Rosemary levantou, inclinou-se e disse a ele a coisa mais sincera:
— Ah, nós somos grandes atores: eu e você.
PERGUNTA: Em um artigo de 1926, publicado pela revista Lef do poeta Maiakóvsky, Sergei Eisenstein propõe um novo tipo de cinema baseado menos no desdobramento estático, lógico e linear das ações, e mais numa justaposição estilizada de imagens. Qual é o nome desse novo estilo cinematográfico de Eisenstein?
RESPOSTA: Montagem de atrações.
Existe convenção genérica, bastante reconhecível numa corrente de filmes americanos, na qual o herói e a heroína se apaixonam um pelo outro durante uma sequência prolongada de montagens sem falas, invariavelmente enfatizada por uma esplendorosa balada orquestrada, em geral com um solo de sax. Não entendo bem por que se apaixonar tem de ser uma coisa sem palavras, talvez porque dividir os pensamentos, segredos e desejos mais íntimos seja meio desgastante para quem não está diretamente envolvido. Mas, de qualquer modo, essa sequência ilustra todas as coisas divertidas que jovens casais devem fazer, como comer pipoca no cinema, andar de cavalinho nas costas um do outro, trocar beijos no banco de um parque, experimentar chapéus engraçados, beber taças de vinho numa banheira com vapor, cair em piscinas, andar para casa de braços dados à noite apontando as diferentes constelações etc.
Bem, na semana que passou, não aconteceu nada disso comigo e com Alice. Na verdade, nem cheguei a saber dela, mas está tudo bem, pois meu lema é Distante e descolado e estou tomando muito cuidado para não infringir sua preciosa independência, ainda mais porque ela anda tão ocupada com Hedda Gabler. E não me importo mesmo de não saber dela. Na verdade, só telefonei para Alice o quê? Umas cinco ou seis vezes a semana toda, mas não deixei nenhuma mensagem. Então, o legal é que Alice não sabe que liguei para ela! Admito que houve um momento meio perigoso quando Rebecca Epstein atendeu ao telefone e tive de mudar a voz no meio da ligação, mas acho que me saí bem.
Por enquanto, tenho me distraído ouvindo a obra do meio de carreira de Kate Bush e despejando todos os meus sentimentos num poema de amor em que venho trabalhando para o Dia dos Namorados, dali a três dias, apenas um antes do Desafio. Claro que sei que o Dia dos Namorados não é nada mais que uma exploração cínica de marketing, mas houve uma época em que o Dia dos Namorados foi algo importante para mim, com essa coisa toda de enviar grandes cartas pelo correio. Agora, estou bem mais velho e com mais discernimento emocional. Por isso, é só um cartão para minha mãe e outro para Alice e paro por aí. A coisa Distante e descolada a fazer com Alice seria, é claro, não mandar cartão nenhum, mas não queria que ela pensasse que não estava mais a fim dela, ou, pior, que o que aconteceu entre nós foi só sexo.
Quanto ao poema, estava indo bem, mas me senti incapaz de decidir a respeito da forma apropriada de verso, e experimentei algo como uns sonetos de Petrarca, uns sonetos elisabetanos, uns dísticos com rima, alexandrinos, haicais e versos brancos, e talvez acabe escrevendo um poema humorístico de cinco versos.
Alice/Palácio/Cálice/Falo/Malícia...
Enfim, parece que o nariz de Patrick não está quebrado. Não que não esteja vermelho, inchado ou deformado, mas, sem dúvida, tirou aquele algo a mais da beleza do homem por um tempo. Há também uma cicatriz na bochecha, bem apropriada, que, para mim, parece maneira, coisa de cara durão, porém não digo isso a ele.
— Isso dói? — pergunto.
— O que você acha? — responde ele, carrancudo.
— Um pouco...
— Bom, dói. Dói pra cacete, para dizer a verdade — e, para provar o que está dizendo, ele encosta no machucado e se contrai dramaticamente. Estávamos na sua cozinha, organizada ao estilo militar, fazendo chá antes que o resto da equipe chegue para nosso último ensaio antes da aparição na televisão. — Você percebe que ainda vou estar assim semana que vem? Quando estivermos na televisão? Na frente de milhões de pessoas?
— Não tantos milhões assim, Patrick. De qualquer modo, com certeza eles vão conseguir disfarçar, com maquiagem ou coisa do tipo.
— Bom, espero que sim, Brian, porque a minha família inteira vai estar naquele estúdio, e não quero ter de explicar que um skinhead suburbano agressivo fez isso só porque não concordava com as minhas opiniões políticas.
— Mas esse não foi o único motivo, foi?
— O motivo foi ele ser um animal selvagem que nunca deveria ter sido solto da coleira. Ele tem é muita sorte de eu resolver não abrir um processo.
— Não adiantaria. Ele não tem grana nenhuma.
— Não me surpreende. Não me surpreende que ele não consiga arrumar um emprego decente...
— Na verdade, ele é muito inteli...
— …se comportando desse jeito, não.
— Bem, você estava sendo um pouco...
— Um pouco o quê?
Penso numa resposta — esnobe, ignorante, ofensivo, rude, condescendente —, no entanto decido não falar nada, pois, afinal, meu melhor amigo deu mesmo uma surra nele. Por isso, prefiro mudar de assunto.
— De qualquer maneira, trouxe isso para você, uma oferta de paz, para pedir desculpas em nome do Spencer... — e entrego o presente, um tablete imenso de chocolate Cadbury com frutas e nozes que sobrou dos presentes de Natal da vovó Jackson. Isso me faz sentir meio sem princípios, porque é claro que Spencer nunca, jamais sonharia em pedir desculpas e, por um momento, cogito bater o tablete de chocolate de frutas e nozes com força naquele arrogante nariz de direita de Patrick, imaginando o barulho que faria, aquele estalo alto e prazeroso, mas me limito a entregar o chocolate em suas mãos, pois, afinal, somos uma equipe. Patrick murmura um curto e grosso muito obrigado e guarda o chocolate na prateleira mais alta do armário da parede, para não ter que dividir com ninguém.
A campainha toca.
— Brian, se for a Lucy, você tem que pedir desculpas. Acho que ela ficou um pouco abalada com a coisa toda, pra ser sincero. — Corro para o andar de baixo e abro a porta para Lucy e seu panda.
— Olá, Brian! — cumprimenta ela, animada.
— Lucy, eu queria dizer que sinto muito, muito mesmo pela briga no outro dia...
— Ah, está tudo bem. Eu ia ligar para você naquela semana para ver se...
ALICE! Alice aparece atrás de Lucy.
— E aí, Alice!?
— Oi, Brian — responde ela, com um sorriso imperceptível, pois, no fim das contas, nós temos um segredo.
O resto da reunião se passa de maneira tranquila. Não há notícias de quem serão nossos competidores, porque gostam de manter o segredo até o dia anterior à gravação, porém Patrick pede para não desistirmos se for a Oxbridge ou a Open University, que, segundo ele, são superestimadas. Depois, há um bando de questões práticas, como o aluguel do micro-ônibus da equipe de hóquei e os cartazes que precisam ser afixados no Grêmio Estudantil para a divulgação do evento para qualquer um que queira ir conosco dar apoio. Um dos amigos grandalhões de direita do Patrick, do instituto de economia, ofereceu-se para dirigir o micro-ônibus dos torcedores até Manchester, desde que houvesse um número suficiente de interessados.
— Então, se houver alguém que você queira que vá conosco, peça para preencher o formulário no Grêmio.
Alice ficou de convidar o elenco de Hedda Gabler, e Lucy tinha uns amigos da medicina, mas a única pessoa que consegui pensar em chamar foi Rebecca. Nem sei se ela acabaria nos vaiando ou torcendo para a outra equipe, mas resolvi, pelo menos, dar a escolha.
— Agora... — continuou Patrick, consultando suas anotações impressas — …o último item na agenda. Precisamos escolher uma mascote para o time!
Não tenho nada que pudesse ser considerado como mascote, e Patrick não tem nada remotamente macio ou divertido. Então, ficamos entre Eddie, o velho ursinho de Alice, e a caveira do esqueleto de anatomia de Lucy, que, muito espirituosamente, Alice sugere que seja enrolado num cachecol e batizado de Yorick.
Ficamos com o Eddie.
Depois de terminarmos, tenho de correr rua abaixo para alcançar Alice, que precisava ir direto para os ensaios.
— Então, o que você vai fazer aman...
— Ensaio...
— Mas e durante o dia?
— Preciso entregar uma redação...
— Que tal um cinema?
— Cinema? — Ela para no meio da rua, olha dos dois lados para ver se alguém estava nos observando e responde: — OK. Cinema.
Combinamos os detalhes e vou para casa num salto, com a intenção de mandar ver naquele poema.
Na tarde seguinte, ela deixa de fazer a redação para ficar comigo, e vamos ao cinema juntos. Cinema não é o ideal, claro, pois as oportunidades para conversar, ou mesmo só para olhar para ela, são limitadas. Além disso, Alice quer ver De volta para o futuro, no Odeon, insistindo que vai ser engraçado, meio divertido, mas eu tenho em mente algo mais intelectual. Então, em vez de ir ao Odeon vamos à matinê dupla das terças-feiras de filmes mudos no Art Cinema. A surpreendente obra-prima surrealista de 1928 de Dalí e Buñuel, Um cão andaluz, e o magistral e polêmico filme soviético O encouraçado Potemkin, de Eisenstein.
Compramos um monte de doces no jornaleiro antes, pois, como se sabe, os preços dos doces no cinema são absurdos, e depois nos sentamos nas cadeiras da fileira do centro. Apenas seis pessoas estão na plateia, contando nós dois. As luzes se apagam, e o clima de desejo sexual reprimido que passa por nós como uma leve corrente elétrica é quase tangível, assim como o cheiro de cigarros úmidos e suco de frutas, e o frio, e a vaga sensação de infestação. O primeiro filme é Um cão andaluz. Na assustadora sequência envolvendo a incisão em um olho e a decomposição de um jumento em cima do piano, Alice se inclina para a frente e tapa os olhos com as mãos e eu, muito piegas, coloco o braço sobre o encosto de sua cadeira, como que a protegendo da percepção grotesca de Dalí e Buñuel do funcionamento do subconsciente.
Então, as luzes se acendem e há um breve intervalo no qual comemos um saco enorme de amendoins cobertos de chocolate, tomamos Lilt e discutimos sobre o surrealismo e sua relação com o inconsciente. Alice não é grande fã da coisa.
— Isso não mexe comigo. É muito feio e alienante. Não me comove nem me envolve emocionalmente. Só isso...
— Mas não é para se engajar ou se envolver emocionalmente, não de maneira convencional. Surrealismo é para ser estranho e enervante. Eu acho que mexe muito, só que as emoções, às vezes, são de angústia e nojo... — A ironia é que o que eu quero mesmo é que Alice se engaje e se envolva de uma maneira convencional, e que não sinta emoções como angústia e nojo.
Então, as luzes se apagam e as coisas melhoram quando começa O encouraçado Potemkin. Fico olhando de soslaio durante a famosa sequência nas escadarias de Odessa até ela me dar um sorriso, e, naquele momento, me inclino para lhe dar um beijo. E, graças a Deus, ela retribui por bastante tempo, para falar a verdade, e é o máximo. Há um leve contraste de sabores cítricos e leitosos, pois Alice já estava nas balas de goma e eu continuava nos amendoins com chocolate, e não posso mandar ver de verdade porque estou com um pedaço de amendoim grudado no molar e não quero que o amasso fique muito acalorado, para não acontecer um acidente. Afinal, não precisava ter me preocupado, pois ela logo se afasta e sussurra:
— Acho melhor assistirmos ao filme. Quero saber o que acontece com os marinheiros! — e voltamos a O encouraçado Potemkin.
Já está escuro quando saímos do cinema, e me sinto um pouco nauseado por conta de tantos doces e beijos, mas ela pega no meu braço e andamos pelo centro da cidade, conversando sobre Eisenstein com ares revolucionários.
— Ele é mesmo o pai da técnica moderna de narrativa cinematográfica — comento, e, quando, enfim, não tenho mais nenhum tipo de baboseira monótona para tagarelar, pergunto: — Café e biscoitos de aveia? Ou vamos ao pub? Ou para minha casa? Ou para a sua?
— Melhor não. Eu tenho uns diálogos pra decorar.
— Posso tomar sua lição — sugiro, embora algo me diga que já estou forçando a barra.
— Na verdade, prefiro fazer isso sozinha — responde Alice, e percebo, consternado, que estamos voltando aos alojamentos e que esse é o fim do nosso encontro romântico por enquanto.
Então, na rotatória, pouco depois da estação de ônibus da National Express, vejo algo que me dá uma ideia.
— Vem comigo um segundo...
— Para quê?
— Tive uma ideia. Vai ser divertido, prometo. — Muito sutilmente, aperto mais firmemente seu braço, para que ela não fuja, entramos na névoa de diesel cinzenta da estação de ônibus e chegamos à cabine de fotos instantâneas.
— O que estamos fazendo?
— Pensei em tirarmos uma foto — explico, procurando alguns trocados no bolso.
— De nós dois?
— É.
— Com que finalidade? — questiona ela, afastando-se um pouco. Aperto mais o braço de Alice.
— Só um souvenir — respondo, mas aquela não é a palavra certa. Souvenir, substantivo, do verbo francês souvenir, lembrar-se. — Vamos lá... Vai ser engraçado!
— Não mesmo! — responde ela, e me pergunto como colocar Alice ali dentro sem um lenço com clorofórmio.
— Ah, vamos...
— Não!
— Por que não?
— Porque eu estou horrível! — responde, quando é óbvio que o que ela quer mesmo dizer é Você está horrível....
— Que bobagem! Você está ótima... Vamos... Vai ser divertido! — digo, puxando-a pela mão, na estação. Vai ser divertido, vai ser divertido, vai ser divertido... Puxo as cortinas laranja de náilon impregnadas de diesel e nicotina e me espremo dentro da cabine e começamos a ajustar a altura do banco e decidir como vamos nos sentar. Alice acaba se empoleirando no meu joelho, mas depois precisa se levantar para que eu tire um monte de chaves e trocados dos bolsos antes de ela se aninhar outra vez no meu colo, agora com as pernas em cima das minhas e enlaçando meu pescoço com os braços. Enfim, ela está cooperando, e parece que isso pode mesmo acabar sendo divertido afinal; então, me inclino para a frente e coloco as moedas na fenda.
A câmera dispara o primeiro flash quando estou tirando uma mecha de cabelo solto da frente dos olhos.
Para a segunda foto, tiro os óculos e chupo minhas bochechas, fazendo biquinho, como um modelo masculino, porque parece engraçado.
Para a terceira foto, tento uma risada leve e relaxada, com a cabeça pendendo para trás e a boca aberta.
E, na foto número quatro, beijo Alice na bochecha.
Parece que se passam várias horas enquanto esperamos as fotos saírem da máquina. Ficamos na estação de ônibus em silêncio, inalando a fumaça do óleo diesel e escutando o sistema de alto-falantes. O ônibus das 17h45 para Durham está prestes a sair.
— Você conhece Durham? — perguntei.
— Não — respondeu Alice. — E você?
— Não. Mas gostaria. Parece que tem uma catedral muito bonita. — O ônibus passa com um ruído surdo, o escapamento arrotando. Penso em me jogar debaixo das rodas. Finalmente, com um zumbido e um clique, a máquina cospe as fotos, grudentas com o fluido de revelação e cheirando a amônia.
Algumas tribos primitivas acreditavam que ser fotografado era ter um pedaço da alma roubado, e, vendo a tira de fotos, é difícil não pensar que talvez tivessem razão. Na primeira, a minha mão e o meu cabelo estão cobrindo a maior parte do meu rosto, e a única coisa que dá para ver com clareza é a acne em volta dos cantos da minha boca e uma língua gorda e salpicada, pendendo para fora de modo obsceno, como se eu tivesse acabado de levar um soco. A foto número dois, a foto engraçada de modelo masculino, talvez seja a coisa mais grotesca e não engraçada já vista, com o efeito reforçado por um dos olhos de Alice se revirando, só um. A foto número três, com o título de risada, está horrível, clara e iluminada demais, destacando minhas fossas nasais, com um emaranhado de pelos que parecem chegar ao centro do meu crânio, e, logo abaixo, estão visíveis as nervuras cor-de-rosa do meu palato, as obturações e até a epiglote. Por fim, na foto número quatro, estou beijando Alice com a boca rachada e contraída enquanto ela se retrai, de olhos bem fechados.
Essa é para levar na carteira.
— Minha nossa! — comento.
— Ficaram ótimas — responde Alice, num tom monótono.
— Quais você vai querer?
— Ah, acho que estou bem. Pode ficar com elas, como um souvenir — e lá está a palavra de novo — souvenir, substantivo, do verbo em francês souvenir, lembrar-se. — Desculpe, Bri, eu preciso correr. — E é o que ela faz. Sai correndo.
Naquela mesma noite, estou em casa dando os últimos retoques no poema e olhando para a tira de fotografias presas com fita adesiva na parede ao lado da mesa — eu beijando Alice e ela se contraindo —, quando cai a ficha que nosso dia de passeio e diversão foi apenas um sucesso parcial. Claro que eu devia deixar isso de lado, mas me preocupo com a possibilidade de não conseguir dormir e não falar com ela mais uma vez. Por isso, visto meu casaco e vou ao bar dos estudantes, na esperança de esbarrar acidentalmente com ela depois dos ensaios.
Claro que ela não estava lá. Quando chego, a única pessoa que reconheço é Rebecca Epstein, cercada pela sua panelinha de malditosativistaszangados. Ela parece bem feliz em me ver e faz com que os companheiros redistribuam o espaço no banco para que eu me esprema ao seu lado. A mesa está coberta de copos vazios; Rebecca ficou alternando entre cerveja e uísque a noite toda, e parece bem embriagada.
— Você já assistiu a O encouraçado Potemkin? — pergunto, prestando atenção para ver se Alice chega.
— Acho que não. Por quê? Eu deveria?
— Com certeza. É maravilhoso. Está passando no Art Cinema essa semana toda.
— OK, então vamos juntos. Que tal? Mato as aulas de amanhã à tarde...
— Na verdade, fui ver hoje à tarde.
— Sozinho?
— Não. Com Alice, na verdade — explico, o mais casualmente que consigo. Mas Rebecca consegue ver esse tipo de coisa a um quilômetro de distância, e parte para cima: — Bem, vocês dois andam muito amigos no momento, não é? Tem alguma coisa que eu deva saber?
— Só temos passado um tempinho juntos. Só isso.
— É mesmo? — questiona Rebecca, cética. Começa a pegar outro cigarro, mesmo tendo um ainda grudado nos lábios, e é como ver alguém carregando um revólver.
— É... mes... — (lambe o papel) — ...mo? Bom, Jackson, você sabe mesmo como entreter uma garota, né? Uma obra-prima da propaganda soviética à tarde, depois quem sabe um coquetel de camarão, meia porção de frango com molho barbecue e duas canecas de Lambrusco Bianco no Luigi. É mesmo uma vida boa. Só espero que, depois de um dia mágico como esse, você ao menos tenha conseguido passar a mão nos peitos dela...
A coisa esperta a se fazer seria, claro, não morder a isca.
— Na verdade, estamos meio que saindo juntos.
Rebecca ergue as sobrancelhas e sorri para si mesma. Acende o cigarro antes de falar de novo.
— Ah, é? — pergunta baixinho, tirando o tabaco dos lábios. — Então, por que eu nunca vejo vocês juntos nos corredores do alojamento?
— Estamos sendo discretos. Indo devagar — respondo, nada convincente.
— Certo, certo. Então, foi você quem ligou na semana passada para falar com ela?
— Não!
— Tem certeza?
— Sim!
— Porque parecia muito com você...
— …Bom...
— …Fazendo uma voz engraçada...
— …Bom, não era eu...
— Você já transou com ela? — rosna Rebecca, o cigarro pendendo da boca contorcida.
— O quê?
— Vocês já tiveram um intercurso sexual? Sabe como é... trepar, coito, papai e mamãe. Vamos lá, você já deve ouvido falar sobre isso. Afinal, está indo para o Desafio Universitário... O que você vai responder se fizerem essa pergunta? Jackson, de Southend, cursando literatura inglesa, o que é exatamente um intercurso sexual? Hummmmmmmm... Posso debater com o resto da equipe, Bamber? Alice, o que é intercurso sex...?
— Eu sei o que é, Rebecca...
— Então? E você já experimentou ou está se guardando para o dia do casamento? Ou talvez esteja preocupado com seu histórico sexual. Afinal, todo cuidado é pouco hoje em dia. Só que, pelo que me lembro, na verdade você não tem um histórico sexual...
E, antes de perceber o que estou falando, digo:
— Como se o seu pudesse ser descrito numa carta pra família, né, Rebecca?
Ela tira o cigarro da boca, apoia a mão na quina da mesa e ficou em silêncio por um instante.
— Bom argumento, Jackson. Bom argumento. — Toma o último gole de cerveja da caneca e se contrai. — Touché, Jackson! — e ficamos em silêncio.
— Eu não quis...
— …não, está tudo bem...
— …não estava me referindo a...
— Não, eu sei que não estava.
Decido ir embora.
— Então, você vai na gravação? — pergunto, vestindo o casaco.
— Que gravação?
— Do Desafio Univ...
— Quando vai ser?
— Depois de amanhã.
— Não posso. Tenho orientação. Então...
— …tem uma lista no quadro de avisos do segundo andar, se...
— …eu sei...
— …é só assinar o nome, se...
— …vou ver...
— …eu gostaria muito que você fosse...
— Por quê?
— …só gostaria muito. Vejo você lá, sim?
— É... Bom... Talvez...
Passo pelo alojamento de Alice, na esperança de um encontro casual, e deixo meu cartão do Dia dos Namorados. Minha mão paira junto à caixa de correio por um momento, então respiro fundo e solto. Depois, enrolo um pouco, fingindo ler o quadro de avisos, no caso de ela voltar. Mas não quero encontrar
Rebecca de novo; por isso, voltei logo para casa e chego no momento em que Josh estava fixando um bilhete na minha porta.
— Ah, chegou o garanhão! Mensagem para você. De alguém chamado... — Alice, talvez? — … de alguém chamado... Tone. Disse que é para você ligar urgente.
— Sério? — pergunto. Que diabo Tone pode querer? Talvez vindo passar um tempo também. Não posso receber Tone logo no Dia dos Namorados, com o programa e tudo o mais. Olho para o relógio. Onze e meia. Vou até o telefone no corredor.
— E aí, Tone!? — cumprimento, animado.
— Tudo bem, Bri...
— Não acordei você, acordei? É que me deram um recado para ligar.
— É, isso mesmo...
— Você está vindo passar um tempo aqui, Tone? Porque, se está, não é o melhor momento...
— Eu não estou indo aí, Bri. Na verdade, estava querendo saber quando você vem pra cá.
— Bem... Não até a Páscoa, acho.
— Não, quero dizer, para ver o Spencer.
— Por quê? O que tem o Spencer?
— Você não soube?
Aperto o telefone no ouvido e me apoio na parede.
— Soube o quê?
Tone solta um suspiro profundo no outro lado da linha e diz:
— Aconteceu um pequeno acidente.
PERGUNTA: No casamento de quem Os bolos fúnebres serviram para os frios do esposório?
RESPOSTA: No casamento de Gertrude e Claudius, em Hamlet.
Chego a Southend bem cedo na manhã do Dia dos Namorados, antes de o correio passar, e estou à maisonette na Archer Road por volta do meio-dia. Estou desesperado para urinar desde a Fenchurch Street, mas os banheiros no trem estavam bloqueados. Então, esperei e meus rins ficaram latejando de dor. Subo as escadas correndo, entro no banheiro e grito...
— MEU DEUS!
Tem um homem na banheira, passando xampu nos cabelos. Ele também começa a gritar...
— QUE DIABO...!
Aí, vejo minha mãe saindo do quarto, fechando a camisola, e, por cima dos ombros dela, avisto a cama toda bagunçada, uma cueca vermelha e branca pendurada na cabeceira, a calça do homem largada no chão e a garrafa de vinho espumante...
— BRIAN, O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?! — grita ela.
Viro-me de costas, porque ela ainda não fechou bem a camisola e vejo o homem na banheira se levantando, tirando o xampu dos olhos com uma das mãos e pegando uma toalha de rosto com a outra, que usou para cobrir a região genital.
— Que diabo está acontecendo? — pergunto.
— Eu estou tentando tomar uma droga de um banho! — vocifera tio Des.
— Espere lá embaixo! — rosna minha mãe.
— Preciso usar o banheiro! — explico, o que é verdade, além de urgente.
— BRIAN, ESPERE LÁ EMBAIXO! — grita ela, segurando a camisola fechada e apontando a escada. Não a ouço gritar desse jeito desde que eu era criança, e, de repente, me sinto como uma criança, pois desço os degraus, destranco a porta dos fundos e faço xixi num canto do jardim.
Estou na cozinha esperando a chaleira ferver quando escuto tio Des e minha mãe descendo a escada de fininho e, depois, sussurrando coisas no corredor, como dois adolescentes. Acho que chego a ouvir um te ligo mais tarde e um beijo, o som da minha mãe beijando tio Des. Daí, a porta da frente se fecha e escuto um fósforo sendo riscado, o som da minha mãe tragando e soltando o ar devagar, e, então, ela está atrás de mim, vestida com casaco de moletom azul berrante, dando tragadas profundas num cigarro e com uma taça ensebada de vinho espumante na mão.
A água na chaleira ainda não está fervendo.
Finalmente, ela diz:
— Achei que você fosse direto para o hospital.
— Perdi o horário de visitas do almoço. Vou mais tarde.
— Eu não estava esperando você.
— É... Bem... Isso é óbvio. A banheira do tio Des está quebrada?
— Não use esse tom comigo, Brian...
— Que tom?
— Você sabe que tom — ela sorve o resto do vinho. A chaleira, enfim, apita.
— Você está fazendo café?
— Aparentemente...
— Prepare um para mim. Depois, venha para a sala. Precisamos ter uma conversinha.
Ah, Deus! Meu coração pesa. Vamos ter uma conversinha, uma discussão franca, um desabafo de coração aberto. Vamos conversar como adultos. Até ali, estava conseguindo evitar esse tipo de coisa. Meu pai morreu antes de ter que fazer teatrinho de quando um homem e uma mulher se amam, e acho que minha mãe deve ter achado que isso não era relevante ou que eu descobriria sozinho o estranho mistério do amor físico, de uma maneira ou de outra, o que acabei fazendo, usando uma caçamba de lixo nos fundos do Littlewoods como apoio. Mas, daquela vez, não vai dar para escapar. Pego duas canecas e coloco o pó de café, tentando entender a coisa toda. Tento me convencer de que deve haver alguma explicação inocente para o tio Des estar na nossa banheira às 13h no Dia dos Namorados, mas não consigo achar. Tudo o que vem à mente é a explicação evidente, e a explicação evidente é... impensável. Tio Des e minha mãe. Tio Des, que mora três casas rua abaixo, e minha mãe, na cama, juntos, em plena luz do dia. Tio Des e minha mãe fazendo...
A água ferve.
Minha mãe está na sala, tragando um Rothmans e olhando pela cortina. Entrego a ela uma das canecas de café e me sento desanimado no sofá, em silêncio, me perguntando se é assim quando a esposa resolve revelar que quer o divórcio.
Noto meu cartão do Dia dos Namorados na mesinha de centro, um cartão-postal com uma pintura de Chagall.
— Então, você recebeu um cartão, hein?
— O quê? Ah, sim. Muito obrigada, querido. Muito bonito.
— Como sabe que fui eu quem mandou? — pergunto, numa tentativa esfarrapada de humor.
— Bom, você escreveu Para mamãe. Então... — ela tenta sorrir, depois vira outra vez para a janela e sopra a fumaça na vidraça, com tanta força que a cortina se move. Depois de um tempo, diz: — Brian, seu tio Des e eu estamos tendo... — estava prestes a dizer um caso, mas trocou por — ...tendo um... relacionamento.
— Há quanto tempo?
— Já faz um tempo. Desde outubro.
— Desde que eu fui embora, então?
— Mais ou menos. Ele veio jantar uma noite, para me fazer companhia, e uma coisa levou a outra, e, bom, eu ia contar, Brian, no Natal, mas você não ficou muito tempo e eu não queria dizer pelo telefone...
— Não. Claro... Posso imaginar... — murmuro. — Então, é... é sério?
— Acho que sim. Bem... — ela dá outra tragada, aperta os lábios, solta a fumaça e fala: — …para falar a verdade, temos conversado sobre nos casarmos.
— O quê?
— Ele me pediu em casamento.
— Tio Des?
— Sim.
— Casar com ele?
— Brian...
— E você disse sim?
— Eu sei que vocês não se dão bem, sei que não gosta dele, mas eu gosto, gosto muito do Des. Ele é um homem bom, gosta de mim, me faz rir. Estou com 41 anos, Brian. Sei que isso deve parecer velho para você... Deus sabe que me sinto velha, às vezes, mas um dia você vai ter 40, antes do que pensa. De qualquer modo, ainda estou... Bem... Ainda... Ainda gosto de uma companhia de vez em quando, Brian... Um pouco de... — dá mais uma tragada e olha para o chão — …Bem, desculpe... Seu pai morreu há muito tempo, Brian, e Des e eu não estamos fazendo nada de errado. Não vou deixar que façam com que eu me sinta como se estivéssemos fazendo algo de errado...
Mas ainda estava tentando absorver tudo aquilo.
— Então, você vai se casar com ele?
— Acho que sim...
— Você ainda não sabe?
— Sim! Sei, eu vou me casar com ele!
— Quando?
— Mais para o fim do ano. Não estamos com pressa.
— E o que acontece depois?
— Ele vai se mudar para cá, morar comigo. Estamos pensando em... — ela faz uma pausa, fica nervosa de novo, não consigo imaginar o que mais ela poderia me contar — …estamos pensando em pôr alguns quartos pra alugar.
Penso nisso e dou risada, não porque ache engraçado, nada daquilo tem a menor graça, mas por não conseguir formular uma resposta apropriada.
— Você está brincando.
— Não, não estou.
— Um albergue?
— É.
— Mas não tem espaço!
— Não para famílias, mas serve para solteiros, ou jovens casais, homens de negócio... Des vai fazer uma reforma no sótão — ela olha para mim, ansiosa, e volta para a cortina — e no seu quarto. Pensamos em talvez desocupar seu quarto.
— E o que acontece com as minhas coisas?
— Achamos que você poderia... levar com você.
— Você está me expulsando do meu quarto!
— Não expulsando, só... pedindo pra você tirar suas coisas.
— E levar para a universidade?
— Sim! Ou isso, ou jogar fora. É só um bando de livros e gibis e aeromodelos, Bri, não é nada de que vá precisar. Você já está crescido, afinal...
— Então, eu estou sendo expulso!
— Não seja bobo, é claro que não. Você ainda pode passar as férias aqui se quiser, e no verão...
— Mas não vai ser a alta temporada para vocês?
— Brian...
— Bom, isso é muito generoso da sua parte e do tio Des, mãe, mas quanto você cobra por noite? — Ouço minha própria voz, esganiçada e teimosa.
— Não faça assim, Brian, por favor...
— O que você espera que eu faça? Quer dizer, eu estou sendo expulso de casa...
Ela se vira e olha para mim, me aponta com o que resta do cigarro e grita:
— Não é mais a sua casa, Brian!
— Ah, é mesmo?
— Sinto muito, mas não é mais! Você esteve aqui, o quê? Por uma semana no Natal? Uma semana, e, mesmo assim, mal podia esperar para voltar para a faculdade. Você não vem nos fins de semana, passa semanas sem me ligar, e também não me escreve. Então, não, na verdade, não, essa não é a sua casa. É minha. É a casa onde moro, sozinha, só eu, todo maldito dia, dia após dia, desde que seu pai morreu. Esse é o lugar em que dormi sozinha todas as noites, e aquilo ali, aquele maldito sofá, é onde fico quase todas as noites sozinha, assistindo à televisão ou apenas encarando a parede, enquanto você está fora, na faculdade, ou, quando me honra com a sua estadia, e fica na rua com seus amigos, ou escondido no quarto, porque acha uma chatice total conversar comigo, com a sua mãe. Você faz ideia do que seja isso, Brian, ficar aqui sozinha, ano após ano após...? — A voz falha, ela cobre o rosto com as mãos e começa a chorar, com soluços longos, pesados e molhados, e, mais uma vez, percebo que não faço ideia do que devo fazer.
— Mãe, calma... — digo, mas ela ergue o braço, gesticulando para eu me afastar.
— Deixe eu ficar sozinha, Brian, por favor — pede, e me sinto tentado a obedecer, pois seria mais fácil.
— …Mãe, não precisa ficar...
— Deixe eu ficar sozinha. Vá embora...
E se eu fingisse que não ouvi nada daquilo? A porta da sala ainda estava aberta. Eu poderia sair, dar mais ou menos uma hora e voltar, quando ela estivesse mais calma. Afinal, foi o que ela me mandou fazer. É isso que ela quer, não é?
— Por favor, mãe, por favor, não chore. Odeio quando você... — mas não consigo terminar a frase, pois percebo que também estou chorando. Vou até ela e a envolvo no abraço mais apertado que consigo.
PERGUNTA: Pedras erguidas num círculo em Lindholm Hoje, perto de Alborg, na Dinamarca, sugerem que o lugar era utilizado para que tipo de ritual antigo?
RESPOSTA: Enterro viking.
Encontro Tone às 14h15 no Black Prince, no lado que dá para o mar. O lugar está vazio, a não ser por um casal de coroas tuberculosos segurando com carinho suas canecas já nos últimos goles de cerveja quente enquanto leem exemplares amassados do The Sun, e, mesmo assim, levo um momento para avistar Tone, pois, automaticamente, procuro um jeans azul-claro, não um terno preto de um botão, meias brancas e os sapatos cinza-claro que ele estava usando.
— Puta merda, Tone! O que aconteceu com o seu cabelo? — O visual viking se foi, substituído por um corte curto nos lados e atrás, a parte de cima repartida, com um certo exagero, para o lado esquerdo. Tone, de terno, com o cabelo repartido...
— Cortei, só isso. — Estico o braço para desfazer o penteado, mas ele bateu na minha mão com um golpe de caratê, de uma maneira não muito brincalhona.
Quero manter o clima leve, então pergunto: — Você está usando gel?
— Um pouquinho. E daí? — retruca ele, tomando um gole da pequena caneca de cerveja à sua frente. Acho que nunca vi Tone segurando uma caneca pequena de cerveja, e isso confunde a escala natural das coisas, fazendo-o parecer um tipo de gigante.
— Quer outro drinque? — pergunto.
— Estou bem...
— Outra caneca pequena?
— Não posso...
— Vamos lá, seu frangote... — brinco.
— Não posso. Tenho que voltar ao trabalho.
— Mas você deve ter tempo para uma...
— Eu não quero outra caneca, OK? — rosna ele. Levanto e pego uma caneca grande para mim.
— Então, como vai o trabalho?
— Bem. Estou na frente da loja agora, por isso o... — ele dá um puxãozinho na lapela do terno, meio se justificando.
— Que departamento?
— Sistemas de som.
— Genial!
— É, bom... Dá para o gasto. E tem comissão... Então...
— Spencer me contou sobre você ter entrado para os Territoriais.
— Contou? E vocês deram boas risadas com isso, né?
— Não, claro que não...
— Imagino que você não aprove.
— E eu disse isso? Sou unilateralista. Acho que os gastos com defesa deviam mesmo ser reduzidos e uma parte investida em serviços sociais, mas, ainda assim, entendo a necessidade de algum tipo de... — mas Tone está olhando para o relógio; não parece muito interessado. — Então, você já viu o Spencer?
— Claro que já vi o Spencer — retruca ele, hostil, e me conformo com o fato de que, pelo menos hoje, será impossível dizer qualquer coisa que não irrite alguma pessoa.
— E como ele está?
— Bom, considerando que ele atravessou o para-brisa de um Escort, até que está muito bem.
— O que aconteceu, Tone?
— Não sei exatamente. Estávamos no pub na sexta, como de costume, e, quando fechou, ele queria ir para Londres, para uma boate ou algo assim pra continuar bebendo, e eu disse não, porque ia trabalhar no dia seguinte. Ele estava muito bêbado, mas foi assim mesmo, no carro do pai. Dois dias depois, a mãe dele me ligou dizendo que ele estava no hospital.
— Alguém mais ficou ferido?
— Não...
— Bom, graças a Deus...
— …só o nosso amigo Spencer — acrescenta Tone, com um sorriso de escárnio.
— Eu não quis dizer... Eu só quis dizer que... E ele está encrencado? Quer dizer, com a lei?
— Bom, ele estava acima do limite de velocidade, com uma carteira provisória. O carro não era dele e não tinha seguro... Então, sim, do ponto de vista legal, as coisas não parecem muito boas.
— E como ele está... se sentindo?
— Não sei, Brian, pergunte a ele, tá legal? Tenho que voltar ao trabalho — irritado, ele toma o resto da caneca, pega uma embalagem de balas de menta do bolso e joga uma na boca, sem me oferecer.
Saímos do pub e seguimos rumo ao píer. O vento traz a chuva do estuário, Tone cobre a camisa e a gravata com a lapela fina do paletó e continuamos andando na direção da High Street.
— Você vai passar a noite aqui? — pergunta, não se importando muito com a resposta.
— Não, infelizmente não posso — penso se deveria contar que estarei no Desafio Universitário no dia seguinte, mas resolvo deixar de lado. — Tenho orientação amanhã bem cedo, então preciso voltar ainda hoje. Mas volto na Páscoa, acho... Então... A gente se vê quando eu voltar?
— É, pode ser...
— Tone, eu fiz alguma coisa que irritou você?
Ele solta uma risada pelo nariz
— O que lhe deu essa impressão?
— Foi alguma coisa que o Spencer disse? — sem resposta. — O que ele disse, Tone?
Tone respondeu sem olhar para mim:
— Spencer me contou sobre a visita que fez a você. Pelo que ele disse, não achei que você foi muito amigo, Bri. Na verdade, me pareceu que você se comportou meio como um babaca. Só isso...
— Por quê? O que ele disse?
— Deixa pra lá...
— Eu não podia deixar ele lá, Tone, era contra o regulamento...
— Ah, bom... Se era contra o regulamento, Bri...
— Foi ele que começou a briga, Tone...
— Olha, Bri, não quero saber. Isso é entre você e o Spencer.
— Então, suponho que também seja minha culpa que ele tenha decidido encher a cara e enfiar o carro numa árvore?
— Eu não disse isso. Vê se consegue dar um jeito nas coisas, Brian, tá legal? — Tone aperta o passo, a cabeça abaixada contra a chuva, por um segundo, e se vira um pouco. — E tente não ser muito idiota no processo, OK? — Ele vira as costas e volta a se apressar para o trabalho, e fico me perguntando se algum dia verei Tone outra vez.
PERGUNTA: Isolado pela primeira vez por F. W. A. Sertuner, em 1806, qual é o nome popular do narcótico analgésico derivado da semente verde da papaver somniferum?
RESPOSTA: Morfina.
Manhã de maio de 1979, três dias depois do funeral do meu pai. Estou deitado no sofá com as cortinas fechadas, assistindo à programação de sábado de manhã, vestindo o uniforme da escola. Claro que não preciso estar com o uniforme da escola, tecnicamente, mas tendo a usá-lo o ano todo, pois, assim, é mais fácil e, de qualquer modo, não sei mais o que usar. Minha concessão para os fins de semana é não usar a gravata.
Os parentes já foram todos embora. Agora, ficamos só eu e minha mãe. Minha mãe não está bem, adquiriu o hábito de dormir até tarde, depois andar pela casa de camisola, deixando um rastro de canecas sujas e bitucas de cigarro, ou de cochilar toda encolhida no sofá a tarde inteira, até anoitecer. A casa toda está com um aspecto quente, cinzento e doentio, mas nenhum de nós consegue achar a energia ou motivação para abrir as cortinas e as janelas, esvaziar os cinzeiros, desligar a televisão, lavar a louça ou cozinhar algo que não seja espaguete. A geladeira ainda está abarrotada de sobras de bolo, salsichas embaladas e garrafas de Coca-cola sem gás, as sobras do velório. Estou comendo salgadinhos de queijo e cebola de café da manhã. Essa é, com certeza, a pior fase.
Quando a campainha toca, suponho que seja algum vizinho vindo ver como está minha mãe. Ela atende e escuto uma voz que não reconheço no vestíbulo. Daí, ela abre a porta da sala, com a camisola bem fechada, e fala com a voz certinha engraçada que usa para visitas importantes.
— Tem alguém querendo falar com você, Brian!
Ela dá um passo para o lado e Spencer Lewis entra.
— Tudo bem, Bri?
Eu me sento no sofá.
— Tudo bem, Spencer?
— O que você está fazendo?
— Nada.
— Quer uma Coca, Spencer? — pergunta minha mãe.
— Sim, por favor, Sra. Jackson.
Minha mãe sai discretamente da sala e Spencer vem se sentar ao meu lado no sofá.
É difícil enfatizar a importância de uma visita de Spencer Lewis. Nós nem somos amigos ou coisa assim. Nem mesmo tínhamos nos falado antes, a não ser um ocasional insulto no campo de futebol ou um aceno de cabeça na fila do caminhão de sorvete. Não parece haver uma explicação plausível para alguém tão maneiro, popular e durão como Spencer Lewis vir me visitar, um garoto maluco que usa o uniforme da escola no sábado. Mas aqui está ele, sentado no sofá.
— O que você está assistindo?
— Swap Shop.
— Eu odeio essa droga de Swap Shop — diz ele.
— É, eu também — concordo, sarcástico, embora secretamente goste do programa. Ficamos em silêncio por um momento ou dois, então ele diz:
— Eu chamei sua mãe de Sra. Jackson sem querer. Você acha que ela se incomoda?
— Não. Tudo bem.
A não ser por essa pergunta, ele não menciona a morte do meu pai de nenhuma outra maneira, nem questiona sobre o funeral ou como estou sentindo, graças a Deus, pois isso seria embaraçoso; afinal, somos garotos de 12 anos de idade. Em vez disso, ele senta-se, bebe Coca sem gás e assiste à televisão comigo. Diz quais bandas são uma bosta e quais são boas, e acredito nele, concordo com tudo o que ele fala. Sinto-me como se um artista de cinema estivesse me visitando, ou alguém melhor que um artista de cinema, alguém como Han Solo. E sinto aquilo como um ato de absoluta bondade.
A perna esquerda de Spencer quebrou em três lugares, e a direita em dois. A clavícula trincou, o que é particularmente doloroso, pois é um local impossível de se engessar e, por isso, ele não consegue mexer a parte superior do corpo. Os braços parecem estar bem, mas há alguns cortes nas palmas das mãos e nos antebraços, por causa do vidro quebrado. Felizmente, não há danos na coluna ou no crânio, mas seis costelas estão fraturadas no ponto em que bateram no volante. Isso torna a respiração dolorosa e dormir sem auxílio, impossível; portanto, ele está sob muita medicação. O nariz estava quebrado, vermelho e inchado, e, acima do olho direito, há um corte feio, com seis pontos grossos e pretos. O olho em si está bem preto, roxo e inchado, semifechado. O alto da cabeça tem várias cicatrizes vermelho-escuras, por causa do para-brisa estilhaçado, bastante visíveis por baixo do cabelo curto, e ainda há alguns pontos na orelha esquerda, na qual o lóbulo foi parcialmente arrancado pelo vidro quebrado.
— Mas... E fora isso?
— Fora isso, estou me sentindo muito bem, na verdade — responde Spencer, e nós dois rimos por um tempo, antes de afundarmos de novo no silêncio.
— Você acha que eu estou arrebentado! Você devia ver a árvore! — brinca ele, não pela primeira vez, imagino, e rimos de novo, com Spencer se contraindo ao mesmo tempo por causa da dor nas costelas e na clavícula.
Ele está tomando remédios, claro. Não sabe exatamente quais remédios, mas são mais fortes que aspirina. Ele acha que é algum opiáceo. Parece estar funcionando, pois um sorriso anormal passa pelos cantos de sua boca. Nada perturbador, como o de Jack Nicholson no fim de Um estranho no ninho, mas aparenta um humor vagamente inapropriado. O discurso, sempre tão direto e afiado, está grogue e distante, como se ele enfiasse a mão na boca.
— Mas, ainda assim, a boa notícia é que adiaram o julgamento do meu caso... Aquele lance de burlar o seguro-desemprego...
— Isso é bom.
— É... Quase faz tudo isso valer a pena. Você não tem um cigarro, tem?
— Spencer, eu não fumo.
— Estou louco por um cigarro. E por uma cerveja.
— Isso é um hospital, Spencer...
— Eu sei, mas ainda assim...
— Como é a comida? — pergunto.
— Não é muito saborosa.
— E as enfermeiras?
— Não são muito saborosas.
Sorrio e emito um som para mostrar que estou rindo, pois estou fora do seu campo de visão e ele não parece capaz de mover a cabeça muito bem.
— E quanto a isso...? — aponto para o gesso em suas pernas, as mãos com ataduras... — Vai ter alguma... consequência?
— Ainda não sei. É provável.
— Puta merda, Spencer...!
— Ok, Bri, não começa...
— …mas você devia saber que alguma coisa...
— Você não veio até aqui pra me dar um sermão, veio, Bri?
— Não, claro que não, mas você tem que admitir...
— É, eu sei: não fumar, não brigar, não burlar o seguro-desemprego, não beber e dirigir, usar cinto de segurança, trabalhar duro, frequentar a escola no turno da noite, conseguir qualificações, arranjar algum esquema. Às vezes, você parece uma porra de um filme educativo ambulante, Brian...
— …Desculpe, eu...
— …Nem todos conseguem ser sensatos o tempo todo...
— …Não, eu sei...
— …Nem todos conseguem ser como você...
— …Ei, nem sempre eu sou tão sensato!
— … Mas você entendeu o que eu quis dizer, não é?
Ele não grita essas frases, pois nem consegue gritar, só meio que sibilar entre os dentes, antes de cair de novo em silêncio. Sei que tenho que dizer algo, e ainda não encontrei as palavras certas, mas estou prestes a abrir a boca para tentar quando ele diz:
— Você pode me dar um pouco de água? — Encho um copo plástico e entrego a ele, que se esforça para sentar-se reto, e sinto o cheiro de seu hálito, quente e metálico. — Mas e aí...? — suspira ele, apoiando a cabeça no travesseiro — ...Como vai a Alice?
— Ah, tudo bem. Eu dormi lá uma noite...
— Você tá brincando... Sério? — pergunta com um sorriso sincero. Vira a cabeça no travesseiro e olha para mim. — Então, você está mesmo saindo com ela?
— Bom, estamos indo devagar — digo, meio tímido. — Bem devagar, na verdade, mas, sim, está bom.
— Brian Jackson, seu garanhão...
— Bem, vamos ver... — Sinto que é a hora de fazer a coisa certa, adulta, e respiro fundo. — Alice me contou que você falou bem de mim para ela. Na festa.
— Contou, é? — ele pergunta, sem olhar para mim.
— Eu fui meio babaca com você, não fui?
— Não, não foi...
— Fui, sim, Spencer, um babaca total...
— Bri, você é legal...
— Eu não quero ser um babaca, sabe, mas isso meio que acontece...
— …Vamos esquecer isso, OK?
— Não... Ainda assim...
— Tudo bem, Bri, se é pra deixar você feliz... Sim, você foi um babaca total. Agora, podemos deixar isso de lado?
— Mas como você está se sentindo?
— Em relação a quê?
— …Em relação... a isso tudo?
— No geral, você quer dizer? Não sei. Para ser sincero, estou muito cansado. Cansado, e um pouco assustado, Bri — ele fala bem baixo, preciso me inclinar na cadeira para escutar, e percebo que seus olhos estão vermelhos e úmidos.
Spencer percebe meu olhar e cobre o rosto com as mãos, pressionando os olhos com as pontas dos dedos, solta o ar devagar, e me sinto um garotinho de 12 anos de novo, triste, envergonhado, sem saber o que fazer... Algum ato de bondade, imagino, mas o quê? Talvez dar um abraço nele? Mas não consigo me levantar da cadeira, preocupado com que outras pessoas no hospital vejam a cena. Por isso, continuo parado.
— Mas é normal se sentir assustado, não é? — pergunto. — Com a vida, com essa parte da vida. É o que as pessoas dizem...
— É. Acho que sim...
— Depois melhora...
— Melhora? — quer saber Spencer, os olhos ainda cobertos. — Porque minha impressão é de que estou totalmente fodido, Bri...
— Besteira! Está tudo bem, cara, vai dar tudo certo.
— Estico o braço, ponho a mão no seu ombro e dou um pequeno apertão. O gesto me parece desajeitado e constrangedor, deixando-me inclinado na cadeira com o braço estendido, mas fico assim até o ombro dele parar de tremer. Spencer tira as mãos de cima dos olhos.
— Desculpe... São esses analgésicos — ele se justifica, limpando os olhos com as mangas da camisa.
Pouco tempo depois, o assunto acaba, e, mesmo tendo ainda bastante tempo, eu me levanto e pego o casaco.
— Olha, é melhor eu correr, senão vou perder o último trem.
— Obrigado pela visita, amigo...
— Foi um prazer...
— Bom, não exatamente um prazer...
— É, não, mas você entende...
— Ei, não vai assinar o meu gesso?
— Sim, claro. — Vou até o fim da cama, pego uma caneta de uma das pranchetas e localizo um espaço em branco para escrever. Há muitos melhoras, nomes que não reconheço, um bem-feito, seu idiota e um Zep é o máximo! de Tone. Penso por um instante e escrevo: Querido Spencer, desculpe-me e obrigado. Quebre a perna! Ha-ha-ha! Do seu amigo Bri.
— O que você escreveu?
— Ah... Quebre a perna...
— Quebre a perna...!
— Quer dizer boa sorte. É uma expressão usada no teatro...
Spencer olha para o teto, dá um sorriso apertado e diz, devagar:
— Brian, às vezes você consegue ser inacreditavelmente babaca e idiota.
— É, Spence, eu sei, cara. Eu sei...
PERGUNTA: Que mártir do século III, também identificado como médico e padre romano, morto durante a perseguição aos cristãos pelo Imperador Claudius II Gothicus, ou como Bispo de Terni, também martirizado em Roma, é homenageado desde o século XIV com uma festividade celebrando os apaixonados?
RESPOSTA: São Valentim.
Sempre que escuto Edith Piaf cantando Non, je ne regrette rien — o que acontece mais do que eu gostaria, agora que estou na faculdade — , não consigo deixar de pensar que diabo ela está falando? Eu me arrependo de quase tudo. Estou ciente de que a transição para a vida adulta é difícil, às vezes dolorosa. Conheço as convenções dos ritos de passagem, sei o que significa o termo literário bildungsroman, sei que é inevitável olhar para as coisas que aconteceram na minha infância com um sorriso torto e experiente. Mas será que há razão para eu me sentir envergonhado e constrangido por coisas que aconteceram 30 segundos atrás? Será que existe uma razão para a vida ser esse panorama contínuo de amizades arruinadas, oportunidades perdidas, conversas tolas, dias desperdiçados, comentários idiotas e impensados e piadas sem graça que ficam jogadas no chão à minha frente, contorcendo-se como peixes moribundos?
Bem, não mais. Decido dar um basta. No trem, voltando para casa e pensando na última rodada de cagadas inacreditáveis, resolvo que vou mudar minha vida. De maneira geral, costumo decidir mudar minha vida numa média de, talvez, 30 ou 40 vezes por semana, em geral às 2h da madrugada, bêbado, ou cedo na manhã seguinte, de ressaca, mas, dessa vez, vai acontecer mesmo. Vou começar a viver bem a vida de agora em diante. Já ficou claro que ser Descolado e distante não está funcionando, e é provável que nunca vá funcionar. Por isso, vou me dedicar a uma vida baseada nos princípios centrais de Sabedoria, Bondade e Coragem.
Quando o trem para na estação, começo minha vida mais sábia, bondosa e corajosa. Encontro uma cabine telefônica na plataforma, confiro para ver se tenho uma moeda e disco um número. Des atende. Agora é oficial, não é mais segredo. Então, imagino que não há razão para ele não atender ao telefone.
— Alô?
— Oi! Des, aqui é o Brian! — cumprimento, todo animado, e percebo que, inconscientemente, eu o chamei de Des, não de tio Des, sem muita certeza se isso consiste num sintoma da minha atitude mais madura em relação à vida ou numa reação freudiana ao fato de ele estar transando com a minha mãe.
— Ah! Olá... — responde Des, soando como se tivesse medo de mim, só Deus sabe por que, já que ele pesa muito mais que eu, e, além do mais, eu não poderia bater nele pelo telefone. Há uma pausa, e ele ajusta o fone na orelha. — Desculpe por, bem, pelo episódio dessa manhã. Nós íamos contar a você sobre sua mãe e eu...
— Des, está tudo bem... Mesmo... — asseguro, observando meu reflexo no vidro da cabine telefônica e sorrindo como um palhaço de circo. — Minha mãe está aí? — pergunto. O que é meio bobo, já que é a casa dela.
— Claro! Vou passar para ela. — Ouço um farfalhar, ele coloca a mão sobre o fone e murmura algo; depois, minha mãe atende.
— Alô? — diz com cautela, o fone meio longe da boca.
— Oi, mãe.
— Oi, Brian. Você chegou bem? — pergunta, articulando demais as palavras, o que significa que está embriagada.
— Cheguei — respondo, e faz-se um silêncio que me dá vontade de desligar. Mas, então, me lembro do meu novo lema, Sabedoria, Bondade e Coragem, engulo em seco e começo a falar.
— Olha, oi, eu só queria dizer... — o que eu quero dizer...? — Só queria dizer que pensei a respeito e estou muito, muito feliz por você e o Des, e acho que tudo bem vocês se casarem, sério, acho mesmo. Na verdade, acho que é uma grande ideia. Ele é um cara muito legal e desculpe se... Bem, foi um choque... Só isso...
— Oh, Brian...
— E também não tem problema alugar os quartos. Eu vou até aí no feriado da Páscoa e tiro as minhas coisas. Daí, fica tudo para vocês. Como você disse, no fim das contas, é só um monte de aeromodelos. Então, o que estou dizendo é... o que eu quero dizer é que acho que é uma coisa boa. Estou... feliz por você estar feliz. — Não há resposta do outro lado da linha, só o som da minha mãe respirando, mudando o fone de uma mão para a outra. — Contanto que você não espere que eu o chame de pai... — brinco, do jeito mais leve que consigo.
— É claro que não, Brian... — ela estava prestes a dizer algo, mas muda de ideia.
— Bom, é só isso. Você ainda vem amanhã?
— Claro que vou, eu não perderia por nada no mundo.
— Tem certeza de que pode pagar a passagem de trem e tudo o mais?
— Brian, não se preocupe com isso...
— O ingresso vai estar na porta, no seu nome...
— Ah, e Brian? Tem mais uma coisa... — começam os bipes no telefone, e, mesmo sentindo o peso dos trocados no bolso, percebo que já disse tudo o que tinha a dizer.
— Preciso desligar, mãe. Acabou o dinheiro...
— Brian, preciso perguntar outra coisa...
— Então, fale depressa...
— O Des pode ir também? — e a linha fica muda.
Fico um tempo na cabine, segurando o telefone. O fato é que sempre esperei que meu pai fosse estar lá. Não literalmente, óbvio, pois ele já morreu e tudo o mais, mas, na minha cabeça, eu via meu pai sentado na plateia, ao lado da minha mãe, sorrindo, aplaudindo, os polegares para cima, e minha mãe também deve ter imaginado isso, caso contrário não estaria tão nervosa em me fazer essa pergunta. E, naquele momento, não era o meu pai, mas Des, um cara chamado Des, que eu, na verdade, nem conheço, nem sei se gosto, e...
Pego os trocados do bolso, disco o número e minha mãe atende quase imediatamente.
— Mãe?
— Ah, sim, Brian, eu só ia perguntar...
— Eu ouvi, mãe. É claro que você pode levar o Des.
— Ah. OK!
— Vou arranjar o ingresso amanhã.
— OK, então, Brian. Se você tem certeza...
— Tenho certeza.
— Então, tchau.
— Tchau.
E desligo.
Continuo um pouco mais na cabine telefônica, pensando, bem, é cedo demais para dizer, mas parece que a política de Sabedoria, Bondade e Coragem funcionou muito bem até o momento. Acho que posso até ter feito uma coisa boa, para variar. E, mesmo tendo de ir para casa, escolher o que vestir na gravação, ter uma boa noite de sono e tudo o mais, decido ir ver Alice, porque é Dia dos Namorados, Dia de São Valentim, e, àquela altura, ela já deve ter lido o meu poema.
PERGUNTA: Adam Heyer, Frank Gusenberg, Pete Gusenberg, John May, Al Weinshank e James Clark estavam entre as vítimas de que evento sangrento ocorrido em Chicago em fevereiro de 1929?
RESPOSTA: O Massacre do Dia de São Valentim.
Escute, Alice, eu andei pensando sobre nós, e, bem, tem um grande poema do poeta metafísico John Donne, Três vezes louco, que é assim: ‗Sou duas vezes louco, eu sei,/ Por amar, e por dizê-lo/ em plangente poesia.‘, e acho que, bem, eu tenho me sentindo um pouco assim. O que estou tentando dizer é que andei forçando um pouco a barra, como quando praticamente arrastei você a chutes e gritos para a cabine de fotos, e a poesia ruim no cartão do Dia dos Namorados e tudo o mais. E sei como sua independência é importante pra você, e, por mim, tudo bem, de verdade. Estou apaixonado por você, claro, muito apaixonado, mas isso não é importante, não precisa se interpor entre nós, porque, no fim das contas, acho que nos damos muito bem, que somos bons amigos, almas gêmeas, na verdade. Sem dúvida, eu preferia passar um tempo com você a passar com qualquer outra pessoa no mundo, de verdade, mesmo sabendo que posso ser um completo idiota às vezes. Na maior parte do tempo, aliás, mas não sou completamente estúpido. Sei que você não me ama agora, mas pode amar, não pode. Um dia? Quer dizer... Você pode ir se apaixonando? É possível, acontece, e eu tenho paciência, muita, muita paciência, e não me importo de esperar. Então, o que estou tentando dizer é: vamos esperar para ver. Só esperar e ver no que dá. Não vamos forçar as coisas, vamos só continuar a passar um tempo juntos e nos divertir. E esperar. E ver. OK?
É mais ou menos isso que vou falar para Alice quando a encontrar. Não sei se ela vai deixar passar a citação do John Donne... Estou preocupado que possa soar um pouquinho pretensioso, mas vou ver o que acontece na hora. Vou dizer todas essas coisas, nada mais, e ver como ela reage, mas sem entrar numa discussão grande e pesada. E, então, vou vestir o casaco, ir para casa e dormir umas boas oito horas de sono. E, definitivamente, não vou tentar beijá-la. Mesmo que ela me peça para ficar e fazer amor, ou seja lá o que for, vou dizer não, porque o Desafio é na manhã seguinte. E nós dois temos que estar bem-dispostos. Como lutadores de boxe — nada de sexo antes da luta.
Estou em frente ao quarto dela. Bato na porta.
Sem resposta.
Bato outra vez. Sabedoria, Bondade e Coragem. Sabedoria, Bondade e Coragem...
— Quem é?
— É o Brian.
— Brian! Já é quase meia-noite!
— Eu sei... Desculpe... Eu só queria dizer oi!
Escuto Alice sair da cama, o farfalhar de roupas sendo vestidas, e ela espia pelo vão da porta, com a camiseta do Snoopy e uma calcinha preta.
— Eu estou dormindo, Bri... — diz, esfregando os olhos.
— É mesmo? Oh, meu Deus! Desculpe... É que tive um dia cheio e queria conversar com alguém sobre isso.
— Não dá pra esperar até...
— Com alguém não. Com você.
Ela morde o lábio e passa a mão na camiseta.
— Ah, entre, então — e abre a porta. Entro e me sento na beira da cama desarrumada, quente ao toque na parte em que ela estava dormindo.
— Então... Como foi o Dia dos Namorados?
— Ah, bem, bem...
— Ganhou alguma coisa especial? — pergunto, incisivo. — Pelo correio, hoje de manhã? Ganhou alguma coisa legal? — Queria que ela viesse se sentar ao meu lado.
— Si-iiim, ganhei. Obrigada, Brian, é um poema realmente adorável.
Por que ela não vem e se senta ao meu lado?
— Você acha mesmo? Ufa! Porque eu estava um pouco envergonhado. É a primeira vez que alguém lê algo que escrevi, então...
— Não, eu achei adorável, realmente. Muito... franco. E... puro. Emocionalmente. Bem derivado do e.e. cummings, pensei, bem, não derivado, inspirado, é o que quero dizer. Aliás, acho que reconheci alguns versos... — Espera aí, ela estava me acusando de plágio? — … mas, de qualquer modo, foi mesmo adorável. Obrigada. Fiquei muito... comovida.
— Isso é... Supondo que tenha vindo de mim mesmo! — respondo, alegre. — Que poema? Eu não mandei poema nenhum! — estou tagarelando, eu sei, mas ela sorri, coça o cotovelo e faz uma tenda com a camiseta em cima dos joelhos nus. Tento manter um clima alegre, porém não consigo deixar de notar por cima do ombro dela um grande buquê de rosas vermelhas perfeitas pendendo para o lado, numa enorme panela de alumínio arranhada cheia de água, que ela furtou da cozinha comunitária. Claro que não há razão para ela não receber presente de Dia dos Namorados de outros homens. Eu seria um tolo de não saber que isso iria acontecer, não sou ingênuo, sendo tão linda e popular e sexualmente atraente e tudo o mais, mas aquele buquê é... vulgar. Tão vulgar que é difícil não falar sobre aquilo; por isso, me concentro no meu pequeno poema caseiro, sincero e feito à mão. Mas as rosas continuam lá, imponentes em cima da mesa, fazendo o quarto feder a perfume barato, aquele maldito buquê de malditas rosas vermelhas perfeitas...
— Lindas rosas! — comento.
— Ah, as rosas! — diz ela, virando a cabeça rápido e olhando assustada por cima do ombro, como se, de alguma maneira, elas tivessem brotado atrás dela, como se viessem de Birnam Wood, de Macbeth...
— Alguma ideia... de quem pode ter mandado? — pergunto, de modo casual.
— Não faço a menor ideia! — responde ela. Alguém esnobe e canalha, obviamente. O preço das rosas deve dar a bolsa mensal de um estudante, agora pendendo naquela panela de água. E claro que ela sabe quem mandou, pois de que serve ser tão generoso e se manter anônimo?
— Não tinha algum cartão com elas ou...?
— E isso é da sua conta Brian? — rosna Alice.
— Não. Não, acho que não...
— Desculpe! Desculpe, desculpe, desculpe, desculpe, desculpe... — repete ela, saindo da cadeira e me dando um abraço. Olho para baixo, para suas costas, onde a camiseta levantou, e encosto a mão na pele nua e quente, um pouco acima da calcinha, que parece feita de um material preto translúcido de malha ou renda ou coisa do tipo, e ficamos assim por um tempo, enquanto encaro as rosas na panela.
— Desculpe... — ela sussurra no meu ouvido. — Eu me sinto péssima por surtar com você, mas é que foi um ensaio longo e difícil hoje à noite, e, talvez, eu ainda esteja na personagem... — e vem sentar ao meu lado, rindo, e diz: — Nossa, eu acabei de dizer isso mesmo? Foi, sem sombra de dúvidas, a coisa mais pretensiosa que já falei na vida... — e ficamos os dois sorrindo de novo, e me pergunto se devia tentar um beijo, mas aí me lembrei do meu novo mantra. Sabedoria, Bondade e Coragem.
— Olha, eu preciso mesmo voltar pra a cama, Brian. Amanhã é o grande dia...
— Sim, claro, eu vou... — começo a me levantar, mas me sento de novo. — Mas posso só dizer uma coisa primeiro...?
— Tu-do-bem — fala Alice, meio preocupada, sentando-se ao meu lado.
— Não se preocupe. Não é nada assustador. Eu só queria dizer... — pego a mão dela, respiro fundo e digo: — Alice... Escute, Alice, eu andei pensando sobre nós, e, bem, tem um grande poema do poeta metafísico John Donne, Três vezes louco, que é assim: ‗Sou duas vezes louco, eu sei,/ Por amar, e por dizê-lo/ em plangente poesia.‘, e acho que, bem, eu tenho me sentindo um pouco assim. O que estou querendo dizer é que andei forçando um pouco a barra, como quando praticamente arrastei você a chutes e gritos para a cabine de fotos, a poesia ruim no cartão do Dia dos Namorados e tudo o mais, e sei como sua independência é importante pra você, e, por mim, tudo bem, de verdade. Estou apaixonado por você, claro, muito apaixonado...
— Brian... — interrompe ela.
— …Mas isso não é importante, não precisa se interpor entre nós, porque, no fim das contas, acho que...
— Brian... — ela tenta de novo.
— …Espere, Alice. Deixe só eu terminar...
— …Não, Brian, você precisa parar... — insiste ela, levantando-se e andando até o outro lado do quarto. — Isso não está certo...
— Mas não é o que você acha, Alice...
— Não, desculpe, Brian, eu não aguento mais. Vamos acabar com isso...
O mais estranho é que ela não disse isso para mim. Disse para o guarda-roupa.
— Vamos, Neil, não tem mais graça...
Isso é estranho, penso. Por que ela está chamando o guarda-roupa de Neil? Do que ela chama as gavetas?, eu me pergunto, e ela bate na porta de Neil, o Guarda-Roupa, com a palma da mão aberta, e a porta se abre sozinha, como que por mágica.
Há um homem no guarda-roupa.
Está segurando a calça na mão.
Eu não entendo.
— Brian, este é Neil — apresenta Alice.
Neil se desdobra para fora do guarda-roupa e fica de pé.
— Neil está interpretando Eilert Lövborg em Hedda Gabler.
— Olá, Neil.
— Olá, Brian.
— Nós estávamos... ensaiando — explica Alice.
— Ah... — digo, como se isso explicasse tudo.
Depois, acho que há um cumprimento, com um aperto de mão.