Capítulo 27 — CINCO LITROS DE SANGUE


TUDO dependia da pontaria do homem. Nash havia dito que Bond levaria um tiro direto no coração. Bond partiu do princípio de que a pontaria do outro era tão boa quanto havia sido anunciada. E, realmente fora.

Bond caiu como o faria um morto. Antes de levar o tiro procurou lembrar-se dos cadáveres que havia visto, da posição em que haviam caído. Jazia no solo com o corpo completamente relaxado, como um boneco quebrado, os braços e as pernas relaxados.

Fez um levantamento do seu estado geral. As costelas ardiam no ponto correspondente àquele em que a bala se cravara no livro. O projétil devia ter atravessado a cigarreira e ainda metade do livro. Podia sentir o chumbo quente sobre o coração. Parecia queimar-lhe as costelas. Os únicos indícios que lhe diziam não estar morto eram a dor de cabeça no ponto em que a batera contra o solo e, as ponteiras dos sapatos marrons, diante do seu nariz, iluminadas pelo reflexo tom de violeta.

Como se fosse um arqueologista, Bond explorou as ruínas do seu corpo. Reviu a posição dos pés. O ângulo do joelho, meio dobrado, a fim de dar o impulso quando fosse necessário. A mão direita, que parecia enclavinhada contra o coração, estava a poucos centímetros do estojo de viagem, perto da costura falsa onde se encontravam as facas de duas lâminas afiadas como navalhas, das quais tanto caçoara, ainda em Londres, quando lhe haviam demonstrado como usá-las. A mão esquerda, estendida como a de um defunto, estava em posição própria para ser utilizada quando fosse necessário.

Escutou o som de um bocejo cavernoso. As ponteiras dos sapatos mudaram de posição. Bond viu o couro ceder quanto Nash se pôs de pé. Dentro de instantes, ele subiria ao leito inferior, levando o revólver de Bond na mão, e procuraria a nuca da jovem por entre a cortina

dos cabelos. Depois, o cano da "Beretta" seria colocado no ponto exato, e Nash apertaria o gatilho. O resfolegar do trem encobriria o disparo abafado.

Seria um golpe arriscado. Bond tentou, desesperadamente, lembrar-se de seus conhecimentos de anatomia. Quais eram os lugares mortais no corpo humano? Por onde corria a artéria principal, a femoral? Pelo lado interno da coxa. E a ilíaca externa, se é que era esse o seu nome, que se convertia na femoral? Pelo centro da virilha. Se errasse esses dois pontos, estaria perdido. Bond não tinha a pretensão de derrotar esse gigante, num combate a mão livre. O primeiro golpe da faca devia ser decisivo.

As pontas dos sapatos, moveram-se. Apontavam em direção ao leito. Que estaria ele fazendo? Não se ouvia outro som que não fosse o trepidar metálico produzido pelo trem ao atravessar o túnel Simplon, bem no âmago de Wasehorn e do Monte Leone. O copo, sobre a pia, tilintou. As madeiras rangiam baixinho. De ambos os lados da cabine, havia pessoas que dormiam, ou permaneciam acordadas pensando em suas vidas e seus amores, fazendo planos para o futuro, imaginando quem iria esperá-los na gare de Lyon. E, nessa mesma ocasião, no fundo do corredor, a morte viajava com eles. Através do túnel escuro, puxada pela mesma "Diesel", percorrendo os mesmos trilhos.

Um dos sapatos marrons levantou-se do solo. Devia ter atravessado por cima de Bond. O arco vulnerável devia estar bem acima de sua cabeça.

Os músculos de Bond retesaram-se como os de uma serpente. Sua mão direita aproximou-se da costura falsa do estojo. Apertou a mola. Apalpou o cabo estreito da faca. Puxou-a devagar para fora, sem mexer o braço.

O calcanhar marrom ergueu-se do solo. O peso do corpo apoiou-se sobre a ponta do pé.

Depois, o segundo sapato desapareceu do campo de visão.

Agora, era preciso dar o impulso certo, segurando a faca com firmeza, o fim de que ela não se desviasse ao encontrar um osso, e depois...

O corpo de Bond ergueu-se do chão, em violenta viravolta. A faca brilhou.

Bond lançou o punho armado com toda a violência, aumentada pelo impulso do braço e do ombro, para cima. Os dedos bateram contra a calça de flanela. Continuou a segurar a faca, empurrando-a mais para dentro.

Ouviu um desesperado grito de agonia. A "Beretta" caiu ao chão. A faca foi arrancada da mão de Bond, quando o outro se contorceu convulsivamente e caiu com violência.

Bond havia previsto a queda, mas, quando se desviou para perto da janela, foi alcançado por uma das mãos de Nash num golpe que o lançou ao leito inferior. Antes mesmo que pudesse recobrar-se, o rosto ameaçador do seu antagonista surgiu à sua frente, com os dentes arreganhados desferindo reflexos violáceos. As mãos imensas avançaram para agarrá-lo, no ritmo lento da agonia.

Meio deitado, Bond lançou o pé, às cegas. Seu pé encontrou o alvo, mas sentiu-se agarrado e puxado para baixo.

Os dedos de Bond procuraram segurar-se ao estofamento do leito. Sua coxa foi agarrada. Sentiu as unhas do outro cravarem-se nela.

O corpo de Bond estava sendo torcido e puxado para baixo. Temia os dentes que se aproximavam. Arremessou a outra perna. Mas não conseguiu nada. Continuou a cair.

De repente, os dedos de Bond encontraram algo sólido. O livro! Como funcionaria? Qual seria o lado certo? Quem seria o atingido: ele ou Nash? Em desespero, Bond ergueu-o em direção ao rosto suarento do outro. Calcou a base da lombada.

Clique! Bond percebeu o recuo da arma. Clique-clique-clique! Sentiu o calor sob os dedos. As mãos que lhe aprisionavam as pernas tornaram-se frouxas. O rosto suarento afastou-se. Da sua garganta ergueu-se um som gargarejante e medonho. Depois, o corpo escorregou e despencou ao chão, a cabeça batendo violentamente contra a madeira.

Bond permaneceu deitado respirando com dificuldade, por entre os dentes. Olhou para a lâmpada violeta que brilhava sobre a porta. Reparou que o filamento da mesma piscava. Passou-lhe pela mente a idéia de que o dínamo do vagão devia estar com defeito. Apertou os olhos para poder focalizar melhor a luz. O suor que escorria fê-los arder. Continuou deitado sem fazer coisa alguma.

O ruído das rodas do trem mudou. Parecia agora menos intenso. Com um último rugido, o Expresso do Oriente tornou a sair para o luar e diminuiu de velocidade.

Bond levantou, vagarosamente, a ponta da cortina. Viu armazéns e desvios. Algumas luzes brilhavam refletidas nos trilhos. Luzes fortes. As luzes da Suíça.

O trem parou pouco a pouco.

O silêncio pesado foi cortado por um pequeno barulho oriundo do chão. Bond amaldiçoou-se por não se haver certificado. Curvou-se para a frente e escutou. Segurou o livro, fazendo pontaria, como medida de precaução. Não viu nenhum movimento. Bond pôs a mão sobre a jugular de Nash. Não sentiu pulsação. O homem estava realmente morto. O ruído fora provocado pelo enrijecimento do cadáver.

Bond tornou a sentar-se e esperou com impaciência que o trem recomeçasse a andar. Havia muito que fazer. Até mesmo antes de socorrer Tatiana, precisava providenciar a limpeza.

Depois de um solavanco, o expresso começou a deslizar. Em breve, estaria percorrendo rapidamente a região dos Alpes, ingressando no Canton Vaiais. Podia-se notar um novo som nas suas rodas, um novo ímpeto, como se estivesse satisfeito de ter deixado o túnel.

Bond pôs-se de pé, passou por cima das pernas do cadáver e acendeu a luz.

Que imundície! A cabine parecia um açougue. Quantos litros de sangue haveria no corpo humano? Lembrou-se. Cinco litros. Em breve, estariam todos derramados no chão. Contanto que não passasse para o corredor! Bond retirou os lençóis do leito inferior e pôs-se a trabalhar.

Finalmente, deu por terminado o serviço: as paredes haviam sido lavadas em volta do vulto coberto no chão e as maletas estavam prontas para o desembarque em Dijon.

Bond bebeu uma jarra de água. Depois, subiu no leito inferior e sacudiu, delicadamente, o ombro coberto pelo casaco de peles.

Não obteve resposta. Teria o homem mentido? Teria ela sido morta pelo veneno?

Colocou sua mão contra o pescoço da jovem. Estava quente. Bond pegou-lhe o lóbulo da orelha e beliscou-o com força. Ela mexeu-se, preguiçosamente, e resmungou. Bond tornou a beliscar a orelha por diversas vezes. Finalmente, uma voz abafada protestou: — Não faça isso.

Bond sorriu. Sacudiu-a. Continuou a sacudi-la, até que Tatiana se voltou para ele. Seus grandes olhos azuis, sonolentos, fitaram-no e tornaram a fechar-se. — Que é que você quer? — A voz era pastosa e irritada.

Bond falou com ela, ralhou e praguejou. Sacudiu-a com mais violência. Afinal, ela sentou-se. Olhou-o de maneira vaga. Bond puxou-lhe as pernas para fora, de maneira a penderem do leito. Conseguiu arrastá-la até ao leito inferior.

A aparência de Tatiana era péssima: a boca flácida, os olhos mortiços e pesados, o cabelo revolto e úmido. Bond procurou ajeitá-la, usando uma toalha molhada e um pente.

Passaram por Lausanne e, uma hora depois, chegaram à fronteira francesa de Vallorbes. Bond deixou Tatiana e saiu para o corredor, como medida de precaução. Mas os fiscais da Alfândega e dos passaportes passaram por ele em direção à cabine do chefe do trem e, depois de cinco minutos, dirigiram-se para outro vagão.

Bond voltou à cabine. Tatiana tornara a adormecer. Bond consultou o relógio de Nash, que usava agora em seu pulso: 4h30. Faltava, ainda uma hora para chegarem a Dijon. Bond reiniciou seu trabalho.

Por fim, os olhos de Tatiana abriram-se, despertos. As pupilas estavam mais ou menos centradas. Disse: — Pare com isso, James — Tornou a fechar os olhos.

Bond enxugou o suor que lhe escorria pelo rosto. Levou as malas, uma a uma, até ao fim do corredor, e empilhou-as perto da porta de saída. Depois, dirigiu-se ao chefe do trem e disse-lhe que "Madame" não se sentia bem e, portanto, desceriam em Dijon.

Bond deu ao chefe uma última gorjeta. — Não se incomode — disse. — Já tirei toda a bagagem, a fim de não perturbar "Madame". Meu amigo, aquele homem louro, é médico. Passou a noite toda conosco. Está dormindo no meu leito. Estava exausto. Peço o obséquio de não acordá-lo senão quando faltarem dez minutos para chegar a Paris.

— "Certainement, Monsieur". — O chefe do trem não recebia tanto dinheiro desde os bons tempos em que milionários costumavam viajar pelo Expresso. Entregou a Bond seu passaporte e as passagens. O comboio começou a diminuir a velocidade. — "Voilá que nous y sommes."

Bond voltou à cabine. Pôs Tatiana de pé, conduziu-a para o corredor e fechou a porta, encerrando lá dentro o cadáver coberto pelo lençol, ao lado do leito.

Afinal, desceram os degraus e pisaram a plataforma maciça e sem movimento. Um carregador com uniforme azul transportou a bagagem.

O sol começava a surgir. A essa hora da manhã, havia poucos passageiros acordados. Somente uns poucos viajantes da terceira classe, que haviam permanecido sentados durante toda a noite, viram um homem ajudar uma jovem a descer do poeirento vagão (cuja placa citava os nomes de lugares tão românticos) e caminhar em direção à porta cinzenta onde estava escrito: "SORTIE".

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