I

Não trouxe nada comigo, nem sequer um casaco. Desnecessário — disseram. Deixaram-me ficar com a minha camisola preta: passaria. Mas tive de lutar pela camisa. Disse que aprenderia a prescindir gradualmente das coisas. Na própria rampa, sob o ventre da nave, onde nos encontrávamos empurrados pela multidão, Abs estendeu-me a mão, com um sorriso compreensivo:

— Agora calma, hem?

Lembrar-me-ia. Não lhe esmaguei os dedos. Estava perfeitamente calmo. Ele queria dizer mais qualquer coisa, mas eu poupei-lhe a perda de tempo: virei-lhe as costas, como se não tivesse notado nada, subi a escada e entrei. A hospedeira conduziu-me mesmo para a fente, através das filas de lugares. Eu não tinha querido um compartimento isolado. Ter-lhe-iam dito? O meu lugar desdobrou-se silenciosamente. Ela ajustou-lhe as costas, sorriu-me e afastou-se. Sentei-me. As almofadas eram tão macias que nos afundávamos nelas, como em toda a parte. As costas do meu lugar eram tão altas que quase não via os outros passageiros. Já me habituara a aceitar as cores vivas do vestuário das mulheres, mas, no caso dos homens, ainda suspeitava, irracionalmente, de afectação, e acalentava a secreta esperança de encontrar algum normalmente vestido — o que era um deplorável reflexo. As pessoas sentaram-se rapidamente; ninguém tinha bagagem. Nem sequer uma pasta ou um embrulho. Nem mesmo as mulheres, que pareciam mais do que os homens. À minha frente iam duas mulatas de peles verde-papagaio, tufadas como penas — aparentemente, aquela espécie de estilo pássaro estava na moda. Mais adiante, um casal com uma criança. Depois das ofuscantes luzes de selénio dás plataformas e dos túneis, e da insuportavelmente berrante e incandescente vegetação das ruas, a luz do tecto côncavo parecia, a bem dizer, uma suave incandescência. Como não sabia que fazer com as mãos, pu-las nos joelhos. Já estava toda a gente sentada. Oito filas de lugares cinzentos, uma brisa perfumada de abeto, um abafar das conversas. Esperava qualquer prenúncio acerca do lançamento, quaisquer sinais, a ordem para apertar os cintos, mas não aconteceu nada. Através do tecto fosco começaram a mover-se sombras ténues da frente para a retaguarda, como recortes de papel de pássaros. «Que diabo vêm a ser estes pássaros?», perguntei a mim mesmo. «Significarão alguma coisa?» Estava entorpecido da tensão para tentar não fazer nada errado. Havia já quatro dias. Começara logo no primeiro momento. Ficava invariavelmente para trás de tudo quanto acontecia e o esforço constante para compreender a mais simples conversa ou situação transformava essa tensão em algo horrivelmente semelhante ao desespero. Tinha a certeza de que acontecia o mesmo aos outros, mas não falávamos disso, nem mesmo quando estávamos juntos, sozinhos. Limitávamo-nos a gracejar acerca do nosso músculo, da força excessiva que permanecia em nós — e na verdade precisávamos de estar atentos a esse aspecto: ao princípio, quando me queria levantar, saltava direito ao tecto, e qualquer objecto que segurasse parecia feito de papel, vazio. Mas aprendi depressa a controlar o corpo. Ao cumprimentar as pessoas, já lhes não esmagava os dedos. Era uma coisa fácil de conseguir, mas, infelizmente, a menos importante.

O meu vizinho da esquerda — corpulento, bronzeado, com olhos que brilhavam de mais (de lentes de contacto?) — desapareceu de súbito. Os lados do seu lugar expandiram-se e subiram, a formar uma espécie de casulo com o formato de um ovo. Algumas outras pessoas desapareceram em cubículos semelhantes. Sarcófagos inchados. Que faziam eles? Mas eu encontrava coisas desse género a toda a hora e tentava não olhar embasbacado, desde que me não dissessem directamente respeito. Por curioso que pareça, tratava cora indiferença as pessoas que ficavam boquiabertas a olhar para nós, ao saberem quem éramos. O seu espanto não me importava muito, embora apercebesse imediatamente de que não havia nele a ínfima admiração. Quem despertava a minha antipatia eram os que olhavam por nós, o pessoal da Adaptação. Sobretudo o Dr. Abs, porque me tratava como um médico trataria um paciente anormal, fingindo — e muito bem — que estava a lidar com alguém perfeitamente normal. Quando isso se tomava impossível, gracejava. Estava farto da sua abordagem directa e da sua jovialidade. Se o interrogassem a tal respeito (ou, pelo menos, eu assim pensava), o homem da rua diria que Olaf ou eu éramos semelhantes a ele, não nos consideraria assim tão diferentes dele; o que era invulgar era apenas a nossa experiência passada. Mas o Dr. Abs, e todos os outros funcionários da Adaptação, estavam melhor informados, sabiam que nós éramos, decididamente, diferentes. Essa diferença não constituía nenhuma distinção, mas sim, apenas, uma barreira à comunicação, à mais simples troca de palavras, irra! ao mero abrir de uma porta, uma vez que os puxadores tinham deixado de existir havia… enfim, havia 50 ou 60 anos!

A partida foi inesperada. Não houve absolutamente nenhuma mudança na gravidade, nenhum som chegou ao interior hermeticamente fechado, as sombras continuaram a flutuar serenamente no tecto. Deve ter sido um hábito estabelecido há muitos anos, um velho instinto, que me disse que em dado momento estávamos no espaço. Pois tratou-se de uma certeza e não de uma suposição.

Mas havia mais qualquer coisa que me ocupava. Estava meio deitado, com as pernas estendidas, imóvel. Tinham-me deixado fazer a minha vontade com muita facilidade. Nem Oswann se opusera muito à minha decisão.

Os argumentos em contrário que ouvira de Abs tinham sido inconvincentes — eu próprio poderia ter arranjado melhores. Só que tinham insistido numa coisa: que cada um de nós voasse separadamente. Nem sequer tinham ficado aborrecidos comigo por ter levado Olaf a rebelar-se (sim, porque se não fora eu ele teria sem dúvida nenhuma concordado em ficar mais tempo). Isso tinha sido estranho. Eu esperara complicações, qualquer coisa que estragasse o meu plano no último momento, mas não acontecera nada e ali estava, a voar. Aquela viagem decisiva terminaria dentro de 15 minutos.

Era evidente que a minha intenção, assim como a maneira como me apresentara perante eles para defender uma partida antecipada, os não surpreendera. Deviam ter catalogada uma reacção desse tipo, devia tratar-se de um padrão de comportamento característico de um cajmeirão como eu, designado por um número de série apropriado nas suar tabelas psicotécnicas. Tinham-me autorizado a voar. Porquê? Porque a experiência lhes dissera que não conseguiria desenvencilhar-me sozinho? Mas como poderia isso ser, se toda aquela fuga para a «independência» envolvia voar de um terminal para outro, onde alguém da secção terrestre da Adaptação estaria à minha espera e tudo quanto eu teria de fazer seria encontrá-lo num lugar antecipadamente combinado?

Aconteceu qualquer coisa. Ouvi vozes que se erguiam. Debrucei-me do meu lugar. Diversas filas à minha frente uma mulher empurrou a hospedeira que, com um movimento lento e automático, como que resultante do em purrão — embora este não tivesse sido assim tão forte —, recuava pela coxia gbaixo, enquanto a mulher repetia: «Não consinto! Não deixes aquilo tocar-me!» Não pude ver a cara de quem falava. O companheiro puxava-lhe o braço e dizia qualquer coisa para a acalmar. Qual seria o significado daquela pequena cena? Os outros passageiros não lhe ligaram a mínima importância. Pela centésima vez senti-me possuído por um sentimento de incrível alienação. Levantei a cabeça e olhei para a hospedeira, que parara a meu lado e sorria como antes. Não se tratava de um sorriso meramente exterior, de polidez facial, de um sorriso destinado a ocultar um incidente desagradável. Ela não fingia estar calma: estava de facto calma.

— Deseja beber alguma coisa? Prum, extran, morr, cidra?

Tinha uma voz mèlodiosa. Abanei a cabeça. Desejei dizer-lhe qualquer coisa agradável, mas só me ocorreu a pergunta estereotipada:

— Quando aterramos?

— Dentro de seis minutos. Deseja comer alguma coisa? Não precisa de ter pressa. Pode ficar depois de termos aterrado.

— Não, obrigado.

Afastou-se. No ar, mesmo defronte da minha cara, contra as costas do lugar da minha frente, acendeu-se a palavra estrato, como se tivesse sido escrita pela ponta incandescente de um cigarro. Inclinei-me para a frente, para ver de onde vinha o letreiro, e encolhi-me. A parte de trás do meu lugar acompanhou o movimento dos meus ombros e segurou-me elasticamente. Eu já sabia que o mobiliário se moldava a cada mudança de posição, mas esquecia-me constantemente. Não era agradável. Dava a impressão de CâSweiv que alguém vigiava todos os meus movimentos. Quis regressar à posição anterior, mas aparentemente exagerei: o lugar interpretou-me mal e estendeu-se como uma cama. Levantei-me de um pulo. Aquilo era idiota! Mais domínio. Sentei-me, finalmente. As letras encarnadas de estrato tremeram e transformaram-se noutras: terminal. Nenhuma sacudidela, nenhum aviso, nenhum apito. Nada. Uma voz distante ecoou como a cometa de um postilhão, quatro portas ovais abriram-se ao fundo da coxia e entrou de jacto na nave um ruído que se sobrepôs a todos os outros, como o do mar, e abafou por completo as vozes dos passageiros que se levantavam dos seus lugares. Permaneci sentado enquanto os outros saíam — uma fila de silhuetas que pareciam flutuar diante das luzes exteriores, verdes, lilases, purpúreas… Um verdadeiro baile de máscaras. Depois desapareceram e eu levantei-me. Maquinalmente, endireitei a camisola. Não sabia porquê, mas sentia-me estúpido com as mãos vazias. Pela porta aberta entrava ar mais fresco. Voltei-me. A hospedeira estava parada junto da parede divisória, sem lhe tocar com as costas. Tinha no rosto o mesmo sorriso tranquilo, dirigido às filas de lugares vazios que, por si mesmos, começavam a enrolar-se, a dobrar-se como flores carnudas, Uns mais depressa, outros mais devagar. Esse era o único movimento que acompanhava o rugido prolongado e circundante que continuava a jorrar pelas aberturas ovais e recordava o mar. «Não deixes aquilo tocar-me!» De súbito, pareceu-me que no sorriso dela havia algo errado. Disse-lhe, da saída:

— Adeus…

— Entendido.

Não apreendi logo o significado daquela resposta, tão peculiar nos lábios de uma bonita jovem, pois ouvi-a quando estava de costas voltadas, meio saído da porta. Fiz menção de apoiar o pé num degrau, mas não havia degrau nenhum. Entre o casco de metal da nave e a orla da plataforma escancarava-se uma fenda com um metro de largura. Apanhado em desequilíbrio, desprevenido para tal armadilha, dei um salto desajeitado e, em pleno ar, senti um fluxo de força invisível apoderar-se de mim, pareceu-me que vindo de baixo, de tal modo que flutuei através do vácuo e fui suavemente depositado numa superfície branca, que cedeu elasticamente. Durante o salto, devia ter tido no rosto uma expresão nada inteligente, pois vi postos em mim diversos olhares divertidos — ou assim me pareceram. Virei-me rapidamente e caminhei ao longo da plataforma. O foguetão em que chegara repousava numa cavidade profunda, separado da orla das plataformas por um abismo desprotegido. Aproximei-me desse espaço vazio, como quem não quer a coisa, e senti pela segunda vez uma resistência invisível que me impediu de atravessar a fronteira branca. Desejei localizar a fonte dessa força peculiar, mas de súbito, como se acordasse, lembrei-me de uma coisa: estava na Terra.

Fui alcançado por uma onda de peões. Empurrado, andei para a frente, na multidão. Precisei de um momento para me aperceber realmente das dimensões do átrio. Mas seria tudo um átrio? Não havia paredes: uma cintilante, branca e alta explosão de alas incríveis; entre elas, colunas, colunas que não eram feitas de qualquer substância, mas sim de entontecedor movimento. Esguichando para cima, enormes fontes de um líquido mais denso do que a água, iluminado pelo interior por projectores coloridos… Seria? Não… túneis verticais de vidro através dos quais subia velozmente uma sucessão de veículos pouco nítidos. Senti-me absolutamente confuso. Constantemente empurrado pelas turbas apressadas, tentei abrir caminho para qualquer espaço vazio. Mas ali não havia espaços vazios. Como era uma cabeça mais alto do que quantos me rodeavam, pude ver que o foguetão vazio se estava a afastar… não éramos nós que deslizávamos para a frente com toda a plataforma. Em cima brilhavam luzes fortes e, nelas, as pessoas cintilavam e refulgiam. A superfície plana em que nos encontrávamos comprimidos começou a subir e eu vi, em baixo, ao longe, faixas bancas, duplas, cheias de gente e hiantes fendas negras ao longo de naves inertes — pois encontravam-se ali dúzias de naves como a nossa. A plataforma móvel descreveu uma curva, acelerou e continuou a subir para níveis mais altos. Ruidosas e agitando o cabelo dos que estavam parados com fortes rajadas de vento, passavam velozmente, como que em impossíveis (por não terem, absolutamente, nenhum apoio) viadutos, sombras ovais trémulas de velocidade, arrastando atrás de si longas tiras de chamas, as suas luzes de sinalização. Depois, a superfície que nos transportava começou a dividir-se ao longo de imperceptíveis costuras. A minha faixa passou por um interior cheio de pessoas de pé e sentadas, rodeadas por uma multidão de minúsculos clarões, como se estivessem entretidas a lançar fogo de vistas colorido.

Não sabia para onde olhar. À minha frente estava um homem que vestia qualquer coisa fofa, como peles, mas que, quando tocada pela luz, opalescia como metal. Levava pelo braço uma mulher de escarlate. O vestuário de lã era todo em grandes olhos, como os ocelos dos pavões, mas que pestanejavam. Não se tratava de nenhuma ilusão, os olhos do vestido dela abriam-se e fechavam-se, realmente. A faixa onde me encontrava, atrás do referido casal e entre uma dúzia de outras pessoas, adquiriu velocidade. Entre superfícies de vidro branco-fumo abriram-se passeios coloridos e iluminados com tectos tansparentes, tectos continuamente pisados por centenas de pés, no andar de cima. O rugido circundante ora alastrava, ora ficava confinado, à medida que milhares de vozes humanas e sons — sem significado para mim, cheios de significado para eles — eram engolidos por cada túnel sucessivo daquela viagem, cujo destino eu ignorava. Ao longe, o espaço circundante continuava a ser trespassado pelos sulcos de veículos para mim desconhecidos — aeronaves, provavelmènte, já que de vez em quando subiam ou desciam, a descrever espirais no espaço, de tal modo que eu esperava automaticamente assistir a um terrível despenhamento, pois não via fios-guia nem carris, que existiriam no caso de se tratar de comboios elevados. Quando os foscos ciclones de movimento se interrompiam por instantes, por trás deles emergiam, majestosamente lentas, imensas superfícies cheias de gente, como estações voadoras, que seguiam em várias direcções, passavam umas pelas outras, subiam e pareciam fundir-se entre si por truques de perspectiva. Era difícil descansar os olhos em qualquer coisa que não estivesse em movimento, pois a arquitectura de todos os lados parecia consistir somente em movimento, em mudança, e até o que eu iniciamente tomara por um tecto abobadado eram apenas patamares sobrepostos, patamares que cediam o lugar a outros patamares e níveis mais elevados. De súbito, um vivo clarão purpúreo, como se um incêndio atómico tivesse deflagrado algures, muito longe, no coração do edifício, filtrou-se através do vidro dos tectos, daquelas misteriosas colunas, e foi reflectido pelas superfícies prateadas. Foi como sangue a correr para todos os cantos, para os interiores das galerias que passavam e para as feições das pessoas. O verde dos néons incessantemente a pulsar tornou-se deslavado; o tom leitoso dos arçobolantes, parabólicos ficou rosado. Naquela súbita saturação do ar de vermelho havia como que um presságio de catástrofe, ou pelo menos assim me pareceu; mas ninguém prestou a mínima atenção à mudança e eu nem saberia dizer quando se dissipou.

Aos lados da nossa rampa apareceram revoluteantes círculos verdes, como anéis de néon suspensos no ar, e nessa altura algumas das pessoas desceram para o desdobramento de outra rampa ou de outro caminho que se aproximava. Reparei que se podia passar livremente pelas linhas verdes daquelas luzes, como se elas não fossem materiais.

Durante um bocado, deixei-me ser transportado pelo passadiço branco, até me acudir a ideia de que talvez já estivesse fora da estação e aquele fantástico panorama de vidro inclinado que parecia sempre na eminência de voo fosse de facto a cidade — e de que a cidade que eu deixara já só existia na minha memória.

— Desculpe… — murmurei, e toquei no braço do homem vestido de peles. — Onde estamos?

Olharam-me ambos. Os seus rostos, quando os levantaram, apresentaram uma expressão assustada. Acalentei a ténue esperança de que isso se devesse apenas à minha altura.

— Estamos no poliduto — respondeu o homem. — Qual é o seu desvio?

Não compreendi.

— Estamos… ainda estamos na estação?

— Obviamente — respondeu-me o homem, com certa cautela.

— Mas… onde fica o Círculo Interior?

— Já o deixou passar. Agora terá de retroceder.

— O rast de Merid seria melhor — alvitrou a mulher, e todos os olhos do seu vestido pareceram fitar-me com desconfiança e espanto.

Rast? — repeti, desamparado.

— Ali. — Ela apontou para uma elevação desocupada, com lados às riscas pretas e prateadas e que parecia o casco de um navio pintado de modo peculiar e deitado de lado.

Tudo isso era visível através de um círculo verde que se aproximava. Agradeci ao casal e saí do passadiço, provavelmente onde não deveria, pois o impulso fez-me tropeçar. Recuperei o equilíbrio, mas senti-me rodopiar de tal maneira que não soube em que direcção ir. Pensei no que deveria fazer, mas, entretanto, o meu ponto de transferência desviara-se consideravelmente do monte preto e prateado que a mulher me mostrara e que não consegui encontrar. Como a maioria das pessoas que me cercavam se dirigia para uma rampa a subir, fiz o mesmo. Vi nela um gigantesco letreiro a arder no ar: DUCTO CENT. As restantes letras de ambos os lados não eram visíveis devido à própria magnitude. Silenciosamente, fui conduzido a uma plataforma com quase um quilómetro de comprimento, da qual estava a partir um veículo em forma de fuso, que mostrou ao elevar-se uma base sulcada de luzes. Mas talvez aquela forma de Leviatão fosse a plataforma e eu estivesse no rasl… Nem sequer havia ninguém a quem perguntar, pois a área que me cercava estava deserta. Devia ter metido pelo caminho errado. Uma parte da minha plataforma tinha construções atarracadas, sem paredes à frente. Aproximei-me e encontrei cubículos baixos e fracamente iluminados, nos quais estavam séries de máquinas pretas que tomei por carros. Mas quando as duas mais próximas emergiram e. sem que eu tivesse tempo de recuar, passaram por mim a uma velocidade tremenda, vi. antes de desaparecerem no fundo de vertentes parabólicas, que não tinham rodas, nem janelas, nem portas. Eram aerodinâmicos, como imensos pingos pretos de líquido. Fossem carros ou não fossem, pensei, de qualquer modo aquilo parecia uma espécie de parque de estacionamento. Dos rasts? Achei melhor esperar que aparecesse alguém e acompanhá-lo. Pelo menos, aprenderia alguma coisa. A minha plataforma ergueu-se ligeiramente, como a asa de um aeroplano impossível, mas permaneceu vazia; só ali havia as máquinas pretas que emergiam singularmente ou diversas ao mesmo tempo dos seus covis metálicos e partiam a grande velocidade, sempre na mesma direcção. Desci mesmo até à aresta da plataforma, até sentir de novo aquela força invisível e elástica, que assegurava uma segurança completa. A plataforma estava realmente suspensa no ar. não apoiada em coisa nenhuma. Levantei a cabeça e vi muitas outras iguais, a pairar, imóveis no espaço, do mesmo modo. com as suas grandes luzes apagadas. Algumas, aonde estavam a chegar veículos, tinham as luzes acesas. Mas aqueles foguetões, ou projécteis, não eram como o que me trouxera de Luna.

Fiquei ali um bocado, até notar, no fundo de alguns passadiços mais distantes — embora não soubesse se eram reflexos, em espelhos, do meu ou realidade —, letras de fogo a deslocar-se sistematicamente através do ar: SOAMO SOAMO SOAMO, uma pausa, uma espécie de clarão azulado e depois NEONAX NEONAX NEONAX. Devia tratar-se dos nomes de estações ou, provavelmente, do anúncio de produtos. De qualquer modo, não me diziam nada.

«Já é mais que tempo de me encontrar com o tal tipo», pensei. Girei nos calcanhares e, vendo um passadiço seguir na direcção oposta, passei para ele. Afinal, tratava-se do nível errado, não era sequer o átrio que eu deixara: percebi-o pela ausência das enormes colunas. No entanto, elas podiam ter ido para qualquer lado… Entretanto, já tudo me parecia possível.

Encontrei-me numa floresta de fontes; mais adiante encontrei uma sala branca e rosa cheia de mulheres. Ao passar, estendi a mão, sem pensar, para o jacto de uma fonte iluminada, talvez por ser agradável encontrar alguma coisa um bocadinho familiar. Mas não senti nada, a fonte não tinha água. Passados momentos pareceu-me cheirar flores. Levei a mão ao nariz. Tinha o cheiro de mil sabonetes perfumados ao mesmo tempo. Instintivamente. esfreguei a mão nas calças. Encontrava-me parado defronte éa sala cheia de mulheres, só mulheres. Pareceu-me tratar-se de um lavabo, mas não tinha nenhuma maneira de o saber. Como preferi não perguntar, afastei-me. Um jovem, vestindo qualquer coisa que dava a impressão de lhe terem derramado por cima mercúrio que solidificara, tufado nos braços e justo nos quadris, conversava com uma rapariga loura que estava encostada à taça de uma fonte. A rapariga, com um vestido simples de cores vivas, o que me encorajou, segurava um ramo de flores rosa-pálido. Com o rosto mergulhado nas flores, sorria ao rapaz com os olhos. No momento em que parei diante deles e abri a boca para falar, vi que ela estava a comer as flores. A voz fugiu-me. Olhou para mim, a mastigar calmamente as pétalas delicadas, e os seus olhos ficaram como que petrificados. Eu, porém, já estava habituado a isso e perguntei onde ficava o Círculo Interior.

O rapaz pareceu-me desagradavelmente surpreendido, zangado mesmo, por alguém ter interrompido o seu tête-à-tête. Eu devia ter desrespeitado qualquer regra da boa educação. Ele olhou-me de alto a baixo, como se esperasse encontrar andas que justificassem a minha altura. Não disse uma palavra.

— Olhe, ali! — gritou a rapariga. — O rast no vuk, o seu rast. Ainda o apanha, corra!

Desatei a correr na direcção indicada, mas sem saber para quê — ainda não fazia a mínima ideia do aspecto do maldito rast — e, ao fim de uns dez passos, vi descer de muito alto um funil prateado, da base de uma das enormes colunas que tanto me tinham admirado. Tratar-se-ia de colunas voadoras? Para o objecto corria gente de todas as direcções. Nisto, choquei com alguém. Não perdi o equilíbrio, fiquei apenas specadfl, mas a outra pessoa, um robusto indivíduo vestido de cor de laranja, caiu e vi acontecer-lhe algo incrível: o seu casaco de peles mirrou debaixo dos meus olhos, esvaziou-se como um balão furado! Continuei parado, estupefacto, incapaz de murmurar ao menos um pedido de desculpa. Ele levantou-se e lançou-me um olhar furioso, mas não disse nada. Virou-se e afastou-se, tocou com os dedos em qualquer coisa, no peito… e o seu casaco encheu-se de novo e iluminou-se!

Entretanto, o lugar que a rapariga me apontara ficara deserto. Depois daquele incidente desisti de procurar rasts, o Círculo Interior, duetos e desvios. Resolvi sair da estação. Até então, a experiência não me encorajava a abordar transeuntes; por isso, segui ao acaso uma seta azul-celeste que apontava para cima. Sem qualquer sensação especial, o meu corpo passou através de dois letreiros luminosos que brilhavam no ar: CIRCUITOS LOCAIS. Cheguei a uma escada rolante onde se encontravam algumas pessoas. O nível seguinte era de bronze escuro e sulcado de veios com pontos de exclamação dourados. Junções fluidas de tectos e paredes côncavas.

Corredores sem tecto, envoltos em cima num pó brilhante. Pareceu-me que me estava a aproximar de instalações habitacionais de qualquer espécie, pois a área tinha o ar de um sistema de gigantescos átrios de hotéis — guichés de caixas, tubos de níquel ao longo das paredes, recessos com empregados… Talvez fossem escritórios para troca de moeda ou um posto de correios. Continuei a andar. Já tinha quase a certeza de não ser aquele um caminho para qualquer saída e de (a julgar pela extensão da subida) me encontrar na parte elevada da estação. No entanto, continuei a seguir na mesma direcção. Um vazio inesperado, painéis cor de framboesa com estrelas cintilantes, séries de portas. A mais próxima estava aberta e eu olhei para dentro. Um homem forte e de ombros largos olhou-me do lado oposto: eu próprio, num espelho. Abri mais a porta. Porcelana, canos prateados, níquel. Lavabos.

Senti uma pequena vontade de rir, mas de modo geral não me perturbei. Voltei-me rapidamente: outro corredor, faixas brancas como leite a descer. O corrimão da escada rolante era macio, tépido. Não contei os andares por que passei. Mais e mais gente que parava defronte de caixas de esmalte que saíam da parede a cada passo. Tocavam com um dedo e caía-lhes na mão qualquer coisa quemetiam na algibeira antes de continuarem o seu caminho. Não sei porquê, fiz exactamente a mesma coisa que o homem de casaco solto, cor de violeta, que ia à minha fiente: premi uma chave com uma pequena depressão para a ponta do dedo e caiu-me na mão um tubo colorido, translúcido e ligeiramente quente. Sacudi-o e cheguei-o a um olho. Qualquer espécie de pílulas? Não. Um frasquinho? Não tinha rolha. Para que servia? Que faziam as outras pessoas? Metiam o objecto nas algibeiras. No distribuidor lia-se uma palavra: largan. Fiquei parado. Fui empurrado. Senti-me de súbito como um macaco a quem tivessem dado uma caneta de tinta permanente ou um isqueiro. Apoderou-se de mim uma cólera cega. Cerrei os dentes, semicerrei os olhos e, de ombros inclinados para a frente, juntei-me à multidão de peões. O corredor alargou e transformou-se num átrio. Letras luminosas: REAL AMMO REAL AMMO.

Por cima da cabeça das pessoas apressadas, do outro lado da turba, vi uma janela, ao longe. A primeira janela. Panorâmica. Enorme.

Todos os firmamentos da noite reunidos num plano horizontal. Num horizonte de névoas luminosas — galáxias coloridas de quadrados, aglomerados de luzes espirais, clarões a tremeluzir sobre arranha-céus, as ruas: um rastejar, uma penstalase; com colares de luz e, por cima disso, na perpendicular, caldeirões de néon, coroas de penas e faíscas, círculos, aeroplanos e garrafas de chamas, dentes-de-leão vermelhos feitos de minúsculas luzes de sinalização, sóis momentâneos e hemorragias de anúncios mecânicos e violentos. Parei a olhar, enquanto ouvia atrás de mim o pisar firme de centenas de pés. De súbito, a cidade desapareceu e surgiu uma cara enorme, com três metros de altura.

«— Estiveram a ver passagens de noticiários da década de 70 da série Vistas de Antigas Capitais. Agora as notícias. O Transtel está a expandir-se a fim de abranger estúdios cósmicos…»

Fugi, a bem dizer. Não se tratava de nenhuma janela. Era um écran de televisão. Estuguei o passo, a transpirar um pouco.

Desci. Mais depressa. Quadrados dourados de luzes. No interior, multidões, espuma em copos, um líquido quase preto — não era cerveja, com a sua virulenta cintilação esverdeada — e gente nova, rapazes e raparigas de braço dado, em grupos de seis e oito a bloquear toda a via, vindo na minha direcção. Tiveram de se separar para me deixar passar. Fui empurrado. Sem me aperceber, entrei num passadiço em movimento. Muito perto de mim passou um par de olhos assustados — uma encantadora rapariga escura vestindo qualquer coisa que brilhava como metal fosforizado. O tecido agarrava-se-lhe ao corpo, era como se estivesse nua. Rostos brancos, amarelos, alguns pretos altos — mas eu continuava a ser o mais alto. As pessoas abriam caminho para eu passar. Muito alto, atrás de janelas convexas, passavam sombras dispersas e tocavam orquestras invisíveis, mas ali prosseguia um passeio curioso. Nas passagens escuras, as silhuetas sem cabeça de mulheres: os tufos que lhes cobriam os braços emanavam uma luz, de modo que só se lhes viam os pescoços erguidos, como estranhos Scífloa brancos, e o brilho difuso do cabelo — um pó luminescente? Um corredor estreito levou-me a uma série de salas com estátuas grotescas, porque em movimento, activas, mesmo; uma espécie de rua larga, com os lados elevados, vibrava de riso. As pessoas divertiam-se. Mas que as divertia? As estátuas?

Enormes figuras em cones de luz de projectores; deles corria luz cor de rubi, cor de mel e espessa como xarope, uma invulgar concentração de cores. Continuei a andar passivamente, a semicerrar os olhos, distraído. Um corredor verde e íngreme, pavilhões grotescos, pagodes aonde se chegava por pequenas pontes, por toda a parte pequenos cafés, o cheiro forte e persistente de alimentos fritos, enfiadas de chamas de gás atrás dejnontrag, o tilintar de vidros, sons metálicos repetidos, incompreensíveis. A multidão que me arrastara até ali colidiu com outra e depois tomou-se menos densa; toda a gente entrava para um veículo aberto… não, era apenas transparente, como que moldado em vidro. Até os lugares pareciam de vidro, embora fossem macios. Sem saber como, encontrei-me dentro de um, em movimento. O veículo seguia velozmente e as pessoas gritavam acima do som de um altifalante, que repetia: «Nível meridional, meridional, mudança para Spiro, Atalé, Blekk, Frosom.» Todo o veículo parecia fundir-se, trespassado por lanças de luz; aos lados deslizavam paredes em faixas de chama e cor; arcos parabólicos, plataformas brancas. «Forteran, Forteran, mudança para Galee, mudança para rasts exteriores, Makra», gritava o altifalante. O veículo parou e depois prosseguiu velozmente. Descobri uma coisa extraordinária: não havia nenhuma sensação de travagem ou aceleração, era como se a inércia tivesse sido anulada. Como era isso possível? Verifiquei, dobrando ligeiramente os joelhos, em três paragens consecutivas. Também não se sentia nada nas curvas. As pessoas entravam e saíam. À frente ia uma mulher com um cão. Nunca vira um cão assim: enorme, com a cabeça como uma bola e muito feio. Nos seus plácidos olhos cor de avelã reflectiam-se, a recuar e a diminuir, grinaldas de luzes. RAMBRENT RAMBRENT.

Houve um tremeluzir de lâmpadas fluorescentes brancas e azuladas, escadas de brilho cristalino, fachadas pretas; o brilho cedeu lentamente o lugar à pedra. O veículo parou. AÊ5ei;;me e fiquei estupefacto. Acima do círculo afundado, em forma de anfiteatro, da paragem erguia-se uma estrutura de múltiplos andares que eu rçconheci. Ainda me encontrava na estação. noutro ponto do mesmo átrio gigantesco ampliado por superfícies brancas e vastas. Dirigi-me para a orla da depressão geometricamente perfeita — o veículo já partira — e tive outra surpresa. Não me encontrava no fundo, como pensara, mas alto, uns 40 andares acima das faixas dos passadiços visíveis no abismo, acima dos patamares das plataformas sempre a deslizar. Entre elas moviam-se corpos compridos e silenciosos, dos quais emergiam pessoas através de escotilhas. Era como se monstros, peixes cromados, depositassem, com intervalos regulares, os seus ovos pretos e coloridos. Acima de tudo isso, através da névoa da distância, vi palavras douradas a formarem linhas:

GLENÍANIA ROON VOLTA HOJE COM O SEU REAL MIMÓRFICO E PRESTA HOMENAGEM NO ORATÓRIO À MEMÓRIA DE RAPPER KERX POLITR. BOLETIM NOTICIOSO DO TERMINAL: HOJE. EM AMMONLEE, PETIFARGUE EFECTUOU A SISTOLIZACÃO DO PRIMEIRO ENZÁO. A VOZ DO ILUSTRE GRAVITACIONISTA SERÁ DIFUNDIDA NA 27.ª HORA. ARRAKER À FRENTE. ARRAKER REPETIU O SEU ÊXITO COMO PRIMEIRO OBLITERADOR DA ÉPOCA NO ESTÁDIO DO TRANSVAL.

Afastei-me. Até a maneira de dividir o tempo mudara! Atingidos pela luz das letras gigantescas que corriam sobre o mar de cabeças, como filas de igniscentes equilibristas no arame, os tecidos metálicos dos vestidos das mulheres pareciam irronjper em chamas súbitas. Continuei a andar, alheado, e qualquer coisa dentro de mim repetiu: Até a maneira de dividir o tempo mudou! Isso deprimiu-me, de certo modo. Não via nada, embora os meus olhos se mantivessem abertos. Só queria uma coisa: afastar-me, encontrar uma maneira de sair daquela infernal estação, estar debaixo do céu nu, ao ar livre, ver as estrelas e sentir o vento.

Senti-me atraído por uma avenida de luzes alongadas. Na pedra transparente dos tectos estava a ser escrita qualquer coisa — letras — com uma chama viva, envolta em alabastro: teletrans teleport telethon. Através de um portal íngreme e arqueado (mas era um arco impossível, arrancado da sua fundação, como a imagem negativa da proa de um foguete), alcancei um átrio decorado de fogo dourado solidificado. Em recessos ao longo das paredes havia centenas de cubículos. Pessoas corriam para eles e voltavam a sair, apressadas, e deitavam para o chão fitas rasgadas — não eram fitas de telégrafo, mas sim qualquer outra coisa, com projecções feitas por furos. Outras caminhavam por cima dessas tiras. Quis ir-me embora. Por engano, entrei numa sala escura e, antes que tivesse tempo de sair, qualquer coisa zumbiu, brilhou um clarão, como o de uma lâmpada de flash, e de uma fenda envolta em metal, como de uma caixa de correio, saiu um bocado de brilhante papel dobrado em dois. Peguei-lhe e abri-o. Emergiu um rosto de boca aberta, lábios ligeiramente torcidos, magro, a olhar-me através de olhos semicerrados: eu próprio! Dobrei o papel em dois e a sombra plástica desapareceu. Afastei devagarinho as arestas: nada. Afastei-as mais: reapareceu, vinda não sei de onde, uma cabeça separada do resto do corpo, pairando acima do papel com uma expressão não muito inteligente. Contemplei por momentos o meu próprio rosto. Que era aquilo, fotografia tridimensional? Meti o papel na algibeira e saí. Um inferno dourado pareceu descer sobre a multidão, um tecto feito de magma ardente, irreal, mas a vomitar chamas reais. E ninguém prestava atenção. Os que tinham assuntos a tratar corriam de uma cabina para outra. Mais atrás, saltaram colunas de letras verdes, enquanto colunas de números fluíam por estreitos écrans abaixo. Outras cabinas tinham portinholas em vez de portas, as quais se levantavam rapidamente quando alguém se aproximava. Finalmente, encontrei uma saída.

Um corredor curvo, com o chão inclinado, como às vezes encontrávamos no teatro. Irrompiam das paredes conchas estilizadas, enquanto em cima se sucediam sem parar as palavras infor infor infor.

A primeira vez que vira um infor tinha sido em Luna e julgara tratar-se de uma flor artificial.

Aproximei o rosto da concha de água-marinha, a qual se imobilizou, pronta para me ouvir, antes mesmo de eu abrir a boca.

— Como saio daqui? — perguntei, não muito inteligentemente.

— Para onde vai? — respondeu-me imediatamente um alto amável.

— Para a cidade.

— Bairro?

— Não importa.

— Nível?

— Não importa. Só quero sair da estação!

— Meridional, rasts: cento e seis, cento e dezassete, zero oito, zero dois. Triducto, nível af. ag, ac, circuito m, níveis doze, dezasseis; o nível nádir conduz a todas as direcções do lado sul. Nível central: gleeders, local vermelho, expresso branco, a. b e v. Nível ulder, directo, todas as escadas rolantes da terceira para cima… — recitou monocordicamente uma voz feminina.

Tive vontade de arrancar da parede o microfone tão solicitamente inclinado para a minha cara. Dentro de mim, a cada passo, soava a palavra: Idiota! Idiota! ex ex EX ex, repetia um sinal que se erguia, circundado por uma névoa cor de limão. Seria Ex de Exit, saída? Uma saída?

O imenso letreiro dizia exotai.. Uma baforada súbita de ar morno agitou-me as pernas das calças. Dei comigo debaixo do céu. Mas o negrume da noite era mantido a grande distância, como que empurrado para trás pela multitude das luzes. Um imenso restaurante. Mesas cujos tampos brilhavam, com cores diferentes. Acima delas, rostos iluminados de baixo e, por isso, um tanto ou quanto fantasmagóricos, cheios de sombras carregadas. Poltronas baixas, um líquido preto com espuma verde nos copos, lanternas que jorravam pequenas centelhas… não, pirilampos, enxames de pequenas borboletas incandescentes. O caos de luzes extinguia as estrelas. Quando levantei a cabeça viapenas um vazio preto. No entanto, e estranhamente, nesse momento a sua presença cega deu-me coragem. Parei a olhar. Roçou alguém por mim, ao passar, e captei a fragrância de um perfume forte e ao mesmo tempo suave. Passou um jovem casal; a rapariga voltou-se para o homem. Uma nuvem fofa cobria-lhe os braços e os seios. Lançou-se nos braços dele e dançaram. «Ainda dançam», pensei. «Isso é bom». O par deu alguns passos. Um círculo pálido, que parecia de mercúrio, elevou-os juntamente com os outros pares. As suas sombras vermelho-escuras moviam-se sob o enorme prato que girava lentamente, como um disco. Não se apoiava em nada, nem sequer tinha um eixo: suspenso no ar, girava ao compasso da música. Caminhei pelo meio das mesas. O piso macio, plástico, terminou e deu lugar a rocha porosa. Transpus uma cortina de luz e encontrei-me no interior de uma gruta rochosa. Era como dez, cinquenta, naves góticas formadas a partir de estalactites. Depósitos de minerais pejerocom veios, rodeavam a boca das cavernas, nas quais se sentavam pessoas de pernas pendentes, com pequenas chamas a tremeluzir entre os joelhos. Ao fundo, encontrava-se a superfície preta e ininterrupta de um lago subterrâneo, que reflectia as abóbadas de rocha. Aí também havia pessoas reclinadas em pequenas e frágeis jangadas, todas a olhar na mesma direcção. Aproximei-me da beira da água e vi, do outro lado, na areia, uma dançarina. Parecia estar nua, mas a brancura do seu corpo não era natural. Correu para a água com passos curtos, pouco firmes; quando o seu corpo se reflectiu nela, estendeu subitamente os braços e inclinou-se — era o fim —, mas ninguém aplaudiu. A dançarina ficou imóvel durante alguns segundos e depois, lentamente, afastou-se ao longo da margem, acompanhando a sua linha irregular. Encontrava-se talvez a uris 30 passos de mim quando lhe aconteceu qualquer coisa. Num momento, vi-lhe o rosto sorridente e exausto; no seguinte, como se algo se entrepusesse, os seus contornos tremeram e desapareceram.

— Uma jangada, senhor? — perguntou uma voz cortês, atrás de mim.

Virei-me. Ninguém. Só uma mesa aerodinâmica, a deslocar-se sobre pernas comicamente arqueadas. Moveu-se para a frente e os copos de líquido cintilante, dispostos em filas de bandejas laterais, estremeceram. Um braço ofereceu-me cortesmente um copo, o outro estendeu-se para um prato com um buraco para enfiar um dedo, uma coisa parecida com uma pequena paleta côncava. Era um robot. Vi, atrás de uma pequena chapa de vidro do centro, o ténue brilho do seu coração transistorizado.

Evitei aqueles braços de insecto estendidos para me servirem, carregados de iguarias, que recusei, e saí rapidamente da caverna artificial, a ranger os dentes, como se tivesse sido insultado. Atravessei toda a largura do terraço, pelo meio de mesas em forma de S, sob avenidas de lanternas e o pó fino de pirilampos em desintegração, pretos e dourados. Mesmo ao fundo, havia como que uma beira de pedra, velha e coberta de líquenes arflarelados, e aí senti, finalmente, um vento autêntico, limpo e fresco. Perto estava uma mesa vazia. Sentei-me desajeitadamente, de costas para as pessoas, a olhar para a noite. Em baixo havia escuridão, vasta, informe e inesperada; só longe, muito longe, no seu perímetro, brilhavam pequenas luzes trémulas, curiosamente hesitantes, como se não fossem eléctricas. E, ainda mais longe erguiam-se para o céu espadas de luz, frias e estreitas. Fiquei sem saber se eram casas, se colunas. Tê-las-ia mesmo tomado pelos feixes luminosos de holofotes se as não delineasse uma rede delicada — um cilindro de vidro podia ter aquele aspecto, com a base na terra e a ponta nas nuvens, cheio de lentes côncavas e convexas, alternadamente. Deviam ser incrivelmente altos. À sua volta brilhavam, pulsavam algumas luzes, de modo que os envolvia ora uma névoa cor de laranja, ora uma névoa branca. E era tudo, era esse o aspecto da cidade. Tentei descobrir ruas, calcular onde estariam, mas o espaço negro e aparentemente sem vida, em baixo, estendia-se em todas as direcções, sem uma única centelha a iluminá-lo.

— Col…? — ouvi chamar.

Provavelmente, a palavra já tinha sido repetida algumas vezes, mas eu não me apercebi logo que me era dirigida. Comecei a virar-me, mas a cadeira, mais rápida do que eu, fê-lo por mim. De pé, à minha frente, estava um rapariga dos seus 20 anos, talvez, vestindo qualquer coisa azul que se lhe colava ao corpo como um líquido solidificado. Tinha os braços e os seios ocultos por uma flocosidade azul-marinha que se tomava cada vez mais transparente à medida que descia. O seu ventre esbelto e encantador lembrava uma escultura de metal que respirava. Tinha nas orelhas qualquer coisa reluzente e tão grande que lhas cobria por completo. Uma boca pequena e um sorriso hesitante, os lábios pintados e as narinas igualmente vermelhas, por dentro — já reparara que a maioria das mulheres se maquiIhava assim. Agarrou as costas da cadeira à minha frente com ambas as mãos e disse:

— Como vai isso, col?

Sentou-se.

Pensei que estava um pouco embriagada.

— Isto aqui é maçador — continuou, passados momentos. — Não acha? Vamos para outro lado qualquer, col?

— Não sou um col… — comecei.

Ela inclinou-se sobre a mesa, apoiada nos cotovelos, e passou a mão pelo copo meio, até a ponta da corrente de ouro que lhe rodeava os dedos mergulhar no líquido. Inclinou-se ainda mais, ao ponto de lhe poder cheirar o hálito. Se estava embriagada, não era de álcool.

Porque diz isso? — perguntou. — É. Tem de ser. Toda a gente é.

Que diz? Vamos?

Se ao menos eu compreendesse o, que tudo aquilo significava!

— Está bem — acedi.

Ela endireitou-se e eu levantei-me da minha cadeira horrivelmente baixa.

— Como faz isso? — perguntou-me.

— Como faço o quê?

Fitou as minhas pernas.

— Pensei que estivesse em bicos de pés…

Sorri, mas não disse nada. Ela aproximou-se e deu-me o braço, e ficou de novo surpreendida.

— Oue tem aí?

— Onde. aqui? Nada.

— Está a cantar — observou, e apertou-me ligeiramente.

Enquanto passávamos pelo meio das mesas, perguntei a mim mesmo o que significaria «cantar». Talvez «está a mangar comigo?»

Conduziu-me na direcção de uma parede dourado-escura com uma marca, uma coisa um pouco parecida com uma clave de sol iluminada. À nossa aproximação a parede abriu-se. Senti uma lufada de ar quente.

Descia dali uma estreita escada rolante prateada. Colocámo-nos lado a lado. Ela nem sequer chegava ao meu ombro. Tinha uma cabeça felina, cabelo preto com um brilho azul e um perfil talvez demasiado agudo; mas era bonita. Se não fossem aquelas narinas escarlates… Agarrou-se bem a mim com a sua mão pequenina, com as unhas verdes enterradas na minha grossa camisola. Não contive um sorriso ao pensar onde aquela camisola estivera e no pouco que tinha em comum com os dedos de uma mulher. Por baixo de uma cúpula circular que respirava luz — de rosa a carmim e de carmim a rosa —, passámos para a rua. Isto é, eu pensei que era uma rua, mas a escuridão por cima de nós, era momentaneamente iluminada, como que por uma momentânea alvorada. Mais adiante, silhuetas compridas e baixas deslizaram por nós, de modo muito semelhante a carros. Mas eu sabia que já não havia carros. Devia ser qualquer outra coisa. Mesmo que estivesse sozinho, teria escolhido aquela artéria larga, porque ao longe brilhavam as letras: para o centro — embora isso não significasse com certeza o centro da cidade. Fosse como fosse, deixei — me conduzir. Acabasse aquela aventura como acabasse, encontrara um guia. Pela primeira vez sem cólera, pensei no pobre tipo que, três horas depois da minha chegada, andava com certeza à minha procura por todos os infors daquela estação-cidade.

Passámos por diversos bares meio vazios e por montras onde grupos de manequins desempenhavam repetidamente a mesma cena. Gostaria de ter parado para ver o que estavam a fazer, mas a rapariga continuava a andar depressa, a bater com os sapatos no chão, até que exclamou, ao ver um rosto de néon com faces vermelhas latejantes e uma língua comicamente solta, que não parava de lamber os lábios.

— Oh, bonses! Quer um bons?

— Acho que sim.

Entrámos numa sala pequena e iluminada. Em vez de tecto tinha compridas filas de pequenas chamas, como luzes-piloto. Devia tratar-se de luz de gás. pois vinha calor de cima. Nas paredes havia recessos com balcões. Quando nos aproximámos de um deles, saíram assentos da parede, de cada lado de nós. Primeiro pareceram irromper da parede numa forma não desenvolvida, como botões, mas depois achataram-se em contacto com o ar, tomaram-se côncavos e ficaram imóveis. Sentámo-nos voltados um para o outro. A rapariga bateu com dois dedos na superfície metálica da mesa e da parede saiu uma garra niquelada que colocou um pequeno prato defronte de cada um de nós e, com dois movimentos velozes, pôs em cada prato uma porção de uma substância branca espumosa, que se tomou castanha e endureceu. Entretanto, o próprio prato escureceu. Então a rapariga dobrou-o — não era, afinal, um prato — como uma panqueca e começou a comer.

— Oh! — exclamou, com a boca cheia —, não imaginava como tinha fome!

Fiz exactamente o mesmo que ela. Os bornes não sabiam a nada que eu já tivesse comido. Estalavam entre os dentes como uma rosca acabada de cozer, mas derretiam-se logo na língua; a substância castanha do meio era muito condimentada. Achei que passaria a gostar de bornes.

— Outro? — perguntei, quando ela acabou de comer o seu.

Sorriu e abanou a cabeça. Ao sair, no corredor, meteu ambas as mãos num pequeno nicho forrado de azulejos. Qualquer coisa zumbiu, lá dentro. Fiz o mesmo. Um vento acariciador soprou-me nos dedos e quando os retirei estavam completamente secos e limpos. Depois subimos numa grande escada rolante. Eu não sabia se ainda estávamos na estação, mas preferi não perguntar. Ela conduziu-me a uma pequena cabina aberta numa parede e pouco iluminada. Tive a impressão de que por cima passava qualquer espécie de comboios, pois o chão estremecia. Tomou-se mais escuro durante uma fracção de segundo, qualquer coisa debaixo de nós soltou um profundo suspiro, como um monstro de metal a despejar o ar dos pulmões, a luz reapareceu e a rapariga empurrou a porta e abriu-a. Uma ma verdadeira, aparentemente. Não se via mais ninguém nela. De ambos os lados do passeio cresciam arbustos cortados relativamente curtos. Um pouco adiante, viam-se máquinas pretas e atarracadas, encostadas umas às outras. Um homem emergiu de uma sombra e desapareceu atrás de uma das máquinas — não o vi abrir nenhuma porta; desapareceu, simplesmente — e a engenhoca partiu com tal ímpeto que deve tê-lo espalmado contra o lugar. Não vi casas nenhumas; apenas a estrada, lisa como uma mesa e coberta de faixas de metal baço. Nos cmzamentos, em cima, pairavam luzes cor de laranja e vermelhas, um pouco parecidas com modelos de holofotes do tempo da guerra.

— Aonde vamos? — perguntou a rapariga, que continuava a agarrar-me pelo braço. Abrandou o passo e uma tira vermelha atravessou-lhe a cara.

— Aonde quiser.

— Se assim é, a minha casa. Não vale a pena irmos de gleeder; é perto.

Continuámos a andar. Ainda não se viam casas e o vento que soprava da escuridão, de trás dos arbustos, era o que seria de esperar num espaço aberto. Ali, nas imediações da estação, no próprio Centro? Pareceu-me estranho. O vento trazia uma suave fragrância de flores, que aspirei avidamente. Flores de cerejeira? Não, flores de cerejeira não eram.

A seguir, chegámos a um passadiço em movimento. Parámos nele, a formar um estranho par. Deslizavam luzes e, de vez em quando, passava velozmente um veículo, como se fosse feito de um único bloco de metal. Aqueles veículos não tinham janelas, nem rodas, nem sequer luzes e viaja-

vam como que às cegas, a tremenda velocidade. As luzes móveis irrompiam de aberturas estreitas e verticais que pairavam, baixo, acima do chão. Não consegui perceber se tinham alguma coisa a ver com o trânsito e a sua regulação.

De vez em quando, muito alto, acima de nós, um assobio lamentoso cortava o céu invisível. De súbito, a rapariga saiu da faixa móvel, mas só para se mudar para outra que subia ingrememente, e eu dei comigo a subir também. Aquele passeio aéreo durou talvez meio minuto e terminou numa espécie de saliência coberta de flores levemente fragrantes, como se tivéssemos chegado ao terraço ou à varanda de um edifício escuro, trazidos por uma correia de transporte montada contra a parede. A rapariga entrou naquela loggia e eu, já com os olhos habituados à escuridão, pude distinguir, dela, os contornos imensos dos edifícios circundantes — sem janelas, pretos e aparentemente sem vida, pois não era só a luz que lhes faltava: não se ouvia nem um som, por mínimo que fosse, além do silvo agudo que anunciava a passagem, na rua, das máquinas pretas. Senti-me intrigado com aquela escuridão, sem dúvida intencional, assim como a ausência de letreiros de publicidade, depois da orgia de néon da estação. Mas não tive tempo para tais reflexões.

— Venha, onde está? — ouvi-a murmurar, e vi apenas a mancha pálida da sua cara.

Colocou a mão na porta e ela abriu-se, mas não para um apartamento. O chão moveu-se suavemente connosco. «Não podemos dar um passo, aqui», pensei. «Até admira que ainda tenham pernas.» Foi uma débil tentativa da minha parte para ironizar e proveio do espanto constante, da sensação de irrealidade de tudo quanto me acontecera nas últimas horas.

Estávamos em algo parecido com um imenso átrio de entrada ou corredor, largo e quase às escuras — só os cantos das paredes brilhavam, graças a faixas de tinta luminosa. No ponto mais escuro, a rapariga voltou a estender a mão, para colocar a palma contra uma chapa metálica de uma porta, e entrou primeiro. Pestanejei. O vestíbulo, brilhantemente iluminado, estava praticamente vazio. Ela dirigiu-e para a porta seguinte. Quando me aproximei da parede, esta abriu-se subitamente e revelou um interior cheio de pequenas garrafas metálicas. Aconteceu tão depressa que estaquei.

— Não desarrume o meu guarda-vestidos — disse-me a rapariga já na outra sala.

Segui-a.

A mobília — poltronas, um sofá baixo e mesas pequenas — parecia feita de vidro e dentro do material semitransparente circulavam livremente enxames de pirilampos, ora dispersos, ora aglomerados, de modo que um sangue luminoso parecia correr dentro dos móveis, um sangue verde-pálido com centelhas rosadas.

— Por que não se senta?

Ela estava de pé, lá muito ao fundo. Uma poltrona desdobrou-se para me receber, o que detestei. Afinal, o vidro não era vidro; a impressão que tive foi de me sentar em almofadas infladas. Olhando para baixo, através da superfície curva e grossa do lugar, vi indistintamente o chão.

Pensara, ao entrar, que a parede oposta à porta era de vidro e que, através dela, estava a ver outra sala onde se encontrava gente, como se houvesse uma festa qualquer. Mas as pessoas eram de uma altura pouco normal e eu compreendi de repente que tinha na minha frente um écran de televisão do tamanho de uma parede. O som estava desligado. Agora, sentado, vi uma enorme cara de mulher, como se uma gigante de pele escura estivesse a espreitar para a sala por uma janela. Os seus lábios moviam-se, pois estava a falar, e pedras preciosas do tamanho de escudos cobriam-lhe as orelhas e cintilavam como diamantes.

Instalei-me confortavelmente na cadeira. A rapariga, de mão na cintura — o seu abdome parecia realmente uma escultura de metal azul-celeste —, estudava-me cuidadosamente. Já não parecia embriagada. Talvez tivesse sido apenas impressão minha.

— Como se chama? — perguntou-me.

— Bregg. Hal Bregg. E você?

— Nais. Que idade tem?

«Curiosas maneiras», pensei. «Mas, se é assim que procedem…»

— Quarenta, porquê?

— Por nada. Pensei que tivesse cem.

Não pude deixar de sorrir.

— Posso ter, se insiste. — «O engraçado é que é essa a verdade», pensei.

— Que lhe posso oferecer? — indagou.

— Para beber? Nada, obrigado.

— Está bem.

Aproximou-se da parede, que se abriu tíòmo um pequeno bar. Parou defronte da abertura. Quando voltou, trazia um tabuleiro com taças e duas garrafas. Espremeu ligeiramente uma das garrafas e encheu uma das taças até acima de um líquido que parecia exactamente leite.

— Obrigado, para mim não…

— Mas eu não lhe estou a dar nada — observou, surpreendida.

Compreendendo que cometera um erro, embora não soubesse de que género, murmurei qualquer coisa e peguei na taça. Ela deitou uma bebida para si da segunda garrafa. O líquido era oleoso, incolor e ligeiramente efervescente, abaixo da superfície, e ao mesmo tempo escureceu, talvez por entrar era contacto com o ar. A rapariga sentou-se e, depois de levar a taça aos lábios, perguntou:

— Quem é você?

— Um col — respondi.

Ergui a taça, como para a examinar. Aquele leite não tinha cheiro. Não lhe toquei.

— Não, a sério. Pensou que eu estava a atirar no escuro, hem? Desde quando! Foi apenas um cais. Encontrava-me com um seis, percebe, mas estava terrivelmente chato. A orca não prestava e de uma maneira geral… Preparava-me para sair quando você se sentou.

Consegui perceber um pouco do que ela disse: devia ter-me sentado por acaso na sua mesa, quando ela lá não estava. Teria estado a dançar? Mantive um silêncio cauteloso.

— De longe parecia tão… — Não foi capaz de encontrar a palavra.

— Decente? — sugeri.

As suas pálpebras estremeceram. Cobria-as também um película metálica? Não, devia ser a sombra. Levantou a cabeça.

— Que significa isso?

— Bem… alguém em que se pode confiar…

— Fala de um modo estranho. De onde veio?

— De longe.

— De Marte?

— De mais longe.

— Voa?

— Voei.

— E agora?

— Nada. Regressei.

— Mas voltará a voar?

— Não sei. Provavelmente, não.

A conversa descambara, não sei como. Pareceu-me que a rapariga começava a lamentar o seu impetuoso convite e desejei facilitar-lhe as coisas.

— Talvez me deva ir embora? — perguntei, ainda a segurar na bebida intacta.

— Porquê? — Pareceu surpreendida.

— Pensei que isso… lhe agradaria.

— Não. Está a pensar… Não, para quê? Porque não bebe?

— Bebo.

Afinal, era leite. Àquela hora e naquelas circunstâncias! A minha surpresa foi tão grande que ela deve tê-la notado.

— Não presta?

— É leite… — Devo ter parecido um perfeito idiota.

— O quê? Que leite? É brit… Suspirei.

— Escute, Nais… Acho que me vou embora. Realmente. Será melhor assim.

— Então porque bebeu?

Qlheia-a em silêncio. A língua não mudara muito, mas mesmo assim eu não percebia nada. Absolutamente nada. Eles é que tinham mudado.

— Está bem — disse ela, por fim. — Não o detenho. Mas isto… Estava confusa. Bebeu a sua limonada — era assim que chamava, nos meus pensamentos, ao líquido efervescente — e eu fiquei de novo sem saber que dizer. Como era tudo tão difícil!

— Fale-me de si — sugeri. — Quer?

— Pois sim. E depois diz-me…?

— Sim.

— Estou no Cavuta, no meu segundo ano. Ultimamente, tenho descuidado um pouco as coisas, não plasticizei regularmente e… enfim, tem sido assim. O meu seis não é muito interessante. Por isso, realmente, é… Não tenho ninguém. É estranho…

— É estranho o quê?

— Que eu não tenha…

De novo as obscuridades. De quem estava a ela a falar? Quem é que não tinha? Pais? Amantes? Conhecidos? No fim de contas, Abs tivera razão quando dissera que não me conseguiria arranjar sem os oitos meses na Adaptação. Mas agora, talvez ainda mais do que antes, não queria voltar, penitente, para a escola.

— Que mais? — perguntei e, como continuava a segurar na taça bebi outro golo de leite.

Os seus olhos arregalaram-se de surpresa. Pairou-lhe nos lábios como que um sorriso trocista. Acabou a sua bebida, estendeu a mão para o tufado dos braços e arrancou-o — não o desabotoou nem o despiu, rasgou-o e deixou-o cair dos dedos, como lixo.

— A verdade é que mal nos conhecemos — disse.

Parecia mais livre. Sorria. Havia momentos em que se tomava encantadora, especialmente quando semicerrava os olhos e o seu lábio inferior, ao contrair-se, revelava os dentes brilhantes. Havia algo de egípcio no seu rosto. De gata egípcia. Cabelo mais preto do que preto. E quando tirou os tufados dos braços e dos seios verifiquei que não era de modo nenhum tão magra como parecera. Mas porque arrancara os tufados? Isso teria algum significado?

— É a sua vez de falar — disse, a olhar-me por cima da taça.

— Pois sim… — Sentia-me nervoso, como se as minhas palavras pudessem ter sabia Deus que consequências. — Sou… fui piloto. A última vez que estive aqui… Não se assuste!

— Não. Continue!

Os seus olhos estavam brilhantes e atentos.

— Foi há 127 anos. Tinha eu então 30 anos. A expedição… Fui piloto da expedição a Fomalhaut, que fica a 23 anos-luz de distância. Voámos até lá e regressámos em 127 anos, tempo da Terra, e 10 anos, tempo da nave. Regressámos há quatro dias… O Prometheus — a minha nave — ficou em Luna. Eu vim de lá hoje. É tudo.

Fitou-me sem falar. Os seus lábios mexeram-se, abriram-se e fecharam-se. Que havia nos seus olhos? Surpresa? Admiração? Medo?

— Porque não diz nada? — perguntei, mas primeiro tive de pigarrear.

— Afinal… que idade tem, realmente?

Não contive um sorriso. Mas não foi um sorriso agradável.

— Que significa esse «realmente»? Biologicamente, tenho 40 anos, mas pelos relógios da Terra tenho 157…

Um longo silêncio. E, de súbito:

— Havia lá algumas mulheres?

— Espere — pedi. — Tem alguma coisa que se beba?

— Que quer dizer?

— Alguma coisa tóxica, compreende? Forte. Álcool… ou já o não bebem?

— Muito raramente — respondeu com suavidade, como se pensasse noutra coisa, e as suas mãos baixaram-se devagar, a tocar no azul metálico do vestido.

— Dou-lhe um pouco de… angehen, serve? Mas você não sabe o que é, pois não?

— Não — respondi, inesperadamente amuado. Ela foi ao bar e tirou uma pequena garrafa bojuda. Deitou-me uma bebida. Tinha álcool — não muito — e qualquer outra coisa com um peculiar gosto amargo.

— Não se zangue — pedi, enquanto despejava o copo e enchia outro.

— Não estou zangada. Não me respondeu, mas talvez não queira responder.

— Por que não? Posso-lhe dizer. Éramos vinte e três ao todo em duas astronaves. A segunda chamava-se Ulysses. Cinco pilotos para cada nave e o resto cientistas. Não havia mulheres nenhumas.

— Porquê?

— Por causa dos filhos — expliquei. — Não se podem criar filhos em tais naves, e, mesmo que se pudesse, ninguém quereria. Não se pode voar antes dos trinta anos. São precisos dois diplomas e mais quatro anos de treino, doze anos ao todo. Por outras palavras, as mulheres de trinta anos geralmente têm filhos. E houve… outras considerações.

— E você?

— Eu era solteiro. Escolheram solteiros. Quero dizer… voluntários.

— Você quis…

— Sim, claro.

— E não…

Ela calou-se, mas eu percebi o que queria dizer. Permaneci calado.

— Deve ser estranho, regressar desta maneira — observou, quase num murmúrio.

Estremeceu. Qlhou para mim e, de súbito, ruborizou-se.

— Escute, o que eu disse antes foi apenas uma brincadeira…

— Acerca dos cem anos?

— Falei só por falar, não tinha qualquer…

— Cale-se — resmunguei. — Se continua a desculpar-se sinto que tenho esses anos todos, realmente.

Calou-se e eu fiz um esforço para não olhar para ela. Dentro da outra sala, da sala inexistente atrás do vidro, uma enorme cabeça de homem cantava sem som. Vi o vermelho-escuro da garganta estremecer do esforço, as faces brilhar, todo o rosto mover-se a acompanhar um ritmo inaudível.

— Que vai fazer? — perguntou-me a rapariga, calmamente.

— Não sei. Ainda não sei.

— Não tem planos?

— Não. Tenho um pouco de… trata-se de um bónus, compreende? Por todo aquele tempo. Quando partimos, foi depositado no banco em meu nome… nem sequer sei quanto é. Não sei nada de nada. Escute, que vem a ser esse Cavut?

— O Cavuta? — corrigiu-me. — É… uma espécie de escola, plasticização. Nada de especial, em si mesmo, mas às vezes surge a possibilidade de entrarmos nos reais…

— Espere… Que faz exactamente?

— Plasticização. Não sabe o que é?

— Não.

— Como explicar-lhe? Simplificando: fazemos vestidos, vestuário em geral… tudo.

— Costura?

— Que significa isso?

— Cose coisas?

— Não compreendo.

— Deus me valha! Desenha vestidos?

— Bem… em certo sentido, sim. Mas não desenho, só faço.

Desisti.

— E o que é um real?

Esta pergunta atirou-a mesmo às lonas. Pela primeira vez, olhou para mim como se eu fosse uma criatura de outro mundo.

— Um real é… um real… — respondeu, desamparada. — São… histórias. É para ver.

— Aquilo? — Apontei para a parede de vidro.

— Oh, não! Aquilo é visão…

— O quê, então? Filmes? Teatro?

— Não. Sei o que era teatro… isso foi há muito tempo. Tinha gente a sério. Um real é artificial, mas não se nóta a diferença. A não ser, suponho, que se entre nele, lá dentro…

— Que se entre?

A cabeça do gigante revirou os olhos, voltou-se, olhou-me como se estivesse a divertir-se muito ao observar aquela cena.

— Escute, Nais — disse, de súbito —, eu vou agora, porque é muito tarde, ou…

— Prefiro o «ou».

— Mas não sabe o que ia dizer!

— Diga-o, então.

— Está bem. Queria fazer-lhe mais perguntas acerca de várias coisas. Acerca das coisas grandes, das mais importantes, já sei um pouco. Passei quatro dias na Adaptação, em Luna. Mas isso foi uma gota de água num balde. Que fazem quando não estão a trabalhar?

— Podemos fazer um monte de coisas. Podemos viajar, de facto ou por moot. Podemos divertir-nos, ir ver um real, dançar, jogar tereo, praticar desporto, nadar, voar… o que quisermos.

— Que é um moot?

— É um pouco como um real, com a diferença de que podemos tocar em tudo. Podemos andar em montanhas ou seja onde for… terá de ver por si próprio, não é uma coisa que se possa descrever. Mas eu tinha a impressão de que queria fazer perguntas acerca de outra coisa…?

— A sua impressão está certa. Como se passam as coisas entre homens e mulheres?

As suas pálpebras palpitaram.

— Como sempre se passaram, suponho. Que poderá ter mudado?

— Tudo. Quando cu parti — não leve isto a mal —, uma rapariga como você não me teria levado à sua casa a semelhante hora.

— Sério? Porquê?

— Porque só poderia significar uma coisa.

Ficou um momento silenciosa.

— E como sabe que não foi por isso?

A minha expressão divertiu-a. Olhei-a e ela deixou de sorrir.

— Nais… como se explica…? — gaguejei. — Abordou um completo estranho e…

Ficou calada.

— Por que não responde?

— Porque você não compreeade nada. Não sei como dizer-lhe. Não tem importância…

— Ah. não tem importância! — repeti.

Levantei-me, incapaz de continuar sentado, e, esquecido, quase saltei. Ela encolheu-se.

— Desculpe — murmurei, e comecei a andar de um lado para o outro.

Atrás do vidro, desdobrava-se um parque sob o sol da manhã. Por uma vereda entre árvores de folhas rosa-pálido caminhavam três jovens de camisas que brilhavam como armaduras.

— Ainda há casamentos?

— Naturalmente.

— Não compreendo! Explique-me, diga-me… Vê um homem que a atrai e. imediatamente, sem o conhecer…

— Mas que há a dizer? — perguntou, relutante. — É realmente verdade que no seu tempo, antigamente, uma rapariga não podia levar um homem ao seu quarto?

— Podia, claro, e até com esse propósito, mas… não o fazia cinco minutos depois de o conhecer…

— Depois de quantos minutos, então?

Olhei-a. Estava absolutamente séria. Claro, como havia ela de saber? Encolhi os ombros.

— Não se tratava só de uma questão de tempo. Primeiro ela tinha de… ver qualquer coisa nele, de o conhecer e de gostar dele; depois saíam juntos…

— Espere — interrompeu-me. — Parece que não compreendeu uma coisa. No fim de contas, eu dei-lhe brit.

— Que é brit? Ah. o leite! Oue tem isso?

— Que tem isso? Que quer dizer? Não havia… brit?

Desatou a rir, a rir convulsivamente. Depois parou, olhou para mim e corou muito.

— Então pensou… pensou que eu… Não!

Sentei-me. Os meus dedos não paravam, queria segurar qualquer coisa. Tirei um cigarro da algibeira e acendi-o. Ela arregalou os olhos.

— Que é isso?

— Um cigarro. Porquê? Não fuma?

— É a primeira vez que vejo um… É então isso um cigarro? Como pode inalar o fumo dessa maneira? Não, espere… o resto é mais importante. Brit não é leite. Não sei o que contém, mas dá-se sempre brit a um desconhecido.

— A um homem?

— Sim.

— Que efeito faz?

— Obriga-o a comportar-se bem, a ter de se comportar bem. Sabe… Talvez algum biólogo lhe possa explicar.

— Para o diabo com oS biólogos! Isso significa que um homem a quem se deu brit não pode fazer nada?

— Naturalmente.

— E se ele não quiser beber?

— Como pode ele não querer? Aqui parou toda a compreensão.

— Não pode forçá-lo a beber — continuei, pacientemente.

— Um louco poderia não beber — observou, devagar. — Mas nunca ouvi falar em tal coisa, nunca…

— É alguma espécie de costume?

— Não sei que dizer-lhe. Não andar por aí nu é um costume?

— Bem, num sentido… é. Mas podemos despir-nos na praia.

— Completamente? — perguntou a rapariga, com súbito interesse.

— Não. Com um fato de banho… Mas no meu tempo havia grupos de pessoas, chamadas nudistas…

— Bem sei. Não, isso é outra coisa. Pensei que todos vocês…

— Não. Portanto, beber essa coisa é como usar vestuário? Igualmente necessário?

— Sim. Quando somos… dois.

— Bem, e depois?

— Depois o quê?

— Na próxima vez.

A conversa era estúpida e eu sentia-me ridículo, mas tinha de descobrir.

— Mais tarde? Varia. A alguns… damos sempre brit.

— O pretendente recusado — resmunguei.

— O que significa isso?

— Nada, nada. E se é uma rapariga que visita um homem?

— Nesse caso, ele bebe-o em sua casa.

Olhou para mim quase com piedade. Mas eu insisti:

— E se ele não tem nenhum?

— Se não tem nenhum brit? Como pode não ter?

— Bem, porque se gastou… ou… enfim, ele pode sempre mentir.

Começou a rir-se.

— Mas isso é… Pensa que tenho todas essas garrafas aqui, no meu apartamento?

— Não? Onde estão, então?-

— De onde vêm, não sei. No seu tempo havia água canalizada?

— Havia — respondi, carrancudo.

Podia não ter havido. Claro! Eu podia ter entrado no foguetão directamente da selva! Por momentos senti-me furioso, mas acalmei-me. No fim de contas, a culpa não era dela.

— Aí tem… Sabia em que direcção a água corria antes de…?

— Compreendo, não precisa de ir mais longe. Está bem. É, então, uma espécie de medida de segurança? Muito estranho!

— Não acho. Que tem aí? Que é essa coisa branca, debaixo da sua camisola?

— Uma camisa.

— Que é?

— Nunca viu uma camisa? É… bem, é roupa. Feita de nylon.

Arregacei a manga e mostrei-lhe.

— Interessante — comentou.

— É um costume — disse, desorientado.

Na verdade, na Adaptação tinham-me dito que deixasse de me vestir no estilo de há 100 anos. Mas eu não queria. Tinha no entanto de admitir que ela tinha razão. O brit era para mim o que uma camisa era para ela. Em última análise, ninguém tinha obrigado as pessoas a usar camisa, mas todas as tinham usado. Acontecia o mesmo com o brit, evidentemente.

Ela corou um pouco.

— Está com uma pressa! Ainda não sabe nada.

— Não disse nenhuma inconveniência — defendi-me. — Só quis saber… Por que está a olhar para mim dessa maneira? Que tem? Nais!

Ela levantou-se devagar e parou atrás da poltrona.

— Há quanto tempo disse que foi? Cento e vinte anos?

— Cento e vinte e sete. Porquê?

— E foi… betrizado?

— Que é isso?

— Não foi?

— Nem sequer sei o que isso significa. Nais… pequena, que tem você?

Comecei a andar na sua direcção, mas ela levantou as mãos.

— Afaste-se. Não! Não! Suplico-lhe!

Recuou até à parede.

— Mas você mesma disse que o brit… Agora estou sentado. Veja, estou sentado. Acalme-se. Diga-me o que é essa bet… qualquer coisa.

— Não sei exactamente. Mas toda a gene é betrizada. A nascença.

— De que se trata?

— Creio que põem qualquer coisa no sangue.

— A toda a gente?

— Sim… porque o brit… não actua sem isso. Não se mexa!

— Pequena, não seja ridícula.

Apaguei o cigarro.

— No fim de contas, não sou nenhum animal selvagem. Não se zangue, mas… parece-me que vocês enlouqueceram todos um pouco. Esse tal brit… bem, é como algemar toda a gente porque alguém poderia revelar-se um ladrão. Quero dizer, devia haver um pouco de confiança.

— Você é terrível. — Parecia mais calma, mas continuava a não se sentar. — Sendo assim, porque se mostrou antes tão indignado por eu trazer desconhecidos a casa?

— Isso é diferente.

— Não vejo a diferença. Tem a certeza de que não foi betrizado?

— Não fui.

— Talvez agora? Quando regressou?

— Não sei. Deram-me uma infinidade de injecções. É assim tão importante?

— É. Eles deram-lhe muitas injecções? Óptimo.

Sentou-se.

— Preciso de lhe pedir um favor — disse, o mais calmamente que pude. — Tem de me explicar…

— Q quê?

— O seu medo. Pensou que a atacaria, ou quê? Mas isso é ridículo!

— Não. Se uma pessoa encara a situação racionalmente, não. Mas foi… terrível. Um grande choque. Nunca tinha visto uma pesssoa que não estivesse…

— Mas com certeza não se nota?

— Oh, nota, sim!

. —Como?

Ficou silenciosa.

— Nais…

— E se…

— O quê?

— Tenho medo.

— De dizer?

— Sim.

— Mas porquê?

— Compreenderia, se eu lhe dissesse… A betrização não é feita com brit. Com o brit obtém-se apenas um efeito… secundário… A betrização relaciona-se com qualquer outra coisa.

Estava pálida e os seus lábios tremiam. «Que mundo!», pensei. «Que mundo este!»

— Não posso. Tenho um medo terrível.

— De mim?

— Sim.

— Juro que…

— Não, não. Acredito em si, mas… não. Não pode compreender.

— Não me diz?

Deve ter havido qualquer coisa na minha voz que a levou a dominar-se. O seu rosto tomou-se sério e eu vi pelos seus olhos que estava a fazer um grande esforço.

— É… é assim para… para que seja impossível… matar.

— Não! Pessoas?

— Tudo.

— Animais, também?

— Animais. Tudo.

Torcia os dedos e não tirava os olhos de mim, como se com as suas palavras me tivesse libertado de uma corrente invisível, como se me tivesse posto na mão uma faca, uma faca com a qual poderia esfaqueá-la.

— Nais… — disse, muito calmamente. — Nais, não tenha medo. Palavra, não há nada de que ter medo.

Tentou sorrir.

— Escute…

— Sim?

— Quando eu disse isso…

— Sim?

— Não sentiu nada?

— E que deveria sentir?

— Imagine que está a fazer o que eu lhe disse.

— Que estou a matar? Devo imaginar isso?

Estremeceu.

— Sim.

— E agora?

— Não sente nada?

— Nada. Na verdade, trata-se apenas de um pensamento e eu não tenho a mínima intenção…

— Mas pode? Não pode? Pode realmente. Não — murmurou, como se falasse consigo própria —, não está betrizado.

Só então compreendi o significado da palavra e percebi como podia ser um choque para ela.

— Trata-se de uma grande coisa — murmurei, e passados instantes acrescentei: — Mas talvez tivesse sido melhor se as pessoas tivessem deixado de o fazer sem ser por meios artificiais.

— Não sei. Talvez — respondeu, a respirar fundo. — Compreende agora porque me assustei?

— Compreendo, mas não completamente. Talvez um pouco. Com certeza não pensou que eu…

— Como é estranho! É absolutamente como se não fosse… — deixou a frase incompleta.

— Como se não fosse humano?

Pestanejou.

— Não quis ofendê-lo. Mas, compreende, quando se sabe que ninguém lbfc 66 — 3 33

pode sequer pensar… nisso, nunca, e de repente aparece alguém como você… a simples possibilidade… o facto de haver um que…

— Não posso acreditar que toda a gente seja… — como se diz? — ah, betrizada!

— Porquê? Toda a gente é, garanto-lhe!

— Não, é impossível — insisti. — E as pessoas com empregos perigosos? No fim de contas, têm de…

— Não há empregos perigosos.

— Que está a dizer, Nais? E os pilotos? E os que trabalham em salvamentos? E os que lutam contra fogos, cheias…?

— Não há tais pessoas — afirmou, e eu tive a impressão de não ter ouvido bem.

— O quê?

— Não há tais pessoas — repetiu. — Tudo isso é feito por robots.

Fez-se silêncio. Não seria fácil para mim, pensei, tragar aquele novo mundo. E, de súbito, acudiu-me uma reflexão, uma reflexão surpreendente pelo facto de que não a teria esperado nunca se alguém me tivesse apresentado aquela situação puramente como uma possibilidade teórica: pensei que aquela destruição do matador no homem era uma deformação.

— Nais, é muito tarde. Acho que vou andando.

— Para onde?

— Não sei. Espere! Uma pessoa da Adaptação ficou de se encontrar comigo na estação. Esquecera-me por completo! Não consegui encontrá-la, compreende? Por isso, vou procurar um hotel. Há hotéis, não há?

— Há. De onde é você?

— Daqui. Nasci aqui.

Com tais palavras regressou o sentimento de irrealidade de tudo e deixei de ter a certeza da existência tanto daquela cidade, que só existia dentro de mim, como desta outra cidade espectral com salas onde espreitavam cabeças de gigantes. Por isso, momentaneamente, pensei se não estaria a bordo e com outro pesadelo particularmente vivo do meu regresso.

— Bregg — ouvi a sua voz, como se viesse de longe.

Estremeci. Esquecera-me dela por completo.

— Diga.

— Fique.

— O quê?

Ela não falou.

— Quer que eu fique?

Voltou a não falar. Aproximei-me dela, inclinei-me para a cadeira, agarrei-a pelos braços frios e levantei-a. Ficou de pé, submissa. Inclinou a cabeça para trás. Vi-lhe brilhar os dentes. Não a queria. Só queria dizer-lhe: «Mas está com medo», e ouvi-la responder que não estava. Mais nada. Ela tinha os olhos fechados, mas de súbito a esclerótica brilhou-lhe entre as pálpebras. Inclinei-me para o seu rosto e fitei-lhe de perto os olhos vítreos, como se desejasse conhecer o seu medo, compartilhá-lo. Ofegante, debateu-se para se libertar, mas eu não me apercebi. Só abri as mãos quando a ouvi gemer: «Não! Não!» Caiu, praticamente. Ficou encostada à parede, a bloquear parte de uma grande cara bochechuda que chegava ao tecto e que, atrás do vidro, falava incessantemente, com exagero, a mover os lábios enormes e a língua carnuda.

— Nais… — murmurei calmamente, e baixei as mãos.

— Não se aproxime de mim!

— Mas foi você que disse…

Os seus olhos estavam desvairados.

Comecei a andar de um lado para o outro. Seguiu-me com o olhar, como se eu fosse… como se estivesse numa jaula…

— Vou-me embora — anunciei.

Ela não falou. Quis acrescentar qualquer coisa — algumas palavras de desculpa, de agradecimento, para não partir assim —, mas não fui capaz. Se ela tivesse tido medo apenas como uma mulher tem medo de um homem, de um homem estranho, até mesmo ameaçador, desconhecido, eu não teria ligado importância; mas tratara-se de outra coisa. Olhei-a e senti a cólera crescer em mim. Agarrar aqueles braços brancos nus e sacudi-la…

Virei-me e saí. A porta exterior cedeu quando a empurrei. O grande corredor estava quase completamente às escuras. Não consegui encontrar a saída para o terraço, mas encontrei uns cilindros cheios de uma luz azulada, velada: elevadores. Aquele de que me aproximei já vinha para cima. Talvez a pressão dos meus pés no limiar tivesse bastado. O elevador levou muito tempo a descer. Vi camadas alternadas de escuridão e cortes transversais de tectos. Brancos com centros avermelhados, como gordura sobre músculo, passavam para cima e eu perdi-lhes o conto. O elevador descia, descia, como numa viagem para o abismo, como se eu tivesse sido atirado por uma conduta esterilizada e aquele colossal edifício, profundamente mergulhado no sono e na segurança, estivesse a desfazer-se de mim. Uma parte do cilindro transparente abriu-se e comecei a andar.

Mãos nas algibeiras, escuridão, passada longa e firme, aspirei sofregamente o ar frio, a sentir o movimento das minhas narinas e o coração a trabalhar devagar, a bombear sangue. Tremeluziam luzes nas aberturas baixas, na estrada, cobertas de tempos a tempos pelas máquinas silenciosas. Não se via nenhum peão. Entre silhuetas pretas brilhava uma leve claridade e eu pensei que talvez fosse um hotel. Era apenas um passadiço iluminado. Meti-me nele. Por cima de mim, passavam as extensões esbranquiçadas das estruturas; algures, ao longe, por cima das arestas pretas dos edifícios, sucediam-se as letras brilhantes dos noticiários. De súbito, o passadiço conduziu-me a um interior iluminado e parou.

Desciam degraus largos, prateados como uma cascata silenciosa. A desolação surpreendeu-me. Desde que deixara Nais não encontrara um único transeunte. A escada rolante era muito comprida. Em baixo brilhava uma rua larga, com corredores para edifícios de ambos os lados. Vi pessoas paradas debaixo de uma árvore de folhas azuis — possivelmente não era uma árvore verdadeira —; aproximei-me e depois afastei-me. Estavam a beijar-se. Caminhei na direcção do som abafado de música. Devia tratar-se de algum restaurante ou bar aberto toda a noite, à beira da rua. Desejei entrar e perguntar onde havia um hotel. De súbito choquei, com o corpo todo, contra uma barreira invisível. Era uma chapa de vidro absolutamente transparente. A entrada ficava próximo. No interior, alguém começou a rir e apontou-me aos outros. Entrei. Um homem de camisola interior preta, um tanto ou quanto parecida com a minha própria camisola, mas com uma grande gola inflada, estava sentado de lado a uma mesa, de copo na mão, a olhar para mim. Parei defronte dele. O sorriso petrificou-se na boca semiaberta. O ruído de vozes dimimuiu. Só a música tocava, parecendo que atrás de uma parede. Uma mulher emitiu um estranho e fraco som. Olhei em redor, para os rostos imóveis, e saí. Só quando me encontrei de novo na rua me lembrei de que tivera a intenção de perguntar onde ficava um hotel.

Entrei numa alameda. Estava cheia de montras. Escritórios de turismo, lojas de artigos de desporto, manequins em poses diversas. Não se tratava exactamente de montras, pois estava tudo na rua, de cada lado do passeio erguido que lhe corria pelo meio. Por diversas vezes tomei erradamente as figuras que lá se moviam por pessoas. Eram marionetas de publicidade, que efectuavam repetidamente os mesmos gestos. Observei uma delas, durante um bocado. Era um boneco quase do meu tamanho, uma caricatura de bochechas dilatadas, a tocar flauta. Fazia-o tão bem que senti o impulso de lhe dirigir a palavra. Mais adiante havia salões de uns jogos quaisquer. Giravam grandes rodas com as cores do arco-íris, tubos de prata pendiam do tecto e entrechocavam-se com o som de guizos de trenó, brilhavam espelhos prismáticos. Mas estava tudo deserto. Mesmo no fim da alameda às escuras acendeu-se um letreiro: aqui hahaha. Desapareceu de novo. Encaminhei-me na sua direção. O aqui hahaha acendeu-se outra vez e desapareceu novamente, como se o tivessem soprado. Quando voltou a acender-se vi uma entrada. Ouvi vozes.Entrei através de uma cortina de ar tépido em movimento.

Dentro estavam dois carros sem rodas. Brilhavam algumas lâmpadas e, debaixo delas, três pessoas gesticulavam acaloradamente, como se discutissem. Dirigi-me a elas.

— Olá!

Nem sequer se viraram. Continuaram a falar muito depressa e eu compreendi muito pouco do que diziam. «Então trabalha, então trabalha duro» dizia em voz fininha o mais baixo, que era barrigudo. Usava um barrete alto.

— Cavalheiros, procuro um hotel. Onde há…?

Não me prestaram atenção, como se eu não existisse. Fiquei furioso. Sem uma palavra, meti-me no meio deles. O que se encontrava mais perto de mim — vi olhos estúpidos, com o branco à vista e lábios trémulos — perguntou com receio:

— Tenho de trabalhar? Trabalhe você!

Exactamente como se estivesse a falar comigo.

— Por que armam em surdos? — perguntei e, de súbito, do lugar onde me encontrava, como se saísse de mim, do meu peito, soou um grito agudo:

— Eu mostro-lhe como é! Palavra que mostro!

Saltei para trás. Apareceu o gordo, do barrete. Fora ele que falara. Estendi a mão para lhe agarrar no braço, mas os meus dedos penetraram nele e só agarraram o ar. Fiquei especado, aparvalhado, e eles continuaram a tagarelar. De súbito, tive a impressão de que da escuridão por cima dos carros, lá muito no alto. alguém me observava. Aproximei-me mais da luz e vi as manchas pálidas das caras. Lá em cima havia qualquer coisa semelhante a uma varanda. Ofuscado pela luz, pouco consegui ver, mas foi o suficiente para me aperceber da grande figura de parvo que fizera. Saí dali como se alguém corresse atrás de mim. A rua seguinte subia e terminou numa escada rolante. Pensei que talvez encontrasse um infor e tomei a escada de tom dourado-claro. Encontrei-me numa praceta circular, muito pequena. No centro erguia-se uma coluna alta e transparente como vidro. Dançava qualquer coisa nela: formas purpúreas, castanhas e violeta, sem semelhanças fosse com o que fosse meu conhecido, como esculturas abstractas que tivessem ganhado vida, mas muito interessantes. As cores dilatavam-se. primeiro uma e depois outra, concentravam-se e adquiriam forma de um modo muito cómico. Essa melée de formas, ainda que desprovida de rosto, cabeça, pernas e braços, tinha um carácter muito humano, lembrava mesmo uma caricatura. Passados momentos, descobri que o violeta era um bufão vaidoso, arrogante e ao mesmo tempo cobarde; quando ele explodia num milhão de bolhas, o azul entrava em acção, angelical, modesto, senhor de si, mas de certo modo santimonial, como se rezasse para consigo. Não sei quanto tempo estive a olhar. Nunca tinha visto nada que se assemelhasse, nem de longe. Além de mim, não estava ali mais ninguém, embora o trânsito dos carros pretos fosse abundante. Nem sequer sabia se iam ou não ocupados, pois não tinham janelas. Da praceta circular partiam seis ruas, umas a subir e outras a descer. Parecia.serem extensas, um delicado mosaico de luzes coloridas. Quanto a infor, nada. Entretanto, sentia-me exausto, e não só fisicamente. Tinha a sensação de que não podia absorver mais impressões. Ocasionalmente, enquanto andava, perdia a noção das coisas, embora não dormitasse. Não me lembro como nem quando entrei numa larga avenida. Num cruzamento, afrouxei o passo, levantei a cabeça e vi a luminosidade da cidade nas nuvens. Fiquei surpreendido, pois julgara que caminhava por uma artéria subterrânea. Continuei a andar, agora num mar de luzes em movimento e de montras sem vidro à frente, entre manequins gesticulantes que giravam como piões e faziam ginástica furiosamente; estendiam objectos luminosos uns aos outros e estavam a inflar qualquer coisa, mas eu nem sequer olhei na sua direcção. Ao longe, caminhavam diversas pessoas — mas eu não tive a certeza de que não fossem bonecos e não tentei alcançá-los. Os edifícios afastaram-se e vi um enorme letreiro — parque terminal — e uma reluzente seta verde.

Uma escada rolante partia do espaço entre os edifícios, entrava subitamente num túnel prateado com uma espécie de pulsação dourada nas paredões, como se por baixo da máscara de mercúrio das paredes o nobre metal corresse deveras. Senti uma lufada de ar quente, apagou-se tudo e encontrei-me num pavilhão de vidro. Tinha a forma de uma concha, com um tecto com nervuras e um brilho verde quase imperceptível. A luz saía de veios delicados, como a luminescência de uma única e trémula folha gigantesca. Abriam-se portas em todas as direcções. Para lá delas, escuridão e pequenas letras a suceder-se no chão: parque terminal parque terminal…

Saí. Era realmente um parque. As árvores murmuravam incessantemente, invisíveis na escuridão. Não senti nenhum vento. Devia estar a soprar mais alto e a voz das árvores, firme e majestosa, envolvia-me num arco invisível. Senti-me só pela primeira vez, mas não como se estivesse só numa multidão, pois a sensação era agradável. Devia estar um certo número de pessoas no parque: ouvia murmúrios, ocasionalmente via brilhar a mancha de uma cara e uma vez até rocei por alguém. As copas das árvores uniam-se, de modo que as estrelas só eram visíveis através dos seus ramos. Lembrava-me de que para chegar ao parque tivera de subir e de que na praceta das cores dançantes e onde as ruas estavam cheias de montras tivera sobre mim um céu enevoado. Como se explicava então que, um nível mais alto, o céu que via agora fosse estrelado? Não consegui entender.

As árvores afastavam-se, mas antes de ver a água cheirei-a: captei o odor de lodo, de folhas a apodrecer ou encharcadas. Estaquei.

Um pequeno matagal formava um círculo à volta do Iago. Ouvi o roçagar de juncos e canas e ao longe, do outro lado, vi erguer-se, numa imensidade única, uma montanha de rocha luminosa e vítrea, um maciço translúcido acima das planícies da noite. Os penhascos verticais emanavam uma radiância espectral pálida e azulada, bastião após bastião, muralhas de cristal, abismos — e aquele colosso cintilante, impossível e inacreditável, reflectia-se numa cópia mais longa e mais pálida nas águas pretas do lago. Fiquei a olhar, estupefacto e extasiado. O vento trazia ecos ténues de música e, esforçando os olhos, consegui ver os socalcos e os terraços horizontais do gigante. Compreendi de repente que, pela segunda vez, estava a ver a estação, o imponente Terminal por onde vagueara perdido no dia anterior, e que talvez até estivesse a olhá-lo do fundo da negra extensão que tanto me intrigara no lugar onde encontrara Nais.

Aquilo ainda seria arquitectura ou construção de montanhas? Deviam ter compreendido que ao ultrapassarem certos limites tinham de abandonar a simetria e a regularidade da forma e aprender com o que era maior — inteligentes estudiosos do Planeta!

Contornei o lago. O colosso parecia guiar-me com a sua subida luminosa e imóvel. Sim, era preciso coragem para desenhar tal forma, para lhe dar a crueldade do precipício, a obstinação e a aspereza de penhascos e picos, mas sem cair na imitação mecânica, sem perder nada, sem falsificar. Voltei à muralha de árvores. O azul do Terminal, pálido contra o céu negro, ainda se via através dos ramos. Mas, finalmente, desapareceu, oculto pelo bosque. Afastei com as mãos os gravetos; silvas prendiam-se à camisola e batiam nas pernas das minhas calças; o orvalho, sacudido de cima, caía como chuva na minha cara. Meti algumas folhas na boca e mastiguei-as; eram folhas novas e amargas. Pela primeira vez desde o meu regresso senti que já não desejava, não procurava, não necessitava de uma única coisa; bastava-me andar às cegas para a frente, através daquela escuridão, no bosque murmurante. Teria imaginado que seria assim, 10 anos antes?

O matagal abriu-se e surgiu um carreiro sinuoso. O saibro rangeu debaixo dos meus pés, a brilhar levemente. Embora preferisse a escuridão, caminhei a direito para um círculo de pedra, onde se encontrava de pé uma figura humana. Não sabia de onde vinha a luz que a banhava; o lugar estava deserto e à sua volta havia bancos, uma mesa caída e areia solta e funda. Senti os meus pés enterrarem-se nela e achei-a morna, apesar da frescura da noite.

Debaixo de uma abóbada suportada por colunas rachadas e em ruínas encontrava-se uma mulher de pé, como se estivesse à minha espera. Pude ver-lhe a cara, o fluir de centelhas dos discos de diamantes que lhe ocultavam as orelhas, o vestido branco que a sombra da noite tomava prateado. Aquilo não era possível. Um sonho? Encontrava-me ainda a dúzias de passos dela quando começou a cantar. Entre as árvores invisíveis a sua voz era fraca, quase infantil, e eu não conseguia distinguir as palavras que cantava. Mas talvez não ouvesse palavras. Tinha a boca semiaberta, como se bebesse, e no seu rosto não havia nenhum sinal de esforço, não havia nada além de um olhar fixo, como se tivesse visto alguma coisa impossível de ver e fosse disso que cantava. Receoso de que me visse, caminhei cada vez mais devagar. Já me encontrava no halo de luminosidade que cercava o círculo de pedra. A sua voz tomou-se mais forte, a apelar para a escuridão, a suplicar; os seus braços pendiam como se tivesse esquecido que os tinha, como se naquele momento não tivesse mais nada além da voz e se perdesse nela, como se tivesse deitado fora tudo o mais e estivesse a dizer adeus, sabendo que com o último som moribundo algo mais do que a canção terminaria. Nunca imaginara que tal coisa fosse possível. Ela calou-se e eu continuei a ouvir a sua voz. De súbito, soaram passos ligeiros atrás de mim: era uma rapariga que corria para a cantora, seguida por alguém. Com uma gargalhada curta e gutural voou pelos degraus acima e correu através da cantora. Ouem a perseguia surgiu à minha frente, em contornos escuros, e desapareceram ambos. Ouvi ainda uma vez o riso provocante da rapariga e fiquei como um bloco de madeira, pregado na areia, sem saber se devia rir ou chorar. A cantora inexistente trauteava suavemente qualquer coisa. Não quis ouvir. Afastei-me na escuridão como uma criança a quem tivessem mostrado a falsidade de um conto de fadas. Tinha sido uma espécie de profanação. A sua voz perseguiu-me, enquanto eu caminhava. Descrevi uma curva, o caminho continuava, e vi sebes a brilhar tenuemente, ramos húmidos de folhas suspensas sobre uma cancela de metal. Abri-a. Havia mais luz, atrás dela. As sebes terminaram numa clareira larga; da erva irrompiam pedregulhos, um dos quais se moveu e aumentou em tamanho. Vi as chamas pálidas de dois olhos. Parei. Era um leão. O animal levantou-se pesadamente, primeiro os quartos dianteiros. Finalmente vio-o todo, a cinco passos dc mim. Tinha uma juba rala e emaranhada. Espreguiçou-se uma, duas vezes, e com uma lenta ondulação dos ombros aproximou-se de mim, sem fazer o mínimo ruído. Mas eu já me refizera.

— Pronto, pronto, porta-te bem — disse.

Nâo podia ser real, era um fantasma como a cantora, como os outros que vira junto dos carros pretos… Bocejou a um passo de distância. Na caverna escura da boca brilharam as presas. Fechou as mandíbulas com um som que lembrou um cadeado a ser fechado e chegou-me às narinas o fedor do seu hálito.

Rosnou. Senti pingos da sua saliva e, antes que tivesse tempo para me aterrorizar, bateu-me no quadril com a enorme cabeça e roçou-se contra mim, a ronronar. Senti um estremecimento idiota no peito…

Apresentou-me a parte inferior do pescoço, com a pele pesada e solta. Meio consciente, comecei a coçá-lo, a afagá-lo, e ele ronronou ainda mais. Atrás dele brilhou outro par de olhos, outro leão… não, era uma leoa, que o afastou. A garganta do leão emitiu um som, mas era um ronrom e não um rugido. A leoa persistiu. Ele bateu-lhe com uma pata e ela rosnou furiosamente.

«Isto ainda acabará mal», pensei. Estava indefeso e os leões estavam tão vivos e eram tão genuínos quanto era possível imaginar. Encontrava-me entre o fedor forte dos seus corpos. A leoa continuava a rugir. De súbito, o leão soltou a juba áspera das minhas mãos, virou a enorme cabeça para ela e rugiu também. Ela estendeu-se no chão, silenciosa.

«Tenho de ir andando», disse-lhes mudamente, apenas com os lábios. Comecei a recuar na direcção da cancela, lentamente. Não foi ura raomento agradável, mas o leão pareceu não reparar em mim. Deitou-se pesadamente e voltou a parecer um pedregulho alongado. A leoa aproximou-se e bateu-Ihe com o focinho.

Quanto fechei a cancela atrás de mim tive de fazer um grande esforço para não desatar a correr. Tinha os joelhos um pouco fracos e a garganta seca, e quando pigarreei o pigarro transformou-se numa gargalhada descabelada. Lembrei-me do que dissera ao leão: «Pronto, pronto, porta-te bem», convencido de que era apenas uma ilusão.

As copas das árvores recortavam-se mais distintamente no céu; começava a alvorecer. Senti-me grato por isso, pois não sabia como sair do parque, que entretanto ficara completamente vazio. Passei pelo círculo de pedra onde a cantora aparecera; na alameda seguinte deparou-se-me um robot a aparar a relva. Não sabia nada a respeito de nenhum hotel, mas disse-me como chegaria à escada rolante mais próxima. Creio que desci vários níveis e ao desembocar na rua, no fundo, fiquei surpreendido por ver de novo o céu por cima de mim. Mas a minha capacidade de me surpreender estava quase esgotada. Já tinha a minha conta de surpresas. Caminhei um bocado. Lembro-me de que, mais tarde, me sentei junto de uma fonte, embora talvez não fosse uma fonte. Levantei-me e caminhei na luz que alastrava do novo dia, até acordar do meu entorpecimento defronte das grandes e brilhantes montras e das letras ígneas do Alcaron Hotel.

No cubículo do guarda-portão, que parecia uma banheira gigantesca virada ao contrário, estava sentado um robot de belo estilo e semitransparente, com braços compridos e delicados. Sem perguntar nada, estendeu-me o livro de registo de hóspedes; assinei-o e subi, a segurar num pequeno bilhete triangular. Alguém — não faço ideia quem — me ajudou a abrir a porta — ou melhor, a abriu por mim. Paredes de gelo e, nelas fogos em circulação. Debaixo da janela, à minha aproximação, emergiu uma cadeira do nada e deslizou para debaixo de mim. O tampo de uma mesa começara também a descer, a formar uma espécie de secretária, mas o que eu queria era uma cama. Não vi nenhuma e nem sequer tentei procurar: deitei-me na fofa carpete e adormeci imediatamente na luz artificial do quarto sem janela, porque o que eu tomara por janela era, evidentemente, uma televisão. Adormeci por isso com o conhecimento de que, atrás da placa de vidro, uma cara gigantesca me fazia caretas, meditava, ria, tagarelava… Libertou-me um sono que parecia a morte, um sono em que até o tempo se imobilizou.

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