VIII

Entretanto, Qlaf não dava sinais de vida. Comecei por me sentir intranquilo e depois culpado. Com medo de que tivesse cometido alguma loucura. Porque ele ainda estava só, mais só ainda do que eu estivera. Não queria envolver Eri em acontecimentos imprevisíveis, e isso aconteceria se começasse a procurar pessoalmente. Por isso, decidi ir ter primeiro com Thurber. Não estava certo se iria pedir-lhe conselhos. Só queria vê-lo. Tinha sido o Olaf que me dera o endereço. Thurber estava no centro universitário de Malleolan. Telegrafei-lhe a avisá-lo da minha visita e separei-me de Eri pela primeira vez. Nos últimos dias ela andara reticente e nervosa, facto que atribuí a preocupação por Olaf. Prometi-lhe que voltaria o mais depressa que pudesse, provavelmente dentro de dois dias, e que não faria nada sem a consultar primeiro.

Eri conduziu-me a Houl, onde embarquei num ulder directo. As praias do Pacífico já estavam desertas, dada a aproximação das tempestades do Outono. Os magotes coloridos de jovens tinham desaparecido da estâncias locais. Por isso, não me surpreendi de ser praticamente o único passageiro do projéctil prateado. O voo, através de nuvens que tornavam tudo irreal, durou quase uma hora e terminou ao crespúsculo. A cidade erguia-se através da escuridão que se adensava como um fogo multicolorido— os edifícios mais altos, em forma de taça, brilhavam no meio como chamas ténues e imóveis, com os seus contornos, recortados em nuvens brancas, a lembrar borboletas gigantes unidas por arcadas dos níveis mais altos; os níveis inferiores das ruas, a desembocar uns nos outros, formavam rios coleantes e coloridos. Talvez fosse por causa da neblina ou um efeito do material de construção semelhante a vidro, mas, de cima, a cidade parecia um aglomerado de gemas concêntricas, uma ilha de cristal cravejada de pedras preciosas a erguer-se do oceano, cuja superfície de espelho repetia mais e mais tenuemente os socalcos reluzentes, do primeiro até ao último, agora praticamente invisíveis, como se debaixo da cidade se encontrasse o seu incandescente esqueleto de rubi. Custava a crer que aquele conto de fadas de chama e cor misturadas fosse o lar de vários milhões de pessoas.

O complexo universitário erguia-se fora da cidade. O meu ulder aterrou num imenso parque, numa plataforma de cimento. Somente a pálida claridade prateada através do céu, por cima da parede de árvores, indicava a proximidade da cidade. Uma longa avenida conduzia ao edifício principal, que estava escuro, como se deserto.

Mal abri a enorme porta, o interior inundou-se de luz. Encontrei-me num vestíbulo abobadado, com azulejos azul-pálido. Uma rede de passagens à prova de som conduziu-me a um corredor simples e austero. Abri uma porta, depois outra, mas as salas estavam todas vazias, como se as pes.soas tivessem partido havia muito tempo. Subi um lanço de escada verdadeira. Devia haver um elevador algures, mas não.me apeteceu procurá-lo. Além disso, escadas que não se moviam era uma novidade. Ao cimo, seguindo em ambas as direcções havia outro corredor com salas vazias. Na porta de uma delas vi um pequeno papel com as palavras: «Aqui, Bregg.» Bati e ouvi a voz de Thurber.

Entrei. Ele estava sentado, inclinado para a frente, à luz de um candeeiro suspenso e baixo: Atrás dele, a escuridão de uma janela de parede. A secretária à qual ele trabalhava estava cheia de papéis e livros — livros a sério — e noutra secretária mais pequena havia autênticos punhados dos «bagos de milho» de cristal, assim como várias peças de equipamento. Tinha à frente uma rima de papel que estava a anotar nas margens com uma caneta— uma caneta de tinta permanente!

— Sente-se — disse, sem levantar a cabeça. — Acabo isto num minuto.

Sentei-me numa cadeira baixa junto da secretária, mas desviei-a imediatamente para o lado, porque a luz transformava a sua cara numa mancha e eu queria vê-lo bem.

Trabalhava ã sua maneira característica, de testa franzida sob o clarão do candeeiro. Aquela sala era uma das mais simples que eu vira até então, com paredes baças, uma velha porta e nenhuma decoração. E também nenhum dos cansativos dourados. De cada lado da porta havia um écran quadrado e em branco, e a parede que ficava perto da janela estava cheia de armários metálicos. Encostados a um deles estavam rolos de mapas ou de desenhos técnicos. E mais nada. Observei Thurber. Calvo, solidamente constituído, pesado. Escrevia e de vez em quando limpava os olhos com a mão. Os seus olhos enchiam-se constantemente de água. Gimma (que gostava de revelar os segredos alheios, especialmente os que uma pessoa mais se esforçava por ocultar) dissera-me uma vez que Tliurber tinha medo de cegar. O que explicava por que motivo era sempre o primeiro a deitar-se quando mudávamos de aceleração e também a razão por que, nos últimos anos, deixava os outros fazer coisas que em tempos insistira em fazer ele próprio.

Reuniu os papéis com ambas as mãos, bateu com eles na secretária, acertou-lhes as arestas e meteu-os numa pasta, que fechou. Só então baixou as mãos grandes de dedos grossos, que pareciam ter dificuldade em dobrar-se, e disse:

— Bem-vindo, Hal. Como vai isso?

— Não me queixo. Está… sozinho?

— Quer saber se o Gimma está aqui? Não está. Partiu ontem, para a Europa.

— Está a trabalhar?

— Estou.

Seguiu-se uma pausa. Não sabia como aceitaria ele o que tinha para lhe dizer. Primeiro queria saber o que pensava do mundo a que viéramos parar. Claro que, conhecendo-o, não esperava um jorro de palavras. Ele guardava para si a maioria das suas opiniões.

— Está aqui há muito tempo?

— Bregg — disse, sem se mexer —, duvido que isso lhe interesse! Está com rodeios.

— Possivelmente — admiti. — Devo então dizer o que tenho em mente?

Começava a sentir de novo aquele constrangimento, um não-sei-quê entre irritação e timidez, que sempre se apoderava de mim na sua presença. Desconfio de que os outros sentiam o mesmo. Nunca se sabia quando ele falava a sério ou estava a brincar. Apesar de toda a sua compostura e da atenção que nos dispensava, era difícil imaginar o que se passava.

— Não — respondeu-me. — Talvez mais tarde. De onde veio?

— De Houl.

— Directamente?

— Sim. Por que pergunta?

— Isso é bom — disse, como se não tivesse ouvido a minha pergunta.

Olhou-me durante uns cinco segundos, talvez, sem se mexer, como se quisesse adquirir a certeza da minha presença. A sua expressão não dizia nada, mas eu sabia que alguma coisa tinha acontecido. Dir-me-ia o quê? Era imprevisível. Enquanto eu me perguntava como deveria começar, ele estudava-me cuidadosamente, como se eu lhe tivesse aparecido numa forma não familiar.

— Que está o Vabach a fazer? — perguntei quando aquela silenciosa perscrutação se tomou demasiada.

— Foi com o Gimma.

Não era isso o que eu queria saber, e ele percebera-o, mas a verdade é que não fora ali para lhe perguntar por Vabach. Novo silêncio. Comecei a arrepender-me da minha decisão.

— Ouvi dizer que casou — disse de súbito, quase descuidadamente.

— Casei — respondi, talvez com excessiva secura.

— Fez-lhe bem.

Tentei encontrar qualquer outro assunto de conversa. Além de Olaf, nada mais me acudiu ao espírito, mas eu ainda não queria perguntar por ele. Receava o sorriso de Thurber — o modo como costumava demolir Gimma, e não só —, mas ele limitou-se a arquear um pouco as sobrancelhas e a perguntar-me:

— Oue planos tem?

— Nenhuns — respondi, e era verdade.

— E gostaria de fazer alguma coisa?

— Gostaria, mas nem tudo me serviria.

— Ainda não fez nada até agora?

Corei, definitivamente. Fiquei furioso.

— Não, nada. Thurber… não vim cá para falar de mim.

— Bem sei — respondeu, serenamente. — Trata-se do Staave, não trata?

— Trata.

— Houve um certo elemento de risco nisso — declarou, afastando-se devagarinho da secretária; a sua cadeira virou-se obedientemente para mim. — O Oswann receou o pior, especialmente mais tarde, quando o Staave deitou fora o seu hipnagogue… Você fez o mesmo, não fez?

— Oswann? — repeti. — Que Oswann? Espere… o da Adaptação?

— Sim. Ele estava mais preocupado com o Staave. Eu apontei-lhe o seu erro.

— Que quer dizer?

— Mas o Gimma responsabilizou-se pelos dois… — concluiu, como se não me tivesse ouvido.

— O quê? — perguntei, e levantei-me da cadeira. — Gimma?

— Claro que ele não sabia nada — prosseguiu Thurber — e disse-mo.

— Então por que diabo se responsabilizou por nós? — explodi, confuso.

— Achou que devia fazê-lo — explicou Thurber, laconicamente. — Que o director de uma expedição devia conhecer os seus homens…

— Disparate.

— Só estou a repetir o que ele disse ao Oswann.

— Sim? E de que tinha o Oswann medo? Que nos amotinássemos?

— Nunca sentiu esse impulso? — perguntou, calmamente.

Pensei antes de responder.

— Não — disse, por fim. — Seriamente, nunca.

— E deixará os seus filhos serem betrizados?

— E você? — perguntei, devagar.

Sorriu pela primeira vez e os seus lábios exangues estremeceram. Mas não disse nada.

— Escute, Thurber, lembra-se daquela noite, depois do último voo sobre Beta… quando lhe disse…

Acenou com a cabeça, indiferente. De súbito, a minha calma evaporou-se.

— Sabe, nessa altura não lhe disse tudo. Estávamos todos juntos, mas não em igualdade de circunstâncias. Eu recebia ordens de vocês dois — de você e de Gimma —, queria que fosse assim. Queríamos todos. Venturi, Thomas, Ennesson e Arder, que não receberam um depósito de reserva porque Gimma o estava a guardar para uma necessidade. Óptimo. Mas que lhe dá agora o direito de me falar como se tivesse passado o tempo todo sentado nessa cadeira? Foi você que mandou o Arder descer em Kereneia em nome da ciência, Thurber, e eu tirei-o de lá em nome do seu pobre coiro. Regressámos e, afinal, agora verifica-se que o coiro é o que conta; o resto não conta. Portanto, talvez eu devesse estar a perguntar-lhe como se sente e a responsabilizar-me por si e não o contrário, hem? Que lhe parece? Mas eu sei o que lhe parece. Trouxe um monte de factos e pode enterrar-se neles até ao fim dos seus dias, sabendo que nenhuma destas pessoas corteses lhe perguntará: «Quanto custou esta análise espectral? Um homem, dois homens? Não acha, professor Thurber, que o preço foi um pouco elevado?» Ninguém lhe dirá isso porque não têm contas em aberto connosco. Mas o Venturi tem. E o Arder, e o Ennesson, e o Thomas. Que utilizará como pagamento, Thurber? Pagará esclarecendo Qswann a meu respeito? E o Gimma responsabilizando-se pelo Olaf e por mim? A primeira vez que o vi, estava a fazer a mesma coisa que está a fazer hoje. Foi em Apprenous. Estava sentado no meio dos seus papéis e olhava fixamente, como agora. A aproveitar uma folga de assuntos mais importantes, em nome da ciência…

Levantei-me.

— Agradeça ao Gimma por ter tomado o nosso partido…

Thurber levantou-se, também. Durante talvez um segundo fitámo-nos nos olhos. Ele era mais baixo, mas não se notava. A sua altura não importava. A calma do seu olhar era indescritível.

— É-me permitido falar ou a sentença já foi dada? — indagou.

Resmunguei qualquer coisa ininteligível.

— Então sente-se — respondeu-me e, sem esperar, sentou-se pesadamente na sua cadeira.

Voltei a sentar-me.

— Mas você fez alguma coisa — disse, num tom que dava a impressão de que estivéramos a falar do tempo. — Leu Starck, acreditou nele, sentiu-se ludibriado e agora procura alguém sobre quem lançar as culpas. Se isso significa muito para si, posso aceitá-las. Mas não é esse o ponto. Starck convenceu-o, ao fim daqueles dez anos? Bregg, eu sabia que era um espaIha-brasas, mas nunca o considerei estúpido.

Fez uma pausa momentânea e, estranhamente, senti algo parecido com alívio e uma esperança de libertação. Não tive tempo para analisar essa sensação, porque ele prosseguiu:

— Contacto com civilizações galaxiais? Mas quem disse alguma coisa a esse respeito? Nenhum de nós. nenhum dos sábios, nem Merquier, nem Simonadi. nem Rag Ngamieli… ninguém. Nenhuma expedição contava com semelhante contacto e. portanto, toda essa conversa acerca de fósseis a voar através do espaço e do correio galáctico perpetuamente atrasado é uma refutação de um argumento que nunca ninguém apresentou. Que se pode obter das estrelas? E para que serviu a expedição de Amundsen? Ou a de Andrée? Para nada. O único benefício claro reside no facto de terem provado uma possibilidade. Demonstraram que se podia fazer. Ou, mais precisamente, que foi durante um dado tempo a coisa alcançável mais difícil de alcançar. Não sei se nós conseguimos sequer isso, Bregg. Francamente, não sei. Mas estivemos lá.

Fiquei calado. Thurber não olhava para mim. Descansou os punhos na beira da secretária.

— Que lhe provou o Starck? A inutilidade da cosmodromia? Como se nós próprios o não soubéssemos! E os pólos! Que havia nos pólos? Os que os conquistaram sabiam que não havia lá nada. E a Lua? Que procurou o grupo de Ross na cratera de Eratóstenes? Diamantes? E porque atravessaram Bant e Jegorin a face de Mercúrio? Para se bronzearem? E Kellen e Offshagg? A única coisa de que tinham a certeza, quando voaram para a nuvem fria de Cérbero, era de que podiam lá morrer. Não sabe o que Starck está realmente a dizer? Que um ser humano deve comer, beber e vestir-se e que o resto é loucura. Todo o homem tem o seu Starck, Bregg. Todos os períodos da História o tiveram também. Por que os mandou Gimma a si e ao Arder? Para recolherem amostras da coroa. Quem mandou Gimma? A ciência. Claro e simples, não é? O estudo das estrelas. Bregg, pensa que não teríamos ido se não houvesse estrelas? Digo-lhe que teríamos. Teríamos querido examinar aquele vazio, para encontrar uma explicação para ele. Geonides ou qualquer outro ter-nos-ia dito que valiosas medições e experiências poderíamos efectuar, de caminho. Não me interprete mal. Não estou a dizer que as estrelas são apenas um pretexto. Tão-pouco o foi o pólo. Nansen e Andrée pecisavam dele… O Everest significou mais para Mallory e Irving do que o próprio ar. Diz que eu lhe dei ordens «em nome da ciência»? Sabe que isso não é verdade. Você esteve a pôr à prova a minha memória. Quer que ponha à prova a sua? Lembra-se do planetóide de Thomas?

Estremeci.

— Você mentiu-nos. então. Desceu uma segunda vez sabendo que ele estava morto. Não é verdade?

Fiquei calado.

— Eu desconfiei imediatamente. Nunca discuti o caso com o Gimma, mas creio que ele também desconfiou. Por que o fez, Bregg? Não era Arcturus nem Kereneia e não havia ninguém para salvar. Que objectivo foi o seu. homem?

Continuei calado. Thurber esboçou um sorriso.

— Sabe qual é o nosso problema, Bregg? O facto de o termos feito e de estarmos agora aqui sentados. O homem regressa sempre de mãos vazias…

Calou-se. O seu sorriso tomou-se uma careta quase sem significado. Por instantes respirou mais ruidosamente, a agarrar a secretária com ambas as mãos. Olhei-o como se o visse pela primeira vez. Achei-o velho e essa descoberta foi um choque para mim. Nunca pensara nele assim, fora sempre como se não tivesse idade…

— Thurber — disse, calmamente —, escute… Isto é, bem… apenas um panegírico sobre as sepuhuras dos… insaciáveis. Agora não há nenhuns como eles. E não voltará a haver. Por isso, no fim de contas, Starck vence…

Mostrou os dentes quadrados e amarelos, mas não se tratou de um sorriso.

— Bregg. dê-me a sua palavra de que não contará a ninguém o que lhe vou dizer.

Hesitei.

— A ninguém — repetiu, com ênfase.

— Está bem.

Levantou-se, foi ao canto da sala, pegou num rolo de papel e voltou com ele para a secretária.

O papel fez uma pequena restolhada, ao desenrolar-se nas suas mãos. O que vi pareceu-me um peixe esventrado, com linhas vermelhas como sangue.

— Thurber!

— Sim — respondeu serenamente, e enrolou de novo o papel com ambas ás mãos.

— Uma nova expedição?

— Sim — repetiu, e foi encostar de novo o rolo ao canto, como uma espingarda.

— Quando? Onde?

— Não muito em breve. Ao Centro.

— Sagitário… — Murmurei.

— Sim. Os preparativos demorarão muito tempo. Mas graças à anabiose…

Continuou a falar, mas eu só captava palavras e expressões isoladas — «voo em loop», «aceleração não gravitacional» — e a excitação que sentira quando vira o desenho do foguetão gigante cedeu o lugar a uma letargia inesperada, de cujo centro examinei as mãos que tinha apoiadas nos joelhos. Thurber calou-se, olhou para mim, foi para a secretária e começou a reunir papéis, como se quisesse dar-me tempo para digerir a notícia. Eu devia bombardeá-lo com perguntas — quais de nós. da velha guarda, voaríamos; quantos anos duraria a expedição: quais os seus objetivos?… — , mas não perguntei nada. Nem sequer por que motivo estava a ser guardado segredo de tudo. Olhei-lhe para as mãos grandes e grossas, que denunciavam a sua idade mais claramente do que o seu rosto, e senti uma pequena satisfação, tão inesperada quanto mesquinha: pensei que ele pelo menos não voaria. Quanto a mim, não viveria para os ver regressar, nem mesmo que derrubasse o recorde de Matusalém. Não interessava. Não tinha importância. Levantei-me. Thurber remexeu nos seus papéis.

— Bregg — disse, sem levantar a cabeça —, ainda tenho que fazer. Se quiser, podemos jantar juntos. Você poderá passar a noite no dormitório, que está agora vazio.

Murmurei um «está bem» e dirigi-me para a porta. Ele recomeçara a trabalhar como se eu já ali não estivesse. Fiquei uns momentos junto da porta e por fim saí. Só tive consciência exacta de onde estava quando ouvi o som firme dos meus próprios passos: Parei. Encontrava-me no meio do comprido corredor, entre duas séries de portas idênticas. O eco dos meus passos ainda se ouvia. Ilusão? Alguém que me seguia? Virei-me e vi uma figura alta desaparecer por uma das portas, ao fundo. Foi tudo tão rápido que não vi bem a pessoa; vi apenas um movimento, umas costas e uma porta a fechar-se. Não tinha nada a fazer ali. Não fazia sentido caminhar mais: o corredor não tinha saída. Voltei para trás, passei por uma enorme janela através da qual vi a claridade da cidade, prateada no imenso parque negro, e parei de novo defronte da porta onde se lia: «Aqui, Bregg.» E onde Thurber estava a trabalhar. Já não queria vê-lo. Não tinha nada a dizer-lhe nem ele a mim. Porque viera, para começar? De súbito, lembrei-me porquê, surpreendido. Voltaria a entrar e perguntaria pelo Olaf. Mas não já. Não estava cansado; sentia-me perfeitamente, mas estava a acontecer-me qualquer coisa, qualquer coisa que não compreendia. Dirigi-me para a escada. Defronte dela ficava a última das portas, aquela por onde a pessoa desconhecida desaparecera pouco antes. Lembrei-me de que espreitara para essa sala ao princípio, quando entrara no edifício; reconheci a mancha de tinta a cair. Nessa altura não havia nada na sala. Que teria a pessoa lá ido fazer?

Tive a certeza de que não fora fazer nem procurar nada, que se escondera apenas de mim, e parei alguns momentos indeciso defronte da escada, da escada vazia, branca e imóvel. Lentamente, muito lentamente, voltei-me. Sentia uma estranha inquietação… não era bem uma inquietação, pois não tinha medo de nada… O que sentia assemelhava-se ao que sentimos depois de uma injecção de anestésico… Estava tenso, mas senhor de mim. Dei dois passos e apurei o ouvido. Pareceu-me ouvir, do outro lado da porta, o som de uma respiração. Impossível. Decidi ir-me embora, mas não fui capaz. Tinha prestado demasiada atenção àquela ridícula porta, não me podia ir embora assim. Abri-a e olhei para dentro. Sob um pequeno candeeiro de tecto, no meio da sala vazia, estava Olaf, de pé. Com a mesma velha roupa e as mangas arregaçadas, como se tivesse acabado de largar as ferramentas.

Olhámos um para o outro. Ao ver que eu não falava, falou ele:

— Como estás, Hal?

A sua voz não estava totalmente firme.

Não me apetecia brincar. Estava apenas surpreendido com aquele encontro inesperado e talvez ainda estivesse, também, sob o efeito do choque das palavras de Thurber. De qualquer modo, não respondi. Aproximei-me da janela, de onde se desfrutava a mesma vista — o parque negro e a claridade da cidade —, voltei-me e sentei-me no parapeito. Olaf não se mexeu. Continuou no centro da sala. Do livro que segurava soltou-se uma folha de papel que caiu para o chão. Inclinámo-nos ao mesmo tempo. Eu apanhei a folha de papel e vi a planta do foguetão, a mesma que Thurber me mqstrara havia momentos. No fundo da folha estavam observações na caligrafia de Olaf. Era então isso, pensei. Ele não escrevera por que ia voar e quisera poupar-me o conhecimento desse facto. Eu dir-lhe-ia que estava enganado, que não me interessava a expedição. Ficara farto das estrelas e, de qualquer modo, Thurber dissera-me tudo e, por isso, podia falar com a consciência tranquila.

Olhei cuidadosamente para as linhas do desenho que tinha na mão, como se aprovasse o aerodinamismo do foguetão, mas não disse nada. Limitei-me a estender-lhe o papel, que ele aceitou com certa relutância, dobrou ao meio e colocou dentro do livro. Tudo isso se passou num silêncio total — não intencionalmente, estou certo, mas sim porque foi executada em silêncio, a cena assumiu um significado simbólico, como se eu tivesse tomado conhecimento da sua participação na expedição e, ao devolver o desenho, aceitasse esse passo sem entusiasmo, mas também sem pesar. Quando tentei olhá-lo nos olhos ele desviou a cabeça, mas decorrido um momento olhou-me. Era a imagem da incerteza e da confusão. Mesmo então, quando eu já sabia tudo? O silêncio da pequena sala tomou-se insuportável. Ouvi-o respirar um pouco mais depressa. O seu rosto estava encovado e os seus olhos menos brilhantes do que da última vez que o vira, como se andasse a trabalhar muito e a dormir pouco. Mas também havia neles outra expressão que não reconheci.

— Estou óptimo — respondi, devagar. — E tu?

No instante em que proferi tais palavras compreendi que o momento para as dizer passara; teriam estado bem quando entrei, mas agora pareciam quase hostis, ou até mesmo sarcásticas.

— Viste o Thurber? — perguntou-me.

— Vi.

— Os estudantes partiram… Agora não há aqui ninguém, eles deram-nos o edifício todo… — começou a explicar, desajeitadamente.

— Para vocês poderem trabalhar no plano da expedição? — indaguei, e ele respondeu imediatamente:

— Sim, Hal. Mas tu sabes o género de trabalho que é… Neste momento somos apenas um punhado, mas temos máquinas fantásticas, esses robots, sabes…

— Óptimo.

Seguiu-se outro silêncio. E, singularmente, quanto mais ele se prolongava, tanto maior se tomava a ansiedade de Olaf, a sua exagerada rigidez, pois continuava no meio da sala, como que pregado ao chão, debaixo da luz, preparado para o pior. Decidi pôr cobro àquilo:

— Escuta — disse, muito suavemente. — Que imaginaste, ao certo? A atitude cobarde não resulta, bem sabes… Pensaste realmente que eu não descobriria se tu me não dissesses?

Calei-me e ele permaneceu silencioso, com a cabeça inclinada para um lado. Eu fora longe de mais, sem dúvida, pois ele não tinha a culpa — se estivesse nas suas circunstâncias, talvez eu tivesse feito o mesmo. Tão-pouco lhe queria mal pelo seu silêncio de um mês. O que me magoava era aquela tentativa de fugir, de se esconder de mim naquela sala vazia, quando me vira sair do gabinete de Thurber. Mas não podia dizer-lho claramente, era demasiado estúpido e ridículo. Ergui a voz, chamei-lhe grandíssimo idiota, mas nem mesmo assim ele se defendeu.

— Achas então que não resta nada para discutir? — perguntei, brusco.

— Isso depende de ti.

— Depende de mim, como?

— De ti — repetiu, obstinado. — Era importante quem se encarregaria de te dizer…

— Acreditás realmente nisso?

— Foi o que me pareceu…

— Não faz diferença nenhuma — resmunguei.

— Que tencionas fazer? — perguntou, sereno.

— Nada.

Olaf olhou-me, desconfiado.

— Escuta, Hal, eu…

Não terminou a frase. Eu percebia que estava a torturá-lo com a minha presença, mas não podia perdoar-lhe que tivesse fugido. E partir naquele momento, assim, sem uma palavra, teria sido pior do que a incerteza que ali me levara. Não sabia que dizer. Tudo quanto nos unia estava proibido. Olhei-o no mesmo momento em que ele olhou também para mim. Cada um de nós estava a contar que o outro ajudasse.

Desci do parapeito.

— Olaf, é tarde. Vou-me embora. Não penses que estou zangado contigo. De maneira nenhuma. De qualquer modo, havemos de nos encontrar, talvez tu nos visites… — Disse as palavras com esforço, sem naturalidade, e ele percebeu-o.

— O quê… não passas cá a noite?

— Não posso. Compreendes, prometi…

Não disse o nome dela. Olaf murmurou:

— Como queiras. Eu acompanho-te à saída.

Saímos da sala juntos e descemos a escada. No exterior escurecera por completo. Olaf caminhou a meu lado sem uma palavra. De súbito, parou. E eu parei também.

— Fica — murmurou, como que envergonhado; só lhe consegui ver a mancha vaga da cara.

— Está bem — concordei inesperadamente, e voltei-me.

Ele não estava preparado para isso. Ficou um momento parado e depois deu-me o braço e conduziu-me a outro edifício mais baixo. Numa sala deserta e com algumas luzes acesas jantámos num balcão, sem nos sentarmos se(|uer. Durante toda a refeição trocámos talvez umas dez palavras. Depois íiimos para o andar de cima.

O quarto aonde me conduziu era um quadrado quase perfeito, branco baço, com uma grande janela que devia abarcar o parque de uma direcção diferente, pois não vi a claridade da cidade por cima das árvores. Havia uma cama feita de lavado, duas cadeiras e uma terceira cadeira, maior, junto da janela. Através de uma porta entreaberta viam-se, brilhantes, os azulejos de uma casa de banho. Olaf parou à porta de braços pendentes, como se esperasse que eu falasse. Mas eu não disse nada, limitei-me a dar a volta ao quarto e a tocar nos móveis maquinalmente, como se tomasse temporariamente posse deles. Depois ele perguntou, calmo:

— Posso ser-te útil nalguma coisa?

— Podes. Deixa-me em paz.

Continuou ali parado, sem se mexer. O seu rosto tornou-se vermelho e depois pálido e, de súbito, sorriu, sorriu para ocultar o insulto, pois as minhas palavras tinham soado como um insulto. Perante aquele sorriso desamparado, patético, algo dentro de mim se quebrou. Num esforço convulsivo para arrancar a máscara de indiferença que afivelara, pois não tinha outra, corri para ele quando se voltava para sair, agarrei-lhe na mão e apertei-lha como se, com a violência do meu aperto, lhe pedisse perdão. E ele, sem olhar para mim, respondeu com um aperto semelhante e foi-se embora. Ainda sentia um formigueiro na minha mão, da firmeza com que fora apertada, quando ele fechou a porta atrás de si, cuidadosa e silenciosamente. como se saísse do quarto de um doente. Fiquei sozinho, como quisera.

O edifício estava cheio de um silêncio absoluto. Não ouvi sequer os passos de Olaf, a retirar-se. O meu vulto pesado reflectia-se tenuemente no vidro da janela; de uma fonte desconhecida vinha ar quente. Através dos contornos do meu reflexo vi as silhuetas das árvores, entretanto mergulhadas em completa escuridão. Passei de novo o olhar pelo quarto e depois fui para a grande cadeira junto da janela.

Uma noite de Outono. Não podia pensar sequer em dormir. Parei à janela. A escuridão que ficava para lá dela estava com certeza cheia de frescura e do murmúrio dos ramos sem folhas a roçar uns nos outros. De súbito, desejei estar lá, vaguear pelo meio da escuridão, através do seu caos não premeditado. Saí do quarto sem pensar. O corredor estava deserto. Fui em bicos de pés até à escada — precaução desnecessária, provavelmente, pois Olaf já se devia ter deitado e Thurber, se estava a trabalhar, encontrava-se num andar diferente, numa ala distante do edifício. Corri pela escada abaixo, já sem ter o cuidado de abafar os passos, saí e comecei a andar depressa. Não escolhi nenhuma direcção especial, limitei-me a andar e a evitar o mais possível a claridade da cidade. Os caminhos do parque não tardaram a conduzir-me para além dos seus limites, assinalados por uma sebe. Encontrei-me na estrada, caminhei um bocado e depois parei bruscamente. Não queria caminhar por uma estrada abaixo; as estradas conduziam a casas, a gente, e eu queria estar só. Lembrei-me de que Olaf me falara em Clavestra de Malleolan, a nova cidade nas montanhas, construída depois da nossa partida. De facto, os poucos quilómetros de estrada que percorrera pareciam cheios de cotovelos e curvas, sem dúvida a contornar encostas, mas na escuridão eu não podia certificar-me disso. Tipicamente, a estrada não estava iluminada: a sua superfície brilhava com uma fosforescência fraca, tão fraca que não iluminava a vegetação dos lados. Por isso, deixei a estrada, tacteei o caminho às escuras e encontrei-me entre arbustos baixos e densos, que subiam para um monte sem árvores — sem árvores porque o vento soprava ali livremente. Avistei diversas vezes fragmentos pálidos e sinuosos da estrada que abandonara, lá muito em baixo, e depois a última luz desapareceu. Parei uma segunda vez. Menos com os olhos inúteis do que com todo o corpo, de cara ao vento, tentei tomar conhecimento com a Terra, que me era tão estranha como outro planeta. Queria alcançar um dos picos que rodeavam o vale onde se erguia a cidade, mas como encontrair a direcção certa? De súbito, quando todos os esforços me pareciam vãos, ouvi um rugido distante e prolongado, semelhante a ondas mas ao mesmo tempo diferente, que vinha de cima e da direita: o ruído do vento a soprar através de uma floresta, uma floresta que se situava a uma altitude muito superior àquela em que me encontrava. Segui nessa direcção. Uma encosta invadida por erva seca conduziu-me às primeiras árvores. Escolhi o meu caminho através desses fantasmas, de braços levantados para proteger a cara dos ramos. Em breve a encosta tomou-se menos íngreme, as árvores tomaram-se menos densas e tive de escolher de novo uma direcção. A escutar atentamente no escuro, aguardei com paciência a próxima rajada de vento forte. E o vento soprou, ouvi o seu longo silvo vir do terreno alto, ao longe. Sim, o vento daquela noite era meu aliado. Segui a direito, ignorando o facto de estar a perder altitude, a descer ingrememente para uma ravina negra. No fundo havia um declive também íngreme. Comecei a subir gradualmente, com um pequeno regato a indicar-me o caminho. A certa altura deixei de o ver. Provavelmente passou a correr sob uma camada de pedras. O som da água foi diminuindo à medida que eu subia, até que emudeceu por completo e mais uma vez a floresta me rodeou: árvores altas, pinheiros, e ausência quase total de sub-bosque. O solo estava coberto de uma camada fofa como uma almofada de velhas agulhas de pinheiro e nalguns pontos apresentava-se escorregadio, do musgo. A minha caminhada cega prosseguiu durante mais de três horas. As raízes em que tropeçava torciam-se com violência crescente à volta de pedregulhos que irrompiam da camada de solo superficial. Receei que o cume se apresentasse coberto de floresta e que nesse labirinto terminasse a minha recém-iniciada excursão às montanhas. Mas tive sorte: através de uma pequena passagem nua de vegetação cheguei a um campo de cascalho que se foi tomando cada vez mais íngreme. Por fim, quase não me conseguia manter de pé; as pedras começaram a escorregar-me debaixo dos pés, com um ruído de matraca. Saltando de um pé para outro, não sem repetidas quedas, cheguei ao lado de um rego fundo e pude subir mais depressa. De vez em quando parava para tentar distinguir o que me rodeava, mas a escuridão total não mo permitia. Não via nem a cidade nem a sua claridade, nem sequer qualquer vestígio da estrada reluzente que deixara. O rego conduziu-me a uma área nua, com manchas de erva seca. Compreendi que me encontrava a grande altitude pela extensão cada vez maior de céu estrelado, e os espinhaços das outras montanhas começaram a nivelar-se com o da que eu subia. Mais alguns centos de passos e cheguei aos primeiros aglomerados de pinheiros anões.

Se alguém me detivesse subitamente na escuridão e me perguntasse para onde ia e porquê, não teria sabido responder. Mas não havia ninguém e a solidão daquela marcha nocturna dava-me uma sensação, ainda que temporária, de alívio. O ângulo da encosta acentuou-se e andar tomou-se cada vez mais difícil, mas eu fui avançando, tentando apenas seguir a direito, como se tivesse um objectivo definido. O meu coração batia depressa, tinha a respiração acelerada, mas continuava a subir num frenesi, com o conhecimento instintivo de que precisava exactamente daquele esforço esgotante. Afastava os ramos torcidos dos pinheiros anões, algumas vezes ficava preso neles, libertava-me e prosseguia. Cachos de agulhas roçavam-me pela cara e pelo peito e prendiam-se-me na roupa; os dedos pegavam-se-me, da resina. Num descampado, senti um vento inesperado. Jorrando do escuro, avançava a assobiar lá no alto, onde calculei que haveria uma passagem. Depois o maciço seguinte de pinhei; is anões engoliu-me. Havia nele ilhas de ar parado e momo, impregnado da forte fragrância dos pinheiros. Erguiam-se no meu caminho obstáculos indistintos, rochas espalhadas à toa, e debaixo dos pés escorregavam-me pedras soltas. Já devia caminhar havia diversas horas e ainda sentia em mim uma reserva de força suficiente para me conduzir ao desespero. O rego que levava a alguma passagem, provavelmente ao cume, estreitou tanto que eu podia ver ambos os seus lados erguerem-se contra o céu e ocultarem as estrelas com os seus espinhaços escuros.

A região de neblina ficava muito abaixo de mim, mas a noite fria não tinha Lua e as estrelas emitiam pouca luz. Fiquei por isso surpreendido com o aparecimento, à volta e acima de mim, de formas esbranquiçadas e alongadas. Encontravam-se na escuridão sem a iluminarem, como se tivessem absorvido radiância durante o dia. O primeiro ranger solto debaixo dos meus pés disse-me que pisava neve.

Uma fina camada de neve cobria o resto da íngreme encosta. Mal agasalhado como estava, teria enregelado até aos ossos, mas o vento amainou inesperadamente e eu pude ouvir claramente o rangido da neve a cada passo que dava.

Na passagem propriamente dita quase não havia neve. Enormes rochas varridas pelo vento recortavam-se em silhueta acima do cascalho. Parei, com o coração numa correria louca, e olhei na direcção da cidade. Ficava oculta pela encosta e só uma mancha de cinzento-avermelhado, das luzes, denunciava a sua posição no vale. Por cima de mim as estrelas tremiam distintamente visíveis. Andei mais alguns passos e sentei-me num rochedo em forma de sela. A claridade da cidade desaparecera outra vez. À minha frente, no escuro, estavam as montanhas, fantasmagóricas com os picos embranquecidos pela neve. Olhando com insistência para a aresta oriental do horizonte, consegui distinguir os primeiros raios do dia nascente. Contra ele, os contomos de um espinhaço partido em dois. Sombras informes à minha volta — ou dentro de mim? — deslocavam-se, recuavam, mudavam de proporções. Fiquei tão preocupado com isso que por momentos foi como se tivesse perdido a visão. E quando a recuperei estava tudo diferente. O céu oriental, de um ténue cinzento acima do vale invisível, acentuava mais ainda o negrume da rocha, mas mesmo assim eu poderia ter apontado todas as suas irregularidades, todos os seus recortes. Conhecia intimamente o cenário que o dia desdobraria para os meus olhos, porque tinha sido gravado em mim para sempre e não em vão. Ali estava a imutabilidade que eu desejara, que permanecera intacta enquanto o meu mundo ruía e perecia num abismo de tempo de século e meio. Fora naquele vale que passara os anos da minha mocidade, na velha estalagem de madeira da encosta relvosa, oposta, a Cloud Catcher. Dessa casa não deveriam restar nem os alicerces de pedra, as últimas tábuas deviam ter apodrecido havia muito, mas a cumeeira rochosa permanecia imutável, como se tivesse estado à espera daquele encontro. Poderia uma vaga recordação inconsciente ter-me guiado através da noite precisamente para tal lugar?

O choque do reconhecimento libertou-me instantaneamente de toda a minha fraqueza, tão desesperadamente ocultada — ocultada primeiro com uma falsa calma e depois com o frenesi intencional do meu montanhismo. Estendi a mão e, sem me embaraçar com a tremura dos dedos, apanhei um pouco de neve e meti-a na boca. O frio que se me derreteu na língua não me apaziguou a sede, mas despertou-me mais. Fiquei sentado a comer neve, ainda sem acreditar, à espera de que os primeiros raios de sol confirmassem a minha suposição. Muitos antes de o Sol aparecer, de cima das estrelas que lentamente se apagavam, desceu um pássaro que dobrou as asas, se tornou mais pequeno e, pousando num plano de rocha inclinado, começou a andar na minha direcção. Não me mexi, com medo de o assustar. O pássaro contornou-me e afastou-se, e precisamente quando eu pensava que não reparara em mim voltou pelo outro lado e contornou o rochedo onde eu estava sentado. Olhámo-nos um bocado, até eu perguntar, baixinho:

— De onde vieste?

Compreendendo que ele não tinha medo de mim, recomecei a comer neve. O pássaro inclinou a cabeça, fitou-me com as contas pretas dos olhos e de súbito, como se estivesse farto de mim, abriu as asas e foi-se embora. E eu, a descansar na rocha áspera, inclinado para a frente e com as mãos dormentes da neve, esperei pelo alvorecer e recordei a noite toda numa sinopse violenta e incompleta — Thurber e as suas palavras, o silêncio entre Olaf e mim, o panorama da cidade, a névoa vermelha e as aberturas na névoa feitas por funis de luz, rajadas de ar quente, a inalação e exalação de um milhão, os largos suspensos, alamedas, avenidas, arranha-céus com asas de fogo, os diferentes níveis com cores diferentes, a desinspirada conversa com o pássaro na passagem e eu a comer neve… E todas estas imagens eram e não eram imagens, como às vezes nos sonhos, eram simultaneamente uma recordação e a tentativa de evitar aquilo em que não ousava tocar. Porque, de princípio a fim, eu tinha de encontrar em mim próprio uma aceitação do que não podia aceitar. Mas isso tinha sido antes, como num sonho. Agora, de cabeça desanuviada e atento, à espera do dia, num ar quase prateado e na presença, que lentamente se revelava, das encostas das montanhas, dos sulcos na rocha e do cascalho, que emergiam da noite em silenciosa confirmação da realidade do meu regresso, eu, sozinho mas não um estranho à Terra, agora sujeito a ela e às suas leis, pude pela primeira vez, sem protesto nem mágoa, pensar naqueles que iam partir para o tosão de ouro das estrelas…

A neve do cume incendiou-se de ouro e branco, sobressaiu das sombras purpúreas do vale, sobressaiu poderosa e eterna, e eu, sem fechar os olhos cheios de lágrimas, levantei-me devagar e comecei a caminhar através das pedras para sul, para minha casa.

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