Segunda Rodada

— Ele chama os criados de valetes, esse garoto — disse Estella com desdém antes de acabarmos o primeiro jogo.

CHARLES DICKENS, Grandes esperanças

9

PERGUNTA: George, Anne, Julian, Timmy e Dick são mais conhecidos como...?

RESPOSTA: The Famous Five.


Há três coisas que sempre esperei que fossem acontecer na universidade — a primeira era perder minha virgindade, a segunda era ser chamado para virar espião, a terceira era participar do Desafio Universitário. A primeira delas, a virgindade, voou pela janela duas semanas antes de eu sair de Southend, graças a um amasso bêbado e relutante apoiado numa caçamba de lixo nos fundos do Littlewoods, cortesia de Karen Armstrong. Não há muito a ser dito sobre a experiência, na verdade. A terra não tremeu, mas a caçamba de lixo sim. Depois, houve um debate se havíamos feito certo, o que dá uma ideia da incrível habilidade e da engenhosa destreza da minha técnica de fazer amor. Voltando para casa naquela memorável noite de verão, enquanto aproveitávamos o resto de uma garrafa morna de Merrydown pós-coito, Karen repetiu várias e várias vezes: Não conte para ninguém, não conte para ninguém, não conte para ninguém, como se tivéssemos feito algo realmente, verdadeiramente horrível. O que, de certo modo, acho que nós tínhamos.

Quanto à proposta de me tornar um espião do Governo de Sua Majestade, bem, mesmo deixando de lado minhas reservas ideológicas, tenho certeza de que línguas são importantes para uma carreira em espionagem, e eu só estudei francês para os exames finais. Minhas notas foram ótimas, mas, ainda assim, em termos de espionagem de verdade, isso com certeza limita minha atuação, digamos, a uma escola primária francesa, ou quem sabe, forçando a barra, a uma boulangerie. Cobra Vermelha, aqui é Andorinha Negra. Já tenho os detalhes sobre os horários do ônibus escolar...

O que me deixa com o Desafio, e agora eu consegui estragar isso também. Hoje à noite vai ser a primeira reunião, e precisei usar todo o meu poder de persuasão para conseguir ser convidado. Patrick se recusou a retornar minhas ligações e, quando afinal consegui falar com ele, a resposta que obtive foi que não era necessário que o reserva comparecesse, pois ele tinha certeza de que ninguém seria atropelado. Mas continuei insistindo e insistindo até ele ceder, porque, se eu não estiver lá, não terei chance de ver Alice, a menos que comece a espionar seu alojamento na faculdade.

E não pense que não cogitei isso também. Nos seis dias desde que nos encontramos, não a vi nem uma vez. E estive procurando. Toda vez que vou à biblioteca, eu me vejo fazendo um circuito por todas as mesas ou vagando de maneira suspeita pela seção de Artes Cênicas. Quando vou ao bar com Marcus e Josh, e estou sendo apresentado sem muito entusiasmo para algum novo James ou Hugo ou Jeremy, fico olhando para a porta por cima dos ombros deles para o caso de ela entrar. Nos intervalos das aulas, estou sempre atento, mas não vejo sinal dela, o que sugere que está tendo uma experiência universitária muito diferente da minha. Ou será que ela está saindo com outra pessoa? Talvez já tenha se apaixonado por algum belo canalha com maçãs do rosto proeminentes, um poeta nicaraguense no exílio, um escultor ou coisa assim, e passou essa última semana na cama, bebendo vinhos caros e lendo poesia em voz alta. Não pense nisso! Toque a campainha de novo.

Fico me perguntando se Patrick me deu o endereço errado de propósito, e estou a ponto de ir embora quando escuto alguém trotando escada abaixo.

— Oi! — digo com um sorriso brilhante, quando ele abre a porta.

— Olá, Brian — resmunga ele, dirigindo-se àquele ponto à direita da minha cabeça que ele parece preferir e eu o sigo pela escada até o seu apartamento.

— Então, todo mundo vem hoje à noite? — pergunto inocentemente.

— Acho que sim.

— Você falou com todo mundo?

— Uh-hum.

— Então você falou com Alice?

Ele para na escada, vira e olha para trás.

— Por quê?

— Só curiosidade.

— Não se preocupe. Alice vai estar aqui.

Ele está com seu moletom oficial da universidade de novo, o que me deixa um pouco confuso. Quer dizer, eu meio que entenderia melhor se fosse de Yale ou de Harvard ou coisa assim, pois aí seria uma escolha de estilo. Mas por que anunciar que você está numa universidade para outras pessoas que também estão nessa universidade? Será que tem medo que os outros pensem que ele só está fingindo?

Entramos no apartamento, que é pequeno e simples, lembrando um apartamento-modelo decorado de um lançamento imobiliário. Cheira a cebola e carne moída.

— Eu trouxe um vinho! — digo.

— Eu não bebo — responde ele.

— Ah, tá...

— Imagino que você vai querer um saca-rolhas. Acho que tem um em algum lugar. Você quer chá, ou vai começar direto com o seu álcool?

— Oh, álcool, por favor!

— Tudo bem. Vai entrando. Volto num minuto. Você não fuma, não é?

— Não.

— Porque é estritamente não fumante...

— Tudo bem, mas eu não fumo...

— OK. Bem, é por ali. Não toque em nada! — Por estar no terceiro ano e, obviamente, ter pais com dinheiro, Patrick parece ter organizado sua vida de uma maneira semiadulta: uma boa mobília, não funcional, que deve ser dele, televisão, vídeo, uma sala de estar que não tem uma cama, nem um fogão, nem um chuveiro. Na verdade, ele mal parece um estudante. Tudo está no lugar certo e tudo tem seu lugar, como se fosse a casa de um monge ou de um serial killer meticuloso. Enquanto ele está procurando pelo saca-rolhas, dou uma olhada na sala de estar. Na parede atrás da mesa, está a única decoração do apartamento, o pôster de uma praia com uma série de pegadas desaparecendo no pôr do sol e aquele poema inspirador sobre como Jesus está sempre ao seu lado. Mas é justo ressaltar que, se Jesus estivesse ao lado dele no estúdio de TV no ano passado, talvez ele tivesse conseguido mais do que 65 pontos.

A campainha toca e ouço Patrick se precipitando escada abaixo, e aproveito a oportunidade para examinar as prateleiras: quase só livros de economia, organizados em ordem alfabética, e uma versão da Bíblia Boas Novas. Na prateleira dos vídeos, Monty Python e o Santo Graal e Os irmãos cara de pau revelam o lado descontraído de Patrick Watts.

Mas, ao lado deles, há uma série de mais ou menos 20 fitas de VHS idênticas, uma prateleira de vídeos caseiros com etiquetas brancas muito bem escritas nas lombadas impecáveis. Chego mais perto para ver melhor e deixo escapar um soluço involuntário. Nas etiquetas, está escrito:


03/03/1984 — Newcastle versus Sussex

10/03/1984 — Durham versus Leicester

17/03/1984 — King‘s, Cambridge versus Dundee

23/03/1984 — Sidney Sussex versus Exeter

30/03/1984 — UMIST versus Liverpool

06/04/1984 — Birmingham versus UCL


...e por aí vai: Keele versus Sussex, Manchester versus Sheffield, Open versus Edimburgo. Em cima das fitas vejo um porta-retratos com a frente virada para baixo. A essa altura, estou me sentindo como a personagem de Psicose, mas pego o porta-retratos e, sim, é mesmo uma foto de Patrick apertando a mão de Bamber Gascoigne, e percebo, com um súbito espasmo de horror, que estou no santuário de Patrick, que entrei às cegas no covil de um louco...

— Procurando alguma coisa, Brian?

Eu me viro já procurando uma arma. Patrick está em pé na porta, com Lucy Chang espiando por cima do seu ombro e a mochila de panda de Lucy Chang espiando por cima do ombro dela.

— Só vendo sua foto!

— Tudo bem, mas você poderia pôr de volta exatamente onde estava?

— Sim, sim, é claro...

— Lucy... Chá?

— Sim, sim, obrigada.

Patrick me lança um olhar de “não toque em nada” e volta para a cozinha. Lucy se senta na cadeira de encosto duro na mesa de Patrick, mas bem na pontinha, para não esmagar o panda. Ficamos em silêncio e sorrimos um para o outro e, sem nenhum motivo aparente, ela dá alguns risinhos nervosos. Lucy é muito pequena e arrumadinha. Usa uma blusa branca muito limpa e bem passada, abotoada até o último botão. Não que isso seja importante, mas ela é bem atraente também, apesar de sua testa dar a impressão de que o cabelo está tentando encontrar as sobrancelhas, como uma peruca que escorregou para a frente.

Tento pensar em alguma coisa para dizer. Penso em dizer que o Guinness: o livro dos recordes diz que Chang é oficialmente o nome mais comum do mundo, mas imagino que ela já saiba disso, então eu digo:

— Ei, parabéns pela bela pontuação! Oitenta e nove pontos!

— Ah, obrigada. E parabéns a você, parabéns por...

— ...perder?

— Bem... Sim, acho que sim! — e ri mais uma vez, num tom alto e agudo. — Parabéns por perder!

Também dou risada, por educação, e digo:

— Não tem importância. Erre outra vez, erre melhor!

— Samuel Beckett, certo?

— Exatamente — digo, pego de surpresa.

— O que você está cursando mesmo?

— Ah, estou no segundo ano de medicina — responde, e eu penso: Meu Deus, ela é um gênio. Observo fascinado, enquanto ela luta para se desvencilhar de sua inovadora mochila.

— Gostei do panda — comento.

— Oh... Obrigada!

— Um pequinês, olhando por cima dos seus ombros! Ou eu deveria dizer beijinês olhando por cima dos seus ombros!

Ela olha para mim sem compreender, então eu tento esclarecer.

— Você trouxe esse ursinho da sua casa?

— Como?

— Você trouxe o ursinho da sua casa?

Ela parece confusa.

— Você quer dizer do meu alojamento?

Tenho a sensação de estar caindo.

— Não, do seu, assim... do seu lugar de origem.

— Ah, você quer dizer da China! Por ser um panda, certo? Bem, na verdade, eu sou de Minneapolis. Então, não...

— Sim, mas, originalmente, você é da...

— Minneapolis...

— Mas seus pais, eles são da...

— Minneapolis...

— Mas os pais deles são da...

— Minneapolis...

— É claro, Minneapolis. — Ela sorri para mim com uma delicadeza perfeita e sincera, apesar de eu ser claramente um merda racista e ignorante.

— Do lugar onde o Prince nasceu! — observo, em pânico.

— Exatamente! Onde o Prince nasceu — concorda ela. — Apesar de eu nunca ter conhecido o sujeito.

— Oh! — digo, e tento de novo. — Você já assistiu a Purple Rain?

— Não — responde a garota. — Você... Já... Assistiu... A Purple Rain?

— Já. Duas vezes — respondo.

— Você gostou? — pergunta ela.

— Não muito — respondo.

— E, ainda assim, assistiu duas vezes!

— É... — concordo, e acrescento com humor num bom sotaque americano:

— Vai entender!

Então, graças a Deus, alguém abre a porta e entra o Grande Colin Pagett, carregando quatro garrafas de Newcy Brown e um balde de papelão do Kentucky Fried Chicken. Patrick o recepciona como um mordomo receberia um limpador de chaminés, e, no constrangedor silêncio que se segue, aproveito o tempo para ruminar sobre a complexa arte da conversação. Claro que, num mundo perfeito, gostaria de acordar de manhã com alguém me entregando uma transcrição de tudo o que vou dizer durante o dia, para fazer uma revisão e reescrever meus diálogos, cortar as observações tolas e as piadas vulgares e idiotas. Mas claro que isso não é praticável, e a outra opção, de nunca mais falar nada, também não funciona.

Então, talvez seja melhor pensar numa conversa como atravessar uma rua: antes de abrir a boca, dar um tempo, olhar para os dois lados e considerar com cuidado o que estou prestes a falar. Se isso quer dizer que a minha conversa ficaria um pouco lenta e forçada, como uma ligação telefônica transatlântica, se significa passar um pouco mais de tempo parado no meio-fio da conversa metafórica, olhando para a esquerda e para a direita, que seja, porque está claro que não posso continuar tropeçando a esmo no trânsito. Não posso continuar sendo atropelado desse jeito.

Ainda bem que agora ninguém precisa conversar, pois, enquanto esperamos Alice chegar, Patrick põe uma de suas preciosas fitas de vídeo — a grande etapa final do ano passado, e assistimos de novo à equipe de Dundee vencer, enquanto Patrick balbuciava as respostas e Colin comia seu balde de frango e, por 15 minutos, esses foram os únicos sons: Colin chupando uma coxa de galinha e Patrick resmungando no braço do sofá.

— ...Kafka... Nitrogênio... Mil novecentos e cinquenta e seis... O duodeno... Pergunta capciosa, nenhuma das opções... C.P.E. Bach...

De vez em quando, arrisco uma resposta, ou Colin, com a boca cheia de carne branca.

— Ravel, O inferno, de Dante, Rosa Luxemburgo, Veni, vidi, vici.

Mas Patrick, nitidamente, está marcando território, mostrando quem manda, porque sua voz vai ficando cada vez mais alta...

— ...THE MOODY BLUES ...GOYA ...TIFOIDE. MARY... SÃO TODOS NÚMEROS PRIMOS...

...E, apesar de adorar o programa, não consigo deixar de pensar que talvez ele esteja indo um pouco longe demais...

— ...RENO, RÓDANO, DANÚBIO... MITOCÔNDRIA... PÊNDULO DE FOUCAULT...

...Será que ele aprendeu por repetição? É para achar que ele nunca assistiu àquilo antes, ou é para acreditar que ele sabe mesmo todas aquelas coisas? E o que Lucy Chang acha de tudo isso? Olho de esguelha para o lado e ela está com os olhos fechados. Imagino que talvez esteja chateada, ou envergonhada, com razão, mas, então, noto um leve tremor nos seus ombros e percebo que ela está fazendo força para não rir...

— ...ODE A UMA URNA GREGA... BO DIDDLEY... O MASSACRE DA NOITE DE SÃO BARTOLOMEU... A PONTE AÉREA DE BERLIM...

...E, justamente quando parecia que ela ia explodir, a campainha toca no andar de baixo e Patrick desce, deixando nós três olhando para a televisão. No fim, é Colin quem fala primeiro, numa voz baixa e conspiradora.

— Esse cara é completamente pirado ou é só impressão minha?

Com a chegada de Alice, a atmosfera fica bem mais leve. Ela chega sem fôlego e enrolada num cachecol, casaco e luvas de camurça de esquiar e olha em volta da sala, sorrindo e cumprimentando todo mundo.

— Oi, Bri! — ela diz com entusiasmo, e me dá uma piscadela provocante.

Patrick fica rodeando, importuno, passando a mão naquele cabelo de plástico bege, oferecendo seu lugar e servindo uma taça do Cabernet Sauvignon búlgaro que eu trouxe com um enorme custo pessoal como se fosse dele. Quando Alice pergunta:

— Você se importa se eu fumar?

Ele responde:

— Claro que não!

Como se, de repente, isso fosse uma ótima ideia. Por que ele não pensou nisso antes? Olha ao redor procurando alguma coisa para usar como cinzeiro e localiza um pequeno porta-clipe, que esvazia na mesa com um desapego selvagem e anárquico.

Alice se espreme ao meu lado no sofá, o quadril bem junto ao meu. Patrick limpa a garganta e se dirige à equipe.

— Então, aqui estamos nós! O Quarteto Fantástico! E acho que temos algo especial esse ano...

Espere um segundo — Quarteto Fantástico?

— Só para explicar como as coisas funcionam...

Conto as pessoas na sala; um, dois, três...

— ...o primeiro estágio é nos classificarmos para a competição televisionada...

Por que não dizer Famous Five? Não custava nada ele ter dito Famous Five.

— Isso é daqui a duas semanas e é informal, mas bem difícil. Por isso, vamos precisar de todo nosso conhecimento para ir ao ar. Até lá, proponho que nós quatro nos encontremos aqui toda semana, nessa mesma hora, para repassar algumas questões que vou preparar. Talvez assistir a uma ou duas fitas, só para manter a concentração...

Espere um segundo — por que eu não posso vir? Se eu não vier, não vou poder ver Alice. Levanto a mão para fazer uma pergunta, mas Patrick está pondo uma fita no vídeo e não vê; eu limpo garganta e digo:

— Hã... Patrick...?

— Brian?

— Então, não preciso vir?

— Acho que não...

— De jeito nenhum...?

— Não...

— E você não acha que é uma boa ideia...?

— Bem, só vamos precisar de você em caso de emergência. Acho que é melhor nós quatro nos acostumarmos uns com os outros como uma equipe, já que, como você sabe, nós somos a equipe.

— Então vocês não precisam de mim?

— Não.

— Nem mesmo, sei lá, para fazer observações...?

— Não, Brian, não... — e aperta botão play no vídeo. — Muito bem. Esse é Leeds versus Birkbeck, nas quartas de final de dois anos atrás. Um belo confronto... — ele se senta outra vez no sofá, com Alice espremida entre nós dois, o quadril bem junto ao meu, enquanto eu tento bolar um plano para assassinar Patrick Watts.

10

PERGUNTA: Qual é o significado do lema, em latim, que acompanha o leão rugindo no começo dos filmes da Metro-Goldwyn-Mayer?

RESPOSTA: Ars Gratia Artis — Arte pela arte.


— Bem, pessoalmente, tenho que dizer que simplesmente odeio isso. Quer dizer, a ideia de que seja um grande poema lírico de amor é bobagem. É só o poema de um cara gostosão, imbecil e sexualmente frustrado tentando ir para a cama com a amante e insistindo sobre uma carruagem alada do tempo e não aceitando não como resposta. Não há nada de lírico ou romântico, e tampouco nada de erótico nesse poema. Pelo menos, não para uma mulher — discursa Erin, a amiga de Alice, a garota com olhos de gato e cabelo curto louro e oxigenado. — Na verdade, se um cara me mandasse esse poema ou o recitasse para mim eu chamaria a polícia. Não me espanta que a tal amada seja tão evasiva. O poeta é um misógino total.

— Você acha que Andrew Marvell é misógino? — pergunta o professor Morrison, recostando-se em sua cadeira, os longos dedos da mão entrelaçados em cima da sua barriga.

— Basicamente, sim. Pelo menos, nesse poema, com certeza.

— Então, a voz do poeta e a voz do poema são uma só?

— Porque não deveriam ser? Nada sugere qualquer tipo de dispositivo de distanciamento...

— O que você acha, Brian?

Para ser sincero, estou, na verdade, pensando em Alice. Então, paro por um segundo e esfrego minhas orelhas para ganhar tempo, como se minhas faculdades críticas estivessem por alguma razão nos meus lóbulos e eu precisasse aquecê-los. É só a minha terceira aula, e fui pego na última por fingir ter lido Mansfield Park quando, na verdade, só assisti à metade do primeiro episódio na TV. Então, é melhor me sair melhor agora. Do meu arsenal, seleciono o termo contexto histórico.

— Acho que é mais complicado que isso, em especial se considerarmos o poema no seu contexto histórico...

Erin estala a língua e suspira, como tende a fazer sempre que abro a boca nas aulas. Erin claramente me odeia, mas não sei o motivo, porque estou sempre sorrindo para ela. A não ser que seja esse o motivo. Bem, concentre-se.

— Para começar existe um forte elemento humorístico aqui. O uso da retórica é consciente e, nesse sentido, é um pouco como o soneto 130 de Shakespeare: Não tem olhos solares, meu amor... (muito bom)... Só que aqui a retórica do poeta o faz passar por bobo. O desespero, os extremos a que chega para persuadir a amante a sucumbir faz dele uma figura essencialmente cômica. É a comédia da frustração sexual e da humilhação romântica. É, na verdade, o epônimo amada evasiva, o objeto de sua não requerida paixão, que tem todo o poder no caso...

— Bem, isso foi um monte de bobagens reacionárias e chauvinistas — vocifera Erin, que ficou se remexendo na cadeira o tempo todo, fazendo o assento de vinil ranger de indignação. — A amada evasiva não tem poder, e também não tem nenhuma personalidade, é só uma cifra, um branco, definida apenas por sua beleza e sua relutância em dar para o poeta. E o tom claramente não é cômico, nem lírico, é intimidador, manipulador e opressivo.

Então, Chris, o hippie de mãos sujas, começa a falar e decido deixar Erin usá-lo como seu esparro em meu lugar por enquanto. O professor Morrison me dá um olhar paternal, informando-me que estava concordando comigo o tempo todo. Gosto do professor Morrison. Tenho medo dele também, o que, provavelmente, é a combinação certa para um acadêmico. Ele é meio parecido com David Attenborough, o que também deve ser uma boa coisa num acadêmico. Usa muito veludo cotelê, gravatas tricotadas, é magro feito um palito, tirando a pancinha, que parece uma almofada amarrada debaixo da camisa suja. E sabe ouvir com atenção quando você está falando, a cabeça meio inclinada, com os dedos longos nos lábios, exatamente como os intelectuais na TV.

Enquanto Erin esfola Chris vivo, e o professor Morrison assiste, divago um pouco e olho pela janela para o jardim e volto a pensar em Alice, de novo.

Voltando da aula pela rua principal, vejo a tal Rebecca e os malditos ativistas raivosos com quem ela sempre anda. Estão enfiando panfletos nas mãos de consumidores indiferentes e, por um momento, penso em atravessar a rua. Para ser honesto, estou um pouco na defensiva com ela, em especial depois da nossa última conversa, mas fiz uma promessa a mim mesmo de fazer o maior número possível de novos amigos na faculdade, mesmo que eles deem todas as indicações de não gostarem de mim tanto assim.

— E aí? — interpelo.

— E aí, Rainha da Dança?! Como vai? — responde ela, entregando-me um folheto pedindo para boicotar o Barclays.

— Na verdade, o dinheiro da minha bolsa está em outra gentil e humanitária organização bancária multinacional! — digo, com um brilho incisivo, irônico e satírico no olhar, mas ela não está prestando atenção e já voltou a distribuir panfletos, gritando:

— Lute contra o apartheid! Apoie o boicote. Não compre produtos sul-africanos! Diga não ao apartheid!... — Começo a me sentir um pouco boicotado também, e já estou me afastando quando ela diz, numa voz um pouco mais suave: — E aí, está se adaptando bem?

— Ah, tudo bem. Estou morando com dois Ruperts malditos, mas, fora isso, não é tão ruim... — Dei um ar de guerra de classes para agradar, mas acho que ela não entendeu, pois me olha confusa.

— Os dois se chamam Rupert?

— Não, eles se chamam Marcus e Josh.

— E quem são os Ruperts?

— Ah... Você sabe... Rupert — mas o comentário começou a perder a graça, e me pergunto se não seria melhor me oferecer para ajudar a distribuir os panfletos. Afinal, é uma causa em que acredito, e sigo uma política estrita de não comer frutas sul-africanas, quase tão estrita quanto minha política de não comer frutas. Mas, agora, Rebecca está dobrando os panfletos que sobraram para deixar com os colegas.

— Tudo bem... Estou terminando por hoje. A gente se vê mais tarde, Toby. Até mais, Rupert... — E, de repente, estou caminhando ao lado dela, sem saber muito bem de quem foi a ideia. — Então, para onde vamos agora? — ela pergunta, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de vinil preto.

— Na verdade, estava a caminho da Galeria de Arte.

— Galeria de Arte? — pergunta, intrigada.

— Sim, pensei em, sei lá, dar uma conferida...

Ela torce o nariz:

— Tudo bem. Vamos dar uma conferida! — e continuo andando atrás dela.

Ah, o velho truque de “dar uma conferida” na galeria de arte. Faz tempo que estou querendo tentar esse truque, pois, em Southend, não seria possível, mas ali a galeria é apropriada; atmosfera de biblioteca, bancos de mármore, seguranças cochilando em cadeiras desconfortáveis. Meu plano era trazer Alice, mas é bom fazer antes um teste com outra pessoa, para ensaiar as minhas reações espontâneas.

Admito que minha atitude em relação às artes visuais pode ser bem superficial; por exemplo, muitas vezes o que mais me ocorre é que alguém na pintura parece, mais ou menos, com alguém da TV. Existe também uma certa etiqueta em galerias de arte que preciso entender — quanto tempo ficar de pé na frente de cada quadro, que ruídos emitir, esse tipo de coisa — , mas Rebecca e eu logo entramos num ritmo bom e confortável; não tão rápido a ponto de parecer superficial, não tão lento a ponto de ser entediante.

Estamos dando uma conferida na sala do Século XVIII, parados em frente a uma pintura não particularmente extraordinária de alguém de quem nunca ouvi falar, um Lorde Gainsboroughesque e uma Lady embaixo de uma árvore.

— A perspectiva é interessante — comento, mas falar que os objetos ficam menores quanto mais longe estão me pareceu um pouco básico. Por isso, resolvo fazer uma abordagem mais marxista e sociopolítica.

— Olhe só as expressões deles! Parecem bem satisfeitos com o que têm!

— Se você diz... — responde Rebecca, sem entusiasmo.

— Então, você não é uma amante das artes?

— Claro que sou. Mas não acho que só porque uma coisa foi posta numa grande moldura eu sou obrigada a ficar parada na frente dela por horas esfregando o queixo. Quer dizer, olhe essas coisas... — Mãos ainda enfiadas nos bolsos do casaco, ela gesticula em volta da sala com as asas de morcego de seu casaco — ...Retratos de ricos ociosos inspecionando seus ganhos ilegítimos, imagens enganosas de trabalho rural massacrante, pinturas de porcos limpos e imaculados. Olhe só essa monstruosidade — gesticulando em direção ao nu de uma gorducha de pele macia e rosada recostada numa cadeira reclinável — ...Pornô leve para um mercado de escravos. Onde estão os pelos pubianos, pelo amor de Deus?! Alguma vez na vida você já viu uma mulher nua que fosse assim? — Penso em revelar que nunca vi uma mulher nua, mas não quero estragar minhas credenciais artísticas e fico quieto. — Quer dizer, a quem se destina isso, na verdade?

— Então, você acha que a arte não tem valor intrínseco?

— Não. Só acho que esses valores intrínsecos não existem só porque alguém, em algum lugar, decidiu chamar de arte. Como essas coisas... É o tipo de porcaria que se vê nas paredes de um Clube Conservador provinciano...

— Então, imagino que você queimaria tudo isso se houvesse uma revolução...

— Ah, você tem um belo hábito de reduzir as pessoas a estereótipos...

Sigo-a por uma sala cheia de natureza-morta e resolvo desviar a conversa da política: — Qual é o plural de natureza-morta? É naturezas-mortas ou continua natureza-morta mesmo? — Achei que estava fazendo uma afirmação sofisticada, mas ela não morde a isca.

— Então, qual é a sua posição política? — pergunta.

— Bem, acho que sou meio de esquerda, liberal e humanista.

— Em outras palavras, não é nada...

— Bem, eu não diria isso...

— O que você está cursando mesmo?

— Lit. Ing.

— O que é Liting?

— Literatura inglesa.

— É assim que chamam hoje em dia? E o que o atraiu para Liting, além do fato de você ser um tremendo enrolão?

Decido ignorar o último comentário e ir direto ao meu número.

— Bem, não tinha muita certeza sobre o que fazer. Eu tinha uma boa base de qualificações para escolher e pensei em história, ou arte, ou talvez em uma ciência. Mas o bom da literatura é o fato de abranger todas as outras disciplinas... História, filosofia, política, política sexual, sociologia, psicologia, linguística, ciência. Literatura é a resposta organizada do homem ou da mulher ao mundo ao redor. Então, de certo modo, é natural que essa resposta deveria conter toda uma... — vamos arriscar — ...panóplia de conceitos intelectuais, ideias, questões...

Et cetera, et cetera, et cetera. Para ser sincero, não é a primeira vez que digo essas coisas. Na verdade, usei esse número em todas as minhas entrevistas de universidades, e mesmo não sendo exatamente um Lutaremos nas praias... de Churchill, em geral funciona muito bem com acadêmicos, especialmente se acompanhado, como aqui, de muitas despenteadas de cabelo e gestos enfáticos. Levo o discurso ao seu clímax devastador — ...Assim como o epônimo Hamlet diz para Polônio no Segundo Ato, Cena Dois, que, afinal, é tudo uma questão de palavras, palavras, palavras, o que chamamos literatura é apenas o veículo para o que poderia ser mais bem descrito como o Estudo de... Tudo.

Rebecca ouve aquilo, balança a cabeça.

— Bem, com certeza esse foi o maior monte de bobagens que ouvi nos últimos tempos — comenta, começando a ir embora.

— Você acha mesmo? — pergunto, trotando atrás dela.

— Por que não dizer simplesmente que você quer sentar a bunda em algum lugar e ficar lendo durante três anos? Pelo menos, seria mais honesto. Literatura não pode ensinar tudo, e, mesmo se ensinasse, seria inútil, superficial e pouco prática. Quer dizer, qualquer um que ache que pode aprender alguma coisa prática sobre política, psicologia ou ciência folheando Sob o bosque de leite está falando besteira. Já imaginou alguém dizendo para você: Olha, senhor, seja lá qual for o seu nome, eu vou remover o seu baço e, bem, eu não estudei medicina, mas não se preocupe, porque eu gostei muito de Os documentos póstumos do Club Pickwick...?

— Bem, medicina é um caso especial.

— E política não é? Ou história? Ou direito? Por que não? Porque são mais fáceis? Não merecem uma análise mais rigorosa?

— Então, você não acha que romances, poesias e peças de teatro contribuem para a qualidade e a riqueza da vida?

— Eu não disse isso, disse? Claro que contribuem, mas qualquer música pop de três minutos também, mas ninguém precisa estudar isso durante três anos.

Tenho certeza de que Alexander Pope disse alguma coisa pertinente que iria me ajudar aqui, mas não consigo me lembrar; e considero usar a palavra utilitarismo, mas não sei bem como. Então, eu digo:

— O fato de algo não ser prático não quer dizer que não é útil.

Rebecca torce o nariz e percebo que estou pisando em terreno minado, semanticamente falando. Por isso, decido tomar um rumo diferente e parto para a ofensiva.

— E o que você está cursando, que é tão útil? — pergunto.

— Direito. Segundo ano.

— Direito! Bem... Suponho que direito seja bem útil.

— Espero que sim.

Direito faz sentido. Se eu estivesse num tribunal, definitivamente não iria querer discutir com Rebecca Epstein. Ela iria me ameaçar com seu sotaque de Glasgow, me jogar na cara coisas como “defina seus termos” e “seu argumento é especioso”. Na verdade, também não quero discutir com ela agora. Por isso, paro de falar e nós caminhamos em silêncio pelo museu, com suas urnas de vidro cheias de fósseis, e moedas romanas e antigos implementos agrícolas. Imagino que esse seja meu primeiro gostinho das brigas animadas e intelectuais da vida acadêmica. Tenho minhas discussões com Erin nas aulas, claro, mas aquilo é mais como um cabo de guerra. Só uma questão de quanto a gente consegue aguentar. Com Rebecca, é como se eu estivesse tomado uma facada no olho. Mas é a minha terceira semana, e tenho certeza de que vou melhorar. Sei que, no fundo, sou capaz de aparecer com uma resposta eloquente e incisiva, mesmo que demore uns três ou quatro dias. Enquanto isso, tento mudar de assunto.

— E o que você quer fazer depois? — pergunto.

— Não sei. A gente podia tomar alguma coisa, se você quiser...

— Não... Digo depois da faculdade, quando se formar...

— Quando me formar? Não sei. Algo que faça diferença na vida das pessoas. Não sei se quero entrar numas de ser advogada, mas eu me interesso pelas leis de imigração. O Departamento de Orientação dos Cidadãos faz um bom trabalho. Talvez eu mude para a política ou o jornalismo ou coisa assim, para desbancar esses malditos conservadores. E você?

— Ah, ensinar ou virar acadêmico, talvez. Quem sabe escrever alguma coisa.

— O que você escreve?

— Ah, nada ainda. — Resolvo arriscar um pouco e acrescento: — Só alguns poemas.

— Ah, então é isso! Você é um poeta e eu nem sabia disso. — Dá uma parada e olha para o relógio. — Bom, é melhor eu voltar.

— Onde você mora?

— Kenwood Manor, onde aconteceu aquela festa horrível.

— Ah, no mesmo lugar que a minha amiga Alice?

— A linda e loura Alice?

— Ela é bonita? Não tinha percebido. — Estou experimentando um tipo de humor sarcástico, pós-feminista, mas Rebecca estala a língua em desaprovação, franze a testa e pergunta:

— Como vocês se conheceram?

— Ah, nós estamos no time do Desafio Universitário... — explico, dando de ombros de maneira casual. A gargalhada de Rebecca ecoa nas paredes de pedra do museu.

— Você tá brincando!

— O que tem de engraçado nisso?

— Nada, nada mesmo. Desculpe, eu não tinha ideia de que estava falando com uma personalidade da TV. Só isso. E o que você está tentando provar?

— O que você quer dizer?

— Bem, para participar de um negócio desses, você deve ter algo a provar.

— Eu não tenho nada a provar! É só uma diversão. De qualquer modo, ainda não estamos classificados pro torneio da TV. A seleção começa na semana que vem.

— Torneio, é? Parece uma coisa máscula. Como se precisasse usar uma roupa de proteção ou coisa assim. E que posição você joga? Centroavante? No gol...?

— Na verdade, eu sou o primeiro reserva.

— Ah, então tecnicamente você não está no time.

— Não. Não, acho que não.

— Bem, se quiser que eu quebre o dedinho de alguém, é só falar... — Estamos parados nos degraus da galeria, e já começou a escurecer. — Foi bom falar com você... Desculpe... Esqueci de novo o seu nome.

— Brian. Brian Jackson. Acompanho você até em casa?

— Conheço o caminho. Eu moro lá, lembra? A gente se vê por aí, Jackson — e ao descer os degraus, de repente para e se vira. — Jackson? É claro que você pode estudar o que quiser. A avaliação crítica e o estudo da literatura, ou de qualquer manifestação artística, são coisas muito importantes para uma sociedade decente. Por que você acha que os livros são as primeiras coisas que os fascistas queimam? Você precisa aprender a se defender melhor — e sai trotando pelos degraus para desaparecer na noite.

11


PERGUNTA: Que palavra, de origem alemã, define o prazer obtido com a desgraça dos outros?

RESPOSTA: Shadenfreude.


Hoje, finalmente, tirei a sorte grande pela primeira vez. O Grande Colin Pagett contraiu hepatite.

Fico sabendo no meio de uma aula sobre as Baladas líricas, de Coleridge e Wordsworth. O professor Oliver está falando já há algum tempo, e estou tentando me concentrar, na verdade, preciso me concentrar, mas, na minha cabeça, uma balada lírica é algo como Kate Bush cantando The Man With The Child In His Eyes, e esse é o meu problema central com os românticos, eles não são tão românticos assim. Você imagina que vai ser um monte de poemas de amor que se pode plagiar em cartões do dia dos namorados, mas, de modo geral, é tudo sobre lagos, urnas e coletores de sanguessugas.

Pelo que consegui entender do discurso do professor Oliver, as principais preocupações da mente romântica eram: 1) Natureza; 2) Relação do homem com a natureza; 3) Verdade; e 4) Beleza. Enquanto isso, eu tendo mais para poesias que exploram os temas: a) Meu Deus, você é muito legal; b) Eu tenho uma queda por você, por favor, vamos sair juntos; c) Sair com você é muito, muito legal; e d) Por que você não quer mais sair comigo? É a sensibilidade e o tratamento profundo desses temas que fazem de Shakespeare e Donne os poetas mais impactantes e líricos do cânone inglês. Fico imaginando intitular minha próxima e esclarecedora redação de “Em busca de uma definição de romântico: um estudo comparativo do lírico em Coleridge e Donne”, ou algo assim quando, bem nesse momento, vejo o rosto de Alice Harbinson surgir na porta da sala de aula.

Todo mundo levanta a cabeça, é claro, mas ela está apontando o dedo para mim, mexendo a boca para dizer alguma coisa. Aponto para mim mesmo e ela concorda com a cabeça com um ar grave, depois se abaixa, rabisca alguma coisa num bloco de papel A4 e o pressiona contra o vidro.

Está escrito: “Brian, preciso de você. Urgente”.

Para fazer sexo?, eu me pergunto. Não deve ser, mas ainda assim não tenho opção a não ser ir. Então recolho meus livros e pastas o mais discretamente possível e ando em direção à porta meio agachado. O professor Oliver, aliás a classe toda, olha para mim.

— Desculpe, consulta médica — digo, levando a mão ao peito como que enfatizando que posso cair morto a qualquer momento. O professor Oliver não dá muita importância e volta às suas Baladas líricas, e eu saio de fininho para encontrar Alice no corredor com o rosto vermelho, suada, sem fôlego e maravilhosa.

— Desculpe, desculpe, desculpe, desculpe, desculpe... — diz ela, arquejante.

— Tudo bem, o que aconteceu?

— Nós precisamos de você! Na rodada de classificação, agora à tarde.

— Sério? Mas o Patrick disse para não...

— Colin não vai poder ir. Ele está com hepatite.

— Você está brincando! — Claro que eu não dou um soco no ar ou coisa assim, porque gosto do Colin e realmente fico preocupado com ele, de verdade. Então, faço uma expressão apreensiva e pergunto: — Ele está bem?

— Tudo bem. Não é grave. É hepatite A ou coisa assim. Ele está amarelo fosforescente, mas vai ficar bem, completamente curado. Mas isso quer dizer que você está no time! A partir de agora!

Fazemos uma pequena dança da vitória, nada indecente, e saímos correndo para o Grêmio Estudantil.

Há momentos em que as conquistas humanas parecem ampliar nossa concepção do que é humanamente possível, como as esculturas de Bernini e Michelangelo, as tragédias de Shakespeare ou os quartetos de cordas de Beethoven, por exemplo. Nesta tarde, no bar dos estudantes vazio, por alguma razão que desafia a lógica — destino, sorte, a mão invisível de Deus, um estado de graça —, eu sei praticamente tudo.

— Se a adenina se pareia com a timina, a citosina se pareia com...?

Eu sei.

— Guanina.

— Qual é o nome completo da organização que concede o Oscar?

Eu sei.

— Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

— Resposta certa. O avinhado, o bicudo, o papa-capim e o canário-da-terra comum são variedades da família Silvídea e mais conhecidos como...?

Eu sei.

— Pássaros canoros?

— Resposta certa. Qual é a cantora canadense de música folk cujo verdadeiro nome é Roberta Joan Anderson?

Eu sei.

— Joni Mitchell.

— Resposta certa.

O pessoal do Desafio Universitário mandou para cá um pesquisador chamado Julian, um garoto legal de fala suave, 20 e poucos anos, usando um suéter de gola V e gravata; uma espécie de dublê de Bamber Gascoigne. É um teste comum, com 40 perguntas em 15 minutos, sem árbitros, com direito a consulta, para avaliar se estamos aptos para o torneio televisivo. E nós estamos. Ah, e como estamos! Aliás, eu diria que estamos arrasando.

— Que figura do século XII, rainha consorte da França e da Inglaterra, foi a inspiração para muitos poemas de Bernard de Ventadour, o poeta trovador?

— Eleanor de Aquitaine — respondo.

— Espera, espera... Será que podemos consultar o capitão, por favor? — sussurra Patrick, com indignação. — Brian, como você sabe disso?

Na verdade, eu sei porque Katharine Hepburn fez esse papel num filme duvidoso que sempre passa na TV nas tardes de domingo, mas não conto isso a ele. Só faço que sim com a cabeça e respondo com os olhos arregalados e um ar de sabedoria:

— Sei lá... eu sei.

Como se o absoluto e incrível poder de conquistar o mundo do meu conhecimento geral fosse um enigma até para mim. Cético, Patrick olha para Lucy Chang em busca de uma confirmação, mas ela dá de ombros, e ele diz:

— Eleanor de Aquitaine?

— Resposta certa — confirma Julian.

Sinto um apertãozinho no braço e dou uma olhada à direita. Alice está sorrindo para mim com os olhos arregalados em franca reverência. É a minha nona resposta certa seguida, e me sinto como Jesse Owens deve ter se sentido nas Olimpíadas de Berlim de 1936. Os outros não estão tendo chance nenhuma, nem mesmo Lucy Chang e, de repente, parece que a hepatite de Colin Pagett foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para todo mundo, menos para Colin Pagett, claro, porque parece que eu sei tudo sobre tudo.

— Que paralelo de latitude foi escolhido na Conferência de Postdam de 1945 como uma demarcação aproximada entre as Coreias do Norte e do Sul?

Essa, na verdade, não sei, mas tudo bem, porque temos Lucy Chang.

— Paralelo 38?

— Resposta certa.

E assim por diante: Andaluzia — resposta certa; 1254 — resposta certa; carbonato de cálcio — resposta certa; Ford Madox Ford — resposta certa. Claro que, se isso estivesse acontecendo na televisão, o país inteiro estaria fascinado, os garfos carregados de torta paralisados entre o prato e a boca numa reverência ofegante. Mas não é o caso. Estamos num bar de estudantes vazio que cheira a cigarro e cerveja às 15h de uma terça-feira úmida de novembro e não tem ninguém assistindo, nem mesmo o pessoal da limpeza, sendo que um deles acabou de ligar o aspirador de pó no carpete do bar.

— Hã? Será que dava para...? — murmura Julian.

Patrick se levanta e dá um brado de indignação.

— Com licença! NÓS ESTAMOS TENTANDO FAZER UM TESTE, E É COM TEMPO MARCADO!

— Em alguma hora, tenho de fazer isso! — responde o rapaz da limpeza, continuando a aspirar o pó.

— ESTE HOMEM... — declama Patrick, apontando para Julian como um profeta do Antigo Testamento — ...É UM REPRESENTANTE DO GABINETE DO DESAFIO UNIVERSITÁRIO DE MANCHESTER!

Por algum motivo, isso parece fechar a questão, pois o rapaz da limpeza desliga o aspirador, resmunga alguma coisa e volta a esvaziar os cinzeiros.

De volta ao teste. Tenho medo que o feitiço tenha se quebrado, e que eles neguem nossa inscrição, mas nem precisava me preocupar, pois a pergunta seguinte é sobre o barco funerário anglo-saxão descoberto em Suffolk em 1939, que proporcionou uma grande compreensão dos antigos ritos funerais.

Eu sei.

— Sutton Hoo — respondo.

— Resposta certa.

— Teste Rorschach — respondo.

— Resposta certa.

— Epitélio... — responde Lucy.

— Resposta certa.

— Uganda? — responde Patrick.

— Não, acho que é Zaire... — comento. Patrick me olha com uma carranca por questionar sua autoridade, vira-se para Julian e fala com firmeza:

— Uganda.

— Não, é Zaire... — diz Julian, lançando-me um sorriso de consolo. Acho que percebo um pequeno espasmo no canto do olho do Patrick, mas sou maduro demais para me gabar disso, pois, afinal, o que conta não são as mesquinhas pontuações individuais, Patrick, mas sim o trabalho de equipe, seu cabeçudo...

— O pardal doméstico — respondo.

— Resposta certa.

— A é congruente com B no módulo de M? — sussurra Lucy.

— Resposta certa.

— As Leis do Milho — grita Patrick.

— Resposta certa.

— The Woodlanders, de Thomas Hardy — arrisco.

— Resposta certa.

— Buster Keaton — tenta Alice.

— Não, acho que é Harold Lloyd — corrijo, delicado porém firme.

— OK, Harold Lloyd? — diz Alice.

— Resposta certa. Qual engenheiro aeronáutico morreu em 1937, alguns anos antes de seu projeto mais famoso dominar os céus durante a Batalha da...?

— R. J. Mitchell — respondo.

— O quê? — replica Patrick.

— R. J. Mitchell, o projetista do Spitfire. — Lembro-me do nome de uma sinopse na caixa do kit clássico em escala 1:12 da Airfix e sei que estou certo. É R. J. Mitchell. Tenho certeza. Mas Patrick está me olhando fixo, e franzindo a testa como se estivesse desejando que eu esteja errado com todas as suas forças. — R. J. Mitchell, vai por mim.

— R. J. Mitchell? — diz, relutante.

— Resposta certa — confirma Julian, que agora não consegue mais deixar de sorrir.

Patrick olha para mim com os olhos semicerrados, mas Lucy me dá o sinal de positivo com os polegares e Alice... Bem, Alice escorrega a mão por trás das minhas costas e para na base da coluna, exatamente onde a minha camisa de vovô saiu da minha calça jeans.

— Muito bem! A última pergunta: isolado em 1735 pelo químico sueco Georg Brandt, que metal do Grupo VIII da tabela periódica é usado na produção de ligas metálicas magnéticas resistentes ao calor?

Para ser sincero, meus conhecimentos de tabela periódica estão meio enferrujados, e eu não faço ideia de qual é a resposta, mas tudo bem, pois mais uma vez Lucy Chang sabe.

— Cobalto — responde.

— Resposta certa.

Acabou, e nós caímos para a frente dando tapas nas costas uns dos outros, e, quando Alice me abraça, percebo pela área úmida nas minhas costas que estou suando como um cavalo de corrida.

Mas Julian está pigarreando e dizendo:

— Bem, a pontuação final é 39 de possíveis 40, uma pontuação realmente esplêndida. Por isso, tenho o prazer de comunicar que vocês vão estar na competição do Desafio Universitário deste ano!

E a multidão, se houvesse uma multidão, teria ido à loucura.

Fora do prédio do Grêmio Estudantil, todos nós apertamos a mão do simpático Julian, desejamos uma boa viagem de volta a Manchester. Vamos nos ver no dia 15 de fevereiro, lembranças ao Bamber, ha-ha-ha, e ficamos ali sob a luz do sol do fim de tarde, sem saber o que fazer.

— Então, que tal uma cerveja para comemorar? — proponho entusiasmado, para prolongar a glória.

— O quê? Às 16h? — observa Patrick, indignado, como se eu tivesse convidado todo mundo para uma orgia com heroína na minha casa.

— Não posso, desculpe. Tenho prova amanhã — diz Lucy.

— É melhor eu também não ir — diz Alice, e há um pequeno intervalo, enquanto todos nos perguntamos se ela vai dar alguma desculpa.

Ela não fala mais nada, e eu digo:

— Bom, estou indo na mesma direção. Então, acompanho você.

Começamos a andar enquanto tento pensar em alguma explicação plausível para estar indo na direção errada.

— Ei, parabéns! — diz Alice, no caminho pelo parque que leva ao seu alojamento. — Você foi incrível.

— Ah, obrigado. Você também.

— Ah, sem essa. Eu sou peso morto nesse time. Só me classifiquei porque você me deu as respostas.

— Não, isso não é verdade — observo, mesmo concordando.

— Mas como você sabe todas essas coisas?

— Uma juventude desperdiçada! — respondo, mas ela não entende. Então continuo: — Vamos dizer que eu tenho a capacidade de me lembrar de conhecimento inútil. Só isso.

— Você acha que isso existe? Conhecimento inútil?

— Bem, às vezes, queria não ter aprendido a fazer crochê — digo, e Alice ri. Com certeza, ela acha que estou brincando, o que pode ser melhor. — E letras de canções pop, às vezes, também acho que não precisaria saber tantas...

— Give me spots on my apples but give me the birds and the bees...?

Eu sei. Big Yellow Taxi, de Joni Mitchell — respondo. From Ibiza to the Norfolk Broads…

Eu sei. Life on Mars, David Bowie — respondo.

— Tudo bem. Então, vamos a algo mais recente. She‘s got cheek-bones like geometry and eyes like sin/and she‘s sexually enlightened by Cosmopolitan…

Claro que eu sei a resposta, mas faço uma pequena e envolvente pantomima de não saber antes de responder: Perfect skin, Lloyd Cole and the Commotions?

— Puxa, você é bom meeeeeeesmo — reconhece ela. Depois, pega o meu braço e saímos andando pelo parque enquanto o sol se põe.

— OK, agora é minha vez. Faça o pior que puder...

Penso por um momento, respiro fundo e digo: I saw two shooting stars last night/I wished on them but they were only satellites/It‘s wrong to wish on space hardware/I wish, I wish, I wish you‘d care.

E vejo que consegui me safar. Que, ao menos, ela não vomita em mim bem ali. Sim, sei que eu deveria me envergonhar de mim mesmo, e estou com vergonha, mesmo. Mas ela parece levar na inocência, pensa por um momento e diz:

— Billy Bragg, A New England.

— Na mosca — confirmo.

— É linda, não é?

— Eu acho — e continuamos andando pela alameda arborizada, as lâmpadas dos postes piscando à medida que passamos por elas, tal como a pista de dança iluminada do vídeo Billie Jean. Mas acho que o que mais nos parecemos, neste momento, é com a foto em preto e branco da capa de uma compilação exclusiva da Ronco de quatro discos chamada The Greatest Love Songs Ever anunciada na televisão. Na nossa frente, há uma pilha de folhas recém-caídas, todas castanho-avermelhadas, ocres e douradas, e eu a conduzo na direção da pilha dizendo:

— Ei, vamos chutar umas folhas!

— É melhor não. Às vezes, tem cocô de cachorro nelas — diz ela.

E tenho que admitir que pode estar certa.

Pouco depois, voltamos para Kenwood Manor. Ela andou de braço dado comigo o caminho inteiro, o que deve significar alguma coisa; então, me sentindo encorajado, proponho:

— O que você vai fazer terça-feira que vem?

Apenas um olho altamente experiente como o meu veria o breve momento de pânico que passou pelo semblante de Alice Harbinson, mas estava lá, sim, mesmo que apenas por um momento antes de ela vestir o rosto com uma expressão pensativa e tocar o queixo com o dedo.

— Terça-feira... que vem? Deixa eu pensar... — responde.

Rápido, Alice, pense numa desculpa, rápido garota, vamos, vamos, vamos...

— É que é o meu aniversário de 19 anos, sabe — explico. O grande Um Ponto Nove!... — Faço uma pausa para ela cair na minha armadilha.

— E você vai dar uma festa! Bem, eu adoraria ir...

— Não uma festa. Ainda não conheço tanta gente assim para dar uma festa. Mas, talvez, a gente pudesse sair para... jantar ou coisa assim?

— Só eu e você? — Ela sorri.

Minha expressão estampa um sorriso fixo.

— Só eu e você...

— OK — diz ela, como se fossem duas palavras. — O. Quei. Por que não? Sim! Seria ótimo! Vai ser divertido!

E vai ser ótimo. Ótimo e Divertido. Estou determinado a fazer com que seja tanto Ótimo quanto Divertido.

12

PERGUNTA: Lanugem, folículos e terminais são termos usados para descrever diferentes estágios de desenvolvimento de qual parte do corpo humano?

RESPOSTA: Cabelo.


Hoje é um dia especial, não apenas por ser o meu aniversário de 19 anos, o último ano da minha adolescência e o começo de uma nova fase — mais excitante, adulta e madura — na vida de Brian Jackson, mas é também o dia do meu romântico jantar a dois com Alice Harbinson. E, como um presente especial para mim, Alice e o mundo, decidi mudar completamente a minha imagem.

Para ser sincero, isso já estava para acontecer há algum tempo. Alguns grandes artistas, como David Bowie e Kate Bush, permanecem no topo porque estão sempre mudando de aparência e de atitudes, mas acredito que é justo dizer que, ultimamente, andava preso a um estilo. Não vou fazer nada radical, como começar a usar malha tricotada ou me aplicar heroína e virar bissexual ou coisa assim, mas vou cortar o cabelo. Não, não apenas cortar. Estilizar.

Na verdade, meu cabelo sempre foi um foco de disputa. Assim como usar gel, lavar o rosto e usar sapatos sem cadarços, cortar o cabelo sempre foi considerado um pouco afeminado na Langley Street Comprehensive. O resultado é que até hoje ando com essa coisa sem nome nem forma caindo solta e sem vida nos meus olhos, emaranhando-se de maneira nada higiênica na gola, espetada para os lados por cima das minhas orelhas e fazendo com que a minha cabeça fique igual a um grande sino ou, como diria Tone, a uma maçaneta.

Mas tudo isso vai terminar hoje porque andei de olho no Cutz, um salão unissex — não uma barbearia — que me interessou. É moderno sem ser de vanguarda e bem masculino, e limpo, com revistas como The Face e id para ler, e não aquelas pilhas de Razzle ou Mayfair cheias de orelhas. Falei com um tipo simpático chamado Sean, de cabelo bem curto e brinco e um jeito de garoto, que disse que me atenderia às 10h.

Claro que é acintosamente caro, mas estou com uma nota de cinco libras que a minha mãe mandou pelo correio hoje de manhã (dentro de um cartão com jogadores de futebol na capa dizendo Não gaste tudo de uma vez!) e outra da vovó Jackson, para gastar no jantar romântico a dois hoje à noite. Então, estou me sentindo bem classe alta e riquinho quando entro devagar e indiferente no Cutz, e sou o primeiro cliente do dia. Ando até o pequeno grupo de funcionários reunido na mesa da recepção tomando café e fumando Silk Cut.

— Cliente das 10h? Com o Sean? Em nome de Jackson?

Todos erguem o olhar e examinam minhas roupas e meu cabelo. Depois, abaixam a cabeça com um jeito de melhor não se envolver, menos a recepcionista, que vai verificar a agenda. Mas não estou vendo Sean. Onde está meu novo amigo Sean?

— Sean não veio hoje — diz a recepcionista.

— Ah, sei...

— Mas Nicky pode cortar o seu cabelo. Ele é o aprendiz, tudo bem?

Sigo o olhar dela até o canto, onde um garoto magricela está varrendo o resto das pontas de cabelo da noite anterior sem muito entusiasmo. Esse é o Nicky? Ele parece ter 6 anos.

— Aprendiz? — pergunto.

— É a mesma coisa que Sean. Só que um pouco mais barato — flauteia a recepcionista, mas até ela sabe que é um risco.

Sabe nos filmes faroeste, quando a gangue entra num bordel e o cowboy chefe tem de escolher a prostituta de que mais gostar? Sempre tem uma muito sensual, com uma pintinha linda, muito mais atraente que todas as outras, que são gordas, magrelas ou velhas, ou têm uma perna de pau, uma verruga no lábio ou um olho de vidro, e é claro que o cowboy sempre escolhe a mais bonita. Bem, eu sempre me preocupei com os sentimentos das outras prostitutas. Sei que prostituição é uma coisa errada, mas o jeito resignado e desapontado com que as prostitutas rejeitadas dão de ombros, enquanto voltam para os seus lugares, mostra bem que, embora seja melhor não fazer sexo por dinheiro com um cowboy estranho, ainda assim seria bom ter sido escolhida. E é esse olhar que Nicky, o aprendiz, está me dando. Não posso rejeitar Nicky, pois ele é a prostituta com a perna de pau.

— Acho que Nicky vai ser ótimo! — digo num trinado, e o rapaz dá de ombros, encosta a vassoura, pega as tesouras e se prepara para me atender.

Eles me preparam um bom café numa espécie de jarro de sucção e nós entramos no que se chamaria de uma consulta. É complicado para mim, pois não conheço o vocabulário. Pensei em trazer uma foto para ajudar, mas se aparecesse com uma foto do David Bowie, do Sting ou do Harrison Ford iam rir da minha cara.

— O que vai ser? O de sempre?

— Eu não sei. O que é o de sempre?

— Curto atrás e nos lados.

Não, isso não pode estar certo. Soa muito antiquado.

— Na verdade, estava pensando em manter um pouco do comprimento em cima com um leve repartido na esquerda, e meio que penteado para trás, mais curto em cima das orelhas e na nuca.

— Raspado na nuca?

— Só um pouco.

— Como em Desejo e poder?

— Não! — respondo dando risada, querendo dizer que sim.

— Então, de que jeito?

Seja maneiro.

— Hummmm...

— ...Porque o que você acabou de descrever é um curto atrás e nos lados.

— Ah, é? Tudo bem. Então, um curto atrás e nos lados.

— Vai querer lavar? — pergunta ele, pegando com nojo uma mecha entre os dedos, como se fosse um lenço sujo.

Será que vai custar mais caro?

— Não, não, não. Acho que assim está bom, obrigado.

— Você é estudante?

— Sou!

— Foi o que pensei.

E, então, começa. Na verdade, o jovem Nicky é bem habilidoso com a tesoura, considerando que a última que usou era de plástico e sem ponta, e ele começa a cortar com um certo entusiasmo enquanto Purple Rain toca alto no som. Enquanto isso, leio The Face e finjo que entendo o que estou lendo, que não estou preocupado com meu cabelo, ah, não, de maneira alguma, mesmo que Nicky seja um aprendiz. Aprendiz do quê? Aprendiz de encanador? Aprendiz de eletricista? Aprendiz de torneiro mecânico? Estou lendo um artigo sobre skate sem prestar atenção, pois só fico olhando para os modelos nas fotos publicitárias, magricelas e andrógenos, sem camisa e em languidez pós-coito, e todos sorriem com escárnio, como se rissem do que Nicky está fazendo com o meu cabelo, e agora é a vez do barbeador elétrico e ele está tosando a minha nuca. Aprendiz de tosquiador? Levanto os olhos da revista, olho para o espelho e parece... Muito bom, na verdade. Limpo e fresquinho, estruturado e, no entanto, natural. Gostei. Acho até que este pode ser o melhor para mim, o corte de cabelo perfeito, o corte de cabelo pelo qual estive esperando por toda a minha vida. Nicky, sinto muito por ter duvidado de você...

Mas ele continua cortando. Como quando você faz uma ótima pintura na escola e o professor fala pare agora, senão você vai estragar tudo — Nicky está arruinando o meu corte! Raspa grandes faixas de cabelo em cima das minhas orelhas. Está tosando tanto a nuca que o cabelo mais longo no alto parece um aplique. Aprendiz de jardineiro? Aprendiz de açougueiro? Sinto vontade de estender a mão e puxar o cabo de força da parede, mas não consigo, e volto a ler a The Face, alguma coisa sobre dançar break nos shopping centers de Basigstoke, esperando o zumbido parar.

O que, afinal, acontece.

— Gel ou cera? — pergunta ele.

Meu Deus! Gel ou cera? Sei lá! Qual será a melhor opção? Nunca usei cera. Então, digo cera e ele abre um pequeno pote de graxa e esfrega o que parece banha nas mãos e passa os dedos pelo que sobrou do meu cabelo.

Está claro que isso não tem nada a ver com Desejo e poder. Eu sou o Winston Smith de 1984. Parecendo um coelho tosado. Magro, os olhos esbugalhados, tísico e um pouco doido. Nicky pega um espelho e me mostra a nuca, onde o barbeador elétrico descobriu uma paisagem marciana de cicatrizes e bolhas que eu nem sabia que existiam até agora, e uma está sangrando levemente.

— O que você acha? — pergunta Nicky.

— Perfeito! — respondo.

Agora que já arruinei o meu cabelo, chegou a hora de escolher um restaurante para o jantar romântico a dois. Mais uma vez, ninguém ensina como escolher um restaurante, e eu nunca estive num bom restaurante com uma convidada. Só em cafés e restaurantes chineses, com Spence e Tone, nos quais, em geral, a refeição não terminava com conhaque e um bom charuto, mas com Tone gritando Pinote! Então, preciso trabalhar com instinto, não com experiência, mas me atenho a algumas regras básicas.

Primeiro, nada de curry, para o caso de as coisas ficarem românticas. Também porque não pega nada bem abanar a boca em frente ao objeto de sua devoção dizendo: Puxa, como é ardido! Segundo, evitar restaurantes em grandes lojas de departamento ou supermercados. Uma vez, levei Janet Parks para um lanche rápido no Basildon British Home Stores e acho que as coisas não correram muito bem. De modo geral, é melhor não ter que levar o prato até a mesa numa bandeja; lembre-se: garçonetes não são um luxo. Terceiro, não se exibir. Impulsivamente, disse a Alice que iríamos ao Bradley‘s Bistro, que é bem chique, mas, quando consultei o menu, vi que estava fora do meu orçamento. Então, vamos ter de ir a algum lugar que combine culinária sofisticada com o melhor custo-benefício. Mesmo levando em conta as cinco libras da vovó Jackson, tenho só doze libras para um jantar a dois, incluindo vinho, dois pratos principais e uma sobremesa com duas colheres.

Andando pela cidade, não paro de ver o reflexo do meu novo corte de cabelo nas vitrines dos restaurantes, um rosto assombrado e com medo. Essa cera de cabelo é uma enganação. Eles fazem pensar que você vai se sentir no controle, mas só fez grudar minha franja na testa, como uma gaivota suja de óleo. Talvez fique melhor à luz de velas. Desde que não entre em combustão.

Avalio os restaurantes na parte mais floreada da cidade e, enfim, tomo minha decisão: uma tradicional trattoria italiana chamada Luigi‘s Pizza Plaza. O estabelecimento também serve hambúrguer, costela e iscas de peixe, e tem toalhas xadrez vermelhas e velas em garrafas de vinho parecendo o Vesúvio congelado. Os pãezinhos são cortesia da casa e há um moedor de pimenta gigante em cada mesa. Reservo uma mesa para dois em nome de Jackson, 20h30, com um homem de rosto vermelho e unhas sujas que pode ou não ser o epônimo Luigi e volto aos meus afazeres.

13

PERGUNTA: Uma sarja azul durável cujo nome homenageia Serge de Nimes; a seiva exsudada pela árvore hevea brasiliensis; e filamentos tecidos pelo gênero Bombyx. Quais os nomes dos três materiais?

RESPOSTA: Denim, borracha e seda.


Eu deveria estar escrevendo uma redação sobre Imagética da natureza nos sonetos sagrados de John Donne, mas já estou pesquisando há uma semana e não consegui encontrar nada.

Minhas anotações nas margens também não ajudam muito. Escrevi coisas como a Anunciação!, ironia?, Cf. Freud e aqui ele vira a mesa!, mas não consigo me lembrar do motivo. Por isso, pego Gramatologia, de Jacques Derrida. Acho que existem seis estágios de leitura de livros. O primeiro é o de livros ilustrados. Depois, livros com mais ilustrações do que palavras; livros com mais palavras do que ilustrações; livros sem ilustrações, só talvez um mapa ou uma árvore genealógica, mas com muitos diálogos; depois, livros com longos parágrafos e quase nenhum diálogo e, por fim, livros sem diálogos, sem narrativa, só de parágrafos grandes e longos com notas de rodapé, bibliografias, apêndices e letras muito, muito pequenas. Gramatologia é, com certeza, um livro do sexto tipo e, intelectualmente falando, ainda estou empacado em algum lugar entre os estágios quatro e cinco. Leio a primeira frase, procuro inutilmente por um mapa, uma foto ou ilustração, e caio no sono.

Quando acordo, percebo que são 16h30 e que só tenho três horas para me arrumar para o jantar. Quando vou ao banheiro, vejo que Josh deixou um monte de calças jeans de molho em detergente na banheira. Tenho de tirar as roupas do caldo azul gelado e amontoar tudo na pia antes de abrir as torneiras, mas só quando entro no banho percebo que não escoei todo o sabão em pó e que estou num ciclo de lavagem de algodão não biológico/poliéster. Por isso, o banho não é bem a experiência relaxante que eu esperava, inclusive por ter de me enxaguar com água fria do chuveiro, para evitar uma queimadura química mais grave. Olhando no espelho, noto que fiquei ligeiramente azul.

Devolvo as calças jeans molhadas para a banheira e, num justo espírito de vingança, vou até o quarto de Josh. Quando constato que ele não está lá, entro de fininho e roubo seu esfoliante facial Apri, que é feito, basicamente, de sementes de pêssego moídas num sabonete para passar no rosto. Consigo uma boa espuma, mas, quando chega a hora do enxágue, os resultados não são muito bons. Parece que atravessei uma vidraça. Ou isso ou que alguém esfregou sementes de pêssego moídas na minha cara com muita força. Há uma lição a ser aprendida aqui, acho, e é a seguinte: espinhas não devem ser esfregadas.

Com o rosto todo contraído e com medo de que comece a sangrar caso eu sorria, volto ao meu quarto, onde meu futon está encostado na parede, secando. Guardo minha roupa suja e tenho o maior cuidado para escolher quais livros deixar espalhados, no caso de Alice voltar comigo para um café ou, o mais provável, só para tomar um café. Escolho O Manifesto Comunista, Suave é a noite, As baladas líricas, The female eunuch, alguns e.e. cummings e Canções e sonetos, de John Donne, para o caso de as coisas esquentarem e eu precisar de uma poesia lírica ao alcance da mão. Fico em dúvida quanto ao The female eunuch, pois, mesmo querendo mostrar que minhas posições políticas são progressivas e radicais, a ilustração na capa de um torso feminino imaterial sempre me pareceu um pouco sensual, tanto que eu costumava esconder o livro da minha mãe.

Visto uma cueca preta novinha, minha melhor calça preta, um novo paletó de segunda mão comprado na loja de roupas vintage Olden Times, minha melhor camisa branca, uma gravata-borboleta e meu novo suspensório preto. Ajeito a gaivota morta na cabeça e borrifo no rosto um pouco de Old Spice, de um frasco de porcelana branca que era do meu pai, o que me confere um cheiro um pouco antigo e apimentado e arde à beça. Depois, procuro na carteira a camisinha que sempre carrego para o caso de um milagre. Aliás, essa camisinha é a número dois num projeto de trilogia, e a primeira encontrou seu pungente destino numa caçamba de lixo nos fundos do Littlewoods. Mora na minha carteira há tanto tempo que está grudada no revestimento interno e a embalagem de papel alumínio já começou a desbotar. Mesmo assim, gosto de estar com ela, assim como algumas pessoas gostam de usar uma medalha de São Cristóvão. Aliás, minhas chances de usar essa camisinha essa noite é a mesma de transportar o menino Jesus por um rio.

No trajeto até Kenwood Manor, tenho de parar, mais ou menos, a cada 100 metros, porque meus suspensórios se recusam a ficar presos na calça e insistem em se soltar e ricochetear nos meus mamilos.

Estou arrumando o suspensório pela vigésima vez, quando uma voz atrás de mim diz:

— Alguém roubou seu ursinho de pelúcia, Sebastian?

— Oi, Rebecca, como vai?

— Bem, na verdade a pergunta é: como vai você?

— Como assim?

— O que aconteceu com seu cabelo?

— Você não gostou?

— Ficou parecido com o Heinrich Himmler. E por que essa roupa toda chique?

— Bem, é como dizem... O traje faz o homem...

— ...se sentir desconfortável?

— Se quer mesmo saber, estou indo jantar com alguém.

— Huuuuuuuuum!

— É só uma coisa platônica.

— E quem é a garota de sorte? Não é aquela Alice Harbinson, espero... — Olho para o céu com um ar inocente. — Ah, não acredito. Vocês garotos são tããão previsíveis. Sério, se você quer brincar de boneca, por que não vai e compra uma?

— O quê?

— Nada. Ei, é melhor você ir andando, Jackson, senão vai perder o barco.

— O que você quer dizer com isso?

— Que ela é uma garota muito popular. Só isso. Estamos na mesma ala, e toda noite tem uma fila de boçais babando na porta dela, com suas garrafas de Lambrusco morno...

— Sério?

— Uh-hum. E ela tem o hábito de andar pelo corredor só de calcinha preta e sutiã. Só não sei dizer quem se beneficia desse espetáculo...

Tiro a imagem da minha cabeça.

— Você fala como se não gostasse dela.

— Ei, eu mal a conheço... Nem estou no nível da turma dela, não é? Além do mais, acho que ela não é o que se pode chamar de um exemplo de garota, se me entende. Não sei que tipo de atração pode exercer uma menina que ainda desenha uma carinha feliz no meio da letra O. Mas é só minha opinião. E aonde você vai levar a adorável Alice?

— Ah, num restaurante na cidade. O Luigi‘s.

— O KFC estava lotado?

— Você acha que o Luigi‘s é uma má ideia?

— De jeito nenhum. Você é um cavalheiro sofisticado e de bom gosto! Ouvi dizer que o hambúrguer com queijo, chilli e cebola frita é de matar. Talvez você me leve lá algum dia, Jackson.

Ela sai andando na frente e eu tento pensar em alguma coisa espirituosa para dizer.

— Rebecca — chamo. Ela se vira sorrindo. — Por que você sempre me chama de Jackson?

— Você se incomoda?

— Não. É que soa um pouco formal, só isso.

— Ah, desculpe. Não tive essa intenção. Você prefere Brian? Ou Bri, mais alegre e informal? Ou Herr Himmler, talvez...?

— Brian, acho.

— OK, então vai ser Brian. Divirta-se, Brian. Seja espirituoso, Brian. Fique frio, Brian... — E desaparece na alameda. — A gente se vê por aí, Brian.

Chego ao alojamento de Alice meio que esperando ver uma fila de garotos, mas a porta está fechada. Ouço vozes no lado de dentro. Não encosto o ouvido na porta porque isso não seria certo, mas fico por perto tentando ouvir.

— Aonde ele vai levar você para jantar? — pergunta uma voz feminina, graças a Deus.

— Ao Bradley‘s, muito chique.

— Então ele é rico?

— Não sei. Não pensei que fosse — responde Alice.

— Bem, trate de estar de volta até as 23h, mocinha, senão vamos chamar a polícia... — Bato na porta, pois não quero ouvir mais nada. Daí, escuto uns sussurros e risadinhas e ela aparece.

Alice está usando um vestido de noite decotado de cetim grafite com uma saia armada, o cabelo preso num coque. E, de salto alto, ela parece uns 60cm maior que o normal. Também está usando mais maquiagem do que o normal, batom, a linha da pequena cicatriz ainda visível no lábio inferior. Mas o mais impressionante de tudo é o vestido decotado. Ela deve estar usando algum tipo de sutiã sem alças por baixo, pois os ombros estão nus, como se metade do corpo estivesse sendo expelida do vestido, com uma fantástica e reverberante curva de pele nua, de Alice nua, transbordando do corpete de cetim. Em um romance do século XIX, alguém diria que ela tem um colo magnífico. Aliás, também diria isso agora. Ela tem um colo magnífico. Mas você a está encarando. Não a encare, Brian.

— Oi, Alice.

— Oi, Brian.

Atrás dela, Erin, a Gata, e uma outra da turma sorriem com desdém. Feche a boca, Brian.

— Você está muito bonito, Bri — diz Erin, sem sinceridade.

— Obrigado! Então, vamos?

— Vamos.

Ela pega o meu braço e saímos.

14

PERGUNTA: Consistindo em uma cadeia de átomos de carbono, ligada por átomos de hidrogênio e uma ramificação de carboxila numa ponta, o ácido oleico é o exemplo mais difundido de que tipo de componente lipídico?

RESPOSTA: Ácido graxo.


Politicamente, é claro que não aprovo o conceito de beleza física. A ideia de que alguém, homem ou mulher, deva receber qualquer tipo de atenção ou afeição extras, popularidade, respeito ou adulação por conta de um incidente genético e uma noção arbitrária e subjetiva de beleza definida pela mídia masculina me parece inerentemente errada e inaceitável.

Dito isso, Alice é... linda. À luz de velas, parece uma pintura de De la Tour. Ou será de Vermeer? Ou Watteau? Ela sabe que está sendo observada enquanto abre o menu, e deve saber que está encantadora, mas como deve ser isso? Ser observada, em vez de ser olhada de relance, e proporcionar prazer, de maneira inteiramente passiva, ao ser observada? Mas, enquanto a observo, ocorre-me que não é bem um prazer, é mais uma dor, uma vibração pesada e opaca na boca do estômago de que a gente quer se livrar, mas não consegue, pois é grande a tentação de continuar olhando, de observar e absorver.

Desde que a conheci, vi muitas pessoas olhando fixamente para Alice desse jeito. Vi Patrick fazer isso, arrumando o cabelo com sua grande língua de astronauta para fora, vejo Luigi, o garçom, fazer isso ao tirar o xale dos ombros dela e nos levar até a nossa mesa, antes de entrar pelas portas vaivém da cozinha para espalhar a notícia, fazendo o chef e o lavador de pratos saírem com alguma desculpa esfarrapada só para olhar para ela. Como deve ser isso? Ser admirado antes de dizer uma única palavra, ser desejado 200 ou 300 vezes por dia por pessoas que não têm absolutamente ideia de como você é?

Quando minha mãe está assistindo à TV, é comum ela elogiar alguma mulher, uma estrela de cinema ou algo assim, dizendo ela é linda..., e logo depois, em sua voz de Antigo Testamento: ...e sabe disso. Não sei se ser bonita e saber disso é melhor ou pior do que ser feia e saber disso, e imagino que a beleza física seja uma espécie de fardo, mas, em termos de fardo, deve ser dos mais leves.

Por cima do menu, dou uma olhada no retângulo cor de pêssego formado por seu decote à luz das velas, mas estou disfarçando para ela não se sentir como um objeto.

— Muito bom, não é? — comenta.

Suponho que esteja falando do restaurante e digo:

— É? Espero que sim. — Estou tendo de falar baixo, porque somos as únicas pessoas no lugar, e não quero ofender o Luigi, que está ocupado enxugando taças de vinho engorduradas no bar coberto de hera de plástico e olhando de esguelha. Parece que reservar uma mesa não era tão essencial quanto eu pensava. — Eu tentei uma reserva no Bradley‘s, mas estava lotado — minto.

— Sem problema. Aqui está ótimo!

— Tem pizza e massa, e no verso tem hambúrgueres...

— Ah, é... — diz ela, desgrudando as páginas plastificadas de uma pasta tamanho A4.

— Ou costeletas especiais, se preferir...

— Oooo-quei!

— E vamos pedir uma entrada também, a coisa toda, por minha conta.

— Bem, vamos ver...

E voltamos ao menu.

Oh, Deus!

Silêncio.

Melhor dizer alguma coisa.

— Hummmm. Esse pão está bonito.

Pego um pedaço de pão, retiro a tampa de uma embalagem de manteiga e passo no miolo.

— Sabe que sempre me perguntei o que significam costeletas especiais? Quem decide que são especiais? Não o porco, claro! Como se o porco dissesse: Ei, essas costeletas são especiais. Podem pegar! Minhas costeletas especiais! Podem comer minhas costeletas especiais! — Ela me dá um sorriso destinado a crianças carentes e olha para a minha mão, e percebo que, por algum motivo, estou gesticulando com a faca.

Fique calmo.

Pare de tagarelar.

Coloque... a faca... na mesa.

Mas a verdade é que estou começando a perder a fé no Luigi‘s como um lugar propício para um romance. O piso, eu me dou conta, é de linóleo, de parede a parede, e não muito limpo, e as toalhas de mesa xadrez são, na verdade, de vinil, mais fáceis de limpar. Além disso, o cantinho romântico que Luigi nos destinou na parte de trás é muito perto do banheiro, o que é até conveniente, mas confere um leve aroma amargo de desinfetante de limão à noite. É angustiante pensar que Alice esteja se sentindo desconfortável. Já está até começando a parecer desconfortável, com o vestido de noite amontoado à sua volta, como se estivesse sendo consumida pelo traje.

— Vamos pedir?

— Tudo parece tão bom! — diz ela, mas não tenho certeza.

Concentramo-nos no menu, que está pegajoso, mal digitado e escrito errado. Chilly Concarny... É isso mesmo? E dividido em De entrada!, O Evento Principal! e Vá em frente...!!!. Sinceramente, para mim tudo parece muito bom, com ênfase nas carnes grelhadas e bem fritas e quase nenhum vegetal. Até o queijo vem bem frito, e as porções são grandes, pois o menu diz o peso das carnes. Mas não consigo deixar de pensar que, talvez, Alice prefira pratos mais leves, tofu, saladas e coisas cozidas no vapor, e pode até pertencer àquela turma que prefere qualidade à quantidade. Começo a transpirar. E a me coçar também, por conta do detergente na banheira. Olho para baixo e vejo que os punhos da minha camisa branca estão manchados do jeans.

O jingle do Cornetto não para de tocar ao fundo e, depois de um silêncio proposital, estamos prontos. Olho ao redor procurando Luigi, mas detecto sua aproximação pelo barulho de sucção que seus sapatos fazem no linóleo. Alice pede cogumelos recheados e uma pizza margarita com salada, enquanto eu vou de arenque e meio frango com molho barbecue, batata frita e molho relish.

— Espero que não seja a metade inferior do frango! — comento, e Alice sorri, bem sutilmente, e insiste em que eu escolha o vinho. Eles servem o vinho da casa, mas até eu sei que nenhum vinho pode ser tão barato. Por isso, decido por alguma coisa engarrafada e borbulhante. Champanhe é caro demais, então escolho um Lambrusco. Rebecca não disse alguma coisa sobre Alice gostar de Lambrusco? Não entendo muito de vinhos, mas sei que peixe e frango são acompanhados por vinho branco, então peço um Lambrusco Bianco branco.

Quando o garçom se afasta, eu falo:

— Oh Deus, que gafe!

— Por quê?

— Eu pedi um Lambrusco Bianco branco, mas é claro que bianco quer dizer branco! É uma tautologia, não? Admito que não é uma piada digna de um humorístico de TV, mas serve para quebrar o gelo; ela sorri e começamos a conversar. Ou melhor, ela começa, enquanto eu escuto balançando a cabeça, arrancando pedacinhos de parafina vermelha da vela e aplicando-os em ângulos estranhos enquanto olho para ela. Como faz com frequência, Alice fala sobre seus tempos de colégio na Linden Lodge, um dos internatos particulares mais caros do país, mas tudo me parece mais um grande barato do que um internato, algo como uma guerra de travesseiros quando a gente tem 7 anos de idade. Pela descrição de Alice, um típico dia escolar em Linden Lodge era assim:


8:30/9:30 Fumar baseado. Fazer pão.

9:30/10:30 Fazer sexo com o filho/a filha de Alguém Famoso.

10:30/11:30 Construir celeiro.

11:30/12:30 Ler T. S. Eliot em voz alta, escutar Crosby,

Stills e Nash, tocar violoncelo.

12:30/13:30 Experimentar drogas, fazer sexo.

13:30/15:30 Sessão dupla de nadar pelado. Nadar com golfinhos.

15:30/16:30 Construir muretas de pedra. Sexo (opcional).

16:30/17:30 Aulas de violão.

17:30/18:30 Fazer sexo, desenhar o parceiro dormindo com carvão. 18:30/4:00 Bob Dylan (obrigatório).

4:00 Hora de dormir, mas só se você quiser.


Claro que, do ponto de vista político, não aprovo uma escola assim, por mais fantástica que pareça. Com tanto sexo e maconha e intermináveis cantorias das músicas de Simon e Garfunkel, é de se pensar que não dá para estudar nada, mas alguma coisa certa eles devem estar fazendo, pois, afinal, Alice está aqui e, mesmo sem querer saber suas notas, não num primeiro encontro, ela está numa faculdade, ainda que seja em Artes Cênicas. Talvez seja possível se educar subliminarmente ouvindo bastante a BBC desde pequeno.

Meu arenque chega, umas 30 coisinhas prateadas sobre uma folha gigante de alface, olhando para mim e dizendo nós morremos por você, seu canalha, pelo menos faça alguma coisa divertida! Ponho um pedaço na boca e finjo ser um gato. O gesto é recebido com moderação. Ela volta aos cogumelos com alho.

— Está bom?

— Muito bom! Com bastante alho. Nada de namoro essa noite!

É um aviso sutil, como uma buzina no ouvido, para o caso de eu estar esperando alguma coisa. Mas não chega a me surpreender. É mais ou menos o que eu estava esperando, e me consolo por ser um aviso ambíguo, sim, uma pequena ambiguidade, não por você, Brian são os cogumelos, o que implica que, se tivesse escolhido outra entrada, o Camembert bem frito por exemplo, a essa altura nós já estaríamos fazendo amor.

— Então, você teve muitos namorados por lá? — pergunto casualmente, mordiscando um peixe.

— Oh, só um ou dois — e ela começa a contar tudo sobre eles.

Do ponto de vista de políticas de gênero, acho muito importante não ter dois pesos e duas medidas na avaliação do histórico sexual de homens e mulheres. Claro que não existe motivo por que Alice Harbinson não possa ter um passado romântico e sexualmente ativo, mas acho justo dizer que um ou dois é um pouco enganoso. Quando chega o prato principal, os nomes já estão começando a se embaralhar, mas com certeza havia alguém chamado Rufus, cujo pai é um famoso diretor de cinema, que teve de se mudar para Los Angeles porque o romance se tornou muito intenso e sombrio, seja lá o que isso quer dizer. E Alexis, o pescador grego que conheceu nas férias, que continuou aparecendo na casa dela em Londres pedindo sua mão em casamento até que foi necessário chamar a polícia e deportar o pretendente. E Joseph, um músico de jazz lindo com quem teve de terminar porque ele queria convencê-la a usar heroína. E Tony, um ceramista amigo de seu pai que fazia estatuetas incríveis num belo chalé nas Terras Altas da Escócia e era muito bom de cama para um cara de 62 anos, mas depois não parava de telefonar no meio da noite e acabou tentando se suicidar no forno de cerâmica, mas que já está bem.

E Saul, um modelo americano lindo e rico com um (sussurrando) pênis enorme, mas não se pode manter um relacionamento baseado em sexo, mesmo que seja em um sexo incrivelmente bom. E, então, o mais triste de todos, o Sr. Shillabeer, o professor de inglês que a ensinou a gostar de T. S. Eliot e que uma vez fez uma garota ter um orgasmo só de ler Os quatro quartetos em voz alta, que se apaixonou por Alice enquanto estavam lendo As bruxas de Salem, mas ficou um pouco obsessivo.

— Ele acabou tendo um ataque de nervos e precisou deixar a escola. Voltou a morar com os pais. Em Wolverhampton. Uma coisa triste, mesmo, pois era um professor de inglês muito legal.

Quando ela termina, metade do meu frango ao molho já virou carcaça, e os restos no meu prato parecem um dos ex-amores de Alice. Quase todos os seus relacionamentos terminaram em loucura, obsessão e devastação, e, de repente, minha aventura com Karen Armstrong na caçamba de lixo nos fundos do Littlewoods parece ter perdido um pouco de sua grandeza trágica.

— É estranho quantos terminaram tragicamente, não? — insinuo.

— Eu sei! É esquisito, não? Tony, o ceramista amigo do meu pai, o cara do forno, uma vez me disse que, quando se trata de amor, eu sou como Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse!

— Mas você nunca acabou, sabe... se machucando?

— Claro que sim, Brian. É por isso que eu não vou ter nenhum relacionamento aqui na faculdade. Vou me concentrar no trabalho. — E acrescenta, com um sotaque inexplicavelmente americano: — Vou ser uma freira!

E lá vem de novo a buzina. Casualmente, ela raspa o queijo derretido de sua pizza com o indicador.

— Mas, desculpe... O que a sua mãe e seu pai fazem mesmo? Eu esqueci... — diz, chupando o dedo.

— Minha mãe trabalha no Woolworths e meu pai já morreu.

Põe o guardanapo até a boca e engole.

— Você não me contou isso...

— Não?

— Não, tenho certeza. — Leva a mão ao meu braço. — Brian, eu sinto muito.

— Ah, tudo bem, isso foi há 6... não, 7 anos agora, eu tinha 12 anos.

— O que aconteceu?

— Ataque cardíaco.

— Oh, Deus! Quantos anos ele tinha?

— Quarenta e um.

— Deve ter sido terrível.

— É, bem... Você sabe...

E ela se debruça, olhos arregalados, segurando minha mão, enquanto, com a outra mão, pega a garrafa de parafina derretida e a posiciona para me ver melhor.

— Você se incomoda de falar sobre isso?

— Não, de maneira alguma — respondo, e começo a falar.

15


PERGUNTA: Lee J. Cobb, Fredric March e Dustin Hoffman... Todos interpretaram o papel do infeliz Willy Loman em qual peça de Arthur Miller, de 1949?

RESPOSTA: A morte do caixeiro-viajante.


— Meu pai era vendedor de vidro isolante, o que é uma profissão esquisita, pois é um trabalho que as pessoas gostam de ironizar, como guarda de trânsito, inspetor de impostos ou trabalhadores de esgotos. Talvez porque, no fundo, ninguém goste de vidro isolante. Meu pai não gostava, não depois de anos nesse trabalho. Antes disso, ele serviu o exército, quando conheceu a minha mãe e eu nasci. Entrou no Serviço Nacional, foi um dos últimos a fazer isso, e meio que gostou e continuou, inclusive por não saber mais o que fazer. Lembro-me de ficar apreensivo toda vez que o noticiário falava de alguma guerra em algum lugar, como a tensão com a Rússia, ou quando a Irlanda do Norte estava em chamas ou coisa assim, preocupando-me com que ele fosse convocado, colocado num uniforme e recebesse uma arma. Mas acho que ele não era um soldado, estava mais na parte burocrática. Mas, quando nasci, minha mãe bateu o pé e disse que ele tinha de sair do exército, porque ela estava de saco cheio de ficar se mudando o tempo todo, que odiava a Alemanha Oriental, onde eu nasci. Então, ele voltou para Southend e montou o negócio de vidro isolante, e foi assim que aconteceu.

— E ele gostava?

— Claro que não. Quer dizer, devia gostar no começo, mas acho que, depois, não aguentava mais. São muitas horas de trabalho. Você precisa encontrar as pessoas em casa... O que significa de manhã cedinho, à tarde e à noite, e, em geral, já estava escuro quando ele voltava do trabalho, mesmo no verão. E tinha essa coisa de ir de porta em porta: Com licença, senhora, você está ciente da grande diferença que um vidro isolante pode fazer na sua conta do aquecedor?, esse tipo de coisa. E só ganhava comissão, o que fazia a preocupação com dinheiro ser algo constante. Seja qual for trabalho que eu acabe fazendo, não quero jamais depender de comissão. Sei que deveria ser um incentivo, mas é um incentivo para foder a sua vida. É como trabalhar com uma arma na cabeça. É muito cruel, acho. Bem. Desculpe. Estou sendo chato.

De qualquer maneira, ele detestava. Nunca me disse isso, claro, não é coisa que se diga a um garotinho, mas devia detestar, pois sempre chegava irritado do trabalho; sem gritos ou socos ou coisa assim, mas sempre aquela atitude calada, punhos cerrados, os dedos crispados e o rosto vermelho, irritado com qualquer coisinha como um brinquedo jogado no chão ou desperdício de comida. A gente gostaria que as lembranças dos pais fossem de ser carregado nos ombros em piqueniques e jogar pedrinhas de cima de pontes, essas coisas, mas nenhuma infância é perfeita e o que eu mais me lembro é do meu pai discutindo com minha mãe na cozinha por causa de dinheiro ou trabalho ou sei lá o que, o rosto dele todo vermelho, abrindo e fechando os punhos.

— Que coisa terrível.

— É mesmo? Bem, eu devo estar exagerando um pouco. O que mais me lembro é de assistir televisão com ele, quando minha mãe deixava eu ficar acordado até ele chegar em casa. Sentado no chão entre as pernas dele. Programas de perguntas e respostas. Ele adorava programas de perguntas e documentários sobre a natureza, David Attenborough, coisas educacionais, sempre falando de como a educação era importante. Imagino que achava ser a chave para uma vida boa, para não ser infeliz, poder trabalhar em algo que não odiasse.

— Mas... como foi que aconteceu...?

— Bem, eu não sei ao certo. Não gosto de falar com minha mãe sobre isso porque ela fica perturbada, mas parece que ele estava trabalhando na casa de um cliente, falando sobre os benefícios do vidro isolante ou sei lá e... caiu. Bem ali, na sala de estar. Voltei da escola e estava assistindo à TV, enquanto minha mãe fazia um chá, quando bateram na porta. Houve uma conversa no corredor, eu saí para saber o que estava acontecendo e vi dois policiais e minha mãe encolhida no carpete. No começo, achei que talvez meu pai tivesse sido preso ou coisa assim, mas aí uma policial disse que o estado dele era grave e correram com a minha mãe para o hospital e eu fiquei com a vizinha e ele morreu pouco depois de dar entrada. Ah, o vinho acabou. Você quer mais um pouco? Outra garrafa? Fiquei com os vizinhos e eles me contaram na manhã seguinte. Outra garrafa de Lambrusco, por favor. Não, ainda não escolhemos a sobremesa. Pode esperar mais uns cinco minutos?

E é isso. Olhando para trás, não me surpreende, apesar de ter só 41 anos, porque ele parecia ter um... nó apertado, o tempo todo. E bebia, muito, pub na hora do almoço e depois do trabalho, ele sempre rescendia a cerveja. E fumava uns 60 cigarros por dia. Eu dava cigarros para ele de presente de Natal. Acho que não me lembro de nenhuma vez em que ele não estivesse fumando. Até na foto com a minha mãe e eu na maternidade ele está com um cigarro aceso. Num hospital, com um cinzeiro e uma garrafa de cerveja equilibrada no meu berço. É patético.

— E como você reagiu?

— À morte dele? Hã... Não sei bem. Foi estranho, acho. Quer dizer, eu chorei e tudo mais, mas não queriam me deixar ir à escola, o que me preocupou, porque eu não gostava de perder aula, e aí você pode ter uma ideia do tipo de nerd frio e esquisito que eu era. Para ser sincero, eu estava mais chateado pela minha mãe, porque ela realmente amava o meu pai e tinha só, o que, 33 anos na época, e ele foi o único homem da vida dela, antes e desde então, até onde sei, e ela ficou muito abalada. Ah, ela ficava bem quando havia pessoas em volta, e claro que, nas duas primeiras semanas, a casa ficou lotada de religiosos, amigos do meu pai, vizinhos, minha avó, tias e tios, e não havia tempo para minha mãe ficar muito triste, porque estava sempre ocupada fazendo sanduíches e preparando bules de chá, montando camas de armar para uns primos estranhos da Irlanda, que nunca tínhamos visto e nunca mais vimos. Mas, depois de algumas semanas, começaram a ir embora e ficamos só eu e minha mãe. E esse foi o pior período, quando as coisas se acalmaram e as pessoas nos deixaram sozinhos. Uma combinação bem esquisita: um garoto adolescente e a mãe. Quer dizer, fica muito claro que está faltando alguém.

Olhando para trás, acho que eu poderia ter sido melhor com a minha mãe, conversado mais com ela e coisas assim. Mas eu detestava ficar naquela sala todas as noites, vendo ela assistir Dallas ou sei lá o que e, de repente, explodir em lágrimas. Quando a gente tem essa idade, esse tipo de coisa, o sofrimento, é... constrangedor. O que eu podia fazer? Dar um abraço nela? Dizer alguma coisa? O que um garoto de 12 anos tem a dizer? Então, de uma maneira estranha e terrível, comecei a ficar ressentindo com aquilo. Comecei a evitar minha mãe. Eu ia da escola para a biblioteca e da biblioteca para o meu quarto para fazer o dever de casa, e eu sempre tinha lições demais se ela me perguntasse. Que coisa terrível!

— Como se comportaram na escola?

— Ah, tudo bem. Garotos de 12 anos não sabem nada sobre compaixão, não na minha escola, e por que deveriam saber? Alguns tentaram, mas dava para ver que era encenação. E também, e eu me envergonho disso, na época não era tão importante o fato de o meu pai ter morrido aos 41 anos, nem os sentimentos da minha mãe. Eu só pensava no que iria acontecer comigo. Qual é a palavra? Solipsismo ou solecismo ou coisa assim? Solecismo.

Mas acho que isso acabou chamando atenção para mim, de uma maneira meio terrível; uma espécie de glória piegas, o garoto do pai que morreu. Sabe, muitas garotas que nunca tinham falado comigo antes vinham me oferecer um chocolate e passar a mão nas minhas costas... E teve um pouco de bullying, é claro. Alguns garotos tirando sarro da minha cara me chamando de desabrigado, esse tipo de coisa, o que nem era inteligente, porque eu ainda tinha minha mãe. Mas aí eu fiz um amigo, o Spencer, que, por alguma razão, resolveu tomar conta de mim, e isso ajudou. As pessoas tinham medo do Spencer. E com toda a razão, porque ele é um cara durão, o Spencer...

— Você tem uma foto dele?

— Do Spencer? Ah, do meu pai. Não, não na carteira. Por quê? Você acha que eu deveria ter?

— Não necessariamente.

— Em casa, eu tenho. Se você quiser me visitar... Não precisa ser hoje, mas qualquer dia desses...

— E você pensa nele?

— Ah, sim, é claro. O tempo todo. Mas é difícil, pois, na verdade, a gente nunca se conheceu muito bem. Pelo menos, não como dois adultos.

— Tenho certeza de que ele gostaria muito de você.

— Você acha?

— É claro. Você não?

— Não tenho certeza. Acho que ele me acharia um pouco estranho, para ser sincero.

— Ele se sentiria orgulhoso.

— Por quê?

— Por muitas razões. Pela universidade. Por ser a estrela do time que vai participar do programa na TV e tudo o mais...

— Pode ser. A única coisa em que ainda penso, e não sei por que, pois não é racional, já que, tecnicamente, não é culpa deles, mas eu gostaria de conhecer os empregadores do meu pai, as pessoas que ficavam com todo o dinheiro e faziam ele trabalhar daquele jeito, porque acho que são uns filhos da puta. Desculpe o palavrão. Nem sei o nome deles ou onde estão agora. Talvez em alguma puta mansão na região de Algarve ou coisa assim, e nem sei o que eu diria se os encontrasse, porque eles não fizeram nada de errado, estavam só tocando um negócio, ganhando dinheiro, e, afinal, meu pai poderia ter saído do emprego se odiava tanto assim, montado na sua moto e procurado outra coisa, mesmo que fosse uma floricultura ou uma carreira de professor primário ou coisa assim, não foi um caso de negligência criminal, acidente numa mina ou num barco ou coisa assim. Era só um vendedor, mas não é certo alguém odiar tanto o trabalho desse jeito, e acho que as pessoas que faziam ele trabalhar daquela maneira, bem... acho que são uns filhos da puta e odeio todos eles, todos os dias, onde quer que estejam, por me tirarem... Bom, deixa pra lá... Aliás, você me dá licença um minuto? Eu preciso ir ao toalete.

16

PERGUNTA: O ducto e a glândula lacrimais são os principais responsáveis pela produção e pela distribuição do quê?

RESPOSTA: Lágrimas.


No fim, acho que foi uma bênção termos ficado tão perto do banheiro.

Estou aqui já há algum tempo. Talvez tempo demais. Não quero que ela pense que estou com diarreia ou coisa assim, mas também não quero que me veja chorar. Como técnica de sedução, o choro incontrolável está, definitivamente, ultrapassado. Agora, ela vai achar que sou um daqueles garotos que choram. Provavelmente, está ao lado da porta, balançando a cabeça, pagando a conta e correndo para contar tudo isso a Erin: Meu Deus! Você não acredita a noite que eu tive. Ele é um daqueles caras que choram...

Ouço baterem na porta do cubículo e imagino que seja Luigi, vendo se não fugi pela porta de incêndio, mas eis que surge uma voz...

— Brian, tudo bem?

— Ah, oi, Alice!

— Tudo bem com você

— Ah, sim, tudo bem.

— Não quer abrir a porta, querido?

Oh, Deus, ela quer entrar no banheiro comigo!

— Abra a porta, meu bem...

— Está tudo bem. Falo com você num minuto. — Espera aí... Querido ?

— Tudo bem. Mas você vai voltar logo para mim, não vai?

— Dois minutos — grito, e quando ela está saindo: — Pode ir pedindo a sobremesa, se quiser!

E ela sai. Espero um momento, depois saio do cubículo e me olho no espelho. Não é tão ruim quanto eu imaginava: os olhos estão um pouco vermelhos, mas o nariz parou de escorrer. Então, ajeito a gravata-borboleta, ajeito a franja no lugar, abotoo o suspensório e volto para a mesa de cabeça baixa para Luigi não me ver. Quando me aproximo, Alice se levanta e me dá um abraço bem apertado, a bochecha encostada na minha. Fico sem saber o que fazer, então retribuo o abraço, inclinando para a frente a fim de deixar espaço para o vestido de baile armado, uma das mãos no cetim grafite e a outra nas suas costas, suas lindas costas, a carne salta um pouquinho do cetim, e ela sussurra no meu ouvido:

— Você é um cara adorável.

E eu acho que vou chorar de novo, não porque sou um cara adorável, mas porque eu sou um puta de um imbecil, um tremendo babaca. Então, fecho os olhos bem apertados e ficamos assim por um tempo. Quando abro os olhos, vejo Luigi me observando, piscando, com os dois polegares para cima. Não sei exatamente como reagir a isso e retorno o sinal com os polegares, e, imediatamente, me sinto desprezível, porque não entendo bem por que estou com os polegares para cima.

Claro que, depois de algum tempo, meu suspensório se solta e Alice interrompe o abraço, sorri para mim, o tipo do sorriso pesaroso que as mães dão para crianças chorando nos comerciais da TV. Começo a me sentir bem desconfortável agora, então digo:

— Desculpe por tudo isso. Em geral, só começo a chorar bem mais tarde da noite.

— Vamos embora?

Mas eu ainda não quero ir embora.

— Você não quer sobremesa? Um café ou outra coisa?

— Não, não.

— Acho que eles servem profiteroles. Que tal um chocolate...?

— Não, sério, eu estou cheia — e, de algum lugar nas dobras do vestido, ela tira a menor bolsa do mundo e começa a abrir.

— Ei, você é minha convidada — digo.

Aí, pago a conta, que, afinal, foi bem razoável, graças a eu ter surtado em vez de pedir a sobremesa, e saímos.

No caminho de volta para o alojamento, mudamos de assunto e conversamos sobre livros, como nós dois odiamos D. H. Lawrence e quais são nossos Thomas Hardy preferidos. Eu fico com Judas, o obscuro, e ela com Longe da multidão. É uma noite agradável de fim de novembro e as ruas estão úmidas, apesar de não ter chovido. Alice sugere que a gente volte por uma rota pitoresca e subimos o morro que tem vista para a cidade, um pouco ofegantes por causa do exercício e da conversa que nunca para. O ruído dos carros nas ruas fica lá embaixo e o único barulho além das nossas vozes é o vento nas árvores e o som farfalhante do vestido de cetim de Alice. Na metade da subida do morro, ela desliza o braço pelo meu, dá um pequeno aperto e descansa a cabeça no meu ombro. A última pessoa a me dar o braço dessa maneira foi minha mãe, no caminho para casa depois de assistir ao meu Jesus em Godspell. Claro que mamãe tinha acabado de me ver ser crucificado, o que sempre tem algum efeito emocional em uma mãe, mas lembro que, assim mesmo, isso me fez sentir um

pouco estranho, meio orgulhoso, meio envergonhado, como se eu fosse o seu soldadinho ou coisa assim. O braço de Alice pegando no meu não me deixa menos constrangido, como se fosse algo saído de uma novela de época, mas é legal, eu me sinto quente e uns 5cm mais alto.

No alto do morro, sentamo-nos em um banco, e ela se aninha com a cintura bem junto à minha e ficamos juntinhos na beirada, e não ligo de sentir a umidade passando pela minha calça e saber que vai ficar suja de musgo. Na verdade, eu poderia ficar ali para sempre, olhando a cidade lá embaixo, o desenho sinuoso das luzes da estrada na paisagem.

— Acabo de perceber que ainda não dei os parabéns para você.

— Ah, tudo bem...

— Feliz aniversário, mesmo assim...

— Obrigado, para você também.

— Só que hoje não é meu aniversário — corrige Alice.

— Não, é claro que não. Desculpe.

— Também não dei um presente a você...

— Tudo bem. Esta noite já foi um presente.

Paramos de falar e eu penso em apontar algumas constelações, como fazem nos filmes. Aprendi todas elas de cor só para uma ocasião como essa, mas está muito nublado. Então, me pergunto se está escuro o suficiente para tentar um beijo, ou se ela está bêbada o suficiente para deixar.

— Brian, o que você vai fazer no Natal?

— Hã, não sei...

— Não quer passar com a gente?

— Onde?

— Comigo.

— Em Londres?

— Não, nós temos um pequeno chalé em Suffolk. Você pode conhecer Rose e Michael.

— Quem são Rose e Michael?

— Meus pais!

— Certo! Bem, eu adoraria, mas não posso deixar minha mãe sozinha...

— É claro que não, mas você pode vir depois do Natal, no fim de semana seguinte. Os meus pais estão sempre na deles. Então seríamos só nós dois a maior parte do tempo. — Ela pensa que eu preciso ser convencido a aceitar. — Podemos passear, ler, conversar, essas coisas...

— Combinado — respondo.

— Fantástico! Então, estamos combinados. Mas, agora, estou com frio. Vamos para casa.

Já passa da meia-noite quando chegamos ao alojamento dela, mas ainda há algumas pessoas andando pelos corredores com piso de madeira, os nerds, os insones e os drogados. Todos dizem Oi, Alice e olham para mim como se não acreditassem, mas eu não estou nem aí Estou ocupado pensando em como me despedir, a mecânica da coisa. Já na porta ela diz:

— É melhor eu ir direto para cama, tenho aula amanhã às 9h15.

— OK. Do quê...?

— Stanislavski e Brecht, O grande debate.

— Tudo bem, mas eles não são assim tão diferentes em tantos aspectos. Ainda que alguns considerem que suas filosofias são mutuamente exclu...

— Brian, eu preciso mesmo ir dormir.

— OK. Bem, obrigado por aceitar sair comigo.

— Brian, eu não aceitei. Eu quis sair com você — diz ela, inclinando-se para a frente num gesto rápido e dando um beijo bem perto da minha orelha.

É tudo muito rápido, como o bote de uma serpente, e meus reflexos não reagem a tempo. Por isso, só consigo estalar os lábios alto demais no ouvido dela e a porta se fecha.

E, mais uma vez, estou andando pelo cascalho no meu caminho para casa. Mas, enfim, deu tudo certo. Acho que foi legal. Fui convidado para um chalé. Parece que agora ela me acha interessante, mesmo que interessante não fosse bem o que eu estava querendo. Continuo me sentindo um pouco desconfortável com as razões pelas quais isso aconteceu, mas mesmo assim...

— Ei, Jackson!

Olho ao redor.

— Desculpe, eu quis dizer Brian. Brian, aqui em cima... — é Rebecca, debruçada na janela do primeiro andar, com uma longa camiseta preta e pronta para dormir.

— Como foram as coisas, garoto apaixonado?

— Ah, tudo bem.

— Então, o amor está no ar?

— Não amor. Gostar.

— O gostar está no ar. Achei mesmo que sim. Foi o que senti. Como se estivesse no ar. Muito bem, Brian. Fique firme, companheiro.

No caminho para casa, passo num posto 24 horas e me dou de presente um chocolate e uma latinha de Lilt com o dinheiro que economizei por ter me debulhado em lágrimas. São quase 2h da manhã quando chego a Richmond House. Há três avisos escritos à mão colados na porta...

19h30 Brian, sua mãe ligou. 22h45 Spencer ligou. Disse que está morrendo de tédio e vai ficar no posto de gasolina a noite inteira. Ligue para ele.

Brian, por favor não use o meu Apri sem me pedir antes.

17

PERGUNTA: O que Dorothy Gale precisa fazer para voltar para o Kansas?

RESPOSTA: Bater os saltos dos sapatos três vezes pensando “Não existe melhor lugar do que a nossa casa”.


Minha mãe ainda não havia chegado do Woolworths quando entrei em casa. Então, resolvi preparar uma caneca de chá, pular no sofá, pegar uma caneta e, metodicamente, anotar na contracapa da Radio Times o que iria assistir na televisão no Natal. Estou supercansado, o que, infelizmente, se deve mais à cerveja caseira de Josh e Marcus do que a qualquer fervor acadêmico. As últimas semanas do semestre passaram num borrão de festas com pouca gente, na casa de estranhos, e em competições de quem bebe mais na cozinha com os amigos de Josh e Marcus. Eram uns caras fortões e esportistas e umas meninas bronzeadas do time de lacrosse, todas com as golas levantadas, todas fazendo francês, todas da mesma cidade e todas com o mesmo cabelo louro puxado para trás. Inventei uma piada muito boa sobre esse tipo de garota e o lugar de onde elas vêm, Surrey, mas infelizmente não tenho a quem contar.

Não sei o que elas aprenderam nessas escolas particulares, mas, certamente, sabem beber. Sinto como se estivesse envenenado, cinzento, malnutrido e estou feliz de estar em casa, deitar no sofá, assistir à televisão. Não está passando nada de bom essa tarde, só um faroeste, e meus olhos vagueiam até minha foto de escola em cima da TV, tirada pouco antes de o meu pai morrer. Existe alguma coisa mais triste do que uma antiga foto de escola? Dizem que a câmera deixa a gente dez quilos mais gordo, mas essa parece que só aumentou as minhas espinhas. Estou parecendo um homem da Idade Média, vítima da peste, todo pegajoso e cheio de bolhas, e me pergunto como minha mãe aguenta ver a minha cara amarrada sempre que tenta olhar para a TV.

A foto me deprime tanto que desligo a televisão e vou até a cozinha colocar a chaleira no fogo e fazer mais chá. Enquanto a água ferve, fico observando o quintal pela janela, um espaço obscuro do tamanho de uma caixa de sapato que minha mãe mandou cimentar quando meu pai morreu, para não dar trabalho. Faço o chá e subo com as malas para o meu quarto. Minha mãe desligou o aquecedor para economizar energia, o quarto está um gelo, e me deito na cama vestido e fico olhando para o teto. Por alguma razão, a cama parece menor, como se fosse de criança, assim como o quarto todo. Sabe lá Deus por que, já que não cheguei a crescer, mas, depois de três meses, o quarto já parece o de outra pessoa. Tudo o que restou foram as coisas da infância, as pilhas de gibis, os fósseis no batente da janela, anúncios de hotéis, aeromodelos cobertos de pelo e poeira pendurados no teto, antigas camisetas da escola no armário. Me sinto um pouco triste e começo a pensar em Alice, e, depois de um tempo, caio no sono.

Faz muito tempo que não conversamos. As reuniões da equipe do Desafio pararam faz duas semanas, e, desde a ocasião, ela parece ter sido engolida por sua panelinha, uma gangue barulhenta de lindos garotos e garotas descolados que vivia no bar da escola ou dirigindo pela cidade. Eram uns sete ou oito espremidos num Citröen 2CV amarelo berrante esfumaçado, dando risada, tomando vinho tinto direto do gargalo e ouvindo Jimi Hendrix. Depois, voltavam para o belo apartamento de alguém para usar drogas estranhas e fazer sexo uns com os outros. Na verdade, o mais próximo que cheguei de Alice foi no bar da escola algumas noites atrás. Cheguei perto e falei: E aí?. E o pessoal respondeu E aí?, todos alegres e sorridentes, mas, infelizmente, não havia cadeira na mesa para eu me sentar com eles. Além disso, Alice precisava virar o pescoço para falar comigo, e há um limite de tempo para ficar à parte num grupo como esse, antes de pressentir que deveria mesmo era tirar as garrafas vazias da mesa. Claro que sinto desprezo por panelinhas de descolados convencidos e privilegiados desse tipo, mas, infelizmente, isso não me impede de querer ser um deles.

Mas consegui falar o suficiente para Alice confirmar que a viagem para o chalé estava de pé. Não preciso levar nada, a não ser um monte de livros e um suéter. Na realidade, ela riu de mim quando perguntei se não precisava levar uma toalha.

— Temos muitas toalhas — ela explicou, e pensei, sim, claro que têm. — Mal posso esperar — emendou.

— Mal posso esperar também — concordei, mas falando sério, pois sei que, na faculdade, nunca vou ter muito da sua atenção.

São muitas distrações, muitos grandalhões com dinheiro e apartamento próprio. Mas, quando afinal estivermos longe, só eu e ela, vai ser a minha chance, minha grande oportunidade de demonstrar a inevitabilidade absoluta de ficarmos juntos.

É manhã de Natal, e a primeira coisa que faço quando levanto é comer uma grande tigela de cereal Frosties e ligar a TV. São quase dez horas e O mágico de Oz já começou; então, deixo a televisão ao fundo, enquanto minha mãe e eu abrimos os presentes um do outro. Meu pai também está ali, de certo modo, como o fantasma de Jacob Marley, numa Polaroid antiga que tenho dele, cansado e sarcástico num roupão vinho, cabelo preto penteado para trás, de chinelos novos e fumando os cigarros que comprei e embrulhei para ele como presente. Neste ano, minha mãe me comprou alguns coletes novos e as Obras completas de e.e. cummings que pedi, e que ela teve de encomendar. Verifico o preço na etiqueta e sinto uma pontada de culpa, no mínimo um dia de salário, mas agradeço e beijo-a na bochecha e entrego os meus presentes — uma pequena cesta de vime com águas de cheiro da Body Shop e uma edição de segunda mão de A casa abandonada, da Everyman.

— O que é isso?

— É o meu preferido de Dickens. É genial.

— A casa abandonada? Parece esta casa.

E, na verdade, essa observação decreta o clima do dia. Clima de Dickens.

Tio Des veio para a ceia de Natal. A esposa dele o abandonou por um colega de trabalho já há algum tempo; por isso, todos os anos minha mãe o convida para a ceia de Natal, porque ele não tem uma família propriamente dita. Mesmo não sendo meu tio de verdade, apenas o vizinho três casas rua abaixo, tio Des pensa que, por algum motivo, tem o direito de bagunçar o meu cabelo e falar comigo como se eu tivesse 12 anos.

— Então, como vai esse intelecto? — pergunta, em sua voz de entreter crianças.

— Bem, obrigado, tio Des.

— Caramba! Esse pessoal não ensina como usar uma escova de cabelo na faculdade?! — comenta, continuando a despentear meu cabelo. — Olha o seu estado! — Bagunça, bagunça, bagunça, e me ocorre que isso não pega bem, vindo de um homem de 45 anos com o cabelo tingido de louro e um bigode que parece ter sido recortado de um mostruário de tapetes, mas fico calado, pois minha mãe não gosta que eu responda mal ao Tio Des. Então, contorço-me timidamente e me considero um cara de sorte, porque, ao menos esse ano, ele não está tirando moedas de 5 pence da minha orelha.

Mamãe põe a cabeça para fora da porta diz: — Os legumes estão prontos! — Um bafo morno no ar confirma seu aviso e me sinto nauseado, porque ainda sinto o gosto de Frosties nos meus dentes de trás. Ela volta para a cozinha e eu e o tio Des sentamos e assistimos ao Mágico de Oz baixinho.

— Que inferno! Essa bobagem de novo! — diz tio Des. — Todo Natal é esse maldito mágico dessa maldita Oz.

— Bem que eles podiam passar outra coisa, não é? — respondo. Aí, tio Des pergunta sobre a faculdade.

— Então, o que você faz o dia todo? — É uma pergunta justa, acho, e que já me fiz algumas vezes.

— Um monte de coisas... Assisto às aulas, leio, escrevo redações, esse tipo de coisa.

— Só isso? Que inferno... Mas há quem goste...!

Mudo de assunto.

— E você, tio Des, como vai o trabalho?

— Ah, meio parado, Bri, meio parado... — Tio Des está no ramo da construção, estufas, pórticos e pátios, ou pelo menos estava, antes do divórcio e da recessão. Agora, a van fica à toa na frente da casa e Des passa a maior parte do tempo desmontando e remontando motores, não do jeito certo, e depois desmontando de novo.

— As pessoas não querem gastar em reformas, não em plena recessão. Na verdade, pórticos e estufas são um luxo... — Alisa o bigode com o indicador e o polegar e volta a olhar com tristeza para O mágico de Oz, para aqueles macacos com asas meio perturbadores, e me sinto mal por ter perguntado sobre o trabalho quando sei que não está indo bem. Depois de um momento ou dois vendo os macacos voadores sem interesse, ele sai do transe com um visível esforço físico, senta o mais ereto possível na cadeira e bate palmas.

— Tudo bem... E que tal uma bebida? Afinal de contas, é Natal. Qual é o seu veneno predileto, Bri? — Em seguida, diz em tom conspiratório: — Além de couve-de-bruxelas?!

Olho para o relógio na cômoda, são 11h55.

— Eu quero uma cerveja, por favor, Des. — Ele sai correndo para a cozinha, quase como se morasse ali.

Durante o almoço, na cozinha, ao som da BBC2, decido contar a grande novidade.

— A propósito, tenho um comunicado a fazer...

Minha mãe para de mastigar.

— O quê?

— Aconteceu uma coisa na faculdade nesse semestre...

— Oh, Deus, Brian... — interrompe minha mãe, a mão na frente da boca.

— Não se preocupe. Não é nada ruim...

Olha para Tio Des e fala, nervosa:

— Continue...

— Bem, eu vou participar do Desafio Universitário!

— O quê? Aquele programa da televisão? — pergunta tio Des.

— Isso! Eu estou no time!

Minha mãe começa a rir e olha para Des, que também está rindo.

— Parabéns, Bri! — diz ele, pondo o garfo na mesa para ficar com a mão livre para bagunçar meu cabelo. — É uma ótima notícia, ótima mesmo...

— Meu Deus, que alívio! — exclama mamãe, tomando um grande gole de vinho e levando a mão ao peito para acalmar o coração.

— Por quê? O que você achou que eu fosse dizer?

— Bem, querido, para ser sincera, achei que fosse me contar que era gay! — responde e começa a rir outra vez, olhando para tio Des, que também começa a rir. Ri tanto que fico com medo que se engasgue com a couve-de-bruxelas.

Mais tarde, depois do nosso arremedo de peru assado, tio Des se serve de um grande copo de uísque e acende um charuto longo e fino, minha mãe acende um Rothman e ficamos assistindo ao Top Of The Pops, em meio ao ar esfumaçado com cheiro de caramelo. Tio Des solta um pequeno rosnado cada vez que a câmera foca uma backing vocal seminua, minha mãe dá um sorriso indulgente e dá um tapinha no pulso dele. Ela está se dedicando a devorar uma caixa de chocolates com licor, mordendo as tampas das garrafinhas de chocolate e bebericando tudo tal como uma ébria sofisticada. É uma modalidade nova e bizarra no hábito de beber da minha mãe, e não sei bem o que pensar disso, mas continuo com meu pacote de quatro cervejas para não ficar para trás. Por ser um jovem antenado com a música popular atual, ajudo na identificação das figuras mais obscuras no vídeo Do They Know It‘s Christmas? Em seguida, assistimos ao Discurso da Rainha e, logo depois, tio Des sai para visitar a mãe idosa que mora perto, mas promete voltar às 18h para comer as sobras e jogar a nossa tradicional e infinitamente longa partida de Banco Imobiliário, que tio Des sempre vence, mas só porque joga como banqueiro e trapaceia.

Então, antes de ficar escuro demais, minha mãe e eu vestimos nossos casacos e saímos. Ela pega no meu braço, enquanto caminhamos pouco mais de um quilômetro até o cemitério para colocar flores no túmulo do meu pai. O ar úmido e gelado aumenta um pouco a embriaguez dela e preciso me abaixar para ouvir o que está dizendo. Ela cheira a sálvia, cebola e licor Tia Maria.

Como de costume, fico com a minha mãe por um tempo e digo como a sepultura ainda está bonita. Depois, afasto-me um pouco enquanto ela fala com meu pai. Sempre me sinto meio desconfortável quando tenho de esperar sem ter um livro para ler; por isso, tento identificar os pássaros, mas são apenas gralhas e corvos-de-riacho (da família corvidae), estorninhos comuns (sturmus vulgaris) e pardais (passer domesticus), e me pergunto por que os cemitérios sempre atraem pássaros tão mórbidos e infelizes. Em 10 minutos, minha mãe termina o que tinha a dizer, afaga a sepultura de leve e se afasta, cabeça baixa, pega no meu braço e não diz nada até controlar um pouco a respiração e conseguir falar normalmente de novo. Já está escuro, mas alguns garotos de uma casa próxima estão estreando as novas bicicletas BMX que ganharam de Natal entre as sepulturas, freando forte e deslizando em longas derrapagens que deixam marcas no chão.

Ainda com os olhos úmidos e um pouco bêbada com os chocolates com licor, minha mãe se aborrece com isso e grita com eles:

— Vocês não podem fazer isso num cemitério! Tenham um pouco de respeito!

Um dos garotos faz um sinal obsceno e passa por ela rindo e gritando:

— Vai cuidar da sua vida, sua vaca idiota!

Percebo que minha mãe começa a chorar de novo e, de repente, sinto um irresistível desejo de correr atrás dele, arrancar o gorro do seu casaco e puxá-lo da bicicleta, colocar o joelho nas suas costas e esfregar aquela cara estúpida e irônica no chão para ver quanto tempo ele demorava até parar de rir. Mas, logo depois, sinto vontade de estar em algum lugar bem longe dali, deitado com alguém numa cama quentinha, prestes a cair no sono.

18

PERGUNTA: Qual é o nome da classe de compostos orgânicos com a fórmula geral R-OH, na qual R representa um grupo de alquilas formado por carbono e hidrogênio, e OH representa um ou mais grupos de hidroxila?

RESPOSTA: Álcool.

O Black Prince é um pub que serve bebida para menores de idade. Na escola, todos conheciam o lugar como A creche, pois o raciocínio do dono era de que qualquer espertinho capaz de esconder a gravata da escola no bolso já tinha idade para beber. Nas tardes de sexta-feira, parecia o cenário da série Grange Hill, a gente mal conseguia se mexer no meio de tantas mochilas.

Fora do período de aulas, é difícil imaginar um lugar mais desolador para beber. Escuro, estranho e úmido... É mais ou menos como estar dentro do rim de alguém, mas, em algum momento nos últimos cinco anos, tornou-se uma tradição a gente se encontrar ali nos feriados de fim de ano, e tradições são sagradas. Então, estamos eu, Tone e Spencer, sentados num banco de vinil que parece um coágulo. É a primeira vez que nos vemos desde setembro. Andei me sentindo um pouco angustiado com relação a esse encontro, mas Spencer parece mesmo feliz em me ver. Tone também, do seu jeito, o que basicamente se resume a esfregar com força a minha cabeça.

— Mas que porra aconteceu com o seu cabelo?

— Como assim?

— Meio capacete, né? — Tone me agarra pelas orelhas e cheira meu cabelo como se fosse um melão. — Você está usando mousse?

— Não estou usando mousse nenhum. — Na verdade, estou usando um pouco de mousse, sim.

— E como se chama esse corte de cabelo?

— Memórias de Brideshead — responde Spencer.

— Curto atrás e dos lados. E como se chama o seu corte, Tone?

— Não tem nome. Simplesmente é. E o que você anda bebendo agora? Porto com limão? Xerez? Vinho branco doce...? — começa ele, e eu ainda nem tirei a jaqueta.

— Uma cerveja, por favor, Tone.

— Uma cerveja especial?

— Tudo bem. Pode ser uma especial.

Cerveja especial é cerveja misturada com gim. Parte da missão educacional do proprietário do lugar é estimular a inovação. Ele nem pisca diante de qualquer combinação repulsiva que você pedir. Além do mais, cerveja misturada com gim é, de fato, algo bem adulto para os padrões do Black Prince. Qualquer coisa que não tenha gosto de coco, menta ou anis conta como refinada aqui.

Foi o maior período de tempo que passei sem ver Spencer desde que tínhamos 12 anos, e estou muito angustiado com a possibilidade de haver aqueles silêncios constrangedores. Mas aqui estamos. Em silêncio. Spencer tenta disfarçar, jogando a bolacha da cerveja para o alto, enquanto eu pego a caixa de fósforos para ver se há alguma coisa para ler na parte de trás.

— Então... Pensei que você tinha dito que viria nos fins de semana.

— Eu queria vir, mas andei meio ocupado.

— Ocupado... Sei.

— E o Natal? Foi bom? — pergunto.

— O de sempre. A mesma coisa do ano passado, a mesma coisa do ano que vem. E o seu?

— Ah, você sabe. A mesma coisa. — Tone volta com as cervejas especiais. — Então... Quais são as novidades? — pergunto.

— Que novidades? — pergunta Spencer.

— No trabalho, quero dizer...

— Que trabalho? — pergunta Tone, piscando para mim. Até onde sei, Spencer continua vivendo do seguro-desemprego e ganhando um por fora no posto.

— No posto de gasolina...

— Agora estamos com uma promoção bem interessante de taças de vinho grátis que está causando o maior alvoroço, e o preço da gasolina quatro estrelas aumentou no outro dia. Isso também foi muito emocionante. Então, considerando tudo, nunca estive tão animado desde que comi o meu primeiro Kit-Kat todo de chocolate. Ah, e, na semana passada, um bando de estudantes universitários saiu correndo sem pagar...

— Espero que você tenha saído correndo atrás deles — resmunga Tone.

— Não, Tone, não corri, porque eles estavam de carro e eu a pé. Além do mais, eu só ganho 1,80 libra por hora. Teriam de me pagar bem mais do que isso para eu começar a correr.

— Como sabia que eram universitários? — pergunto, mordendo a isca.

— Bem, para começar estavam muito malvestidos. Cachecóis longos, óculos redondos, cortes de cabelo esquisitos... — Abre um sorriso cúmplice para Tone e volta a olhar para mim. — Como vai a sua vista, Bri? — É uma piada corrente entre Tone e Spencer, que acreditam que menti para o oftalmologista só para poder usar óculos.

— Bem, obrigado, Spencer — e decido pegar mais batatas fritas.

No caminho até o bar, por um momento penso em andar em direção à porta e ir embora. Adoro Spence e Tone, Spencer em especial, e imagino que seja mútuo, ainda que nunca tenhamos declarado nada a respeito, pelo menos não sóbrios. Mas, no meu aniversário de 18 anos, Spencer e Tone me amarraram pelado no fim do píer de Southend e me enfiaram laxante goela abaixo. Então, é um amor que se expressa de maneiras não convencionais.

Quando volto, estão falando sobre a vida sexual de Tone. Por isso, sei que vou estar mais ou menos seguro pela próxima hora. Garçonetes, cabeleireiras, professoras, irmãs de amigos da escola e até mães — parece que ninguém é imune aos encantos nórdicos de Tone. A lista não tem fim e os detalhes são explícitos, e, depois de um tempo, começo a sentir como se precisasse de um banho, mas tem alguma coisa atraente em Tone, que não é sensibilidade nem ternura ou consideração. É muito fácil imaginar ele esfregando os dedos com força na cabeça da namorada depois de fazer amor. Fico imaginando, mas não pergunto, se Tone está fazendo sexo seguro, mas desconfio de que ele acha que sexo seguro é coisa de bunda-mole, assim como cintos de segurança e capacetes. Mesmo se fosse jogado de um avião, Tone acharia que paraquedas é coisa de bunda-mole.

— E quanto a você Brian? Algo a relatar?

— Na verdade, não — mas isso soa meio evasivo e complemento, fingindo indiferença: — Tem uma garota, Alice, que me convidou para passar o fim de semana no chalé dela...

— Num chalé? — pergunta Spencer. — O que ela faz? É camponesa?

— Não... É uma casa de campo, dos pais dela...

— E você está transando com ela? — quis saber Tone.

— É platônico...

— O que quer dizer platônico? — pergunta Spencer, mesmo sabendo o significado.

— Quer dizer que ela não vai dar para ele — diz Tone.

— Não estou transando com ela, porque não quero transar com ela; não por enquanto. Se quisesse, eu transaria.

— Embora evidências recentes mostrem que esse não é o caso — comenta Spencer.

Tone acha aquilo incrivelmente engraçado. Então, prefiro me ausentar para pegar mais cerveja com gim. O leve tropeço quando me levanto do banco mostra que a bebida está começando a fazer efeito. Sei muito bem que o dinheiro não vai durar muito no bolso esses dias. Mas o Black Prince é muito barato. Um lugar onde três garotos podem ficar incoerentes, agressivos, sentimentais e violentos e ainda receber troco de uma nota de dez.

Quando volto à mesa, Spencer me pergunta:

— Então, o que você faz de verdade o dia inteiro?

— Converso. Leio. Vou às aulas. Discuto.

— Não é exatamente trabalho, é?

— Não é trabalho. É uma experiência.

— Ah, tá, mas eu continuo muito feliz na Universidade da Vida, muito obrigado — intervém Tone.

— Eu me inscrevi para a Universidade da Vida. Mas não consegui passar — replica Spencer.

— Não é a primeira vez que você diz isso, é? — comento.

— Claro que não. Então, e a política? — A pergunta me cutuca como uma vareta.

— O que tem a política?

— Você participou de alguma manifestação recentemente?

— Uma ou duas.

— Qual o tema? — pergunta Tone.

O mais sensato seria mudar de assunto, mas não vejo por que comprometer minhas visões políticas em favor de uma vida fácil. Por isso, respondo.

— Apartheid...

— Contra ou a favor? — pergunta Spencer.

— ...saúde pública, direitos gays...

Isso chama a atenção de Tone.

— Quem é o canalha que está querendo tirar os seus direitos?

— Não são os meus direitos. Existe um movimento no Partido Conservador querendo impedir as escolas de mostrar a homossexualidade sob uma luz positiva. É homofobia legislada...

— É isso que elas estão fazendo? — pergunta Spencer.

— Quem?

— As escolas. Porque eu não me lembro de ninguém ensinando isso na nossa escola.

— Bem, não... Não ensinaram isso, mas...

— Então, por que é um problema tão grande?

— Pois é... Você virou gay sem ninguém ensinar — diz Tone.

— É, Tone, esse é um belo argumento...

— Pois eu acho um escândalo — interrompe Spencer, com indignação fingida. — Acho que isso deveria ser ensinado. Às terças-feiras, à tarde. Sessão dupla de veadagem...

— Desculpa... Esqueci o dever de veadagem em casa...

— A nota V seria a mais alta!

Tentamos pensar em alguma outra piada, mas não conseguimos, então Spencer diz:

— Bem, eu acho ótimo que você esteja se posicionando com relação a uma coisa tão importante, acho mesmo. É como quando você se afiliou à CDN. Tivemos um holocausto nuclear depois disso?

Tone se levanta.

— Então... Mais uma rodada?

— Sem gim dessa vez, Tone, por favor — peço, sabendo que ele vai misturar gim.

Quando ele sai, Spencer e eu ficamos dobrando os pacotes vazios de batatas fritas em pequenos triângulos, sabendo que o assunto ainda não acabou. O gim me deixou rabugento e de mau humor. Qual o sentido de sair com os amigos, se eles só vão tirar sarro da sua cara?

Afinal, acabo falando:

— Contra o que você protestaria, Spence?

— Não sei. Seu corte de cabelo?

— Estou falando sério...

— Mas eu estou falando sério...

— Não, sério, tem de existir alguma causa que você queira defender.

— Não sei. Muitas coisas. Mas acho que não os direitos gays...

— Não é só a questão dos direitos gays. São coisas que afetam a você também, como cortes no bem-estar social, cortes no auxílio do Estado, desemprego...

— Muito obrigado, amigo Brian, é bom saber que você está protestando em meu benefício, e vai ser bom receber uma grana extra.

Não há nada que eu possa dizer a respeito. Tento algo mais conciliatório, num tom de amizade:

— Ei, você devia ir lá me visitar no ano que vem!

— Como assim? Para escolher uma carreira?

— Não... Só para se divertir... — e esse é o ponto em que eu deveria mudar de assunto para sexo ou filmes ou TV ou coisa assim. Mas prefiro dizer: — Por que você não continua os seus estudos?

— Hummm. Seria porque eu não quero...?

— Mas é um desperdício tão grande...

— Desperdício? Ficar sem fazer nada é um desperdício! Ler poesia e ficar três anos batendo punheta é um desperdício.

— Mas você não precisa estudar literatura. Pode fazer outra coisa, algo que seja mais a sua cara...

— Vamos mudar de assunto, Brian?

— Tudo bem...

— Já bastam os conselhos de merda do Departamento de Saúde. Não quero falar sobre carreira num pub, num feriado de fim de ano.

— Tudo bem. Vamos mudar de assunto — e faço uma sugestão: — Máquina de quiz?

— Claro. Máquina de quiz.

O Black Prince investiu numa dessas novas máquinas computadorizadas de quiz. Então, vamos até uma delas e equilibramos as canecas de cerveja no tampo.

— Quem interpreta Cagney na série de TV Cagney e...?

— C. Sharon Gless — respondo.

Resposta Certa.

— A Batalha de Trafalgar foi em...?

— B. 1805 — respondo.

— O apelido do Norwich City FC é...?

— A. Os Canários — diz Tone.

Resposta certa.

Talvez seja uma boa hora para mencionar o Desafio...

— Quem foi o criador dos Daleks?

— A. Davros — digo.

Resposta certa.

— De quem era o sobrenome Schicklegruber?

— B. Hitler — respondo.

Resposta certa.

Eu poderia falar no meio da conversa, casualmente: A propósito, já contei a vocês? Vou participar do Desafio Universitário!

— Qual o americano detentor do recorde de maior número de medalhas olím...

— D. Mark Spitz — diz Tone.

Resposta certa.

Vocês conhecem o Desafio Universitário, da televisão...? Talvez eles não gozem da minha cara. Talvez achem divertido... Muito bem, Brian. Afinal, somos velhos amigos...

— Mais uma pergunta e ganhamos 2 paus!

— Muito bem! Concentrem-se...

Eu vou ter de contar a eles sobre o Desafio...

— A quantos Oscar Star Wars foi indicado?

— B. Quatro — respondo.

— D. Nenhum — corrige Tone.

— Tenho certeza de que foram quatro — insisto.

— Não mesmo. É uma pegadinha. O filme não ganhou nenhum...

— Não é ganhar. É ser indicado...

— Não foi indicado também. Vá por mim, Spence...

— Foram quatro indicações, Spence, juro. B. Quatro...

E ficamos olhando para o Spencer, como dois suplicantes: Escolha a mim, por favor, não ele, eu estou certo, juro, escolha a mim, tem 2 paus em jogo. E, sim, ele me escolhe, ele confia em mim e aperta B.

Resposta errada. A resposta certa é D... Dez.

— Viu só?! — grita Tone.

— Você também estava errado! — retruco, gritando também.

— Você é um imbecil! — diz Tone.

— Você é um imbecil — replico.

— Vocês são dois imbecis! — conclui Spencer.

— Você que é imbecil, seu imbecil — diz Tone.

— Não, meu amigo, o imbecil é você — determina Spencer, e acho que talvez seja melhor não falar nada sobre o Desafio.

A quarta caneca de cerveja com gim nos deixa sentimentais e nostálgicos sobre coisas que aconteceram seis meses atrás, lembrando com afeto de pessoas de quem não gostávamos e de diversões não tão divertidas, e se a professora de educação física era mesmo lésbica e o quanto Barry Pringle era gordo. Por fim, pedimos a saideira.

Quando saímos do Black Prince, está começando a chover. Spencer sugere irmos à boate Manhattan, mas ainda não estamos tão bêbados assim. Tone roubou um videocassete no Natal e quer assistir a Sexta-feira 13 pela 89ª vez, mas estou deprimido e bêbado demais e prefiro ir para casa, na direção oposta.

— Você vai estar por aqui no Ano-novo? — pergunta Tone.

— Acho que não. Acho que vou passar com a Alice.

— Tudo bem, cara. A gente se vê por aí, então. — Ele me dá um tapa nas costas e sai tropeçando.

Mas Spencer se aproxima e me abraça, o hálito cheirando a cerveja com gim e sussurra no meu ouvido:

— Escuta, Brian amigão, você é meu amigo, meu melhor amigo, e é ótimo que esteja por aí conhecendo pessoas diferentes e ficando num chalé e tudo mais, mas me prometa uma coisa, tá? — Aproxima-se ainda mais. — Prometa que você não está virando um babaca.

19

PERGUNTA: Se uma queimadura que afeta a epiderme é considerada de primeiro grau, qual é o termo para uma queimadura que alcança o tecido subcutâneo?

RESPOSTA: Queimadura de terceiro grau.


Não importa quanto o resto da minha vida possa ser previsível, banal e apática: sempre vai haver algo interessante acontecendo na minha pele. Quando a gente é criança, a pele é só um revestimento cor-de-rosa: sem pelos, sem poros, sem cheiro, eficiente. Daí, um dia você vê interseções microscópicas num livro de biologia, os folículos, as glândulas sebáceas, a gordura subcutânea, e percebe que muitas coisas podem dar errado. E elas deram errado. Desde os 13 anos, minha pele tem sido uma interminável novela, marcada por manchas, cicatrizes e pelos encravados crescendo, espalhando-se por todos os lados, tomando diferentes formas — de poros levemente entupidos atrás das orelhas a bolhas queimadas na ponta do nariz, bem no meio do meu rosto. Em retaliação, experimentei algumas técnicas de camuflagem, mas todos os cremes que encontrei são de um tom rosa-albino que chama mais atenção para as espinhas do que as esconde.

Eu não ligava muito para isso na minha adolescência. Quer dizer, elas me incomodavam, claro, mas eu aceitava como parte do crescimento, como algo desagradável, porém inevitável. Mas, agora, estou com 19 anos, sou adulto, de acordo com a maioria das definições, e começo a me sentir perseguido. Esta manhã, de pé em frente ao meu espelho iluminado por uma lâmpada de 100 watts, as coisas estão particularmente ruins. Sinto-me como se estivesse vazando gim, cerveja e óleo — tudo ao mesmo tempo — na minha cara. E tem uma coisa nova, um calombo duro debaixo da pele, mais ou menos do tamanho de um amendoim, que se mexe quando eu toco nele. Vou pegar pesado. Adstringentes! No verso, está escrito Cuidado! Pode manchar tecidos, e algo me diz que algo que pode abrir um buraco num sofá talvez não seja uma coisa boa para se aplicar na pele, porém, mesmo assim, vou em frente e faço um enxágue final com Dettol, só para dar sorte. Quando termino, o banheiro está cheirando a hospital, mas, pelo menos, sinto o rosto esticado e limpo, como se tivesse passado por um lava a jato.

Ouço uma batida na porta e minha mãe entra com minha melhor camisa de vovô, de linho branco, recém-passada e uma embalagem de alumínio.

— Um pouco de lombo e peru para a sua amiga.

— Acho que eles já providenciaram a comida, mãe. Além do mais, eles são vegetarianos.

— Mas é carne branca...

— Acho que a questão não é a cor, mãe...

— Mas o que você vai comer?

— Vou comer o que eles comem!

— O quê? Legumes?

— Sim!

— Você não come um legume há 15 anos! É um milagre não sofrer de raquitismo.

— Raquitismo é vitamina D2, mãe. Escorbuto é vitamina C, falta de frutas frescas.

— Então, você não quer levar umas frutas frescas?

— Não, mãe, sério. Não preciso de frutas nem de carne.

— Você pode levar para comer no trem. Se ficar aqui, vai estragar.

Para minha mãe, o verdadeiro significado do Natal sempre foram as carnes frias. Então, concordo e pego o embrulho de alumínio. Pesa, mais ou menos, o mesmo que a cabeça de uma pessoa. Ela me segue até o quarto para conferir se estou mesmo guardando o embrulho na mala, como se fosse uma atitude oficial materna, e me considero com sorte por ela não querer que eu leve as couves-de-bruxelas.

Ela senta-se na minha cama e começa a dobrar com cuidado a minha camisa de vovô.

— Não sei por que você usa essas coisas velhas e horríveis...

— Talvez porque eu goste, não?

— Uma ovelha na pele de um carneiro...

— Eu não critico o que você veste...

— Cuecas samba-canção! Desde quando você usa samba-canção?

— Desde que comecei a comprar minhas roupas de baixo...

— Cuecas normais saíram da moda, é?

— Não faço a menor ideia, mãe...

— Achei que você preferisse cuecas mais curtas, de algodão...

— Eu uso as duas. Depende...

— Depende do quê?

— Mãe...!

— Então, quanto tempo você vai ficar com a sua namorada?

— Não sei. Três dias. Talvez quatro. E ela não é minha namorada.

— Depois você vai voltar?

— Não, acho que vou direto para a faculdade, mãe. — Não sei bem a razão, mas me acostumei a usar o termo faculdade. Talvez porque universidade ainda me pareça muito esnobe.

— Então não vai passar o Ano-novo aqui?

— É pouco provável.

— Vai passar com ela?

— Acho que sim. — Espero que sim.

— Ah! Que pena... — mamãe usou sua voz de mártir. O truque é não olhar nos olhos dela. Continuo fazendo a mala. — Mas você volta depois?

— Não vai dar, mãe. Tenho trabalhos a fazer.

— Você podia fazer aqui...

— Não dá, mesmo...

— Não vou incomodar você...

— Preciso de livros específicos, mãe...

— Então, você não vai mesmo passar o Ano-novo em casa?

— Acho que não, mãe, não. — Ouço um suspiro tão triste que imagino que, se me virar, vou vê-la morta no chão do quarto. Agora, irritado, eu digo: — De qualquer maneira, você vai ficar enchendo a cara com o tio Des e a gente nem vai se ver...

— Eu sei, mas é a primeira vez que você não vai estar aqui, só isso. E eu não gosto de andar pela casa sozinha...

— Bem, um dia isso ia acontecer, mãe. — Mas nós dois estamos pensando a mesma coisa. Não deveria ter acontecido, não desse jeito, ainda não. Faz-se um silêncio, e eu digo: — Agora vou me vestir, mãe, se você não se importa...

Ela dá um suspiro e se levanta da cama.

— Não é nada que eu não tenha visto antes.

Aconteceu recentemente. Ano-novo de 1984 para 1985, quando cheguei em casa tão bêbado que vomitei na cama. Ainda bem que tenho apenas uma vaga lembrança da minha mãe me ajudando a tomar banho ao amanhecer e lavando Pernod, cerveja e frango com fritas mal-digeridos com a mangueirinha do chuveiro. Faz só 12 meses que isso aconteceu. Ela nunca mencionou esse fato, e gosto de acreditar que talvez não tenha acontecido, mas tenho certeza de que aconteceu.

Às vezes, acho que faltam mais psiquiatras no mundo...

Minha mãe está um pouco mais animada no nosso beijo de despedida nos degraus da frente de casa, mas continua querendo que eu leve mais comida. Rejeito um saco de pão de forma Mighty White, 1 litro de Dry Blackthorn, uma torta, um pote de 250 ml de creme de leite, um saco de 2 quilos de batata, um pacote de Jaffa Cakes, uma garrafa de Iced Magic sabor menta e outra de 2 litros de óleo de girassol. E cada não, obrigado é uma facada nas costas dela. Depois disso, saio carregando minha mala pela rua sem olhar para trás, para o caso de ela começar a chorar. No caminho para a estação de trem, saco uma nota de cinco libras do caixa e paro no mercado para comprar uma garrafa de vinho para os Harbinson. Como quero levar alguma coisa de qualidade, acabo torrando 3 libras num vinho com uma bela garrafa.

20


PERGUNTA: Que termo socioeconômico definia os artesãos que habitavam as cidades muradas da França no século XI, ocupando uma posição entre os camponeses e os senhores feudais?

RESPOSTA: Burguesia.


Quando o trem parte de Southend, olho pela janela e vejo as ruas molhadas e desertas; o punhado de lojas abertas numa tentativa pouco entusiasmada de é pegar ou largar. Os quatro dias entre o Natal e o Ano-novo são, com certeza, os mais longos e desagradáveis do ano, uma espécie de domingo arrastado. Mas os feriados bancários são piores ainda. Acho que vou morrer mais ou menos às 14h30 de um feriado bancário. Morto por tédio terminal.

Troco de roupa em Shenfield, onde o almoço é uma lata de energético Lucozade, um pacote de salgadinhos Hula Hoops e um chocolate Twix comprados num quiosque. E aí só tenho tempo de ver como está o meu rosto no espelho do banheiro da estação antes de voltar ao trem.

Ao sair do subúrbio e entrar em Suffolk, a chuva se transforma em neve, a qual raramente chega a Southend. A combinação das luzes da rua, o ar do estuário e a massa de calor tendem a transformar a neve numa espécie de caspa fria e úmida, mas ali, naquela paisagem ao pôr do sol, parece densa e limpa. Leio a primeira página de Os Cantos, de Ezra Pound, cinco vezes sem entender uma palavra; então, desisto e volto a observar a paisagem. Emocionante. Dez minutos antes de chegar à estação, pego meu sobretudo e o cachecol e dou uma olhada no meu reflexo na janela do trem. Gola para cima ou para baixo? Estou tentando um visual tipo O terceiro homem do Graham Greene, mas só pareço mesmo alguém saído de um clipe do Ultravox.

Cinco minutos antes da chegada, ensaio o que vou dizer ao reencontrar Alice. Não me sinto tão nervoso desde meu papel de Jesus em Godspell, quando tive de tirar a camisa para ser crucificado. Não consigo nem sorrir direito. Sai um sorriso torto de boca fechada que dá a impressão de que sofri um derrame, mas, ao abrir a boca, meus dentes são uma mistura de bege e preto, como um saco de peças de palavras cruzadas. Uma vida inteira de legumes e frutas frescas fez com que os dentes de Alice Harbinson sejam perfeitos. Imagino o dentista examinando sua boca e chorando diante daquele brilho, daquela pureza, daquela brancura esplendorosa.

Quando o trem para na estação, Alice está esperando no fim da plataforma, protegida da neve por um sobretudo preto que parece muito caro e que quase toca o chão, o pescoço envolto num cachecol de lã cinza — e me pergunto onde ela guardou a balalaica. Ela não corre para me ver, mas, ao menos, anda um pouco mais rápido, e à medida que seu rosto vai entrando no foco, consigo ver que sorri, depois ri, a pele mais clara, os lábios mais vermelhos. E há alguma coisa mais suave e calorosa, em comparação ao seu jeito na faculdade, como se ela estivesse de folga. E ela me abraça e diz que sentiu minha falta, que está muito contente de eu estar ali e que vamos nos divertir muito, e, por um momento, isso parece a felicidade suprema, ali numa estação de trem do interior, com Alice debaixo da neve. Até eu perceber um homem bonito, sombrio e mal-humorado que suponho ser o pai de Alice. Uma espécie de Heathcliff de jaquetão impermeável até a cintura.

Se tivesse uma franja eu a afastaria da testa, porém, em vez disso, estendo a mão. Venho testando apertos de mão há algum tempo, pois imagino que é o que homens adultos devem fazer, mas o Sr. Harbinson olha para mim como se eu tivesse feito uma coisa desajeitada do século XVIII, como se eu fizesse mesuras ou coisa assim. Por fim, ele aceita e pega minha mão, e a aperta com muita força, como que para mostrar que poderia fraturar o meu crânio se quisesse. Depois, vira-se sai andando.

Arrasto minhas malas até o Land Rover verde no estacionamento da estação enquanto Alice vai andando na frente com os braços em volta do pescoço do pai, tal como um namorado ou algo do gênero. Se eu abraçasse minha mãe pelo pescoço daquele jeito, ela chamaria o Serviço Social, mas o Sr. Harbinson parece no mesmo ritmo e abraça Alice pela cintura. Eu sigo trotando atrás.

— Brian é a nossa arma secreta no time. Ele é o gênio sobre o qual falei a você — diz Alice.

— Bem, não sei se gênio é a palavra certa... — observo.

— Com certeza não é — concorda o Sr. Harbinson.

Seguimos de carro pelo campo. Estou no banco de trás no meio de galochas e botas sujas de lama e mapas molhados, enquanto Alice mantém um monólogo narrando todas as festas em que esteve e os velhos amigos que encontrou, e eu presto atenção a cada palavra para detectar possíveis Intrusos Românticos — um jovem ator bonito talvez, um escultor musculoso chamado Max ou Jack ou Serge. Mas a barra parece estar limpa, até agora. Talvez ela esteja se censurando por estar na frente do pai. Mas duvido. Acho que Alice é um daqueles tipos estranhos de pessoa que se comportam exatamente da mesma maneira na frente dos pais e dos amigos.

O Sr. Harbinson escuta e dirige em silêncio, emanando um sutil zumbido de hostilidade. Ele é superforte, e fico imaginando por que alguém que faz documentários para a BBC2 precisa ter o físico de um pedreiro. E é muito peludo — o tipo de homem que faz a barba duas vezes por dia, mas é óbvio que é muito inteligente. É quase como se tivesse sido criado por lobos, mas lobos que sabiam o valor de uma boa educação. Também parece impossivelmente jovem, bonito e descolado para ser pai, como se ter uma família fosse uma coisa em que ele caiu de paraquedas entre um show do Hendrix e uma viagem de LSD.

Afinal, chegamos ao Chalé Blackbird. Só que chalé não é bem a palavra. O lugar é enorme, lindo, o tipo de casa que se esparrama, como um monte de celeiros adaptados e casas de fazenda, quase uma vila inteira, tudo aninhado para abrigar a residência de campo da família Harbinson; todo o luxo de uma casa majestosa, mas sem os inconvenientes políticos de uma conotação aristocrática. Com a neve, é como um cartão de Natal animado. Tem até fumaça saindo da chaminé, e é tudo muito rural e do século XIX, com exceção do carro esporte, o 2CV de Alice, e uma piscina coberta de lona onde antes ficava o curral das vacas. Na verdade, qualquer vestígio agrícola foi apagado há muito tempo. Até os cachorros parecem de classe média: dois labradores que chegaram aos saltos como que dizendo muito prazer em conhecê-lo, conte-nos tudo sobre você. Não me surpreenderia se eles tivessem um piano de cauda.

— Esses são Mingus e Coltrane! — apresenta Alice.

— Olá, Mingus e Coltrane. — Ocorre um ligeiro lapso de etiqueta canina quando eles começam a farejar as carnes frias na minha mala durante o percurso até a casa. Ergo, então, a mala nos braços.

— O que você acha?

— É adorável. Maior do que eu esperava.

— Mamãe e papai compraram por, mais ou menos, cinco guinéus nos anos 1960. Venha conhecer Rose — e levo um segundo para perceber que Rose é a mãe de Alice.

Existe um velho clichê chauvinista que diz que as mulheres se transformam nas mães quando você se casa com elas, porém, no caso da mãe de Alice, eu não me incomodaria. Não que vá me casar com Alice ou nada disso, mas a Sra. Harbinson é linda. Quando entramos na cozinha, um enorme celeiro todo de cobre e carvalho, ela está diante da pia ouvindo The Archers, e, por um segundo, penso em Julie Christie descascando cenouras. Ela é pequena, com rugas suaves ao redor de olhos azuis, um cabelo louro e ondulado. Marcho adiante pelo chão de ladrilhos, braço estendido feito um soldadinho de chumbo, determinado a insistir nessa coisa de aperto de mão.

— Então, esse é o Brian de quem tanto ouvi falar... — comenta ela, sorrindo e balançando a ponta do meu dedo com as mãos úmidas, e, então, tenho um flashback de uma professora por quem eu era apaixonado aos 9 anos.

— Muito prazer, Sra. Harbinson — digo, parecendo um menino de 9 anos.

— Oh, por favor, não me chame de Sra. Harbinson. Faz eu me sentir mais velha. Pode me chamar de Rose.

Quando ela se adianta para me dar um beijo no rosto, tenho uma ação reflexa de lamber os lábios e o beijo acaba saindo todo babado, com um estalido exagerado que quase ecoa pelos ladrilhos. Chego a ver minha saliva brilhando um pouco abaixo do seu olho. Ela limpa discretamente com as costas da mão antes daquilo tudo evaporar, enquanto finge estar arrumando o cabelo. O Sr. Harbinson se interpõe entre nós e beija a outra face, a seca, marcando o território.

— E como prefere ser chamado, Sr. Harbinson? — pergunto, todo animado.

— De senhor Harbinson.

— Michael! Não seja chato... — adverte Rose.

— ...Ou Sir. Pode me chamar de Sir...

— Não leve a sério — intervém Alice.

— Trouxe um vinho — digo, tirando a garrafa da mala e entregando a ele. O Sr. Harbinson olha para o vinho como se fosse uma garrafa de mijo.

— Muito obrigada, Brian! Você será sempre bem-vindo! — diz Rose. O Sr. Harbinson não parece ter tanta certeza.

— Venha! Vou mostrar o seu quarto — Alice me puxa pelo braço, e eu a sigo pelas escadas enquanto o Sr. e a Sra. Harbinson cochicham atrás de mim.

Na maisonette da Archer Road, há um ponto, mais ou menos na metade da escada, do qual, se você esticar um pouco o pescoço, consegue ver todos os

cômodos da casa. O Chalé Blackbird não tem nada disso. É enorme. Meu quarto, que foi de Alice, fica na parte alta da casa, sob antigas vigas de carvalho, na Ala Leste ou coisa assim. Uma das paredes é forrada de fotografias de infância de Alice ampliadas — de avental florido assando bolinhos; colhendo framboesas de macacão; interpretando Olivia numa produção da escola de Noite de reis e, acho, em A alma boa de Setsuan, com um bigode pintado, e vestida de saco de lixo preto escrito punk-rocker, numa festa chique levantando aquele dedo para a câmera. Há uma polaroide dos pais dela aos 20 anos, felizes proprietários de um dos primeiros sofás em estilo pufe, parecendo integrantes da banda Fleetwood Mac, com coletes bordados combinando e fumando o que podem ou não ser cigarros. Prateleiras de livros infantis indicam que Alice foi uma grande fã de histórias: Tove Jansson, Ingrid Lindgren, Eric Kastner, Herge, Goscinny, Uderzo, Saint-Exupery — literatura infantil mundial — e, meio fora de lugar, uma desgastada edição de Lace. Uma montagem nota 10 de Madonnas de Uffizi e uma tirinha do Xereta recortada. Diplomas emoldurados proclamam que Alice Harbinson consegue nadar 1.000 metros, tocar oboé até o nível 6 e piano até o nível 8 — simultaneamente, pelo visto. Meu quarto é O museu de Alice Harbinson. Não sei como acreditam que eu consiga dormir ali.

— Acha que vai ficar confortável aqui? — pergunta.

— Ah, eu dou um jeito... — Alice me observa sem nenhuma vergonha fingida ou falsa modéstia enquanto examino as fotografias. Esta é a minha vida. Vida boa, não é? Aos 4 anos, ela era tudo o que se podia desejar de uma menina de 4 aninhos; aos 14, ia muito bem, obrigada.

— Não adianta procurar o meu diário. Eu escondi. Se sentir frio, e você vai sentir, tem um cobertor no armário. Deixa eu ajudar a arrumar suas coisas. E aí, o que você quer fazer hoje à noite?

— Ah, sei lá, ficar por aí. Vai passar Quanto mais quente melhor na TV.

— Desculpa, mas aqui não tem televisão.

— Sério?

— Papai não gosta muito de TV.

— Mas ele é produtor de TV!

— Em Londres, temos televisão, mas ele acha que, no campo, é errado... Que cara é essa?

— Nada. Só pensando... Três casas, uma TV. Com a maioria das pessoas, é o contrário.

— Não precisa dar uma de socialista, Brian, ninguém está ouvindo. Cuecas samba-canção, é? — Diz Alice, segurando a minha roupa de baixo. Uma leve trepidação erótica paira entre nós, e me sinto muito grato por minha mãe ter passado as cuecas a ferro. — Achei que você era o tipo de cara que usava sunga. — Fico tentando entender se isso é bom ou ruim até Alice dar um grito: — Ahhh, meu Deus! O que é isso...?

Ela encontrou a embalagem de alumínio com as carnes frias na minha mala. Eu tento pegar.

— Ah, isso é coisa da minha mãe...

— Deixa eu ver...

— Não é nada, de verdade.

— Contrabando! — Ela abre o pacote. — Carne? Você contrabandeou carne para nossa casa!

— Minha mãe ficou preocupada por eu não comer proteína.

— Quero um pedaço... Que delícia! — e pega um pedaço de bacon cozido e pula na cama. — Hummmm! Um pouco seco...

— É uma receita especial da minha mãe. Ela cozinha na noite anterior, corta em fatias, deixa no aquecedor e dá o toque final com um secador de cabelo.

— Olha, não deixe Rose pegar você com isso... Ela vai ficar para morrer. O Chalé Blackbird é zona estritamente vegetariana...

— E o que Mingus e Coltrane comem?

— O mesmo que nós. Vegetais, granola, arroz, macarrão... — Eles alimentam os cachorros com macarrão. — O que você tem aí?

— É o seu presente de Natal. — Entrego o embrulho com o LP. — É uma raquete de tênis.

Ela olha o cartão-postal, um romântico e provocativo Chagall colado no álbum. Pensei muito e com afinco na mensagem. Escrevi vários rascunhos antes de ficar com o eloquente e emotivo: Para Alice, minha mais nova e mais melhor (mais melhor?!?) amiga. Com amor para sempre, Brian. Gostei muito do humor irônico de (mais melhor?!?) com o elemento mais nova e mais melhor sem prejudicar a sinceridade da emoção, mas ela nem se dá ao trabalho de ler e começa a rasgar o papel de embrulho.

— Joni Mitchell! Blue!

— Ah, não! Você já tem, não é?

— Só umas seis cópias. Mas você acertou na mosca. Eu adoro a Joni. Na verdade, perdi a minha virgindade ao som de Joni Mitchell.

— Não com Big Yellow Taxi, espero.

— Court and sparks, na verdade... — Dava para ter adivinhado. — E você?

— Minha virgindade? Não me lembro. Pode ter sido a Marcha fúnebre, de Chopin, ou Geoff Love and His Orchestra Play Big War Movie Themes.

Ela ri e me devolve o disco.

— Desculpa... Você ainda tem a nota de compra?

— Acho que sim. Algum pedido específico para eu trocar?

— Surpreenda-me. Mas nada de Kate Bush, por favor. Vou deixar você acabar de guardar suas coisas.

— A que horas é o chá?

— O jantar é em meia hora. — Antes de sair, ela me abraça mais uma vez. — Estou tão feliz de você estar aqui... Vamos nos divertir muito. Prometo.

Após Alice sair, penduro as camisas de vovô recém-passadas nos cabides de madeira, adorando a sensação de estadia e permanência. Se eu jogar bem as minhas cartas, talvez possa ficar aqui até o Ano-novo. Quem sabe até o dia 2 ou 3...

Ao abrir o armário, eu meio que esperava encontrar Narnia.

No fim das contas, a proteína acaba sendo o menor dos meus problemas. O jantar é um assado de nozes. Já tinha ouvido falar em assado de nozes, mas sempre achei que fosse piada, mas ali estava — um bolo farinhento empilhado com queijo vegetariano derretido por cima. Foi minha primeira experiência com nozes em outro contexto que não barras energéticas. Parece húmus de minhoca amontoado no prato. O que os cachorros estarão comendo?

— Como está o assado de nozes, Brian?

— Delicioso... Obrigado, Rose. — Aprendi, em algum lugar, o conceito de que é educado usar bastante o nome das pessoas — sim, Rose; não, Rose; está ótimo, Rose — mas acho que está meio que parecendo com as músicas da banda Uriah Heep. Melhor acompanhar com um pouco de humor. — É minha primeira experiência com nozes fora do contexto de uma barra de cereais!

— Cale a boca, seu feioso imbecil! E tire suas mãos imundas e plebeias da minha filha linda, seu merdinha nojento! — diz o Sr. Harbinson. Bem, ele não fala isso, mas é o que aparenta sua expressão.

Rose ajeita o cabelo, sorri e pergunta:

— E que tal as abobrinhas gratinadas?

— Maravilha! — Na verdade, nunca comi uma abobrinha na vida, no entanto, para ressaltar meu entusiasmo, coloco um pedaço aguado com o garfo na boca e dou um sorriso idiota. Como qualquer legume, tem gosto de papel, mas estou tão determinado a agradar Rose que tenho de me esforçar para não esfregar a barriga e dizer hummm... — Enxáguo o gosto de pântano da boca com um gole de vinho. Não há sinal da garrafa que eu trouxe. Imagino que tenha sido levada para fora e estourada com tiros. Ou, talvez, os cães estejam tomando o meu vinho com o macarrão, e um pouco de pão de alho. Mas o vinho servido é tão doce e quente que você pressente que deveria estar tomando aos poucos, com uma colherzinha de xarope.

— É a primeira vez que vem a Suffolk, Brian?

— Já estive aqui uma vez. Numa excursão nas montanhas!

— É mesmo? Mas aqui é tudo plano... — Eu estava mal informado!

O Sr. Harbinson começa a exalar audivelmente pelo nariz.

— Não entendi. Quem disse a você...? — pergunta Rose.

— Brian está brincando, mãe — explica Alice.

Está claro que eu deveria parar de tentar ser engraçado, mas ainda não encontrei alternativas. Sentindo que eu precisava de ajuda, Alice se vira para mim e põe a mão no meu braço. — Se você estivesse aqui ontem à noite, teria visto uma coisa muito engraçada, Brian.

— Por quê? O que aconteceu?

Rose começa a ficar vermelha.

— Ah, Alice, querida, não podemos deixar isso entre nós, por favor?

— Deixa ela contar... — resmunga o Sr. Harbinson.

— Mas é tão constrangedor...!

— Pode contar! — digo, entrando no jogo.

— Mas eu me sinto tão boba... — diz Rose.

— Bem... — começa Alice — ...Nós recebemos uns amigos habituais nesses feriados. Estávamos brincando de mímica, e era minha vez, e eu estava representando O ano passado em Marienbad para mamãe e ela foi ficando tão agitada e se envolveu tanto na coisa que derrubou a coroa na taça do nosso vizinho!

Todo mundo ri. Até o Sr. Harbinson. A atmosfera está tão engraçada, adulta, divertida e irreverente que eu digo:

— Então, você estava usando uma coroa?

Todo mundo fica em silêncio.

— Como? — pergunta Rose.

— Uma coroa. Por que estava usando...

O Sr. Harbinson repousa o garfo e a faca na mesa, engole o que estava mastigando, vira-se para mim e diz, bem devagar:

— Na verdade, Brian, Alice estava se referindo à coroa do dente...

Logo depois, todos nos recolhemos.

Estou no banheiro lavando o rosto com água fria quando Alice bate na porta.

— Espere dois segundos — digo, sem saber bem por que, pois estou completamente vestido e não há muito a fazer pela minha aparência em dois segundos a não ser enrolar uma toalha na cabeça.

Abro a porta, Alice entra com uma expressão séria e começa a falar bem devagar.

— Você se importa se eu disser uma coisa, uma coisa pessoal?

— Claro que não! Vá em frente! — Faço um cálculo mental e chego à conclusão de que há uma chance em três de ela me convidar para fazer amor aquela noite.

— Bem... É um grande erro esfregar o rosto desse jeito. Você só vai sangrar e espalhar a infecção...

— Ah...

— E também deixa cicatrizes.

— Certo...

— Você ferve as suas toalhas?

— Bem, não...

— Porque a toalha deve ser parte do problema...

— Certo, ok...

— Se eu fosse você, não usaria toalha de jeito nenhum. Elas estão infectadas. Só água e sabonete neutro, sem perfume...

Como eu vou me safar dessa conversa?

— ...E não sabonetes medicinais, pois são muito adstringentes...

Nem chega a ser uma conversa... Só estou esperando ela parar de falar — ...E você também não devia usar cremes adstringentes. Eles funcionam a curto prazo, mas, depois, só tornam as glândulas sebáceas mais ativas...

Agora, já estou olhando para a janela do banheiro, considerando se devo ou não me jogar dela. Alice deve ter notado alguma coisa, pois muda de tom.

— Desculpe... Você se incomoda de eu dizer tudo isso?

— De maneira alguma. E você conhece bem o assunto. Se o Desafio Universitário perguntar sobre cuidados com a pele, vamos nos dar bem...

— Ah, você ficou magoado, não ficou?

— Não, só acho que não há muito que eu possa fazer a respeito. Deve ser o começo da puberdade! Todos esses hormônios... Daqui a pouco, devo começar a me interessar por garotas!

Alice sorri com indulgência e me dá um fraternal beijo de boa-noite, os olhos examinando meu rosto tentando encontrar um lugar seguro para pousar.

Mais tarde, já na cama e tremendo de frio, deitado de barriga para cima enquanto meu rosto seca para não sangrar no travesseiro, avalio com cuidado minha estratégia para o dia seguinte. Após muitas considerações, decido que minha estratégia é ser menos idiota. Não vai ser fácil, mas é vital ela conhecer o meu Verdadeiro Eu. O problema é que estou começando a desconfiar que essa concepção de que há um Verdadeiro Eu sábio, inteligente, engraçado, delicado e corajoso correndo por aí em algum lugar é meio que uma falácia. Como o Abominável Homem das Neves: se ninguém nunca viu, por que alguém deveria acreditar que existe de verdade?

21

PERGUNTA: Habeas corpus é uma ordem judicial que exige a presença de uma parte perante uma corte ou um juiz. Esse termo em latim pode ser traduzido como...

RESPOSTA: Que tenhas o teu corpo.


Quando acordo na manhã seguinte, estou com tanto frio que, por um momento, acho que o Sr. Harbinson me pôs para fora durante a noite. Por que será que, quanto mais pomposas são as pessoas, mais frias são as casas em que moram? E não é só o frio. É a sujeira também: pelos de cachorro, livros empoeirados, botas enlameadas, a geladeira cheirando a leite estragado, queijo mofado e legumes apodrecidos da horta. Juro que a geladeira dos Harbinson deve ser um solo muito fértil. Provavelmente, aparam a grama dela no verão. Mas talvez isso defina o verdadeiro e autêntico status da classe média alta — a capacidade de ser fria e suja com total autoconfiança. Isso, além dos lavabos em todos os quartos da casa. Lavo o rosto com água gelada, devolvo o exemplar de Lace à estante e desço.

A Radio 4 soa alto nas caixas de som escondidas e Alice está deitada no sofá, lendo debaixo de um cobertor estampado com cachorrinhos.

— Bom dia! — cumprimento.

— E aí? — responde ela, entretida com o livro.

Tento me espremer ao lado de um cachorro.

— O que você está lendo? — pergunto, numa voz divertida. Ela me mostra a capa. — Cem anos de solidão... Parece a minha vida sexual!

— Dormiu bem? — pergunta Alice, quando percebe que eu não vou embora.

— Muito bem, obrigado.

— Sentiu frio?

— Ah, só um pouco...

— Porque você está acostumado com aquecimento central. É muito ruim aquecimento central. Embota os sentidos...

Como que para ressaltar o argumento, o Sr. Harbinson entra na sala, calmo e indiferente. Nu.

— Bom dia! — diz, pelado.

— Bom dia! — Mesmo encarando fixamente a lareira, dá para perceber que é um homem bem peludo. Ou então está usando um macacão de angorá.

— Tem chá na chaleira, Alice? — pergunta, pelado.

— Sirva-se.

O Sr. Harbinson abaixa-se ao lado dela, serve-se de uma xícara de chá e sobe as escadas três degraus a cada passo. Quando me sinto seguro para olhar ao redor, pergunto:

— Então... Isso é... normal?

— O quê?

— Seu pai nu.

— Claro!

— Ah!

— Você não está chocado, está? — pergunta, estreitando os olhos.

— Bem, quer dizer...

— Você deve ter visto o seu pai pelado.

— Bem, não. Desde que ele morreu, não.

— Não, é claro, desculpa, esqueci, mas antes de ele morrer, você deve ter visto seu pai pelado.

— Hum, talvez... Mas não é como me lembro dele.

— E quanto à sua mãe?

— Meu Deus! Você anda nua na frente do seu pai?

— Só quando a gente está transando — responde ela, estalando a língua e revirando os olhos. — É claro que sim... Todos nós fazemos isso. Afinal, nós somos uma família. Meu Deus! Está surtando com isso, não está? Sinceramente, Brian, para alguém que diz ser moderno, você é muito quadrado. — Por um instante, vejo Alice como uma chefona, superior e maliciosa. E ela acabou de me chamar de quadrado? — Não se preocupe, Brian, eu fico vestida quando temos convidados.

— Oh, por favor, não se incomode comigo...

Alice sabe que estou forçando a barra e dá um sorriso hesitante.

— Só estou dizendo que acho que consigo lidar com isso.

— Hum... Será que consegue mesmo? — Alice lambe a ponta do dedo e vira a página do livro.

O café da manhã consiste em torradas de um pão caseiro que tem cor, peso, textura e gosto de argila. A rádio toca na cozinha também. Na verdade, até onde pude perceber, a rádio está em todos cômodos e parece ser impossível desligar, como as teletelas de 1984. Mastigamos e ouvimos rádio, e continuamos mastigando, e Alice continua lendo o seu livro. E já começo a me sentir infeliz. Em parte, por ser o primeiro sujeito a ser chamado de quadrado desde 1971, mas, principalmente, pela menção a meu pai. Como ela pode ter esquecido? E não gosto da maneira como estou falando dele na frente dos outros. Tenho certeza de que meu pai ficaria muito bravo de saber que está sendo usado pelo filho como matéria-prima para um monte de tiradas horríveis e superficiais e monólogos bêbados de autopiedade. A caça pelo Verdadeiro Eu está indo mal, e eu ainda nem escovei os dentes.

Então, saímos para uma longa caminhada na neve. Você não pode chamar a zona rural do Leste britânico de espetacular; é admirável, suponho, de uma maneira pós-nuclear, e a vista tende a ser a mesma não importa quão longe você ande — o que, na verdade, acaba derrotando o objetivo, mas, pelo menos, é coerente. Também é revigorante estar num lugar onde não se ouve a Radio 4. Alice me toma pelo braço e eu quase esqueço que a neve está arruinando as minhas novas botas de deserto de camurça.

Desde que entrei na faculdade, notei que as pessoas gostam de falar sobre os mesmos cinco tópicos principais: 1) Minhas notas nos exames; 2) Meu colapso nervoso/distúrbio alimentar; 3) Minha bolsa integral; 4) Por que é um alívio não ter entrado para Oxbridge; e 5) Meus livros favoritos. E é essa última opção a que escolhemos seguir.

— O melhor de todos já foi O diário de Anne Frank. Quando eu era adolescente, queria ser a Anne Frank. Não ter o mesmo fim, claro. Só viver humildemente em um sótão, lendo livros, escrevendo um diário, me apaixonando pelo garoto judeu pálido e sensível do sótão ao lado. Isso deve soar um pouco perverso, não é?

— Um pouco...

— Acho que é só uma fase pela qual todas as garotas passam numa certa idade: pensar em se cortar, vomitar e ser lésbica.

— Você já teve alguma experiência lésbica? — pergunto casualmente, quase em falsete.

— Bem, num internato, não tem muito como escapar. É quase que obrigatório: lesbianismo, francês e basquete.

— E até onde... você chegou?

— Você adoraria saber...

— Claro que sim, oras!

— Não muito longe, na realidade. Foi uma experiência muito superficial.

— Talvez esse tenha sido o problema! — Ela me dá um sorriso cansado. — Desculpa... Então... O que aconteceu?

— Acho que, simplesmente, não gostei. Sempre gostei muito de sexo com homens. Eu sentiria falta da penetração. — Continuamos caminhando um pouco mais. — E você?

— Eu? Ah, eu também sinto falta de penetração.

— Estou tentando falar sério, Brian — adverte Alice, socando meu braço com luvas de esqui. — Você já experimentou?

— Experimentou o quê?

— Bem, estou supondo que você já fez sexo com homens.

— Não!

— Sério?

— De jeito nenhum. O que faz você pensar isso?

— Só imaginei que tivesse acontecido.

— Você acha que sou afeminado? — pergunto. O falsete está de volta.

— Não, não afeminado. Além do mais, feminilidade não é um sinal de homossexualidade...

— Bem, não, claro que não.

— ...nem é uma coisa ruim, aliás.

— Não, claro que não. Mas você falou como os meus amigos da escola. Só isso.

— Hum, acho que a dama é voluntariosa demais...

O negócio é mudar de assunto. Gostaria muito de continuar a falar sobre lesbianismo, mas me lembro de ela ter dito alguma coisa sobre se cortar. Eu deveria ter me ligado nisso.

— E quanto à... automutilação?

— Que automutilação?

— Você não disse que se cortava?

— Ah, só de vez em quando. Um grito de socorro, acho que é como chamam. Mais precisamente, um grito para chamar atenção. Fiquei um pouco deprimida na escola, um pouco solitária. Só isso.

— Estou surpreso... — comento.

— Sério? Por que isso surpreenderia você?

— Acho que não consigo imaginar você tendo motivos para se sentir deprimida.

— Você precisa superar essa visão de que eu vivo eternamente no meu berço de ouro, Brian, como um Ser Perfeito. Realmente, não é o caso.

Mas, naquela tarde, parece bem perfeita.

Quando estamos quase chegando em casa de volta da caminhada, travamos uma pequena guerra de bolas de neve no jardim, diferente de todas as guerras de bolas de neve em que já estive, pois ninguém está colocando cocô de cachorro ou vidro quebrado dentro das bolas de neve. Nem chega a ser uma guerra, por assim dizer, só uma suave luta afrodisíaca, uma brincadeira consciente que faz a gente se sentir como se estivesse sendo filmado, de preferência em preto e branco. Depois, entramos e sentamos no sofá perto da lareira para secar, e ela põe seus discos preferidos para tocar — muitos de Rickie Lee Jones e Led Zeppelin, e Donovan e Bob Dylan. Alice tinha só 16 anos em 1982, mas tem muito de 1971.

Fico observando enquanto ela pula pela sala ao som de Crosstown traffic do Jimi Hendrix, e, quando fica sem fôlego e se cansa de trocar discos a cada três minutos, Alice coloca um velho LP arranhado da Ella Fitzgerald e nos deitamos no sofá, lendo nossos livros e olhando furtivamente um para o outro de vez em quando, como Michael York e Liza Minnelli em Cabaré, e só falamos quando sentimos vontade. E, milagrosamente, durante quase uma tarde inteira, consigo não dizer nenhuma tolice, nada pretensioso, pedante, sem graça ou autodepreciativo, quebrar nem derramar nada, nem insultar ninguém, sem choramingar, resmungar, puxar o cabelo para trás ou futucar a cara durante a conversa. Na verdade, estou sendo a melhor pessoa que sou capaz de ser, e, se essa pessoa não é amável, pelo menos é gostável. Depois, por volta das 16h, Alice deita a cabeça no meu colo e adormece, e, pelo menos por aquele momento, parece verdade: ela é absoluta e inteiramente perfeita.

Estamos ouvindo Blue, lado 2, faixa 5, e Joni está cantando The last time I saw Richard was Detroit in ‘68 / and he told me all romantics meet the same fate someday / Cynical and drunk and boring someone in some dark cafe… e, quando o disco termina e a sala está em silêncio, a não ser pelo som das toras na lareira, e eu fico imóvel, quieto, observando enquanto ela dorme. Seus lábios estão ligeiramente abertos e sinto seu hálito quente na minha coxa; e concentro-me na pequena cicatriz em relevo no lábio inferior, branca no fundo vermelho. Sinto uma vontade irresistível de passar o polegar, mas ela está dormindo, então, fico só olhando, olhando e olhando e olhando. Mas, afinal, sou forçado a acordá-la, pois me preocupa que o calor e o peso de sua cabeça no meu colo me deixem muito estimulado, se é que você entende, e vamos encarar os fatos, ninguém gosta de ser acordado desse jeito. Não com aquilo na orelha.

E então, nem dá para acreditar, fica melhor ainda. Os pais dela saem para comer mais legumes no moinho de alguém em Southwold, e Alice e eu ficamos sozinhos na casa. Enquanto bebemos um monte de gim-tônica na cozinha, preciso confessar que fantasio nós dois vivendo juntos ali. Apagamos todas as

luzes da casa e jogamos palavras cruzadas à luz de velas, com dificuldade para enxergar as letras, e eu ganho por uma diferença bem grande, mas com modéstia e elegância. Aliás, com manha e espanto, que valem o triplo.

O jantar é risoto de arroz integral frito, que parece e tem gosto de risoto frito de restos da pá de lixo, porém fica minimamente comestível se você colocar bastante molho de soja. Além do mais, quando vamos comer, já estamos muito bêbados, falando ao mesmo tempo e rindo e dançando pela sala ao som das velhas músicas de Nina Simone, vendo até onde podemos escorregar de meias pelo chão de madeira. Depois, quando nos contorcemos num amontoado de risinhos, Alice de repente segura minhas mãos, sorri e diz com malícia:

— Você não quer subir?

Meu coração sai pela boca.

— Hum, depende... O que tem lá em cima? — pergunto, manhoso e divertido.

— Venha descobrir — e sobe a escada de quatro, gritando:

— No seu quarto, em dois minutos. Traga o vinho!

Concentre-se. Concentre-se.

Vou até a pia da cozinha, afasto a panela cheia de água, abro a torneira e molho o rosto, em parte para ficar mais sóbrio e em parte para ver se eu não estou sonhando, equilibro precariamente a garrafa de vinho e as taças quase cheias na ponta dos dedos e subo a escada.

Alice ainda não está no meu quarto. Então, vou até a pia e escovo os dentes rapidamente, atento ao som de passos para ela não me pegar e achar que eu estou antecipando alguma coisa. Quando percebo que ela vem vindo pelo corredor, enxáguo a boca, apago a luz e me acomodo na cama e fico esperando.

— Tcha-ram!

Ela está em pé na porta, braços abertos como uma vencedora do Oscar, mas não sei para onde eu deveria estar olhando. Seus seios talvez? Tenho a

esperança de que ela estará usando uma lingerie especial, mas depois vejo uma embalagem de papel de seda em uma de suas mãos e um pacotinho de plástico transparente na outra.

— O que é isso?

— Skank, cara. Skank da pesada. A gente não pode fazer isso lá em baixo. Michael fareja tudo. Essa história de pai boêmio só vai até certo ponto.

Ela pega um exemplar de Busy, Busy World, de Richard Scarry, da prateleira e começa a enrolar o baseado em cima do livro.

— E a sua mãe?

— Ah, é a minha mãe que consegue para mim, com um cara esquisito na cidade. O que eu posso dizer? É chato ser dona de casa. Ela precisa preencher os dias de algum modo, imagino. É um bagulho incrível. Incrííível!

Meu Deus! Ela está falando com um sotaque caribenho, uma mistura de Jamaica com Aldeburgh, e, pela primeira vez, eu me sinto constrangido por ela.

— Bagulho da pesada, cara! Erva da boa...

— Quer parar com isso, Alice, por favor? Ela acende e, puxando bem fundo a fumaça, retendo nos pulmões e revirando os olhos, sopra a fumaça na direção do abajur. E me pergunto se maconha é um afrodisíaco.

Alice me dá um olhar indolente e oferece o baseado, como se fosse um desafio. E é mesmo.

— Sua vez, Bri.

— Acho que não vou conseguir, Alice.

— Por que não? Por que você não quer ficar doidão, Bri?

Ela acha isso muito, muito engraçado, e, enquanto ela bate a cabeça na cabeceira, eu explico:

— Não, eu adoraria, só que nunca aprendi a fumar, nem tabaco. Sou um bobalhão, não consigo tragar, não sem estourar os pulmões. — Na verdade, fumar era uma das coisas que eu queria começar a fazer na faculdade, como ler Dom Quixote, deixar a barba crescer e aprender a tocar sax, mas ainda não cheguei lá.

— Você é estranho, Brian Jackson... — ela diz, de repente, muito séria. — Como você sabe não fumar? Fumar é, basicamente, o que eu faço melhor. Ou talvez a segunda coisa... — corrige, com outro olhar indolente. Afinal, talvez maconha seja mesmo um afrodisíaco. — OK, vamos tentar algo mais provocante. Mas, antes, um pouco de música! — Ela cambaleia até o destrambelhado toca-fitas de sua infância, com Alice escrito com corretivo, escolhe uma fita na gaveta da sua antiga mesa e aperta play. Acho que é Brian Cant, cantando A Froggy Went A Courtin.

— Uau... Um ataque proustiano! — diz Alice. — Essa música é a minha infância. Puta merda, eu amo, adoro essa música! Você não gosta? Muito bem, venha aqui, mocinho, levante e fique com as costas retas... — Nos ajoelhamos em cima da cama de frente um para o outro e ela aproxima o rosto a poucos centímetros do meu.

— OK, ponha as mãos aqui... — pega meus pulsos e coloca atrás das minhas costas — ...E abra os lábios, assim. — Sua boca está a centímetros da minha. Sinto o cheiro adocicado do molho de soja e gengibre em seu hálito. Ela ergue as mãos e aperta minhas bochechas num bico exagerado.

Froggy went a courtin‘ He did ride, uh-hum…

— Senhor Brian Jackson, vou te dar uma mãozinha, mas não é o que está pensando. Por isso, nada de atrevimentos, por favor. Vou soprar a fumaça na sua boca e você tem que inalar e prender nos pulmões sem tossir, entendeu? É proibido tossir! E vai prender a respiração o máximo possível antes de soltar a fumaça. Está claro?

— Perfeitamente.

— OK. Vamos lá!

Ela põe o baseado nos lábios, dá uma tragada profunda, sorri e ergue as sobrancelhas como que perguntando preparado? e eu faço que sim com a cabeça. Sim, estou preparado. Aproxima os lábios bem perto dos meus, a centímetros, milímetros de distância, com certeza nem isso, eles estão se tocando, e assopra e eu sugo o ar, o que é natural dadas as circunstâncias. E quero que esse momento dure para sempre.

Froggy went a courtin‘, he did ride

A sword and pistol by his side

A froggy went a courtin‘, he did ride, uh-hum . . .

Finalmente, quando meus pulmões estão prestes a explodir, solto a fumaça e ela se afasta e pergunta:

— O que achou?

Quando consigo voltar a fazer minha boca funcionar, respondo:

— Legal!

— Está sentindo alguma coisa?

— Não muito.

— Quer fazer de novo?

Meu Deus, Alice! Se quero? Mais do que qualquer coisa no mundo...

— Quero, sim, tudo bem...

— Tem certeza? Isso é bem forte...

— Tenho, Alice, sério. Eu seguro a onda.

Quando recobro a consciência, Alice se foi e eu estou debaixo do edredom e a música ainda toca. A fita está no automático. Não faço a menor ideia de

quanto tempo fiquei apagado; então, aperto o botão stop e procuro meu despertador de viagem. É 1h30 da manhã e, de repente, estou morrendo de sede, mas, graças a Deus, ainda tem meia garrafa de vinho ao lado da cama; então eu me sento e bebo a maior parte da garrafa. Verifico se Alice tirou minhas calças antes de me colocar na cama e constato que não, mas estou muito chapado para saber se estou feliz ou desapontado.

Além do mais, estou muito ocupado pensando em comida. Nunca senti tanta fome na vida. Até a abobrinha me parece apetitosa. Felizmente, lembro de que sou detentor de umas carnes frias! Abençoada seja minha mãe! Desencavo o pacote da mala, arranco a beirada de gordura de um pedaço de bacon cozido e enfio a parte magra na boca. É bom, mas está faltando alguma coisa. Pão. Preciso fazer um sanduíche. Preciso de pão.

Andar é mais difícil do que eu imaginava, e descer a escada parece quase impossível. Não quero acender as luzes, porém está escuro como breu, então me apoio nas paredes dos dois lados, dou passos leves pelo corredor e desço até a cozinha. O tempo se alonga e a viagem parece levar alguns dias, mas acabo chegando e dou início à exigente tarefa física de cortar duas fatias de pão caseiro integral. O sanduíche tem o tamanho, o peso e a textura de um tijolo, mas não ligo, porque contém as carnes frias. Sento-me à mesa e me sirvo de um pouco de leite, para tentar tornar o pão menos arenoso, mas o leite talhou, e, quando estou prestes a ir até a pia para cuspir, a luz se acende, e ouço um rangido no alto da escada.

Talvez seja Alice! Talvez a gente possa continuar de onde parou. Mas não é ela. É a Sra. Harbinson. Rose. Nua. Rose. Eu engulo o leite talhado.

Claro que eu deveria dizer alguma coisa amena, um assexuado e casual Olá, Rose!, mas o baseado e o vinho me deixaram confuso e desnorteado, e não quero uma mulher nua gritando comigo às 2h da manhã. Então, fico bem quietinho, torcendo para ela ir embora. Rose abre a porta da geladeira e se inclina para a frente, e a luz branca da geladeira e sua posição fazem com que pareça realmente nua. Um exame mais detalhado mostra que, na verdade, ela está usando meias cinza grossas o que dá à sua nudez um certo ar integral, de granola, como um diálogo de Os prazeres do sexo, e, no meu estado drogado e aturdido, me pergunto se existe a palavra pubicidade. O que ela está procurando? E por que está demorando tanto? Fico pensando que ela está bem para a idade também, mas, até aí, eu nunca vi uma mulher totalmente nua, não em carne e osso e tudo de uma vez, só em pequenas partes e nenhuma com mais de 19 anos. Por isso, não sou autoridade no assunto. Ainda assim, suponho que não falte um erotismo banal na situação, embora ligeiramente temperado pelo pacote de presunto em temperatura ambiente aninhado no meu colo. Com medo de que ela sinta o cheiro da carne, tento dobrar o pacote sem fazer barulho, mas o rangido parece reverberar pela cozinha como uma tempestade elétrica.

— Oh, meu Deus! Brian!

— Olá, Sra. Harbinson! — respondo, animado. Imagino que ela vá cobrir a nudez com os braços, porém ela não parece incomodada e só pega calmamente um pano de prato e enrola na cintura para cobrir o quadril como um sarongue. O estampado do pano cobre suas pernas.

— Oh, querido, espero não ter chocado você.

— Não, não...

— Mas tenho certeza que você já viu centenas de mulheres nuas.

— Você ficaria surpresa, Sra. Harbinson.

— Já falei para me chamar de Rose. Senhora Harbinson me faz sentir mais velha!

Faz-se um silêncio momentâneo enquanto procuro alguma coisa para dizer, a fim de minimizar qualquer desconforto ou constrangimento da situação, e penso na solução perfeita.

Digo, com um sotaque americano:

— Você está tentando me seduzir, Sra. Harbinson?

O que eu acabei de dizer...?

— Perdão?

Não fale de novo...

— Você está tentando me seduzir? — repito.

Rápido, explique, explique...

— Lembra-se da senhora Robinson, do filme...? — tento explicar.

Rose me encara sem entender.

— Quem é a senhora Robinson?

— É uma citação. De A primeira noite de um homem...

— Bem, Brian, devo dizer que não tenho intenção nenhuma de seduzir você...

— Eu sei, eu sei, e também não quero ser seduzido por você...

— Certo, hum... Que bom, então...

— Não que eu não ache você atraente...

— Como?

— Mas que merda está acontecendo aqui embaixo? — brada uma voz, e outra figura está trotando escada abaixo, as pernas musculosas e o peito forte. As musculosas pernas nuas e o peito forte do Sr. Harbinson. Parece estar com um guarda-chuva fechado entre as pernas, mas um exame mais detalhado revela ser um pênis. Agora, eu não sei mesmo para onde olhar. Deixar de olhar para a genitália de Rose parece dirigir meu campo de visão diretamente para a genitália do Sr. Harbinson, e, de repente, é difícil achar algum lugar na cozinha em que não haja uma genitália. Então, enfim, escolho um ponto no teto, logo acima do fogão, e me concentro, me concentro, me concentro.

— Não está acontecendo nada, Michael. Só desci para pegar algo para beber e Brian estava aqui, só isso...

Por que ela está parecendo tão culpada? Será que está querendo que ele me mate?

— E sobre o que vocês estavam conversando?

Meu Deus! Ele me ouviu! Estou morto...

— Nada! Brian me deu um susto, só isso...

O Sr. Harbinson e seu pênis não parecem convencidos, e percebo que ele, na verdade, não está cobrindo o pênis com a mão, mas, sim, o segurando. E, por um instante, sinto um medo irracional de que vá me bater com ele.

— Bem, falem baixo, sim? Rose, venha para a cama! — e sai trotando escada acima segurando seu guarda-chuva fechado. Claramente envergonhada, Rose pega um avental floral de vinil de um gancho perto do fogão, e o veste relutante, enquanto recolho qualquer indício de carne da mesa e o enfio na gaveta de talheres.

Enfim, ela se aproxima da mesa e sussurra:

— Acho melhor jamais comentarmos sobre isso, não é, Brian?

— Tudo bem, mas só queria dizer que eu estava citando...

— Vamos esquecer isso, sim? Fingir que nunca aconteceu... — ela está olhando para o meu rosto — Brian, você está se sentindo bem?

— Claro...

— Está parecendo um pouco pálido.

— Ah, essa é a minha cor normal, Rose!

Olha para o copo na minha frente.

— Isso é leite?

— Uh-hum.

— Então, você estava com o leite todo esse tempo?

— Acho que sim.

— Eu estava procurando esse leite, Brian — pegando o copo.

— Desculpa, mas eu não beberia isso se eu fosse você!

— Por que não?

— Está estragado, talhado. Está nojento...

Ela pega o copo de leite talhado, cheira, prova, olha para mim com o maior desdém e diz:

— Isso é leite de soja, Brian.

Em algum lugar do chalé Blackbird, soam gargalhadas histéricas, um cacarejo louco, horrível, a gargalhada de uma criança patética e depravada, e levo algum tempo para perceber que estão vindo de mim.

Quando acordo na manhã seguinte, passo pelo habitual hiato de três segundos antes de perceber que deveria estar me sentindo muito envergonhado e me lembrar do motivo. Solto um gemido, de verdade, um gemido em voz alta, como se alguém tivesse pulado no meu peito. Olho para o despertador. São 11h30 e sinto como se estivesse saindo de um coma.

Continuo deitado por um tempo, tentando pensar na melhor maneira de lidar com a situação. A melhor maneira de lidar com a situação seria me matar, mas a segunda melhor maneira envolve uma grande quantidade de súplicas e humilhação, rastejar e zombar de mim mesmo. Quando começo a me vestir para acabar logo com aquilo, alguém bate à porta.

É Alice, com uma expressão séria, aliás bem adequada. Será que ela sabe que a mãe estava nua e acha que eu tentei seduzi-la?

— Olá, Bela Adormecida... — murmura.

— Alice, sinto muito, sinto muito mesmo por ontem...

— Ora, tudo bem, não foi nada, esqueça... — Obviamente, ela não sabe. — Olha, Brian, aconteceu uma coisa. Preciso ir a Bournemouth... — Senta-se na beira da cama e parece que vai chorar.

— O que aconteceu?

— A vovó Harbinson caiu da escada ontem à noite. Está no hospital com a bacia fraturada e nós precisamos ir até lá...

— Que pena, Alice...

— Mamãe e papai já foram, mas eu tenho de ir também. Então, acho que o nosso Ano-novo não vai rolar.

— Ah, tudo bem... Vou verificar o horário dos...

— Já fiz isso. Tem um trem partindo para Londres em 45 minutos. Levo você até a estação. Tudo bem?

Então, começo a fazer a mala, enfiando livros e roupas na mala como se fosse uma evacuação de emergência e, em 10 minutos, estamos no Land Rover com Alice na direção. Ela parece pequena atrás do volante, como uma boneca dirigindo um jipe. A neve se transformou numa lama cinzenta e suja e parece que estamos indo muito rápido, o que só contribui para o clima geral de tensão e ansiedade.

— Estou com uma dor de cabeça terrível — comento.

— Eu também — responde ela.

Percorremos 200 metros.

— Encontrei, por acaso, com sua mãe e seu pai na cozinha ontem à noite — disse, de modo casual.

— É mesmo?

Outros 200 metros.

— Eles comentaram alguma coisa a respeito?

— Na verdade, não. Por que deveriam?

— Por nada.

Parece que estou seguro. Claro que não estou feliz com a queda da vovó Harbinson da escada, mas, ao menos, ela deu uma ajudinha.

Chegamos à estação 15 minutos antes da hora, e Alice me ajuda a carregar a mala até a plataforma vazia.

— Desculpe por você não poder ficar para o Ano-novo.

— Ah, tudo bem... Mande lembranças à vovó Harbinson.

Por quê? Eu nem conheço a mulher, pelo amor de Deus!

— E, realmente, sinto muito pela overdose de ontem à noite.

— Sem problema... Olha, você se importa se eu não esperar o trem chegar? Tenho que ir logo... — Nós nos abraçamos, mas não nos beijamos, e ela vai embora.

Chego em casa perto da hora do chá e entro. Minha mãe está deitada no sofá na sala de moletom assistindo a Blockbusters num volume altíssimo, com um cinzeiro equilibrado na barriga, um balde de doces Quality Street e uma garrafa de licor Tia Maria na mesinha à sua frente. Quando entro, ela se senta e esconde a garrafa embaixo da almofada, mas, depois, percebe que deixou o copo à mostra e tenta segurar com as duas mãos, como se fosse uma xícara de chocolate quente ou algo assim.

— Você voltou mais cedo!

— Sim, mãe, eu sei...

Vou ficar com um P, Bob...

— O que aconteceu?

— A avó da Alice quebrou a bacia.

— Como isso aconteceu?

— Eu a empurrei escada abaixo.

— Não, sério...

— Não faço ideia, mãe.

Qual palavra começada com P é o principal ingrediente químico na fabricação de fósforos?

— Coitadinha... Ela vai se recuperar?

— Como é que eu vou saber? Não sou o médico da mulher, sou? Pólvora.

Resposta certa.

— O quê? — pergunta minha mãe.

— A televisão! — respondo.

— Vou escolher um H, por favor, Bob...

— Algum problema, Bri?

— Não, problema nenhum!

Qual palavra começada com H deu o nome para o...?

— Você brigou com a sua namorada...

— Ela não é minha namorada!

— Tudo bem! Não precisa gritar!

— Não é um pouco cedo para coquetéis, minha mãe?

Subo correndo a escada, sentindo-me abatido e mesquinho. De onde saiu aquele desagradável e irritante minha mãe? Nunca a chamei de minha mãe. Vou para o meu quarto, bato a porta, deito na cama e coloco o fone de ouvido para ouvir meu cassete de Lionheart, o lindo segundo álbum de Kate Bush, Symphony in Blue, lado A, faixa 1. Mas, imediatamente, percebo que está faltando alguma coisa.

As carnes.

Deixei o pacote de carnes frias na gaveta da cozinha na noite passada. Não tenho o número dos Harbinson em Bournemouth. Então, decido ligar para o chalé e deixar uma mensagem para quando Alice chegar. Depois de quatro toques, a caixa de mensagens é ativada e já estou pensando no que dizer quando inesperadamente alguém atende.

— Alô...?

— Oh, alô, é... É Rose?

— Quem está falando?

— É Brian, amigo da Alice.

— Oh, Brian, olá! Espere só um pouquinho, sim?

Ouço um farfalhar quando ela põe a mão no receptor, um vago murmúrio e, então, Alice atende.

— Brian?

— Oi! Vocês ainda estão aí!

— Sim, sim, estamos aqui.

— Pensei que vocês estavam em Bournemouth...

— Estávamos, mas... A vovó estava bem melhor e nós voltamos. Na verdade, acabamos de chegar.

— Entendi. Então, ela está bem?

— Está muito bem!

— Não fraturou a bacia?

— Não, só uns hematomas e... hã... o trauma.

— Que bom! Fico feliz em saber. Bem, não pelo trauma, mas de não estar em risco de vida...

Silêncio.

— Então...?

— Eu só queria dizer que deixei... Hã... Você sabe. As carnes... aí.

— Entendi. E onde está essa... carne?

— Na gaveta da mesa da cozinha.

— Ah, tá! Eu vou pegar.

— Melhor esperar até a sua mãe não estar perto, não?

— É claro.

— Então, a gente se vê na faculdade no ano que vem?

— Isso. A gente se vê no ano que vem!

Ela desliga e fico ali no corredor, olhando para o espaço com o telefone na mão.

Ouço a televisão na sala.

Que pessoa, com sobrenome começado com K, enunciou as três leis que descrevem exatamente o movimento dos planetas ao redor do sol?

— Joanes Kepler — respondo para ninguém.

Resposta certa!

Não tenho a menor ideia do que fazer agora.

22

PERGUNTA: Tendo origem no tanka de 31 sílabas, qual composição poética japonesa consiste em 17 sílabas arranjadas em versos de 5, 7 e 5?

RESPOSTA: O haicai.


A reação de Rebecca Epstein é rir. Ela se deita no meu futon, no meu quarto em Richmond Hill e dá muita risada, agitando os coturnos Doc Martens com um deleite sádico.

— Não é tão engraçado assim, Rebecca.

— Ah, é sim, com certeza!

Desisto e vou mudar o disco.

— Desculpa, Jackson, mas imaginar o casal escondido no depósito de madeira até você ir embora...

Isso faz com que ela comece a rir de novo. Então, decido ir até o quarto de Josh pegar mais cerveja caseira.

Fico mais 18 horas com minha mãe antes de decidir voltar para a faculdade. Explico mais uma vez que preciso de alguns livros específicos da biblioteca e ela dá de ombros, não acreditando muito, e, às 10 horas, já estou na escada da frente de casa recusando as mesmas comidas.

No trem de volta, começo a me animar um pouco. E daí que vou passar o Ano-novo sozinho numa república? Posso adiantar alguns trabalhos, ler, fazer longas caminhadas, tocar música tão alto quanto quiser. E amanhã, véspera de Ano-novo, vou lutar contra essa ridícula tradição que diz que devemos sair e ficar bêbados e nos divertir. Vou ficar em casa e não me divertir. Vou ficar bêbado, mas vou ler um livro e dormir às 23h58. Isso vai dar a eles uma lição, convenço a mim mesmo, sem realmente saber quem são eles.

Mas, assim que chego à república, percebo que cometi um erro terrível. Ao abrir a porta da frente, sou atingido por um bafo quente de levedura, da cerveja caseira de Yorkshire de Marcus e Joshua, e é como se a casa inteira tivesse arrotado na minha cara. Entro no quarto de Joshua e encontro um barril de plástico borbulhando e chiando perto de um aquecedor ligado no máximo. Abro a janela para ventilar um pouco aquele gás intestinal.

Claro que ninguém voltou ainda, como eu imaginava, mas acho que não estava preparado para ver a casa tão vazia assim. Então, decido ir ao mercadinho da esquina. São 17h45, a hora perfeita para se comprar comida com desconto.

Comprar comida com desconto não é algo que se deve fazer de maneira descuidada. Os enlatados amassados costumam ser seguros, mas os produtos frescos são um campo minado. Como regra geral, a redução do preço é proporcional ao perigo envolvido em ingerir o alimento; então, o truque é fazer uma compra vantajosa sem que isso provoque uma dor de barriga. Um mero desconto de 10 pence em meio quilo de rosbife cinza-azulado quase vale o risco, mas um frango inteiro por 25 pence é sinal de encrenca. Rosbife e frango também são, normalmente, mais seguros do que carne de porco ou peixe. Carne de porco passada não é bom para ninguém, mas com um rosbife velho a gente, ao menos, pode se enganar dizendo que não está estragado, mas, sim, bem-passado. O mesmo se aplica a comidas muito temperadas, que não estão estragadas, só muito picantes. Por essa razão que o curry é um caso clássico item com desconto no preço.

No mercadinho, eu e uma velhinha com um bigode de Emiliano Zapata nos olhamos cautelosamente por cima do freezer. Como se passaram poucos dias desde o Natal, há vários perus letais ali, assim como uma perna de cordeiro que parece prestes a pular e andar de volta para a fazenda sozinha. Não é uma boa perspectiva; por isso, decido partir para um prato de filé desidratado com curry com 75 pence de desconto e um pequeno agrado, um pote de Nesquik sabor banana e meio litro de leite.

Mas a alegria dura pouco. Quando volto, tomo o Nesquik, ponho a chaleira para ferver, dissolvo o pó de curry amarelo-berrante numa caçarola, janto e começo a me sentir como Robinson Crusoé. A casa está vazia, chove lá fora, a televisão portátil de Josh está trancada no guarda-roupa dele e começa a ficar bem claro que os tais melhores anos da minha vida nunca vão acontecer.

Sai dessa! Faça alguma coisa!

Roubo uns trocados da jarra de cobre no quarto de Josh e empilho as moedas perto do telefone público no corredor.

Mas ligar para quem? Penso em ligar para um cara chamado Vince que conheci numa festa, mas não quero ir a um pub só com mais um sujeito, e também não tenho o número dele e não consigo me lembrar do sobrenome ou de onde ele mora ou qualquer coisa a respeito. Lucy Chang está em Minneapolis, e acha que sou racista. Colin Pagett ainda está com hepatite. Quase ligo para Patrick, antes de me lembrar de que não gosto dele. Por fim, resolvo ligar para Rebecca Epstein, pois ela é aluna de direito, e direito é um curso mais puxado e existe uma boa chance de ela estar fazendo algum trabalho.

Ela mora na Kenwood Manor, na mesma ala que Alice. Por isso, sei o número. Depois de uns 20 toques, uma voz com sotaque de Glasgow atende.

— Alô, é a Rebecca — Pausa. — Alôôôô?

— Aqui é o Brian.

Pausa.

— Brian Jackson — explico.

— Eu sei qual Brian. O que está fazendo aqui?

— Fiquei entediado, só isso.

— Meu Deus! Eu também! — Outra pausa. — Então...?

— Estava pensando no que você vai fazer hoje à noite.

— Esperar você ligar, claro. Isso é um convite? — indaga, como se estivesse perguntando isso é um cocô?

— Não. Só pensei se você não gostaria de ir ao cinema ou coisa assim. Está passando O Evangelho segundo São Mateus, do Pasolini, no Arts...

— Será que não poderíamos assistir a alguma coisa mais divertida...?

— O primeiro ano do resto de nossas vidas, no ABC?

— Pelo menos, não é um filme do Pasolini.

— De volta para o futuro, no Odeon...

— Quantos anos você tem, mesmo...?

— Cocoon, no ABC...

— Deus me livre...

— Você é meio exigente, não?

— Eu sei. Dá medo, não é? Tem certeza de que está a fim de encarar, Brian?

— Acho que sim. Então, o que você quer fazer?

— Você tem bebida?

— Doze galões. Só que tudo de cerveja caseira.

— Eca! Mas eu não sou perfeccionista... Você mora na Richmond House?

— Isso.

— Tudo bem. Chego em meia hora.

Ela desliga e, de repente, fico com medo.

Quarenta minutos depois, ela está sentada na minha cama bebendo cerveja caseira e rindo de mim. Como de costume, está com o seu uniforme, ou o que mais parece um uniforme. Coturnos pretos, meias-calças pretas embaixo de uma minissaia jeans azul-escura, um suéter preto de gola em V e o sobretudo militar preto que eu ainda não a vi tirar. O cabelo curto está lustroso de gel Black and White, erguido num pequeno topete oleoso na frente do quepe de operário preto e pontudo. Na verdade, tudo o que ela usa parece sugerir intencionalmente uma vida de trabalho árduo, o que, de fato, é estranho, pois me lembro de que a mãe dela é ceramista e o pai é pediatra. A única concessão de Rebecca às noções convencionais de feminilidade é uma grossa camada de batom brilhante vermelho-rubi e uma grande quantidade de rímel que a faz parecer, ao mesmo tempo, intimidadora e glamorosa, como uma representante hollywoodiana do grupo Baader-Meinhof. Ela até fuma como uma estrela de cinema, Bette Davis ou alguém assim, mas uma estrela que enrola os próprios cigarros. Aliás, hoje ela parece um pouco mais atraente que de costume, e me sinto um pouco preocupado por ela ter se esforçado para isso.

Quando ela, enfim, para de rir, eu digo:

— Bem, fico contente de você achar a minha vida sexual engraçada, Rebecca.

— Mas só é vida sexual se tiver sexo, não é?

— Talvez ela estivesse dizendo a verdade...

— Sim, Brian, claro que estava dizendo a verdade. Falei que ela era uma vaca, não falei? E não adianta ficar com essa cara de bunda. Você sabe que é engraçado. Senão, não teria me contado. — Dá uma tragada no cigarro e deixa a cinza cair no chão ao lado do futon. — De qualquer modo, foi bem-feito para você.

— Por quê?

— Você sabe por quê. A grande sedução da burguesia. Pode se chamar de socialista, mas, no fim de tudo, você é igual aos outros alpinistas sociais dessa universidade. Todos prontos para ficar de barriga para cima e serem afagados pelas ditas classes superiores...

— Isso não é verdade!

— É, sim... Conservador no armário!

— Stalinista...!

— Traidor da classe!

— Esnobe!

— Esnobe invertido!

— Proto-yuppie! Dá pra tirar suas botas Doctor Martens de cima do meu edredom?

— Com medo que eu estrague o primoroso tecido?

Mas ela tira os pés, vem sentar ao meu lado e toca o copo de cerveja quente no meu, como forma de reconciliação.

— Por que o estrado da sua cama está atrás do guarda-roupa? — pergunta.

— Quis transformar minha cama num futon.

— Um futon, é? Bem, Brian, devo dizer que um colchão no chão não faz um futon.

— Isso é quase um haicai — comento.

— Quantas sílabas tem um haicai?

Essa eu sei.

— Dezessete, arranjadas em 5-7-5.

Ela pensa, por talvez um segundo, e diz:


Fedor certamente

Segue um colchão no chão.

Que não faz um bom futon.


Faz menção de tomar um gole, mas interrompe o gesto para tirar um fiapo de tabaco grudado no batom, um gesto tão extravagante, lânguido e relaxado que me noto de soslaio olhando seus lábios para o caso de ela fazer aquilo de novo. Quando ela percebe, balbucio:

— Então, como foi o seu Natal?

— Nós não comemoramos o Natal. Somos judeus. Nós matamos Cristo, lembra?

— Mas e a... como chama... Páscoa Judaica?

— Hanukah. Também não comemoramos. Brian Jackson, para alguém que está representando nosso glorioso estabelecimento no Desafio Universitário, você é muito ignorante. Quantas vezes vou ter de explicar que somos judeus socialistas, não ortodoxos e antissionistas de Glasgow?

— Não parece muito divertido...

— É! Não é mesmo! Por que acha que estou aqui com você?

Acho que vou tentar a sorte com um pouco de humor judaico.

— Como é que os judeus se presenteiam sem Natal

— O quê?

— Nada...

Ela me examina por um momento e abre um meio sorriso...

— Antissemita...

Retorno o sorriso. De repente, sinto um incrível afeto por Rebecca Epstein e quero fazer um gesto de amizade. Tenho uma ideia.

— Isso me lembra que comprei isso para você! Feliz Hanukah!

É o álbum da Joni Mitchell que Alice não quis. Eu perdi a nota fiscal. Rebecca olha para mim, questionando:

— Para mim?

— Uh-hum.

— Tem certeza? — Ela faz a pergunta como um guarda da fronteira da Europa Oriental, desconfiando de que o meu passaporte é falso.

— Absoluta!

Ela segura o disco entre o indicador e o polegar e examina o verso da embalagem.

— Joni Mitchell...

— Uh-hum. Você conhece?

— Conheço o trabalho dela.

— E já tem esse disco?

— Não. Não, não tenho.

— Bem, deixe eu pôr para tocar...

Pego o disco da mão dela, vou até o aparelho, retiro Tears For Fears e ponho Blue, lado 2 faixa 4, A Case Of You, sem dúvida uma das mais belas canções de amor já gravadas em vinil. Depois de ouvirmos a introdução e o primeiro verso em silêncio, pergunto:

— Então? O que você acha?

— Acho que fiquei menstruada.

— Você não gostou?

— Bem, para ser bem honesta, não é a minha, Brian.

— Você vai acabar gostando...

— Hummm — murmura ela, duvidosa. — Então, grande fã da Joni, é?

— Mais ou menos. Para ser honesto, sou mais a Kate Bush.

— Hum, imaginei...

— Por quê?

— Porque você é The Man With The Child In His Eyes, Brian— Rebecca fala e tenta esconder o riso na cerveja.

— O que você anda ouvindo no momento?

— Muitas coisas. Durutti Column, Marvin Gaye, The Cocteau Twins, um pouco de blues de raiz, Muddy Waters, The Cramps, Bessie Smith, Joy Division, The New York Dolls, Sly and the Family Stone, algumas regravações. Vou fazer uma compilação, ver se consigo desmamar você dessa música melosa. É preciso tomar cuidado com essas cantoras-compositoras, Brian. Elas são boas com moderação, mas, se ficar ouvindo só essas coisas, você pode começar a desenvolver seios.

— Se você não quer o presente, é só falar... — e levanto para mudar o disco.

— Não! Não, eu fico com ele. Posso acabar gostando. Muito obrigada, Brian. Muito cristão de sua parte.

Volto a me sentar ao seu lado e ficamos em silêncio por um momento. Então, ela pega a minha mão, aperta bem forte e diz:

— Sério, obrigada.

Dez minutos depois, estamos na cama e, de algum modo, minha mão entrou no sutiã dela.

Dizem que o lado pessoal se manifesta na política, e é justo dizer que o beijo de Rebecca Epstein é como a sua política — radical, direto e inflexível. Deito de costas e ela pressiona minha cabeça no travesseiro e seus dentes trincam os meus, mas quero dar o melhor de mim e trinco de volta. Então, é só uma questão de tempo até nossos dentes perderem o esmalte. A combinação da bebida com o aquecedor a gás me deixou embriagado, até um pouco assustado, mas é divertido, como estar aprontando alguma na escola. A camada grossa de batom cria uma câmara de ar comprimido na junção de nossas bocas, e, quando ela afinal se afasta, quase ouço um pop como nos desenhos animados, quando um desentupidor de pia é puxado da cara de alguém.

— Tudo bem? — pergunta Rebecca. O batom está borrado ao redor da boca, como se ela tivesse comido framboesas.

— Tudo bem — concordo, e ela está em cima de mim de novo. O gosto dela lembra levedura de cerveja e Golden Virginia e a oleosidade perfumada do batom. Não consigo deixar de me preocupar com o curry que comi mais cedo. Será que devo fingir ir ao banheiro e escovar os dentes? Mas aí Rebecca vai saber que escovei os dentes por causa dela e não quero parecer convencional. Será que mau hálito é, de algum modo, não convencional? É provável que não, mas, se eu escovar os dentes, Rebecca pode pensar que quero que ela escove os dentes também, o que não quero. Na verdade, adoro gosto de tabaco, dessa sensação de fumar por tabela. É melhor continuar. Mas o que fazer a seguir? Como um ventríloquo, tento passar a mão nas suas costas, por baixo da blusa, mas ela ainda está de sobretudo, e, quando consigo me desvencilhar do sobretudo, percebo que o suéter está preso na saia. Então, tento encontrar uma via alternativa pela gola do suéter. Preciso torcer o braço para fazer isso e girar a mão nos ângulos certos, como o pior batedor de carteiras do mundo, mas acabo chegando lá. O sutiã é preto, de renda e levemente acolchoado, o que me surpreende, e, por um momento, me vejo refletindo sobre a política desse sutiã. Por que acolchoado? Não é fora do normal para Rebecca? Por que ela sentiria necessidade de se conformar com noções de feminilidade convencionais definidas pelos homens? Por que seria obrigada a adquirir a convencional imagem corporal sensual que, na verdade, nenhuma mulher é capaz de alcançar na vida real, exceto, talvez, Alice Harbinson.

De repente, ela interrompe o beijo e imagino que vá me perguntar o que eu acho que estou fazendo, porém, em vez disso...

— Brian?

— O quê?

— Tem uma coisa que eu preciso contar. Eu não estava brincando agora há pouco. Quando disse que estava daquele jeito.

— Tudo bem. Eu também estou daquele jeito.

Ela me dá um olhar zombeteiro.

— Por alguma razão, acho que não está, Bri...

— Não, sério, estou. Posso não ter parecido estar, mas estou mesmo...

Ela faz uma careta.

— Você está menstruado?

— Como? Ah, entendi! Não, desculpa, achei que estava querendo dizer, você sabe...

— O quê?

— Daquele jeito?

— O que é daquele jeito?

Penso por um segundo.

— Uma gíria? — proponho, esperançoso, no entanto minha mão já está fora do sutiã para nunca mais voltar. Ela se senta na beira da cama e ajeita a meia-calça, vendo se rasguei o suéter ou estraguei tudo.

— Talvez não seja uma ideia tão boa assim, afinal.

— Eu não me importo, sinceramente...

— E o que você quer dizer com isso?

— Quero dizer que, por mim, tudo bem você estar menstruada.

— Ah, bem, fico contente de estar tudo bem, Jackson. Pois, afinal, não tem merda nenhuma que eu possa fazer a respeito, tem?

— Desculpe... Não sei mais o que dizer.

— Aposto que Alice Harbinson nem menstrua...

— O quê?

— ...ela deve pagar alguém pra menstruar por ela...

— Espera aí! O que isso tem a ver com Alice?

— Nada!

Ela se vira e parece a ponto de surtar comigo de novo, mas abre um sorriso, ou, ao menos, um meio sorriso.

— É melhor você limpar esse batom da cara. Está parecendo um palhaço... — Limpo a boca na ponta do edredom e escuto ela murmurar:

— Você é um palhaço.

— O que eu fiz agora?

— Você sabe.

— Ei, foi você quem começou!

— Comecei o quê?

— A falar de Alice...

— Pelo amor de Deus, Jackson...

— Só estou falando porque você falou antes...

— Mas você está pensando nela, não está?

— Não! É claro que não! — replico.

Mas estou. Rebecca continua a me olhar nos olhos até ter certeza do fato e vira para o outro lado.

— Isso é estúpido... — diz baixinho, apertando os olhos com as palmas das mãos. — Estou meio alta. Acho melhor ir embora. — Talvez eu não soubesse antes, mas agora definitivamente não quero que Rebecca vá embora. Por isso, pulo na frente dela e tento beijá-la de novo. Ela vira o rosto.

— Por que você tem que ir embora?

— Eu não... Não sei... Sobre o que acabou de acontecer. Podemos esquecer isso?

— Ah... Tudo bem... OK. Eu preferia que não fosse embora, mas se é isso que você quer...

— Acho que sim. Eu quero — e está de pé ajeitando o sobretudo e indo em direção à porta, enquanto fico me perguntando o que havia feito daquela vez. Quero dizer, além do normal, da minha inépcia completa. Desço a escada com ela até o corredor, no qual ela escala o amontoado de bicicletas bloqueando o caminho.

— Olha só! Agora, rasguei a droga da meia-calça...

— Pelo menos, deixe eu acompanhar você até a sua casa.

— Não, obrigada.

— Eu não me importo...

— Estou bem...

— Você não devia voltar sozinha...

— Vou ficar bem...

— De verdade, eu insisto... — e ela dá meia volta, aponta o dedo para mim e rosna: — E eu insisto que você não me acompanhe! Está claro?

Nós dois ficamos surpresos pela maneira áspera como ela fala. Acho que até dou um passo atrás. Olhamos um para o outro nos perguntando sobre o que estava acontecendo. Depois, ela diz:

— Além do mais, você devia ir para a cama. Você está daquele jeito, lembra? — Abre a porta. — Nunca mais vamos falar disso, ok? E não conte a ninguém, tudo bem? Especialmente para maldita Alice Harbinson. Promete?

— É claro que não. Por que eu contaria...?

Mas ela já está na metade dos degraus, e desaparece na noite sem olhar para trás.

Загрузка...