SIDNEY SHELDON
O OUTRO LADO DE MIM
Finalmente, o grande mestre da narrativa partilha com o leitor a maior de todas as suas histórias... a da sua vida! Começou como um dos muitos meninos pobres da América mergulhada na Depressão. Aos 17 anos, tentava suicidar-se. Como foi que este menino se transformou no mais traduzido de todos os autores, com mais de 300 milhões de exemplares dos seus livros vendidos em todo o mundo?
Como foi que o jovem arrumador numa sala de cinema subiu poucos anos depois a um palco para receber um Oscar da Academia? Em O OUTRO LADO DE MIM, Sidney Sheldon não se poupa aos golpes que a vida lhe reservou. Fala com candura dos seus altos e baixos, dos sucessos e das críticas, revelando, pela primeira vez, a sua intimidade: as suas profundas perdas pessoais e a sua busca pela felicidade.
E, se cada romance de Sidney Sheldon é garantia de leitura apaixonante, o romance da sua vida não o é menos.
OBRAS DE SIDNEY SHELDON
A Outra Face(1969)
O Outro Lado da Meia-Noite (1974)
Um Estranho no Espelho (1976)
A Herdeira (1977)
A Ira dos Anjos(1980)
O Reverso da Medalha(1982)
Se Houver Amanhã (1986)
Um Capricho dos Deuses (1987)
As Areias do Tempo (1988)
Lembranças da Meia-Noite (1990)
Juízo Final (1991)
Escrito nas Estrelas (1992)
Nada Dura para Sempre (1994)
Corrida pela Herança (1994)
O Ditador (1995)
Manhã, Tarde e Noite (1995)
Os Doze Mandamentos (1995/ Infanto-Juvenil)
O Fantasma da Meia-Noite (1995)
O Plano Perfeito(1997)
Conte-me Seus Sonhos (1998)
O Céu Está Caindo(2000)
O Estrangulador (2001)
Quem Tem Medo do Escuro?(2004)
O Outro Lado de Mim (2006)
Título original: The Other Side of Me
Tradução de Luiza Mascarenhas Tradução portuguesa ©de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
Copyright 2005 by Sidney Sheldon Family Limited Partnership. Todos os direitos reservados incluindo os direitos de reprodução no todo ou em parte sob qualquer forma.
Editor: Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL ( Revisado por Otto Silva Cerqueira)
E-mail: secretariado@europa-america.pt
Execução técnica: Gráfica Europam, Ltda., Mira-Sintra Mem Martins
Edição n.°: 161219/8852 Outubro de 2006
Depósito legal n ° 247746/06
Consulte o nosso site na Internet: www.europa-america.pt
As minhas adoradas netas,
Lizy e Rebecca,
para que conheçam a mágica viagem que foi a minha vida
" Aquele que não tem loucos, vigaristas ou pedintes na família foi gerado pelo clarão de um relâmpago.”
Thomas Fuller, clérigo inglês do século xvI.CAPÍTULO 1
Aos dezessete anos, fui trabalhar como moço de recados na *drugstore (*farmácia) Afremow em Chicago. Era o emprego perfeito, porque me permitia desviar os barbitúricos suficientes para me suicidar. Não sabia exatamente quantos eram precisos, por isso, de forma arbitrária, calculei que vinte deviam chegar, e fui tendo o cuidado de meter no bolso uns poucos de cada vez, de forma a não levantar as suspeitas do nosso farmacêutico. Lera algures que uísque e barbitúricos eram uma combinação letal, e eu tencionava juntá-los para garantir que morreria.
Era sábado, o sábado pelo qual eu ansiara. Os meus pais estariam ausentes todo o fim de semana e Richard, o meu irmão, iam ficar em casa de um amigo. O apartamento ficaria deserto, por isso ninguém poderia atrapalhar os meus planos.
Às seis da tarde, o farmacêutico anunciou:
- Hora de fechar.
Ele não fazia a mínima idéia de como estava certo. Chegara à hora de fechar tudo àquilo que correra mal na minha vida. Eu sabia que não estava só. Todo o país pensava como eu.
Estávamos em 1934 e a América atravessava uma crise devastadora. Cinco anos antes, a bolsa entrara em colapso e a ela seguiram-se milhares de bancos. Por todo o lado, as empresas fechavam. Mais de trinta milhões de pessoas perderam os empregos e estavam desesperadas. Os salários desceram tão baixo que chegaram a um níquel à hora. Um milhão de vagabundos, incluindo duzentas mil crianças, vagueavam pelo país. Estávamos no meio de uma desastrosa depressão. Antigos milionários suicidavam-se e os executivos vendiam maçãs na rua.
A música mais popular da altura era Gloomy Sunday. Eu decorara uma parte da letra:
”Gloomy Sunday,
With shadows I spend it all
My heart and I
Have decided to end it all”
”Sombrio domingo,
Nas trevas tudo gastei
O meu coração e eu
Decidimos tudo acabar”. (N. da T.)
O mundo era sombrio e combinava perfeitamente com o meu estado de espírito. Eu atingira as profundezas do desespero. Não conseguia encontrar razão nem justificação para a minha existência. Sentia-me deslocado, perdido. Estava infeliz e ansiava desesperadamente por algo que não sabia definir ou nomear.
Vivíamos perto do lago Michigan, apenas a alguns quarteirões da margem, e uma noite fui até lá para ver se me conseguia acalmar. Estava uma noite ventosa e o céu mostrava-se coberto de nuvens.
Olhei para cima e pedi:
- Deus, se existes, mostra-te a mim.
E, enquanto eu ali estava parado a olhar para o céu, as nuvens aglutinaram-se e tomaram a forma de um enorme rosto. Um súbito relâmpago deu ao rosto olhos de fogo. Corri durante todo o caminho até casa, em pânico.
Eu vivia com a minha família num pequeno apartamento num terceiro andar em Rogers Park. Mike Todd, o grande homem do espetáculo, disse que várias vezes se viu falido, mas que nunca se sentiu pobre. Eu, no entanto, senti-me sempre pobre, pois vivíamos naquela aviltante e terrível pobreza em que, num Inverno rigoroso, nos víamos obrigados a não ligar o calorífero para podermos poupar e em que se aprende a desligar as luzes sempre que não são precisas. Espremíamos as últimas gotas do frasco de molho de tomate e os últimos resquícios do tubo de pasta de dentes. Mas eu estava prestes a libertar-me de tudo isto.
Quando cheguei ao nosso desolado apartamento, este estava vazio. Os meus pais já tinham partido para o fim de semana e o meu irmão não estava em casa. Não havia ninguém para me impedir de fazer o que eu me propusera.
Entrei no pequeno quarto que partilhava com o meu irmão e, com cuidado, tirei do armário o pequeno saco que ali escondera com os barbitúricos. Em seguida, dirigi-me à cozinha, tirei uma garrafa de Bourbon da prateleira onde o meu pai a guardava e levei-a comigo para o quarto. Olhei para os barbitúricos e para o Bourbon e perguntei-me quanto tempo demorariam a fazer efeito. Deitei um pouco de uísque num copo e levei-o aos lábios. Não me permitiria pensar no que estava a fazer. Bebi um gole de uísque e o sabor amargo fez-me tossir, engasgado. Peguei num punhado de barbitúricos e comecei a levá-los à boca quando ouvi uma voz que dizia:
- O que é que estás a fazer?
Girei sobre mim, entornando um pouco de uísque e deixando cair alguns dos comprimidos ao chão. O meu pai estava parado no umbral da porta. Aproximou-se.
- Não sabia que bebias. Olhei para ele, atordoado.
- Eu... eu pensei que se tinham ido embora.
- Esqueci-me de uma coisa. Vou fazer a pergunta outra vez: o que é que estás a fazer? E tirou-me o copo de uísque da mão.
O meu cérebro girava, desenfreado.
- Nada... Nada.
Ele tinha o sobrolho franzido.
- Isto não é nada teu, Sidney. O que é que se passa? Viu o monte de barbitúricos. Meu Deus! Mas o que é que se passa aqui? O que é isto?
Não me ocorreu nenhuma mentira. Respondi provocante:
- São barbitúricos.
- Por quê?
- Porque eu ia... Suicidar-me.
Fez-se um silêncio. Em seguida o meu pai disse:
- Não fazia idéia de que te sentisses tão infeliz.
- Não adianta impedir-me, porque, se não o fizer agora, faço-o amanhã.
Ficou parado a observar-me.
- A vida é tua. Podes fazer com ela o que quiseres. Hesitou. Se não estás com muita pressa, que tal irmos dar uma volta?
Eu sabia exatamente o que é que ele estava a pensar. O meu pai era vendedor. Ia tentar convencer-me a desistir do meu plano, mas não tinha qualquer hipótese. Eu sabia o que ia fazer.
- Está bem. Respondi.
- Veste um casaco, não apanhes uma constipação. A ironia destas palavras fez-me sorrir.
Cinco minutos mais tarde, caminhávamos pelas ruas varridas pelo vento e vazias de peões devido às temperaturas gélidas.
Após um longo silêncio, o meu pai começou a falar:
- Explica lá, filho. Porque é que te queres suicidar?
Por onde é que eu ia começar? Como poderia explicar-lhe como me sentia só e encurralado? Desejava desesperadamente uma vida melhor, mas não havia uma vida melhor para mim. Queria um futuro maravilhoso e não havia futuro maravilhoso. Tinha sonhos ofuscantes, mas a verdade é que eu não passava de um simples moço de recados de um drugstore.
A minha fantasia era entrar para a Faculdade, mas não havia dinheiro para isso. O meu sonho era tornar-me escritor. Escrevera uma dúzia de contos e enviara-os à revista Story, ao Collier’s e ao Saturday Evening Post, e recebera apenas rejeições impressas em papel. Chegara finalmente à conclusão de que não era capaz de passar o resto da minha vida nessa miséria sufocante.
O meu pai estava a falar comigo:
-... e há tantos lugares maravilhosos no mundo que ainda não viste...
Deixei de ouvi-lo. Se ele partir esta noite, poderei continuar com o meu plano.
-... devias adorar Roma...
Se ele me tentar impedir agora, faço-o quando se for embora. Estava completamente embrenhado nos meus pensamentos, mal ouvindo o que ele me dizia.
- Sidney, disseste-me que mais do que tudo no mundo querias ser escritor.
De repente, conseguira a minha atenção.
- Isso foi ontem.
- Então, e amanhã? Olhei para ele, intrigado.
- O quê?
- Tu não sabes o que te pode acontecer amanhã. A vida é um romance, não é? É cheia de suspense. Não podes ter uma idéia do que vai acontecer enquanto não virares a página.
- Eu sei o que vai acontecer. Nada.
- Não podes realmente saber isso, pois não? Sidney, cada dia é uma página diferente que pode estar cheia de surpresas. Nunca saberás o que vem a seguir enquanto não virares a página.
Ponderei no que ele dizia. Tinha alguma razão. Cada amanhã era mesmo como uma página nova de um romance.
Dobramos a esquina e caminhamos ao longo de uma rua deserta.
- Sidney se quer mesmo suicidar-te, eu compreendo. Mas eu detestaria que fechasses o livro tão cedo e perdesses a excitação que pode aparecer ao virar de uma página, aquela que tu vais escrever.
Não feches o livro demasiado cedo... Estaria eu a fechá-lo cedo de mais? Algo maravilhoso poderia acontecer amanhã!
Ou o meu pai era um extraordinário vendedor ou então eu não estava assim tão empenhado em pôr termo à minha vida, porque assim que cheguei ao fim do quarteirão eu já decidira adiar o meu plano.
Mas tencionava deixar as minhas opções sobre a mesa.
CAPÍTULO 2
Nasci em Chicago, em cima de uma mesa de cozinha que fiz com as minhas próprias mãos. Pelo menos era o que Natalie, a minha mãe, insistia em dizer. Natalie era a minha estrela Polar, o meu consolo, a minha protetora. Eu era o seu primogênito e ela nunca deixou de se maravilhar com o milagre do nascimento. Não conseguia falar de mim sem ser com a ajuda de um dicionário. Eu era brilhante, talentoso, bonito e inteligente, e tudo isto ainda antes de completar os seis meses de idade.
Nunca chamei aos meus pais ”mãe” e ”pai”. Preferiam que lhes chamasse ”Natalie” e ”Otto”, provavelmente porque achavam que os fazia parecer mais jovens.
Natalie Marcus nasceu em Slavitka, na Rússia, perto de Odessa, durante o reinado dos czares. Aos dez anos conseguiu escapar a um pogrom contra os judeus e foi trazida pela mãe, Anna, para os Estados Unidos da América.
Natalie era uma beldade. Tinha cerca de um metro e sessenta e sete de altura, cabelo castanho macio, uns olhos cinzentos inteligentes e lindas feições. Possuía a alma de uma romântica e uma enorme riqueza interior. Não recebera uma educação formal, mas aprendera a ler sozinha. Gostava de música clássica e de livros. O seu sonho era casar com um príncipe e viajar pelo mundo.
O príncipe revelou-se ser Otto Schechtel, um lutador de rua de Chicago, que deixara a escola no segundo ano do liceu. Otto era bem parecido e encantador e percebia-se porque é que Natalie se sentira atraída por ele. Eram ambos sonhadores, mas tinham sonhos diferentes. Natalie sonhava com um mundo romântico, com castelos em Espanha e passeios de gôndola ao luar em Veneza, enquanto que os sonhos de Otto consistiam em esquemas impraticáveis para enriquecer depressa. Alguém disse um dia que para se ser um escritor de sucesso basta ter papel, caneta e uma família disfuncional. Eu fui criado por duas famílias assim.
Neste canto, gostaria de apresentar o clã Marcus, dois irmãos, Sam e Al, e três irmãs, Pauline, Natalie e Fran.
No canto oposto, temos os Schechtel, cinco irmãs e dois irmãos: Harry e Otto, e Rose, Bess, Emma, Mildred e Tillie.
Os Schechtel eram extrovertidos, informais e espertos. Os Marcus eram introvertidos e reservados. As duas famílias não só eram completamente diferentes, como não tinham absolutamente nada em comum. E assim, o destino decidiu divertir-se.
Harry Schechtel casou com Pauline Marcus, Otto Schechtel casou com Natalie Marcus, Tillie Schechtel casou com Al Marcus e, como se isto não bastasse, Sam Marcus casou com a melhor amiga de Pauline. Foi um frenesi matrimonial.
Harry, o irmão mais velho de Otto, era o membro mais formidável do clã Schechtel. Tinha um metro e setenta e sete de altura, era musculoso e forte, com uma personalidade vincada. Se fôssemos italianos, seria o consiglieri. Era ele que Otto e os outros procuravam em busca de conselho. Harry e Pauline tiveram quatro rapazes, Seymour, Eddie, Howard e Steve. Seymour, que só tinha mais seis meses do que eu, sempre pareceu muito mais velho.
Na família Marcus, Al era o charmoso, o bem parecido e divertido, o bon vivant da família. Gostava de jogar e de namorar. Sam Marcus era o solene irmão mais velho, que desaprovava o estilo de vida dos Schechtel. O seu negócio era gerir concessões de bengaleiros em vários hotéis da cidade.
Por vezes, quando os meus tios se juntavam, iam para um canto falar de uma coisa misteriosa chamada sexo. Parecia-me maravilhosa. Rezava para que não desaparecesse até eu crescer.
Otto era um perdulário que gostava de desbaratar dinheiro, quer o tivesse quer não. Muitas vezes convidava várias pessoas para jantar num restaurante caro e, quando a conta chegava, pedia dinheiro emprestado a uma delas para pagá-la.
Natalie detestava pedir ou ficar a dever dinheiro. Tinha um forte sentido de responsabilidade. À medida que fui crescendo, comecei a perceber como eles eram tremendamente incompatíveis. A minha mãe sentia-se infeliz, casada com um homem que não respeitava, a viver uma vida interior que ele não compreendia. O meu pai casara-se com uma princesa de conto de fadas e ficou muito espantado quando a lua de mel terminou.
Discutiam constantemente, mas não eram discussões normais, eram amargas e maldosas. Tinham percebido quais os pontos fracos de cada um e repisavam-nos avidamente. As discussões tornaram-se de tal forma ferozes que me habituei a fugir de casa e a procurar abrigo na biblioteca pública, o único local onde conseguia encontrar refúgio, no mundo pacífico e sereno dos Hardy Boys e nos livros de Tom Swift.
Um dia, quando cheguei à casa vindo da escola, Otto e Natalie gritavam obscenidades um ao outro. Decidi que não conseguia aguentar mais. Precisava de ajuda. Fui ter com a minha tia Pauline, irmã de Natalie. Era uma senhora gorducha, doce, amorosa, pragmática e inteligente.
Quando cheguei, Pauline olhou para mim e perguntou imediatamente:
- O que é que se passa? Eu estava a chorar.
- É a Nat e o Otto. Estão sempre a discutir. Não sei o que fazer. Pauline franziu o sobrolho.
- Eles discutem na tua frente? Acenei que sim.
- Muito bem. Eu digo-te o que tens de fazer. Ambos gostam muito de ti, Sidney, e não te querem magoar, por isso, da próxima vez que começarem uma discussão, chegas junto deles e dizes-lhes que nunca mais os queres ver discutir na tua frente. És capaz de fazer isso?
Anui.
- Sou.
O conselho da tia Pauline resultou.
Natalie e Otto estavam no meio de um desafio de gritos, quando cheguei junto deles e lhes disse:
- Não me façam isto. Por favor, não discutam na minha frente. Os dois ficaram imediatamente contritos. Natalie foi a primeira a falar:
- Claro. Tem toda a razão, meu querido. Não volta a acontecer. E Otto:
- Desculpe Sidney. Não temos o direito de atirar com os nossos problemas para cima de ti.
Depois disso, as discussões continuaram, mas pelo menos eram abafadas pelas paredes do quarto deles.
Mudávamos constantemente de cidade para cidade, com Otto à procura de trabalho. Sempre que me perguntavam o que fazia o meu pai, a minha resposta dependia de onde nos encontrávamos. No Texas trabalhou numa joalharia, em Chicago, numa loja de roupas, no Arizona, numa mina de prata esgotada, em Los Angeles, vendia revestimentos.
Otto levava-me duas vezes por ano a comprar roupa. A ”loja” era um carrinho parado numa viela, cheia de fatos maravilhosos. Eram tão novos que ainda tinham as etiquetas com os preços, e eram espantosamente baratos.
Em 1925 nasceu o meu irmão Richard. Eu estava na altura com oito anos. Vivíamos em Gary, no estado de Indiana, e lembro-me como fiquei entusiasmado por ter um irmão, um aliado contra as forças negras da minha vida. Foi um dos acontecimentos mais excitantes da minha vida. Tinha grandes planos para nós e ansiava por todas as coisas que faríamos juntos, quando ele crescesse. Enquanto esperava, fazia corridas por Gary com ele dentro do carrinho.
Durante a Depressão, a nossa situação financeira era algo saído de Alice no País das Maravilhas. Otto andava por fora, a trabalhar num dos mega-negócios do seu mundo de fantasia, enquanto Natalie, Richard e eu vivíamos num sombrio e atulhado apartamento. De repente, Otto aparecia e anunciava que tinha feito um negócio onde ganharia mil dólares por semana. Antes de percebermos o que nos estava a acontecer, já estávamos a viver num apartamento enorme, no topo de um edifício, numa outra cidade. Parecia um sonho.
A verdade é que alguns meses mais tarde constatávamos que fora de fato um sonho, pois o negócio de Otto acabava por desaparecer e estávamos de regresso a outro pequeno apartamento qualquer, numa outra cidade.
Eu sentia-me um deslocado. Se existisse um brasão na família seria a figura de um carrinho em movimento. Ainda não completara dezessete anos e já vivera em oito cidades e freqüentara oito escolas básicas e três secundárias. Eu era sempre o recém chegado no bairro, o forasteiro.
Otto era um grande vendedor e, cada vez que eu começava a freqüentar uma nova escola numa nova cidade, no primeiro dia levava-me sempre a conhecer o diretor da escola e quase invariavelmente conseguia convencê-lo a colocar-me um ano acima. Como conseqüência, eu era sempre o mais novo da classe, criando mais uma barreira na possibilidade de fazer novos amigos. Conseqüentemente, tornei-me tímido, fingindo sentir prazer em ser um solitário. Era uma vida muito perturbada. Cada vez que eu começava a fazer amigos, era altura de ir embora.
De onde veio o dinheiro, não faço idéia, mas Natalie comprou um pequeno piano espineta em segunda mão e fez questão que eu começasse a ter aulas de piano.
- Por quê? Perguntou Otto.
- Depois verás. Respondeu.
- Ele até tem mãos de músico. Eu gostava das minhas lições, mas acabaram pouco tempo depois, quando nos mudamos para Detroit.
Otto gabava-se orgulhosamente de nunca ter lido um livro na vida. Foi Natalie quem instigou em mim o amor pela leitura. Otto ficava preocupado porque eu gostava de ficar sentado em casa a ler os livros que trazia da biblioteca, quando podia estar no meio da rua a jogar basebol.
- Vais dar cabo dos olhos. – Insistia - Por que é que não és como o teu primo Seymour? Esse joga futebol com os rapazes.
O meu tio Harry foi mais longe. Uma vez ouvi-o dizer ao meu pai:
- O Sidney lê demasiado. Vai acabar mal.
Quando eu tinha dez anos, tornei as coisas piores, pois comecei a escrever. Havia uma competição de poesia numa revista chamada Wee Wisdom, uma revista para crianças. Escrevi um poema e pedi a Otto que o enviasse para a revista para eu poder concorrer.
O fato de eu escrever deixava Otto nervoso. O fato de escrever poesia deixava-o muito nervoso. Mais tarde soube que, como não se queria sentir embaraçado quando a revista rejeitasse o meu poema, substituiu o meu nome pelo do meu tio Al e mandou-o assim.
Duas semanas mais tarde, Otto foi almoçar com Al.
- Otto, passou-se uma coisa muito esquisita. Porque será que a revista Wee Wisdom me mandou um cheque de cinco dólares?
Foi assim que o meu primeiro escrito profissional foi editado sob o nome Al Marcus.
Um dia a minha mãe entrou a correr no apartamento, quase sem fôlego. Abraçou-me e exclamou:
- Sidney, acabo de vir da casa da Bea Factor. Ela diz que vais ser mundialmente famoso! Não é maravilhoso?
Bea Factor era uma amiga dela conhecida por ser médium, e muitas pessoas conhecidas atestavam-no. Quanto a mim, era maravilhoso que a minha mãe acreditasse no que ela dissera.
Chicago nos anos vinte e trinta era a cidade dos barulhentos comboios de superfície, carroças de gelo puxadas por cavalos, praias atulhadas de gente, clubes de strip-tease, currais malcheirosos e o massacre do dia de São Valentim, onde sete mafiosos foram alinhados contra a parede de uma garagem e abatidos a tiros de metralhadora.
O sistema escolar era gerido como a cidade, com dureza e agressividade. Havia coisas a voar pelas salas de aula. E nem eram os alunos que atiravam, eram os professores. Uma manhã, quando andava no terceiro ano, um professor não gostou de alguma coisa que um aluno disse, pegou num dos pesados tinteiros de vidro que havia em cima das secretárias e atirou-o pelos ares em direção ao aluno. Se lhe tivesse acertado na cabeça, tinha-o morto. Fiquei demasiado aterrorizado para voltar à tarde.
A minha disciplina preferida na escola era o Inglês. Uma das tarefas da turma era ler à vez em voz alta um livro de pequenos contos chamado Elgin Reader. Chegávamos a um conto de Põe, de O’Henry ou de Tarkington e eu ficava a sonhar que um dia o professor diria: ”Passem para a página vinte do vosso livro de leitura” e, espanto dos espantos, ali estaria uma história escrita por mim. De onde me vinha este sonho, não faço idéia. Talvez fosse um recuo atávico a algum antepassado há muito desaparecido.
O décimo andar do hotel Sovereign era a velha piscina da vizinhança. Sempre que podia, levava Richard até lá para brincar na piscina. Ele tinha cinco anos.
Um dia, deixei-o na zona baixa da piscina e nadei até a zona mais funda. Enquanto falava com umas pessoas, Richard saiu da piscina, à minha procura. Chegou junto da parte mais funda, escorregou e caiu lá dentro. Foi direitinho para o fundo. Eu vi o que estava a acontecer, mergulhei e puxei-o para cima.
Nunca mais houve piscina para nós.
Quando tinha doze anos, andava no sétimo ano da escola de Marshall Field, em Chicago, e tinha uma aula de Inglês onde podíamos trabalhar nos nossos próprios projetos. Decidi escrever uma peça sobre um detetive que investigava um homicídio. Quando terminei, entreguei-a a professora. Ela leu-a, chamou-me à sua secretária e disse:
- Sidney, eu acho que isto é mesmo muito bom. Queres levá-la a cena?
Se queria!
- Claro que sim, professora.
- Vou tratar das coisas para que a possas apresentar no grande auditório.
De repente lembrei-me da grande excitação de Natalie com a profecia de Bea Factor. Sidney vai ser mundialmente famoso.
Eu estava muito excitado. Aquilo era o princípio. Quando os meus companheiros de classe ouviram a notícia, todos quiseram entrar na peça. Decidi que não só a ia produzir e dirigir como tomaria parte nela. É claro que nunca antes dirigira uma peça, mas sabia exatamente o que queria.
Comecei a escolher os atores. Permitiram-me que ensaiasse depois das aulas no grande auditório e, pouco tempo depois, a minha peça era o tema das conversas da escola. Deram-me todos os adereços que pedi: sofás, cadeiras, mesas, um telefone...
Foi uma das épocas mais felizes da minha vida. Sabia, sem qualquer sombra de dúvida, que era o princípio de uma maravilhosa carreira. Se eu, com a minha idade, era capaz de escrever uma peça de sucesso, não havia limite para onde podia chegar. Podia até vir a ter peças na Broadway, com o meu nome a néon.
Fiz um ensaio geral com os colegas que escolhi, todos já com os fatos vestidos, e o ensaio correu perfeitamente. Fui ter com a professora:
- Estou pronto, quando quer que apresente a peça? Perguntei. Ela olhava para mim, radiante.
- Porque não amanhã à noite?
Nessa noite não consegui dormir. Sentia que todo o meu futuro dependia do sucesso da peça. Deitado na cama revi cena por cena, à procura de falhas. Não consegui encontrar nenhuma. Os diálogos eram excelentes, a trama desenrolava-se com leveza e a peça tinha um final inesperado. Todos iam adorar.
Na manhã seguinte, assim que cheguei à escola, a professora tinha uma surpresa para mim.
- Consegui cancelar todas as aulas de Inglês para que todos possam vir ao auditório ver a tua peça.
Nem queria acreditar. Ia ser um sucesso ainda maior do que imaginara.
Às dez da manhã, o imenso auditório estava cheio. Não só lá estavam os alunos de Inglês como também o diretor e todos os professores que ouviram falar da minha peça, ansiosos por verem o trabalho de uma criança prodígio. No meio de toda a excitação, eu estava calmo. Muito calmo. Parecia-me perfeitamente normal que tudo aquilo me estivesse a acontecer, tão cedo na vida. Tu vais ser mundialmente famoso.
Chegou à hora do espetáculo. As conversas no auditório começaram a morrer e o teatro ficou silencioso. O cenário consistia numa sala de estar simples, onde um rapaz e uma rapariga representavam o papel de um marido e uma mulher, cujo amigo acabara de ser assassinado. Estavam sentados lado a lado num sofá.
Eu fazia o papel de um detetive que investigava o homicídio. Estava de pé nos bastidores, preparado para fazer a minha entrada. A minha deixa era o momento em que o rapaz olhava para o relógio e dizia:
- O inspetor deve chegar em breve.
Mas, em vez de dizer ”breve”, ele enganou-se e começou a dizer ”um minuto”, mas parou a meio e tentou transformar ”minuto” em ”breve”. O que saiu foi ”O inspetor deve chegar em min-breve”. Ele corrigiu imediatamente, mas era demasiado tarde. Min-breve? Era o som mais engraçado que eu alguma vez ouvira. Era tão engraçado que comecei a rir. E nunca mais consegui parar. Quanto mais pensava na palavra, mais gargalhadas dava.
O rapaz e a rapariga no palco olhavam fixamente para mim nos bastidores, à espera que eu entrasse. Mas eu não me conseguia mexer, porque ria perdidamente. Não conseguia parar. As gargalhadas tomaram conta de mim e fui ficando cada vez mais histérico.
A peça fora interrompida mal tinha começado.
Depois do que pareceu uma eternidade, ouvi vinda do auditório, a voz da minha professora a dizer:
- Sidney, vem cá fora.
Forcei-me a abandonar o abrigo dos bastidores e cambaleei até meio do palco. A minha professora estava no meio do auditório de pé, a ouvir as minhas gargalhadas frenéticas.
- Pára imediatamente! Ordenou. Mas como podia eu? Min-brevé;
As pessoas da audiência começaram a levantar-se e a sair do auditório e eu fiquei a vê-las, fingindo que me ria porque queria, fingindo que o que estava a acontecer não tinha qualquer importância.
Fingindo que não queria morrer.
CAPÍTULO 3
Por volta de 1930, a Depressão estava cada vez mais profunda e, no seu aperto feroz, oprimia toda a vida econômica do país. As filas para o pão aumentaram e o desemprego era pandêmico. Havia confrontos nas ruas. Eu terminara o ensino preparatório em Marshall Field, Chicago, e tinha um emprego na drugstore Afremow. Natalie trabalhava como caixa num recinto de patinagem, uma moda nova que tinha lugar em enormes recintos, com largos ringues de patinagem circulares em madeira, onde intrépidos homens sobre patins de rodas faziam corridas, deitando abaixo os seus rivais e criando o máximo de confusão que conseguiam, enquanto os espectadores os aplaudiam.
Otto, entretanto, viajava pelo país nos seus hipotéticos mega-negócios.
Intermitentemente, aparecia em casa cheio de entusiasmo.
- Desta vez tenho um bom pressentimento. Acabei de fazer um negócio que nos vai levar a uma boa vida.
E, mais uma vez, fazíamos as malas e mudávamo-nos para Hammond, ou Dálias, ou Kirkland Junction, no Arizona.
- Kirkland Junction?
- Vais gostar muito daquilo. - Prometeu ele - Comprei uma mina de prata.
Kirkland era uma pequena cidade a 167 km de Phoenix, mas não era esse o nosso destino final. Kirkland Junction era uma velhíssima bomba de gasolina, e acabamos a viver nas suas traseiras durante três infelizes meses, enquanto Otto tentava dominar o mercado da prata. Verificou-se que não havia prata na mina. Fomos salvos por um telefonema do tio Harry.
- Então? Como vai a mina de prata? Perguntou.
- Nada famosa. Respondeu Otto.
- Não te preocupes. Eu estou em Denver. Tenho uma grande companhia de corretagem a funcionar. Quero que venhas trabalhar comigo.
Denver revelou-se uma maravilha. Era antiquada e maravilhosa, com brisas frescas que vinham das encostas das montanhas de cumes cheios de neve e varriam e atravessavam a cidade. Eu adorava lá estar.
Harry e Pauline tinham desencantado uma luxuosa mansão de dois pisos numa elegante zona da cidade. As traseiras da casa davam para uma enorme zona verde chamada Cheeseman Park. Os meus primos, Seymour, Howard, Eddie e Steve, ficaram felizes por nos ver e o sentimento foi mútuo.
Seymour guiava um Pwrce Arrow vermelho vivo e namorava raparigas bem mais velhas do que ele. Eddie recebera pelos anos um cavalo de montar. Howard ganhava campeonatos juvenis de tênis. A atmosfera endinheirada das vidas deles era bem diferente da nossa miserável existência em Chicago.
- Nós vamos viver com Harry e Pauline? Perguntei.
- Não.
Tinham uma surpresa para mim.
- Vamos comprar cá uma casa.
Quando vi a casa que iam comprar, nem queria acreditar. Era grande e tinha um lindo jardim, num subúrbio calmo, na rua Marion. Os quartos eram grandes, maravilhosos e acolhedores. A mobília era fresca e bonita, bem diferente dos móveis bafientos dos apartamentos onde vivera toda a minha vida. Aquilo era muito mais do que uma casa. Aquilo era um lar. No momento em que entrei pela porta da frente, senti que a minha vida tinha mudado, que finalmente tinha raízes. Não haveria mais mudanças todos os meses pelo país, com novos apartamentos e novas escolas.
Otto vai comprar esta casa. Eu vou casar aqui e os meus filhos vão crescer aqui...
Pela primeira vez desde que me lembrava, havia dinheiro em abundância. O negócio do Harry crescia de tal maneira que ele já era dono de três empresas de corretagem.
No Outono de 1930, com a idade de treze anos, matriculei-me no liceu de East, o que acabou por se revelar uma experiência bastante agradável. Os professores em Denver eram simpáticos e prestáveis. Ali ninguém atirava tinteiros à cabeça dos alunos. Comecei a fazer amizades na escola e gostava da sensação de regressar a casa, à maravilhosa casa que em breve ia ser nossa. Natalie e Otto pareciam ter resolvido a maior parte dos seus problemas pessoais, o que tornava a vida bem mais doce.
Um dia, durante uma aula de ginástica, escorreguei e lesionei a minha coluna. A dor foi terrível. Ali estava eu, deitado no meio do chão, incapaz de me mexer. Levaram-me ao gabinete do médico. Assim que ele acabou o exame, perguntei-lhe:
- Vou ficar aleijado?
- Não. - Assegurou-me - Um dos teus discos deslocou-se e está a comprimir a espinal medula. É isso que provoca essa dor. O tratamento é muito simples. Só tens de ficar deitado durante dois ou três dias, com compressas quentes para relaxar os músculos, e o disco vai regredir e voltar ao seu lugar. E ficarás fino como antes.
Uma ambulância levou-me a casa e os paramédicos colocaram-me na cama. Ali fiquei, cheio de dores, mas, tal como o médico dissera, ao fim de três dias a dor desapareceu.
Não fazia idéia de como este incidente iria afetar tão profundamente todo o resto da minha vida.
Um dia, tive uma experiência simplesmente espantosa. Havia um anúncio para uma feira em Denver onde uma das atrações era uma volta de avião.
- Eu gostaria de fazer isto. Disse a Otto. Ele pensou no assunto e respondeu:
- Está bem.
O avião era um belíssimo Lincoln Commandere eu estava excitadíssimo só por subir para dentro dele.
O piloto olhou para mim e perguntou:
- A tua primeira vez?
- A primeira.
- Aperta o cinto. – Pediu - Vais adorar.
E tinha toda a razão. Voar era uma experiência surrealista. Observei a terra a aproximar-se, a afastar-se e a desaparecer a uma velocidade vertiginosa, e eu jamais sentira algo tão estimulante em toda a minha vida.
Quando aterramos, disse a Otto:
- Quero voltar lá acima.
E voltei. Estava decidido a vir a ser piloto um dia.
Uma manhã bem cedo, na primavera de 1933, Otto entrou no meu quarto. O seu rosto estava sombrio.
- Faz as malas. Vamos embora.
Fiquei sem perceber.
- Aonde vamos?
- Vamos voltar para Chicago. Não podia acreditar.
- Nós vamos embora de Denver?
- Exatamente.
- Mas...
Ele já desaparecera. Vesti-me e fui ter com Natalie.
- O que foi que aconteceu?
- O teu pai e Harry tiveram um... desentendimento.
Olhei em volta da casa onde pensara viver o resto da minha vida.
- Então e esta casa?
- Não a vamos comprar.
O nosso regresso a Chicago não foi nada alegre. Nem Otto, nem Natalie queriam falar sobre o que se passara. Depois de Denver, Chicago parecia ainda menos amistosa e agradável. Mudamo-nos para um pequeno apartamento e eu estava de volta à realidade, à triste lembrança de que não tínhamos dinheiro e que era impossível encontrar um emprego decente. Otto estava de volta à estrada e Natalie trabalhava como vendedora num armazém. O meu sonho de ir para a universidade morreu. Não tínhamos dinheiro para as propinas. As paredes do apartamento fechavam-se sobre mim. Tudo me parecia cinzento.
Eu não sou capaz de passar o resto da minha vida a viver assim, pensei. A pobreza em que vivíamos parecia agora bem pior, depois da breve e saborosa experiência da afluência de Denver, e nós precisávamos desesperadamente de dinheiro. Trabalhar como moço de recados de uma drugstore não era futuro para mim.
Foi nessa altura que decidi suicidar-me e Otto me conseguiu convencer a não o fazer, dizendo-me que eu tinha de continuar a virar as páginas. Mas elas não se queriam virar e não havia nada a que pudesse aspirar. A promessa de Otto não passara de palavras vazias.
Quando chegou Setembro, matriculei-me no liceu Senn. Otto estava de novo na estrada, tentando fazer os seus mega-negócios. Natalie trabalhava a tempo inteiro numa loja de roupas, mas o dinheiro que entrava não chegava. Eu tinha de arranjar uma maneira de ajudar...
Lembrei-me de Sam, o irmão mais velho de Natalie, e das inúmeras concessões de bengaleiros que ele tinha em vários hotéis no Loop. Os bengaleiros estavam apinhados de mulheres lindas e escassamente vestidas e de arrumadores. Os clientes eram generosos com as gorjetas que davam as mulheres. Não faziam idéia que o dinheiro ia parar à gerência.
Apanhei o comboio de superfície em direção à baixa da cidade, para falar com o meu tio Sam. Encontrei-o no seu escritório no hotel Sherman.
Saudou-me calorosamente.
- Ora, ora. Mas que agradável surpresa. O que posso fazer por ti, Sidney?
- Preciso de um emprego.
- Sim?
- Tinha esperança de que talvez pudesse trabalhar como arrumador num dos bengaleiros de um dos hotéis.
Sam conhecia bem a nossa situação financeira. Olhou pensativo para mim. Por fim respondeu:
- E porque não? Pareces mais velho do que os teus dezessete anos. Acho que o hotel Bismarck precisa de alguém.
E comecei logo a trabalhar nessa semana.
O trabalho era simples. Os clientes entregavam os casacos e os chapéus às empregadas, que por sua vez lhes davam um papel com um número. Em seguida, ela entregava-me o casaco e o chapéu e eu pendurava-os no cabide com o número correspondente. Quando o cliente voltava, o processo invertia-se.
Tinha agora um novo horário. Ia à escola até as três e a seguir apanhava o El para sul, em direção ao Loop, saía na estação perto do hotel Bismarck e ia trabalhar. Fazia o turno das cinco até ao fecho, que muitas vezes era à meia noite ou mais tarde, dependendo se havia alguma festa especial. O meu salário era de três dólares por noite. Entregava todo o dinheiro que recebia a Natalie.
Os fins de semana tinham mais movimento, com as festas no hotel, por isso acabava a trabalhar sete noites por semana. As épocas festivas eram emocionalmente difíceis para mim. As famílias vinham ao hotel passar o Natal e a passagem de Ano e eu via as crianças a celebrarem com os pais e sentia inveja. Natalie estava a trabalhar, Otto estava ausente, por isso eu e Richard estávamos sozinhos e não tínhamos ninguém com quem celebrar. Às oito da noite, quando todos se deleitavam com os seus jantares de festa, eu corria apressado até uma cafeteria ou um snack bar, comia rapidamente qualquer coisa e regressava ao trabalho.
O ponto alto da rotina das minhas noites era quando a minha tia Francês, a efervescente irmã mais nova de Natalie, vinha trabalhar uma ou outra noite no bengaleiro do Bismarck. Era uma morena baixinha e alegre, com um vivo sentido de humor, e os clientes adoravam-na.
Uma nova empregada do bengaleiro, Joan Vitucci, veio trabalhar para o Bismark. Só tinha mais um ano do que eu e era muito bonita. Senti-me atraído por ela e comecei a fantasiar a seu respeito. Começaria por levá-la a sair. Embora eu não tivesse dinheiro, ela acabaria por ver os aspectos positivos em mim. Íamo-nos apaixonar e acabaríamos por casar e ter filhos maravilhosos.
Uma noite ela disse-me:
- Os meus tios fazem um almoço de família todos os domingos. Acho que ias gostar deles. Se estiver livre este domingo, queres vir almoçar conosco?
A fantasia estava a tornar-se realidade.
Aquele domingo acabou por tornar-se uma experiência extremamente agradável. Era uma reunião de uma calorosa família italiana, que juntava cerca de uma dúzia de adultos e crianças em volta de uma enorme mesa de jantar cheia de bruschetta, sopa fagioh, frango cacciatore e lasanha no forno.
O tio de Joan era um homem afável e gregário chamado Louie Alterie e era o chefe do sindicato dos porteiros. Quando chegou a hora de me vir embora, agradeci a todos e comentei a Joan o quanto apreciara o seu convite. Era verdadeiramente o início da nossa relação.
Na manhã seguinte, Louie Alterie foi abatido a tiros de metralhadora ao sair do edifício onde tivéramos o nosso almoço.
Joan desapareceu da minha vida.
A fantasia acabou.
Entre a escola durante o dia, as noites passadas no bengaleiro e os sábados na drugstore, tinha muito pouco tempo para mim.
Algo de estranho se passava em minha casa. Havia tensão, mas era de um tipo diferente. Natalie e Otto sussurravam umas coisas um ao outro e tinham um aspecto sombrio.
Uma manhã, Otto chegou junto de mim e disse:
- Filho, vou para uma quinta. Parto hoje.
Fiquei espantado. Eu nunca estivera numa quinta e pensei que podia ser divertido.
- Gostava de poder ir contigo, Otto. Ele abanou a cabeça.
- Lamento muito, mas não te posso levar comigo.
- Mas...
- Não, Sidney.
- Está bem. E quando é que voltas?
- Daqui a três anos. E foi-se embora.
Três anos? Não podia acreditar. Como é que ele nos podia abandonar durante três anos para ir viver numa quinta? Natalie entrou no quarto. Virei-me para ela.
- O que é que se passa?
- Infelizmente tenho más notícias para ti, Sidney. O teu pai meteu-se com gente má. – Explicou - Vendia máquinas de distribuição automática a lojas. O que o teu pai não sabia é que não havia máquinas. Os homens para quem trabalhava ficaram com o dinheiro e fugiram. Mas foram apanhados e o teu pai foi considerado culpado, juntamente com eles. Vai para a cadeia.
Fiquei chocado. Então a quinta era essa.
Por três anos?
Não sabia o que dizer. O que íamos nós fazer sem ele durante três anos?
A verdade é que não precisava de me ter preocupado.
Doze meses depois de Otto ter sido internado na prisão estadual de Lafayette, estava de volta a casa, um herói.
CAPÍTULO 4
Tínhamos lido nos jornais a história do heroísmo de Otto e ouvimo-la vezes sem conta na rádio. Eu não fazia a mínima idéia do que a prisão fazia a um homem, mas, por qualquer razão, tinha a sensação que ele voltaria mudado, pálido e vergado. Aguardava-me uma agradável surpresa.
Quando ele entrou pela porta da frente do nosso apartamento, ostentava um sorriso de orelha a orelha e estava alegre.
- Voltei. Saudou. Choveram os abraços.
- Queremos saber o que aconteceu. Otto sorriu.
- Tenho todo o prazer em contar tudo.
E sentou-se à mesa da cozinha e começou a contar:
- Eu estava a trabalhar no recinto da prisão, juntamente com a equipe de limpeza. A cerca de mil e quinhentos metros, há um enorme reservatório que armazena a água que abastece a prisão, cercado por um muro com uns três metros de altura. Olhei para cima e vi um garoto a sair de um dos edifícios. Devia ter três ou quatro anos. A equipe acabara o trabalho e eu estava sozinho.
Quando voltei a olhar para cima, o garoto subia os degraus do muro do reservatório e estava quase a chegar ao topo. Era muito perigoso. Olhei em volta à procura de quem estava a tomar conta dele, mas não vi ninguém. Enquanto eu olhava em redor, o garoto chegou ao cimo. Escorregou e caiu dentro do reservatório. Um guarda numa das torres viu o que se passou, mas eu sabia que ele nunca ia conseguir chegar a tempo ao garoto. Levantei-me e corri como um louco até ao muro. Subi o mais depressa que fui capaz. Quando cheguei ao cimo, olhei para dentro e vi o garoto a afundar-se. Atirei-me à água e consegui apanhá-lo. Debatia-me para conseguir manter-nos aos dois a flutuar.
Logo a seguir, chegaram os socorros e tiraram-nos de lá de dentro. Puseram-me no hospital durante uns dias, porque eu engolira uma data de água e tinha algumas contusões por me ter atirado.
Estávamos presos as palavras dele.
Quis a sorte que o garoto fosse o filho do diretor da prisão. Ele e a mulher foram ao hospital visitar-me.
Otto olhou para nós e sorriu.
- E a história acabaria aqui se não fosse um pormenor. É que descobriram que eu não sabia nadar e então a partir daí foi à loucura. De repente passei a ser um herói. Estava nos jornais e na rádio. A prisão foi inundada por telefonemas, cartas e telegramas a oferecerem-me emprego e a pedirem clemência para mim. O diretor e o governador tiveram uma reunião e decidiram que, dado o meu delito não ser sério, seria uma boa política perdoarem-me Otto estendeu os braços. E aqui estou eu.
Éramos de novo uma família.
Pode ter sido coincidência, mas, subitamente, uma bolsa à qual concorrera um ano atrás, da B’nai Brith uma organização judaica filantrópica foi-me concedida.
Era um milagre. Eu seria o primeiro da minha família a frequentar a universidade. Uma página fora virada. Admiti que, afinal, talvez pudesse existir um futuro para mim algures. Mas, mesmo com a bolsa, continuávamos desesperados com falta de dinheiro.
Seria eu capaz de aguentar o bengaleiro sete noites por semana, a drugstore Afremow aos sábados e um horário completo na universidade?
Logo se veria.
A Northwestern University situa-se em Evanston, em Illinois, a dezoito quilômetros de Chicago. A universidade, cujos terrenos ocupam cento e quarenta acres nas margens do Lago Michigan, era espetacular. Às nove da manhã de uma segunda-feira, entrei na secretaria.
- Estou aqui para entrar na universidade.
- O seu nome?
- Sidney Sheldon.
A funcionária pegou num livro enorme e procurou.
- Ora cá está. Que cursos quer frequentar?
- Todos. Olhou para mim.
- Como?
- Quero dizer, todos os que me forem permitidos. Enquanto aqui estiver, quero aprender tudo o que puder.
- E o que é que mais lhe interessa?
- Literatura.
Fiquei a olhar enquanto ela procurava no meio de uma série de panfletos. Tirou um e deu-mo.
- Aqui tem uma lista dos nossos cursos. Analisei-a.
- Isto é ótimo.
Marquei todos os cursos que queria e em seguida devolvi-lha. Ela olhou para a lista.
Está a marcar o número máximo de cursos?
- Exatamente. Franzi o sobrolho. Mas o Latim não está aí e eu estou muito interessado em tirar Latim.
Olhou outra vez para mim.
- Acha mesmo que consegue lidar com tudo isto? Sorri.
- Claro.
Ela escreveu ”Latim”.
Da secretaria passei para a cozinha da cafeteria.
- Vocês precisam de um ajudante?
- Sempre.
Bom, já tinha mais um emprego, mas ainda não chegava. Sentia-me impelido a fazer mais, como se tentasse recuperar tempo perdido. Nessa tarde, dirigi-me aos escritórios do Daily Northwestern, o jornal da universidade.
- Chamo-me Sidney Schechtel disse ao homem por detrás de uma secretária com um letreiro que dizia ”Redator”. Gostava muito de trabalhar num jornal.
- Lamento, mas já temos o quadro preenchido. Tenta para o ano.
- Para o ano será demasiado tarde. - Fiquei parado a pensar - Têm alguma secção dedicada ao mundo do espetáculo?
- Uma secção dedicada ao mundo do espetáculo?
- Sim. Há sempre celebridades a vir a Chicago para fazer espetáculos. Não têm ninguém do jornal que as entreviste?
- Não. Nós...
- Faz idéia de quem está neste momento na cidade, desejosa de ser entrevistada? A Katherine Hepburn!
- Nós não estamos...
- O Clifton Webb.
- Nós nunca tivemos uma...
- O Walter Pidgeon.
- Posso falar com alguém, mas receio que...
- O George M. Cohan.
Ele começava a demonstrar interesse.
- Conhece toda essa gente? Eu não ouvi a pergunta.
- Não há tempo a perder. Quando os espetáculos deles chegarem ao fim, vão-se embora.
- Está bem. Vou dar-te uma oportunidade, Schechtel. Ele não fazia idéia de como eu estava excitado.
- Essa é a melhor decisão que alguma vez já tomou.
- Veremos. Quando podes começar?
- Já comecei. Vai ter a primeira entrevista para a próxima edição. Olhou para mim, surpreso. Já? E quem vai ser?
- É surpresa.
Era surpresa também para mim.
No pouco tempo que tinha, entrevistei muitas celebridades menores para o jornal. A minha primeira entrevista foi feita a Guy Kibbee, um ator sem importância da época. As grandes estrelas eram demasiado importantes para serem entrevistadas por um jornal universitário.
Eu trabalhava no bengaleiro, na drugstore, inscrevera-me na universidade no maior número possível de cursos incluindo Latim, tinha um emprego como ajudante de cozinha e pertencia ao quadro do Daily Northwestern. Mas, mesmo assim, ainda não me chegava. Era como estivesse possuído. Pensei no que mais podia fazer. A Northwestern tinha uma excelente equipa de futebol e não havia qualquer razão para que eu não fizesse parte dela. Tinha a certeza de que os WzTd Caís teriam todo o interesse em me terem na equipa deles.
Na manhã seguinte, dirigi-me ao campo de futebol onde a equipa treinava. Pug Rentner, que veio a ter uma gloriosa carreira na NFL, era a estrela da equipa nesse ano. Dirigi-me ao treinador, que estava numa das linhas laterais a observar o treino.
- Posso falar um minuto consigo?
- O que é que queres?
- Gostava de fazer testes para a equipe. Ele analisou-me.
National Football League (N. da T.)
- Gostavas, era? És bem constituído. Onde é que jogaste antes? Não respondi.
- No liceu? Na universidade?
- Não, senhor.
- Na preparatória?
- Não, senhor.
Ele olhava fixamente para mim.
- Tu nunca jogaste futebol?
- Não, mas sou muito rápido e...
- E gostavas de pertencer a esta equipa? Filho esquece. E a atenção dele voltou para os jogadores.
Foi o fim das minhas aspirações futebolísticas.
Os professores em Northwestern eram maravilhosos e as aulas eram excitantes. Eu estava sedento de aprender tudo o que podia. Na semana depois de ter iniciado as aulas, passei por um letreiro no corredor que dizia ”Audições hoje à noite. Equipa de Debate da Northwestern”. Estaquei e fiquei a olhar. Sabia que era uma loucura, mas, no entanto sentia-me impelido a experimentar.
Há uma máxima que diz que a morte é o segundo maior medo que as pessoas têm e que falar em público é o primeiro. Era, sem dúvida, o meu caso. Para mim, não há nada mais aterrorizador do que falar em público. Mas eu estava obcecado. Tinha de fazer de tudo. Tinha de continuar a virar páginas.
Quando entrei na sala destinada aos testes, esta estava cheia de rapazes e raparigas que aguardavam a sua vez. Encontrei uma cadeira e sentei-me a ouvir. Todos os oradores me soavam espantosos. Eram articulados e falavam fluentemente, com uma enorme confiança.
Por fim, chegou a minha vez. Ergui-me e dirigi-me para junto do microfone.
O responsável perguntou:
- Como te chamas?
- Sidney Schechtel.
- E qual vai ser o tema? Eu antecipara isto.
- O capitalismo versus comunismo. Ele anuiu.
- Então avança.
Comecei a falar e pareceu-me que estava a ir muito bem. Quando cheguei a meio do meu tema, parei. Estava estático. Fez-se uma longa e nervosa pausa. Murmurei qualquer coisa para pôr fim ao meu discurso e escapuli-me dali para fora, praguejando para mim mesmo. Um aluno que estava à porta perguntou:
- Tu não és um calouro?
- Sou.
- E ninguém te disse nada?
- Sobre o quê?
- É que não são permitidos calouros nos debates. Tens de estar em anos mais avançado.
Ora, boa, pensei para comigo. Agora já tenho uma boa justificação para o meu fracasso!
No dia seguinte de manhã, os nomes dos vencedores foram afixados no quadro das informações. Por pura curiosidade, deitei uma olhadela. Um dos nomes era ”Shekter”. Alguém com um nome parecido com o meu fora escolhido. Na zona inferior do quadro estava um aviso para que todos os selecionados se dirigissem às três e meia da tarde para junto do orientador de debates.
Ás quatro recebi um telefonema.
- Shekter, o que é que te aconteceu?
Não fazia idéia de que é que ele estava a falar.
- O quê? Nada.
- Não viste o aviso para vir ter com o orientador de debates? Shekter. Eles tinham percebido mal o meu nome.
- Sim, mas pensei... É que eu sou calouro.
- Eu sei. Mas decidimos abrir uma exceção para o teu caso. Mudamos as regras.
E assim tornei-me o primeiro calouro alguma vez aceite na Equipa de Debate da Northwestern. Outra página que fora virada.
Embora me forçasse a estar ocupado, havia ainda qualquer coisa que me faltava. De certa forma, sentia-me como se não estivesse realizado. Tinha uma profunda sensação de vazio, ansiedade e isolamento. No campus da universidade, ao observar as hordas de estudantes que se apressavam a entrar e a sair das aulas, pensava para mim: ”São todos anônimos. Quando morrerem, ninguém saberá que viveram sobre a Terra.” Uma enorme onda de depressão abateu-se sobre mim. ”Eu quero que as pessoas saibam que estive aqui”, pensei. ”Quero que saibam que vivi. Quero marcar a diferença.”
No dia seguinte, a minha depressão estava mais profunda. Sentia-me atabafado por pesadas nuvens negras. Por fim, desesperado, marquei consulta no psicólogo da universidade, para ver se ele descobria o que havia de errado em mim.
No caminho, sem qualquer justificação, fui invadido por tal sensação de alegria que comecei a cantar alto. Quando cheguei à entrada do edifício onde o psicólogo tinha o gabinete, estaquei.
”Eu não preciso falar com ele”, pensei. ”Estou feliz. O homem vai pensar que sou maluco”.
Foi uma má opção. Se tivesse ido falar com ele, teria ficado logo nesse dia a saber aquilo que só vim á descobrir muitos anos mais tarde.
A minha depressão voltou e não mostrava sinais de regredir.
O dinheiro era cada vez mais escasso. Otto tinha dificuldade em conseguir emprego e Natalie trabalhava como vendedora num grande armazém seis dias por semana. Eu trabalhava todas as noites no bengaleiro e na drugstore Afremow nas tardes de sábado, mas, mesmo com aquilo que Otto e Natalie ganhavam, o dinheiro não era suficiente. Por volta de Fevereiro de 1935, estávamos com a renda bastante atrasada.
Uma noite, ouvi Otto e Natalie a conversarem.
- Não sei o que vamos fazer. Estamos a ser pressionados por toda a gente. Talvez seja melhor tentar arranjar um trabalho à noite dizia ela.
Não, pensei. A minha mãe já tinha um trabalho a tempo inteiro e vinha para casa, e fazia o jantar, e limpava o apartamento. Não podia permitir que ela fizesse mais do que fazia.
Na manhã seguinte, desisti da Northwestern.
Quando contei a Natalie o que acabara de fazer, ela ficou horrorizada.
- Sidney, tu não podes desistir da universidade. Tudo se vai compor. Tinha os olhos cheios de lágrimas.
Mas eu sabia que nada se ia compor. Comecei imediatamente à procura de outro emprego, mas em 1935 a Depressão estava no seu auge e não havia empregos disponíveis. Tentei agências de publicidade, jornais e estações de rádio, mas ninguém estava a contratar.
No caminho para outra entrevista numa estação de rádio, passei por um grande armazém chamado Mandei Brothers. Lá dentro, pareciam muito ocupados. Meia dúzia de vendedores assistiam os clientes. Decidi que não tinha nada a perder, entrei e olhei em volta. Comecei a vaguear pela loja. Era enorme. Passei pelo departamento de sapatos de senhora e parei. Isto ia ser fácil.
Um homem aproximou-se.
- Em que posso ser útil?
- Gostava de falar com o gerente.
- O meu nome é Young, sou o gerente. Em que lhe posso ser útil?
- Estou à procura de trabalho. Tem alguma vaga? Olhou para mim por momentos.
- Na realidade, tenho, sim. Tem alguma experiência na venda de sapatos de senhora?
- Sim, sim.
- E onde é que trabalhou antes?
- Lembrei-me do nome de uma loja onde comprara uns sapatos.
- Na Thom McCann, em Denver.
- Pois muito bem. Acompanhe-me ao meu escritório. Deu-me um formulário. Preencha isso.
Quando terminei, pegou nele, leu-o e em seguida olhou para mim.
- Primeiro que tudo, senhor Schechtel, McCann não se escreve ”M-I-C-K-A-N”. E, em segundo lugar, não fica nesta rua.
Eu precisava desesperadamente deste emprego.
- Se calhar mudou. Respondi apressadamente. E sou péssimo em ortografia. Sabe...
- Só espero que seja melhor a vender do que é a mentir.
Acenei com a cabeça, deprimido, e virei-me para partir.
- De qualquer das maneiras, muito obrigado.
- Espere. Está contratado. Olhei para ele, espantado.
- Estou? Mas, por quê?
- O meu patrão acha que só uma pessoa com experiência é que consegue vender sapatos de senhoras. Eu por mim acho que qualquer pessoa é capaz de aprender rapidamente. Você vai ser uma experiência.
- Muito obrigado respondi, agradecido. Não o vou decepcionar.
Fui trabalhar cheio de otimismo. Quinze minutos mais tarde estava despedido. O que aconteceu é que cometi um pecado imperdoável. A minha primeira cliente era uma senhora muito bem vestida, que me abordou no departamento de sapatos.
- Posso ajudar?
- Quero um par de sapatos rasos pretos, tamanho 40. Dei-lhe o meu melhor sorriso de vendedor.
- Com certeza.
Dirigi-me às traseiras, ao local onde guardavam os sapatos em prateleiras. Havia centenas de caixas, todas marcadas pelo lado de fora... 35, 36, 37, 38, 39, 41. Nenhum 40. Comecei a ficar desesperado. Havia um 41. ”Ela nunca vai dar pela diferença”, pensei. Tirei os sapatos da caixa e levei-lhos.
- Ora aqui tem.
Calcei-lhos nos pés. Ela olhou para eles durante um momento.
- Isto é um 40?
- Sim, minha senhora. Observou-me durante algum tempo.
- Tem a certeza?
- Tenho, sim.
- Tem a certeza que isto é um 40?
- Absoluta.
- Quero falar com o gerente.
E foi o fim da minha carreira no departamento de sapatos de senhora. Nessa tarde, fui transferido para a retrosaria.CAPÍTULO 5
Embora estivesse há trabalhar seis dias por semana na retrosaria do Mandei Brothers e sete noites por semana nos bengaleiros dos hotéis da baixa da cidade, o dinheiro continuava a não chegar. Otto arranjou um emprego a meio tempo a trabalhar num centro de telemarketing no South Side, cujo objetivo era vender produtos a desconhecidos por telefone.
Esta operação decorria numa enorme sala nua, com uma dúzia de homens, cada um com um telefone, a falarem ao mesmo tempo com potenciais clientes, tentando vender-lhes poços de petróleo, ações da bolsa ou o que quer que fosse que pudesse parecer um bom investimento. Era um trabalho de grande tensão. Os nomes e os números de telefone dos potenciais clientes eram obtidos de uma longa lista que era vendida a quem quer que dirija um centro de telemarketing. Os vendedores recebiam uma comissão pelas vendas que faziam.
Otto voltava à noite para casa e falava excitadamente sobre o que lá se passara. Como estavam abertos sete dias por semana, decidi passar por lá e dar uma vista de olhos, para ver se conseguia ganhar mais algum dinheiro extra aos domingos. Otto conseguiu que me deixassem tentar e no domingo seguinte fui trabalhar com ele. Quando lá cheguei fiquei parado na temida sala a ouvir as conversas dos vendedores.
“... senhor Collins, ainda bem que o consegui apanhar. O meu nome é Jason Richards e tenho excelentes notícias para si. O senhor e a sua família acabaram de ganhar uma viagem grátis ás Bermudas. A única coisa que precisa fazer é mandar-me um cheque e...”
”... senhor Adams, tenho excelentes notícias para si. O meu nome é Brown, Jim Brown. Sei que investe em ações e tive conhecimento de um negócio que vai ter um aumento de cem por cento nas próximas seis semanas. Não há muitas pessoas a terem conhecimento disso, mas, se estiver interessado em ganhar bom dinheiro...”
"... senhora Doyle, fala Charlie Chase. Muitos parabéns. A senhora, o seu marido, a pequena Amanda e o Peter foram escolhidos para uma viagem grátis a...”
E por aí fora.
Espantava-me com a quantidade de pessoas que caíam no conto do vigário oferecido pelo vendedor. Por alguma razão, os médicos pareciam ser os mais crédulos. A maior parte dos produtos que eram vendidos tinha defeito, eram mais caros, de qualidade inferior ou nem sequer existiam.
Naquele domingo, tive a minha conta daquele centro e nunca mais lá voltei.
O meu trabalho no Mandei Brothers era aborrecido e fácil, mas eu não andava a procura de coisas fáceis. Queria um desafio, algo que me desse à possibilidade de crescer. Sabia que se me saísse bem ali tinha a oportunidade de poder subir. Um dia até podia chegar a chefe do departamento. O Mandei Brothers tinha uma cadeia de lojas por todo o país, por isso, com o tempo, até podia tornar-me diretor regional e, quem sabe, chegar à presidente.
Numa manhã de domingo, o meu chefe, o senhor Young, veio falar comigo.
- Schechtel, tenho más notícias para ti. Eu olhava fixamente para ele.
- O que é?
- Vou ter que te despedir. Tentei parecer calmo.
- Fiz alguma coisa de errado?
- Não. Todos os departamentos receberam ordens para cortarem no pessoal. Tu foste o último a ser admitido, por isso tens de ser o primeiro a partir.
Senti-me como se alguém tivesse agarrado o meu coração e o tivesse apertado. Eu precisava desesperadamente daquele emprego. Ele não fazia idéia de que não estava simplesmente a despedir um empregado do departamento de retrosaria, mas o futuro presidente da empresa.
Sabia que tinha que encontrar outro emprego, o mais depressa possível. As dívidas acumulavam-se. Devíamos na mercearia, o senhorio começava a ficar agressivo e a água, a luz e o gás, que já tinham sido cortados várias vezes, estavam prestes a ser cortados de novo.
Lembrei-me de alguém que talvez pudesse ajudar.
Charley Fine, um amigo de muitos anos do meu pai, era executivo numa grande empresa industrial. Perguntei a Otto se ele via algum problema em que eu falasse com Charley para lhe pedir um emprego.
Otto pensou durante um pouco e em seguida olhou para mim e respondeu:
- Eu próprio falo com ele.
Na manhã seguinte, atravessei os enormes portões da Stewart Warner, o maior fabricante do mundo de peças para automóveis. A fábrica estava instalada num edifício com cinco andares e ocupava um quarteirão inteiro. Um guarda acompanhou-me através da fábrica, cheia de enormes e misteriosas máquinas, semelhantes a monstros pré-históricos. O barulho que faziam era incrível.
Otto Karp, um homem baixo e robusto, com um forte sotaque alemão, estava à minha espera.
- Então vens trabalhar para cá? Perguntou.
- Sim, senhor. Pareceu ficar desapontado.
- Vem comigo.
E, começamos a caminhar ao longo da enorme fábrica. Todas as máquinas trabalhavam à máxima velocidade.
Quando nos aproximamos de uma delas, Karp disse:
- Esta aqui faz engrenagens e bichas para velocímetros. Fazem girar o veio flexível que faz mover o velocímetro. Estás a perceber?
Eu não percebera uma palavra.
- Pois.
Levou-me até outra máquina junto daquela.
- Aquilo que vês sair deste lado são engrenagens que são comprimidas contra o veio de saída da transmissão. A mais comprida é a bicha que é inserida num determinado ângulo para engrenar na roda dentada da transmissão.
Fiquei a olhar para ele e interroguei-me: Chinês Swahili? Dirigimo-nos a outra máquina.
- Aqui fazem engrenagens que estão fixas ao cubo das rodas da frente. A ponteira é fixada ao disco do travão. Estás a ver?
Acenei que sim.
Levou-me junto de outra máquina.
- Esta substitui engrenagens gastas. Este sistema de transmissão há uns tempos que está estandardizado. A vantagem dos sistemas de transmissão frontal é que podemos obter várias multiplicações sem afetar o desempenho do velocímetro. Percebeste?
É swahili. Concluí.
- Claro que sim.
- Bom, agora vou mostrar-te o teu departamento. Levou-me ao departamento de pequenas encomendas, do qual eu ia ficar encarregue.
As máquinas que me tinham sido apresentadas eram gigantescas e tinham sido construído para responderem a grandes encomendas dos construtores de automóveis, meio milhão de peças ou mais de cada vez. O departamento das pequenas encomendas tinha três máquinas muito menores.
Otto Karp explicou:
- Se alguém encomendar cinco ou dez peças, não nos podemos dar ao luxo de ligar uma das grandes máquinas para uma encomenda tão pequena. Mas estas máquinas aqui estão concebidas para produzirem quantidades tão pequenas como uma ou duas peças. Assim que entra uma encomenda pequena, tu tomas conta dela e é imediatamente tratada.
- E como é que faço isso?
- Primeiro, dão-te uma ordem de compra. A encomenda pode ser de uma a uma dúzia de engrenagens. Em seguida, passas a ordem de compra ao maquinista. Quando as peças estão prontas, tens de levá-las para o departamento de têmpera, onde vão ser endurecidas. A paragem seguinte é a inspeção e, por fim, o departamento de embalagem.
Parecia razoavelmente fácil.
Fiquei a saber que o meu antecessor só dava aos homens que trabalhavam no departamento de pequenas encomendas seis encomendas por dia. As restantes guardavam-as e os homens ficavam por ali sentados metade do dia, sem fazerem nada. Quanto a mim, era um desperdício. Ao fim de um mês, conseguira aumentar a nossa capacidade de resposta em cinquenta por cento. Por altura do Natal, recebi a minha recompensa. Otto Karp deu-me um cheque de catorze dólares e disse:
- Aqui tens. Bem mereces. Tens um dólar de aumento.
Otto andava na estrada, Natalie trabalhava seis dias por semana numa loja de roupas e Richard ia à escola. Os meus dias na Stewart Warner a trabalhar no monótono ambiente da fábrica, rodeado por máquinas irreais, tinham-se tornado entorpecedores. As minhas noites eram igualmente más. Apanhava o El para o Loop, ia a pé até ao hotel onde estava a trabalhar e passava as horas seguintes a receber e a entregar casacos. A minha vida transformara-se numa rotina cinzenta e feia e não havia saída à vista.
Uma noite em que regressava já tarde a casa no El vindo do trabalho, um anúncio no The Chicago Tribune chamou-me a atenção.
Paul Ash patrocina concurso amador. Inicie a sua carreira no mundo do espetáculo.
Paul Ash, regente de um grupo musical conhecido em todo o país, ia estar no teatro Chicago. O anúncio foi como mel para mim. Não fazia idéia de qual era o concurso amador, mas sabia que queria entrar.
No sábado, antes de ir trabalhar na drugstore, parei no teatro Chicago e pedi para falar com Paul Ash. O empresário dele saiu de um gabinete.
- O que posso fazer por si?
- Gostava de entrar no concurso amador. Respondi. Ele consultou um papel.
- Ainda não temos um apresentador. Acha que é capaz?
- Oh, sim! Claro que sim!
- Ótimo. E qual é o seu nome?
Qual era o meu nome? Schechtel não era um nome apropriado para o mundo do espetáculo. As pessoas estavam sempre a escrevê-lo mal e a pronunciarem-no mal. Precisava de um nome que fosse fácil de recordar. As hipóteses passaram rapidamente pela minha mente. Gabble, Cooper, Grant, Stewart, Powett...
O homem olhava para mim.
- Não sabe como se chama?
- Claro que sei! - Respondi imediatamente - É Sidney Sh... Sheldon. Sidney Sheldon.
Ele anotou-o.
- Muito bem, Sheldon, esteja cá no próximo sábado. As seis em ponto. Vai transmitir do estúdio numa estação da WGN.
Fosse lá o que isso fosse.
- Certo.
Corri para casa para dar a notícia aos meus pais e ao meu irmão Richard. Ficaram muito excitados. Havia mais uma coisa que eu tinha de lhes dizer.
- Vou usar um nome diferente.
- Que queres dizer com isso?
- Bom, Schechtel não é um bom nome para o espetáculo. De agora em diante serei Sidney Sheldon.
Olharam um para o outro e encolheram os ombros.
- Está bem.
Tive dificuldade em dormir nas noites que se seguiram. Sabia que aquilo seria o princípio. Eu ia ganhar o concurso. Paul Ash dar-me-ia um contrato para viajar com ele pelo país. Sidney Sheldon ia viajar pelo país com ele.
Quando sábado relutantemente entrou no calendário, regressei ao teatro Chicago e fui conduzido a um pequeno estúdio, juntamente com mais outros jovens concorrentes. Havia um comediante, um cantor, uma pianista e um tocador de acordeão.
O diretor disse, dirigindo-se a mim:
- Sheldon...
Senti um arrepio. Era a primeira vez que alguém me chamava pelo meu novo nome.
- Diga, senhor?
- Assim que eu apontar na tua direção dirige-te ao microfone e dás início ao programa. Vais dizer Boa noite, minhas senhoras e meus senhores. Sejam bem vindos ao Concurso para Amadores Paul Ash. Eu sou o vosso apresentador e chamo-me Sidney Sheldon. Este vai ser um programa emocionante, por isso não saiam daí. Percebeste?
- Sim, senhor.
Quinze minutos mais tarde, o diretor olhou para o relógio do estúdio que estava na parede e ergueu o braço.
- Silêncio, todos.
E começou a contar. Apontou para mim, e eu estava preparado. Nunca antes em toda a minha vida estivera tão calmo, porque sabia que isto era o início de uma carreira maravilhosa. E ia começar com o meu novo nome artístico.
Com grande compostura, aproximei-me do microfone, respirei fundo e disse na minha melhor voz de locutor:
- Boa noite, minhas senhoras e meus senhores. Sejam bem-vindos ao Concurso para Amadores Paul Ash. Eu sou o vosso apresentador, Sidney Schechtel.
CAPÍTULO 6
Consegui recompor-me a tempo de apresentar os outros concorrentes. O espetáculo correu bem. O tocador de acordeão executou uma alegre melodia, seguido pelo comediante, que cumpriu o seu papel como um verdadeiro profissional. O cantor cantou lindamente. Nada correu mal até que chegou a vez da última concorrente, a pianista, ser apresentada. Assim que anunciei o seu nome, ela entrou em pânico, começou a chorar e fugiu apressadamente, deixando-nos com três minutos de tempo de antena vazio. Sabia que tinha de preencher este tempo. Eu era o apresentador.
Aproximei-me do microfone.
- Senhoras e senhores, todos nós começamos na vida como amadores, mas, à medida que vamos avançando, tornamo-nos profissionais.
Fiquei tão embrenhado nas minhas próprias palavras que continuei a falar até que o diretor me fez sinal para parar.
Saímos do ar. Eu sabia que salvara o espetáculo e que todos me ficariam gratos por isso. Talvez me oferecessem um emprego como...
O diretor aproximou-se de mim.
- Que raio se passa contigo, ó tu, que não sei como te chamas? Gritou. Excedeste o tempo em quinze segundos.
A minha carreira na rádio terminara.
Paul Ash não me convidou para viajar pelo país com ele, mas este concurso de Paul Ash teve uma consequência interessante. Otto, Natalie, Richard, Seymour, Eddie, Howard e Steve, todos eles mudaram o apelido para Sheldon. O único Schechtel que restou foi o tio Harry.
No princípio de Maio, o meu primo Seymour espantou-nos a todos anunciando que ia casar.
Ele só tinha dezenove anos, mas parecia-me que fora adulto quase toda a vida.
Eu conhecera a noiva, Sidney Singer, quando vivera em Denver.
Sidney era uma jovem e atraente secretária que trabalhara no escritório de corretagem do tio Harry, onde Seymour a conheceu. Achara-a calorosa e inteligente, com um sentido de humor simpático.
O casamento foi simples, apenas com os membros da família presentes. Quando a cerimônia terminou, dei os parabéns a Seymour.
- É uma rapariga espetacular. Guarda-a bem disse.
- Não te preocupes, é o que tenciono fazer.
Seis meses mais tarde, atravessavam um divórcio complicado.
- O que foi que aconteceu? Perguntei a Seymour.
- Ela descobriu que eu tinha um caso.
- E pediu o divórcio?
- Não. Perdoou-me.
- Então, porque é que...
- Apanhou-me com outra pessoa. Foi aí que pediu o divórcio.
- Costumas vê-la?
- Não. Ela odeia-me. Disse-me que nunca mais me queria ver. Partiu para Hollywood. Tem um irmão que vive lá. Arranjou um emprego na MGM como secretária de uma diretora. A Dorothy Arzner.
A minha curta incursão na rádio deixara-me um agradável sabor na boca e fiquei excitado com as possibilidades que oferecia. A rádio podia muito bem ser a profissão que eu procurava. Em todos os minutos livres que tinha visitava a WBBM e outras estações de rádio de Chicago à procura de um emprego como locutor. Não havia empregos, ponto final. Tive de encarar o fato de que estava de regresso à velha armadilha, sem qualquer perspectiva de futuro.
Uma tarde de domingo, quando todos tinham saído do apartamento, sentei-me ao pequeno piano. Fiquei ali, a compor uma melodia. Concluí que não era má e criei uma letra para ela. Chamei-lhe "My Silent Self". Olhei para ela e pensei “e agora?” Podia deixá-la no banco do piano ou podia tentar fazer alguma coisa com ela.
Optei por tentar fazer alguma coisa.
Nesse ano de 1936, os maiores hotéis do país tinham orquestras nos seus salões de baile que eram transmitidas por rádio por todo o país. No hotel Bismarck, o chefe de orquestra era um simpático músico chamado Phil Levant. Eu nunca falara com ele, mas, de vez em quando, quando ele passava pelo bengaleiro a caminho do salão, costumávamos acenar com a cabeça um ao outro.
Decidi mostrar-lhe a minha música. Quando nessa noite ele passou pelo bengaleiro, chamei-o:
- Desculpe-me, senhor Levant. Compus uma música e gostava de saber se estaria interessado em lhe dar uma olhadela.
A expressão no seu rosto deu-me uma idéia do número de vezes que já ouvira esta proposta, mas ele foi muito educado.
- Terei muito gosto. Respondeu.
Dei-lhe uma cópia da folha da música. Ele olhou-a de relance e seguiu o seu caminho. E acabou-se, pensei.
Uma hora mais tarde, Phil Levant estava de volta ao bengaleiro.
- Aquela tua música... Começou a dizer. Eu nem conseguia respirar.
- Sim?
- Gosto dela. É original. Parece-me que pode ser um sucesso. Importavas-te que eu a orquestrasse e a tocássemos?
Importar?
- Não, claro que não. Isso é... É maravilhoso. Respondi. Ele gostara da minha música!
Na noite seguinte, enquanto eu pendurava chapéus e casacos, dos lados do salão de baile ouvi a minha música, "My Silent Self”, a ser tocada. Fiquei extasiado. Como a orquestra tinha difusão nacional, haveria pessoas a ouvir a minha música em todo o país. Era uma sensação arrebatadora.
Já era tarde quando, nessa noite, terminei o meu trabalho. Fui para casa e, como estava exausto, decidi tomar um banho quente.
Exatamente no momento em que começava a relaxar, Otto entrou a correr na casa de banho.
- Tens uma chamada para ti. A esta hora?
- Quem é?
- Diz que se chama Phil Levant.
Saltei da banheira, agarrei numa toalha e corri para o telefone.
- Senhor Levant?
- Sheldon, tenho aqui um editor da Harms Music Company. Ouviram a tua música na rádio, em Nova Iorque. Querem editá-la.
Quase deixei cair o telefone.
- Podes vir até cá agora? Ele está à tua espera.
- Estou a caminho.
Sequei-me apressadamente e vesti-me num ápice. Apanhei uma cópia da folha da música.
- Que é que se passa? Quis Otto saber. Expliquei-lhe.
- Posso levar o carro?
- Claro. - E deu-me as chaves - Tenha cuidado.
Corri pelas escadas abaixo, entrei no carro e dirigi-me para a Outer Drive, a caminho do hotel Bismarck. A minha cabeça girava com a excitação de poder vir a ter a minha primeira música editada quando, de repente, me apercebi do som de uma sirene mesmo atrás de mim e vi as luzes vermelhas a girar. Enquanto me chegava para o lado, o polícia saiu da moto e dirigiu-se ao carro.
- Qual é a pressa?
- Senhor guarda, eu não me apercebi que estava com excesso de velocidade. Estou a caminho de um encontro com um editor de música no hotel Bismarck. Trabalho lá, no bengaleiro. Há uma pessoa interessada em editar a minha música e...
- Carta de condução?
Mostrei-lhe a minha carta. Meteu-a no bolso.
- Muito bem. Acompanhe-me. Fiquei a olhar para ele.
- Acompanho-o onde? Passe-me uma multa. Eu estou cheio de...
- Agora as regras são outras respondeu. Já não passamos multas. Agora levamos os prevaricadores diretamente para a esquadra.
O coração caiu-me aos pés.
- Senhor guarda, eu tenho de ir a esta reunião. Se me pudesse passar a multa, eu teria muito gosto em...
- Eu disse para me acompanhar. Não tinha outra hipótese.
Ele pôs a moto a funcionar e colocou-se à minha frente. Segui-o. Em vez de me ir encontrar com o meu novo editor, estava a caminho de uma esquadra de polícia.
Cheguei à esquina seguinte no momento exato em que a luz passou de amarelo para vermelho. Ele passou. Eu parei, à espera que mudasse outra vez para verde. Quando comecei a avançar, o polícia na moto não se via em lado nenhum. Andei devagarzinho, para ter a certeza de que ele não ia pensar que eu tentava escapar. E quanto mais avançava mais otimista ia ficando. Ele desaparecera. Esquecera-se de mim. Andava a procura de outra pessoa para mandar para a cadeia. Aumentei a velocidade e dirigi-me ao Bismarck.
Parei o carro na garagem e apressei-me até ao bengaleiro. Não podia acreditar no que estava a ver. O polícia estava lá dentro à minha espera, e estava furioso:
- Pensou que se livrava de mim?
Eu não sabia o que dizer.
- Eu não estava a tentar fugir de si. Dei-lhe a minha carta e disse-lhe que vinha para aqui...
- Está bem. Já cá está. Agora vamos para a esquadra ordenou. Eu estava desesperado.
- Deixe-me telefonar ao meu pai. Ele abanou a cabeça.
- Já perdi demasiado tempo...
- Só demora um segundo.
- Está bem, mas despache-se. Marquei o número de casa. Otto atendeu.
- Estou?
- Otto?
- Então, como é que correu?
- Estou a caminho da esquadra de polícia. E expliquei-lhe a situação.
- Deixa-me falar com o polícia. Pediu Otto.
- O meu pai quer falar consigo. Ele pegou no telefone, relutante.
- Sim... Não, não tenho tempo para ouvir. Vou levar o seu filho para a esquadra... O quê?... Ai é? Isso é interessante... Sim, sei o que quer dizer. Para falar verdade, sim... Tenho um cunhado que precisa de um emprego... Ai sim? Deixe-me apontar.
E puxou de uma caneta e de um bloco e começou a escrever.
É muito simpático da sua parte, senhor Sheldon. Vou mandá-lo de manhã. Olhou de relance para mim. E não se preocupe com o seu filho.
Eu ouvia a conversa de boca aberta. O polícia desligou o telefone, devolveu-me a carta de condução e disse:
- Eu que não te apanhe outra vez em excesso de velocidade. Fiquei a olhar, enquanto ele se ia embora.
Virei-me para a empregada do bengaleiro e perguntei:
- Onde está Phil Levant?
- Está a dirigir a orquestra, mas está uma pessoa à tua espera no escritório do gerente. Respondeu.
No escritório do gerente encontrei um homem muito bem vestido e elegante que parecia andar pelos cinquenta anos. Assim que entrei, ele disse.
- Então, este é o jovem maravilha. O meu nome é Brent. Trabalho para a TB Harms.
A TB Harms era uma das maiores editoras de música do mundo.
- Ouviram a sua música em Nova Iorque e gostariam de editá-la. Informou.
O meu coração cantava.
- Mas há um problema hesitou.
- Qual é?
- Eles acham que Phil Levant não é um nome suficientemente importante para apresentar a sua música. Gostavam de ter outra pessoa mais importante a tocá-la.
O coração caiu-me aos pés. Eu não conhecia ninguém mais importante.
- Horace Heidt está a tocar no hotel Drake. Talvez pudesse ir falar com ele e mostrar-lhe a música sugeriu.
Horace Heidt tinha uma das orquestras mais populares do país.
- Claro.
Deu-me o cartão dele.
- Diga-lhe que me telefone.
- Com certeza. Prometi.
Olhei para o relógio. Era um quarto para a meia noite. Horace Heidt ainda devia estar a tocar. Entrei no carro de Otto e conduzi bem devagarzinho até ao hotel Drake. Quando cheguei, dirigi-me ao salão de baile onde ele dirigia a orquestra.
Assim que entrei, o chefe de mesa perguntou-me:
- Tem mesa reservada?
- Não. Estou aqui para falar com o senhor Heidt.
- Pode aguardar aqui.
E apontou para uma mesa vazia junto a uma parede. Esperei quinze minutos e, quando Horace Heidt saiu do palco, interpelei-o:
- Senhor Heidt chamo-me Sidney Sheldon. Tenho aqui uma música que...
- Lamento muito, mas não tenho tempo... Retorquiu.
- Mas a Harms quer que... Ele começou a afastar-se.
- A Harms quer editá-la. - Fui dizendo alto - Mas querem alguém como o senhor a tocá-la.
Ele parou e voltou para junto de mim.
- Deixe lá ver. Dei-lhe a partitura.
Estudou-a como se a ouvisse na cabeça.
- É uma música bonita.
- Está interessado? Perguntei. Olhou para mim.
- Estou. Quero cinquenta por cento. Eu ter-lhe-ia dado cem por cento.
- Excelente!
E entreguei-lhe o cartão que Brent me dera.
- Vou fazer uma orquestração. Volte cá amanhã.
Na noite seguinte, quando voltei ao hotel Drake, ouvi a minha música a ser tocada por Horace Heidt e a sua orquestra, e soava ainda melhor do que o arranjo que Phil Levant fizera. Sentei-me e aguardei até ele estar livre. Ele aproximou-se da mesa onde eu estava sentado.
- Já falou com o senhor Brent? Perguntei.
- Sim. Vamos fazer um contrato.
- Sorri. A minha primeira música ia ser editada.
Na manhã seguinte, Brent veio ter comigo ao bengaleiro do Bismarck.
- Está tudo tratado? Perguntei.
- Infelizmente não.
- Mas...
- O Heidt está a pedir um avanço de cinco mil dólares e nós nunca demos esse montante por uma música nova.
Fiquei abismado. Quando terminei o meu trabalho, fui ao hotel Drake para falar com Horace Heidt outra vez.
- Senhor Heidt, eu não quero saber do avanço. Só quero a minha primeira música publicada. Expliquei.
- Nós vamos publicá-la - Sossegou-me - Não te preocupes com isso. Eu próprio a vou publicar. Para a semana parto para Nova Iorque. A música vai receber muito tempo de antena.
Além da sua emissão noturna, Horace Heidt era o apresentador de um popular programa semanal chamado Horace Heidt and His Alemite Brigadiers.
”My Silent Self” seria transmitida de Nova Iorque e ouvida por todo o país.
Durante as semanas seguintes, consegui ouvir as emissões de Horace, e ele tinha toda a razão. ”My Silent Self” teve muito tempo de antena, tanto nas emissões da noite, como no programa Alemite. Ele usou a minha música, mas nunca a editou.
Eu não me senti desencorajado. Se for capaz de compor uma música que despertara a atenção de um grande editor, então ia compor uma dúzia delas. E foi exatamente o que fiz. Passei todo o meu tempo livre sentado ao piano a compor canções. Pensei que doze músicas seria um bom número para enviar para Nova Iorque. Não me podia dar ao luxo de lá ir pessoalmente, porque precisava de me manter nos meus empregos para ajudar a família.
Natalie ouvia as minhas músicas e ficava encantada e entusiasmada.
- Querido, são melhores do que as de Irving Berlin. Muito melhores. Quando é que as vais levar a Nova Iorque?
Abanei a cabeça.
- Natalie, eu não posso ir à Nova Iorque. Tenho três empregos aqui. Se eu...
- Não, tens de ir - Interrompeu ela com firmeza - Eles não vão sequer ouvi-las se as mandares pelo correio. Tens de ir pessoalmente.
- Não temos dinheiro... - Disse eu - Se...
- Querido, esta é a tua grande oportunidade. Não te podes dar ao luxo de a deixares passar.
Eu não fazia idéia que ela estava a viver através de mim.
Nessa noite, tivemos uma conversa em família. Relutante, Otto acabou por concordar que eu devia ir à Nova Iorque. Arranjaria um trabalho até as minhas músicas começarem a vender.
Decidimos que eu devia partir no sábado seguinte.
A prenda de Natalie foi um bilhete de autocarro para Nova Iorque.
Nessa noite, quando eu e Richard estávamos deitados nas nossas camas, ele perguntou-me:
- Tu vais ser um compositor tão importante como o Irving Berlin? E eu respondi-lhe a verdade:
- Sim.
Com todo o dinheiro que começaria a entrar, Natalie nunca mais teria de trabalhar.
CAPÍTULO 7
Antes da minha viagem para Nova Iorque, em 1936, eu nunca estivera numa estação de autocarros. Esta tinha uma atmosfera de excitação, com pessoas que partiam e chegavam. Vindas de cidades de todo o país. O meu autocarro parecia enorme, com um lavabo e assentos confortáveis. O percurso até Nova Iorque ia durar quatro dias e meio. A longa viagem poderia ser aborrecida, mas eu estava demasiado ocupado a pensar e sonhar com o meu fantástico futuro para me importar.
Quando entramos na estação dos autocarros em Nova Iorque, eu tinha trinta dólares no bolso, dinheiro que sabia com toda a certeza que Natalie e o Otto não podiam dispensar.
Eu telefonara antecipadamente para o YMCA para reservar um quarto. Este se revelou pequeno e sombrio, mas a verdade é que só custavam quatro dólares por semana. Mesmo assim, sabia que os meus trinta dólares não durariam muito tempo.
Pedi para falar com o gerente do YMCA.
- Preciso de um trabalho disse-lhe e preciso dele já. Sabe de alguém que...?
- Temos um serviço de empregos para os nossos hóspedes. Informou.
- Excelente. Há alguma coisa disponível neste momento? Ele tirou uma folha de papel da secretária e leu-a rapidamente.
- Há uma vaga para arrumador no RKO Jefferson Theatre, na rua Catorze. Está interessado?
Interessado? Naquele momento, a minha única ambição era ser arrumador no RKO Jefferson da rua Catorze.
- É exatamente do que ando a procura! Exclamei.
Ele escreveu qualquer coisa num pedaço de papel e entregou-me.
- Leve isto amanhã de manhã ao cinema.
Estava em Nova Iorque há menos de um dia e já tinha um emprego! Telefonei a Natalie e a Otto para lhes contar as novidades.
- Isso é um excelente sinal. Tu vais ser um grande sucesso. Respondeu ela.
Passei a primeira tarde e noite a explorar Nova Iorque. Era um lugar mágico, uma cidade em ebulição que fazia com que Chicago parecesse provinciana e triste. Tudo ali era maior, os edifícios, os toldos das lojas, as ruas, os sinais, o trânsito, a multidão. A minha carreira.
O ROJefferson Theatre, na rua Catorze, que fora em tempos uma casa de vaudeville, era uma velha estrutura com dois andares e uma bilheteira na frente. Fazia parte de uma cadeia de cinemas, a RKO. Era normal passarem dois filmes ao mesmo tempo e os clientes podiam ver dois filmes de ponta a ponta pelo preço de um.
Caminhei trinta e nove quarteirões desde o YMCA até ao cinema e entreguei ao gerente o papel que me tinham dado.
Este olhou para mim e perguntou:
- Já alguma vez foi arrumador?
- Não, senhor. Encolheu os ombros.
- Não tem importância. É capaz de andar?
- Sim, senhor.
- E sabe como acender uma lanterna?
- Sim, senhor.
- Então pode ser arrumador. O seu salário é de catorze dólares e quarenta por semana. Trabalha seis dias. O horário é das quatro e vinte à meia noite.
- Muito bem.
Isso significava que tinha as manhãs e parte das tardes livres para passar no Brill Building, a sede das editoras discográficas.
- Vá ao bengaleiro do pessoal e veja se consegue encontrar um uniforme que lhe sirva.
- Sim, senhor.
Experimentei um uniforme de arrumador e o gerente olhou para mim e comentou:
- Serve perfeitamente. Mantenha sempre o balcão debaixo de olho.
- O balcão?
- Depois verá. Começa amanhã.
- Sim, senhor. E amanhã darei início à minha carreira de compositor.
O Brill Building, com os seus muitos andares, era o santo dos santos do negócio da música. Situado no número 1619 da Broadway, na rua Quarenta e Nove, era o centro da Tin Pan Alley1, o lugar onde os importantes editores de música do mundo tinham o seu quartel general.
Quando entrei no edifício e vagueei pelos corredores, ouvi os acordes de A Fine Romance... I’ve Got You Under My Skin... Pennws from Heaven... Os nomes nas portas deixaram o meu coração sobressaltado: Jerome Remick... Robbins Music Corporation... M. Witmark &Sons... Shapiro Bernstein &Company... E TB Harms, todos os gigantes da indústria da música. Esta era a fonte do talento musical. Cole Porter, Irving Berlin, Richard Rodgers, George e Ira Gershwin, Jerome Kern... Todos eles tinham começado aqui.
Entrei nos escritórios da TB Harms e cumprimentei o homem sentado atrás de uma secretária.
- Bons dias. O meu nome é Sidney Shech... Sheldon.
- Em que lhe posso ser útil?
- Escrevi "O Meu eu Silencioso”. Parece que vocês estavam interessados em editá-lo.
Um olhar de reconhecimento percorreu-lhe o rosto.
- Ah, sim! Pois foi, estivemos. Estivemos?
- Já não estão?
- Bem, ela tem sido muito ouvida. O Horace Heidt tem-na tocado muito. Tem alguma coisa nova?
Fiz que sim com a cabeça.
- Sim, tenho. Posso voltar com novas músicas amanhã de manhã, senhor...?
- Tasker.
As quatro e vinte daquela tarde, eu estava vestido com o meu uniforme de arrumador, subindo e descendo as coxias para acompanhar as pessoas até aos seus lugares. O gerente tinha razão. A única coisa que fazia com que não fosse aborrecido era os filmes que passavam.
Nome por que era conhecida a zona onde se concentravam os aspirantes a músicos, principalmente durante a depressão dos anos 30.
Quando as coisas estavam calmas, podia sentar-me na última fila do cinema e ver os filmes.
A primeira dupla de filmes que vi foi A Day atthe Roces com os irmãos Marx e o Mr. Deeds Góes to Town. As novidades que se seguiam eram o A Star is Bom com Janet Gaynor e Frederic March e o Dodsworth com Walter Huston.
À meia noite, quando o meu turno terminou, regressei ao hotel. O quarto já não me parecia nem pequeno, nem triste. Sabia que o ia transformar num palácio. De manhã, levaria as minhas músicas à TB Harms, e a única questão que se levantava era qual delas iam querer editar primeiro, se The Ghost of My Love, I Will if You Want to, A Handful of Stars, ou When Love Has Gone.
Às oito e trinta da manhã seguinte eu estava em frente à TB Harms à espera que as portas se abram. As nove, o senhor Tasker chegou.
Viu o enorme envelope que eu tinha na mão.
- Estou a ver que trouxe as suas músicas. Sorri.
- Sim, senhor.
Entramos no escritório dele. Dei-lhe o envelope e preparei-me para me sentar.
Ele fez-me sinal para parar.
- Não precisa esperar. Vou vê-las assim que tiver oportunidade. Porque não volta cá amanhã? Sugeriu.
Fiz-lhe o meu melhor aceno de compositor de músicas profissional.
- Com certeza.
Ia ter de esperar mais vinte e quatro horas para o meu futuro poder começar.
As quatro e vinte estava de volta ao meu uniforme no RKO Jefferson. O gerente tinha toda a razão quanto ao balcão. Ouviam-se muitos risinhos lá em cima. Na última fila estavam sentados um jovem e uma jovem. Assim que me aproximei, ele afastou-se e ela puxou apressadamente para baixo o curto vestido. Afastei-me e nunca mais lá voltei. Que se lixasse o gerente. Eles que se divertissem.
Na manhã seguinte às oito da manhã, estava no escritório da Harms, não se desse o caso de o senhor Tasker chegar mais cedo. Ele chegou às nove e abriu a porta.
- Bom dia, Sheldon.
Tentei avaliar pelo tom da voz dele se tinha gostado ou não das minhas músicas. Fora um ”bom dia” normal, ou será que detectara um toque de entusiasmo na voz dele?
Entramos no escritório.
- Teve oportunidade de ouvir as minhas músicas, senhor Tasker?
- Tive, sim. São muito agradáveis.
O meu rosto iluminou-se. Aguardei, à espera de ouvir o que mais tinha ele para dizer. Mas permaneceu silencioso.
- De qual delas gostou mais? Perguntei.
- Infelizmente, nenhuma delas é o que andamos a procura neste momento.
Esta foi a frase mais depressiva que ouvi em toda a minha vida.
- Mas com certeza que... Alguma delas... Comecei a dizer. Ele tirou o meu envelope de trás da secretária e devolveu-me.
Terei sempre todo o gosto em ouvir o que tiver de novo.
E foi o fim da entrevista. Mas isto não é o fim, pensei para comigo. É só o princípio.
Passei o resto da manhã e parte da tarde a entrar em todos os outros editores de música que havia no edifício.
- Alguma vez teve alguma música editada?
- Não, senhor. Mas, eu...
- Nós não recebemos novos compositores. Volte quando tiver alguma coisa editada.
Como é que eu ia conseguir editar uma canção se os editores não queriam editar nenhuma canção enquanto não tivesse nenhuma canção editada? Nas semanas que se seguiram, sempre que não estava no cinema estava no meu quarto a compor.
No cinema, adorava ver os maravilhosos filmes que eram passados. Vi The Great Ziegfield, San Francisco, My Man Godfrey e Shall We Dance, com Fred Astaire e Ginger Rogers. Transportavam-me para outro mundo, um mundo de fascínio e de excitação, de elegância e de riqueza.
O meu dinheiro estava a acabar. Recebi um cheque de vinte dólares de Natalie e devolvi-lho. Eu sabia que, sem a minha contribuição e Otto sem trabalho, a vida devia ser ainda mais difícil para eles. Interroguei-me se eu não estaria a ser egoísta, a pensar em mim quando eles precisavam de ajuda.
Assim que o meu novo grupo de músicas ficou pronto, levei-as aos mesmos editores. Olharam para elas e deu-me a mesma desesperante resposta:
- Volte quando tiver alguma coisa editada.
Num dos átrios fui invadido por uma onda de depressão. Tudo me parecia sem solução. Não tencionava passar o resto da minha vida como arrumador e ninguém estava interessado nas minhas músicas.
Este é um excerto de uma das cartas que escrevi aos meus pais, com data de 2 de Novembro de 1936.
Quero que sejam os mais felizes possíveis. A minha felicidade é um balão que me foge e que espera que eu o consiga apanhar, escapando de um lado para o outro, sobre oceanos, enormes prados verdes, por entre árvores e regatos, por cenas pastorais e por passeios varridos pelo vento. Primeiro lá no alto, mal o conseguindo ver, em seguida cá por baixo, quase ao meu alcance, soprado daqui e dali pelos caprichos do vento, num momento um vento cruel e sádico, e no momento seguinte cheio de compaixão. É o vento do destino e nele se baseiam as nossas vidas.
Uma manhã, no átrio do YMCA, vi um jovem mais ou menos com a minha idade sentado num sofá a compor furiosamente. Trauteava uma melodia e parecia estar a escrever a letra de uma música. Aproximei-me, curioso.
- Escreve músicas? Perguntei. Olhou para cima.
- Escrevo.
- Eu também. O meu nome é Sidney Sheldon. Ele estendeu a mão.
- Sidney Rosenthal.
Foi o início de uma longa amizade. Passamos a manhã toda a conversar e parecíamos almas gêmeas.
No dia seguinte, quando fui trabalhar, o gerente do cinema chamou-me ao escritório dele.
- O nosso anunciador está doente. Quero que vistas o uniforme dele e o substituas até ele voltar. Vais trabalhar de dia. Só tens de andar de um lado para o outro na frente do cinema e dizer alto: ”Muitos lugares. Não precisa esperar”. E ganhas mais.
Fiquei encantado. Não devido à promoção, mas por causa do aumento. Ia mandar o dinheiro a mais para casa.
- E quanto é que ganho?
- Quinze e quarenta por semana. Um dólar a mais por semana.
Quando vesti o uniforme, parecia um general do exército russo. Eu não tinha nada contra o meu trabalho como anunciador, mas não aguentava o aborrecimento de dizer vezes sem conta ”Muitos lugares. Não precisa esperar”. Decidi dar um toque teatral.
Comecei a gritar numa voz estrondosa: ”Uma excitante sessão dupla, The Texas Rangers e The Man Who Lived Twice. Como é que um homem vive duas vezes, senhoras e senhores? Entrem e descubram. Vão ter uma tarde que jamais esquecerão. Não há que esperar por lugares. Apressem-se! Está quase a esgotar!”
O verdadeiro anunciador nunca mais apareceu e eu fiquei com o trabalho dele. A única diferença é que eu agora trabalhava manhãs e princípios da tarde. Ainda tinha tempo para ir visitar os editores de música que não estavam interessados nas minhas músicas. Eu e Sidney Rosenthal escrevemos várias músicas juntos. Foram muito elogiadas, mas nunca conseguimos um contrato.
No final da semana, dava normalmente por mim com dez cêntimos no bolso. Precisava ir do cinema ao Brill Buiding e tinha de optar entre comer um cachorro quente por cinco cêntimos e uma Coca-Cola por cinco cêntimos e percorrer a pé os trinta e cinco blocos, ou comer um cachorro, não beber a Coca-Cola e apanhar o metropolitano por um níquel. Estava habituado a alternar a rotina.
Alguns dias depois de ter começado a trabalhar como anunciador, o negócio no cinema começou a aumentar.
Eu andava lá fora a gritar de um lado para o outro ”Não percam a oportunidade de ver Conquest com a Greta Garbo e o Charles Boyer. E há mais, Nothing Sacred com Carok Lombard e Frederich Match. Estes são os maiores amantes do mundo que vos vão ensinar como devem agir. Uma entrada só por trinta e cinco cêntimos. Duas lições no amor por trinta e cinco cêntimos. Apressem-se. Apressem-se. Comprem os vossos bilhetes já!”.
E os clientes entravam.
Com os filmes seguintes, diverti-me ainda mais.
”Venham ver a dupla mais fantástica da história do cinema Night Must Fall com Robert Montgomery e Rosalind Russell. Não dispam os vossos casacos, pois vão ter muitos arrepios. E, como bônus, têm o novo filme do Tarzan”, e nessa altura eu lançava um grito a Tarzan e ficava a ver as pessoas a um quarteirão de distância virar-se para ver o que se estava a passar e a darem meia volta para o cinema e comprarem bilhetes. O gerente estava de pé do lado de fora do teatro a observar-me.
No final da semana seguinte, um desconhecido aproximou-se de mim.
- Onde está o filho da mãe de Chicago? Não gostei do tom de voz dele.
- Por quê?
- Porque o gerente da cadeia RKO mandou todos os anunciadores vir ver o sacana a trabalhar e a aprenderem a fazer o que ele faz.
- Eu digo-lhe quando ele voltar.
E virei-me e anunciei num tom de voz normal:
- Lugares disponíveis. Não precisam esperar. Lugares disponíveis. Não precisam esperar.
A vantagem de trabalhar durante o dia é que continuava a ter tempo para visitar os editores de música e passara a ter as noites livres, de forma que, pelo menos três noites por semana, ia ao teatro ver peças, sentando-me nos lugares mais baratos do segundo balcão. Vi Room Service, Abie’s Irish Rose, Tobacco RoaA, You Can’t Take it With You... A variedade era infinita.
Sidney Rosenthal, o meu novo amigo, arranjara um emprego e um dia sugeriu:
- Porque não juntamos o nosso dinheiro e saímos daqui?
Excelente idéia.
Uma semana mais tarde saímos do YMCA e mudamo-nos para o hotel Grand Union, na rua Trinta e Dois. Tínhamos dois quartos e uma salinha e, depois do pequeno quarto do YMCA, parecia o máximo do luxo.
Numa carta que recebi de Natalie, esta chamava a minha atenção para o fato de termos um primo afastado que vivia em Nova Iorque e que era dono de uma concessão no cassino Glen Cove, em Long Island. Sugeria que lhe telefonasse. Chamava-se Clifford Wolfe. Telefonei-lhe e ele não podia ter sido mais cordial.
- Soube que estavas algures em Nova Iorque. O que fazes? Expliquei.
- Que tal vires trabalhar para mim no bengaleiro, três noites por semana?
- Ia adorar respondi. E tenho um amigo que...
- Podes trazê-lo.
E assim, três noites por semana, Sidney Rosenthal e eu íamos até Long Island, ao cassino Glen Cove, e ganhávamos três dólares cada um a pendurar casacos e chapéus. Surripiávamos também toda a comida que conseguíamos da mesa do bufete.
Um carro que transportava outros empregados do cassino apanhava-nos e levava-nos até Long Island, à uma hora e meia de distância. No final da noite, quando acabávamos de trabalhar, éramos transportados de volta ao nosso hotel. O dinheiro extra enviava-o todo para Natalie. Invariavelmente, ela devolvia-me.
Uma noite, quando entrava para o bengaleiro Clifford Wolfe parou a olhar para mim, de sobrolho franzido.
- Esse fato que tens vestido...
Estava amarrotado e com ar pouco cuidado.
- Sim?
- Não tens nada melhorzinho?
Abanei a cabeça, embaraçado. O meu guarda roupa cabia dentro de uma maleta.
- Receio que não.
- Vou tratar disso. Respondeu.
Na noite seguinte, quando cheguei ao Glen Cove, Clifford Wolfe deu-me um fato em sarja azul e disse:
- Quero que vás ao meu alfaiate e o mandes pôr à tua medida. A partir desse dia, sempre que fui ao Glen Cove, usava o fato de Clifford Wolfe.
As minhas inexplicáveis alterações de humor persistiam. Ou estava extremamente excitado ou à beira do suicídio. Num excerto de uma carta que mandei a Natalie e a Otto, com data de 26 de Dezembro de 1936, escrevi:
”De momento, não me sinto com grande força para continuar esta luta. Não faço idéia se vou conseguir vencer. Se estivesse mais seguro das minhas capacidades, tudo seria muito mais fácil.”
Um mês mais tarde, escrevi:
”Bom, no que diz respeito às músicas, parece que somos capazes de ter acertado. Chappel ouviu uma das novas, mandou-nos compor de novo o refrão e que a levássemos de volta. Eles são muito esquisitos, e terem gostado das nossas músicas é encorajador.”
Houve duas ocasiões em que os meus discos saíram do sítio e, de ambas às vezes, tive de ficar de cama durante três dias. Foi num dos períodos de euforia que o meu futuro se abriu perante mim. Durante uma das minhas incursões ao Brill Building, encontrei um homem baixinho e janota com um sorriso simpático. Não fazia a mínima idéia quem ele era. Por acaso estava no escritório da Remick na altura em que o gerente ouvia uma das minhas músicas.
O gerente abanou a cabeça.
- Não é o que andamos a procura...
- Mas pode vir a ser um enorme sucesso... Implorei. "When love is gone, love is gone, the stars forget to glow, and we can hear much sadder songs than we were meant to hear...”
”Quando o amar se foi, o amor se foi, as estrelas esquecem de brilhar e acabamos por ouvir canções mais tristes do que as que devíamos ouvir...”.
O gerente encolheu os ombros. O desconhecido com o sorriso simpático estudava-me.
- Deixe-me cá ver isso.
Dei-lhe a folha de papel com a música e ele analisou-a.
- Bom, a letra é muito boa comentou. Como se chama?
- Sidney Sheldon. Estendeu a mão.
- Eu sou Max Rich.
Conhecia o nome. Ele tinha duas canções populares que eram no momento um sucesso. Uma chamava-se ”Smile, Dam Ya, Smile” e a outra era uma novidade "The Girl in the Little Green Hat”.
- Sidney já alguma vez lhe editaram alguma música? Sempre a mesma pergunta. Eu estava desanimado.
- Não. Eu olhava para a porta. Ele sorriu.
- Então, vamos mudar isso. Gostaria de trabalhar comigo? Fiquei estupefato. Esta era exatamente a oportunidade pela qual eu tanto ansiara.
- Eu... Eu ia gostar muito respondi. Mal conseguia falar.
- Tenho o meu escritório aqui neste edifício, no segundo andar. Venha ter comigo amanhã de manhã, pelas dez horas, e começamos a trabalhar.
- Ótimo!
- Traga todas as letras que tiver em casa. Engoli em seco.
- Cá estarei senhor Rich.
Eu estava num estado de euforia.
Assim que contei a Sidney Rosenthal o que acontecera, ele respondeu:
- Parabéns! Isso é que é! O Max Rich consegue editar tudo.
- Eu posso mostrar-lhe também algumas das tuas músicas propus. E...
- Trata das tuas primeiro.
- Está bem.
Nessa noite, Sidney Rosenthal e eu tivemos um jantar de celebração, mas eu estava demasiado excitado para ser capaz de comer. Tudo aquilo que eu um dia ansiara estava prestes a tornar-se realidade. Músicas de Max Eich e Sidney Sheldon. Os nomes soavam bem juntos.
Tinha a sensação de que Max Rich era um excelente homem com quem trabalhar e tinha a certeza que algumas das minhas letras lhe iam agradar.
Comecei a fazer um telefonema para Natalie e Otto, mas pensei que era melhor esperar até ter começado.
Nessa noite, quando fui para a cama, pensei:
”Porque é que Max Rich quer compor comigo quando pode compor com qualquer pessoa que lhe apeteça? Eu não sou ninguém. Ele só está a ser simpático. Imaginou em mim um talento que eu não tenho e vai ter uma desilusão. Não sou suficientemente bom para trabalhar com ele.”
E, de repente, vinda do nada, a nuvem negra descera sobre mim.
”Fui recusado por todos os editores do Brill Building e eles são profissionais. Sabem reconhecer o talento quando ele existe. Vou fazer papel de parvo junto de Max Rich”.
E assim, às dez da manhã, enquanto Max Rich esperava no seu escritório no Brill Building para colaborar comigo, eu estava num autocarro a caminho de Chicago.
CAPÍTULO 8
Em Março de 1937 regressei a Chicago, um falhado. Otto, Natalie e Richard foram muito compreensivos com a minha falta de sucesso como compositor.
- Eles não reconhecem uma boa canção quando a ouvem.
A situação econômica em casa não melhorara. Com relutância, voltei ao trabalho no bengaleiro do Bismarck. Consegui um emprego durante o dia a arrumar carros num restaurante no North Side, em Rogers Park. As minhas irracionais alterações de disposição continuavam. Não as conseguia controlar. De repente, sem qualquer justificação, ficava em êxtase, e deprimia-me em momentos em que as coisas estavam a correr bem.
Uma noite, Charley Fine, o meu mentor na Stewart Warner e a mulher, foram jantar lá a casa. Por razões econômicas servimos um jantar barato, que eu conseguira arranjar num restaurante chinês da vizinhança, mas os Fines fingiram não dar por nada.
Durante o jantar, Vera disse:
- Para a semana que vem vou de carro a Sacramento, na Califórnia.
Califórnia. Hollywood. Era como se uma porta se tivesse aberto de repente para mim. Pensei em todas as horas mágicas que passara no RKO Jefferson Theatre a resolver crimes com William Powell e Myrna Loy em After the Thin Man, a cavalgar com John Wayne na carroça coberta a caminho da Califórnia em The Oregon Trail, a olhar, impotente, enquanto Robert Montgomery aterrorizava Rosalind Russell em Night Must Fall, a saltar de galho em galho com o Tarzan no filme Tarzan Escapes e a jantar com Cary Grant, Clark Gable e Judy Garland. Respirei fundo e disse:
- Gostava de guiá-la até lá.
Todos olharam espantados para mim.
- Isso é muito simpático da tua parte, Sidney, mas eu não quero de forma nenhuma impor... Respondeu Vera Fine.
- Seria um prazer. Respondi, entusiasmado. Virei-me para Natalie e Otto.
- Gostava de poder levar a Vera à Califórnia. Fez-se um silêncio desconfortável.
Retomamos a conversa depois dos Fines se tiver ido embora.
- Tu não podes ir outra vez assim embora. Ainda agora voltaste. Argumentou Otto.
- Mas, se eu conseguisse arranjar um emprego em Hollywood...
- Não. Vamos tentar arranjar-te qualquer coisa aqui.
Eu sabia o que havia para fazer em Chicago. Bengaleiros, drugstores e arrumar carros, e eu já estava farto disso tudo. Depois de um curto silêncio, Natalie disse:
- Otto, se isto é o que Sidney quer, acho que lhe devíamos dar essa oportunidade. Já sei. Vamos fazer um acordo. E virou-se para mim.
- Se em três semanas não conseguires um emprego, voltas para cá.
- Aceito. Respondi, feliz.
Tinha a certeza de que ia conseguir arranjar um emprego em Hollywood. Quanto mais pensava nisso, mais loucamente otimista ficava.
Esta ia ser finalmente a minha oportunidade.
Cinco dias depois, estava a fazer as malas, pronto para conduzir Vera e a sua jovem filha, Carmel, a caminho de Sacramento.
Richard estava perturbado.
- Porque é que te vais embora outra vez? Ainda agora voltaste! Como é que eu lhe ia poder explicar todas as coisas maravilhosas que estavam prestes a acontecer?
- Eu sei, mas isto é importante. Não te preocupes que eu depois te chamo para vir ter comigo. Respondi.
Ele estava quase a chorar.
- Prometes? Abracei-o.
- Está prometido. Vou sentir a tua falta, companheiro.
Demoramos cinco dias a chegar a Sacramento e, quando chegamos, disse adeus a Vera e a Carmel e passei a noite num hotel barato. Na manhã seguinte, bem cedo, apanhei um autocarro para São Francisco, onde mudei para outro em direção a Los Angeles.
Cheguei a Los Angeles com uma maleta e cinquenta dólares no bolso. Na estação de autocarros, comprei um exemplar do Los Angeles Times e procurei a página dos anúncios de empregos e de quartos para alugar.
O meu interesse foi imediatamente despertado pelo anúncio de uma pensão que tinha quartos a quatro dólares e cinquenta por semana, com o pequeno almoço incluído. Ficava na zona de Hollywood, a poucos quarteirões do famoso Sunset Boulevard.
Revelou-se uma encantadora casa antiga numa zona residencial bem agradável, numa rua sossegada, o número 1928 da rua Carmen.
Quando toquei à campainha, a porta foi-me aberta por uma mulher baixinha, de rosto simpático, que parecia andar pelos quarenta anos.
- Boa tarde. Posso ajudar?
- Boa tarde. O meu nome é Sidney Sheldon e ando a procura de um lugar onde ficar durante alguns dias.
- Chamo-me Gracie Seidel. Entre.
Peguei na minha mala e entrei no átrio. Era óbvio que a casa fora transformado de uma grande residência familiar numa pensão. Tinha uma sala de estar grande, uma sala de jantar e uma cozinha. Havia doze quartos, a maior parte deles ocupados, e quatro casas de banho comuns.
- Pelo que percebi, a renda são quatro dólares e cinquenta por semana, com pequeno almoço incluído. Disse eu.
Gracie Seidel contemplou o meu fato amarrotado e a camisa já gasta e respondeu:
- Bom, se insistir muito comigo, posso baixar para quatro dólares por semana.
Olhei para ela e senti dentro de mim uma vontade terrível de lhe responder ”Eu pago os quatro dólares e cinquenta”, mas o pouco dinheiro que me sobrava não duraria muito tempo. Engoli o meu orgulho e respondi:
- Estou a insistir. Sorriu-me, um sorriso caloroso.
- Pois muito bem. Vou mostrar-lhe o seu quarto.
O quarto era pequeno, mas limpo, com uma mobília atraente, e gostei logo dele.
Virei-me para Gracie:
- É excelente.
- Ótimo. Depois lhe dou uma chave da porta da frente. Uma das nossas regras é que não é permitido trazer mulheres.
- Não se preocupe. Respondi.
- Deixe-me apresentá-lo a alguns dos outros hóspedes.
E levou-me à sala onde estavam reunidos os outros hóspedes. Conheci quatro escritores, um aderecista, três atores, um realizador e uma cantora. À medida que o tempo foi passando, percebi que eram todos pretendentes, desempregados, em busca de sonhos maravilhosos que nunca se tornariam realidade.
Gracie tinha um filho com doze anos, bem educado, chamado Billy, cujo sonho era vir a ser bombeiro. Era provavelmente o único sonho dentro daquela pensão que se iria concretizar.
Liguei a Natalie e a Otto e disse-lhes que tinha chegado bem.
- Lembra-te, se dentro de três semanas não tiveres encontrado um emprego, queremos que voltes para cá avisaram.
Com certeza.
Nessa noite, os hóspedes de Gracie sentaram-se na sala de estar a contar as suas histórias.
- Sheldon, este é um mundo difícil. Todos os estúdios têm um portão e do outro lado os produtores anseiam por encontrar talentos. E gritam que precisam freneticamente de atores, de realizadores e de argumentistas. Mas, se estiveres do lado de fora do portão, eles nem sequer te deixam entrar. Os portões estão cerrados para os que não pertencem ao meio.
Talvez, mas todos os dias há sempre alguém que os consegue cruzar, pensei.
Aprendi que a Hollywood que eu imaginara não existia. A Columbia Pictures, a Paramount e a RKO estavam instaladas em Hollywood, mas a Metro-Goldywn-Mayer e o Selznick International Studios eram em Culver City. A Universal Studios estava na Universal City, os estúdios Disney em Silverlake, a Twentieth-Century-Fox na Century City e os Republic Studios em Studio City.
Gracie, simpaticamente, subscrevia a Variety, o jornal do mundo do espetáculo, e este ficava à disposição na sala de estar como se fosse uma Bíblia, para todos podermos consultar e sabermos que trabalhos havia disponíveis e que filmes estava a ser produzidos. Peguei nele e verifiquei a data. Eu tinha vinte e um dias para encontrar um trabalho, e o relógio não parava. Sabia que, de alguma forma, tinha de conseguir encontrar maneira de passar aqueles portões.
Na manhã seguinte, enquanto tomávamos o pequeno almoço, o telefone tocou. Atender ao telefone naquela casa era quase um acontecimento olímpico. Todos corriam para atendê-lo porque, como nenhum de nós podíamos dar ao luxo de ter qualquer vida social, um telefonema para lá só podia ter a ver com trabalho.
O ator que o atendeu escutou por instantes, virou-se para a Gracie e disse:
- É para si.
Soaram suspiros de desapontamento. Cada um dos hóspedes tinha esperança que fosse para ele. Aquele telefone era a linha da vida que os ligava aos seus futuros.
Trouxera comigo um guia turístico de Los Angeles e, dado que a Columbia Pictures era o estúdio que ficava mais perto da pensão da Gracie, decidi começar por lá. Na frente do Columbia não havia portão.
Entrei pela porta da frente. Um guarda idoso estava sentado atrás de uma secretária, a trabalhar num relatório. Assim que entrei, olhou para cima.
- Posso ajudar?
- Bem... - Comecei a dizer -... Chamo-me Sidney Sheldon. Quero ser escritor. Com quem devo falar?
Ele olhou para mim por instantes.
- Tem hora marcada?
- Não, mas...
- Sendo assim, não vai ser recebido por ninguém.
- Mas deve haver alguém que...
- Não, a não ser que tenha hora marcada. Respondeu com firmeza e voltou ao seu relatório.
Aparentemente, o estúdio não precisava de um portão.
Passei as duas semanas seguintes a dar a volta a todos os estúdios. Ao contrário de Nova Iorque, Los Angeles era uma cidade bastante dispersa, não era de forma nenhuma uma cidade para se andar a pé. Os elétricos iam até ao centro de Santa Monica Boulevard e havia autocarros em todas as ruas principais. Depressa me adaptei aos seus horários e aos seus percursos.
Enquanto cada estúdio era aparentemente diferente, os guardas, esses, eram sempre iguais. De fato, comecei mesmo a pensar se não seria sempre o mesmo homem.
- Quero ser escritor. Com quem devo falar?
- Tem hora marcada?
- Não.
- Então não vai ser recebido por ninguém.
Hollywood era um cabaré e eu tinha fome. Mas eu estava de fora a olhar para dentro e todas as portas pareciam fechadas.
Estava a ficar sem os meus parcos fundos, mas, pior do que isso estava a ficar sem tempo.
Quando não assediava os estúdios, estava no quarto a trabalhar em histórias, na minha velha e muito batida máquina de escrever.
Um dia, Gracie fez um anúncio pouco apetecido.
- Lamento, mas de hoje em diante não há menores almoços informou.
Ninguém perguntou por quê. A maior parte de nós tinha a renda atrasada e ela não podia continuar a sustentar-nos.
Acordei na manhã seguinte cheio de fome e sem um tostão. Não tinha dinheiro para o pequeno almoço. Estava a tentar trabalhar numa história, mas não me conseguia concentrar. Tinha demasiada fome. Por fim, desisti. Fui até a cozinha. Gracie estava na cozinha a limpar o fogão.
Viu-me e virou-se.
- Sim, Sidney? Eu gaguejava.
- Gracie, eu sei da nova regra sobre o pequeno almoço, mas estava a pensar se... Seria possível eu comer alguma coisa hoje de manhã. Tenho a certeza que nos próximos dias...
Ela olhou duramente para mim e respondeu, ríspida:
- Porque não vais para o teu quarto?
Senti-me arrasado. Voltei para o meu quarto e sentei-me, humilhado, na frente da máquina de escrever, embaraçado por me ter posto nesta situação. Tentei continuar a trabalhar na história, mas não valia à pena. Só conseguia pensar que tinha fome, que estava sem um tostão e desesperado.
Quinze minutos mais tarde ouvi baterem à porta. Levantei-me e fui abrir. Gracie estava de pé do lado de fora, com uma bandeja com um enorme copo de sumo de laranja, uma cafeteira cheia de café a fumegar e um prato com ovos, presunto e torradas.
- Come enquanto está quente. Disse.
Esta deve ter sido a melhor refeição que alguma vez comi. Foi com certeza a mais memorável.
Quando, uma tarde, regressei à pensão depois de mais um dia fútil a fazer a volta dos estúdios, tinha uma carta de Otto. Continha um cartão e um bilhete de autocarro para Chicago. Foi o pedaço de papel mais deprimente que alguma vez vi. O cartão dizia Estamos à tua espera para a semana em casa. Todo o meu amor, Pai.
Tinha quatro dias e mais nenhum sítio aonde ir. Os deuses deviam estar a rir de mim.
Nessa noite, eu e o grupo da Gracie estávamos sentados na sala a conversar quando um deles disse:
- A minha irmã acabou de arranjar um emprego como leitora na MGM.
- Leitora? O que é isso? Perguntei.
- Todos os estúdios têm leitores. – Explicou - Fazem a sinopse da história para os produtores, o que faz com que não tenham de ler uma data de porcarias. Se o produtor gostar da sinopse, dá uma olhadela ao livro todo ou à peça. Alguns estúdios têm grupos de leitores. Outros usam leitores de fora.
Eu pensava rapidamente. Acabara de ler a obra prima de Steinbeck, Of Mice and Men, e...
Trinta minutos mais tarde, folheava o livro e batia à máquina uma sinopse.
No dia seguinte ao meio dia já fizera cópias suficientes num mimeógrafo emprestado para mandar a meia dúzia de estúdios. Imaginei que demoraria um dia ou dois para entregá-las a todas e que pelo terceiro dia teria notícias.
Quando o terceiro dia chegou, o único correio que recebi foi do meu irmão Richard a perguntar quando é que eu o mandaria chamar. O quarto dia trouxe uma carta de Natalie.
O dia seguinte era quinta-feira e o meu bilhete de autocarro era para domingo. Mais um sonho que morria. Disse a Gracie que me ia embora na manhã de domingo. Ela olhou para mim com olhos sábios e sensatos:
- Há alguma coisa que eu possa fazer? Perguntou. Dei-lhe um abraço.
A Gracie tem sido maravilhosa. As coisas não correram tão bem quanto eu esperava.
- Nunca pares de sonhar pediu-me. Mas eu parara.
Na manhã seguinte, o telefone tocou. Um dos atores correu e atendeu. Levantou o auscultador e, na sua melhor voz de ator, disse:
- Bom dia. Posso ser útil? Quem? O tom de voz mudara. Do escritório de David Selznick?
A sala ficou completamente silenciosa. David Selznick era o produtor com mais prestígio em Hollywood. Fora ele que produzira A Star is Born, Dinner at light, A Tale of Two Cities, Viva Villal, David Copperfield e dúzias de outros filmes.
O ator disse:
- Sim, ele está aqui.
Naquele momento, todos pararam de respirar. Quem seria ele? Virou-se para mim.
- É para ti, Sheldon.
Devo ter batido o recorde da pensão de rapidez em atender ao telefone.
- Sim?
A voz aguda de uma mulher perguntou do outro lado:
- Estou a falar com Sidney Sheldon?
Percebi imediatamente que não estava a falar com o próprio David Selznick.
- Exatamente.
- Daqui fala Anna, a secretária de David Selznick. O senhor Selznick tem um romance do qual pretende uma sinopse. O problema é que nenhum dos nossos leitores estão disponíveis.
Está disponível, pensei automaticamente. Mas quem era eu para corrigir a pessoa que podia ser a lançadora da minha carreira?
- O senhor Selznick precisa da sinopse esta tarde às seis. É uma novela com quatrocentas páginas. Normalmente as nossas sinopses têm trinta páginas com um sumário de duas e um comentário de um parágrafo. Mas tem de ser entregue hoje às seis. Pode fazê-la?
- Não havia qualquer hipótese de eu ir aos estúdios de Selznick, ler um romance com quatrocentas páginas, desencantar algures uma máquina de escrever decente, escrever uma sinopse de trinta páginas e ter tudo pronto às seis da tarde.
Respondi:
- Claro que sim.
Muito bem. Pode vir buscar o livro ao nosso estúdio em Culver City.
- Estou a caminho.
E pousei o telefone. Selznick International Studios. Olhei para o relógio. Eram nove e trinta da manhã. Culver City ficava a hora e meia de distância. Havia mais problemas. Eu não tinha transporte. Sou um mau datilógrafo e bater uma sinopse com trinta páginas ia levar-me uma eternidade, e esta eternidade ainda nem incluía o tempo para ler um romance com quatrocentas páginas. Se eu chegasse ao estúdio de Culver City às onze, tinha exatamente sete horas para fazer um milagre.
Mas eu tinha um plano.
CAPÍTULO 9
Tive de apanhar um elétrico e dois autocarros para conseguir chegar a Culver City. No segundo autocarro, olhei em volta para os passageiros e sentia uma vontade enorme de lhes dizer que me ia encontrar com David Selznick. O autocarro deixou-me a dois quarteirões dos Selznick International Studios.
Tratava-se de uma estrutura georgiana impressionante, com fachada para a rua Washington. Reconheci-a imediatamente, pois já a vira nos créditos da abertura dos filmes de David Selznick.
Entrei apressadamente e disse à mulher que estava sentada por detrás de uma secretária:
- Tenho hora marcada com a secretária do senhor Selznick. Pelo menos agora ia encontrar-me com David Selznick.
- Como se chama?
- Sidney Sheldon.
Ela procurou na secretária e tirou para fora um pacote grosso.
- Isto é para si.
- Oh, pensei que ia poder ver o senhor Selznick e...
- Não. O senhor Selznick é um homem muito ocupado. Então veria David Selznick mais tarde.
Segurando o pacote, deixei o edifício e comecei a correr pela rua abaixo, em direção aos estúdios da MGM, a seis quarteirões dali, a rever o meu plano enquanto corria. Surgira da conversa que tivera com Seymour sobre Sidney Singer, a sua ex-mulher.
- Costumas vê-la?
- Não. Foi para Hollywood. Arranjou emprego como secretária na MGM para uma diretora. Dorothy Arzner.
Eu ia pedir a Sidney Singer para me ajudar. Era um tiro no escuro, mas era a minha única hipóteses.
Quando cheguei aos estúdios da MGM, dirigi-me ao guarda que estava à secretária no átrio.
- O meu nome é Sidney Sheldon. Quero falar com Sidney Singer.
- Sidney... Ah! A secretária de Dorothy Azner. Acenei afirmativamente.
- Exatamente.
- Ela está à sua espera?
- Sim. Respondi com segurança.
Ele pegou no telefone e marcou o número de uma extensão.
- O senhor Sidney Sheldon está aqui para falar consigo... E repetiu devagarzinho: Sidney Sheldon. Ouviu por momentos. Mas ele disse...
Eu estava a ouvir, completamente paralisado. Diz que sim. Diz que sim. Diz que sim.
- Certo e desligou. Ela vai recebê-lo. Sala número 230. O meu coração recomeçou a palpitar.
- Muito obrigado.
- Por aquele elevador ali.
Apanhei o elevador e apressei-me pelo corredor do segundo andar. O gabinete de Sidney era ao fundo. Quando entrei, ela estava sentada atrás da secretária.
- Olá, Sidney.
- Olá.
Não havia qualquer cordialidade na voz dela. E, de repente, lembrei-me do resto à conversa com Seymour. Ela não quer saber de mim. Disse a toda a gente que nunca mais me queria ver. Onde é que eu me metera? Ia dizer para me sentar? Não.
- O que é que estás aqui a fazer?
Oh! Sabes, resolvi aparecer por cá para te pedir que passasses a tarde a trabalhar para mim de borla.
- É... É uma longa história.
- Ela olhou para o relógio de pulso e ergueu-se.
- Ia agora almoçar.
- Não!
- Ficou a olhar fixamente para mim.
- Não posso ir almoçar? Respirei fundo.
- Sidney... Eu estou com um problema...
E debitei toda a minha história, a começar com o fiasco de Nova Iorque, com a minha ambição de me tornar escritor, a minha incapacidade de passar para lá dos guardas dos portões dos estúdios e o telefonema da manhã de David Selznick.
Ela ouviu e, quando terminei de contar a minha história, mantinha os lábios cerrados.
- Tu aceitaste o trabalho do Selznick porque estavas à espera que eu passe a tarde a bater à máquina para ti?
Foi um divórcio difícil. Ela odeia-me.
- Eu... Eu... Não estava à espera... Só tive esperança que... Gaguejei. Não conseguia respirar. Agira de forma muito estúpida. Sidney, desculpa ter-te vindo aborrecer. Eu não tinha o direito de te vir pedir isto.
- Não, não tinhas. E agora, o que vais fazer?
- Vou levar este livro de volta a Selznick. Amanhã de manhã regresso a Chicago. De qualquer das maneiras, muito obrigado. Foi muito simpático da tua parte teres-me ouvido, Sidney. Adeus.
E dirigi-me para a porta, desesperado.
- Espera lá. - Voltei-me - Isto é muito importante para ti, não é?
Acenei que sim com a cabeça. Estava demasiado perturbado para conseguir falar.
- Vamos lá abrir esse pacote e dar uma olhadela. Levei um momento a perceber as suas palavras. Eu disse:
- Sydney...
- Cala-te. Deixa-me ver o livro.
- Queres dizer que...
- O que tu fizeste é a coisa mais doida que alguma vez ouvi. Mas admiro a tua determinação. Ela sorriu pela primeira vez. Vou ajudar-te.
Um sentimento de alívio percorreu todo o meu corpo. Não conseguia deixar de sorrir de orelha a orelha. Fiquei a olhar enquanto ela folheava o livro.
- Isto é comprido. Como é que estás a pensar ter a sinopse pronta até às seis da tarde? Perguntou.
Boa pergunta.
Devolveu-me o livro. Olhei para a folha de apresentação para ter uma idéia rápida do que se tratava. Era um romance de época, o tipo de história que Selznick gostava muito de filmar.
- Como é que vamos fazer isto? Perguntou.
- Eu folheio as páginas – Expliquei - e quando chegar a um ponto importante da história, te dito.
Ela concordou.
- Vamos lá a ver no que dá.
Sentei-me numa cadeira na frente dela e comecei a folhear as páginas. Nos quinze minutos que se seguiram, fiquei com uma idéia bastante razoável da história. Comecei a folhear o livro e ia ditando sempre que me parecia encontrar algo de pertinente para a trama. Ela ia batendo à máquina enquanto eu falava.
Até hoje, desconheço o que é que fez com que a Sidney tivesse aceitado ajudar-me. Fora porque eu me metera numa situação sem saída ou porque o meu olhar era de desespero? Nunca o saberei. Mas sei que se sentou à secretária durante toda aquela tarde, a datilografar aquelas páginas, enquanto eu ia folheando o livro.
O relógio corria velozmente. Só tínhamos coberto cerca de meio livro quando ela me avisou:
- São quatro da tarde.
Comecei a ler mais depressa e a falar ainda mais depressa.
Quando terminei de ditar a sinopse de trinta páginas, o sumário de duas páginas e o comentário de uma página faltava exatamente dez minutos para as seis.
Quando ela me entregou as folhas dactilografadas, agradeci-lhe calorosamente:
- Se alguma vez puder fazer alguma coisa por ti... Sorriu.
- Com um almoço ficamos quites!
Beijei-a na face, enfiei as páginas no envelope juntamente com o livro e saí a correr do escritório. Corri todo o caminho até aos Selznick International Studios e quando lá cheguei faltava exatamente um minuto para as seis.
Disse à mesma mulher atrás da secretária:
- O meu nome é Sheldon. Quero falar com a secretária do senhor Selznick.
- Ela tem estado à sua espera. Respondeu.
Enquanto me apressava pelo corredor, sabia que aquilo era apenas o princípio. Lera algures que Selznick se iniciara como leitor na MGM, por isso tínhamos algo em comum sobre que falar.
O Selznick vai dar-me um lugar na empresa. Vou ter um escritório aqui. Espera só até Natalie e Otto saberem que estou a trabalhar para ele.
Cheguei ao gabinete da secretária. Quando entrei, ela olhou para o relógio.
- Estava a começar a ficar preocupada consigo. Comentou.
- Não houve problema. Respondi com ar desprendido. Dei-lhe o pacote e fiquei a vê-la folhear as páginas.
- Isto está muito bem feito. E entregou-me um envelope. Aqui tem dez dólares.
- Muito obrigado. Estou pronto para fazer a próxima sinopse, assim que...
- Lamento muito respondeu, mas o nosso leitor habitual estará de volta amanhã. Normalmente o senhor Selznick não usa leitores externos. Na verdade, o senhor foi chamado por engano.
Engoli em seco.
- Por engano?
- Sim. Nem sequer faz parte da nossa lista normal de leitores.
Afinal eu não ia pertencer a equipa de Selznick. Não teríamos uma agradável conversa sobre os tempos dele como leitor. Aquele dia frenético fora o princípio e o fim. Naquela altura, devia ter ficado extremamente deprimido. Mas, por estranho que pareça, sentia-me feliz. Por quê? Não fazia a mínima idéia.
Quando cheguei à pensão da Gracie, os outros hóspedes estavam todos à minha espera.
- Viste o Selznick?
- Que tal é ele?
- Vais trabalhar lá?
- Foi uma tarde muito interessante, muito interessante mesmo. Respondi. E fui para o meu quarto e fechei a porta.
Vi o bilhete de autocarro sobre a mesa junto à cama. Era o símbolo do meu fracasso Significava voltar para os vestiários, e a drugstare, e os parques de estacionamento, e toda a vida à qual pensava ter conseguido escapar. Chegara a um beco sem saída. Peguei no bilhete de autocarro e a minha vontade era rasgá-lo. Como é que eu ia conseguir transformar este fracasso num sucesso? Tem de haver uma forma. Tem de haver uma forma.
De repente, soube o que tinha a fazer. Telefonei para casa. Natalie atendeu ao telefone.
- Olá, meu querido. Estamos ansiosos por te ver. Estás bem?
- Estou ótimo. Tenho boas notícias. Acabei de fazer uma sinopse para David Selznick.
- Verdade? Isso é maravilhoso! E ele foi simpático?
- Foi. Não podia ter sido mais simpático. E isto é só o princípio. As portas finalmente abriram-se, Natalie. Daqui para frente tudo vai ser excelente. Só preciso de mais uns dias.
Ela nem hesitou.
- Mas é claro, meu querido. Depois diz-nos quando é que voltas para casa.
Eu não vou voltar para casa.
Na manhã seguinte, fui à estação de autocarros e troquei o bilhete que Otto me mandara por dinheiro. Passei o resto do dia a escrever cartas aos departamentos literários de todos os estúdios importantes.
O texto dizia mais ou menos:
”A seu pedido pessoal, acabei de fazer uma sinopse de um romance para David O.Selznick e encontro-me livre para poder fazer outras sinopses...”.
Os telefonemas começaram a chegar dois dias depois. A primeira a ligar foi a Twentieth-Century-Fox, depois a Paramount. A Fox precisava de uma sinopse de um livro e a Paramount queria que fizesse uma sinopse de uma peça de teatro. Cada sinopse pagava cinco ou dez dólares, dependendo da extensão.
Como cada estúdio tinha o seu próprio grupo de leitores, a única altura em que contratavam pessoal de fora era quando estavam sobrecarregados. Eu só conseguia fazer uma sinopse por dia. Esse era o tempo que precisava para poder ir ao estúdio apanhar a obra, regressar à pensão da Gracie, ler o livro, datilografar a sinopse e levar tudo de volta ao estúdio. Estava com uma média de dois a três telefonemas por semana. E já não tinha a Sydney na minha vida.
Para aumentar os meus parcos rendimentos, telefonei a um homem que nunca vira. Vera Fine falara nele durante a viagem para a Califórnia. Chamava-se Gordon Mitchell. Era o chefe do Departamento Técnico da Academy of Motion Pictures Arts and Sciences.
Liguei, mencionei o nome de Vera Fine e disse-lhe que andava a procura de um emprego. Ele foi muito simpático.
- Para falar verdade, tenho uma coisa que poderá fazer.
Fiquei excitado. Eu ia trabalhar para a conceituada academia. Na manhã seguinte, encontramo-nos no escritório dele.
- Chegou à altura certa. Vai trabalhar aqui à noite, a ver filmes na nossa sala de projeção. Informou-me.
- Excelente. E qual é a minha função? Perguntei.
- Ver filmes na nossa sala de projeção. Eu olhava para ele. Ele explicou:
- A Academia está a experimentar vários tipos de preservantes de filmes. Revestimos várias secções dos filmes com químicos diferentes. A sua função é ficar sentado na sala de projeção e registrar o número de vezes que um filme é passado. E, acrescentou como se pedisse desculpas: Lamento dizer, mas o pagamento são três dólares por dia.
- Aceito.
O primeiro filme que vi vezes sem conta foi The Man Who Lived Twice e pouco tempo depois já sabia de cor todas as falas. Passava as noites a ver os mesmos filmes e os dias a aguardar que o telefone tocasse.
No fadado dia de 12 de Dezembro de 1938, recebi um telefonema da Universal Studios. Acabara de fazer algumas sinopses para eles.
- Sidney Sheldon?
- Sim.
- Pode vir aos nossos estúdios hoje de manhã? Mais três dólares.
- Claro.
- Por favor, dirija-se ao gabinete do senhor Townsend.
Al Townsend era o editor sênior da Universal. Quando cheguei aos estúdios, fui conduzido ao escritório dele.
- Li as sinopses que escreveu para nós. São muito boas.
- Muito obrigado.
- Estamos a precisar de um leitor interno. Está interessado no lugar?
Interroguei-me se ele ficaria ofendido se eu lhe desse um beijo.
- Estou, sim. Foi a minha resposta.
- Tem um salário de dezessete dólares por semana. Trabalhamos seis dias por semana. O seu horário será das nove às seis. Começa na segunda-feira.
Liguei para o escritório de Sidney para lhe dar as notícias e para convidá-la para jantar.
Uma voz desconhecida atendeu:
- Sim?
Queria falar com Sidney Singer.
- Ela não está cá.
- Quando volta?
- Não volta.
- Como...? Quem fala?
- Dorothy Arzner.
- Oh! Por acaso tem o endereço dela, menina Arzner?
- Não deixou nenhum.
Nunca mais voltei a ver a Sidney, mas nunca me esqueci da dívida que tenho para com ela.
A Universal era um estúdio que fazia filmes categoria B. Fora fundada em 1912 por Cari ”Papa” Laemmle, e era conhecida pela sua economia. Uns anos antes, o estúdio telefonara para o agente de uma grande estrela de filmes westem e dissera que estavam interessados em contratá-lo para um filme de orçamento reduzido. O agente riu-se.
- Vocês não lhe podem pagar. Ele ganha mil dólares por dia.
Está bem respondeu o diretor da empresa. Nós pagamos. O filme era sobre um bandido mascarado. No primeiro dia da produção, o realizador filmou inúmeros close-ups da estrela em vários locais e, ao final do dia, disseram-lhe que não precisavam mais dele. O que fizeram a seguir foi substituir o ator por outro mais barato, que usou uma máscara durante o resto do filme.
Na segunda-feira de manhã, quando cruzei os portões e entrei pela primeira vez nos terrenos de um estúdio, senti-me invadir por uma sensação de espanto. Passei por fachadas de cidades do Oeste, por casas vitorianas, por ruas de São Francisco e de Nova Iorque, e senti a magia.
Al Townsend explicou-me as minhas funções. O meu trabalho consistia em ler dúzias e dúzias de guiões, que tinham sido escritos para filmes mudos e tentar desencantar os que podiam ser recuperados para filmes falados. Quase todos eram irrecuperáveis. Lembro-me de uma linha memorável que descrevia um vilão ”Ele tinha um saco de ouro no olhar.”
Durante a época do Papa Laemmle, a Universal era um estúdio com um ambiente fácil, do tipo mangas arregaçadas. Não se sentia qualquer pressão. Era como se fosse uma família grande.
Eu agora ganhava um cheque semanal e conseguia pagar regularmente a Grade. Ia para os estúdios seis dias por semana, e nunca deixei de sentir a mesma ao passar pelos terrenos onde os sonhos eram criados todos os dias. Sabia que era simplesmente o princípio. Entrara na Universal como leitor, mas ia recomeçar a trabalhar em histórias originais e conseguiria vendê-las aos estúdios. Escrevi a Natalie e a Otto para lhes contar como corriam as coisas. Eu agora tinha um emprego permanente em Hollywood.
Um mês depois, Papa Laemmle vendeu a Universal e, juntamente com todos os outros, fui despedido.
Não me atrevi a contar a Natalie ou a Otto o que acontecera, porque sabia que iam insistir para que eu regressasse a Chicago. Eu sabia que era ali que estava o meu futuro. Tinha de procurar outro emprego um emprego qualquer até conseguir regressar a um estúdio.
Li os anúncios de ofertas de emprego. Um deles chamou a minha atenção:
Precisa-se de operador de central telefônica. Não se exige experiência. $20 por semana. Hotel Brandi.
O hotel Brandi era um hotel chique perto de Hollywood Boulevard. Quando lá cheguei, a única pessoa no átrio era o gerente.
- Vim por causa do anúncio para telefonista disse eu. Estudou-me por momentos.
- A nossa telefonista despediu-se. Precisamos de alguém imediatamente. Já alguma vez trabalhou com uma central telefônica?
- Não, senhor.
- Bem, não tem nada de especial. E levou-me atrás de uma secretária onde estava um grande painel com aspecto complicado.
- Sente-se. Pediu.
Sentei-me. O painel era composto por duas filas de cavilhas verticais e cerca de trinta buracos onde elas podiam ser enfiadas, cada um pertencendo a um quartos numerado.
- Está a ver estas cavilhas?
- Sim.
- São aos pares, uma por cima da outra. A de baixo tem o nome de cavilha irmã. Quando a luz do painel se acende, coloca a cavilha da frente nesse buraco. Quem chama vai dizer-lhe que número de quarto pretende e você pega na cavilha irmã e enfia-a no respectivo número pedido, e em seguida prime este botão aqui, para tocar no quarto. É só isto.
Anui.
- É fácil.
- Dou-lhe uma semana à experiência. Vai trabalhar de noite.
- Tudo bem. Respondi.
- Quando pode começar?
-Já comecei.
O gerente tinha razão. Gerir uma central telefônica era fácil. Passou a ser automático. Quando uma luz se acendia, eu enfiava uma cavilha na fila da frente.
- O senhor Klemann, por favor.
Consultava o livro de registros dos hóspedes. O senhor Klemann estava no quarto 231. Enfiava a cavilha no buraco do 231 e premia o botão para tocar no quarto. Era tão simples quanto isto.
Tinha a sensação de que operar uma central telefônica era o princípio de qualquer coisa. Eu podia ser promovido à gerente da noite e depois, quem sabe, talvez a gerente e, como o hotel pertencia a uma cadeia, nunca se sabia até onde eu podia subir, e ia escrever uma peça sobre hotéis com conhecimento de causa, vendê-la a um estúdio e acabar por chegar onde afinal pretendia chegar.
Duas noites depois de ter começado, um dos hóspedes ligou para a central às três da manhã.
Preciso que me ligue para um número em Nova Iorque. E deu-me o número.
Retirei a cavilha correspondente ao quarto e fiz a ligação para Nova Iorque.
Ao fim de uma dúzia de toques, respondeu uma mulher:
- Está lá?
- Tenho uma chamada para si informei. É só um momento, que vou passar.
Tirei a cavilha que entrava nos números dos quartos e fiquei a olhar para o painel. Não tinha a mínima idéia de qual fora o hóspede que me pedira a chamada. Olhei para os buracos no painel, à espera de alguma inspiração. Sabia mais ou menos de que zona viera à chamada. Comecei a ligar para todos os quartos dessa secção, na esperança de acertar. Acabei por acordar uma dúzia de hóspedes.
- Tenho em linha a chamada que pediu para Nova Iorque.
- Não conheço ninguém em Nova Iorque.
- Tenho em linha a chamada que pediu para Nova Iorque.
- Você está doido? São três da manhã!
- Tenho em linha a chamada que pediu pára Nova Iorque.
- Não é para mim, seu idiota!
Na manhã seguinte, quando o gerente chegou, comentei:
- Ontem se passou uma coisa engraçada...
- Já sei e não achei nada engraçado. Está despedido.
Era óbvio que não estava destinado a ser gerente de uma cadeia de hotéis. Chegara a hora de seguir em frente.
Vi um anúncio de um part-time como instrutor numa escola de condução e decidi concorrer ao lugar. A maior parte dos alunos eram assustadores. Os sinais vermelhos não tinham qualquer significado para eles e todos pareciam ficar confusos quanto à diferença entre o acelerador e o travão. Eram nervosos, cegos ou potenciais suicidas. Cada vez que ia trabalhar sentia que estava a pôr a minha vida em risco.
Mantinha a sanidade fazendo leituras para vários estúdios, sempre que os leitores deles estavam ocupados. Um dos estúdios para quem fiz algumas sinopses foi a Twentieth-Century-Fox. O editor chefe chamava-se James Fisher e era um inteligente jovem de Nova Iorque. Um dia, ao final da tarde, telefonou-me:
- Está livre amanhã?
- Estou. Mais três dólares.
- Vejo-o às dez.
- Está bem.
Talvez fosse um livro grande. Dez dólares. Os meus fundos estavam outra vez a ficar muito fracos.
Assim que cheguei ao escritório, Fisher estava à minha espera.
- Que é que acha de um trabalho efetivo aqui? Perguntou. Eu nem conseguia articular as palavras.
- Eu... Eu ia gostar muito.
- Então, está contratado. Vinte e três dólares por semana.
Estava de volta ao mundo do espetáculo.CAPÍTULO 10
Trabalhar na Twentieth-Century-Fox era radicalmente diferente de trabalhar nos estúdios da Universal. Enquanto na Universal tudo era descontraído e informal, a Fox era um estúdio gerido de forma prática e eficiente. A razão principal era Daryl F. Zanuck, o chefe de produção. Contrariamente à maior parte dos outros diretores dos estúdios, Zanuck era um executivo que tinha tudo sob controle. Era um brilhante homem do mundo do espetáculo, que se envolvia em cada fase de todos os filmes que o estúdio fazia e que sabia exatamente o que queria. Tinha também um profundo sentido de quem era. Uma vez, numa reunião de produção do estúdio virou-se para o assistente e disse-lhe:
- Não diga ”sim” antes de eu acabar de falar.
Daryl Zanuck tinha um enorme respeito pelos escritores. Disse uma vez: ”O sucesso de um filme tem a ver com três coisas: a história, a história, a história. Só não deixem que os escritores se apercebam de como são importantes.”
Havia doze leitores na Fox, que variavam em idades dos trinta e cinco aos sessenta anos. Na sua maioria, eram familiares dos executivos dos estúdios, que estavam na folha de pagamentos como uma espécie de sinecura.
Julian Johnson, um dos executivos mais importantes dos estúdios Fox, chamou-me ao seu gabinete uma manhã. Johnson era uma figura imponente, alto e robusto. Em tempos fora casado com Texas Guinan, a famosa rainha dos clubes noturnos.
- Sidney, de hoje em diante, só vais trabalhar em sinopses para o senhor Zanuck. Sempre que ele estiver interessado num livro ou numa peça nova, quero que sejas tu a tratar disso.
- Ótimo.
- Cada sinopse será um trabalho rápido...
- Não se preocupe.
Para dizer a verdade, eu estava encantado. A partir daquele momento, poderia ler os melhores romances e peças que seriam propostas ao estúdio.
Como Zanuck se sentia sempre pressionado para conseguir bater todos os outros estúdios no que dizia respeito a material novo, tive muitas vezes que trabalhar até depois da meia-noite. Eu gostava do meu trabalho, mas estava impaciente por me tornar um escritor. O estúdio iniciara uma secção de escritores assistente e eu comentei com Julian Johnson que gostaria de poder fazer parte dela. Ele foi compreensivo, mas não me encorajou:
- Estás a trabalhar para o Zanuck. Isso é mais importante. Respondeu.
O meu pequeno gabinete era num edifício velho, com madeiras que rangiam, situado nos fundos dos terrenos. À noite tudo ficava deserto e por vezes eu não me sentia muito à vontade quando lá tinha de ficar sozinho a trabalhar, imerso nas trevas. Uma noite, trabalhava à pressa num livro no qual Zanuck estava muito interessado. Era uma história de fantasmas bastante assustadora.
Tinha acabado de escrever à máquina a frase ”Ele abriu a porta do armário e, quando o cadáver sorridente que lá se encontrava começou a cair em cima dele...”, quando a porta do meu armário se abriu para trás, os livros começaram a voar pelos ares e a sala começou a abanar. Bati todos os recordes de velocidade, ao sair dali para fora.
Foi o meu tremor de terra mais memorável.
No princípio de Setembro, um desconhecido entrou no meu gabinete e apresentou-se:
- O meu nome é Alan Jackson. Sou leitor na Columbia.
- Prazer em conhecer. Apertamos as mãos. Que posso fazer por si?
- Queremos formar uma associação de leitores e precisamos da sua ajuda.
- Para quê?
- Para convencer os leitores que cá trabalham de que precisamos de uma associação e que nos devemos unir. Se conseguirmos que os leitores de todos os estúdios se juntem, podemos formar uma comissão, que passará a negociar com os estúdios. Neste momento não temos qualquer força. Estamos todos mal pagos e assoberbados de trabalho. Está disposto a ajudar-nos?
Eu não me sentia nem mal pago nem assoberbado de trabalho, mas sabia que era essa a situação da maioria dos leitores.
- Vou ver o que posso fazer.
- Ótimo.
- Mas é possível que haja um problema. Avisei-o.
- Qual é?
- É que quase todos os leitores que trabalham aqui na Fox são familiares de um executivo do estúdio. Não me parece que estejam interessados em envolver-se, mas vou tentar.
Para meu grande espanto, todos os leitores dos estúdios concordaram em fazer parte da associação, assim que esta estivesse formada. Quando contei as novidades a Alan Jackson, ele respondeu:
- Mas isso é excelente. Já temos todos os outros leitores dos outros estúdios. Vamos criar uma comissão de negociações. A propósito, você faz parte dela.
As nossas negociações tiveram lugar numa sala de conferências dos estúdios da Metro-Goldwyn-Mayer. A comissão era formada por seis leitores de vários estúdios. Sentados na nossa frente, a uma enorme mesa, estavam quatro executivos. Seis carneiros e quatro leões.
Eddie Manix, um duro irlandês que era um dos quatro executivos da Metro-Goldwyn-Mayer iniciou a reunião, rugindo:
- Mas, afinal, qual é o vosso problema? Um dos do nosso grupo falou:
- Senhor Manix, nós não estamos a ganhar um ordenado decente. Eu recebo dezesseis dólares por semana e não tenho possibilidade de...
Eddie Manix pôs-se bruscamente de pé e gritou:
- Eu não vou ficar aqui a ouvir estas merdas! E saiu de rompante da sala.
Nós os seis permanecemos sentados, petrificados. A reunião terminara.
Um dos outros executivos abanou a cabeça e disse:
- Vou ver se o consigo convencer a voltar!
Uns minutos mais tarde, regressou com um Manix furioso. Nós ficamos sentados a observá-lo com um ar intimidado.
- Mas que raio querem vocês? Exigiu saber. E recomeçamos as nossas negociações.
Duas horas mais tarde, havia uma Associação de Leitores oficial que seria reconhecida por todos os estúdios. A comissão concordara com um ordenado base de vinte e um dólares e cinquenta cêntimos por semana para os leitores que fizessem parte do quadro da empresa e um aumento de vinte por cento para os leitores externos. Fui eleito presidente da associação.
Foi só anos mais tarde, quando o voltei a encontrar, que percebi o brilhante papel que Eddie Manix desempenhara. Telefonei a Natalie e a Otto para lhes contar o que acontecera. Ficaram encantados. Mais tarde soube que, depois de eu ter desligado, Otto saíra de casa e fora ter com os seus amigos para lhes contar que eu sozinho, sem a ajuda de ninguém, salvara os estúdios de Hollywood de uma greve ruinosa.
Um dos novos hóspedes da Gracie era um jovem tímido chamado Ben Roberts. Tinha a minha idade, era baixo, de pele escura, cabelo fino e um rosto sorridente. Era dono de um sentido de humor seco e lacônico. Depressa nos tornamos amigos.
Ben era escritor, mas o seu único crédito era uma curta metragem de Leon Errol. Começamos a falar em colaboração. Todas as noites dirigíamo-nos para a drugstore na esquina e comíamos um sanduíche como jantar, ou então optávamos por um restaurante chinês dos baratos. Trabalhar com Ben era fácil. Ele tinha imenso talento e, em poucas semanas, tínhamos terminado uma história original. Mandamo-la por correio para todos os estúdios importantes e ficamos ansiosos à espera que as propostas entrem em catadupa pela porta dentro.
Mas nada chegou.
Deitamos ao trabalho numa outra história, com o mesmo resultado. Concluímos que era óbvio que os estúdios não reconheciam talento quando o viam.
Uma terceira história também não foi comprada. Começamos a sentir-nos desencorajados.
Um dia eu disse:
- Tenho uma idéia para um policial. Vamos chamar-lhe Dangerous Holiday. Expliquei-lhe qual era a minha idéia e ele gostou. Escrevemos um resumo e enviamos cópias pelo correio aos estúdios. Mais uma vez, não obtivemos qualquer resposta.
Uma semana depois de termos mandado a nossa história, cheguei à pensão e o Ben estava à minha espera, muito excitado.
- Dei a nossa história a um produtor conhecido meu, o Ted Richards. Trabalha na PRC.
Era um dos estúdios menores, a Producers Releasing Corporation.
- Ele adorou Dangerous Holiday – Continuo - Ofereceu-nos quinhentos dólares por ela. Inclui escrevermos o argumento. Eu respondi-lhe que ia falar contigo e que depois lhe dava uma resposta.
Fiquei encantado. Era claro que íamos fazê-lo. Em Hollywood, o crédito mais importante era sempre o primeiro que se conseguia. Fez-me lembrar a minha primeira experiência em Nova Iorque.
- Já tem alguma música editada?
- Não.
- Então volte depois de ter alguma coisa editada.
Agora era:
- Tem algum crédito no cinema?
-Não.
- Então volte quando tiver.
Bom, pois agora já tínhamos. Dangerous Holiday.
Uns meses antes, eu travara conhecimento com Ray Crossett, que estava encarregue do departamento literário da Leland Hayward, uma das principais agências de talentos de Hollywood. Por alguma razão, Crossett acreditava em mim e prometera que um dia ia ser o meu representante.
Telefonei-lhe a contar as boas notícias acerca de Ted Richmond.
- Eu e o Ben acabamos de vender a nossa primeira história disse eu. Chama-se Dangerous Holiday.
- Aquém?
- À PRC.
- O que é isso?
Fiquei desapontado. Ray Crossett era um dos maiores agentes deste negócio e nunca tinha ouvido falar na PRC!
- É um estúdio chamado Producers Releasing Corporation. Um produtor de lá chamado Ted Richmond ofereceu-nos quinhentos dólares, incluindo o argumento que vamos ter que escrever.
- Já fecharam o negócio?
- Bom, dissemos que depois lhe dizíamos, mas...
- Eu já te ligo respondeu, e desligou. Duas horas mais tarde, Ray estava ao telefone.
- Acabei de vender a vossa história à Paramount. Eles pagam-vos mil dólares e não têm de escrever nenhum argumento.
A minha primeira reação foi ficar chocado, mas sabia o que acontecera. Todos os estúdios têm uma sinopse de todas as histórias que lhes são apresentadas. Quando Ray ligou para a Paramount e lhes disse que Dangerous Holiday tinha sido comprada por outro estúdio, eles morderam o isco.
- Ray - disse eu- isso é... Isso é ótimo, mas não podemos aceitar.
- De que é que estás a falar? É o dobro do dinheiro e num estúdio importante.
- Não posso. Sinto que tenho obrigação para com o Ted Richmond e...
- Olha. Telefona-lhe e conta-lhe o que se passou. Tenho a certeza que ele vai compreender.
- Bom, vou tentar. Foi a minha resposta.
Mas eu tinha a certeza que Ted Richmond não ia compreender. Liguei para o escritório dele. A secretária respondeu-me:
- O senhor Richmond está na sala de montagem. Não pode ser incomodado.
- É capaz de lhe pedir para me ligar? É muito importante.
- Eu dou-lhe o seu recado. Uma hora mais tarde voltei a ligar.
- Preciso falar com o senhor Richmond. É urgente.
- Lamento muito, mas ele não pode ser incomodado. Dei-lhe o seu recado.
Nessa tarde tentei ligar-lhe três vezes e por fim acabei por desistir. Telefonei para Ray Crossett.
- Richmond não responde aos meus telefonemas. Vai em frente e faz o negócio com a Paramount.
- Já o fiz há quatro horas.
Quando Ben chegou, pu-lo a par do que se passara.
Ficou excitado.
- Isso é fantástico – Exclamou - A Paramount é muito importante. Mas agora o que dizemos nós ao Ted Richmond?
Boa pergunta. O que íamos dizer agora ao Ted Richmond. Nessa noite, liguei para casa de Ted e ele atendeu. Como tinha um sentimento de culpa, entrei a matar.
- Liguei-lhe hoje uma boa meia dúzia de vezes. Porque é que não me telefonou?
- Peço desculpa, mas estive na sala de montagem e...
- Pois devia ter-me ligado. Por sua causa eu e Ben quase perdíamos um bom negócio.
- De que é que está a falar?
- A Paramount acabou de comprar Dangerous Holiday. Fizeram-me uma proposta e, como não conseguíamos falar consigo, acabamos por lhes vender a história.
- Mas eu já a pus na nossa programação e...
- Não se preocupe com isso. Respondi, Está com sorte. Temos uma história muito mais interessante do que Dangerous Holiday. Chama-se South of Panamá. É um drama, com uma história de amor, suspense e muita ação. É uma das melhores coisas que já escrevemos. Fizeram-se uns segundos de silêncio.
- Muito bem. - Respondeu- Venha então ter comigo e Alex amanhã às oito da manhã, ao Pig &Whistle.
Alex era o diretor da PRC.
- Lá estarei. Respondi e, pousando o auscultador, virei-me para Ben: Não temos tempo para jantar. Temos de inventar um enredo que tenha uma história de amor, suspense e muita ação. Temos até às sete da manhã.
Trabalhamos a noite toda, a discutir idéias, a tentar encontrar um enredo, a acrescentar e retirar personagens. Ia ficando cada vez mais cansativo. Terminamos South of Panamá às cinco da manhã.
- Conseguimos! Exclamou Ben - Vais-lhes mostrar isto de manhã.
Concordei. Pus o despertador para as sete. Ia ter duas horas para dormir, antes da reunião.
Quando o despertador tocou, levantei-me meio grogue e reli a nossa história. Era péssima. Odiei o enredo, as personagens e os diálogos. Mas mesmo assim tinha de ir à reunião e enfrentar Alex e Ted.
As oito em ponto enfiei-me no Pig &Whisde. Ted e Alex estavam sentados num reservado à minha espera. Trouxera comigo duas cópias da história.
- Mal posso esperar por ler isto. Comentou Alex. Ted anuiu com a cabeça.
- Eu também.
Sentei-me e dei uma cópia a cada um. Começaram imediatamente a ler. Eu não tinha coragem para olhar para eles. Viravam as páginas. E não faziam nenhum comentário. Mais páginas. Silêncio.
É merecido, pensei. Como é que é possível escrever sob uma pressão assim?
Acabaram os dois ao mesmo tempo. Alex olhou para mim.
- É brilhante.
- Espetacular - Corroborou Ted- Tinhas razão. É muito melhor do que Dangerous Holiday.
Eu não acreditava no que estava a ouvir.
- Pagamos quinhentos dólares - Disse Alex - E têm de escrever o argumento.
Respirei fundo.
- Negócio fechado.
Ben e eu tínhamos feito um milagre. Conseguíramos vender duas histórias num período de vinte e quatro horas.
Nessa noite, eu e Ben fomos celebrar ao Musso &Frank’s, um dos clássicos restaurantes de Hollywood. Era a primeira vez que tínhamos dinheiro para fazê-lo. Foi um dia depois de fazer vinte e quatro anos.
South of Panamá foi filmado pela Producers Releasing Corporation e teve como atores Roger Pryor e Virgínia Vale. A Paramount filmou Dangerous Holiday e chamou-lhe Fly-by-Night, com Richard Carlson e Nancy Kelly.
Eu e Ben estávamos metidos numa onda. A primeira coisa que fiz foi despedir-me do meu trabalho como leitor na Fox. O senhor Zanuck teria de passar sem mim. Pouco depois de deixar a Fox, eu e Ben vendemos outra história chamada Borrowed Hero à Monogram, um pequeno estúdio que fazia filmes de categoria B, e Dangerous Lady e Gambling Daughters à PRC. Por cada história e cada argumento recebíamos quinhentos dólares, que dividíamos entre nós. Seria despropositado estar a dizer que eram histórias memoráveis, mas pelo menos começamos a ser reconhecidos como escritores.
Leonard Fields, um produtor da Republic Studios, a primeira da lista dos filmes B, comprou-nos uma história chamada Mr. Distinct Attarney in the Cárter Case. Pela história e pelo argumento, nós dois recebemos a magnífica soma de seiscentos dólares.
O filme acabou por ser um êxito e Leonard Fields chamou-me:
- Estamos interessados em fazer um contrato convosco.
- Ótimo!
- Quinhentos dólares por semana.
- Para cada um?
- Para a equipe.
Trabalhamos os dois na Republic durante um ano a fazer guiões, até o nosso contrato chegar ao fim. No Natal, Leonard Fields mandou-nos chamar.
- Vocês estão a fazer um excelente trabalho. Tencionamos renovar o contrato.
- Isso são excelentes notícias, Leonard. O único problema é que eu e Ben pretendemos receber seiscentos dólares por semana.
Leonard Fields anuiu.
- Depois entro em contacto convosco. Nunca mais tivemos notícias de Leonard Fields.
Falei com Ray Crossett e perguntei-lhe porque é que ele ainda não tinha conseguido arranjar um contrato com uma das grandes empresas.
- Receio que os vossos créditos não sejam muito impressionantes. Teria mais hipóteses se nunca tivessem escrito nenhum desses filmes.
Assim, continuamos a escrever e a vender filmes de categoria B. Era uma forma de ganhar a vida.
Fui a casa pelo dia de Ação de Graças e foi maravilhoso rever Richard e os meus pais. Otto fez questão de convidar os vizinhos, para que eles pudessem ver o seu filho, que controlava Hollywood.
CAPÍTULO 11
Era maravilhoso estar de volta a casa. Richard crescera. Terminara o liceu e estava pronto para entrar na faculdade. A única coisa que ensombrou a minha visita a casa foi o fato de Natalie e Otto continuarem a brigar. E desta vez era Richard que era apanhado no meio.
Falei com eles sobre o assunto, mas o azedume entre eles era demasiado profundo para serem capazes de parar de discutir. Eram simplesmente incompatíveis.
Decidi que chegara o momento de levar Richard comigo para Hollywood. Eu e Ben vendíamos suficientes histórias para me poder sustentar a mim e ao meu irmão.
- Que achas de ires comigo para Hollywood? Perguntei. Ele olhava fixamente para mim.
- Estás a falar a sério?
- Claro que estou.
Fez-se um silêncio e em seguida ouviu-se um grito de tal forma poderoso que pensei que me ia romper os tímpanos.
Uma semana mais tarde, Richard mudou-se para a pensão de Grade e apresentei-o a todos os outros hóspedes. Nunca antes o vira tão feliz, e percebi o quanto sentíramos a falta um do outro.
Três meses depois de eu e Richard termos saído de Chicago, Natalie e Otto divorciaram-se. Fiquei um pouco incomodado, mas concluí que era o melhor para todos.
Uma manhã recebi um telefonema.
- Sidney?
- Sim.
- Olá, amigo, fala Bob Russell.
- Não só eu não era amigo dele como nunca antes ouvira aquele nome. Provavelmente um vendedor.
- Desculpe, mas não tenho tempo para... Comecei a dizer.
- Devias ter feito umas canções com Max Rich.
Por momentos fiquei sem saber o que dizer. Como é que ele sabia? Percebi imediatamente de quem se tratava.
- Sidney Rosenthal!
Bob Russell emendou:
- Vou até Hollywood para te ver.
- Ótimo!
Bob Russell chegou uma semana depois e foi ocupar o último quarto disponível na pensão de Gracie. Era maravilhoso voltar a vê-lo. Continuava entusiástico como sempre.
- Continuas a escrever canções? Perguntei.
- Podes apostar. E tu não devias ter desistido. Ralhou. Richard, que era do tipo gregário, já fizera amigos em Hollywood
Por vezes trazia-os até a pensão de Gracie e outras vezes era convidado para as casas deles.
Uma noite em que fomos convidados para um jantar, eu estava a tomar um duche e, quando me estiquei para apanhar o sabonete, a hérnia deu um sinal e caí ao meio do chão com dores horríveis. Fiquei de cama nos três dias seguintes. Concluí que, quer gostasse quer não, era uma coisa com que teria de viver para o resto da minha vida.
Uma noite, Natalie telefonou.
- Querido, tenho notícias para ti. Vou-me casar.
Fiquei encantado por ela. Desta vez esperava que ela fosse tratada como merecia.
- E quem é ele? Conheço-o?
- Chama-se Martin Leeb. É fabricante de brinquedos e é um amor.
- Parece-me muito bem. Quando é que o vou conhecer? Perguntei, entusiasmado.
- Nós vamos aí visitar-vos.
Quando contei as novidades a Richard ele ficou tão entusiasmado quanto eu.
O telefonema seguinte, na semana seguinte, veio de Otto:
- Sidney, era só para te dizer que me vou casar.
Aí sim. Fui apanhado de surpresa.
- Alguém que eu conheça?
- Não. Chama-se Ann Curtis. É muito boa pessoa.
- Ainda bem. Fico muito feliz por ti. Espero que sejas feliz.
- Eu sei que vou ser.
Tive algumas dúvidas.
Com Bob Russel conosco, era como se estivéssemos em casa. Trouxera com ele a última canção que escrevera.
- É uma canção de amor não correspondido. Vê o que consegues fazer com ela. Pediu Bob.
Toquei-a ao piano e comentei:
- É linda. Tive uma idéia. Há uma cantora que vai começar a atuar no próximo sábado num clube do East Side. Tenho a certeza que ela pode usar isto. Importas-te que lha mostre?
- Estás à vontade.
No dia seguinte, fui ao clube onde a cantora estava a ensaiar e mostrei-lhe a canção.
- Gosto. Dou-lhe cinquenta dólares. Foi a resposta dela.
- Aceito.
- Quando entreguei o dinheiro a Bob, este mostrou um enorme sorriso.
- Muito obrigado. Agora já sou um profissional.
Hollywood tinha todos os dias as suas temperamentais minitempestades, mas na Europa uma enorme tempestade estava em gestação. Começara em 1939 quando a Alemanha e a União Soviética invadiram a Polônia. Em seguida, a Inglaterra, a França e a Austrália declararam guerra à Alemanha. Em 1940, a Itália juntou-se à Alemanha e, neste momento, uma dúzia dos países europeus estavam em guerra. A América afirmara a sua neutralidade. Mas por pouco tempo.
No dia 7 de Dezembro de 1941, Pearl Harbour foi atacado pelos japoneses e, no dia seguinte, o presidente Franklin D. Roosevelt declarou guerra ao Japão.
Uma hora depois de Roosevelt ter declarado guerra, Louis B. Mayer, o diretor da Metro-Goldwyn-Mayer, que foi indicado pelo presidente da MGM Nicholas Schenk, convocou todos os seus produtores e realizadores mais importantes para uma reunião. Assim que todos se encontravam reunidos, Mayer disse com ar solene:
- Todos vocês já têm conhecimento do que se passou ontem em Pearl Harbour. Pois nós não vamos aceitar isso. Vamos lutar. E olhou em redor da sala. Sei que posso contar convosco para se juntarem a mim no apoio ao nosso presidente, o senhor Nicholas M. Schenk.
Ben, Bob e eu estávamos em idade de recrutamento e sabíamos que em breve seríamos convocados.
- Há uma unidade de instrução em filmes em Fort Dix, na Nova Jérsia, e eu vou-me alistar e ver se consigo entrar. Disse Ben.
Alistou-se como voluntário no dia seguinte e o Exército ficou muito satisfeito por recebê-lo. Uma semana depois estava a caminho do leste.
- O que fará? Perguntei a Bob.
- Ainda não sei. Sofro de asma. Não me vão aceitar no exército. Vou voltar para Nova Iorque e ver o que posso fazer para ajudar. E tu, que pensas fazer?
- Vou alistar-me no Air Corps.
Em 26 de Outubro de 1942, inscrevi-me no Army Air Corps.
Para que a minha inscrição fosse aceite, eram necessárias três cartas de recomendação de três pessoas importantes. Eu não conhecia ninguém importante. Comecei a escrever cartas aos membros do Congresso, a dizer-lhes que estava decidido a servir o meu país e que precisava da ajuda deles. Levei dois meses para conseguir finalmente reunir as três cartas.
O passo seguinte era marcar um encontro no Federal Building, na baixa de Los Angeles, para me submeter a um exame escrito. Havia cerca de duzentos candidatos na sala. O teste, que abrangia lógica, vocabulário, matemática e cultura geral, demorou quatro horas.
A parte da matemática escapou-me completamente. Como mudara tantas vezes de escola, a verdade é que nunca aprendera os seus princípios básicos. Falhei a maior parte das perguntas dessa parte e fiquei com a certeza que ia chumbar.
Três dias mais tarde recebi uma notificação para me apresentar no Air Corps, para fazer um exame médico. Para meu grande espanto, passara o teste escrito. Mais tarde fiquei a saber que só trinta candidatos de todo o grupo tinham sido aceites.
Fui mandado para um depósito de armas, na parte alta da cidade, para fazer o meu exame médico, com a certeza de que ia passar com distinção.
Quando o exame terminou, o médico perguntou:
- Tem alguns problemas de ordem física de que eu deva saber?
- Não, senhor... Mal acabei de dizer isto, lembrei-me da minha hérnia discal e interroguei-me se seria importante.
- Eu...
- Sim, diga?
Sabia que estava a pisar um terreno perigoso.
- Bom, eu tenho um pequeno problema, mas é de pouca importância. Tenho uma hérnia discal que de vez em quando me incomoda, só que...
Ele estava a escrever na minha ficha ”hérnia discal”. Fiquei a olhar, vi-o pegar num carimbo de borracha com a palavra ”INAPTO” em letras vermelhas.
- Espere! Pedi. Levantou o olhar para mim.
- Diga?
Eu não ia permitir que nada se atravessasse no meu caminho.
- Essa hérnia não me incomoda há muito tempo. Está curada. Nem sequer me lembro de quando foi a última vez que me incomodou. Eu só falei nela porque foi uma coisa que tive em tempos.
Eu não sabia o que estava a dizer, mas sabia que se ele carimbasse a minha ficha com o carimbo de tinta vermelha, eu estava acabado. Continuei a falar até que ele acabou por pousar o carimbo.
- Está bem. Se tem a certeza...
Na minha voz mais sincera, respondi:
- Doutor, tenho a certeza absoluta.
- Muito bem.
Eu ia entrar! Só faltava o exame aos olhos, e aí não havia problema.
Fui mandado a outro gabinete onde me deram dois cartões, cada um deles com o nome de um optometrista que podia aprovar a minha inscrição.
- Leve este cartão a um destes médicos. - Disseram-me - Quando tiver passado o seu exame oftalmológico, peça que o assinem. Depois os traga de volta.
Voltei para a pensão de Gracie e contei a Richard como as coisas estavam a correr bem. Tudo levava a crer que eu ia conseguir entrar para o Air Corps.
Richard ficou desolado por eu ir partir.
- Vou ficar aqui sozinho!
- A Gracie toma conta de ti. E não tarda nada vem aí a mãe e o Marty. De qualquer das maneiras, a guerra não vai durar muito tempo. Assegurei.
Sidney, o Profeta.
Na manhã seguinte fui ver o doutor Fred Severn, cujo nome constava do primeiro cartão. A sala de estar estava cheia de homens que aguardavam a vez para fazerem testes aos olhos. Sentei-me e ali fiquei durante uma hora. Por fim, lá fui conduzido ao gabinete do Dr. Severn.
- Sente-se.
Ele olhou para o cartão que lhe dei e acenou com a cabeça.
- Piloto?
- Sim, senhor.
- Bom, vejamos se tem a visão vinte/vinte que eles exigem. Conduziu-me a uma sala menor que tinha na parede um enorme cartaz. O doutor Severn escureceu a sala.
- Comece a ler de cima para baixo.
Era fácil, até que cheguei às duas últimas linhas. Não conseguia ler uma única letra. Mas com certeza que ter chegado ali tão perto devia bastar. As luzes acenderam-se.
O médico escrevia qualquer coisa num papel. Eu conseguira!
- Dê isto à recepcionista. Pediu.
- Muito obrigado, doutor.
Quando me encaminhava para a porta olhei para o cartão. O meu nome estava lá e, na parte inferior do cartão, o médico escrevera ”Inapto por razões de ordem física. Visão deficiente”. Assinado, Doutor Fred Severn.
Não podia acreditar. Não podia aceitar aquilo. Nada me ia impedir de entrar para o Air Corps.
Comecei a sair com o cartão na mão.
A recepcionista pediu:
- Senhor, importa-se de me dar o seu cartão? Continuei a andar, fingindo que não a ouvira.
- Senhor...
Eu já estava na rua.
Ainda tinha um médico a visitar. Mas como é que eu ia ter a certeza que ia conseguir passar no teste?
Uma hora mais tarde, estava no gabinete do meu optometrista habitual, o doutor Samuel Peters. Contei-lhe o que se passara.
- Para uma visão vinte/vinte explicou ele precisa ser capaz de ler todas as linhas.
- Há alguma forma de me ajudar a conseguir isso? Pensou durante uns momentos.
- Há, sim.
- Abriu uma das gavetas e tirou para fora um par de óculos com lentes que pareciam fundos de garrafa.
- O que é isso?
- Isto é o que vai conseguir fazer com que seja aceite no Air Corps.
- Como?
- Antes de fazer o seu próximo teste, use-os durante um bocado.
- Vão inibir a sua visão fazendo com que os seus olhos se tenham de esforçar para conseguir ver alguma coisa. Por isso, quando for fazer o teste, a sua visão estará melhor do que nunca.
- Excelente. Respondi. Apertei-lhe a mão, agradeci e saí. Marcara com o segundo médico, o Doutor Edward Gale, às dez da manhã do dia seguinte.
Entrei no átrio do edifício onde ele tinha o consultório e sentei-me num banco. Coloquei os óculos grossos e aguardei que efetuassem a sua magia.
Trinta minutos antes da minha hora, tirei os óculos e entrei na recepção do consultório do doutor Gale.
- Senhor Sheldon, o doutor está à sua espera para lhe fazer o teste. Disse a enfermeira.
Sorri com ar satisfeito.
- Muito obrigado.
Entrei no consultório e entreguei o cartão ao doutor Gale. Este olhou para ele e comentou:
- Air Corps? Sente-se.
O médico escureceu a sala e apareceu um quadro iluminado.
- Muito bem. Comece a ler do topo.
Havia um pequeno problema. Eu não conseguia ver uma única letra no quadro.
Ele continuava à espera.
- Pode começar.
Na primeira linha havia qualquer coisa que podia ser um A grande, mas não tinha a certeza. Resolvi arriscar.
A.
- Sim, continue.
Não conseguia fazer mais nada. Eu estava quase cego.
- Eu não consigo...
O médico olhava fixamente para mim.
- Qual é a linha seguinte?
- Eu... Eu não consigo ler.
- Está a brincar comigo? Ele estava zangado. Não consegue ler nenhuma daquelas linhas?
- Não, eu...
- E quer voar com o Air Corps? Esqueça! Pegou no cartão e começou a escrever.
A minha última hipótese tinha acabado de ir por água abaixo. Comecei a entrar em pânico. E gaguejei:
- Espere pedi. Não escreva nada agora. Ele olhou para mim, espantado.
- Doutor, o senhor não compreende. Há uma semana que não durmo. Tenho tido que tomar conta da minha mãe. Os meus olhos estão cansados. Não tenho andado bem. O meu tio preferido acabou de morrer. Tem sido horrível. Tem que me dar outra oportunidade.
Ele ouvia-me. Mas quando falou, disse:
- Lamento muito, mas não vejo como...
- Só uma oportunidade.
- Ele conseguia perceber o desespero na minha voz. Abanou a cabeça.
- Bom, podemos experimentar amanhã. Mas quanto a mim está a perder...
- Oh, muito obrigado! Cá estarei. Respondi, e corri de volta ao meu optometrista.
- Muito obrigado. Disse eu amargamente. E contei-lhe o que se passara no consultório do doutor Peters.
- Durante quanto tempo é que usou os óculos? Perguntou.
- Vinte ou trinta minutos.
- Só os devia ter usado durante dez minutos.
Agora é que ele dizia!
- Isto é muito importante para mim - Expliquei-lhe - Tenho de fazer qualquer coisa.
Sentou-se na cadeira por momentos a pensar.
- Ele escureceu a sala quando estava a ler o quadro?
- Sim.
- Ótimo.
Dirigiu-se a um armário e veio de lá a segurar um quadro.
- Oh, excelente. Eu vou decorá-lo e... Comecei a dizer.
- Não pode ser. Quadros diferente tem letras diferentes.
- Então, para quê...?
- O que vai fazer é o seguinte. Pratique neste quadro. Semicerre os olhos para ler as letras. Vai ajudá-lo a ver melhor. Faça-o até conseguir ler as letras das últimas linhas. No escuro ele não vai perceber o que está a fazer.
Eu estava céptico.
- Tem a certeza que...?
- Isto é consigo. Boa sorte.
Passei a noite toda a semicerrar os olhos para conseguir ler as letras todas do quadro. Parecia estar a resultar, mas eu não sabia muito bem como me iria comportar perante o doutor Gale.
Às dez da manhã do dia seguinte, estava de volta ao consultório do doutor Gale. Assim que ele me viu, começou a dizer:
- Não sei por que nos estamos a dar a este trabalho. Depois do que aconteceu ontem...
- Deixe-me experimentar. Suspirou.
- Muito bem.
Voltamos para a mesma sala e ele apagou as luzes.
- Ora então, queira começar.
Eu estava sentado na cadeira e semicerrei os olhos para absorver as letras do quadro. O doutor Peters tinha razão. Conseguia ver as letras claramente. Li tudo, incluindo a última linha. As luzes acenderam-se.
O doutor Gale olhava fixamente para mim, espantado.
- Eu não acredito. Nunca vi uma coisa assim – Comentou - Falhou algumas letras nas duas últimas linhas. Tem uma visão de vinte/ vinte e dois. Vamos a ver o que o Air Corps diz sobre isto. Assinou o cartão e devolveu-me.
De manhã, apresentei-me a um oficial do Exército, no edifício Federal. Ele olhou para o cartão e disse:
- Vinte/vinte e dois. Não é nada mau, mas não lhe podemos dar treino de combate. Para isso precisava ter uma visão vinte/vinte.
Fiquei chocado.
- Quer dizer que eu... Eu não vou poder...
- Digo-lhe o que pode fazer. Já alguma vez ouviu falar no War Training Service?
- Não, senhor.
- É um departamento novo do Army Air Corps. Costumava chamar-se Civil Air Patrol. No War Training Service, será treinado para levar aviões para a Europa ou para ser instrutor de voo. Mas não recebe treino de combate. Por acaso, estaria interessado?
- Sim, senhor. Afinal seria mesmo um piloto do Air Corps.
- Como não vai pertencer ao corpo normal do Air Corps, o uniforme terá de ser pago do seu bolso. Recebe um pagamento igual ao de um cadete e é-lhe dado um sítio para viver. Acha bem?
- Sim, senhor.
- O treino de voo será feito em Richfield, no Utah. Terá de se apresentar de segunda-feira a uma semana.
Nunca me sentira tão excitado.
Natalie veio à cidade com o marido e eu e Richard tivemos finalmente a possibilidade de conhecer Marty. Era baixo, forte, com cabelo grisalho e um rosto simpático. Gostei imediatamente dele. Jantamos todos e eu informei-os das novidades.
- Então, vais precisar de um uniforme. - Observou Marty - Muito bem, sendo assim vamos às compras.
- Não precisa de...
- Eu sei que não preciso, mas faço questão.
Como não havia regulamento a respeito dos nossos uniformes, Marty levou-me a um armazém do Exército e da Marinha e comprou-me um lindíssimo e muito bem cortado uniforme de oficial e um casaco de aviador em couro. Eu comprei um lenço branco para pôr ao pescoço, de forma a ficar o mais parecido possível com um ás da aviação.
Estava pronto para ajudar a América a ganhar a guerra.
CAPÍTULO 12
Richfield, no Utah, era uma pequena cidade com uma população de seis mil e quinhentos habitantes, rodeada pelas montanhas Monroe. Na rua principal havia um agradável hotel. De acordo com as instruções, nós, os cadetes, nos instalamos em nossos quartos e em seguida voltamos ao átrio. Éramos catorze ao todo. Estávamos no átrio há uns trinta minutos quando um homem alto, de cara rugosa e em uniforme entrou. Observou-nos.
- Já estão todos instalados?
- Sim, senhor. Respondemos em coro.
- Muito bem. Sou o capitão Anderson, o vosso instrutor chefe. O hotel fica a quinze minutos do aeroporto. Todas as manhãs um autocarro vem-vos buscar às seis em ponto. Durmam bem. Vão precisar. E foi-se embora.
Na manhã seguinte, um autocarro do Exército veio-nos buscar e levou-nos até ao campo de aviação. Era muito menor do que estava à espera.
O capitão Anderson aguardava-nos.
- Sigam-me. Ordenou.
Dirigiu-se a um edifício perto e nós seguimo-lo e entramos. O edifício fora transformado numa escola, os quartos em salas de aula. Quando nos sentamos, o capitão Anderson começou a falar:
- Vocês vão embarcar num curso de voo de seis meses. - Fez uma pausa - Mas, como estamos em guerra, vamos ter de fazê-lo em três. Terão aulas de leitura de mapas, aerodinâmica, meteorologia, navegação, planejamento de voos de navegação de longa distância e teoria mecânica. Vão aprender código Morse e a dobrarem e arrumarem os vossos pára-quedas. Cada aula terá um instrutor diferente. Dúvidas?
- Não, senhor.
A nossa primeira aula foi de aerodinâmica. Durou uma hora. Quando acabou, o instrutor disse:
- Vou dar-vos os vossos manuais de aerodinâmica. Quero que respondam às perguntas de cada CAPÍTULO, da um a vinte. Esse é o vosso trabalho de casa. Amanhã me tragam as respostas. Podem sair.
Folheei o manual. Depois de cada CAPÍTULO havia longas perguntas Pelos vistos, ia ficar acordado até bem tarde.
A aula seguinte foi de navegação. Uma hora mais tarde, quando a aula terminou, o instrutor disse:
- Levem os vossos manuais e trabalhem as páginas um a cinquenta. Respondam a todas as perguntas.
Olhamos uns para os outros. Começava a ser uma carga bem pesada.
A terceira aula foi de teoria mecânica. Era muito técnica e tirei imensos apontamentos. Quando a aula finalmente acabou, o instrutor disse:
- O vosso trabalho de casa é ler o texto e responder às perguntas da página um até a página cento e vinte.
Por pouco não desatei a rir às gargalhadas. Não havia hipótese de conseguirmos lidar com esta montanha de trabalhos de casa e ainda nem tínhamos chegado ao fim das aulas do dia. A última que tivemos foi de dobragem de pára-quedas, uma tarefa complicada e aborrecida, difícil de aprender no final de um longo dia.
Começávamos a perceber o que o capitão Anderson queria dizer com ”é um curso de seis meses, mas vamos ter de fazê-lo em três”. Imagino que todos os cadetes ficaram acordados até às quatro ou cinco da manhã a tentar fazer o trabalho de casa.
Todos os dias a rotina era a mesma. Acabávamos as aulas e íamos para o campo de aviação para conhecer os nossos aviões. Eu ia voar Piper Cubs, aviões a hélice, com o instrutor e o aluno sentados lado a lado.
Todos estávamos ali porque queríamos aprender a voar, mas o trabalho de casa tornou-se de tal forma pesado, mantendo-nos acordados até às três ou quatro da manhã todas as noites, que todos ansiávamos que os voos fossem adiados, de forma a conseguirmos terminar o nosso trabalho.
Eu ficara com o capitão Anderson. Este observou enquanto eu dobrava o meu pára-quedas para o meu primeiro voo e o punha às costas. Subimos para o avião.
Observa tudo o que faço avisou.
Observei enquanto ele descolava com toda a facilidade.
- Há duas coisas muito importantes que tens sempre de ter em conta. A primeira é girar. Mantém sempre a cabeça a girar, a olhar em redor para veres se há outros aviões perto de ti. A segunda é teres a velocidade coordenada com a altitude, para nunca correres o risco de te despenhares.
Enquanto subíamos cada vez mais, fui vendo que o campo de aviação estava completamente rodeado por montanhas. Assim que chegamos aos sete mil e quinhentos pés de altitude, o capitão Anderson disse:
- Agora vamos fazer uns parafusos.
E o avião começou a descer em círculos rápidos. Foi nessa altura que soube que tinha um problema. Enjoei e vomitei.
O capitão Anderson olhou para mim repugnado. Eu estava corado de vergonha.
No dia seguinte fizemos outros exercícios e vomitei outra vez.
Quando aterramos, o capitão Anderson perguntou:
- Tomou pequeno almoço esta manhã?
- Sim, senhor.
- De hoje em diante nunca mais comes nada até a hora de almoço. Isso significava que não podia comer nada entre o jantar da véspera e a uma e meia da tarde seguinte.
Na primeira vez que o capitão Anderson me passou os comandos, todos os enjoos me passaram imediatamente. Daí em diante, sempre que eu pilotava o avião, sentia-me maravilhosamente bem, concentrado naquilo que estava a fazer.
Todas as semanas telefonava a Richard e a Natalie e Marty, para que soubessem que eu estava bem. Tudo me parecia bem e afiancei-lhes que ia ser o grande ás da Segunda Grande Guerra.
Um dia, Richard telefonou:
- Tenho notícias para ti, Sidney. Acabei de me alistar.
Por um instante, o meu coração parou. Ele era demasiado novo para... E de repente percebi que ele já não era um rapazinho.
- Richard, estou orgulhoso de ti. Respondi.
Uma semana mais tarde, ele estava a caminho da caserna.
Era vulgar, durante o treino de voo, o capitão Anderson desligar a ignição, sem qualquer pré aviso.
- O teu motor foi-se, Sidney. Faz uma aterragem de emergência.
Olhei para baixo. Não havia onde aterrar. Mas percebi pela expressão dele que não era isso que queria ouvir. Fui perdendo altitude aos POUCOS, até que avistei um lugar aceitável para aterrar.
Quando me preparava para fazê-lo, o capitão ligou a ignição:
- Está bom. Agora sobe.
Um dia, o capitão Anderson disse:
- Sheldon, está pronto para voar sozinho. - Fiquei muito excitado - Assegura-te sempre que a altitude e a velocidade estão coordenadas.
Anuí, apertei o pára-quedas e entrei pela primeira vez sozinho no avião. Os outros grupos de voo observavam. Comecei a taxiar pela pista e, momentos mais tarde, estava no ar. Foi uma sensação fantástica, uma sensação de liberdade. Como se tivesse quebrado os laços com a terra e mergulhado num mundo novo. Uma sensação de não enjoado.
Atingi a altitude padrão de sessenta e um mil pés e dei início às minhas manobras de rotina.
Recebera ordens para me manter no ar durante pelo menos vinte minutos. Olhei para o relógio. Estava na altura de mostrar aos que estavam lá em baixo o que era uma aterragem perfeita. Empurrei a manete de comando para frente e iniciei a descida. Via os homens lá em baixo, no campo de aviação, à minha espera.
As regras de aterragem são rígidas e as velocidades para determinadas altitudes foram-nos enfiadas na cabeça. Enquanto me aproximava do chão, olhei para o altímetro e de repente percebi que não me lembrava a que velocidade devia estar. A verdade é que tudo o que aprendera sobre voar desaparecera completamente da minha cabeça.
Em pânico, puxei de novo a manete para ganhar altitude e evitar esmagar-me no chão. Freneticamente, tentei lembrar-me da fórmula para altitude e velocidade, mas o meu cérebro estava vazio. Se cometesse um erro na aterragem, despenhar-me-ia e morreria. Voei em círculos, a tremer, enquanto tentava recordar o que devia fazer. Pensei em saltar de pára-quedas, mas sabia que o Air Corps não se podia dar ao luxo de perder um avião. E a verdade é que não podia ficar lá em cima para sempre. Ia chegar uma altura em que tinha mesmo que aterrar.