David Nicholls Resposta Certa

Primeira Rodada

Ela conhecia muito bem o tipo — as vagas aspirações, o transtorno mental, a familiaridade com as capas dos livros...

E. M. FORSTER, Howards end

1

PERGUNTA: Enteado de Robert Dudley e outrora favorito de Elizabeth I, que nobre planejou e liderou uma revolta malsucedida contra a rainha, sendo em seguida executado em 1601?

RESPOSTA: Essex.


Todos os jovens se preocupam com as coisas; é parte natural e inevitável de crescer. E, aos 16 anos, minha maior preocupação na vida era a de nunca mais alcançar nada tão bom, tão puro, tão nobre ou verdadeiro quanto o resultado do meu exame de admissão ao ensino médio.

É claro que, na época, achei que não fosse nada demais. Não emoldurei o certificado nem nada tão esquisito. Nem vou entrar no mérito das notas, porque senão pareceria muito competitivo, mas definitivamente gostei delas; isto é, das qualificações. Dezesseis anos, e a primeira vez que me senti qualificado para alguma coisa.

Claro que isso foi há muito, muito tempo. Agora, tenho 18 anos e gosto de pensar que estou bem mais sábio e indiferente em relação a essas coisas. Por isso, comparativamente, não liguei muito para o resultado dos meus exames para a faculdade. Além do mais, acreditar que se pode, de algum modo, avaliar a inteligência com um sistema ridículo e antiquado de prova escrita é obviamente uma ilusão. Dito isso, tive as melhores notas da Langley Street Comprehensive School em 1985. As melhores em 15 anos na verdade: três As e um B, somando 19 pontos — pronto, falei — mas, sério, não acho que isso seja particularmente relevante, só mencionei de passagem. E, de qualquer maneira, comparando com outras qualidades, como coragem (fisicamente falando) ou popularidade, beleza, pele boa ou uma vida sexual ativa, saber um monte de coisas acaba não sendo tão importante assim.

Mas, como meu pai costumava dizer, o crucial da educação são as oportunidades que ela traz, as portas que abre. Porque, sem isso, o conhecimento em si é um beco sem saída, especialmente na minha atual posição, numa quarta-feira à tarde de um fim de setembro, numa fábrica de torradeiras.

Passei as férias trabalhando no setor de expedição da Ashworth Electricals, o que significa que sou responsável por colocar as torradeiras nas caixas antes de elas serem mandadas aos varejistas. É claro que não existem muitas maneiras diferentes de se colocar uma torradeira numa caixa, por isso esses dois meses têm sido meio chatos, mas, olhando pelo lado positivo, recebo uma libra e 85 pence por hora, o que não é tão ruim, mais quantas torradas conseguir comer. Como é meu último dia aqui, fiquei de olho em qualquer sinal de um possível cartão de despedida sendo passado disfarçadamente entre meus colegas, assim como da vaquinha para o presente de despedida, esperando para descobrir a que pub iríamos para nossos últimos drinques juntos, mas já são 18h15. Então, posso deduzir que todo mundo já foi para casa.

O que é bom, porque, de qualquer modo, tinha outros planos. Então, recolho as minhas coisas, pego algumas canetas esferográficas e um rolo de fita adesiva transparente no armário do escritório e saio rumo ao píer, para encontrar Spencer e Tone.

Com 2.360 jardas, ou 2,158 quilômetros, o Southend é, oficialmente, o maior píer do mundo. Talvez seja grande demais, para ser honesto, principalmente quando você está carregando muita cerveja. Trouxemos doze latas grandes de Skol, almôndegas de porco agridoce, um arroz frito especial e uma porção de batatas fritas com molho curry — sabores do mundo todo — , mas, até chegarmos ao fim do píer, as cervejas já estão quentes e as marmitas, frias. Como é uma comemoração especial, Tone também teve de carregar o seu som arrasa-quarteirão, que é do tamanho de um pequeno guarda-roupa, mas, e, é preciso que se diga, nunca abalará quarteirão nenhum nessa cidade. No momento, está tocando uma fita gravada por Tone chamada The Best Of The Zep, e nos sentamos num banco no final do píer enquanto assistimos ao sol se pôr majestosamente sobre a refinaria de petróleo.

— Você não vai virar um babaca, vai? — pergunta Tone, abrindo uma lata de cerveja.

— Como assim?

— Ele quer dizer que você não vai dar uma de universitariozinho para cima da gente — explica Spencer.

— Bom, eu sou universitário. Quer dizer, vou ser. Então...

— Não... O que estou dizendo é que você não vai virar um babaca que só olha para o próprio rabo e voltar para casa no Natal vestindo beca, falando latim e discorrendo sobre temáticas, problemáticas e essas coisas...

— É, Tone. É exatamente o que vou fazer.

— Não faça. Porque você já é babaca demais e não precisa ficar mais babaca ainda.

Tone tem o costume de me chamar de babaca ou de veadinho. O truque é fazer uma espécie de ajuste linguístico e tentar pensar nisso como termos afetuosos, do mesmo jeito que os casais falam querido e meu bem. Ele acaba de conseguir um emprego num depósito em Currys e está começando a desenvolver um interessante gosto por roubar aparelhos estéreos portáteis, como o que estamos ouvindo agora. Também é dele essa fita do Led Zeppelin. Tone gosta de falar que é metaleiro, o que soa melhor do que roqueiro ou fã de heavy metal. Também se veste como um metaleiro: calça jeans escura e um cabelo longo e lustroso jogado para trás feito um viking afeminado. Na verdade, o cabelo de Tone é a única coisa afeminada nele. Afinal, estamos falando de um cara ultraviolento. O ponto alto de uma noite bem-sucedida com Tone é chegar em casa sem ter a cabeça enfiada no vaso com alguém dando descarga.

Agora está tocando Stairway to Heaven.

— Tone, a gente precisa mesmo ouvir essa porra de baboseira hippie? — pergunta Spencer.

— Isso é O Zep, Spence.

— Eu sei que é O Zep, Tone. É por isso que eu quero que você desligue essa merda.

— Mas O Zep é o máximo.

— Por quê? Só porque você acha?

— Não, porque eles foram uma banda muito importante e influente.

— Eles estão falando de fadas, Tony. É constrangedor...

— Não são fadas...

— Elfos, então — intervenho.

— Não são apenas fadas e elfos. É Tolkien, é literatura... — Tone adora essas coisas: livros com mapas na página de abertura e capas com mulheres grandes e assustadoras usando lingerie e correntes, empunhando espadas enormes, o tipo de mulher com quem ele se casaria num mundo ideal. O que, em Southend, é mais possível do que se imagina.

— Qual é a diferença entre uma fada e um elfo afinal? — pergunta Spencer.

— Sei lá. Pergunta pro Jackson. Ele que é o fodão.

— Eu não sei, Tone — respondo.

O solo de guitarra começa, e Spencer se contorce.

— Isso termina alguma hora ou só continua, continua, continua e continua...?

— São 7 minutos e 32 segundos de pura genialidade.

— Pura tortura, isso sim — digo. — Por que é sempre você quem escolhe a música, afinal?

— Porque o som é meu...

— Que você afanou. Tecnicamente, ainda pertence ao Currys.

— É, mas eu compro as pilhas...

— Não, você afana as pilhas...

— Não essas. Essas eu comprei.

— Quanto custou a pilha, então?

— Custou uma libra e 98 pence.

— Então, se der a você 0,66 pence a gente pode ouvir alguma coisa decente?

— Tipo o quê? Kate Bush? Tudo bem, Jackson, vamos ouvir Kate Bush então. Vamos todos nos divertir muito ouvindo Kate Bush, nos divertir muito, muito mesmo, dançando e cantando junto com Kate Bush... — Enquanto Tone e eu discutimos, Spencer simplesmente se debruça sobre o som, ejeta The Best Of The Zep e joga a fita longe, no mar.

Tone grita Ei!, atira a lata de cerveja nele e os dois saem correndo pelo píer. É sempre melhor não se envolver muito nessas brigas. Tone tende a ficar meio fora de controle, possuído pelo espírito de Odin ou sei lá o que, e, se me envolvo, acabo com o Spencer sentado nos meus braços com Tone peidando na minha cara. Por isso, prefiro ficar sentado, quieto, bebendo minha cerveja e vendo Tone tentar passar as pernas de Spencer por cima do guarda-corpo do píer.

Mesmo sendo setembro, já se pode sentir que o ar da noite começa a ficar úmido e frio, uma sensação de fim de verão, e fico feliz por estar vestindo meu casaco do exército. Sempre odiei o verão; o jeito como o sol brilha na tela da TV durante a tarde, a insistente pressão para se usar short e camiseta. Odeio short e camiseta. Se me sentasse do lado de fora de uma farmácia usando short e camiseta, garanto que alguma velhinha tentaria me dar uma moeda.

Não... Estou mesmo ansioso é pelo outono, sair chutando folhas a caminho da aula, conversar animadamente sobre poetas metafísicos com alguma garota chamada Emily, Katherine ou François, algo assim, de meias-calças de lã e cabelinho chanel, e aí voltar para o quartinho dela no sótão e fazer amor na frente da lareira elétrica. Depois, vamos ler T. S. Eliot em voz alta e beber vinho do Porto antigo e de qualidade em tacinhas de vidro, enquanto ouvimos Miles Davis. Pelo menos, é assim que imagino que vai ser a experiência universitária. Gosto da palavra experiência. Soa como andar de montanha-russa.

A briga terminou. Tone está gastando o excesso de sua agressividade jogando as almôndegas de porco agridoce nas gaivotas. Spencer volta colocando a camisa para dentro da calça, senta ao meu lado e abre outra lata de cerveja. Realmente, Spencer leva jeito com a lata de cerveja: parece até que ele está tomando uma taça de martíni.

Spencer é a pessoa de quem mais vou sentir falta. Ele não vai fazer faculdade, apesar de ser a pessoa mais inteligente que já conheci, assim como a mais bonita, a mais centrada e a mais maneira. Nunca diria isso a ele, claro, pois soaria meio assustador, mas nem é preciso; está na cara que ele sabe disso. Poderia ir para a faculdade se quisesse mesmo, mas fez merda nos exames, não de propósito, claro, mas todo mundo viu o que ele fez. Estava sentado na carteira ao lado da minha na prova de inglês, e dava para ver pelos movimentos da caneta que ele não estava escrevendo; estava desenhando. Na questão sobre Shakespeare, ele desenhou As alegres comadres de Windsor, e, na de poesia, uma ilustração que intitulou A experiência de Wilfred Owen nos horrores das trincheiras em primeira mão. Fiquei tentando fazer com que se virasse para mim, para lançar um olhar amigável de qual é, cara?, mas ele manteve a cabeça abaixada, desenhando, e, depois de uma hora, levantou e saiu, piscando para mim, e não foi uma daquelas piscadelas convencidas. Foi com os olhos embargados e vermelhos, como se fosse um soldado raso indo ao encontro do batalhão de fuzilamento.

Depois disso, simplesmente deixou de fazer as provas. Pelas costas dele, o termo colapso nervoso foi mencionado algumas vezes, mas Spencer é maneiro demais para ter um colapso nervoso. Mesmo se tivesse um, ele faria isso parecer muito maneiro. Na minha opinião, esse jeito Jack Kerouac de garoto torturado é aceitável até certo ponto, mas não se for para interferir nas suas notas.

— Então, o que você vai fazer, Spence?

Ele estreita os olhos e olha para mim.

— O que você quer dizer com fazer?

— Assim, tipo um emprego.

— Eu tenho um emprego. — Spencer está no seguro-desemprego, mas também ganha alguns trocados por fora trabalhando num posto de gasolina 24 horas na A127.

— Eu sei que você tem um emprego. Mas no futuro...

Spencer olha para o horizonte do estuário e começo a me arrepender de ter puxado o assunto.

— O seu problema, meu caro amigo Brian, é que você subestima os prazeres da vida em um posto de gasolina 24 horas. Posso comer quantos doces quiser. Ler guias rodoviários. Inalar fumaças interessantes. Copos de vinho de graça... — Ele toma um grande gole de cerveja e procura um jeito de mudar de assunto. Enfia a mão no bolso da jaqueta Harrington, tira uma fita cassete com uma etiqueta escrita à mão e diz: — Fiz para você. Para tocar na frente dos seus novos amigos universitários e fingir que tem bom gosto.

Eu pego a fita e, na lateral, está escrito em letras maiúsculas cuidadosamente desenhadas em 3D: Compilação para a faculdade do Bri. Spencer é um artista brilhante.

— Sensacional, Spencer. Valeu, cara...

— Tudo bem, Jackson, é só uma fita de 90 minutos do que está no mercado. Não precisa chorar por causa disso. — Ele fala assim, mas nós dois sabemos que uma fita de 1 hora e 30 minutos como essa representa pelo menos 3 horas de trabalho, mais ainda se você escrever uma etiqueta. — Põe para tocar, tá? Antes que aquele imbecil volte.

Eu coloco a fita, aperto o play e é o Curtis Mayfield cantando Move On Up. Spencer era moderno, mas resolveu mudar para o soul de raiz: Al Green, Gil Scott-Heron, esse tipo de coisa. Spencer é tão maneiro que até gosta de jazz. Não só Sade e The Style Council, mas jazz propriamente dito, do tipo chato e irritante. A gente se senta e escuta por um tempo. Tone está tentando tirar dinheiro dos telescópios com um canivete que comprou numa excursão da escola a Calais, enquanto eu e Spencer assistimos à cena como pais indulgentes de uma criança com sérios problemas de comportamento.

— E aí, você vai voltar nos fins de semana? — pergunta Spencer.

— Não sei. Espero que sim. Mas não todos.

— Não desaparece, tá? Senão, vou ficar preso aqui sozinho com o meu Conan, o Bárbaro... — e Spencer indica Tone com a cabeça, que, agora, está dando voadoras e chutando o telescópio.

— A gente não devia fazer um brinde ou algo assim? — pergunto.

Spencer franze os lábios.

— Um brinde? A quê?

— Ah... ao futuro ou algo do tipo?

Spencer suspira, bate a latinha dele na minha.

— Ao futuro! Vamos torcer para que a sua pele melhore.

— Vai se danar, Spencer — digo.

— Vai se danar, Brian — retruca ele, mas dando risada.

Quando chegamos nas últimas latas de cerveja, já estamos para lá de bêbados e deitamos de barriga para cima, sem dizer nada, só ouvindo o mar e Otis Redding cantando Try a Little Tenderness, e, nessa noite clara de fim de verão, olhando para as estrelas, com os meus melhores amigos ao lado, sinto como se a vida real estivesse afinal começando e que absolutamente tudo é possível.

Quero ouvir gravações de sonatas de piano e saber quem está tocando. Quero ir a concertos de música clássica e saber quando é o momento certo de aplaudir. Quero conseguir entender jazz moderno sem achar que está tudo errado. Quero saber o que é, exatamente, o Velvet Underground. Quero estar totalmente familiarizado com o Mundo das Ideias. Quero entender as complexidades da economia e o que as pessoas veem no Bob Dylan. Quero ter ideais políticos radicais, porém humanitários e consistentes, e quero me envolver em debates calorosos, mas racionais, em volta de uma mesa de madeira de cozinha dizendo coisas como Defina seus termos! e Sua premissa é evidentemente enganosa! e, de repente, perceber que o sol está nascendo e que ficamos conversando a noite toda. Quero usar palavras como epônimo e solipsismo e utilitário com segurança. Quero saber apreciar bons vinhos, licores exóticos e puros maltes de qualidade, e aprender a beber essas coisas sem me transformar num completo imbecil; comer comidas estranhas e exóticas, ovos de faisão e lagosta ao termidor, coisas que mal soam comestíveis ou que nem consigo pronunciar. Quero fazer amor com mulheres lindas, sofisticadas e intimidadoras, durante o dia, ou de luz acesa, ou mesmo sóbrio, e sem medo. E quero ser fluente em muitos idiomas, talvez até em uma ou duas línguas mortas, estar sempre com um caderno com capa de couro em que vou esboçar observações e pensamentos incisivos, às vezes a estrofe de um verso. Mais do que tudo, quero ler livros. Livros grossos como tijolos, livros de capas de couro de papel fininho e aquelas fitas roxas para marcar onde você parou; livros de coletâneas de versos baratos, empoeirados e de segunda mão, livros importados caríssimos com ensaios incompreensíveis de universidades estrangeiras.

Em algum momento, gostaria de ter uma ideia original. Gostaria de ser desejado, ou talvez até amado, mas vou esperar para ver. E, quanto a um emprego, ainda não sei bem o que quero, mas que seja algo que eu não odeie ou me deixe doente, e isso significa não precisar me preocupar com dinheiro o tempo todo. E são todas essas coisas que uma formação universitária vai me proporcionar.

Terminamos as cervejas e as coisas saem do controle. Tone joga meus sapatos no mar e tenho que voltar para casa só de meias.

2

PERGUNTA: Inspirado em um conto de Hans Christian Andersen, em qual filme de Powell e Pressburger, de 1948, Moira Shearer dança até morrer na frente de uma locomotiva a vapor?

RESPOSTA: Os sapatinhos vermelhos


A casa número 16 da Archer Road, como todas as outras casas da Archer Road, é uma maisonette, o diminutivo do substantivo (feminino) francês maison, que literalmente significa casinha. Moro aqui com minha mãe e, se você estiver interessado em condições de moradia desconfortáveis, não há nada pior que um homem de 18 anos morando numa maisonette com uma viúva de 41. Esta manhã é um exemplo perfeito. Estou deitado debaixo do edredom às 8h30, ouvindo o The Breakfast Show e encarando os aeromodelos pendurados no teto. Sei que já deveria ter tirado tudo isso daqui, mas, em algum momento, há alguns anos, eles deixaram de ser meigos e infantis e passaram a ser divertidos e cafonas. Por isso, deixei.

Minha mãe entra. Depois, bate na porta.

— Bom dia, dorminhoco. Grande dia hoje!

— Você nunca bate na porta, mãe?!

— Eu sempre bato!

— Não! Você entra e depois bate na porta. Isso não é bater...

— E daí? Você não está fazendo nada demais, está? — ela olha de esguelha.

— Não, mas...

— Não vai dizer que está com uma garota aí — e puxa a ponta do edredom. — Vamos, querida, não tenha vergonha. Vamos conversar sobre isso. Vamos lá! Pode sair... Seja lá quem for...

Puxo o edredom de volta e cubro a cabeça.

— Vou descer num minuto...

— Está um cheiro ruim aqui, um cheiro ruim mesmo, sabia?

— Não estou ouvindo, mãe...

— Está com cheiro de garotos. O que os garotos fazem para cheirar desse jeito?

— Ainda bem que estou indo embora, não é?

— A que horas parte o seu trem?

— Às 12h15.

— E você ainda está na cama? Tome! Um presente de despedida... — e joga uma sacola em cima do edredom. Eu abro e, dentro, há um tubo de plástico transparente, daqueles que vêm com bolas de tênis, mas esse tem três cuecas de algodão dobradas bem juntinhas, uma vermelha, uma branca e uma preta, as cores da bandeira nazista.

— Mãe, não precisava...

— Ah, não é nada demais.

— Não, não precisava mesmo.

— Não banque o esperto, mocinho. Saia logo dessa cama. Você tem muito que empacotar. E, por favor, abra a janela.

Quando ela sai, jogo as cuecas do tubo de plástico em cima do edredom, avaliando o peso da solenidade da ocasião. Pois, na verdade, essas vão ser as últimas cuecas que minha mãe me deu. A branca é bacana, e imagino que a preta vai durar muito, mas e a vermelha? É para ser provocante ou algo assim? Para mim, cuecas vermelhas são cuecas que dizem pare e perigo.

Mas, numa clara demonstração de espírito de aventura, saio da cama e visto a cueca vermelha. E se elas forem como em Os sapatinhos vermelhos e eu nunca mais puder tirar? Espero que não, pois, quando vejo o efeito no espelho do guarda-roupa, parece que levei um tiro na virilha. Visto a mesma calça do dia anterior e desço para tomar café com os dentes ásperos, a boca com gosto de cabo de guarda-chuva e ainda meio tonto das Skol da noite passada. Depois, vou tomar banho, empacotar as coisas e ir. Não consigo acreditar que estou mesmo indo embora. Não acredito que estou tendo permissão para isso.

Mas é claro que o primeiro grande desafio será arrumar as malas, sair de casa e entrar no trem sem minha mãe dizer Seu pai estaria orgulhoso de você.


É uma noite de terça-feira de julho, ainda está claro lá fora e a cortina está semifechada para assistirmos melhor à TV. Estou de pijama e roupão depois de um banho, cheirando levemente a Dettol e me concentrando com afinco numa reprodução Airfix em escala 1/72 do bombardeiro Lancaster numa bandeja de chá à minha frente. Meu pai acaba de chegar do trabalho e está bebendo uma lata de cerveja preta e a fumaça do cigarro dele paira nos raios de sol do entardecer.

— Sua primeira pergunta: Qual foi o último soberano britânico a presenciar um combate militar ativo?

— George V — diz papai.

— George III — responde Wheeler, de Jesus College, Cambridge.

— Correto. Sua rodada de bônus começa com uma pergunta sobre geologia.

— Você sabe alguma coisa de geologia, Bri?

— Um pouco — comento, com ousadia.

— De aparência cristalina ou vítrea, qual das três principais classes de rocha é formada pelo resfriamento e pela solidificação de matéria terrestre derretida...?

Eu sei essa! Tenho certeza de que sei.

— Vulcânica! — exclamo.

— Ígnea — diz Armstrong, de Jesus, Cambridge.

— Correto.

— Quase — comenta meu pai.

— Pedra ígnea contendo grandes cristais visíveis chamados fenocristais possui que textura?

Arrisque um palpite.

— Granular — tento.

Johnson, de Jesus, Cambridge diz:

— Porfirítica?

— Correto.

— Quase — comenta meu pai.

— Em O amante de Porfíria, o protagonista estrangula sua amada com a trança dos cabelos dela... — Espera aí, essa eu sei... — Esse é um poema narrativo de qual poeta vitoriano?

Robert Browning. Vimos isso na aula de inglês na semana passada. É Browning! Eu sei que é!

— Robert Browning! — respondo, esforçando-me para não gritar.

— Robert Browning? — diz Armstrong, de Jesus, Cambridge.

— Correto! — e a plateia aplaude Armstrong, de Jesus, Cambridge, mas sabemos que os aplausos são, na verdade, para mim.

— Nossa, Bri! Como você sabia isso? — pergunta meu pai.

— Eu simplesmente sabia — respondo.

Quero me virar e olhar seu rosto para ver se está sorrindo. Meu pai não sorri muito, pelo menos não quando chega do trabalho, mas não quero parecer convencido e continuo sentado, imóvel, vendo seu reflexo nos raios de sol na tela da TV. Ele dá uma tragada, depois pousa de leve a mão que segura o cigarro no alto da minha cabeça, como um cardeal, alisa meu cabelo com os dedos longos amarelados e diz:

— Se não tomar cuidado, um dia você vai estar lá — e eu sorrio para mim mesmo e me sinto esperto e inteligente e seguro sobre alguma coisa, para variar.

Claro que daí eu fico convencido e tento responder a todas as perguntas e erro todas, mas não importa, porque, pela primeira vez, acertei uma e sei que, um dia, vou acertar de novo.


Acho que é justo dizer que nunca fui escravo dos caprichos volúveis da moda. Não que eu seja antimoda, mas é que, de todos os grandes movimentos juvenis que presenciei até agora, nunca me encaixei em nenhum. No fim das contas, a dura realidade é que, quando você é fã da Kate Bush, de Charles Dickens, de palavras cruzadas, de David Attenborough e do programa Desafio Universitário, não há muita coisa por aí em termos de movimentos juvenis.

O que não quer dizer que eu não tenha tentado. Durante um tempo, ficava acordado na cama pensando se poderia ser gótico, mas acho que foi só uma fase. Além do mais, ser um homem gótico implica basicamente se vestir como um vampiro aristocrata, e se tem uma coisa de que nunca vou convencer as pessoas é que sou um vampiro aristocrata. Não tenho maçãs do rosto para isso. Outra coisa é que ser gótico significa ter de escutar a música deles, o que é impensável.

Então, esse foi, mais ou menos, todo o meu contato com cultura jovem. Digamos que meu estilo possa ser descrito como casual clássico. Prefiro calças de algodão com pregas a jeans, e jeans escuros a claros. O casaco tem de ser pesado, longo e usado com a gola levantada, cachecóis devem ser levemente franjados, preto ou vinho, e são essenciais desde o início de setembro até o fim de maio. Os sapatos precisam ter sola fina e não podem ser pontudos demais, e (isso é muito importante) apenas sapatos pretos ou marrons podem ser usados com jeans.

Mas também não tenho medo de experimentar, em especial agora que estou tendo uma oportunidade de me reinventar. Então, com a velha mala dos meus pais aberta em cima da cama, passo pelas coisas novas que comprei e estive guardando para esse dia especial. Primeiro, minha nova jaqueta, uma coisa incrivelmente densa, preta e pesada que é mais ou menos como vestir um jumento. Estou muito contente com ela, uma mistura de arte e mão de obra grosseira, tipo chega de Shelley, vou sair para asfaltar alguma coisa.

Depois, tem cinco camisas de vovô, com cores variando entre o branco e o azul, que comprei por uma libra e 99 pence cada uma num passeio com Spencer e Tone em Carnaby Street. Spencer odiou, mas acho que elas são ótimas, em especial combinadas com um colete preto que comprei de segunda mão por três paus na Help the Aged. Precisei esconder o colete da minha mãe. Não porque ela tenha algo contra idosos, mas por achar que qualquer coisa de segunda mão é ordinária e que quem as usa está a um passo de catar comida do chão. Meu objetivo com essa combinação de colete/camisa de vovô/óculos redondos é

visual de um jovem oficial do exército traumatizado, com uma certa gagueira e um caderno cheio de poesias trazido das brutalidades do front. Ele continua cumprindo seu dever patriótico trabalhando numa fazenda em um remoto vilarejo de Gloucestershire, onde é tratado com desconfiança pelos locais, mas amado a distância e em segredo pela bela filha do vigário, ávida leitora, sufragista que curte pacifismo, vegetarianismo e bissexualidade. Realmente, é um belo colete. Além do mais, não é de segunda mão, é vintage.

Tem também o paletó de veludo cotelê marrom do meu pai. Estendo na cama e cruzo com cuidado os braços em cima do peito. Vejo uma leve mancha de chá na frente, de alguns anos atrás, quando cometi o erro de ir com ele a um baile da escola. Sei que isso pode ser considerado um pouco mórbido, mas achei que poderia ser um gesto legal, uma espécie de homenagem. Mas acho que deveria ter falado com minha mãe antes, pois, quando ela me viu de pé na frente do espelho com o paletó do meu pai, deu um berro e jogou a caneca de chá em mim. Quando enfim percebeu que era só eu, começou a chorar e ficou meia hora deitada na cama se debulhando em lágrimas, o que é um grande estímulo antes de uma festa. Daí, quando se acalmou e, afinal, cheguei ao baile, tive a seguinte conversa com Janet Parks, o amor da minha vida daquela semana:

EU: Vamos dançar, Janet?

JANET PARKS: Legal seu paletó, Bri.

EU: Obrigado!

JANET PARKS: Onde você comprou?

EU: É do meu pai!

JANET PARKS: Mas o seu pai não... morreu?

EU: Morreu.

JANET PARKS: Então você está usando o paletó do seu pai morto?

EU: Exatamente. Então, e aquela dança?

E, a essa altura, Janet coloca a mão na frente da boca, afasta-se e começa a apontar e a cochichar no canto com Michelle Thomas e Sam Dobson, pouco antes de ir embora com Spencer Lewis. Não que eu guarde mágoa nem nada. Além do mais, na faculdade essa história não vai importar. Ninguém vai saber de nada disso a não ser eu. Na faculdade, vai ser apenas um paletó de veludo cotelê. Acabo de dobrar e guardo na mala.

Minha mãe entra, depois bate, e eu fecho a mala depressa. Ela já está bastante chorosa. Não precisa ver o paletó do meu pai para começar a chorar de novo. Afinal, ela tirou a manhã de folga no trabalho exatamente para chorar.

— Quase pronto, então?

— Quase.

— Quer levar uma frigideira?

— Não, mãe, eu me viro sem frigideira.

— Mas o que você vai comer?

— Eu como outras coisas além de batata frita, mãe!

— Não, não come.

— Bem, talvez comece a comer. Além do mais, existem batatas de forno. — Eu me viro e vejo que ela está quase sorrindo.

— É melhor você ir, não?

O trem ainda vai demorar um século, mas minha mãe acha que pegar um trem é um pouco como um voo internacional, que você precisa chegar quatro horas antes da partida. Não que a gente já tenha estado num avião ou coisa assim, mas é um milagre que ela não tenha me obrigado a tomar vacinas.

— Vou sair daqui a meia hora — digo, e se faz silêncio.

Minha mãe tenta dizer alguma coisa, mas não consegue emitir as palavras, o que deve ter algo a ver com meu pai estar orgulhoso ou algo assim, porém ela decide deixar para mais tarde, dá meia-volta e sai do quarto. Sento na mala para poder fechar e depois deito na cama e olho ao redor do meu quarto pela última vez. É o tipo do momento em que, se eu fumasse, estaria fumando.

Não consigo acreditar que isso está mesmo acontecendo. É a independência da maioridade, é o que eu sinto. Não deveria haver algum tipo de ritual? Em certas tribos africanas remotas, haveria um incrível rito de quatro dias de cerimônias de passagem envolvendo tatuagens e potentes drogas alucinógenas extraídas de sapos e anciãos espalhando sangue de macaco no meu corpo, mas aqui os ritos de passagem se resumem a três cuecas novas e a jogar o edredom num saco de lixo.

Quando chego ao andar de baixo, vejo que minha mãe fez um pacote para mim: duas caixas de papelão grandes com quase todo o conteúdo da casa. Claro que a frigideira está lá, astutamente escondida embaixo de um aparelho de jantar completo, assim como a torradeira que afanei da Ashworth Electricals, uma chaleira, um exemplar de Receitas maravilhosas com carne moída e uma cesta com seis pães de sal e um saco de pão de forma. Tem até um ralador de queijo, e ela sabe que eu não como queijo.

— Não posso levar tudo isso, mãe — contesto, e daí os simbólicos e tocantes últimos momentos da minha vida na casa da minha infância são desperdiçados discutindo com minha mãe se vou precisar ou não de um batedor de ovos — sim, claro que vai ter uma grelha para fazer torradas, sim, preciso do som e dos alto-falantes. Quando, enfim, terminam as negociações, reduzimos tudo à minha mala, a uma mochila com meu som e os livros, a dois sacos de lixo cheios de edredons e travesseiro e, por conta da insistência da minha mãe, a vários panos de prato.

Enfim, chega o momento. Insisto bastante para minha mãe não me levar à estação de trem, porque, por alguma razão, a coisa toda parece mais simbólica e intensa sem ela. Fico de pé na porta, enquanto ela pega a bolsa e, com toda a solenidade, enfia uma nota de 10 libras na minha mão, bem dobradinha, como se fosse um rubi.

— Mãe...

— Vamos... Pegue...

— Vou ficar bem, sério...

— Vai, mas se cuida...

— Pode deixar...

— Tente comer frutas de vez em quando...

— Vou tentar...

— E... — Chegou o momento. Ela engole em seco e diz: — Você sabe que seu pai estaria orgulhoso de você, não sabe? — Dou um beijo rápido em seus lábios secos e franzidos e saio correndo para a estação de trem, com piques curtos e da melhor maneira possível.

Na viagem de trem, coloco os fones de ouvido e ouço uma fita, especialmente preparada, das minhas músicas favoritas de todos os tempos da Kate Bush. É uma coletânea muito boa, mas, como não temos um som de qualidade em casa, é comum ouvir minha mãe gritar no andar de baixo que as costelas estão prontas no meio de The Man With The Child In His Eyes.

Com uma postura solene, abro minha edição novinha em folha de A rainha das fadas, de Spenser, que vamos ler no primeiro semestre. Gosto de pensar que sou um bom leitor, com a cabeça aberta e tudo mais, mas isso me parece meio besteira. Por isso, deixo A rainha das fadas de lado após as primeiras 18 linhas e prefiro me concentrar na Kate Bush, no interior da Inglaterra que passa pela janela, e em parecer pensativo, enigmático e interessante. Tenho uma janela grande, quatro lugares e uma mesa só para mim, uma lata de Coca-Cola e um chocolate Twix, e a única coisa que poderia melhorar ainda mais minha vida seria uma mulher atraente entrando, sentando-se à minha frente e dizendo alguma coisa como...

— Com licença, mas notei que está lendo A rainha das fadas. Por acaso, está indo estudar literatura na faculdade?

— Sim, sim, estou! — eu responderia.

— Que maravilha! Tudo bem se eu me sentar ao seu lado? Meu nome é Emily, a propósito. Responda-me uma coisa: você conhece o trabalho da Kate Bush...?

E minha conversa é tão sofisticada, urbana e espirituosa que, quando o trem para na estação, rola uma energia sexual tão grande entre nós que Emily está debruçada na mesa, mordendo os lábios carnudos com uma certa timidez e dizendo:

— Olha, Brian, a gente mal se conhece, e eu nunca disse isso a ninguém, mas será que a gente não poderia ir... a um hotel ou coisa assim? É que acho que não vou resistir muito mais — e eu concordo com um sorriso blasé, como quem diz por que será que isso sempre acontece quando eu pego um trem?, pego na mão dela e a conduzo ao hotel mais próximo...

Mas... espere um minuto! Para começar, o que vou fazer com a minha bagagem? Não dá para chegar num hotel carregando dois sacos de lixo, dá? E tem também o custo. O dinheiro que ganhei trabalhando no verão já foi gasto com moradia e o cheque da bolsa-auxílio só chega na semana que vem, e, mesmo sem nunca ter ficado num hotel, eu sei que não vai ser barato, quarenta, cinquenta pratas talvez. E, vamos encarar, a coisa toda vai durar o quê? Dez minutos, se eu tiver sorte; quinze no máximo, e não quero chegar no momento crítico do êxtase sexual preocupado com dinheiro. Acho que Emily poderia sugerir de a gente dividir meio a meio o valor do quarto, mas eu teria de recusar, senão ela vai achar que sou um pobretão. E, mesmo que insista e eu concorde, ela ainda teria que me dar o dinheiro e, seja antes ou depois de a gente fazer amor, isso vai tirar um pouco da melancolia, do anseio agridoce do encontro. Será que ela vai pensar que sou esquisito por querer ficar depois e aproveitar ao máximo as ofertas do hotel? Querida Emily, fazer amor com você foi, ao mesmo tempo, lindo e estranhamente pungente. Será que agora pode me ajudar a pôr as toalhas na mochila? Além disso, será que é uma boa ideia ir direto para a cama com uma pessoa que vai estudar comigo? E se a tensão sexual entre nós prejudicar nosso desempenho acadêmico? Na verdade, no final das contas, talvez não seja uma boa ideia. Talvez seja melhor esperar até conhecer Emily um pouco melhor antes de me envolver numa relação.

Quando o trem chega ao destino, realmente me sinto aliviado por Emily ser apenas fruto da minha imaginação.

Arrasto meus sacos de lixo e a mala para fora da estação, que fica numa colina com vista para a cidade. É a segunda vez que venho aqui desde a minha entrevista. Tudo bem, não é Oxford ou Cambridge, mas é a terceira melhor opção. O importante é que a cidade tem torres com pináculos. Daqueles que aparecem nos sonhos.

3

PERGUNTA: Que romance popular de Frances Hodgson Burnett, escrito em 1886 e dramatizado várias vezes desde então, inspirou a moda de jovens de cabelos longos e cacheados em ternos de veludo e colarinhos rendados?

RESPOSTA: O pequeno lorde.


Isto é o que coloquei na seção de Hobbies e Interesses do meu formulário do Departamento de Acomodações da Universidade: Leitura, Cinema, Música, Teatro, Natação, Badminton, Socializar!

Não é uma lista muito reveladora, claro. Nem muito verdadeira. Leitura é verdade, mas todo mundo menciona leitura. O mesmo com Cinema e Música. Teatro é mentira — eu odeio teatro. Na verdade, até já participei de umas peças, mas nunca frequentei muito teatro, a não ser uma encenação educacional sobre segurança na estrada que, mesmo apresentada com elegância, brio e empolgação, não me disse muito em termos de estética. Mas a gente tem de fingir que gosta de teatro; é a lei. Natação não é necessariamente verdade também. Eu sei nadar, só que igual a um animal se afogando. Mas achei que deveria colocar uma coisa um pouco esportiva. O mesmo com Badminton. Quando digo que me interesso por badminton, o que, na verdade, estou dizendo é que, se alguém apontasse uma arma para a minha cabeça e me forçasse a praticar um esporte, sob ameaça de morte, e se recusasse a aceitar palavras cruzadas como esporte, então escolheria badminton. Ou seja, não pode ser tão difícil assim, pode? Socializar! também é um eufemismo. Solitário e Sexualmente Frustrado seria mais exato, mas também mais estranho. A propósito, o ponto de exclamação no final de Socializar! foi para expressar uma maneira irreverente, despreocupada e casual de ver a vida.

Por isso, admito que não dei ao pessoal do Departamento de Acomodações muito com que se preocupar, mas nem isso explica a razão de terem me mandado para essa casa com Josh e Marcus.

Richmond House fica em um platô de tijolos vermelhos no topo de uma colina bem íngreme acima da cidade, muito bem localizada, a quilômetros da parada de ônibus mais próxima. Por isso, quando afinal consigo chegar lá, minha jaqueta está toda suada. A porta da frente está aberta e o corredor está abarrotado de caixas e bicicletas de corrida, dois remos, um bastão de críquete e enchimentos, equipamento de esqui, tanques de oxigênio e um traje de mergulho. Parece fruto de um assalto a uma loja de artigos esportivos. Largo minha mala perto da porta e, com uma crescente ansiedade, escalo as pilhas de material esportivo em busca dos meus novos colegas de quarto.

A cozinha é funcional, iluminada com luz fluorescente e cheira a água sanitária com levedo. Ao lado da pia, dois garotos, um louro enorme e um moreno atarracado, espinhento, com cara de rato, estão enchendo uma lata de lixo de plástico de água com uma mangueirinha. O som está muito alto, tocando She Sells Sanctuary do The Cult e eu fico um tempo na porta dizendo Oi! e Vocês aí!, até o cara louro afinal se virar e me ver com os sacos de lixo.

— Oi! É o lixeiro!

Ele abaixa um pouco o som, curva-se como um labrador amigável e me dá um vigoroso aperto de mão, e percebo que é a primeira vez que aperto a mão de alguém da minha idade.

— Você deve ser o Brian — diz. — Eu sou Josh e esse é o Marcus!

Marcus é pequeno e cheio de espinhas, com as feições concentradas no meio do rosto atrás de óculos de aviador que aumentam ainda mais a impressão de que ele jamais conseguiria pilotar um avião. Ele me olha de cima a baixo com sua cara de rato, funga e volta a atenção para a lixeira de plástico. Mas Josh continua falando, sem esperar resposta, numa voz que parece saída de um cinejornal da Pathé News.

— Como você chegou? Transporte público? Onde estão os seus pais? Está se sentindo bem? Você está completamente encharcado de suor.

Josh usa uma bota de cano curto vinho, colete de veludo bege — isso é que é um colete de veludo —, camisa afofada roxa e um jeans preto tão justo que dá para ver a posição de cada testículo. O corte do cabelo é igual ao de Tone, o Viking Afeminado, o distintivo dos metaleiros de carteirinha, mas aqui complementado por um pretenso bigode felpudo; um visual meio de fidalgo afetado que chega a dar a impressão de que ele esqueceu o florete.

— O que tem aí na lixeira? — pergunto.

— Cerveja caseira. A gente achou que era melhor começar a fermentação logo. Claro que você pode participar se quiser. A gente divide o custo por três...

— Certo...

— São 10 paus para entrar, pela levedura e o concentrado de lúpulo, os tubos, o barril e todo o resto, mas, daqui a três semanas, você vai estar curtindo a tradicional cerveja amarga de Yorkshire por apenas 6 pence a caneca!

— Que pechincha!

— Marcus e eu somos bons cervejeiros. Tocávamos uma destilaria ilegal nos alojamentos e até tivemos um bom lucro, para falar a verdade. Apesar de termos cegado acidentalmente uns garotos do turno integral!

— Vocês estudaram na mesma escola?

— Isso mesmo. Somos inseparáveis, não é, Marcus? — Marcus funga. — Em que escola você estudou?

— Ah, você nunca deve ter ouvido falar...

— Tenta.

— Langley Street?

Nada.

— Langley Street Comprehensive?

Nada.

— Southend? — sugiro. — Essex?

— Nada! Você estava certo, nunca ouvi falar! Quer que eu mostre o seu quarto?

Sigo Josh até o andar de cima, com Marcus morrinhando atrás, por um corredor cinza decorado com instruções sobre como proceder em caso de incêndio. Passamos pelos quartos deles, cheios de caixas e malas, porém ainda espaçosos, e, no fim do corredor, Josh abre uma porta que, à primeira vista, parece de uma cela de prisão.

— Ta-dãã! Espero que não se incomode, mas escolhemos os quartos antes de você chegar.

— Ah... Certo...

— Disputamos no cara ou coroa. A gente queria começar a desempacotar, a nos acomodarmos, sabe.

— É claro! Certo! — Sinto que estão me passando a perna e decido nunca mais confiar em gente com colete de veludo. O truque agora é me afirmar sem parecer muito assertivo.

— Meio pequeno, não é? — comento.

— Todos são pequenos, Brian. E jogamos no cara ou coroa, de maneira limpa e justa.

— Como se joga cara ou coroa com três pessoas?

Silêncio. Josh franze a testa, mexendo a boca sem falar nada.

— Podemos jogar a moeda de novo, se você não confia na gente — Marcus funga, indignado.

— Não, não é isso, é que...

— Bem, então vamos deixar você se organizar. É um prazer tê-lo a bordo! — E os dois voltam cochichando para a cerveja caseira.

Parece que a minha cova já foi cavada. O quarto tem a atmosfera e o apelo da cena de um crime. Um solitário colchão sobre um estrado de metal, um conjugado de guarda-roupa e mesa de madeira compensada e duas pequenas prateleiras de fórmica que imitam madeira. O carpete é marrom-lama e parece ter sido tecido com pelos pubianos compactados. Uma janela suja em frente à mesa dá vista para as latas de lixo no andar de baixo, e um aviso emoldurado adverte que o uso de cola na parede é passível de pena de morte. Bem, eu queria um sótão, e ganhei um sótão. Melhor começar a arrumar, imagino.

A primeira coisa que faço é instalar o som e tocar Never for Ever, o triunfal terceiro álbum de Kate Bush. O resto das fitas são empilhadas ao lado do toca-discos, e acontece um pequeno debate interno sobre qual álbum deve ficar virado para o quarto; tento Revolver, dos Beatles, Blue, de Joni Mitchell, Diana Ross and the Supremes e Ella Fitzgerald antes de escolher o Concertos de Brandenburgo, de Bach, novinho, da gravadora Music For Pleasure, uma pechincha de 2,49 libras.

Depois, desempacoto os livros e tento diferentes formas de organizar nas prateleiras de fórmica: ordem alfabética por autor, alfabética por autor com subdivisões por assunto, gênero, nacionalidade, tamanho e, afinal, do modo mais eficiente, pela cor — pretos clássicos da Penguin numa ponta e um dégradé de cores até os brancos da Picador na outra, com 5 centímetros de verdes da Viragos que ainda não li, mas que, com certeza, vou ler, no centro do espectro. É óbvio que isso leva tempo, e, quando termino, já está escuro e instalo uma luminária na mesa.

Em seguida, decido transformar minha cama num futon. Na verdade, é uma coisa que já quero fazer há algum tempo, mas minha mãe ria de mim quando eu tentava isso em casa, então vou tentar aqui. Agarro com determinação o colchão, que, misteriosamente, está tão úmido e manchado que dá até para plantar agrião nele, jogo-o no chão sem encostar no meu rosto, e, com alguma dificuldade, levanto o estrado de metal. Pesa uma tonelada, mas consigo escondê-lo atrás do armário. Claro que com isso perco alguns centímetros de espaço valioso no chão, mas o efeito final vale a pena. É uma atmosfera meio minimalista, contemplativa e oriental, só que um pouco sabotada pelas grossas listras azul-marinho, vermelhas e brancas do edredom da British Home Stores.

Dando continuidade ao minimalismo zen do futon, quero limitar a decoração a uma montagem de cartões-postais com minhas pinturas e fotos favoritas, uma espécie de manifesto pictórico de heróis e coisas que eu adoro na parede em cima do meu travesseiro. Deito no futon e pego a fita-crepe: Madonna Litta, de Henry Wallis; Ofélia, de Millais; Madonna Litta, de Da Vinci; Noite estrelada, de Van Gogh; um Edward Hopper; Marilyn Monroe, de saia de balé, olhando pesarosamente para a câmera; James Dean, num sobretudo longo em Nova York; Dustin Hoffman, em Maratona da morte; Woody Allen; uma foto do meu pai e da minha mãe dormindo em espreguiçadeiras no Butlins; Charles Dickens; Karl Marx; Che Guevara; Laurence Olivier, como Hamlet; Samuel Beckett; Anton Chekhov; eu de Jesus, na montagem da produção de Godspell no último ano da escola; Jack Kerouac; Richard Burton e Elizabeth Taylor, em Quem tem medo de Virginia Woolf?; e uma foto de Spencer, Tone e eu numa excursão da escola a Dover Castle. Spencer está numa pose discreta, cabeça inclinada para baixo e para o lado, com um ar descolado, entediado e inteligente. Tone, como de costume, está fazendo um gesto obsceno.

Por fim, ponho ao lado do travesseiro uma foto do meu pai, magro, porém atlético e vagamente ameaçador, como Pinkie em Brighton Rock, mas à beira-mar em Southend, com uma garrafa de cerveja e um cigarro entre os dedos longos. A figura de topete preto, rosto encovado, nariz longo e fino vestindo um elegante terno de três botões e gola estreita, que, mesmo sorrindo para a câmera, continua muito ameaçador. A foto foi tirada em 1962, quatro anos antes de eu nascer. Então, ele devia ter a mesma idade que tenho agora. Eu adoro essa foto, mas me incomoda pensar que, se me visse aos 19 anos no píer de Southend num sábado à noite, haveria uma boa chance de o meu pai de 19 anos querer me bater.

Alguém bate na porta e, instintivamente, escondo a fita-crepe nas costas. Imagino que seja Josh me pedindo um cigarro ou algo assim, mas é uma loura enorme com cabelo de viking e um bigode quase branco.

— Como está se virando? Tudo bem? — pergunta Josh vestido feito uma drag queen.

— Sim, tudo bem...

— Por que seu colchão está no chão?

— Ah, eu pensei em usar como um futon por um tempo.

— Um futon? Sério? — pergunta Josh, franzindo os lábios com batom como se fosse a coisa mais exótica que ouviu na vida, o que é muita hipocrisia vindo de um cara travestido. — Marcus, vem ver o futon do Jackson! — Marcus enfia a cara no quarto com uma peruca preta de nylon cacheada, saia de hóquei e meias três quartos, funga e desaparece.

— Bom, a gente está de saída. Você quer ir...?

— Desculpe, ir aonde?

— Na Festa Biscates e Vigários, na Kenwood Manor. Vai ser divertida.

— Hum, bem, talvez. É que pensei em ficar lendo e...

— Ah, deixa de ser nerd...

— Eu nem tenho nada para usar...

— Você não tem uma camisa escura?

— Tenho.

— Então, é isso aí. É só pôr um cartão branco debaixo da gola e está pronto. Vejo você em cinco minutos. Ah, e não vai esquecer as dez pratas da cerveja caseira, tá? Aliás, adorei o que você fez com o quarto...

4

PERGUNTA: A energia de interação entre dois prótons está diretamente relacionada à separação entre eles. Quais são as forças entre os prótons quando a separação entre eles é, respectivamente, a) pequena e b) intermediária?

RESPOSTA: Repulsiva e atrativa.


Como sou um homem experiente e sofisticado, sei o valor de forrar o estômago antes de uma noitada. Por isso, compro um saco de batata frita e umas salsichas para comer a caminho da festa. Começa a chover, mas como o máximo de batatas fritas que consigo antes que elas fiquem frias e molhadas. Marcus e Josh andam a passos largos na minha frente, confiantes em seus saltos altos, indiferentes aos olhares melancólicos das pessoas que passam por nós. Imagino que garotos vestidos como elegantes drag queens seja uma das inevitáveis infelicidades de se morar em uma cidade universitária. Logo, logo, será a semana dos calouros, e as folhas ficarão cor de bronze, as andorinhas voarão para o sul e o shopping vai ficar lotado de médicos em trajes de enfermeiras sensuais.

No caminho, Josh me bombardeia com perguntas.

— O que você vai cursar, Brian?

— Letras.

— Poesia, né? Eu vou fazer Economia Política e Marcus vai fazer Direito. Você pratica algum esporte, Brian?

— Só palavras cruzadas.

— Palavras cruzadas não são um esporte — funga Marcus.

— Porque você não viu como eu jogo! — replico, rápido como um relâmpago.

Mas ele não parece achar graça, porque faz uma careta e diz:

— Não importa como você joga. Não é um esporte.

— Não, eu sei. Só estava...

— Você curte futebol, críquete ou rúgbi? — pergunta Josh.

— Nada disso, para falar a verdade...

— Então, não é um tipo esportista?

— De jeito nenhum.

Não consigo deixar de me sentir como se estivesse sendo avaliado para entrar em um clube particular e sendo reprovado.

— Como é o seu squash? Estou precisando de um parceiro.

— Nada de squash. Badminton, às vezes.

— Badminton é jogo para meninas — diz Marcus, ajustando as tiras das sandálias.

— Você tirou um ano de férias?

— Não...

— Foi a algum lugar legal nesse verão?

— Não...

— O que os seus pais fazem?

— Bem, minha mãe trabalha como caixa no Woolworths. Meu pai vendia janelas de vidro isolante, mas já morreu.

Josh aperta meu braço e diz:

— Sinto muito, mesmo — mas não fica claro se está se referindo à morte do meu pai ou ao trabalho da minha mãe.

— E os seus pais?

— Ah, meu pai trabalha no Ministério de Relações Exteriores e minha mãe no Departamento de Transporte.

Meu Deus, ele é do Partido Conservador! Ou ao menos imagino que seja. Se os pais são conservadores, isso tende a ser coisa de família. Quanto ao Marcus, não me surpreenderia se soubesse que faz parte de alguma Juventude Nazista.

Finalmente, chegamos a Kenwood Manor. Estava fugindo das salas de convívio da faculdade, pois, na matrícula, me disseram que eram lugares chatos, caretas e cheios de cristãos. A realidade está entre um asilo de loucos e uma escola pública pequena — com longos corredores ecoando, assoalho de tacos de madeira, cheiro de roupa de baixo úmida secando no calor de um aquecedor e a sensação de que alguma coisa horrível está acontecendo em algum banheiro.

A remota batida de Dexys Midnight Runners nos leva por um grande corredor até um salão forrado de madeira com janelas altas e poucos alunos, mais ou menos sete partes de biscates e três partes de vigários, sendo que as biscates se dividiam mais ou menos em 50% de mulheres e 50% de homens. Não é uma visão bonita. Homens fortões e algumas mulheres de meias-calças artisticamente rasgadas e sutiãs com enchimento, apoiados nas paredes como, bem, biscates, com aristocratas vice-reitores eduardianos olhando com desprezo do alto de suas molduras.

— A propósito, Bri, você não teria aquelas dez pratas aí com você...? — insinua Josh, franzindo a testa. — Da cerveja caseira?

Claro que eu não posso gastar esse dinheiro, e são as dez pratas que minha mãe me deu, mas, no espírito de fazer novas amizades, entrego o dinheiro, e Josh e Marcus pulam fora como cachorros na praia, deixando-me sozinho para fazer mais uma dessas amizades que vão durar a vida toda. Decido que, de modo geral, nesse primeiro estágio da noite, é melhor dar uma de vigário, não de biscate.

A caminho do bar improvisado, numa mesa de armar, estão vendendo Red Stripe pelo preço bem razoável de 50 pence a lata. Estampo minha expressão por favor, fale comigo, com um sorriso ingênuo de boca fechada e tentativas de acenos de cabeça e olhares esperançosos. Um hippie magricela com o mesmo sorriso idiota e interiorano que eu e, surpreendentemente, com um aspecto ainda pior, está esperando para ser servido. Dá uma olhada ao redor e diz, com um forte sotaque de Brummie:

— Muito loooouco, não é?

— Insano! — respondo, e nós dois reviramos os olhos como quem diz Tsc, essas crianças de hoje!. O nome dele é Chris, e logo fico sabendo que ele também vai cursar Letras.

— Sincronicidade! — exclama Chris, e começa a me contar tudo sobre as notas altas que tirou no exame de admissão, o conteúdo preciso do seu formulário da UCCA e a trama de cada livro que já leu em toda a vida antes de embarcar na descrição de seu verão viajando pela Índia, em tempo real, e passo pelos dias e noites que se seguem acenando com a cabeça enquanto tomo três latas de Red Stripe, imaginando se a pele dele é mesmo pior do que a minha, quando, de repente, percebo que ele está dizendo...

— …e quer saber? Eu não usei papel higiênico nem uma vez enquanto estive lá.

— Sério?

— Nem uma. E acho que nunca mais vou usar. É muito mais fresco e muito melhor para o meio ambiente.

— Mas como você faz...?

— Ah, só a mão e um balde de água. Essa aqui! — e enfia a mão embaixo do meu nariz. — Vá por mim. É muito mais higiênico.

— Mas você não disse que teve muita disenteria?

— Bem, sim, mas isso é diferente. Todo mundo tem disenteria.

Decido não insistir na questão e digo:

— Ótimo! Tudo bem... — e lá vamos nós viajar de novo em bancos de madeira de ônibus caindo aos pedaços de Hyderabad a Bangalore, até que, em algum lugar nas Colinas de Erramala, a Red Stripe faz seu trabalho e percebo, com alegria, que minha bexiga está cheia e que, sinto muito, mas preciso ir ao banheiro.

— Não vá embora, eu já volto, fique bem aqui onde você está. — Quando me viro, ele agarra meu ombro, põe a mão esquerda bem na frente da minha cara e diz, num tom evangelizador:

— Não se esqueça! Não precisa de papel higiênico! — Sorrio e sigo meu caminho.

Quando retorno, percebo, com alívio, que o cara foi embora, e resolvo sentar na beira do palco de madeira ao lado de uma garota elegante, que não está vestida nem de biscate nem de vigário, mas como um membro da Ala Juvenil da KGB, com um casaco preto pesado, meia-calça preta, camisa jeans curta e um quepe escuro estilo soviético empurrado para trás de um tufo de cabelos pretos e oleosos. Abro meu sorriso será que posso sentar aqui e ela me responde com um sorriso sim, pode ir embora, que é quase um pequeno espasmo, e vejo um lampejo de dentes brancos pequenos e pontudos, todos do mesmo tamanho, atrás de um incongruente borrão de batom vermelho. Eu deveria ir embora, mas a cerveja me deixou destemido e muito sociável e sento ao lado dela assim mesmo. Apesar da batida do baixo de Two Tribes, deu para ouvir os músculos do rosto dela se contraindo.

Depois de um tempo, eu me viro e olho para ela. Está extraindo pequenas e nervosas baforadas de um cigarro de enrolar e olhando a pista de dança de maneira obstinada. Tenho duas alternativas: conversar ou ir embora. Talvez eu tente conversar.

— O mais irônico é que eu sou vigário mesmo.

Sem resposta.

— Não vejo tantas prostitutas assim desde o meu aniversário de 16 anos!

Sem resposta. Talvez ela não tenha me escutado. Ofereço um gole da minha lata de Red Stripe.

— Você é muito gentil. Mas eu vou passar... obrigada — pega a latinha ao lado e balança na minha frente. A voz combina direitinho com o rosto; dura e afiada, escocesa, sotaque de Glasgow, acho.

— Então, você veio de quê? — pergunto mais animado, apontando as roupas dela com a cabeça.

— Eu vim como uma pessoa normal — responde ela, sem sorrir.

— Você podia ter se esforçado um pouco! Era só colocar uma coleira de cachorro ou algo assim!

— Talvez. Só que eu sou judia — diz, tomando um gole de cerveja. — É engraçado, mas se fantasiar nunca chegou a pegar na comunidade judaica.

— Às vezes, queria ser judeu, sabe — digo.

Percebo que foi um estratagema muito ousado para um início de conversa, e nem sei bem por que disse isso. Em parte, é por achar importante ser honesto sobre questões raciais, de gênero e identidade, mas também porque já estou meio bêbado.

Ela estreita os olhos e olha para mim por um momento. Parece a cena de um filme de faroeste italiano. A garota dá uma tragada e, decidindo se vai ou não ficar ofendida, diz em voz baixa: — É mesmo?

— Desculpe... Não estou sendo racista nem nada. Só quis dizer que muitos dos meus heróis são judeus. Só isso...

— Bem, fico feliz de o meu povo ter a sua aprovação. E quem são esses heróis?

— Ah, tipo Einstein, Freud, Marx...

— Karl ou Groucho?

— Os dois. Arthur Miller, Lenny Bruce, Woody Allen, Dustin Hoffman, Philip Roth...

— Jesus, claro...

— ...Stanley Kubrick, Freud, J. D. Salinger…

— Estritamente falando, Salinger não é judeu.

— É, sim.

— Vá por mim: não é.

— Tem certeza?

— Nós sabemos... temos um sexto sentido especial.

— Mas o nome é judeu.

— O pai era judeu, mas a mãe era católica. Então, tecnicamente, ele não é judeu. O judaísmo se transmite pela linhagem feminina.

— Eu não sabia disso.

— Bem, sua educação universitária está começando — e volta a encarar a pista de dança, agora lotada de biscates balançando no ritmo da música. É uma visão bem sombria, como um círculo do inferno recém-descoberto, e a garota observa com um desprezo convicto, como que esperando a explosão da bomba que plantou. — Meu Deus, olha só essa gente — ela fala devagar, cansada, e Two Tribes dá lugar a Relax com Frankie cantando alguma coisa que eu não entendo. — Decido que a melhor atitude a tomar é adotar um cinismo cansado do mundo. Então, rio alto da situação e ela se vira para mim quase sorrindo. — Sabe qual é a grande conquista dos colégios internos ingleses? Gerações de garotos de cabelos escorridos que sabem direitinho como ajustar uma cinta-liga. É incrível como a maioria de vocês já chega na faculdade com roupas de mulher na mala.

Nós?

— Na verdade, estudei em colégio público — explico.

— OK, ponto para você. Sabe que você é a sexta pessoa a me dizer isso essa noite? Será algum tipo de cantada esquisita de esquerda? O que deve me impressionar mais? O nosso sistema de escolas estatais? Ou suas heroicas conquistas acadêmicas?

Se existe uma coisa que sei reconhecer é quando fui derrotado, então, pego minha latinha quase cheia e chacoalho no ar como se estivesse vazia.

— Vou até o bar. Você quer alguma coisa, hum...?

— Rebecca.

— ...Rebecca?

— Não, obrigada.

— OK. Bem... A gente se vê por aí. A propósito, meu nome é Brian.

— Boa noite, Brian.

— Tchau, Rebecca.

Estou a caminho do bar, quando vejo Chris, o hippie, esperando na fila com um saco enorme de salgadinhos embaixo do braço. Por isso, dou meia-volta e sigo pelo corredor decidido a dar um passeio.

Ando pelo corredor forrado de painéis de madeira, no qual a última leva de estudantes está se despedindo dos pais ao som de Legend, de Bob Marley. Uma garota debulha-se em lágrimas nos braços da mãe chorosa, enquanto o pai impaciente espera de pé e empertigado, um rolinho de cédulas apertado na mão. Um gótico magricela e constrangido, todo de preto e com um proeminente aparelho nos dentes, está quase expulsando os pais para poder dar continuidade ao importante projeto de mostrar às pessoas a criatura sombria e complexa que jaz por trás de todo aquele metal e plástico. Outros recém-chegados estão se apresentando aos vizinhos de alojamento, entregando pequenas biografias formais: curso, local de nascimento, notas nos exames, bandas favoritas, experiência mais traumática da infância. É meio que uma versão educada e de classe média daquela cena em filmes de guerra em que os novos recrutas chegam às barracas e mostram uns aos outros fotos das namoradas que deixaram em casa.

Paro diante do quadro de avisos do Grêmio Estudantil, tomo um gole de cerveja e lanço um olhar desinteressado — uma bateria à venda, convocações para boicotar o Banco Barclays, um aviso já ultrapassado de reunião do Partido Revolucionário Comunista em apoio aos mineiros, testes para Os piratas de Penzance e vejo que Self-Inflicted e Meet Your Feet vão tocar no Frog and Frigate na próxima terça.

E é aí que eu vejo algo.

No quadro de avisos, um pôster com uma fotocópia A4 em vermelho-vivo, anuncia:


RESPONDA CORRETAMENTE!

Você sabe a diferença entre Sófocles e Sócrates?

Entre Ursa Menor e Lee Majors?

Entre carpe diem e habeas corpus?

Tem coragem de enfrentar os veteranos?

Por que não participar da seleção para o Desafio Universitário?

Teste em um breve (e divertido!) exame escrito.

Sexta-feira na hora do almoço, 13h em ponto,

Grêmio Estudantil, Sala de Reunião nº 6.

Exige-se comprometimento. Nada de preguiçosos ou aventureiros.

Só as melhores cabeças devem se inscrever.


RESPONDA CORRETAMENTE!

Você sabe a diferença entre Sófocles e Sócrates?

Entre Ursa Menor e Lee Majors?

Entre carpe diem e habeas corpus?

Tem coragem de enfrentar os veteranos

Por que não participar da seleção para o Desafio Universitário?

Aí está. É isso aí. O Desafio.

5

PERGUNTA: Que artista negro americano, que se intitula o homem que mais trabalhou no show business e pioneiro da música funk, é conhecido como o Rei do Soul?

RESPOSTA: James Brown.


O que mais me chamava a atenção eram os cabelos; longas e improváveis ondas de cabelos quebradiços como trigo ressecado; cortinas pendentes de franja sedosa; costeletas grossas como se saíssem de uma peça de teatro lembrando-se da hora do chá no domingo. Meu pai ficava lívido de raiva se visse alguém de cabelo comprido no Top of The Pops, mas quem conseguia chegar ao Desafio Universitário merecia o direito de ostentar os cortes de cabelo mais escabrosos. Era quase inevitável, como se cabelo maluco fosse uma válvula de escape para todo aquele incrível e incontrolável excesso de energia mental. Como um cientista louco, você não pode ser tão inteligente se não tiver os cabelos desgrenhados e se não for míope, nem ser capaz de tomar banho e se vestir sozinho.

E as roupas; a arcana tradição da velha Inglaterra de becas escarlates combinadas com excêntricas gravatas estampadas com teclas de piano, a infinidade de cachecóis feitos em casa, os coletes em estilo oriental. Claro que qualquer criança acha todo mundo velho na televisão e, em retrospecto, imagino que eles fossem jovens, tecnicamente, em anos terrestres, mas, se tinham mesmo 20 anos, pareciam prestes a fazer 62. Nada naqueles rostos sugeria juventude, vigor ou saúde. Eram todos pálidos, com aparência cansada, muito preocupados, como que lutando com o peso de toda aquela informação, como se pagassem um terrível tributo físico pela meia-vida do elemento radioativo trítio, pela origem do termo “éminence grise”, pelos vinte primeiros números perfeitos, pelo estilo das rimas de um soneto petrarquiano.

Claro que meu pai e eu raramente acertávamos uma resposta, mas essa não era bem a questão. Não era por causa do conhecimento geral, nem para nos sentirmos presunçosos e autoindulgentes a respeito de todas as coisas que sabíamos, era por que nos sentíamos humildes diante de todo aquele vasto universo de coisas da qual não fazíamos a menor ideia. A questão era nos sentirmos maravilhados, pois a impressão que meu pai e eu tínhamos era de que aquelas estranhas criaturas sabiam tudo. Faça qualquer pergunta: Qual é o peso do Sol? Por que estamos aqui? O universo é infinito? Qual é o segredo da verdadeira felicidade? E, mesmo que eles não soubessem a resposta de imediato, podiam debater entre si, em voz baixa e sussurrante, e surgir com alguma coisa que, mesmo não inteiramente correta, soava como um ótimo palpite.

Não importava que os competidores fossem claramente desajustados sociais, pouco higiênicos ou cheios de espinhas, virgens envelhecendo ou, em alguns casos, apenas muito esquisitos; o importante era que existia um lugar onde as pessoas realmente sabiam aquelas coisas, adoravam saber tudo aquilo, envolviam-se com esse conhecimento de maneira apaixonada, achavam que era importante e que valia a pena, e, naquele dia, papai disse que, se eu me esforçasse o bastante, também poderia chegar até lá...


— Você acha que tem chance? — pergunta ela.

Quando me viro, juro que ela é tão linda que quase deixo cair a lata de cerveja.

— Você acha que tem chance?

Acho que eu nunca tinha chegado perto de uma coisa tão linda. Existe beleza nos livros, é claro, talvez em pinturas ou numa paisagem, como naquela viagem de campo a Purbeck Island do curso de geografia, mas, até agora, acho que não tinha vivenciado uma beleza verdadeira, não na vida real, em um ser humano quente e macio, uma coisa que você pode tocar, pelo menos em teoria. Ela é tão perfeita que chego a me encolher quando a vejo. Os músculos do meu peito se contraem e preciso lembrar de respirar. Soa como uma hipérbole ultrajante, eu sei, mas ela realmente parece uma jovem e loura Kate Bush.

— Você acha que tem chance? — pergunta.

— Hum? — retruco, afiado como uma tachinha.

— Você acha que consegue? — repete, indicando o cartaz com a cabeça.

Rápido, diga algo espirituoso.

— Hummm... — gracejo, e ela sorri condescendentemente, como uma enfermeira gentil sorrindo para o Homem-elefante.

— Então, a gente se vê lá amanhã? — diz, e vai embora. Está usando um vestido sofisticado, mas bem sóbrio, uma escolha muito melhor que o Estilo Biscate Francesa — uma blusa justa listrada em branco e preto, um cinto elástico preto, saia-lápis preta, meia-calça arrastão. Ou será uma meia arrastão 7/8? Meia-calça ou 7/8, meia-calça ou 7/8, meia–calça ou 7/8...?

Ando atrás dela pelo corredor mantendo uma distância decente, não ameaçadora, observando seu passo metronômico, como Marilyn Monroe saindo da cortina de vapor em Quanto mais quente melhor (meia-calça ou 7/8, meia–calça ou 7/8?), e, conforme ela vai passando pelas portas dos quartos, alguém coloca a cabeça para fora e diz oi, olá e como vai e você está ótima. Mas ela só está ali há oito horas, um dia no máximo. Como é que parece conhecer todo mundo?

Então, ela entra na festa, passa pela multidão de vigários boquiabertos em direção a um pequeno grupo de garotas na beira da pista de dança, garotas do

tipo difícil, bonitas, estilosas, que andam em bando, sempre juntas. O DJ está tocando Tainted Love e a atmosfera no salão parece mais sombria, mais sexualmente predatória e decadente, e, se não chega a ser a República de Weimar de Berlim, poderia ser a produção de Cabaret dos alunos do último ano de Sussex. Permaneço na penumbra, observando. Tenho que ficar muito esperto se quiser fazer isso direito, e também vou precisar de mais cerveja. Compro a sexta lata. Ou será que é a sétima? Não tenho certeza. Não importa.

Volto correndo, com medo de ela já ter ido embora, mas ela continua lá na beira da pista de dança com sua gangue de quatro amigas, rindo e brincando como se já as conhecesse desde sempre e não só há poucas horas. Moldo meu rosto com uma expressão de tédio amargo e irônico e faço algumas excursões, passando por ela com um ar desinteressado, na esperança de que vá me notar, me puxar pelo cotovelo e dizer: Conte tudo sobre você, criatura fascinante. Ela não me nota; então, decido passar por ela de novo. Faço isso umas 14 ou 15 vezes, mas ela continua não me notando. Então escolho uma abordagem mais direta. Chego perto e fico parado atrás dela.

Fico parado atrás dela durante toda a versão estendida de doze polegadas de Blue Monday, do New Order. Afinal, uma de suas novas amigas, uma garota com o rosto triangular, lábios finos, olhos de gato e um cabelo curto louro descolorido me nota e, instintivamente, leva a mão à bolsa como se achasse que estou aqui para roubar a bolsa de alguém. Abro um sorriso tranquilizador e os olhos dela começam a se mover louca e rapidamente pelo grupo. Talvez chegue até a emitir um sinal de alerta estridente ou algo assim, pois o grupo se vira e olha para mim, e, de repente, a Kate Bush loura está lá, o rosto lindo a alguns centímetros do meu. Desta vez, vou ser mais esperto e dizer, de maneira lamentável:

— Ei!

Isso a deixa menos intrigada do que eu esperava, pois ela só diz Oi e começa a virar as costas para mim.

— A gente se conheceu? Agora há pouco? No corredor? — eu tagarelo.

O rosto dela continua inexpressivo. Apesar da quantidade de bebida que ingeri, sinto minha boca áspera e pegajosa, como se minha saliva tivesse sido engrossada com maisena, mas passo a língua nos lábios e digo:

— Você me perguntou se eu achava que tinha chance? Para o Desafio Universitário?

— Ah, sim — ela responde e se vira outra vez, mas as amigas já se dispersaram ao perceber o clima entre a gente e, enfim, estamos a sós, como o destino decretou.

— A ironia é que eu sou um vigário de verdade! — digo.

— Como? — ela se aproxima e aproveito para colocar a mão perto de sua orelha e roçar sua encantadora cabeça:

— Eu sou um vigário de verdade! — grito.

— É?

— O quê?

— Um vigário?

— Não, eu não sou vigário.

— Pensei que você tinha dito que era vigário.

— Não, não sou...

— Então, o que você disse?

— Bem, sim, quer dizer, eu disse, sim, que era vigário, sim, mas eu, eu estava brincando!

— Ah. Desculpe, eu não entendi...

— Eu sou o Brian, aliás! — Não entre em pânico...

— Olá, Brian... — e ela começa a olhar em volta procurando as amigas. Continue, continue...

— Por quê? Pareço um vigário? — pergunto.

— Não sei. Um pouco, acho...

— Oh! Certo! Bem, obrigado! Obrigado mesmo! — Estou tentando uma falsa indignação, braços cruzados bem alto no peito, querendo fazer graça e começar um bate-papo leve e espirituoso. — Um vigário, hein? Bem, muito obrigado! Nesse caso, você parece... uma... piranha de verdade!

— Como?

Ela não deve ter me ouvido direito, pois não está rindo. Então, levanto a voz.

— UMA PIRANHA! Você parece uma prostituta! Uma prostituta de luxo, entendeu...?

Ela sorri para mim, um daqueles sorrisinhos sutis que transpiram desprezo e diz:

— Com licença, Gary, eu preciso muito ir ao banheiro...

— Tudo bem, a gente se vê por aí!

Mas ela já foi, deixando uma vaga sensação de que as coisas poderiam ter ido melhor. Talvez ela tenha se ofendido, mas eu estava usando a minha voz engraçada. Mas como que ela iria saber que é uma voz de troça se não está acostumada com a minha voz normal? Talvez agora ache que eu tenho uma voz engraçada? E quem é Gary? Fico parado, observando enquanto ela segue em direção aos toaletes, só que ela para na pista de dança, cochicha no ouvido de outra garota e as duas riem. Então, não precisava ir ao toalete no fim das contas. O toalete era só uma desculpa.

Aí ela começa a dançar. Está tocando The Lovecats do The Cure e, numa interpretação incisiva e espirituosa da letra da música, ela dança um pouco como uma gata, entediada, distante e flexível, jogando um braço por cima da cabeça como um... bem, como um rabo de gato! É a dançarina mais inacreditável do mundo! Agora, está com as duas mãos debaixo do queixo, como duas patinhas, e ela é a Lovecat, e é tão maravilhosa, maravilhosa, maravilhosa, maravilhosa e linda, e me inspira com um plano tão belo em sua simplicidade e tão engenhoso e infalível, que me pergunto por que não pensei nisso antes.

Dançar! Eu vou atrair a garota com uma dança contemporânea.

O disco muda para Sex Machine, do James Brown, e, por mim, tudo bem, porque estou muito a fim de ser uma máquina sexual, já que tocamos no assunto. Ponho a Red Stripe no chão com todo o cuidado e a lata é imediatamente chutada, mas eu não ligo, não importa. Não preciso dela para o que vou fazer. Faço alguns movimentos de aquecimento na beira da pista, cauteloso a princípio, mas contente por estar com meus sapatos escoceses e não com meu tênis Green Flash, pois as solas lisas escorregam bem no assoalho de madeira, dando-me uma sensação de ritmo sincopado, de membros soltos. Com todo o cuidado, como se estivesse numa pista de gelo me agarrando às paredes, tomo a direção da pista de dança, lentamente.

Ela está dançando no seu grupinho fechado de novo, uma daquelas impenetráveis formações de defesa da infantaria de Roma para rechaçar os bárbaros. A garota com olhos de gato é a primeira a me avistar, emite seu estridente sinal de alarme e a Kate Bush Loura desfaz a formação, vira-se e olha nos meus olhos, e aproveito a deixa, a música entra em mim e danço como nunca dancei antes.

Danço como se a minha vida dependesse disso, mordendo os lábios de maneira sedutora, tanto com uma intenção erótica quanto para ajudar na concentração, e olho nos olhos dela, desafiante, lançando um desafio para que ela busque outra direção. Mas é o que ela faz. Dou uma volta, retorno ao seu campo de visão e mando ver. Danço como se calçasse os Sapatinhos Vermelhos, e penso que talvez eu esteja certo, talvez seja por causa dessa cueca que minha mãe me deu, a Cueca Vermelha, mas seja lá o que for, estou dançando como James Brown. Tenho funk e soul e uma bolsa novinha em folha, sou o homem que mais trabalhou no show business e sou uma máquina feita especialmente para o sexo, deslizando e rodando em 360, 720 graus e uma vez até em 810 graus, o que me deixou virado para o lado errado e desorientado. Mas, tudo bem, porque James Brown está dizendo para sentir a batida, e eu sinto, seja lá que batida for, e, enquanto isso acontece, minha mão vai arrancar o cartão de papelão branco do meu pescoço, num gesto de desprezo pelas instituições religiosas, e o jogar no chão, no meio de um grupo de pessoas que formaram um círculo ao meu redor, aplaudindo, rindo e apontando com pasma admiração enquanto volteio e giro e toco o chão, meu casaco esvoaçando ao redor de mim. Meus óculos embaçaram um pouco e não consigo ver o rosto de Kate Bush entre eles. Só um relance daquela biscate judia de cabelos pretos, aquela tal de Rebecca, mas é tarde demais para parar de dançar, porque James Brown está pedindo para sacudir o meu ganha-pão, sacudir o meu ganha-pão, e preciso pensar um pouco porque não sei exatamente qual é o meu ganha-pão. Minha cabeça? Não, minha bunda, claro. Então, balanço a bunda da melhor maneira possível, ungindo a multidão ao redor com suor, como um cachorro molhado, e, de repente, soam estridentes buzinas e a música acabou e eu. Estou. Esgotado.

Procuro o rosto dela em meio ao entusiasmo da multidão, mas ela com certeza foi embora. Sem problema. O importante é ter deixado uma boa impressão. Nossos caminhos vão se cruzar outra vez, amanhã, às 13h, no teste para o Desafio.

Agora, chega o momento das músicas lentas e românticas, como Careless Whisper, para dançar de rosto colado, mas todo mundo é muito maneiro ou está bêbado demais para dançar. Por isso, decido que está na hora de ir dormir. No caminho da saída pelo corredor, dou uma passada no banheiro. Minha camisa está colada de suor no corpo e aberta até o umbigo, o cabelo está emplastrado na testa e todo meu sangue subiu à cabeça, em especial para a minha acne, mas ainda assim acho que, no geral, minha aparência está muito boa. O recinto começa a girar e eu apoio a testa no espelho à minha frente para fazer ele parar enquanto faço xixi, e de um dos cubículos vem um cheiro de maconha e duas vozes baixas dando risadinhas. Nisso, soa a descarga e saem duas biscates, uma mulher com o rosto suado, arrumando o shortinho, e a outra é um jogador de rúgbi de ombros largos. Os dois estão com o rosto sujo de batom. Olham para mim com um ar desafiador, provocando-me a dizer alguma coisa, mas estou cheio de júbilo e paixão e amor pela completa e alegre imprudência da juventude. Por isso, só dou um sorriso sonso para eles.

— A ironia é que eu sou vigário mesmo! — digo.

— Ah, vai se foder! — responde o cara.

6


PERGUNTA: O Livro IX de O prelúdio de Wordsworth contém a seguinte exortação: Felicidade estava na alvorada de estar vivo...?

RESPOSTA: Porque ser jovem era o paraíso.


Em termos de novas alvoradas, esta é tão deprimente quanto qualquer outra.

Nem é mais alvorada: são 10h26. Achei que, no meu primeiro dia aqui, acordaria cheio de saúde, sabedoria e vigor acadêmico, mas só sinto o mesmo de sempre: vergonha, nojo de mim mesmo, náusea e uma vaga sensação de que acordar não precisava ser sempre assim.

Também estou muito indignado, porque, com certeza, alguém entrou no meu quarto enquanto eu dormia e encheu minha boca de feltro e pisoteou a minha cabeça. Está muito difícil me mexer; então, permaneço deitado por um momento contando quantas noites consecutivas já fui para a cama bêbado e acabo com o número aproximado de 103. E teriam sido mais noites ainda, não fosse o último ataque de amidalite. Contemplo a ideia de que, talvez, eu seja alcoólatra. Tenho isso de vez em quando, a necessidade de me definir como uma coisa ou outra, e, em vários momentos da vida, já me perguntei se sou gótico, homossexual, judeu, católico ou maníaco-depressivo, se sou adotado ou tenho um buraco no coração, ou se tenho a habilidade de mover objetos com o poder da mente, e sempre, infelizmente, chego à conclusão de que não sou nenhuma das alternativas acima. O fato é que, na verdade, não sou nada. Nem mesmo um órfão, não no sentido estrito, mas alcoólatra parece mais plausível até agora. Que outro nome se dá a alguém que vai para a cama bêbado todas as noites? Ainda assim, talvez alcoolismo não fosse a pior coisa do mundo; pelo menos, metade das pessoas nos cartões-postais na parede ao meu lado é alcoólatra. O segredo, suponho, é ser alcoólatra sem deixar isso afetar seu comportamento ou seu desempenho acadêmico.

Ou, talvez, tenha lido romances demais. Nos romances, os alcoólatras são sempre atraentes e engraçados, encantadores e complexos, como Sebastian Flyte ou Abe North em Suave é a noite, e bebem por causa de uma profunda e insaciável tristeza da alma, ou devido ao terrível legado da Primeira Guerra Mundial, enquanto eu só fico bêbado porque tenho sede, e o gosto da cerveja me agrada, e porque sou um imbecil que não sabe quando parar. Afinal, não dá para pôr a culpa nas Ilhas Falklands.

E, com certeza, cheiro como um alcoólatra. Em menos de 24 horas, o novo quarto já começou a feder. É o cheiro de garotos da minha mãe — quente e salgado, um pouco como a parte interna da pulseira de um relógio de pulso. De onde vem esse cheiro? Será que eu sempre o carrego por aí comigo? Eu me sento na cama e encontro a camisa da noite passada no chão ao meu lado, ainda encharcada de suor. Até minha jaqueta está úmida. Um rápido lampejo de lembranças reprimidas vem à tona... Alguma coisa envolvendo... dançar? Eu me deito de novo e cubro a cabeça com o edredom.

No fim, é o futon que me força a levantar. Parece ter ficado mais compacto durante a noite e sinto o chão duro e frio na minha coluna, mais ou menos como estar deitado numa toalha úmida que ficou dentro de um saco plástico por uma semana. Sento-me na beirada, com os joelhos embaixo do queixo e procuro minha carteira nos bolsos. Está lá, mas é preocupante que só tenha 5,18 libras em trocados. Isso tem que durar até segunda, três dias. Quantas cervejas tomei ontem à noite? E, oh Deus, de novo as lembranças reprimidas, borbulhando na superfície como um peido na banheira. Dançar. Eu me lembro de ter dançado no meio de algumas pessoas. Mas isso não pode estar certo, pois eu danço como uma pessoa tendo um ataque epilético, e os outros estavam sorrindo e aplaudindo e me incentivando.

E, então, compreendo, com terrível clareza, que os aplausos eram irônicos.

O prédio do Grêmio Estudantil é um trambolho feio e ostentoso de camadas de concreto, fincado no meio de um organizado conjunto de casas geminadas georgianas, como um dente careado. Nesta manhã, não para de entrar e sair gente pelas portas de vaivém, pessoas sozinhas ou em grupinhos fechados com os melhores amigos de outrora, pois hoje é o último dia da Semana dos Calouros, e não tem aula até segunda. Por isso, é a nossa oportunidade para integrar uma Sociedade.

Eu me inscrevo na Sociedade Francesa, na Sociedade de Cinema, na Sociedade de Literatura, na Sociedade de Poesia e na equipe de redação das três revistas estudantis. A literária Scribbler, a irreverente e lasciva Tattle e a sisuda militante de esquerda By Lines. Entro para a Sociedade da Câmara Escura (Junte-se a nós e veja o que aparece!), mesmo sem ter uma câmera fotográfica, e pensei em me inscrever na Sociedade Feminista, mas, na fila de inscrição, sou fulminado pelo olhar afrontoso de uma menina que parece a Gertrude Stein e começo a achar que entrar para a Sociedade Feminista seja um pouco demais. Já cometi esse erro uma vez numa viagem da escola ao Victoria and Albert Museum, quando segui uma placa dizendo Mulheres, pensando que era uma exposição das mudanças dos papéis da mulher na sociedade e acabei indo parar na fila do banheiro feminino. Enfim, resolvo desistir da Sociedade Feminista, pois, mesmo sendo um grande adepto do movimento de libertação das mulheres, não estou inteiramente certo de que não seria apenas um modo de conhecer garotas.

Passo depressa pelos suéteres caretas em tons pastel da Sociedade de Badminton, antes que alguém perceba meu blefe. Depois disso, aceno para Josh, rodeado de companheiros na fila da Sociedade dos Sarados da Alta Classe, ou seja lá o que for. É alguma coisa a ver com esquiar, beber, assediar mulheres e ter pontos de vista de extrema-direita.

Resolvo também não entrar para a Sociedade de Teatro. Assim como a Sociedade Feminista, é uma ótima maneira de conhecer garotas, mas a parte ruim é que, em geral, é só uma artimanha para fazer a gente participar de uma peça. Nesse semestre, a Sociedade de Teatro vai produzir Charley‘s Aunt, Antígona, de Sófocles, e Equus, e sei que seria escalado como integrante do coro grego, vestido com lençóis de cama esfarrapados e máscaras de papel machê com todo mundo gritando ao mesmo tempo. Ou então seria um daqueles pobres coitados de Equus que passam a noite inteira usando malhas e cabeças de cavalo feitas de cabides. Bem, Sociedade de Teatro, obrigado, mas não. Além do mais, fiquem sabendo que, no meu último ano na escola, interpretei Jesus em Godspell e, depois que você é chicoteado e crucificado na frente da escola toda, não há muito mais aonde ir em termos de atuação. Tone e Spencer riram o tempo inteiro, claro, e gritaram Mais! Mais! durante as 40 chibatadas, mas todo mundo falou que foi uma interpretação comovente.

Quando penso já ter visto todas as Sociedades possíveis, vou atrás da misteriosa garota de ontem à noite, mas só Deus sabe o que vou fazer se a encontrar. Certamente, não dançar. Dou duas voltas no salão de esportes, sem sinal dela. Então, subo um andar até o local onde acontece o aquecimento para o Desafio, para confirmar a sala e a hora. E lá está o cartaz na porta: Responda corretamente! Só as melhores cabeças devem se inscrever. Você acha que tem chance?, perguntou ela ontem. Talvez a gente se veja lá?, reafirmou. Será que estava falando sério? E, se estava, onde ela está? Como estou uma hora adiantado, decido voltar ao salão de esportes para dar uma outra olhada ao redor.

Descendo as escadas, passo pela garota judia de cabelos pretos da noite passada; acho que é Jessica, não? Está no meio de um bando de homens magros e pálidos em jaquetas Harrington e jeans pretos justos distribuindo panfletos do Partido Socialista dos Trabalhadores e todos parecendo muito zangados. Por isso, eu me aproximo num espírito de solidariedade e digo:

— Saudações, camarada!

— Bom dia, pé de valsa — resmunga ela, sem achar graça no meu punho fechado, com toda a razão, pois não é nada engraçado. Volta a distribuir os folhetos. — Acho que a Sociedade de Dança está por ali em algum lugar.

— Oh, Deus, foi tão ruim assim?

— Vamos dizer que eu fui a favor de pôr um lápis entre os seus dentes para você não morder a língua e perder um pedaço dela.

Dou uma risada depreciativa e balanço a cabeça como que dizendo estou bravo comigo mesmo, mas ela não sorri e eu continuo:

— Quer saber, a vida me ensinou duas coisas: a primeira é a não dançar quando se está bêbado!!! — ... silêncio... — Aliás, será que eu posso pegar um panfleto?

Ela me lança um olhar enigmático, intrigada pela minha profundidade velada.

— Tem certeza de que não seria um desperdício de papel?

— De jeito nenhum.

— Então, você já é membro de algum partido político?

— Ah, eu estou na Campanha de Desarmamento Nuclear.

— Isso não é um partido político.

— Então você acha que políticas de defesa não são um problema político? — retruco, gostando de como aquilo soa.

— Política é economia, pura e simples. Grupos de pressão focados numa só questão, como o CDN ou o Greenpeace, têm um papel válido e importante a desempenhar, mas dizer que baleias são grandes e legais ou que um holocausto nuclear é asqueroso não são posicionamentos políticos; é uma obviedade. Além do mais, num verdadeiro estado socialista, os militares perderiam automaticamente o direito de...

— Como acontece na Rússia? — interrompo.

Ahá!

— A Rússia não é socialista, na verdade.

Oh...

— Ou Cuba? — insisto. Touché!

— Sim, se você preferir. Como em Cuba.

Hum...

— Ah, então Cuba não tem um exército? — insinuo. Boa recuperação.

— Na verdade, em termos de Produto Interno Bruto, não. Cuba gasta 6% dos impostos em defesa, comparados aos 40% dos Estados Unidos. — Ela só pode estar inventando tudo isso. Nem Fidel Castro sabe essas coisas. — Se não estivesse sob constante ameaça norte-americana, Cuba não precisaria gastar nem esses 6%. Ou será que você perde noites de sono preocupado com uma invasão de Cuba?

Desconfiar que ela está inventando esses dados seria coisa infantil, então só digo:

— E aí, ganho um folheto ou não? — Relutante, ela me entrega um panfleto.

— Se for radical demais para você, o Partido Trabalhista é logo ali. Ou você pode fazer o serviço completo e se filiar aos Conservadores.

Ela diz isso como se fosse um bofetão. Eu levo um tempo para absorver e, enquanto penso no que dizer, a garota vira as costas e continua a distribuir panfletos. Tenho vontade de puxá-la pelo ombro e dizer: Não vire as costas para mim, sua vaquinha melindrosa, hipócrita e intolerante, porque o trabalho do meu pai acabou com a vida dele, mais ou menos, então não venha me dar aulas sobre Cuba, porque meu dedo mindinho tem mais noção dessa merda de injustiça social do que você e toda a sua gangue de burgueses estudantes de arte complacentes, convencidos e presunçosos juntos. Quase digo mesmo, mas o que eu resolvo falar é:

— Você não acha o nome do seu partido meio pretensioso?

Ela se vira bem devagar, aperta os olhos e diz:

— Escute aqui. Se você quiser se comprometer com ardor em se opor ao que a Thatcher está fazendo com o país, junte-se a nós. Mas, se só estiver interessado em fazer piadinhas de nível escolar e comentários banais, acho que podemos nos virar muito bem sem você, muito obrigada.

Ela está certa, claro. Por que parece que estou sempre sendo irônico e nunca consigo ser convincente quando falo de política? Não me sinto irônico a esse respeito. Gostaria de expressar isso numa conversa adulta e inteligente, mas surgiu uma discussão entre um garoto magricela de jeans preto e alguém da Classe de Guerra. Por isso, penso melhor e sigo meu caminho.

7

PERGUNTA: Criada pelo psicólogo alemão William Stern, qual foi a controvertida mensuração definida como a proporção entre a idade mental de uma pessoa e sua idade física, multiplicada por 100?

RESPOSTA: QI.


Volto ao andar de cima, para a Sala de Reuniões nº 6, e um homem alto e bonitão está dispondo mesas e cadeiras para o teste, mais ou menos umas 30, com um ar de oficialidade burocrática. É bem mais velho que eu, 21 ou 22 anos, alto e vestindo um moletom vinho da universidade, bronzeado, de uma beleza suave e cabelo curto muito bem penteado, louro-avermelhado, o tipo de cabelo que parece ter sido moldado em um bloco de plástico. Fico observando-o por um tempo pela porta de vidro. Ele parece um astronauta, se a Grã-Bretanha tivesse astronautas, ou um boneco de ação nada ameaçador. O que me intriga é que acho que eu me lembro dele de algum lugar...

Ele percebe que estou ali e enfio a cabeça pela fresta da porta e pergunto educadamente:

— Com licença, esta é a sala para o Desafio Univer...?

— Essa é sua primeira pergunta... Você não leu a placa?

— Li.

— E o que diz?

— Sala de Reuniões nº 6, 13h.

— Que horas são?

— 12h45.

— Então, presumo que isso responda a sua pergunta.

— Suponho que sim.

Sento-me do lado de fora da porta e começo a me aquecer, repassando algumas informações na cabeça: os reis e rainhas da Inglaterra, a tabela periódica, os presidentes americanos, as leis da termodinâmica, os planetas do sistema solar, por via das dúvidas; técnica básica de exame. Verifico se tenho lápis e caneta, um lenço, uma caixinha de Tic Tac e fico esperando os outros concorrentes. Depois de dez minutos, ainda sou o único ali, e fico olhando o cara sentado na mesa do professor separando e grampeando os questionários com toda a solenidade. Imagino que seja alguém muito importante no comitê do Desafio Universitário e está inebriado pelo poder que tudo isso emana, mas tenho de me ater ao lado bom dele; então, exatamente às 12h58, nem um minuto mais cedo, eu me levanto e entro na sala.

— Tudo bem agora?

— Tudo bem. Pode entrar. Quantos mais estão aí fora com você? — pergunta sem erguer os olhos.

— Hã... Ninguém?

— Mesmo? — Ele olha atrás de mim, pois é claro que eu não sou confiável. — Ah, que merda! Estamos de novo em 1983. — Estala a língua em tom de reprovação e suspira, senta-se na beirada da mesa e pega uma prancheta, depois me avalia de cima a baixo, examina meu rosto e se decide por um ponto a 30cm de mim, que ele parece preferir. Solta outro suspiro de pesar.

— Oh, bem, eu sou Patrick. Qual é o seu nome?

Brian Jackson.

— Ano?

— Primeiro ano! Cheguei ontem!

Suspiro e estalido de língua.

— Especialista em que disciplina?

— Você quer dizer que curso eu vou fazer?

— Se você prefere...

— Literatura inglesa.

— Meu Deus, mais um! Bem, ao menos você não vai desperdiçar completamente três anos da sua vida.

— Desculpe, eu...

— O que aconteceu com os matemáticos? Gostaria de saber. E com os bioquímicos? Os engenheiros mecânicos? Não me surpreende que a economia esteja indo pro buraco. Todo mundo sabe o que é uma metáfora, mas ninguém sabe construir uma usina de energia.

Eu dou risada, achando que ele está brincando, mas ele não está.

— Tenho notas altas em ciências — replico, na defensiva.

— É mesmo? Em quê?

— Física e química.

— Bem, então é isso! Um Homem do Renascimento! Qual é a Terceira Lei de Newton?

Ah, meu amigo, você vai ter que fazer muito melhor do que isso...

— A cada ação corresponde uma reação — enuncio.

A reação de Patrick também corresponde à ação, um breve e ressentido arqueio de sobrancelha antes de voltar à prancheta.

— Escola?

— Perdão?

— Eu disse escola? Prédio grande, feito de tijolos, com professores dentro...

— Eu entendi a pergunta, só estava pensando no motivo de você querer saber...

— Tudo bem, Trotsky, você já disse a que veio. Tem uma caneta? Ótimo. Aqui está o seu questionário. Volto a falar com você num minuto.

Enquanto ocupo uma cadeira quase no fundo, duas outras pessoas entram na sala.

— Ah, chegou a cavalaria! — comenta Patrick.

A primeira colega de equipe em potencial, uma garota chinesa, causa um pouco de confusão, porque parece carregar um urso-panda nas costas. Mas uma observação mais próxima revela que não é um urso-panda de verdade: é uma mochila com um design muito engenhoso! Mostra um senso de humor excêntrico, suponho, mas não vai aumentar suas chances em um sério e avançado teste de conhecimentos gerais. De qualquer modo, na sua conversa com Patrick, fico sabendo que o nome dela é Lucy Chang, que está no segundo ano do curso de medicina e que, talvez, leve vantagem sobre mim nas perguntas de ciência. Seu inglês parece bem fluente, apesar de falar incrivelmente baixo e com um leve sotaque americano. O que dizem as regras sobre outras nacionalidades?

O próximo concorrente é um cara grande, que fala alto, de Manchester, vestindo uniforme do exército verde-oliva, coturnos e uma mochilinha azul da RAF na cintura com uma incoerente insígnia da CDN desenhada com tinta impermeável. Patrick conduz a entrevista com uma civilidade ressentida, de suboficial para cabo, e ficamos sabendo que o nome dele é Colin Pagett, de Rochdale, aluno do terceiro ano de política. Ele olha ao redor da sala, acena com a cabeça e esperamos em silêncio remexendo nossas canetas, sentados o mais distante possível uns dos outros dentro do permitido pelas leis da geometria, esperando 10, 15 minutos, até se tornar absolutamente claro que ninguém mais iria aparecer. Onde ela está? Ela disse que viria. Será que aconteceu alguma coisa?

Enfim, o Astronauta Patrick suspira, fica de pé atrás da mesa e anuncia:

— Certo, então vamos começar? Meu nome é Patrick Watts, de Aston-Under-Lyme. Estou cursando economia e sou o capitão da equipe deste ano do Desafio Universitário — ...espere aí, quem...? — Quem costuma assistir ao programa talvez me reconheça do torneio do ano passado.

É isso! É daí que eu o conheço. Lembro-me de ter assistido ao episódio com a maior atenção porque estava preenchendo meu formulário da UCCA e queria saber qual era o padrão. Lembro-me de ter considerado, na época, que era uma equipe muito ruim, e sem dúvida esse Patrick ainda mantém cicatrizes emocionais, pois olha para o chão com uma expressão envergonhada à menção do episódio.

— Realmente não foi uma performance impecável. — Se me lembro bem, eles foram eliminados na primeira rodada, contra oponentes fracos também. — Mas estamos muito esperançosos quanto às nossas chances esse ano, em especial com tanto... material bruto... e promissor.

Os três olham ao redor da sala, uns para os outros e para as fileiras de carteiras vazias.

— Bem, sem mais delongas. Vamos começar o teste. É uma prova escrita, com 40 questões. Abrange diversas áreas de conhecimento, semelhantes àquelas que vamos enfrentar no programa. No ano passado, estávamos particularmente fracos na área de ciências — ele olha para mim — , e quero garantir que não vamos nos focar só em artes dessa vez...

— E vai ser um time de quatro pessoas, né? — pergunta o cara de Manchester.

— Exatamente.

— Bem, se esse é o caso... nós somos o time.

— Bem, sim, mas precisamos garantir que estamos de acordo com o padrão apropriado.

Mas Colin não deixa barato.

— Por quê?

— Porque, se não for assim, vamos perder de novo...

— E...?

— Bem, se perdermos de novo... Se perdermos de novo... — e a boca de Patrick se mexe sem emitir palavras, abrindo e fechando como a de um peixe morrendo.

É a mesma expressão que ele fez em rede nacional no ano passado, quando errou as respostas de perguntas perfeitamente simples sobre os lagos do Leste Africano: o mesmo olhar assombrado, com todos os presentes na plateia sabendo a resposta e tentando soprar: Lago Tanganica, Tanganica, seu idiota.

Nesse momento, um barulho na porta chama sua atenção — um grupo de garotas sorridentes imprensadas contra o vidro, uma explosão de risadas abafadas, uma refrega e ela é jogada para dentro da sala por alguém que não deu para ver e fica parada, rindo sem jeito, tentando se recompor, olhando para nós quatro ao redor.

Juro que, por um momento, achei que todo mundo ia se levantar.

— Ops! Desculpe, pessoal!

Ela fala um pouco enrolado e parece meio desequilibrada. Será que bebeu antes de vir fazer a prova?

— Desculpem... Estou muito atrasada?

Patrick passa a mão pelos cabelos de astronauta, umedece os lábios e diz:

— De modo algum. Bem-vinda a bordo... Hã...?

— Alice. Alice Harbinson.

Alice. Alice. Claro que ela é uma Alice. Que outro nome poderia ter?

— Tudo bem, Alice. Por favor, sente-se... — Ela olha ao redor e sorri para mim, anda em minha direção e se senta na carteira bem atrás da minha.

As primeiras questões são bem fáceis, geometria básica e algumas coisas sobre os Plantageneta, só para aquecer a gente, mas está difícil me concentrar, porque Alice fica fazendo barulhos de congestão nasal atrás do meu ombro. Olho para trás e ela está debruçada sobre o questionário, o rosto vermelho, estremecendo de risadas reprimidas. Volto para a minha prova.

Questão 4. Como era conhecida a antiga Istambul, antes de ser chamada Constantinopla?

Fácil. Bizâncio.

Questão 5. Hélio, neônio, argônio e xenônio são quatro dos chamados gases nobres. Quais são os outros dois?

Não faço ideia. Criptônio e hidrogênio, talvez? Criptônio e hidrogênio.

Questão 6. Qual é a composição exata do aroma que emana de Alice Harbinson, e por que é tão maravilhoso?

Alguma coisa cara, floral, mas leve. Será que é Chanel nº 5? Misturado com uma pitada de sabonete de peras e cigarro Silk Cut, cerveja...

Chega. Concentre-se.

Questão 6. Qual distrito Margaret Thatcher representa no Parlamento?

Fácil. Essa eu sei, mas aí vêm aqueles barulhos de novo. Olho para trás e, dessa vez, nossos olhares se encontram. Ela faz uma careta, mexe os lábios num desculpe sem som e veda os lábios com um pequeno zíper imaginário. Dou um sorriso contido com um lado do rosto, como quem diz ei, por mim tudo bem, eu também não estou levando isso a sério, e volto ao meu teste. Preciso me concentrar. Coloco um Tic Tac na boca e pressiono os dedos na testa. Concentre-se, concentre-se.

Questão 7. Como pode ser definida a cor dos lábios de Alice Harbinson...?

Não tenho certeza; não consigo ver. Algo como um soneto de Shakespeare. Matiz de damasco ou coral ou coisa assim? Talvez eu possa dar outra olhada. Não. Não faça isso. Não olhe. Concentre-se. Cabeça baixa.

As questões 8, 9 e 10 são fáceis, mas aí vem uma série de perguntas ridiculamente difíceis de matemática e física e eu começo a me atrapalhar um pouco. Pulo duas ou três que, simplesmente, não consigo entender, mas tenho um palpite em uma sobre mitocôndrias.

— Psiu...

Questão 15. A energia liberada pela oxidação dos produtos do metabolismo citoplasmático é convertida em trifosfato de adenosina...

— Pssssssssiu...

Alice está debruçada na carteira com os olhos arregalados, tentando me passar alguma coisa na mão fechada. Verifico se Patrick não está olhando, estico a mão para trás e sinto um pedacinho de papel pressionado na minha mão como uma trouxinha. Patrick ergue os olhos e logo transformo o movimento numa espreguiçada, os braços acima da cabeça e, quando a barra está limpa, desdobro o bilhete. O texto diz: Sua beleza estranha e desnaturada me intriga. Quanto tempo vou ter de esperar para sentir os seus lábios nos meus...?

Ou, mais precisamente: Ei, nerd! Me ajude! Sou muito BURRA e estou BÊBADA. Por favor, me salve de uma humilhação TOTAL. Quais são as respostas da 6, 11, 18 e 22? E a 4 é Bizâncio, certo? Desde já, agradeço, colega.

Ass.: A lesada atrás de você.

P.S.: Se me dedurar para o professor, eu te mato.

Ela está pedindo para eu dividir o meu conhecimento geral com ela, e, se isso não é uma cantada, não sei o que é. Claro que colar numa prova é terrível, e,

se fosse qualquer outra pessoa, não me envolveria, mas se trata de uma circunstância excepcional e, por isso, confiro as questões, viro o papel e escrevo no verso: Nº 6 é Flichley; na 11, talvez seja As pedras de Veneza, de Ruskin; na 18, talvez seja O gato de Schrödinger; e a 22 eu também não sei. Diaghilev? E, sim, a 4 é Bizâncio.

Leio e releio várias vezes. Um tanto seco em termos de carta de amor. Gostaria de dizer algo mais tentador e provocante sem ter que escrever só você é linda. Então, penso um minuto, respiro fundo e escrevo: A propósito, você fica me devendo uma! Um café depois? Boa sorte. Nerd — e, antes que me arrependa, eu me viro na cadeira e ponho na mesa dela.

Questão 23. Baleias da subordem misticeta desenvolveram estruturas especializadas para alimentação chamadas...?

Barbatanas.

Questão 24. Qual estilo de verso francês, utilizado por Corneille e Racine, consiste em uma linha de doze sílabas, com grande enfoque na sexta e na última sílabas?

Alexandrino.

Questão 25. Aumento dos batimentos cardíacos, suor frio e sensação de intensa euforia costumam ser sintomas de que condição emocional?

Sem essa, abaixe a cabeça, concentre-se. É o Desafio, lembra?

Questão 25. Quantos vértices tem um dodecaedro?

Bem, dode é 12. Então, são 12 faces, o que significa 12 vezes quatro se separar todas, o que dá 48, mas aí tem que tirar o número de cantos compartilhados que seriam o quê? 24? Por que 24? Porque cada vértice é uma junção de três faces planas? São 16 vezes três igual a 48. Dezesseis vértices? Não existe uma fórmula para isso? E se eu desenhasse?

Estou tentando desenhar um dodecaedro desconstruído quando uma bolinha de papel é arremessada por cima da minha cabeça e quica na carteira.

Consigo pegar antes que role pela beirada, abro o bilhete e leio: Tudo bem. Mas você tem de prometer que não vai dançar.

Sorrio comigo mesmo, tento parecer indiferente e não me viro para ela, pois, afinal, sou desse jeito, um cara maneiro, e volto a desconstruir o meu dodecaedro.

8

PERGUNTA: Se incandescência é a luz emitida por um material quente, qu al é o termo para a luz emitida por um material relativamente frio?

RESPOSTA: Luminescência.


— Achei que você não ia me reconhecer sem o colarinho de padre!

— O quê? Ah, não. Já não tinha reconhecido antes... — ela responde.

— Então... Alice!

— Isso mesmo.

— Como no País das Maravilhas?

— Uh-hum — confirma ela, olhando para a saída.

Estamos numa mesinha de mármore no Le Paris Match, um café que se esforça muito para ser francês. Cadeiras de madeira e autênticos cinzeiros Ricard, pôsteres com reproduções de quadros de Toulouse-Lautrec e croque monsieur no menu em lugar de misto-quente. Está cheio de estudantes de camisas polo pretas e calças jeans 501 envolvidos em intensas conversas por cima de pommes frites e balançando os cigarros como se fossem Gitane e não Silk Cut. Não conheço a França, mas será que é assim mesmo?

— E foi por causa de Alice no País das Maravilhas que você ganhou esse nome?

— É o que me disseram. — Pausa. — E você? Por que seu nome é Gary?

Paro por um momento, penso em inventar uma observação interessante e divertida sobre a razão de meu nome ser Gary, mas decido que é mais fácil dizer a verdade.

— Na verdade, meu nome é Brian.

— É claro. Desculpe... Quis dizer Brian.

— Não sei. Acho que não tem nenhum Brian na literatura. Nem Gary, pensando bem. Aliás, não tem um Gary em Os irmãos Karamázov? Gary, Keith e...

— ...e Brian! Brian Karamazov! — completa ela, rindo, e eu também dou risada.

Na verdade, hoje está sendo um grande dia para mim, não só por estar aqui com Alice Harbinson, rindo do meu próprio nome, como também por estar tomando meu primeiro cappuccino. Eles tomam cappuccino na França? De qualquer modo, não é ruim; um pouco como o café com leite que eles fazem no píer de Southend por 35 pence, sem os pequenos glóbulos amargos de café instantâneo não dissolvidos na superfície, que aqui é uma espuma almiscarada cheia de canela. Falha minha. Exagerei um pouco achando que era chocolate em pó; por isso, o aroma lembra um pouco uma axila quente e úmida. Mas espero que o cappuccino seja um pouco como sexo e que, talvez, goste mais da segunda vez. Mas, a 85 pence cada um, não sei se vai haver uma segunda vez. Um pouco como sexo.

Outra vez. Sexo e dinheiro. Pare de pensar em sexo e dinheiro. Principalmente em dinheiro. É horrível estar aqui com essa mulher incrível e só conseguir pensar no preço da xícara de café. E em sexo.

— Estou morrendo de fome — diz ela. — Vamos fazer um lanche? Uma batata frita ou algo assim?

— Perfeito! — concordo e consulto o cardápio. Pagar 1,25 libra por uma travessinha de batata frita?

— ...Na verdade, não estou com muita fome, mas pode pedir.

Ela acena para o garçom, um magricela com topete de Jim Morrissey e, pelo jeito, também estudante, e ele vem e cumprimenta Alice com um sincero e amigável E aí?! por cima da minha cabeça.

— Olá! Como estamos hoje?

— Tudo bem. Mas eu preferia não estar aqui. Turno dobrado.

— Oh, Deus. Coitado de você! — diz ela, tocando o braço dele em solidariedade.

— E você, tudo bem? — pergunta o garçom.

— Tudo bem, obrigada.

— Você está muito bonita, se me permite.

— Ah, puxa! — diz Alice cobrindo o rosto com as mãos.

Zut alors.

— Então, o que vai querer? — pergunta ele, afinal, lembrando a razão de estar ali.

— Pode ser uma porção de pommes frites?

— Absolument! — confirma o garçom, e meio que corre até a cozinha para preparar as preciosas batatas fritas folheadas a ouro.

— De onde vocês se conhecem? — pergunto, quando ele se afasta.

— Quem? O garçom? A gente não se conhece.

— Oh!

Paira um silêncio. Tomo um pouco do meu café e limpo o pó de canela do nariz com as costas da mão.

— Então... Achei que você não ia me reconhecer sem o colarinho de padre!

— Você já disse isso.

— É mesmo? Eu faço isso às vezes. Fico confuso sobre o que disse ou não disse, ou me pego falando em voz alta coisas que só queria dizer na minha cabeça, se é que você me entende...

— Entendo perfeitamente — diz ela, segurando meu braço — Sempre fico confusa e digo coisas sem pensar... — Até que ela está tentando ser legal, estabelecendo uma coisa em comum entre nós, mas eu não acredito nisso nem por um segundo. — Juro que não sei o que estou fazendo na metade do tempo...

— Eu também. Como a dança de ontem à noite...

— Ah, sim... — diz ela, franzindo os lábios — A dança...

— É, me desculpe... Eu estava um pouco bêbado, para falar a verdade.

— Não, você estava ótimo. Você dança bem!

— Até parece! — comento. — Sabe, me admira ninguém ter tentado pôr um lápis na minha boca!

Ela me lança um olhar de dúvida.

— Por quê?

— Bem... para eu não morder a língua e arrancar um pedaço dela? — Ainda nada. — Sabe... Como um... ataque epiléptico!

Mas ela não diz nada, só toma um pouco mais de café. Oh, meu Deus, talvez eu a tenha ofendido. Talvez ela conheça um epiléptico. Talvez haja epilepsia na família dela! Talvez ela seja epiléptica...

— Você não está com calor com essa jaqueta? — pergunta ela, e o garçom chega com as requintadas batatas fritas, mais ou menos umas seis, arranjadas artisticamente num grande suporte para ovo cozido, depois fica rondando, sorrindo, cheio de si, tentando puxar papo, mas eu continuo falando.

— Sabe, se a vida me ensinou duas coisas até agora, uma delas é jamais dançar bêbado.

— E a segunda?

— Nunca tentar usar leite num sifão.

Ela ri. O garçom se retira reconhecendo a derrota. Continuo a conversa.

— ...Não sei o que eu estava fazendo. Pensei em preparar uma incrível bebida leitosa batida, mas já existe leite batido... — (pausa, um gole) — ...É iogurte!

Às vezes, acho que seria capaz de vomitar de propósito, sério.

Depois, a gente conversa um pouco mais e ela come as batatas fritas, mergulhando-as numa poça de ketchup, e tudo fica meio parecido com as tardes naquele café de A canção de amor de J. Alfred Prufrock, de T. S. Eliot, só que a comida é mais cara. Arrisco-me a experimentar um pêssego? Não a esses preços.... Descubro mais coisas sobre ela. É filha única, como eu — algo a ver com as trompas uterinas da mãe, ela acha, mas não tem certeza. Não se importa de ser filha única, o que significa que sempre foi uma ávida leitora e estudou num internato, o que, politicamente, não é muito correto, ela sabe, mas, mesmo assim, gostou e foi representante de turma. É muito ligada ao pai, que faz documentários de arte para a BBC e a deixa estagiar lá nas férias, e já encontrou Melvyn Bragg em muitas, muitas ocasiões, e parece que ele é muito engraçado na vida real e bem sexy. Também gosta da mãe, claro, mas as duas discutem muito, talvez por serem tão parecidas, e a mãe trabalha meio expediente na Tree Top, uma organização beneficente que constrói casas em árvores para crianças carentes.

— Mas elas não ficariam melhor morando com os pais? — pergunto.

— Como?

— Bem... Crianças morando em árvores sozinhas... Isso deve ser perigoso, não?

— Não, não... Elas não moram nas casas das árvores. É só uma atividade de férias de verão.

— Ah, tá. Entendi...

— A maioria dessas crianças de lares carentes só tem um dos pais e nunca passou férias com a família na vida! — Meu Deus, ela está falando de mim! — É uma coisa fantástica. Você poderia participar no próximo verão, se não tiver nada para fazer.

Concordo com a cabeça, entusiasmado, mas não sei bem se ela está me convidando para umas férias ou para um trabalho voluntário.

Então Alice me conta suas férias de verão. Foram passadas em parte com as crianças carentes e agitadas nas casas das árvores. O resto do tempo foi dividido entre as casas em Londres, Suffolk e Dordogne e, depois, na apresentação com o grupo de teatro da escola no Festival de Edimburgo.

— Que peça vocês montaram?

— A alma boa de Setsuan, de Bertold Brecht. — Sim, está claro o papel que ela representou, não? É uma bela oportunidade para usar a palavra epônimo.

— E quem interpretou o epônimo...?

— Ah, fui eu — responde.

Sim, sim, claro que foi você.

— E como foi?

— Como assim?

— Foi bem?

— Ah, acho que não. Embora o The Scotsman tenha achado que sim. Você conhece alguma coisa da peça?

— Ah, sim, conheço muito bem — minto. — Na verdade, montamos O círculo de giz caucasiano, do Brecht, na minha escola no ano passado — faço uma pausa, beberico o cappuccino. — Eu era o giz.

Meu Deus! Acho que eu vou vomitar!

Mas ela dá risada e começa a falar dos desafios de interpretar o personagem central de Brecht e aproveito a oportunidade para observar Alice sóbrio e sem os óculos suados pela primeira vez, e ela é mesmo linda. Com certeza, é a primeira mulher realmente linda que já vi, sem contar arte renascentista e televisão. Na minha escola, as pessoas diziam que Liza Chambers era linda, mas, na verdade, queriam dizer que era tesuda, mas Alice é linda de verdade, com uma tez aveludada que parece não ter poros e reluzindo com uma luminescência orgânica embaixo da pele. Ou será que estou querendo dizer fosforescente? Ou fluorescente? Qual é a diferença? Vou pesquisar depois. Não importa... Parece que ela está sem maquiagem nenhuma, ou, o mais provável, com uma maquiagem discreta que parece não existir, a não ser talvez nos olhos, pois ninguém tem cílios assim na vida real, tem? E os olhos... castanho não é bem a palavra, está mais para pardo e opaco, não consigo pensar numa cor melhor, mas são saudáveis e brilhantes, e tão grandes que dá para ver toda a íris, salpicada de verde. A boca é carnuda, cor de morango, como a da Tess Derbyfield. Só que uma Tess feliz e equilibrada, que, graças a Deus, descobriu que, afinal, é, de fato, uma D‘Urberville. E o melhor de tudo é uma pequena cicatriz branca no lábio inferior, que imagino que tenha adquirido em algum angustiante incidente de infância, enquanto colhia frutas silvestres. O cabelo é cor de mel e levemente cacheado, puxado para trás num estilo que pode ser definido como pré-rafaelita. Ela parece saída do... qual é mesmo o termo de T. S. Eliot? Quattrocento. Ou será de Yeats? E se refere ao século XIV ou XV? Vou pesquisar isso também quando voltar. Lembrete mental: pesquisar Quattrocento, damasco, pardo, luminescente, fosforescente e fluorescente.

Agora, ela está comentando a festa do dia anterior, como foi terrível, dos homens execráveis que conheceu, homens sem estilo, sem pescoço, uns grosseirões que só entendem de rúgbi. Inclina-se para a frente enquanto fala, as pernas longas enlaçadas na cadeira, toca meu antebraço para enfatizar um argumento, olha nos meus olhos como que me desafiando a olhar para outro lugar, e também tem a mania de mexer nos brincos de bolinha de prata enquanto fala, o que indica uma atração subconsciente por mim, ou pode ser que o furo esteja inflamado. De minha parte, estou ensaiando algumas novas posturas e expressões faciais, sendo que uma envolve me inclinar para a frente e apoiar a mão no queixo com os dedos abertos perto da boca e esfregar o queixo com um ar de sabedoria. Isso serve a vários propósitos: 1) parecer perdido em pensamentos profundos; 2) é sensual; e 3) cobre minhas piores espinhas, os aglomerados vermelhos nos cantos da boca que dão a impressão que estou babando sopa.

Ela pede outro cappuccino. Será que vou ter que pagar esse também? Não importa. A fita Stephane Grappelli/Django Reinhardt não para de tocar ao fundo, zumbindo ao longe como uma mosca varejeira na janela, e me sinto muito feliz só em estar ali e ouvir. Se ela tem algum defeito, e é óbvio que é uma coisa menor, é não parecer interessada em outras pessoas, ou, pelo menos, em mim. Ela não sabe de onde eu sou, não me pergunta sobre minha mãe ou meu pai, não sabe meu sobrenome... Nem sei se não continua achando que me chamo Gary. Na verdade, desde que chegamos, ela só me fez duas perguntas: Você não está com calor com essa jaqueta? e Você sabe que isso é canela, não sabe?.

De repente, ela diz, como se tivesse lido meus pensamentos:

— Desculpe, acho que estou falando demais. Você não se incomoda, não é?

— De jeito nenhum.

E é verdade, não me incomodo, gosto de estar ali com ela e saber que outras pessoas estão nos vendo juntos. Agora, está contando sobre uma trupe de circo búlgara incrível que viu no Festival de Edimburgo, o que parece ser uma boa hora para me dispersar e calcular a conta. Três cappuccinos de 85 pence, o que dá 2,55 libras, mais a batata frita, desculpe, pommes frites, 1,25 libra, o que corresponde a 18 pence por pomme frite... e então, são 25 pence mais 55 pence, que dá 80 pence, 3,80 libras, mais a gorjeta do garoto-sorriso ali, 30 pence, não: 40. Então, dá 4,22 libras, e eu tenho 5,18 libras no bolso, o que significa que vou ficar com 98 pence para viver até segunda, quando vou pegar o cheque da minha bolsa-auxílio. Deus, como ela é bonita! E se ela se oferecer para dividir a conta? Será que devo aceitar? Gostaria que ela soubesse que acredito firmemente na igualdade entre os sexos, mas não quero que pense que sou pobre ou, pior ainda, pão-duro. Mas, ainda que a gente rache a conta, vou ficar só com 3 libras. Precisarei pedir para Josh me emprestar as 10 libras da minha mãe até segunda, e isso quer dizer que eu vou ter que virar capacho dele até o recesso do Natal, limpar seu equipamento de críquete e tostar seus bolinhos ou algo assim. Espera aí! Ela está me fazendo uma pergunta.

— Você quer outro cappuccino?

NÃO!

— Acho que não — respondo. — Aliás, acho melhor a gente voltar... dar uma olhada nos resultados. Vou pedir a conta... — Olho em volta em busca do garçom.

— Deixa eu contribuir um pouco — ela finge que vai pegar a bolsa.

— Não, você é minha convidada...

— Tem certeza?

— Absoluta, absoluta — confirmo, conto 4,20 libras, deixo na mesa de mármore e me sinto muito elegante.

Quando saímos do Le Paris Match, percebo que está escurecendo, que estamos conversando há horas e eu nem fazia ideia. Por um tempo, até me esqueci do Desafio. Mas, agora me lembrei, e preciso me conter para não sair correndo, pois Alice prefere andar devagar. Então, voltamos ao Grêmio Estudantil na luz noturna do outono e ela pergunta:

— E, então, quem pôs você nessa história?

— Que história? No Desafio?

— É assim que você chama? O Desafio?

— Não é assim que todo mundo chama? Ah, eu achei que poderia ser divertido — minto descaradamente. — E, como lá em casa somos só eu e minha mãe, não dava para participar do Pergunte à família... — Achei que ela poderia mostrar algum interesse, mas ela só diz:

— As garotas do meu andar me puseram nessa história como uma espécie de trote. E, depois de umas cervejas antes do almoço, pareceu uma boa ideia. E também quero ser atriz, fazer alguma coisa na TV, como apresentadora ou algo assim, e achei que podia ser uma boa experiência na frente das câmeras, mas já não sei mais. Não chega a ser um trampolim para o firmamento em Hollywood, não é? Desafio Universitário. Honestamente, eu estou torcendo para não entrar e esquecer essa história doida.

Cuidado aonde pisa, Alice Harbinson, você está atropelando os meus sonhos.

— Você já pensou em seguir carreira de ator? — pergunta.

— Quem, eu? Não, eu seria terrível... — Em seguida, só para experimentar, insinuo. — Além do mais, acho que precisaria ser mais bonito para ser ator.

— Não, isso não é verdade! Tem um monte de atores que não são bonitos...

Essa eu mereci, acho.

Conforme nos aproximamos do quadro de avisos da Sala de Reunião nº 6, sinto como se estivesse indo consultar o resultado do meu exame de admissão de novo. A mesma confiança calada misturada com a medida certa de ansiedade, a noção do quanto é importante controlar a expressão facial para não parecer

muito cheio de si, muito convencido. É apenas sorrir e menear a cabeça como quem já sabia e ir embora.

Chegando perto do quadro de aviso, vejo o panda da Lucy Chang espiando o resultado por cima de seu ombro, e alguma coisa na inclinação de sua cabeça me diz que ela não teve boas notícias. Dá meia-volta e se afasta, lançando-me um sorriso meigo e desapontado. Parece que Lucy não vai estar com a gente nos estúdios de Granada, o que é uma pena, pois ela parecia legal. Sorrio com solidariedade enquanto ela vai embora e me aproximo do quadro de avisos.

Olho para o quadro.

Pisco e olho outra vez.


SELEÇÃO PARA O DESAFIO UNIVERSITÁRIO

Os resultados da seleção para o Desafio Universitário de 1985 são os seguintes:

 Lucy Chang — 89%

 Colin Pagett — 72%

 Alice Harbinson — 53%

 Brian Jackson — 51% *

*(Em caso de uma emergência absoluta ou de doença com risco

de morte, Brian Jackson é o nosso primeiro reserva.)


Portanto, a equipe deste ano será composta por Patrick Watts, Lucy, Alice e Colin. Nosso primeiro ensaio será na próxima terça-feira. Parabéns a todos os que se classificaram!

Patrick Watts.

— Meu Deus! Eu não acredito que estou na equipe! — esganiça Alice, pulando e apertando a minha mão.

— Parabéns! — Consigo encontrar um sorriso e prego no rosto.

— Ei, você é que estaria no time se não tivesse me passado aquelas respostas! — esganiça.

Sim, Alice, eu já tinha pensado nisso.

— O que a gente faz agora? Vamos encher a cara em algum bar? — propõe ela. Mas eu estou sem dinheiro e, de repente, não tenho mais vontade de fazer nada disso.

Não estou na equipe, tenho 98 pence no bolso e estou perdidamente apaixonado.

Perdidamente, não. Inutilmente.

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