alta então é que ele iria pensar que ela estava maluca. «Talvez esteja.•> Ele observava-a, com o sobrolho franzido.

-Catherine, infelizmente não vamos poder continuar com estas sessões. Hoje será a última.

0 coração de Catherine desfaleceu. -Porquë? Eu fiz alguma coisa que...?

-Não... não é por sua causa. Numa relação profïssional deste tipo, é impróprio que um médico se envolva emocionalmente com uma doente.

Ela tinha agora o olhar fixado nele, os olhos brilhantes. -Está-me a dizer que se deixou envolver emocionalmente por mim?

- Estou. E por causa disso receio...

- Tem toda a razão-disse Catherine feliz.-Vamos falar disso hoje à noite ao jantar.

Jantaram num restaurantezinho italiano no centro de Soho. A comida podia ter sido excelente ou péssima, que eles não deram por nada. Estavam totalmente absorvidos um pelo outro.

-Não é justo-disse Catherine. -Você sabe tudo a meu respeito. Fale-me de si. Nunca se casou?

-Não, Estive quase para casar. - Que aconteceu?

-Foi durante a guerra. Vivíamos num pequeno apartamento. Foi durante os dias da blitz. Eu trabalhava no hospital e quando cheguei a casa uma noite...

Catherine pôde ouvir a mágoa na sua voz.

-... o prédio tinha desaparecido. Não tinha sobrado nada. Ela envolveu-lhe a mão.

-Sinto muito.

- Levei muito tempo a ultrapassar o que aconteceu.

-Nunca conheci ninguém com quem me quisesse casar. -E os seus olhos disseram, «até agora».

Ficaram sentados durante quatro horas, falando sobre tudo - teatro, medicina, a situação do mundo; mas a verdadeira conversa não era falada. Era a electricidade que ia crescendo entre eles. Podiam ambos senti-la. Havia uma tensão sexual entre eles que os esmagava.

Finalmente, Alan falou no assunto.

-Catherine, o que eu disse hoj e de manhã acerca da relação médico-paciente...

- Fala-me disso no teu apartamento.

Despiram-se juntos, rápida e ansiosamente, e enquanto Catherine tirava a roupa pensou no que sentira quando esteve com Kirk Reynolds e como era diferente agora. «A diferença é estar-se apaixonada~, pensou Catherine. «Estou apaixonada por este homem N

Deitou-se na cama à espera dele, e, quando ele chegou e a tomou nos braços, todas as preocupações, todos os receios de nuncapoderrelacionar-se com um homem desapareceram. Acariciaram o corpo um do outro, explorando, primeiro com meiguice, depois ferozmente, até que a necessidade de ambos se tornou incontrolável e desesperada, e eles uniram-se, e Catherine gritou em voz alta com total felicidade. «Sou de novo inteira», pensou. «Obrigada!» Permaneceram ali, exaustos, e Catherine manteve Alan envolto nos seus braços, desejando nunca mais largá-lo. Quando conseguiu voltar a falar, disse com uma voz trémula. - 0 senhor sabe como tratar uma doente, doutor. Catherine soube pelos jornais da prisão de Constantin Demiris pelo homicídio da mulher. Constituiu um choque muito grande. Quando chegou ao escritório, havia uma nuvem sobre todas as coisas.

- Já sabes das notícias? - lastimou-se Evelyn. - Que vamos fazer?

- Vamos continuar exactamente como ele queria que o fizéssenws. Tenho a certeza de que é tudo um grande equívoco. Vou tentar telefonar-lhe.

Mas Constantin Demiris estava fora de alcance, Constantin Demiris era o prisioneiro mais importante que a Prisão Central de Atenas já alguma vez albergara. 0 promotor dera ordens para que Demiris não recebesse tratamento especial. Demiris exigira um número de coisas: acesso a telefones, telex e serviço de correio. As suas exigências foram negadas. Demiris passava a maior parte das horas em que estava acordado, e muitas quando sonhava, a tentar descobrir quem matara Melina. No início, Demiris assumira que um ladrão fora surpreendido por Melina enquanto saqueava a casa de praia e a matara, Mas no momento em que a polícia o confrontara com as provas contra ele Demiris compreendera que estava a ser tramado. A pergunta era: por quem? A pessoa lógica era Spyros Lambrou, mas a fraqueza dessa teoria era que Lambrou amava a irmã mais do que qualquer outra pessoa no mundo. Ele nunca lhe teria feito mal. A suspeita de Demiris virara-se então para o bando com quem Tony Rizzoli se havia envolvido. Talvez tivessem sabido do que ele fizera a Rizzoli e esta era a forma de se vingarem. Constantin Demiris afastara essa ideia de imediato, Se a mafia quisesse vingança, teria simplesmente contratado um pistoleiro para matá-lo. E assim sentado sozinho na sua cela, Demiris matutara longa mente, tentando arranjar uma solução para o enigmado que acontecera. No fim, quando esgotara todas as possibilidades, só havia uma conclusão: Melina suicidara-se. Matara-se e tramara-o com a morte dela, Demiris pensou no que tinha feito a Noelle Page e a Larry Douglas, e a ironia amarga era de que ele agora estava exactamente na mesma posição em que eles estiveram! Ia ser julgado por um homicídio que não cometera. 0 carcereiro estava à porta da cela. - 0 seu advogado veio vê-lo. Demiris pôs-se de pé e seguiu o carcereiro até uma pequena sala de reuniões. 0 advogado aguardava-o. 0 nome do homem era Vassiliki. Estava na casa dos cinquenta, tinha o cabelo grisalho e basto e o perfil duma estrela de cinema. Tinha a fama de ser um advogado criminal de primeira qualidade. Isso seria suficiente?

0 carcereiro disse:

-Têm quinze minutos. -Deixou os dois sozinhos. -Bem-perguntou Demiris.-Quando é que me vai tirar daqui para fora? Para que é que lhe estou a pagar?

- Senhor Demiris, receio que não seja assim tão simples. 0 promotor principal recusa-se...

-Opromotorprincipal é um palerma. Eles não me podem manter aqui dentro. E se pagarmos caução? Eu pago o que eles pedirem. Vassiliki lambeu os lábios nervosamente.

-A caução foi negada. Estive a analisar as provas que a polícia tem contra si, senhor Demiris. São... são bastante prejudiciais. -Prejudiciais ou não... eu não matei a Melina. Estou inocente! 0 advogado engoliu.

- Sim, claro, claro. Tem.., tem alguma ideia de quem possa ter morto a sua mulher?

-Ninguém. A minha mulher suicidou-se. 0 advogado fitou-o.

-Desculpe-me, senhor Demiris, mas não me parece que isso vá constituir uma boa defesa. Vai ter que pensar em algo melhor do que isso.

E, com um coração desfalecido, Demiris sabia que estava certo. Não havia júri no mundo que fosse acreditar na sua história.

Logo pela manhã do dia seólainte, o advogado veio ver Demiris de novo.

-Infelizmente tenho más notícias.

Demiris quase riu em voz alta. Estava numa prisão enfrentando uma sentença de morte, e este idiota estava a dizer-lhe que tivera más notícias. Que coisapodia serpior que a situação em que se encontrava?

- Sim?

-É sobre o seu cunhado.

- 0 Spyros? 0 que é que há com ele?

-Tenho informação de que ele foi à polícia dizer que uma mulher de nome Catherine Douglas ainda se encontra «va. Eu não estou realmente apor do julgamento de Noelle Page e Lorry Douglas, mas...Constantin Demiris já não escutava. Com toda opressão do que estava a acontecer-lhe, esquecera-se totalmente de Catherine. Se a encontrassem e ela falasse, poderiam implicá-lo nas mortes de Noelle e Lorry. Ele já mandara alguém a Londres para tratar dela, mas agora o caso tornara-se repentinamente urgente. Inclinou-se para a frente e agarrou o braço do advogado.

- Quero que mande uma mensagem para Londres imediatamente.

<~Leu a mensagem duas vezes e sentiu os indícios de uma excitação sexual que sempre o atingiam antes de concretizar um contrato para matar. Era como fazer o papel de Deus. Ele decidia quem vivia e quem morria. Estava espantado com o poder que possuía. Se tivesse de fazer isto imediatamente, não haveria tempo para elaborar o outro plano, Teria de improvisar alguma coisa. Simular um acidente. Hoje à noite.»

ARQUIVO CONFIDENCIAL Transcriçâo de Sessâo com Wim Vandeen

A: Como se sente hoje?

W: Bem. Vim de táxi. 0 nome de motorista é Ronal Christie. Chapa de matrícula três-zero-dois-sete-um licença do táxi número três-zero-sete. No caminho passámos portrinta e sete Rovers, um Bentley, dez jaguares, um Mini Minor, seis Austins, um Rolls-Royce, vinte e sete motorizadas e seis bicicletas.

A: Como é que você vai no escritório, Wim?

W: Você sabe.

A: Diga-me.

W: Odeio aquela gente.

A: E a Catherine Alexander?... Wun, e a Catherine Alexander?... Wim?

W: Oh, ela. Ela vai deixar de trabalhar lá.

A: 0 que é que quer dizer?

W: Ela vai ser assassinada.

A: 0 quê? Porque é que diz isso?

W: Ela disse-me.

A: A Catherine disse-lhe que vai ser assassinada? W: Foi a outra.

A: Que outra?

W: A mulher dele.

A: A mulher de quem, Wim?

W: Do Constantin Demiris.

A: Ela disse-te que a Catherine Alexander ia ser assassinada?

W: A senhora Demiris. A mulher dele. Telefonou-me da Grécia.

A: Quem é que vai matar a Catherine?

W: Um dos homens.

A: Está-se a referir a um dos homens que vieram de Atenas? W: Sim.

A: Wim, vamos ter de ficar por aqui. Tenho de sair. W: Certo.

Os escritórios da CorporaçãoHelénica de Comércio encerraram ãs sete horas. Alguns minutos antes das seis, Evelyn e os outros empregados estavam a preparar-se para sair.

Evelyn entrou no gabinete de Catherine.

-0 Milagre da Rua 34 está em exibição no Criterion. Teve críticas excelentes. Queres ir ver hoje à noite?

-Não posso-disse Catherine. -Obrigada, Evelyn. Prometi ao Jerry Haley que ia ao teatro com ele. Eles dão-te muito que fazer, não dão? Está bem. Diverte-te.

Catherine ouviu o barulho dos outros ao saírem. Por fim, houve silêncio. Deu um último olhar pela secretária, certificou-se de que tudo estava em ordem, vestiu o casaco, apanhou a carteira e saiu para o corredor. Estava quase a chegar à porta da frente quando o telefone tocou. Catherine hesitou, pensando se ia atender. Olhou para o relógio; ia chegar atrasada. 0 telefone continuou a tocar. Voltou a correr para a sala e pegou no telefone.

-Estou. Catherine.-Era Alan Hamilton. Ele parecia sem fôlego. - Graças a Deus que te apanhei.

-Aconteceu alguma coisa?

- Tu corres um grande perigo. Parece que alguém está a tentar matar-te.

Ela emitiu um som baixo e lamuriaste. Os seus piores pesadelos estavam a tornar-se verdadeiros. Sentiu-se repentinamente tonta. - Quem?

-Não sei. Mas deixa-te estar aí. Não saias do escritório. Vou buscar-te.

-Alan, eu...

-Não te preocupes, vou jápara aí. Tranca-te. Vai tudo acabarem bem,

A linha desligou-se. Catherine pousou o auscultador lentamente. - Oh, meu Deus! Manas apareceu no corredor. Olhou para o rosto pálido de Catherine e correu para ela.

-Passa-se alguma coisa, Miss Alexander? Voltou-se para ele.

-Alguém.., alguém vai tentar matar-me. Ele estava a olhar para ela embasbacado. -Porquê? Quem... quem poderia fazer uma coisa dessas? -Não tenho a certeza.

Ouviram alguém bater à porta. Atanas olhou para Catherine. -Acha que devo...?

-Não -disse ela de imediato, -Não deixes ninguém entrar, 0 doutor Hamilton está aí a chegar.

A pancada na porta da frente repetiu-se, mais alta.

-Podia esconder-se na cave-Atanas sussurrou.-Ficará mais segura lá.

Ela acenou com a cabeça nervosamente. -Tens razão.

Foram para o fundo do corredor, em direcção à porta que dava para a cave.

- Quando o doutor Hamilton chegar, diz-lhe onde estou. - Não vai ter medo de ficar lá em baixo?

- Não - disse Catherine.

Manas acendeu a luz e foi à frente pelas escadas da cave. -Ninguém a vai encontrar aqui-Atanas assegurou-lhe. -Não faz ideia nenhuma de quem pudesse querer matá-la? ElapensouemConstantinDemirisenosseussonhos.«Elevaimatar-te. Mas isso foi apenas um sonho.~>

- Não tenho a certeza.

Manas olhou para ela e sussurrou: -Eu acho que sei,

Catherine olhou fixamente para ele. - Quem?

-Eu. -Repentinamente na mão dele surgiu uma faca de ponta e mola, que ele empunhou contra a garganta dela.

-Atanas, isto não são horas para brincadeiras... Sentiu a faca pressionar-lhe mais fundo na garganta.

-Já alguma vez leu Encontro em Samarra, Catherine? -Não? Bem, agora é tarde de mais, não ? Fala de umapessoa que tentou fugir à morte. Foi para Samarra e a morte aguardava-a lá. -Isto é a sua Samarra.

Era obsceno ouvir estas palavras aterradoras vindas da boca de um rapaz com ar inocente.

-Atanas, por favor. Tu não podes... Ele esbofeteou-a com força na cara.

-Não posso fazê-lo porque sou um jovem? Surpreendi-a? Isso é porque eu sou um actor brilhante. Sabe porque é que pareço um rapaz? Porque quando eu estava em crescimento não tinha comida que chegasse. Eu vivia do lixo que roubava dos baldes do lixo à noite.

Ele tinha afaca apontada àgarganta dela, encostando-a contra a parede.

-Quando era rapaz, vi os soldados violarem a minha mãe e o meu pai e depois chicotearem os dois até à morte, e depois violaram-me a mim e abandonaram-me pensando que eu estava morto. Empurrava-a cada vez mais para o fundo da cave. -Atanas, eu... nunca te fiz mal nenhum, Eu... Ele deu um sorriso infantil,

-Não é nada pessoal. É negócio. Você vale cinquenta mil dólares, morta.

Foi como se uma cortina tivesse descido à frente dos seus olhos e ela estivesse a ver tudo através de uma névoa vermelha. Uma parte de si estava fora, olhando o que estava a acontecer.

-Eu tinha um plano maravilhoso pensado para si. Mas o patrão está com pressa agora, de forma que teremos de improvisar, não ? Catherine sentia a ponta da faca enterrar-se-lhe no pescoço, Ele desceu a faca e rasgou a parte da frente do vestido. -Belo-disse ele.-Muito belo. Eu estava a planear termos primeiro uma festa, mas como o seu amigo médico está aí a chegar não teremos tempo, pois não? Não sabe o que perde. Eu sou um amante fantástico, Catherine ficou sufocada, mal podendo respirar. Manas meteu a mão no bolso do casaco e tirou uma garrafa de quartilho. Dentro havia um líquido pálido e cor-de-rosa.

-Já alguma vez tomou slivovic? Vamos beber ao seu acidente, hem?-Ele afastou a faca para abrir o frasco e, por um instante, Catherine sentiu-se tentada a fugir.

-Vá-disse Atanas num tom calmo. -Experimente. Por favor.

Catherine humedeceu os lábios. - Ouça, eu... pago. Eu...

- Poupe o fôlego. -Atanas tomou um trago enorme da garrafa e entregou-lha. -Beba-disse ele.

-Não. Eu não... -Beba!

Catherine pegou na garrafa e tomou um pequeno gole. 0 aperto violento do brande queimou-lhe a garganta, Atanas tirou-lhe a garrafa e tomou mais um gole enorme.

- Quem é que disse ao seu amigo médico que iam matá-la? -Não... não sei.

-Também não interessa. -Atanas apontou para um dos postes de madeira grossos que sustinha o tecto. - Vá para ali.

Os olhos de Catherine dirigiram-se num relance para a porta. Ela sentiu a lâmina de ferro a pressionar-lhe no pescoço.

-Não me obrigue a dizer outra vez. Catherine foi até ao poste de madeira.

-Bonita menina-disseAtanas.-Sente-se.-Ele virou-se por um instante, E nesse momento Catherine fugiu. Começou a correrem direcção às escadas, o coração abaterdepressa. Corria pela vida. Alcançou o primeiro degrau e, quando estava prestes a subir, sentiu uma mão a agarrar-lhe a perna e a puxá-la para trás. Ele era incrivelmente forte. - Cabra!

Agarrou-a pelos cabelos e aproximou o seu rosto do dele. - Faça isso outra vez e eu parto-lhe as pernas, Ela sentia a faca entre as omoplatas. -Mexa-se! Atavas veio atrás dela até ao poste de madeira e atirou-a ao chão, - Fique aí, Catherine observava quando Atavas se dirigiu a uma pilha de caixas de cartão atadas com um fio grosso. Cortou duas extensões de fio e trouxe-as para junto dela.

-Ponha as duas mãos atrás do poste. -Não, Atavas. Eu...

Deu-lhe um murro na cara, e o quarto perdeu a nitidez. Atavas aproximou-se e sussurrou:

- Nunca me diga não. Faça o que eu digo antes que eu lhe desfaça a tromba.

Catherine pôs as mãos atrás do poste e um momento depois sentiu o fio causar-lhe uma dor aguda nos pulsos enquanto Atanas os apertava. Sentia perder a circulação,

- Por favor - disse ela. - Está muito apertado. -Óptimo-sorriu, mostrando os dentes. Pegou no segundo pedaço de fio e atou-lhe as pernas pelos tornozelos. Em seguida pôs-se de pé.

-Pronto-disse.-Confortável.-Deu mais um gele da garrafa. - Quer beber mais?

Catherine sacudiu a cabeça. Ele encolheu os ombros. -Tudo bem,

Elaviu-o levar a garrafa aos lábios outra vez. «Pode ser que se embebede e adormeçaN, pensou Catherine desesperadamente.

- Eu costumava beber um litro por dia - Atanas gabou-se. Pousou a garrafa no chão de cimento. -Bem, são horas de pegar ao trabalho.

- 0 que é que... o que é que você vai fazer?

-Vou provocar um pequeno acidente. Vai ser uma obra-prima. Eu posso até pedir o dobro ao Demiris.

-Demiris! Então não era apenas um sonho. Ele estava por trás disto, Mas porquê?

Catherine viu Atavas atravessar a sala em direcção à enorme caldeira. Ele removeu a chapa exterior e examinou a luz-piloto e as oito chapas da caldeira que aqueciam o edifício. A válvula de segurança estava aninhada num caixilho de metal que a protegia. Atavas apanhou um bocadinho de madeira e enfiou-o no caixilho de forma a que a válvula de segurança ficasse inoperante. 0 mostrador da temperatura indicava sessenta e cinco graus . Enquanto Catherine observava, Atavas rodou o mostrador até ao máximo. Satisfeito, voltou para junto de Catherine.

-Lembra-se da chatice que tivemos com esta caldeira?-perguntou Atavas. -Bem, receio que vai acabar por explodir. Aproximou-se de Catherine.

-Quando o mostrador chegar aos duzentos graus, a caldeira vai explodir. Sabe o que vai acontecer depois? Os tubos do gás vão-se romper e os queimadores vão pegar-lhes fogo. 0 edifício inteiro irá explodir que nem uma bomba,

-Você é louco. Há pessoas inocentes lá fora que...

- Ninguém é inocente. Vocês americanos acreditam em finais felizes. - Ele esticou o braço e verificou a corda que mantinha as mãos de Catherine presas atrás do poste. Os pulsos delam estavam a sangrar. A corda cortava-lhe a carne e os nós estavam apertados. Atenas lentamente percorreu as mãos pelos peitos nus de Catherine, acariciando~s e depois inclinou-se e beijou-os.

- É uma pena não termos mais tempo. Você nunca saberá o que perdeu. -Agarrou-a pelos cabelos e beijou-lhe os lábios.

0 seu hálito exalava a brande.

-Adeus, Catherine. - Ele pôs-se de pé.

- Não me abandone - Catherine implorou. -Vamos falar e... - Tenho de apanhar o avião. Vou voltar para Atenas. - Viu-o subir as escadas. -Vou deixar a luz acesa para que possa ver tudo a acontecer. -Um momento depois, Catherine ouviu a pesada porta da cave fechar-se e o estalido do trinco exterior, e depois houve silêncio. Estava sozinha. Olhou para o mostrador da caldeira, Estava a subir rapidamente. Enquanto 0 observava, ele subiu de 70 para 75 graus e continuava a subir. Ela lutou desesperadamente para soltar as mãos, mas quanto mais puxava mais apertados ficavam os laços. Olhou de novo para cima. 0 marcador chegara aos 80 graus e continuava a aumentar. Não havia saída. Nenhuma.

Alan Hamilton descia a Wimpole Street como um louco, ultrapassando toda a gente, ignorando osgritos e o clangor das buzinas dos condutores irados. A estrada em frente estava bloqueada. Virou à esquerda e meteu-se na Praça Portland e dirigiu-se para Oxford Circus. 0 trânsito era mais intenso aqui, atrasando-o. Na cave do número 217 da Bond Street, o ponteiro chegara aos 90 graus. A cave estava a aquecer. 0 trânsito estava praticamente parado. As pessoas iam para casa, para jantar ou para o teatro. Alan Hamilton estava ao volante do carro, frustrado. ~~Eu devia ter telefonado à polícia? Mas que teria adiantado? Uma doente neurótica acha que alguém vai matá-la? A polícia só se teria rido.» 0 trânsito começou a movimentar-se de novo. Na cave, o ponteiro estava a chegar aos cento e cinquenta graus. 0 quarto estava a ficar insuportavelmente quente. Ela tentava libertar as mãos outra vez e os pulsos estavam em carne viva, mas a corda continuava apertada. Ele meteu-se pela Oxford Street, atravessando veloz uma passadeira para peões no momento em que duas velhotas passavam. Atrás de si ouviu a estridência do apito de um polícia. Por um instante sentiu-se tentado a parar e pedir ajuda. Mas não havia tempo para explicar. Continuou a conduzir. Num cruzamento, um camião enorme parou, bloqueando-lhe o caminho. Alan Hamilton apitou impacientemente. Meteu a cabeçafora da porta.

- Saia daí.

0 camionista virou-se para olhar para ele.

-0 que é que se passa, amigo, vai apagar algum incêndio?

0 trânsito tornara-se uma confusão de carros. Quando finalmente desanuviou, Alan Hamilton começou a conduzir de novo, apressando-se na direcção da Bond Street. Uma viagem que devia ter levado dez minutos quase lhe levara meia hora, Na cave, o ponteiro chegou aos 200 graus, Porfim, abençoadamente, o edifício estava à vista. Alan Hamilton parou o carro na curva do outro lado da rua e travou a fundo. Abriu a porta e saiu do carro a correr. Quando ia a correrem direcção ao prédio, parou cheio de horror. 0 chão tremeu no momento em que o edifício inteiro explodia como uma bomba gigantesca, enchendo o ar com chamas e estilhaços. E morte. Manas entregou-lhe o dinheiro.

-Bem, vamos ver o que é que tu sabes fazer com ele, querido. - Ela tirou a roupa e ficou a ver Atavas despir-se.

- Olhou para ele espantada. - Meu Deus, tu és enorme! - Sou?

Ela enfiou-se na cama e disse: -Tem cuidado. Não me magoes.

Atavas dirigiu-se para a cama. Ordinariamente, ele gostava de bater em putas. Aumentava-lhe a satisfação sexual. Mas ele sabia que agora não era altura de fazer nada de suspeito ou deixar um rasto que a polícia pudesse querer seguir. Deforma que Atavas sorriu para ela e disse:

-Esta é a tua noite de sorte. - 0 quê?

-Nada. -Ele pôs-se em cima dela, fechou os olhos e mergulhou nela, magoando-a, e era Catherine que gritava por piedade, implorando-lhe que parasse. E ele martelava-a selvaticamente, cada vez com maisforça, osgritos dela excitando--o até que por fim tudo explodiu e ele deitou-se de costas satisfeito.

-Meu Deus - disse a mulher. - Tu és incrível.

Atavas abriu os olhos e não estava com Catherine. Estava com uma putafeia num quartomedonho, Vestiu-se e apanhou um táxi para o quarto do hotel, onde fez as malas e saiu. Quando se dirigia para o aeroporto, eram nove e meia. Tinha muito tempo para apanhar o avião. Havia uma pequena fila de gente na Olympic Airways. Quando Atavas chegou ao princípio da bicha, entregou a passagem ao funcionário.

- 0 voo sai no horário?

-Sai, sim.-0 empregado olhou para o nome que estava na passagem, Atavas Stavich.OlhouparaAtanas outra vez, depois olhoude relance para um homem que estava perto dali e fez um sinal afirmativo com a cabeça. 0 homem caminhou até ao balcão.

-Posso ver a sua passagem? Atavas entregou-lhe a passagem. -Passa-se alguma coisa?-perguntou, 0 homem disse

-Infelizmente vendemos passagens a mais para este voo. Se quiser.

Atavas Stavich estava a sentir-se terrivelmente excitado. Executar uma morte por contrato provocava-lhe sempre isso, Para ele era regra ter relações sexuais com as suas vítimas, homens ou mulheres, antes de as matar, e ele achava isso excitante. Agora, sentia-se frustrado porque não houvera tempo para torturar Catherine ou ter relações com ela. Atavas olhou para o relógio. Ainda era cedo. 0 avião só partia às onze horas da noite. Tomou um táxi até Shepherd Market, pagou o motorista e deambulou pelo labirinto de ruas. Havia meia dúzia de raparigas nas esquinas que se ofereciam aos homens que passavam.

- Olá, querido, gostavas de ter uma lição de francês esta noite? - Que dizes a uma festa?

-Estás interessada em grego?

Nenhuma das mulheres se aproximou de Atavas. Ele foi ter com uma loira alta que vestia minissaia, casaco de cabedal e sapatos de saltos finos.

-Boa noite-disse Atavas educadamente. Ela olhou para ele, divertida.

- Olá, garoto. A tua mãe sabe que vieste para a rua? Atavas sorriu timidamente.

-Sabe, sim, senhora. Pensei que se você não estivesse ocupada... A prostituta riu-se.

-Pensaste? E o que é que tu fazias se eu não estivesse ocupada? Já foste para a cama com uma rapariga?

-Uma vez - disse Atavas suavemente. -E gostei.

- Tu pareces um carapauzito - a rapariga riu-se. - Eu por norma mando os pequeninos dar uma volta, mas a noite está pouco animada. Tens dez libras?

-Tenho, sim, senhora.

-Está bem, querido. Vamos subir,

Ela conduziu Atavas através de um corredor e subiu dois lanços de escadas até um pequeno apartamento de uma divisão. ser acompanhar-me até ao escritório, tentarei resolver-lhe o problema. Atanas encolheu os ombros.

-Está bem. -Seguiu o homem até ao escritório, sentindo uma grande euforia. Demiris já devia estar solto. Era um homem demasiado importante para que a lei lhe tocasse. Tudo correra perfeitamente. Ele ia depositar os cinquenta mil dólares num banco suíço numa conta numerada. Depois umas pequenasférias. NaRiviera talvez, ou no Rio de Janeiro. Ele gostava dos prostitutos do Rio. Atanas entrou no escritório e parou, com o olhar fixo. Empalideceu.

-Morreste! Morreste. Eu matei-te! -Era um grito.

Atanas gritava ainda quando foi levado parafora da sala parauma carrinha da polícia. Viram-no partir, e Alan Hamilton virou-se para Catherine.

-Acabou, querida. Acabou finalmente.

Na cave, algumas horas antes, Catherine tentara desesperadamente soltar as mãos. Quanto mais lutava mais apertada a corda ficava. Os seus dedos estavam a ficar insensíveis. Ela não tirava os olhos do mostrador da caldeira. 0 ponteiro chegara aos 120 graus. «Quando o ponteiro chegar aos 200 graus, o cilindro explodirá. Tem quehaver uma soluçãoparaisto», pensou Catherine. «Tem dehaver!» Os seus olhos brilharam sobre a garrafa de uísque que Atanas deixara cair no chão. Ela olhou fixamente para ele, e o coração começou a baterviolentamente. «Háumapossibilidade!» Se ao menos elapudesse... Catherine deixou-se cair contra o poste e esticou os pés na direcção da garrafa. Estava fora de alcance. Deslizou um pouco mais, as farpas de madeira espetando-se-lhe nas costas. A garrafa estava a uns cinco centímetros. Os olhos de Catherine encheram-se de lágrimas. «Mais uma tentativa», pensou ela. «Só mais uma.» Ela deixou-se cair mais, as costas arranhadas pelas farpas, e empurrou outra vez com toda a sua força. Um pé tocou na garrafa. «Cuidado. Não a afastes.» Lentamente, lentamente, prendeu o gargalo da garrafa com a corda que lhe atava as pernas. Muito cuidadosamente, recolheu os pés, arrastando a garrafa para mais perto. Por fim, teve-a ao seu alcance. Olhou para o mostrador, Tinha chegado aos 130 graus. Ela estava a combater o pânico. Lentamente, moveu a garrafa para trás de si com os pés. Os dedos encontraram-na, mas estavam demasiado entorpecidos para agaraá-la, e estavam escorregadios por causa do sangue dos pulsos no lugar onde a corda os cortara. A cave estava a ficar mais quente. Tentou outra vez. A garrafa escorregou. Catherine olhou de relance para o mostrador do cilindro.150 agora, e o mostradorparecia avançar velozmente. 0 vapor estava a começar a sair do cilindro. Tentou agarrar a garrafa outra vez. «Pronto!» Tinha a garrafa nas mãos presas. Segurando-a com força, levantou os braços e deslizou-os pelo poste abaixo, esmagando a garrafa de vidro contra o cimento, Não aconteceu nada. Tentou de novo.Nada.Omostradorsubiainexoravelmente.175!Catherinerespirou fundo e bateu com a garrafa no chão com toda a força, Ouviu a garrafa estilhaçar. Graças a Deus! 0 mais lesta possível, Catherine segurou o gargalo da garrafa numa mão e começou a cortar as cordas com a outra. 0 vidro cortava-lhe os pulsos, mas ela ignorou a dor. Sentiu um fio estalar e depois outro. De repente a sua mão soltou-se. Apressadamente libertou a corda da outra mão e desatou a corda que lhe prendia os pés. 0 mostrador chegara aos 195. Jactos fortes de vapor saíam da caldeira. Catherine levantou-se com dificuldade. Atavas havia trancado a porta. Não havia tempo para sair do edifício antes da explosão. Catherine correu para a caldeira e puxou o bloco de madeira que bloqueava a válvula de segurava, Estava muito apertado. 200! Tinha de tomar uma decisão num segundo. Correu para a porta do fundo que dava para o abrigo antiaéreo, abriu-o e meteu-se lá dentro. Bateu com a porta pesada, Ficou encolhida no chão do enorme refúgio, respirando com dificuldade, e cinco segundos depoishouve uma explosão tremenda, e a sala inteira parecia que balançava. Ficou na escuridão, lutando para respirar, ouvindo o estrondo das chamas do outro lado da porta. Estava salva. Acabara.nNão,aindanão~>,pensouCatherine.Iláaindaumacoisa que tenho de fazer.Quando os bombeiros a encontraram uma hora depois e a trouxeram para o exterior, Alan Hamilton já lá não estava. Catherine correu para os seus braços, e ele apertou-a com força.

-Catherine, meu amor. Eu estava cheio de medo! Como é que...? -Depois-disse Catherine. -Agora temos de deter o Atavas Stavich.

Casaram-se na quinta da irmã de Alan no Sussex numa cerimónia privada. A irmã de Alan era uma mulher agradável igualzinha à fotografia que Catherine vira no consultório de Alan, 0 filho estava na escola. Catherine e Alan passaram um fim-de-semana tranquilo na quinta e partiram de avião para Veneza em lua-de-mel. Veneza era uma página brilhantemente colorida de um livro de história medieval, uma cidade mágicaflutuante de canais e 120ilhas, ligadas por 400 pontes. Alan e Catherine aterraram no Aeroporto de Marco Polo em Veneza, perto de Mestre, tomaram uma lancha até ao terminal da Piazza San Marco, e registaram-se no Royal Danieli, o belo e velho hotel junto ao Palácio dos Doges. A sua suite era requintada, com belíssima mobília antiga, e dava para o Grande Canal.

- Que gostarias de fazer primeiro? -perguntou Alan, Catherine aproximou-se dele e abraçou-o. -Adivinha.

Desfizeram as malas depois. Veneza era uma cura, um bálsamo que fez Catherine esquecer os terríveis pesadelos e horrores do passado. Ela e Alan partiram à descoberta. A Praça de São Marcos ficava a poucas centenas de metros do hotel e a séculos de distância no tempo. AIgreja de São Marcos era uma galeria de arte e uma catedral, as paredes e os tectos revestidos de mosaicos e frescos de cortar a respiração. Entraram no Palácio dos Doges, cheio de câmaras opulentas e ficaram na Ponte dos Suspiros, onde, séculos antes, os prisioneiros cruzaram para ir ao encontro da morte. Visitaram museus e igrejas e algumas das ilhas afastadas. Pararam em Murano para ver a modelagem do vidro através de sopro, e em Burano para ver as mulheres fazerem renda. Tomaram uma lancha para Torcello e jantaram em Locanda Cipriani no maravilhoso jardim repleto de flores. E isto fez que Catherine se lembrasse do jardim do convento, e recordou como se sentira perdida nessa altura. E olhou em frente, para o lugar onde se sentava o seu bem-amado Alan e pensou: «Obrigada, meu Deus,» Mercerie era a principal rua de compras, e encontraram lojasfabulosas: Rubelli para tecidos, Casella para sapatos, Giocondo Cassini para antiguidades. Jantaram no Quadri, no Al Graspo de Ua e no Harry's Bar. Andaram de gôndola e nos sandolli, os mais pequenos. Na sexta-feira, quase no fim da sua estada, houve um aguaceiro repentino e uma violenta tempestade eléctrica. Catherine eAlan correram para regressar ao abrigo do hotel. Viram a tempestade pela janela.

-Peço desculpa pela chuva, senhora Hamilton- disse Alan. - As brochuras prometiam sol.

Catherine sorriu.

- Que chuva? Estou tão feliz, querido.

Os relâmpagos brilharam fugazes no céu e houve uma explosão de tempestade. Um novo som surgiu repentinamente na mente de Catherine: a explosão do cilindro.

Virou-se para Alan:

-Não é hoje que o júri vai apresentar o veredicto? Ele hesitou.

-Eu não falei no assunto porque... -Eu estou bem. Quero saber.

Ele olhou para ela por um momento, depois fez um sinal afirmativo com a cabeça.

-Tens razão,

Catherine observava quando Alan se dirigiu ao rádio que ficava no canto e o acendeu. Rodou o botão até sintonizar a BBC, que estava a dar notícias.

N.... e o primeiro-ministro apresentou o seu pedido de demissão. 0 chefe do gabinete tentará formar novo governo» 0 rádio estava a falhar e a voz aparecia e desaparecia.

- É por causa desta maldita tempestade eléctrica - disse Alan. 0 som surgiu de novo.

«Em Atenas, o julgamento de Constantin Demiris chegou finalmente ao fim, e o júri entregou o seuveredictoháuns momentos atrás. Para surpresa de toda a gente, o veredicto...»

0 rádio calou-se. Catherine virou-se para Alan.

- Qual... qual achas que foi o veredicto? Ele tomou-a nos braços.

-Depende se acreditares em finais felizes.


Epílogo


Cinco dias antes do início do julgamento de Constantin Demiris, o carcereiro abriu a porta da sua cela.

-Tem uma visita.

Constantin Demiris ergueu o olhar. À excepção do seu advogado, não lhe foram permitidas visitas até agora. Recusoumostrarqualquer curiosidade. Os sacanas tratavam-no como um criminoso comum. E ele não lhes daria a satisfação de mostrar qualquer emoção. Seguiu o carcereiro até ao átrio e entrou numa pequena sala de reuniões. -Ali dentro, Demiris entrou e deteve--se. Um homem aleijado estava encolhido numa cadeira de rodas. 0 cabelo era branco como a neve. 0 seu rosto era um remendo medonho de tecido queimado branco e vermelho. Os lábios estavam paralisados para cima na abertura da boca que formava um sorriso horrível. Levou alguns momentos a aperceber-se de quem era a visita, 0 seu rosto ficou sem cor.

-Meu Deus!

-Não sou um fantasma-disse Napoleon Chotas. A sua voz era um som rouco irritante. -Entre, Costa.

Demiris conseguiufalar. -0 incêndio... Eu saltei pela janela e parti a espinha. 0 meu mordomo levou-me antes que os bombeiros chegassem. Eu não queria que você soubesse que eu estava vivo, Eu estavamuito cansado para continuar a combatê-lo.

- Mas... eles encontraram um corpo. -Era o meu caseiro.

Demiris afundou-se numa cadeira.

-Fica... fico satisfeito.., por estar vivo-disse ele sem forças. - Deve ficar. Eu vou salvar-lhe a vida.

Demiris estudou-o desconfiadamente. -Vai?

-É verdade. Vou defendê-lo. Demiris riu-se em voz alta.

-Francamente, Leon. Depois de todos estes anos, toma-me por idiota? Que o leva a pensar que ia pôr a minha vida nas suas mãos? -Porque eu sou a única pessoa que o pode salvar, Costa. Constantin Demiris pôs-se de pé.

- Não, obrigado. - Dirigiu-se à porta.

-Eufalei com o Spyros Lambrou. Persuadi-o a deporem como ele estava consigo na altura em que a irmã foi assassinada.

Demiris parou e voltou-se. - Por que faria ele isso?

Chotas inclinou-se para a frente na sua cadeira de rodas. -Porque eu o convenci de que tirar-lhe a sua fortuna seria uma vingança mais saborosa do que tirar-lhe a vida.

-Não entendo.

-Garanti ao Lambrou que, se ele testemunhar a seu favor, você lhe entrega toda a sua fortuna. Os seus navios, as suas firmas... tudo o que possui.

-Você está doido!

-Estou? Pense nisso, Costa, 0 depoimento dele pode salvar-lhe a vida. A sua fortuna vale mais do que a sua vida?

Houve um longo silêncio. Demiris sentou-se de novo. Estudou Chotascautelosamente.

-0 Lambrou está disposto a depor que eu estava com ele quando a Melina foi morta?

-É isso mesmo.

-E de volta ele quer... -Tudo o que você tem. Demiris sacudiu a cabeça. - Eu teria de ficar com a minha...

-Tudo. Ele quer que você fique sem nada. Sabe, é a vingança dele. Havia uma coisa que intrigava Demiris.

-E que é que você ganha com tudo isto, Leon?

Os lábios de Chotas moveram-se numa imitação de um sorriso. - Eu ganho tudo.

-Não... não entendo.

Antes de entregar a Corporação de Comércio Helénico ao Lambrou, você vai transferir todos os seus bens para uma nova companhia.Uma companhia que me pertence.

Demiris olhou fixamente para ele. -Então o Lambrou não recebe nada. Chotas encolheu os ombros.

- Há vencedores e há vencidos.

- 0 Lambrou não vai desconfiar de nada?

- Pela forma como eu vou tratar do assunto, não. Demiris disse

-Se você vai enganar o Lambrou, como é que eu sei que não me vai enganar a mim?

-E muito simples, meu caro Costa. Você está protegido, Faremos um acordo assinado em como a nova companhia só passará a ser minha na condição de você ser absolvido. Se for condenado, eu não recebo nada.

Pelaprimeiravez,ConstantinDemirisdeuporsiaficarinteressado. Ficou a analisar o advogado aleijado. «Entregaria o julgamento e perderia centenas de milhões de dólares só para se vingar de mim? Não, Ele não é tão idiota como isso.» Demiris disse lentamente: -Concordo. Chotas disse - Óptimo. Você acaba de salvar a sua vida, Costa.

~~Salvei mais do que issoH, pensou Demiris triunfantemente.

- Tenho cem milhões de dólares escondidos num lugar onde ninguém os achará.

0 encontro de Chotas com Spyros Lambrou fora difícil, Quase pôs Chotas fora do escritório.

-Você quer que eu deponha para salvar a vida daquele monstro? Ponha-se mas é daqui para fora.

-Você quer vingança, não quer? -Chotas perguntara.

-Sim. E vou tê-la.

- Vaimesmo?VocêconheceoCosta.Paraeleodinheirotemmais importância do que a vida. Se for executado, a dor dele só dura uns minutos, mas se você o levar à ruína e lhe tirar tudo o que ele possui,

forçá-lo-á a viver sem um tostão, estaria a infligir-lhe um castigo muito maior.

Havia verdade nas palavras do advogado, Demiris era o homem mais ganancioso que ele já conhecera.

- Está a dizer-me que ele está disposto a deixar-me num documento tudo o que tem?

-Tudo. Afrota, os negócios, todas as firmas de que é proprietário. Era uma tentação enorme,

-Deixe-me pensar no assunto.

Lambrou observou o advogado sair do escritório na cadeira de rodas. «Pobre sacanap, pensou. «0 que é que o faz viver?»

À meia-noite Spyros Lambrou telefonou a Napoleon Chotas. -Já decidi. Está combinado.

A imprensa estava num frenesim devorador. Constantin Demiris não iria apenas ser julgado pelo homicídio da mulher, mas ser defendido por um homem que viera do mundo dos mortos, o brilhante advogado criminal que supostamente morrera num holocausto. 0 julgamento ia realizar-se na mesma sala de audiências onde Noelle Page e Larry Douglas foram julgados. Constantin Demiris sentou-se no lugar do réu, envolto numa aura de invisibilidade. Napoleon Chotas seguia na sua cadeira de rodas. 0 Estado era representado pelo promotor especial Delma. Delma estava a dirigir-se ao júri.

- Constantin Demiris é um dos homens mais poderosos do mundo, A sua vasta fortuna concede-lhe muitos privilégios. Mas há um privilégio que não lhe concede, Que é o direito de matar a sangue-frio. Ninguém tem esse direito.

Virou-se para olhar para Constantin Demiris,

- 0 Estado provará sem margem para dúvidas que Constantin Demiris é culpado do homicídio brutal da esposa que o amava. Quando acabarem de ouvir as provas, estou certo de que apenas poderão apresentar um veredicto. Culpado de homicídio de primeiro grau. - Retirou-se para o seu lugar.

0 juiz principal virou-se para Napoleon Chotas.

- A defesa está pronta a fazer a sua declaração de abertura? -Estamos, sim, Meritíssimo.-Chotas conduziu ele próprio a cadefira para a frente do júri. Viu o ar de piedade nos seus rostos quando tentaram evitar olhar para a sua face grotesca e o seu corpo estropiado. - Constantin Demiris não está aqui em julgamento por ser rico ou poderoso.0u talvez seja por causa disso que foi arrastadopara esta sala de audiências.

- Os fracos tentam sempre destruir os fortes, não é verdade? 0 senhor Demiris pode ser culpado por ser rico e poderoso, mas uma coisa vou provar com certeza absoluta: ele não é culpado pela morte da sua mulher.

0 julgamento começara. 0 promotor Delma questionava o tenente de polícia Theophilos que se encontrava no banco.

- Importa-se de descrever o que viu quando entrou na casa de praia de Demiris, tenente?

- As cadeiras e as mesas estavam viradas. Estava tudo numa confusão

- Parecia ter havido uma luta terrível?

-É verdade. Parecia que a casa tinha sido assaltada. -Encontrou uma faca com sangue no local do crime, não é verdade?

-É, sim.

-E havia impressões digitais na faca? - É correcto.

-A quem pertenciam? -A Constantin Demiris. Os olhos dos jurados movimentaram-se na direcção de Demiris.

-Quando fez busca à casa, que mais encontrou?

-No fundo de um roupeiro encontrámos um par de calções de banho manchados de sangue que tinham as iniciais de Demiris.

- Não é possível que estivessem na casa há muito tempo? -Não. Ainda estavam molhados com água salgada. -Obrigado,

Era a vez de Napoleon Chotas.

-Detective Theophilos, o senhor teve oportunidade de conversar com o réu pessoalmente, não teve?

-Tive, sim.

- Como é que o descreveria fisicamente?

-Bem... -0 detective olhou para o lugar onde Demiris estava sentado. - Eu diria que ele é um homem grande.

-Ele pareceu-lhe forte? Isto é, fisicamente forte? - Sim.

Não é o tipo de homem que teria de destruir uma sala para matar a mulher?

Delma estava de pé. -Protesto.

-Concedida. A defesa deve abster-se de conduzir a testemunha. -Peço perdão, Meritíssimo.-Chotas virou-se para o detective. -Após a sua conversa com o senhor Demiris, avaliá-lo-ia como sendo um homem inteligente?

-Certamente. Penso que uma pessoa que enriqueça como ele tem de ser bastante esperta.

- Eu não podia concordar mais consigo, tenente. E isso conduz-nos a uma questão interessante. Como é que um homem como Constantin Demiris podia ser assaz estúpido para cometer uma morte e deixarno local do crime umafaca com as suasimpressões digitais, um par de calçõesmanchados de sangue...?Não diriaque isso não foimuito inteligente?

-Bem, às vezes, no auge da realização de um crime, as pessoas fazem coisas estranhas.

-Apolícia encontrouum botão dourado do casaco que Demiris devia usar na altura? Isso é correcto?

-É, sim.

-E isso é uma prova importante contra o senhor Demiris? Segundo a teoria da polícia, a mulher arrancou durante a luta quando ele tentava matá-la?

-É correcto.

-Portanto, temos um homem que habitualmente se vestia muito bem. Um botão arrancado do casaco, mas ele não dá por ele. Vai para casa com o casaco vestido e continua a não reparar. Depois despe~ e penduram no armário... e continua a não reparar. Isso faria do réu não apenas estúpido, mas também cego.

0 senhor Katelanos estava de pé. 0 proprietário da agência de detectives aproveitava ao máximo este seu momento de glória. Delma estava a interrogá-lo.

-0 senhor é o proprietário de uma agênciaprivadade detectives?

- Sou, sim.

-E uns dias antes de a senhora Demiris ter sido assassinada, ela procurou-o?

-É verdade. -Que desejava ela?

- Protecção. Disse que ia divorciar-se do marido e que ele a ameaçara de morte.

Houve um murmúrio por parte dos espectadores. -Portanto, a senhora Demiris estava muito perturbada? -Oh, sim, estava. Certamente que estava.

- E ela contratou a sua agência para protegê-la do marido? - Exacto.

-É tudo, obrigado. -Delmavirou-se para Chotas. -Atestemunha é sua.

Chotas moveu a cadeira para o banco das testemunhas.

- Senhor Katelanos, há quanto tempo está na actividade de investigação?

- Há quase quinze anos. Chotasficouirnpressionado, - Bem. Isso é muito tempo.

- 0 senhor deve ser muito bom naquilo que faz. -Suponho que seja-disse Katelanos modestamente. -Portanto, tem tido muita experiência em lidar com pessoas que estão com problemas.

- É por isso que me procuram - disse Katelanos presunçosamente.

-E a senhora Demiris quando o procurou pareceu-lhe um pouco perturbada, ou...?

-Oh, não. Ela estavamuito perturbada. Poderia dizerem pânico. -Estou a ver. Porque estava com medo do marido que ia matá-la. -Exacto.

-Portanto, assim que ela saiu do seu escritório, quantos homens mandou segui-la? Um? Dois?

-Bem, não mandei nenhum segui-la. Chotas franziu o sobrolho.

-Não entendo. Porque não?

- Bem, ela disse para nós começarmos só na segunda-feira. Chotas olhou para ele, confundido.

-Receio que me esteja a deixar ficar confuso, senhor Katelanos. Essa mulher que apareceu no seu escritório aterrorizada que o marido a fosse matar saiu sem mais nem menos e disse que não precisava de protecção antes de segunda feira?

- Bem, é verdade. Isso é exacto.

Napoleon Chotas disse, quase para si próprio;

-Isso faz-nos pensar no grau de susto em que a senhora Demiris realmente se encontrava, não ?

A criada dos Demiris estava no banco das testemunhas.

- Então você ouviu de facto a conversa entre a senhora Demiris e o marido ao telefone?

- Ouvi, sim.

- Importa-se de nos dizer o que ouviu?

-Bem, a senhora Demiris disse ao marido que queria o divórcio e ele disse que não lhe dava.

Demiris olhou de relance para o júri.

-Compreendo. -Ele voltou-se para a testemunha. -Que mais ouviu?

-Ele marcou um encontro na casa de praia para as três horas, e ela que fosse sozinha.

-Ele disse que ela devia ir sozinha?

- Foi, sim. E ela disse que se não estivesse de volta pelas seis horas eu devia chamar a polícia.

-Houve uma reacção visível por parte do júri. Viraram-se para fixar o olhar em Demiris.

-Não tenho mais perguntas.-Delma voltou-se para Chotas.A testemunha é sua.

Napoleon Chotas moveu a cadeira para junto do banco das testemunhas.

- 0 seu nome é Andrea, não verdade?

-É, sim. -Ela tentou não olhar para o rosto cicatrizado e desfigurado.

-Andrea, você afirmou que ouviu a senhora Demiris dizer ao marido que ia pedir o divórcio e que ouviu o senhor Demiris dizer que não Iho dava, e que ele lhe disse aela quefosse à casa de praia àstrêshoras e que fosse sozinha. Está certo?

- Está, sim.

- Você está sob juramento, Andrea. Você não ouviu nada disso. - Ouvi, sim, senhor doutor.

- Quantos telefones há no quarto onde a conversa se verificou? -Bem, apenas um.

Napoleon Chotas aproximou a cadeira.

-Portanto, você não estava a ouvir a conversa noutro aparelho? - Não, senhor. Eu nunca faria uma coisa dessas.

-Então, a verdade é que apenas ouviu o que a senhora Demiris disse. Ter-lhe-ia sido impossível ouvir o que marido dizia?

- Oh. Bem, suponho...

-Por outras palavras, você não ouviu o senhor Demiris ameaçar a esposa ou pedir-lhe que se encontrasse com ele na casa de praia, nem nada. Você imaginou tudo isso por causa daquilo que a senhora Demiris estava a dizer?

Andreaestavaatrapalhada.

- Bem, suponho que o senhor pode pôr as coisas nesses termos, -Eu estou a pôr as coisas nesses termos. Porque é que estava no quarto quando a senhora Demiris estava ao telefone?

-Ela pediu-me que lhe levasse um pouco de chá. - E a senhora levou-o?

- Levei, sim.

-Pô-lo em cima de uma mesa. -Pus, sim.

-Porque não se retirou em seguida? -A senhora fez sinal para que eu ficasse.

-Ela queria que você ficasse a ouvir a conversa ou a presumível conversa?

-Eu... suponho que sim.

A voz dele era uma correia de chicote.

-Portanto, não sabe se ela estava a falar com o marido ao telefone ou se, de facto, não estava afalar com ninguém.-Chotas aproximou ainda mais a cadeira. -Não acha estranho que, a meio de uma con versa pessoal, a senhora Demiris lhe pedisse que ficasse a escutar? Sei que em minha casa quando estamos a ter uma discussão pessoal não pedimos ao pessoal que fique abisbilhotar. Não. Digo-lhe a si que essa conversa nunca existiu. A senhora não estava a falar com ninguém. Estava a tramar o marido para que neste dia neste tribunal ele fosse a julgamento. Mas Constantin Demiris não matou amulher. As provas contra ele foram cuidadosamente tramadas. Foram tramadas com cuidado excessivo. Nenhum homem inteligente deixaria atrás uma série de pistas óbvias que o incriminariam. E, independentemente de tudo aquilo que Constantin Demiris possa ser, ele é um homem inteligente. Ojulgamento prolongou-se pormais dez dias com acusações e contra-acusações, e depoimentos peritos da polícia e do médico-legista. 0 consenso de opinião apontava para que Constantin Demiris fosse provavelmente culpado. Napoleon Chotas guardou a bomba até o fim. Pôs Spyros Lambrou nobanco das testemunhas. Antes do início do julgamento, Demiris assinara um contrato reconhecido em cartório transferindo por meio de escritura a Corporação do Comércio Helénico e todos os seus bens a Spyros Lambrou. Um dia antes, esses bens foram secretamente transferidos para Napoleon Chotas com a cláusula de que só teria efeito se Constantin Demiris fosse absolvido do seu julgamento.

-Senhor Lambrou. 0 senhor e o seu cunhado, Constantin Demiris, não se davam muito bem, pois não?

-É verdade.

- De facto, não seria exagero dizer-se que os senhores se odiavam?

Lambrou olhou para Constantin Demiris.

-Podia até ser uma maneira branda de pôr a questão.

-No dia em que a suairmã desapareceu, ConstantinDemiris disse à polícia que nunca esteve nas imediações da casa de praia; que, de facto, às três horas, a hora fixada para a morte da sua irmã, ele estava reunido consigo em Acrocorinto. Quando a polícia o interrogou acerca do encontro, o senhor negou.

-Neguei, sim. - Porquê?

Lambrou permaneceu em silêncio por um longo momento. A sua voz estava cheia de raiva.

-Demiris tratava a minha irmã de uma forma vergonhosa. Maltratava-a e humilhava-a constantemente.

- Eu queria vê-lo castigado. Ele precisava de mim para ter um álibi.

- Eu não lhe queria dar. - E agora?

-Não posso continuar a viver com urna mentira. Sinto que tenho de dizer a verdade.

-0 senhor e Constantin Demiris encontraram-se em Acrocorinto nessa tarde?

-Sim, a verdade é que nos encontrámos.

Houve uma algazarra na sala de audiências. Delma pôs-se de pé, o rosto pálido.

-Meritíssimo. Protesto... -Protesto negado.

Delma afundou-se no seu lugar. Constantin Demiris estava inclinado para a frente, com os olhos brilhantes.

- Fale-nos do vosso encontro. A ideia foi sua?

-Não. A ideia foi de Melina. Ela enganou-nos a ambos. -Enganou-os, como?

A Melina telefonou-me a dizer que o marido queria encontrar-se comigo no meu pavilhão de caça para discutir uma transacção comercial. Depois telefonou ao Demiris a dizer-lhe que eu pedira um encontro. Quando chegámos, descobrimos que não tínhamos nada para dizer um ao outro.

- E o encontro realizou-se a meio da tarde na hora fixada da morte da senhora Demiris ?

-É verdade.

-São quatro horas de viagem de Acrocorinto até à casa de praia. Mandei verificar o espaço de tempo. -Napoleon Chotas olhava para o júri. -Deforma que não há possibilidade de Constantin Demiris poder ter estado em Acrocorinto às sete e regressado a Atenas antes das sete.

Chotas voltou-se para Spyros Lambrou.

-0 senhor está sob juramento, senhor Lambrou. 0 que acabou de dizer neste tribunal corresponde à verdade?

-Sim. Tomo Deus por testemunha.

0 júri ausentou-se durante quatro horas. Constantin Demiris observava o seu regresso à sala de audiências. Tinha um ar pálido e ansioso. Chotas não estava a olhar para o júri. Olhava para o rosto de Constantin Demiris. 0 aprumo e a arrogância de Demiris haviam desaparecido. Era um homem que enfrentava a morte. 0 juiz-presidente perguntou:

-0 júri já chegou a um veredicto?

- Chegámos, sim, Meritíssimo. - 0 primeiro jurado segurava um pedaço de papel.

- 0 oficial de justiça que vá buscar o veredicto, por favor.

0 oficial de justiça caminhou até ao jurado, pegou no pedaço de papel e entregou-o ao juiz. Ele abriu o papel e ergueu o olhar.

- 0 júri considera o réu inocente.

Houve um pandemónio na sala de audiências. As pessoas começavam a levantar-se, algumas aplaudindo, outras assobiando. A expressão no rosto de Demiris era de êxtase. Respirou fundo, levantou-se e caminhou na direcção de Napoleon Chotas.

-Você conseguiu -disse ele. -Fico em grande dívida consigo. Chotas olhou-o bem de frente.

-Já não. Eu sou muito rico e você é muito pobre. Venha. Vamos celebrar.

Constantin Demiris empurrou a cadeira de rodas por entre a multidão que se acotovelava, longe dos repórteres até ao parque de estacionamento. Chotas apontoupara um turismo estacionado à entrada. - 0 meu cano está ali.

Demiris empurrou-o até à porta. -Não tem motorista?

-Não preciso. Mandei equipar o carro de forma a poder conduzi-lo eu próprio. Ajude-me a entrar. Demiris abriu a porta e levou Chotas até ao lugar do condutor, Demiris entrou no carro sentando-se ao lado de Chotas.

-Você ainda é o maior advogado do mundo-Constantin Demiris sorriu.

-É verdade. -Napoleon Chotas meteu a primeira e começou a conduzir. - Que vai fazer agora, Costa?

Demiris disse cuidadosamente

- Oh, herde safar-me. NCom um milhão de dólares posso reconstruir o meu império. Demiris deu um risinho de satisfação.-0 Spyros vai ficar muito chateado quando souber que você o enganou.

-Ele não pode fazernada-assegurou-lhe Chotas.-0 contrato que ele assinou dá-lhe uma companhia que não vale nada. Eles dirigiam-se para as montanhas. Demiris observava enquanto Chotas movia as alavancas que controlavam o acelerador e o travão.

-Você sabe mexer com essa coisa.

- Aprende-se aquilo que se é obrigado a aprender - disse Chotas. Subiam uma estrada estreita da montanha.

-Aonde vamos?

Tenho uma pequena casa ali no cimo. Vamos tomar uma taça de champanhe e depois eu chamo um táxi para trazê-lo de volta à cidade. Sabe, Costa, tenha andado a pensar. Tudo o que aconteceu... A morte de Noelle Page e de Lorry Douglas. E do pobre Stavros. Não foi nada por dinheiro, pois não? -Virou-se para olhar de relance para Demiris. - Tudo teve a ver com ódio. Ódio e amor. Você amava a Noelle,

-É verdade - disse Demiris. -Eu amava a Noelle.

-Eu também a amava-disse Chotas. -Você não sabia, pois não?

Demiris olhou para ele surpreendido.

-Não.

-E no entanto eu ajudei-o a mofa-la. Nunca me perdoei por causa disso. Você já se perdoou, Costa?

-Ela teve o que merecia.

- Achoqueacabamostodosporteroquemerecemos.Háumacoisa que eu não lhe disse. Aquele incêndio... desde a noite daquele incêndio, vivo em dor torturante. Os médicos tentaram restaurar -me, mas realmente não resultou. Estou demasiado estropiado. - Empurrou uma alavanca que deu velocidade ao carro. Começaram a andar depressa em curvas apertadas, a subir cada vez mais. 0 mar Egeu surgiu ao fundo perante os seus olhos. -De facto - disse Chotas num tom rouco -, a minha dor é tão grande que a minha vida já não vale nada. - Empurrou de novo a alavanca, e o carro começou a andar mais depressa.

-Abrande - disse Demiris. -Você está a ir muito... Deforma que decidi que vamos os dois dar-lhe um fim juntos. Demiris voltou-se para fixá-lo, horrorizado.

- Que é que vocë está a dizer? Abrande, homem. Você vai-nos matar.

- É verdade - disse Chotas, Mexeu outra vez na alavanca, 0 carro avançou mais.

-Você está louco! -disse Demiris. -Você é rico. Você não quer morrer.

Oslábios cicatrizados de Chotas formaram uma imitação horrível de um sorriso.

-Não, eu não sou rico. Sabe quem é rico? A sua amiga, a Irmã Teresa. Dei todo o seu dinheiro ao convento de Janina. Dirigiam-se para uma curvafechada na íngreme estrada da montanha,

-Pare o carro! -gritou Demiris -Tentou arrancar o volante das mãos de Chotas, mas era impossível,

-Dou-lhe tudo o que você quiser-gritou Demiris. -Pare!

Chotas disse:

-Eu tenho aquilo que quero,

No momento que se seguiu sobrevoavam o penhasco, pela encosta íngreme abaixo, o carro aos tombos numa pirueta graciosa, até que por fim caiu lá em baixo no mar. Houve uma explosão tremenda, e depois um silêncio profundo e eterno.

Terminara.


FIM


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