8

Nicole debruçou-se sobre a pia e examinou seu rosto no espelho. Passou os dedos pelas rugas debaixo dos olhos e alisou a franja grisalha. Você já é quase uma velha, disse a si mesma, depois sorriu. “Estou envelhecendo, envelhecendo, vou ter de enrolar a barra das calças”, disse alto.

Nicole riu e se afastou do espelho, virando-se para poder ver como parecia pelas costas. O vestido em verde irlandês que estava planejando usar para o casamento de Ellie ajustava-se bem a seu corpo, que continuava esguio e atlético depois de tantos e tantos anos. Nada mau, pensou Nicole, com aprovação. Pelo menos não dá para Ellie se sentir envergonhada.

Na mesa-de-cabeceira junto à sua cama estavam duas fotografias de Geneviève e seu marido que Kenji Watanabe lhe dera. Quando voltou para o quarto, Nicole pegou as fotos e ficou olhando para elas. Não pude ir a seu casamento, Geneviève, pensou ela repentinamente, em um acesso de saudades.

Sequer conheci seu marido.

Lutando com suas emoções, Nicole cruzou rapidamente para o outro lado do quarto e ficou durante quase um minuto olhando para uma fotografia de Simone e Michael O’Toole, tirada no dia de seu casamento no Nodo. E eu a deixei apenas uma semana depois da cerimônia… Você era tão jovem, Simone, disse Nicole para si mesma, porém sob muitos aspectos era bem mais madura do que Ellie…

Ela não se permitiu completar o pensamento. Era sempre doloroso demais pensar em Geneviève ou em Simone. Seria mais saudável concentrar-se no presente, e Nicole resolutamente esticou a mão e pegou na foto de Ellie que ficava pendurada na parede, ao lado das de suas irmãs e seus irmãos. Então, você será minha terceira filha a casar-se. Parece impossível. Às vezes, a vida anda depressa demais.

Uma montagem de imagens de Ellie passou como um relâmpago pela mente de Nicole. Tornou a vê-la como um bebezinho tímido deitada a seu lado na Sala Branca na Rama II, o rostinho atônito de menininha quando eles se aproximaram do Nodo a bordo do transporte, suas novas feições de adolescente quando despertou do longo sono, e finalmente a maturidade da decisão e coragem que apareceram quando falou diante dos cidadãos do Novo Éden em defesa do programa do dr. Turner. Foi uma viagem maravilhosa pelo passado.

Nicole recolocou a foto de Ellie na parede e começou a despir-se. Acabara de pendurar o vestido no armário quando ouviu um som estranho, algo como um choro, nos limites extremos de sua audição. O que era aquilo? perguntou-se.

Nicole ficou sentada, imóvel, por vários minutos, porém não ouviu quaisquer outros ruídos. Quando se levantou, no entanto, repentinamente teve a estranha sensação de que tanto Geneviève quanto Simone estavam no quarto com ela.

Nicole olhou em torno, porém continuava sozinha.

O que está acontecendo comigo? Será que tenho trabalhado demais? Será que a mistura do Caso Martinez com o casamento me empurraram para além dos limites? Ou será este mais um de meus episódios psíquicos?

Nicole tentou acalmar-se respirando lenta e profundamente. Não conseguiu, no entanto, livrar-se da sensação de que Geneviève e Simone estivessem efetivamente no quarto com ela. A presença das duas era tão forte que Nicole teve de fazer enorme esforço para não falar com elas.

Lembrava-se com muita clareza das discussões que tivera com Simone antes de seu casamento com Michael O’Toole. Talvez seja por isso que estão aqui.

Vieram lembrar-me que tenho andado tão ocupada que não tive minha conversa de casamento com Ellie. Nicole deu uma pequena gargalhada, mas continuou a sentir um arrepio em seus braços. Desculpem-me, minhas queridas, disse ela tanto à foto de Ellie quanto aos espíritos de Geneviève e Simone ali no quarto. Prometo que amanhã…

Desta vez o guincho foi inconfundível. Nicole ficou paralisada em seu quarto com a adrenalina correndo pelo seu corpo. Em poucos segundos, saiu correndo, atravessando a casa na direção do escritório onde Richard estava trabalhando.

“Richard”, disse, mesmo antes de alcançar a porta do escritório, “você ouviu…?”

Nicole parou no meio da frase. O escritório estava um caos. Richard estava no chão, cercado por um par de monitores e uma pilha confusa de equipamentos eletrônicos. O robozinho do Príncipe Hal estava em uma das mãos, e o precioso computador portátil que Richard guardara da missão Newton estava na outra.

Três biomas — duas Garcias e um Einstein parcialmente desmontado — curvavam-se sobre ele.

“Ora, olá, querida”, disse Richard, muito à vontade. “O que está fazendo aqui? Pensei que a esta hora estaria dormindo.”

“Richard, tenho a certeza de que ouvi o guincho de uma daquelas aves.

Não faz mais de um minuto. Foi muito perto.” Nicole hesitou, tentando decidir se deveria contar-lhe ou não a respeito da visita de Geneviève e Simone.

A testa de Richard franziu-se. “Eu não ouvi nada”, respondeu ele. “Algum de vocês ouviu?”, perguntou ele aos biomas. Todos sacudiram a cabeça, inclusive o Einstein, cujo peito estava todo aberto e ligado por quatro cabos aos monitores no chão.

“Eu sei que ouvi alguma coisa”, insistiu Nicole, e depois ficou em silêncio por um momento. Será esse outro sinal de Estresse Terminal? perguntou-se ela.

Depois, Nicole olhou para o caos no chão e em frente a ela. “E por falar nisso, o que é que você está fazendo?”

“Isto?”, perguntou Richard com um gesto vago que englobava tudo. “Ora, nada de especial. Só mais um projeto meu.”

“Richard Wakefield”, respondeu ela depressa, “você não está me dizendo a verdade. Toda essa bagunça aí no chão não pode ser ‘nada de especial’ — eu te conheço muito bem. Então, o que é que há de tão secreto que…?

Richard mudara a imagem em seus três monitores ativos e agora estava sacudindo a cabeça com vigor. “Não estou gostando disso”, resmungou ele. “Nem um pouco.” Levantou os olhos para Nicole. “Você, por acaso, obteve acesso a meus arquivos de dados recentes que estão guardados no supercomputador central? Talvez até inadvertidamente?”

“Claro que não. Eu não sei sequer seu código de entrada… mas não era disso que eu queria falar…”

“Alguém obteve…” Richard digitou rapidamente um diagnóstico de subrotina de segurança e estudou um dos monitores. “Pelo menos cinco vezes nas últimas três semanas… Tem certeza de que não foi você?”

“Tenho, Richard”, respondeu enfaticamente Nicole. “Mas você está continuando a mudar de assunto. Eu quero saber o que é tudo isto.” Richard pousou o Príncipe Hal no chão na frente dele e levantou os olhos para Nicole. “Não estou ainda realmente pronto para lhe contar, querida”, disse ele após a hesitação de um momento. “Por favor, dê-me mais uns dois dias.”

Nicole ficou intrigada. Mas finalmente seu rosto alegrou-se. “Tudo bem, querido; se for um presente de casamento para Ellie esperarei com o maior prazer…”

Richard voltou ao trabalho. Nicole sentou-se na única cadeira que não estava empilhada de coisas. Ao observar o marido, percebeu o quanto ela estava cansada, e convenceu-se de que sua fadiga é que deveria tê-la levado a imaginar o guincho que ouvira.

“Querido”, disse ela suavemente um ou dois minutos mais tarde.

“O que é”, respondeu ele, olhando-a do chão.

“Você alguma vez se pergunta o que, realmente, está sendo realizado no Novo Éden? Quero dizer, por que razão fomos deixados aqui tão sozinhos pelos criadores de Rama? A maior parte dos coloniais levam avante suas vidas sem jamais pensar no fato de estarem viajando pelo espaço interestelar em uma espaçonave construída por extraterrestres. Como isso pode ser possível? Por que razão a Águia ou qualquer outra manifestação igualmente maravilhosa de sua superior tecnologia alienígena não aparece por aqui, de repente? Então talvez nossos problemas mesquinhos…”

Nicole parou quando Richard começou a rir. “O que foi?”, perguntou.

“Isso me lembra de uma conversa que tive certa vez com Michael O’Toole.

Ele estava frustrado porque eu não aceitava, por fé, o testemunho ocular dos apóstolos. E depois ele me disse que Deus deveria saber que haveria uma espécie de Tomés duvidadores, e programado freqüentes visitas de Cristo após a ressurreição.”

“Mas a situação é completamente outra”, argumentou Nicole.

“Será?”, retrucou Richard. “O que os primeiros cristãos relataram a respeito de Cristo não pode ter sido mais difícil de aceitar do que nossas descrições do Nodo ou de nossa longa jornada que dilatava o tempo com suas velocidades relativistas… É muito mais reconfortante para os coloniais acreditar que esta espaçonave foi criada como uma experiência da AEI. Muito poucos entendem o suficiente de ciência para compreender que Rama está muitíssimo além de nossas potencialidades tecnológicas.”

Nicole ficou em silêncio por um momento. “Então não há nada que possamos fazer para convencê-los…”

Ela foi interrompida pelo zunido triplo indicando que o telefonema que chegava era urgente. Nicole tropeçou pelo chão para ir atendê-lo, e o rosto preocupado de Max Puckett apareceu no monitor.

“Estamos com uma situação perigosa aqui do lado de fora do conjunto de detenção”, disse ele. “Há uma turba furiosa, talvez umas setenta ou oitenta pessoas, principalmente de Hakone. Querem chegar até Martinez. Já liquidaram duas biomas Garcia e atacaram três outras. O juiz Mishkin está tentando argumentar com eles, mas o clima é péssimo. Aparentemente, Mariko Kobayashi se suicidou há cerca de duas horas. Toda a família dela está aqui, inclusive o pai…”

Nicole tinha vestido um training em menos de um minuto. Richard tentou em vão argumentar com ela. “A decisão foi minha”, disse ela, enquanto montava na bicicleta. “Sou eu quem deve arcar com as conseqüências.”

Ela manobrou a bicicleta para fora de casa, chegou à ciclovia principal e começou a pedalar furiosamente. Mantendo alta velocidade, ela poderia chegar ao centro administrativo em quatro ou cinco minutos. Menos da metade do tempo que levaria se fosse de trem àquela hora da noite. Kenji errou, pensou ela.

Deveríamos ter feito uma entrevista coletiva hoje de manhã. E eu poderia ter explicado a decisão.

Quase cem coloniais se encontravam reunidos na praça principal da Cidade Central. Estavam caminhando por perto do complexo de detenção do Novo Éden, onde Pedro Martinez se encontrava desde o momento em que fora indiciado pelo estupro de Mariko Kobayashi. O juiz Mishkin estava parado no alto da escadaria da frente do centro, e falava à turba zangada por meio de um megafone.

Vinte biomas, principalmente Garcias com um par de Lincolns e Tiassos agregado ao grupo, estavam de braços dados na frente do juiz Mishkin e evitavam que a turba subisse as escadas à frente do juiz.

“Escutem aqui”, estava dizendo o russo grisalho, “se Pedro Martinez for culpado, então ele será condenado. Porém, nossa constituição lhe garante um julgamento justo…”

“Cala a boca, velho”, gritou alguém na multidão. “Nós queremos Martinez”, gritou uma outra voz.

Do lado esquerdo, em frente ao teatro, seis jovens orientais estavam construindo uma forca improvisada. Houve vivas da platéia quando um deles amarrou uma grossa corda, com um laço, na trave superior. Um japonês parrudo de vinte e poucos anos abriu caminho até a frente da multidão. “Sai do caminho, velho”, disse ele. “E leva esses biomas mecânicos com você. Não é com você que estamos brigando. Estamos aqui para garantir justiça para a família Kobayashi.”

“Lembrem-se de Mariko”, gritou uma jovem. Ouviu-se um barulho forte quando um rapazola ruivo bateu na cara de uma Garcia com um bastão de beisebol metálico. A Garcia, com os olhos destruídos e o rosto deformado e irreconhecível, não reagiu mas não deixou seu lugar.

“Os biomas não vão reagir”, disse o juiz Mishkin ao megafone. “Eles foram programados para serem pacifistas. Mas destruí-los não traz qualquer proveito. É uma violência sem sentido, tola.”

Dois indivíduos chegaram correndo de Hakone, distraindo momentaneamente a turba de seu objetivo. Pouco mais de um minuto depois, a turba indócil aplaudiu o aparecimento de duas vastas toras de madeira, carregadas por uma dúzia de jovens cada. “Agora vamos remover os biomas que estão protegendo o assassino Martinez”, disse o jovem porta-voz japonês. “Esta é sua última oportunidade, velho. Saia do caminho antes de se machucar.”

Muitos indivíduos da multidão correram para tomar posição junto às toras que pretendiam usar como aríetes. Nesse momento, Nicole Wakefield entrou na praça em sua bicicleta.

Ela desmontou rapidamente, caminhou através do cordão de isolamento e correu escada acima para ficar ao lado do juiz Mishkin. “Hiro Kobayashi”, gritou ela no megafone antes de a multidão a reconhecer. “Vim aqui para lhe explicar por que não haverá julgamento por júri para Pedro Martinez. Quer fazer o favor de chegar até aqui a frente, para eu poder vê-lo?”

O Kobayashi pai, que tinha estado para um lado da praça, caminhou vagarosamente até a base dos degraus à frente de Nicole.

“Kobayashi-san”, disse Nicole em japonês, “lamento muito saber da morte de sua filha…”

“Hipócrita”, gritou alguém em inglês, e a multidão começou a resmungar.

“Sendo mãe”, continuou Nicole, “posso imaginar a dor terrível que deve se passar pela morte de uma filha…”

“E agora”, disse ela, falando em inglês e dirigindo-se à multidão em geral, “permitam que eu explique a todos minha decisão de hoje. Nossa constituição no Novo Éden reza que todo cidadão terá direito a um ‘julgamento justo’. Em todos os outros casos desde que esta colônia foi fundada, indiciamento por crime tem levado a um julgamento por júri. No caso do sr Martinez, no entanto, em razão de toda a publicidade havida, estou convencida de que não seria possível encontrar um corpo de jurados sem preconceitos.”

Um coro de assovios e vaias interrompeu Nicole por momentos. “Nossa constituição não define o que se deve fazer para garantir o ‘julgamento justo’ quando um júri de pares não é possível. No entanto, nossos juízes foram supostamente escolhidos para fazer valer a lei e foram treinados para resolver casos com base em evidências. E é por isso que entreguei o indiciamento de Martinez à jurisdição do Tribunal Especial do Novo Éden. Lá todas as provas — algumas delas jamais trazidas a público — serão cuidadosamente avaliadas.”

“Mas todos nós sabemos que o rapaz Martinez é culpado”, gritou em resposta um desatinado sr. Kobayashi. “Ele até mesmo confessou ter tido sexo com minha filha. E sabemos também que ele estuprou uma moça na Nicarágua, lá na Terra… Por que está protegendo-o? Que tal justiça para a minha família?”

“Porque a lei…” começou Nicole a responder, mas a multidão afogou suas palavras.

“Queremos Martinez. Queremos Martinez.” Aquela espécie de canto foi crescendo quando as duas grandes toras, que haviam sido pousadas no chão à chegada de Nicole, foram novamente levantadas pela gente que enchia a praça.

Quando era feita a tentativa de transformar as toras em aríetes, uma delas inadvertidamente se chocou com o monumento onde ficava marcada a posição celestial de Rama. A esfera espatifou-se e os componentes eletrônicos que indicavam as estrelas mais próximas rolaram pelo pavimento. A pequena luz que piscava e representava a própria Rama quebrou-se em centenas de pedaços.

“Cidadãos do Novo Éden”, gritou Nicole ao megafone, “ouçam-me até o fim. Há algo a respeito deste caso que nenhum de vocês sabe. Se ao menos me escutarem…”

“Matem a puta negra!”, gritou o rapaz ruivo que agredira a bioma Garcia com o bastão de beisebol.

Nicole encarou o rapaz com os olhos em fogo. “O que foi que você disse?”, bradou ela. O estranho canto parou repentinamente. O rapaz ficou isolado. Nervoso, ele lançou um olhar à sua volta. “Matem a puta negra!”, repetiu ele.

Nicole desceu os degraus em um instante. A multidão abriu caminho enquanto ela se dirigia diretamente para o rapaz. “Repita mais uma vez”, disse ela com as narinas vibrando, quando estava a menos de um metro de seu antagonista.

“Matem…” começou ele.

Ela deu-lhe um tapa de mão aberta no rosto. O barulho ressoou por toda a praça. Nicole deu-lhe as costas abruptamente e partiu na direção dos degraus, mas foi agarrada por mãos vindas de todo lado. O rapaz, chocado, fechou a mão como um punho…

Nesse momento, duas explosões altas abalaram a praça. Enquanto todos tentavam descobrir o que acontecera, duas outras detonaram no céu acima das cabeças de todos. “Sou só eu e minha espingarda”, disse Max Puckett no megafone. “E agora, se vocês derem licença para a juíza passar… isso, assim está melhor… e agora vão todos para casa, que é melhor para todo mundo.”

Nicole libertou-se das mãos que a seguravam, porém a multidão não se dispersou. Max levantou sua arma, mirou no grande nó da corda da forca improvisada e tornou a atirar. A corda explodiu em pedaços, com alguns destes caindo sobre a multidão.

“E agora, pessoal”, disse Max, “acontece que eu sou muito mais tinhoso do que esses dois juízes. E já estou sabendo que vou ter de passar algum tempo nesta casa de detenção por violar as leis da colônia sobre armas. E eu ia ficar danado da vida se tivesse que atirar em um de vocês também…”

Max apontou sua arma para a multidão. Todos se encolheram instintivamente. Max deu tiros de festim acima das cabeças de todos e riu-se às gargalhadas quando a multidão começou a sair correndo da praça. Nicole não conseguia dormir. A mesma cena passava e repassava em sua lembrança. Ficava a ver-se no meio da multidão estapeando o rapaz ruivo. O que me mostra que não sou melhor do que ele, pensou.

“Você ainda está acordada, não está?”, disse Richard.

“Hum-hum.”

“Está tudo bem?”

Houve um breve silêncio. “Não, Richard”, respondeu Nicole. “Nada bem…

Sinto-me muito perturbada por haver batido no rapaz.”

“Ora, o que é isso. Pare de se torturar… Ele mereceu… Ele a insultou da pior maneira possível… Gente assim não merece nada a não ser o uso da força”.

Richard estendeu a mão e começou a massagear as costas de Nicole. “Meu Deus”, disse ele. “Nunca a vi tão tensa… você está que é um nó só, de alto a baixo.”

“Estou preocupada”, disse Nicole. “Tenho uma sensação terrível de que todo o tecido de nossa vida aqui no Novo Éden está a ponto de esgarçar-se todo…

E que tudo o que fiz ou ainda faço é absolutamente inútil.”

“Você fez o melhor que pôde, querida… confesso que sempre fiquei espantado de ver o quanto você tenta.” Richard continuou a massagear as costas dela suavemente. “Mas você tem de se lembrar que está tratando com seres humanos… Você pode transportá-los para um novo mundo e dar-lhes um paraíso, mas mesmo assim eles virão equipados com seus temores e inseguranças e predileções culturais. Um novo mundo só poderia ser realmente novo se todos os seres humanos envolvidos começassem com mentes totalmente vazias, como computadores novos sem softwares e sem sistemas de operação, só com pilhas de potencial inexplorado.”

Nicole conseguiu dar um sorriso. “Meu querido, você não é muito otimista.”

“E por que haveria de ser? Nada que vi até hoje aqui no Novo Éden ou na Terra me sugere que a humanidade seja capaz de alcançar harmonia em suas relações consigo mesma, menos ainda com qualquer outra criatura viva.

Ocasionalmente, aparece um indivíduo, ou até mesmo um grupo, capaz de transcender as deficiências genéticas e ambientais da espécie… Porém, tais pessoas são milagres, pois certamente não são a norma.”

“Não concordo com você”, disse Nicole suavemente. “Sua visão é muito desesperada. Creio que a maioria das pessoas deseja ardentemente atingir essa harmonia. Só não sabemos como fazê-lo. É por isso que precisamos de mais educação. E mais bons exemplos.”

“Até mesmo aquele rapaz ruivo? Você acredita que a educação será capaz de destruir sua intolerância?”

“Tenho de acreditar, querido. De outro modo… temo que eu simplesmente desista de tudo.”

Richard emitiu um som entre uma tosse e um riso. “O que foi?”, perguntou Nicole.

“Estava apenas imaginando”, disse Richard, “se Sísifo algum dia teve a ilusão de acreditar que talvez na vez seguinte aquela pedra não tornasse a rolar colina abaixo.”

Nicole sorriu. “Ele tinha de acreditar que houvesse alguma possibilidade da pedra permanecer no alto, pois de outro modo não tentaria com tamanho afinco… Pelo menos, é assim que eu penso.”

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