Capítulo 10 — O RASTILHO PEGA FOGO
ERA a manhã do dia seguinte. A coronel Klebb achava-se sentada à escrivaninha do espaçoso escritório que lhe servia de quartel-general, no subsolo da SMERSH. Era mais uma sala de planificações do que propriamente um escritório. Uma das paredes achava-se completamente coberta por um mapa do hemisfério ocidental. Na da frente, via-se o do hemisfério oriental. Atrás da mesa da coronel Klebb e ao alcance da sua mão esquerda, um "telekrypton" lançava, por vezes, um sinal "en clair", em réplica a outro aparelho que se encontrava no Departamento de Cifras, sob as altas antenas instaladas no telhado do edifício. Uma vez ou outra, quando se lembrava, ela rasgava uma das longas tiras de papel e decifrava os sinais. Simples formalidade. Se algo realmente importante acontecesse, a notícia lhe seria transmitida por telefone. Todos os agentes da SMERSH, em qualquer parte do mundo, eram controlados, vigilante e implacavelmente, desta sala.
O rosto gordo aparentava aborrecimento e dissipação. A pele de galinha formava bolsas sob os olhos, os quais estavam injetados.
Um dos três telefones ao lado tocou baixinho. Pegou o fone. — Mande-o entrar.
Virou-se para Kronsteen. Acomodado numa poltrona ao lado da parede esquerda, bem na direção da extremidade sul da África, ele pautava pensativamente os dentes com um "clip" aberto.
— Granitsky.
Kronsteen virou vagarosamente a cabeça e olhou para a porta.
Red Grant entrou e fechou-a, delicadamente. Dirigiu-se para a escrivaninha e fitou a comandante, com olhos obedientes e quase famintos. Kronsteen achou que ele parecia um grande mastim esperando comida.
Rosa Klebb examinou-o friamente. — Está em forma e pronto para trabalhar?
— Sim, camarada coronel.
— Deixe-me examiná-lo. Tire a roupa.
Red Grant não demonstrou surpresa. Despiu o paletó e, depois de procurar um lugar onde colocá-lo, deixou-o cair ao chão. Depois, sem nenhum constrangimento, tirou o resto da roupa e arrancou os sapatos. O grande corpo moreno-avermelhado, coberto de pêlos dourados, iluminou a sala fria. Grant estava em posição de descanso, as mãos pendendo ao longo do corpo, e um joelho meio flexionado, como se posasse para uma aula de arte.
Rosa Klebb levantou-se e deu a volta à escrivaninha. Estudou o corpo minuciosamente, ora apontando, ora apalpando, como se comprasse um cavalo. Deu a volta ao homem e continuou a minuciosa inspeção. Antes de voltar-se para a frente, Kronsteen viu-a tirar algo do bolso e encaixá-lo na mão. Percebeu o brilho de metal.
A mulher deu a volta e pôs-se perto do estômago do agente, conservando a mão atrás das costas. Fê-lo encará-la.
Subitamente, com tremenda velocidade e o impulso de todo o peso do seu ombro, lançou o punho direito, envolto num soco inglês, contra o plexo solar do homem.
Pá!
Grant deixou escapar um grunhido de surpresa e dor. Os joelhos curvaram-se um pouco e tornaram a endireitar-se. Por um segundo, os olhos cerraram-se em agonia. Logo, porém, abriram-se e fitaram ferozmente os olhos amarelos que o miravam, com curiosidade, por trás das lentes quadradas. Além de um vergão vermelho sobre a pele, logo abaixo do externo, Grant não demonstrou sentir o golpe que teria mandado ao chão, contorcendo-se, qualquer homem normal.
Rosa Klebb sorriu ironicamente. Tornou a por o soco inglês no bolso, dirigiu-se para a escrivaninha e sentou-se. Olhou para Kronsteen com um ar de orgulho. — Ao menos, ele está em forma — disse.
Kronsteen resmungou.
O homem despido sorriu com malícia. Esfregou o estômago com uma das mãos.
Rosa Klebb recostou-se na cadeira e olhou-o pensativamente. Finalmente, disse: — Camarada Granitsky, há trabalho para você. Uma tarefa importante. Mais importante do que qualquer outra coisa que já fez. É um trabalho que lhe trará uma condecoração — os olhos de Grant brilharam — pois o objetivo é difícil e perigoso. Será mandado para o exterior, sozinho. Está claro?
— Sim, camarada coronel. — Grant estava excitado. Surgia a tão ambicionada oportunidade para progredir. Qual seria a condecoração? A Ordem de Lenine? Ouviu, atentamente.
— O alvo é um espião inglês. Gostaria de matar um espião inglês?
— Muitíssimo, camarada coronel. — O entusiasmo de Grant era genuíno. Não podia desejar coisa melhor do que matar um inglês. Tinha contas a ajustar com esses canalhas.
— Vai precisar de muitas semanas de treino e preparação. Nesse plano, deverá agir sob o disfarce de agente inglês. Suas maneiras e aparência são muito rudes. Terá de aprender, ao menos, alguns maneirismos — a voz tornou-se irônica — de um "chentleman". Ficará aos cuidados de um inglês que temos aqui. Um antigo "chentleman" do Ministério do Exterior, em Londres. A tarefa dele será fazê-lo passar por um espião inglês. Os britânicos empregam diversos tipos de agentes. Não deverá ser difícil. Mas você vai precisar aprender muitas outras coisas. A operação será no fim de agosto, mas você começará seu treino imediatamente. Há muito que fazer. Vista-se e apresente-se ao ajudante de ordens. Compreendeu?
— Sim, camarada coronel. — Grant sabia que não devia fazer muitas perguntas. Vestiu-se apressadamente, indiferente aos olhos da mulher, que o fitavam, e dirigiu-se para a porta, enquanto abotoava o paletó. Voltou-se. — Obrigado, camarada coronel.
Rosa Klebb fazia apontamentos sobre a entrevista. Não respondeu, nem ergueu os olhos, e Grant, ao sair, fechou a porta suavemente, atrás de si.
A mulher pousou a caneta e recostou-se na cadeira.
— E agora, camarada Kronsteen? Há algum ponto a ser esclarecido, antes de pormos toda a máquina em movimento? Devo mencionar que o Presidium aprovou o objetivo e confirmou a sentença de morte. Relatei o esquema do seu plano para o camarada general Grubozaboyschikov. Ele está de acordo. Os detalhes da execução ficaram inteiramente a meu cargo. O pessoal do planejamento e operações já foi selecionado e aguarda o início dos trabalhos. Tem alguma coisa a acrescentar, camarada?
Kronsteen olhava fixamente para o teto, conservando as pontas dos dedos unidas, à sua frente. Era impermeável à condescendência que transparecia na voz da mulher. Suas têmporas latejavam, pelo esforço da concentração.
— Esse tal Granitsky. É de confiança? Podemos confiar nele, num país estranho? Não irá se aposentar?
— Tem sido observado há quase dez anos. Já teve inúmeras oportunidades de escapar. Nunca demonstrou desejo de fuga. Nunca nos deu motivos para a menor suspeita. Parece viciado em drogas. Deixar a União Soviética seria para ele tão difícil como a um viciado abandonar a fonte de onde lhe provém a cocaína. É o meu carrasco-chefe. Não há ninguém melhor.
— E a jovem Romanova? Preenche os requisitos? A mulher respondeu, com certo rancor: — É muito bonita. Servirá para o objetivo em mira. Não é virgem, mas é recatada e não foi despertada sexualmente. Receberá treinamento adequado. O inglês dela é excelente. Dei-lhe uma versão inexata da tarefa e do objetivo. Está disposta a cooperar. Estou de posse dos endereços de alguns dos parentes dela, inclusive crianças, para o caso de vir a demonstrar qualquer sinal de fraqueza. Tenho também os nomes dos seus antigos amantes. Se necessário, será avisada de que essas pessoas
ficarão como reféns até que sua missão esteja terminada. É afetuosa por temperamento. Só essa ameaça bastará. Mas, não creio que tenhamos de preocupar-nos com ela.
— Romanova. Esse nome é o de um "buivshi", dos antigos. Parece estranho empregar um Romanov em tarefa tão delicada.
— As avós dela eram parentes longínquos da família imperial. Mas não frequenta os meios "buivshi". De qualquer forma, todos os nossos avós pertenceram aos antigos. Não há nada que fazer a esse respeito.
— Nossos avós não se chamavam Romanov — disse Kronsteen, secamente. — Mas, vejo que está satisfeita. — Refletiu um instante. — E esse tal Bond? Já descobriram onde se encontra?
— Sim. A rede da M.G.B. inglesa informa-nos que está em Londres. Durante o dia, vai para o seu quartel-general. À noite, dorme no seu apartamento, em um bairro londrino chamado Chelsea.
— Ótimo. Esperemos que fique por lá nestas próximas semanas. Isso significará que não está ocupado em nenhuma operação. Estará livre para perseguir a isca. Enquanto isso — os olhos escuros e pensativos de Kronsteen continuaram a examinar determinado ponto do teto — estive estudando qual o centro estrangeiro mais adequado. Escolhi Istambul para o primeiro contato. Ali, temos um bom "apparat". O Serviço Secreto possui apenas uma pequena agência. Dizem que o seu chefe é eficiente. Será liquidado. O centro é de conveniência estratégica para nós, próximo à Bulgária e ao mar Negro. É relativamente distante de Londres. Estou trabalhando nos detalhes sobre o ponto exato em que será cometido o assassínio e sobre a forma de levar Bond até lá, depois de haver encontrado a jovem. Será na França, ou em algum lugar próximo a ela. Temos excelente cobertura na imprensa francesa. Irão explorar ao máximo esse tipo de notícia, com o seu chamariz de sexo e espionagem. Falta ainda decidir quando é que Granitsky deverá entrar em ação. São detalhes de somenos. Precisamos escolher os cinegrafistas e outros funcionários, e enviá-los, em surdina, a Istambul. O nosso "apparat" local não deverá demonstrar nenhum excesso de pessoal, nem nenhuma atividade inusitada. Avisaremos a todos os departamentos, a fim de que o serviço de telégrafo com a Turquia seja mantido em absoluta normalidade, antes e durante a operação. Não queremos levantar suspeitas no seio dos interceptadores britânicos. O Departamento de Cifras informa não haver objeção, por parte da Segurança, para o fornecimento da carcaça de um aparelho Spektor. Será uma atração. O aparelho irá para a secção de Engenhos Especiais, onde está devidamente preparado.
Kronsteen parou de falar, desviando o olhar do teto. Levantou-se, pensativamente. Fitou os olhos observadores da mulher.
— Não me lembro de mais nada, no momento, camarada — disse. — Muitos detalhes serão esclarecidos à medida que forem surgindo. Sou de opinião de que o plano pode começar, com segurança.
— Concordo, camarada. A questão deve prosseguir. Tomarei as devidas providências. — A voz autoritária suavizou-se. — Sou-lhe grata pela cooperação.
O agradecimento de Kronsteen traduziu-se num quase imperceptível aceno de cabeça. Voltou-se e saiu silenciosamente da sala.
A quietude foi quebrada pelo sinal de alarma do "telekrypton", seguido do seu tagarelar mecânico. Rosa Klebb mexeu-se na cadeira e pegou um dos telefones. Discou um número.
— Sala de Operações — respondeu uma voz masculina.
O olhar inexpressivo de Rosa Klebb atravessou a sala e iluminou-se ao fitar a mancha cor de rosa que representava a Inglaterra, sobre o mapa da parede. Seus lábios úmidos entreabriram-se.
— Fala a coronel Klebb. É sobre a "konspiratsia" contra o espião inglês chamado Bond. A operação tem início a partir deste instante.