Um Capricho dos Deuses
Sidney Sheldon
Título original: Windmills of the Gods
Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos
Editora Record, 7ª ed.
Digitalizado por SusanaCap
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Sumário
LIVRO UM 6
LIVRO DOIS 125
LIVRO TRÊS 196
Contracapa
Mary Ashley, uma jovem e brilhante professora de assuntos da Europa Oriental na Universidade Estadual do Kansas, é designada embaixadora dos Estados Unidos num país da Cortina de Ferro, a Romênia. Desse momento em diante, ela mergulha num pesadelo assustador, que acaba com a vida de seu marido e ameaça a sua e a de seus dois filhos. Numa diabólica trama de espionagem, concebida por uma cabala, de poderosos líderes mundiais, a ação vai de Washington a Paris, Roma, Buenos Aires e Bucareste.
Sozinha, estranha numa terra estranha, Mary Ashley se descobre atraída por dois homens carismáticos: Mike Slade, seu enigmático subchefe da missão, e Louis Oesforges, médico da embaixada francesa. Um deles está envolvido numa conspiração para matá-la — mas qual?
A tensão vai se adensando para um clímax espetacular, enquanto uma das mais tocantes heroínas de Sheldon passa de uma inocente esposa e mãe oriunda de uma pequena cidade americana para uma mulher que se vê obrigada a enfrentar inimigos mortais desconhecidos e que se torna o alvo de Angel, um assassino de aluguel de nível internacional que jamais fracassou em qualquer contrato de assassinato.
Neste seu novo e magistral livro, Sidney Sheldon apresenta os mesmos personagens fascinantes e a ação vertiginosa que se tornaram a sua marca registrada.
Prólogo
Perho, Finlândia
A reunião foi realizada numa cabana confortável, preparada para resistir a qualquer tempestade, numa área remota de bosques, a 340 quilômetros de Helsinki, perto da fronteira russa. Os membros da divisão ocidental do Comitê chegaram discretamente, a intervalos regulares. Vinham de oito países diferentes, mas um importante ministro do Valtioneuvosto, o conselho de Estado finlandês, cuidara de tudo e não havia visto de entrada em seus passaportes. À chegada, guardas armados escoltavam os visitantes até a cabana. Depois que o último apareceu, a porta da cabana foi trancada e os guardas tomaram suas posições, sob o vento uivante de janeiro, alertas a qualquer sinal de intrusos.
Os homens sentados à mesa grande e retangular eram poderosos, ocupavam altos cargos em seus respectivos governos. Já haviam se encontrado antes, em circunstâncias menos clandestinas, e confiavam uns nos outros porque não tinham opção. Como medida de segurança adicional, cada um recebera um codinome.
A reunião já se prolongava há quase cinco horas, e a discussão era acalorada.
O presidente acabou decidindo que estava na hora de fazer uma votação. Levantou-se, um homem muito alto, virou-se para o companheiro sentado à sua direita.
— Sigurd?
— Sim.
— Odin?
— Sim.
— Balder?
— Estamos sendo precipitados. Se isso vier à tona, nossas vidas estariam...
— Sim ou não, por favor?
— Não...
— Freyr?
— Sim.
— Sigmund?
— Nein. O perigo...
— Thor?
— Sim.
— Tyr?
— Sim.
— Eu também voto sim. A resolução está aprovada. Informarei ao Controlador. Em nossa próxima reunião comunicarei a sua recomendação para a pessoa mais bem qualificada para executar a proposta. Manteremos as precauções habituais e sairemos a intervalos de vinte minutos. Obrigado, senhores.
Duas horas e 45 minutos depois, a cabana estava deserta. Um grupo de especialistas, levando querosene, entrou em ação e ateou fogo à cabana, as chamas vermelhas atiçadas pelo vento.
Quando a palokunta, a brigada de incêndio de Perho, chegou ao local, nada mais restava para se ver, além das brasas fumegantes que destacavam a cabana contra a neve. O assistente do chefe dos bombeiros aproximou-se das cinzas, inclinou-se e cheirou.
— Querosene — murmurou. — O incêndio foi proposital.
O chefe olhava fixamente para as ruínas, com expressão aturdida.
— É muito estranho...
— O quê?
— Estive caçando nesta área na semana passada. Não havia nenhuma cabana por aqui.
LIVRO UM
1
Washington, D.C.
Stanton Rogers estava fadado a ser presidente dos Estados Unidos. Era um político carismático, atraía a atenção de um público que o aprovava, contava com o apoio de amigos poderosos. Infelizmente para Rogers, a libido interrompeu sua carreira. Ou, como comentaram os maledicentes de Washington:
— O velho Stanton fodeu-se no caminho para a presidência.
Não se diga que Stanton Rogers se imaginava um Casanova. Ao contrário, fora um marido exemplar até aquela aventura romântica fatal. Era bonito, rico, e estava se encaminhando para um dos cargos mais importantes do mundo; tivera muitas oportunidades para enganar a esposa, mas nunca pensara em outra mulher.
Houve uma segunda ironia, talvez maior: a esposa de Stanton Rogers, Elizabeth, era comunicativa, bonita e inteligente, e os dois partilhavam um interesse comum em quase tudo, enquanto Barbara, a mulher por quem Rogers se apaixonou e acabou casando, depois de um divórcio que foi a delícia dos colunistas, era cinco anos mais velha, tinha um rosto agradável mas não era bonita, e parecia não ter nada em comum com ele. Stanton era atlético; Barbara detestava todas as formas de exercício físico. Stanton era gregário; Barbara preferia ficar a sós com o marido ou então receber apenas pequenos grupos. A maior surpresa para os que conheciam Stanton Rogers era a diferença política. Stanton era um liberal, enquanto Barbara fora criada numa família de arquiconservadores.
Paul Ellison, o maior amigo de Stanton, comentara:
— Você deve ter perdido o juízo! Você e Liz estavam praticamente no Livro Guinness de Recordes Mundiais como o casal perfeito. Não pode jogar tudo isso fora por uma trepada rápida.
Stanton Rogers respondera tensamente:
— Não fale assim, Paul. Estou apaixonado por Barbara e vamos casar assim que eu obtiver o divórcio.
— Tem alguma idéia das conseqüências para a sua carreira?
— Metade dos casamentos deste país termina em divórcio. Não fará a menor diferença.
Revelara-se um péssimo profeta. As notícias do divórcio litigioso foram um maná para a imprensa, e as publicações sensacionalistas divulgaram tudo, inclusive fotografias do ninho de amor de Stanton Rogers e histórias de encontros secretos à meia-noite. Os jornais sustentaram a história por tanto tempo quanto foi possível. Quando o furor finalmente se desvaneceu, os amigos poderosos que apoiavam Stanton Rogers em seu caminho para a presidência haviam desaparecido. Encontraram um novo cavaleiro andante para apoiar: Paul Ellison.
Ellison era uma escolha sensata. Podia não possuir a aparência atraente e o carisma de Stanton Rogers, mas era inteligente, simpático e tinha os antecedentes certos. Era baixo, feições regulares, olhos azuis que irradiavam sinceridade. Estava casado e feliz há dez anos com a filha de um magnata do aço; ele e Alice eram conhecidos como um casal afetuoso e apaixonado.
Como Stanton Rogers, Paul Ellison cursara Yale e se formara pela Faculdade de Direito de Harvard. Os dois haviam sido criado juntos. Suas famílias possuíam casas de veraneio vizinhas em Southampton, e os garotos iam à praia, organizavam times de beisebol e, mais tarde, saíam juntos com namoradas. Foram da mesma turma em Harvard. Paul Ellison saíra-se muito bem, mas Stanton Rogers fora o astro da turma. O pai de Stanton Rogers era sócio sênior de um prestigiado escritório de advocacia de Wall Street. Stanton trabalhava lá nas férias de verão e arrumou para que Paul o acompanhasse. Assim que saiu da faculdade, a estrela política de Stanton Rogers começou a subir meteoricamente; e se ele era o cometa, Paul Ellison era a cauda.
O divórcio mudou tudo. Foi Stanton Rogers quem se tornou agora o apêndice de Paul Ellison. A trilha que levava ao topo da montanha exigiu quase quinze anos para ser percorrida. Ellison perdeu uma eleição para o Senado, ganhou a seguinte, e nos quatro anos subseqüentes tornou-se um legislador objetivo e destacado. Lutou contra o desperdício no governo e a burocracia de Washington. Era um populista, e acreditava na détente internacional. Foi convidado a fazer o discurso de ratificação da candidatura do Presidente, que concorria à reeleição. Fez um discurso brilhante e arrebatado, que impressionou todo mundo. Quatro anos depois, Paul Ellison foi eleito presidente dos Estados Unidos. Sua primeira nomeação foi de Stanton Rogers como assessor presidencial para a política externa.
A teoria de Marshall McLuhan de que a televisão transformaria o mundo numa aldeia global se tornara realidade. A posse do 42? presidente dos Estados Unidos foi transmitida via satélite para mais de 190 países.
No Black Rooster, um ponto de encontro dos jornalistas de Washington, Ben Cohn, um veterano repórter político de The Washington Post, estava sentado a uma mesa em companhia de quatro colegas, assistindo à posse no enorme aparelho de televisão que ficava por cima do balcão.
— O filho da mãe me custou cinqüenta dólares — queixou-se um dos repórteres.
— Eu bem que avisei para não apostar contra Ellison
— disse Ben Cohn. — Ele tem magia. Devia ter acreditado nisso.
A câmara mostrou a enorme multidão concentrada na Pennsylvania Avenue, encolhida em sobretudos contra o gelado frio de janeiro, ouvindo a cerimônia pelos alto-falantes em torno do palanque. Jason Merlin, presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, terminou de fazer o juramento. O novo presidente apertou-lhe a mão e adiantou-se para o microfone.
— Olhem só para aqueles idiotas congelando lá na rua — comentou Ben Cohn. — Sabem por que não estão em suas casas, como seres humanos normais, assistindo pela televisão?
— Por quê?
— Porque um homem está fazendo história, meus amigos. Um dia todas aquelas pessoas contarão a seus filhos e netos que estavam presentes no momento em que Paul Ellison prestou juramento. E vão se gabar: "Fiquei tão perto que poderia até tocá-lo."
— Você é um cético, Cohn.
— E me orgulho disso. Todos os políticos do mundo são iguais. Querem tudo o que puderem conseguir. A verdade, meus amigos, é que nosso novo presidente é um liberal e idealista. A combinação é suficiente para deixar qualquer homem inteligente com pesadelos. Minha definição de um liberal é: um homem que está com o rabo firmemente assentado em nuvens de algodão.
A verdade é que Ben Cohn não era um cético como dava a impressão. Cobrira a carreira de Paul Ellison desde o início. A princípio não ficara impressionado, mas começara a mudar de opinião à medida que Ellison galgava a hierarquia política. Compreendera que se tratava de um homem que não se curvava ante ninguém. Um carvalho numa floresta de salgueiros.
Lá fora, o céu explodia em lençóis gelados de chuva. Ben Cohn esperava que aquele tempo não fosse um presságio para os quatro anos que vinham pela frente. Tornou a concentrar a atenção no aparelho de televisão.
— A presidência dos Estados Unidos é uma tocha iluminada pelo povo americano e passada de mão em mão a cada quatro anos. A tocha que foi confiada aos meus cuidados é a arma mais poderosa do mundo. É bastante poderosa para destruir a civilização como a conhecemos ou se tornar um farol que iluminará o futuro para nós e para o resto do mundo. A opção é nossa. Dirijo-me hoje não apenas aos nossos aliados, mas também aos países no campo soviético. Digo a eles agora, quando nos preparamos para ingressar no século XXI, que não há mais espaço para confrontações e que devemos aprender a fazer com que a expressão um só mundo se torne realidade. Qualquer outro curso só pode criar um holocausto do qual nenhuma nação jamais se recuperará. Sei muito bem que existem vastos abismos entre nós e os países da Cortina de Ferro, mas a maior prioridade desta administração será construir pontes sólidas através desses abismos.
As palavras estavam impregnadas de profunda sinceridade. Ele fala sério, pensou Ben Cohn. Só espero que ninguém assassine o filho da mãe.
Em Junction City, Kansas, o tempo era horrível, cinzento e desolado; nevava tanto que a visibilidade na Rodovia 6 era quase zero. Mary Ashley guiava sua caminhonete com toda a cautela pelo meio da estrada, onde os removedores de neve haviam trabalhado, A tempestade faria com que chegasse atrasada para a aula. Avançava devagar, tomando cuidado para não der rapar.
A voz do presidente saía pelo rádio do carro:
— .. .muitas pessoas no governo e também na iniciativa privada que insistem em que os Estados Unidos devem abrir mais fossos, em vez de construírem pontes. Minha resposta é de que não temos mais condições de nos condenarmos ou a nossos filhos a um futuro ameaçado por confrontações globais e guerra nuclear.
Mary Ashley pensou: Fico contente por ter votado nele. Paul Ellison vai ser um grande presidente.
Pressionou o volante com toda força, enquanto a neve se tornava um ofuscante turbilhão branco.
Em St. Croix, o sol tropical brilhava num céu azul e sem nuvens, mas Harry Lantz não tinha a menor intenção de sair. Estava se divertindo muito dentro do quarto: na cama, nu, espremido entre as irmãs Dolly. Lantz tinha a prova empírica de que elas não eram realmente irmãs. Annette era alta, uma morena natural, enquanto Sally, também alta, era uma loura natural. Não que Harry Lantz se importasse que elas fossem irmãs genuínas. O que importava era que as duas eram competentes no que faziam, forçando Lantz a gemer alto de prazer.
No outro lado do quarto do motel a imagem do presidente piscava na tela da televisão.
— ...porque estou convencido de que não existe nenhum problema que não possa ser resolvido com boa vontade sincera dos dois lados. O muro de concreto que cerca Berlim Oriental e as cortinas de ferro em torno dos outros países satélites da União Soviética devem ser derrubados. Sally suspendeu suas atividades o tempo suficiente de perguntar:
— Quer que eu desligue essa porra, meu bem?
— Deixe ligada. Quero ouvir o que ele tem a dizer. Annette levantou a cabeça.
— Votou nele?
Harry Lantz gritou:
— Ei, vocês duas! Voltem ao trabalho!
— Como todos sabem, há três anos, depois da morte do presidente Nicolae Ceausescu, a Romênia rompeu as relações diplomáticas com os Estados Unidos. Quero comunicar neste momento que já entramos em contato com o governo da Romênia e seu presidente, Alexandros Ionescu. Ele concordou em restabelecer as relações diplomáticas com nosso país.
A multidão na Pennsylvania Avenue aclamou a comunicação. Harry Lantz sentou na cama tão abruptamente que os dentes de Annette se cravaram em seu pênis.
— Ai! — gritou Lantz. — Já fui circuncidado! Que porra você está querendo fazer?
— Por que se mexeu, meu bem?
Lantz não a ouviu. Tinha os olhos grudados no aparelho de televisão.
— Um dos nossos primeiros atos oficiais será enviar um embaixador para a Romênia — dizia agora o presidente. — E isso é apenas o começo...
Era o final da tarde em Bucareste. O inverno se tornara inesperadamente brando, e as ruas do antigo mercado estavam apinhadas de cidadãos entrando em filas para fazer compras, aproveitando o imprevisto calor.
Alexandros Ionescu, presidente da Romênia, estava sentado em seu gabinete, em Peles, o velho palácio, na Calea Victoriei, cercado por meia dúzia de assessores, escutando a transmissão por um rádio de ondas curtas.
— ...não tenho a intenção de parar por aí — dizia o presidente americano. — A Albânia rompeu relações diplomáticas com os Estados Unidos em 1946. Pretendo restabelecer as ligações. Além disso, quero reforçar nossas relações diplomáticas com a Bulgária, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental.
Aplausos e aclamações soaram através do rádio.
— Enviar nosso embaixador para a Romênia é o princípio de um movimento mundial de povo-para-povo. Jamais nos esqueçamos de que toda a humanidade partilha uma origem comum, problemas comuns e um destino final comum. Vamos nos lembrar que os problemas que partilhamos são maiores do que os problemas que nos dividem, e o que nos divide foi criado por nós mesmos.
Numa villa fortemente guardada em Neuilly, um subúrbio de Paris, o líder revolucionário romeno Marin Groza assistia ao presidente dos Estados Unidos pelo Chaîne 2 Télévision.
— ...Prometo agora que farei o melhor que puder e pedirei o melhor de outros.
Os aplausos se prolongaram por cinco minutos. Marin Groza comentou, pensativo:
— Acho que o nosso momento chegou, Lev. Ele fala sério.
Lev Pasternak, seu chefe de segurança, respondeu:
— Essa atitude não vai ajudar Ionescu? Marin Groza sacudiu a cabeça.
— Ionescu é um tirano e, ao final, nada o ajudará. Mas preciso ter muito cuidado com a escolha do momento certo. Fracassei quando tentei derrubar Ceausescu. Não posso fracassar de novo.
Pete Connors não estava bêbado — ou pelo menos não tão bêbado quanto tencionava ficar. Já consumira quase uma garrafa de uísque quando Nancy, a secretária com quem ele vivia, indagou:
— Não acha que já bebeu o suficiente, Pete? Ele sorriu e esbofeteou-a.
— Nosso presidente está falando. Você tem de mostrar algum respeito.
Ele se virou para olhar a imagem no aparelho de televisão e gritou para a tela:
— Seu comunista filho da puta! Este é o meu país, e a CIA não vai permitir que você o entregue! Vamos impedir você, Charlie! Pode contar!
2
Paul Ellison disse:
— Vou precisar muito da sua ajuda, amigo velho.
— E a terá toda — respondeu Stanton Rogers suavemente.
Eles estavam sentados no Gabinete Oval, o presidente à sua mesa, com a bandeira americana por trás. Era o primeiro encontro dos dois naquela sala, e o presidente Ellison sentia-se contrafeito.
Se Stanton não tivesse cometido aquele único erro, pensou Paul Ellison, estaria sentado a esta mesa, no meu lugar,
Como se lesse os pensamentos do amigo, Stanton Rogers falou:
— Tenho uma confissão a fazer. No dia em que você foi escolhido para candidato à presidência, Paul, fiquei com a maior inveja. Era o meu sonho, e você o estava vivendo. Mas quer saber de uma coisa? Acabei compreendendo que se eu não pudesse sentar a esta mesa, então não havia outra pessoa no mundo que eu quisesse que sentasse aí mais do que você. Essa cadeira lhe cai muito bem.
Paul Ellison sorriu.
— Para ser franco, Stan, esta sala me assusta. Sinto aqui os fantasmas de Washington, Lincoln e Jefferson.
— Também tivemos presidentes que...
— Sei disso. Mas sempre tentamos nos mostrar à altura dos grandes.
Apertou o botão na mesa, e segundos depois um copeiro de uniforme branco entrou na sala.
— Pois não, senhor presidente? Paul Ellison olhou para Rogers.
— Aceita um café?
— Boa idéia.
— Quer alguma coisa para acompanhar?
— Não, obrigado. Barbara quer que eu tome cuidado com a cintura.
O presidente acenou com a cabeça para Henry, o copeiro, que deixou a sala em silêncio.
Barbara. Ela surpreendera a todos. Os comentários em Washington eram de que o casamento não sobreviveria ao primeiro ano. Mas já haviam passado quase quinze anos e era um sucesso. Stanton Rogers montara um prestigioso escritório de advocacia em Washington e Barbara adquirira a reputação de ser uma hábil anfitriã.
Paul Ellison levantou-se e começou a andar de um lado para outro.
— Meu discurso do movimento povo-para-povo teve a maior repercussão. Imagino que já viu todos os jornais.
Stanton Rogers deu de ombros.
— Sabe como é a imprensa. Adora criar heróis, só para depois derrubá-los.
— Para ser franco, não me importo com o que dizem os jornais. Estou mais interessado no que as pessoas estão falando.
— Se quer saber a verdade, Paul, você está assustando muita gente. As forças armadas estão contra seu plano e há pessoas poderosas torcendo por seu fracasso.
— Não vai fracassar. — Paul Ellison tornou a sentar. — Sabe qual é o maior problema do mundo hoje em dia? Não há mais estadistas. Os países estão sendo dirigidos por políticos. Houve uma época, não faz muito tempo, em que o planeta era povoado por gigantes, alguns bons, outros maus... mas sem sombra de dúvida gigantes. Roosevelt e Churchill, Hitler e Mussolini, Charles de Gaulle e Josef Stalin. Por que todos viveram naquele momento em particular? Por que não há mais estadistas hoje?
— É muito difícil ser um gigante do mundo numa tela de 21 polegadas.
O copeiro voltou, trazendo uma bandeja de prata com um bule de café e duas xícaras, com o selo presidencial. Ele serviu o café e indagou:
— Deseja mais alguma coisa, senhor presidente?
— Não, Henry. É só. Obrigado.
O presidente esperou que o copeiro se retirasse.
— Preciso conversar com você sobre o nome certo para a embaixada na Romênia.
— Está bem.
— Não preciso lhe dizer como é importante. Quero que aja o mais depressa possível.
Stanton Rogers tomou um gole do café e levantou-se.
— Conversarei com o pessoal do Departamento de Estado imediatamente.
Eram duas horas da madrugada no pequeno subúrbio de Neuilly. A villa de Marin Groza estava mergulhada na escuridão, a lua escondida por uma densa camada de nuvens de tempestade. As ruas eram silenciosas àquela hora e só de vez em quando se ouviam os passos de algum transeunte retardatário. Um vulto todo de preto avançou sem fazer qualquer barulho entre as árvores, na direção do muro de tijolos que cercava a villa. Tinha num ombro uma corda e uma manta, e nos braços aninhava uma Uzi com silenciador e uma pistola de dardos. Ele parou e ficou escutando ao chegar ao muro. Esperou, imóvel, por cinco minutos. Satisfeito, desenrolou a corda de náilon e jogou para cima o gancho atado na sua extremidade, prendendo-o na outra beira do muro. Começou a subir com agilidade. Estendeu a manta no alto do muro, a fim de se proteger contra as pontas de ferro com veneno que ali estavam cravadas. Tornou a ficar imóvel, escutando. Mudou a posição do gancho, largando a corda por dentro do muro. Desceu para o interior da propriedade. Verificou a balisong em sua cintura, a mortífera faca filipina que podia ser aberta ou fechada com apenas uma das mãos.
Teria agora de cuidar dos cães. O intruso ficou agachado, esperando que os animais o farejassem. Havia três dobermans, treinados para matar. Mas eram apenas o primeiro obstáculo. O terreno e a casa estavam repletos de artefatos eletrônicos e eram continuamente vigiados por câmaras de televisão. Toda correspondência era recebida no portão e aberta ali pelos guardas. As portas da villa eram à prova de bomba. O abastecimento de água era próprio, e Marin Groza tinha um provador de comida. A villa era inexpugnável. Ou pelo menos assim se pensava. O vulto de preto estava ali naquela noite para provar que isso não era verdade.
Ouviu o ruído dos cães correndo em sua direção antes de vê-los. Saíram voando da escuridão, saltando para sua garganta. Eram dois. Ele apontou a pistola de dardos e atingiu primeiro o que estava mais próximo, à sua esquerda, depois o outro, à direita, desviando-se dos corpos ao caírem. Virou-se, alerta ao terceiro doberman. Quando o animal atacou, ele tornou a disparar. Depois, houve apenas silêncio.
O intruso sabia onde estavam enterradas as armadilhas sônicas e evitou-as. Esgueirou-se pelas áreas que as câmeras de televisão não cobriam. Menos de dois minutos depois de pular o muro, estava na porta dos fundos da casa. Ao estender a mão para a maçaneta, foi apanhado pelo súbito clarão de refletores. Uma voz gritou:
— Pare aí! Largue a arma e levante as mãos!
O vulto de preto largou a arma com todo cuidado e levantou os olhos. Havia meia dúzia de homens espalhados pelo telhado, apontando-lhe uma variedade de armas. Ele berrou:
— Por que demoraram tanto? Eu nunca deveria ter chegado a este ponto.
— E não chegou — informou o chefe dos guardas. — Começamos a seguir seu avanço assim que pulou o muro.
Lev Pasternak não abrandou.
— Então deveriam ter me detido mais cedo. Eu poderia estar numa missão suicida, com uma carga de granadas ou um morteiro. Quero uma reunião de toda a equipe de manhã, às oito em ponto. Os cachorros estão apenas narcotizados. Alguém fique de olho neles até acordarem.
Lev Pasternak orgulhava-se de ser o melhor agente de segurança do mundo. Fora piloto na Guerra dos Seis Dias em Israel e depois se tornara um dos principais agentes do Mossad, um dos cinco serviços secretos israelenses.
Jamais esqueceria aquela manhã, dois anos antes, em que o coronel o chamara a seu gabinete.
— Lev, alguém quer você emprestado por algumas semanas.
— Espero que seja uma loura — gracejou Lev.
— É Marin Groza.
O Mossad tinha a ficha completa do dissidente romeno. Groza fora o líder de um movimento popular para depor Alexandros Ionescu e estava prestes a desfechar um golpe quando fora traído por um dos seus homens. Mais de duas dúzias de rebeldes foram executados, e Groza mal conseguira escapar do país com vida. A França lhe dera asilo. Ionescu denunciara Marin Groza como traidor de seu país e oferecera um prêmio por sua cabeça. Até então, meia dúzia de tentativas de assassinar Groza haviam fracassado, mas ele fora ferido no último atentado.
— O que ele quer comigo? — perguntou Pasternak. — Tem a proteção do governo.
— Não é suficiente. Ele precisa de alguém para montar um sistema de segurança infalível. E nos procurou. Recomendei você.
— Eu teria de ir para a França?
— Só vai levar umas poucas semanas.
— Não quero...
— Estamos falando sobre mensch, Lev. Ele é muito importante. Nossas informações são de que conta em seu país com apoio popular suficiente para derrubar Ionescu. Entrará em ação no momento oportuno. Até lá, precisamos mantê-lo vivo.
Lev Pasternak pensou por um momento.
— Apenas algumas semanas?
— Não mais do que isso.
O coronel se enganara quanto ao tempo, mas estava certo em relação a Marin Groza. Era um homem magro, de aparência frágil, com um ar ascético e um rosto marcado pelo sofrimento. Tinha um nariz aquilino, queixo firme e testa larga, encimada por cabelos brancos. Os olhos eram pretos e profundos e ardiam de paixão quando ele falava.
— Não me importo de viver ou morrer — declarou a Lev, na primeira reunião. — Todos vamos morrer. É o quando que me preocupa. Tenho de permanecer vivo por mais um ou dois anos. Esse é todo o tempo de que preciso para expulsar Ionescu de meu país.
Passou a mão, distraído, por uma cicatriz lívida na face, e depois acrescentou:
— Nenhum homem tem o direito de escravizar um país. Precisamos libertar a Romênia e deixar que o povo decida seu próprio destino.
Lev Pasternak começou a trabalhar no sistema de segurança da villa em Neuilly. Usou alguns dos seus homens, e os estranhos que contratou foram checados com o máximo de rigor. Cada peça de equipamento era uma autêntica obra de arte.
Pasternak falava todos os dias com o líder rebelde romeno; quanto mais tempo passava com ele, mais o admirava. Quando Marin Groza pediu-lhe que continuasse como seu chefe de segurança, Pasternak não hesitou.
— Está bem. Ficarei até que você esteja pronto para entrar em ação. Depois, voltarei para Israel.
Selaram o acordo.
A intervalos irregulares, Pasternak desfechava ataques de surpresa contra a villa, testando o esquema de segurança. Agora, ele pensou: Alguns dos guardas estão se tornando descuidados. Terei de substituí-los.
Foi andando pelos corredores, verificando com todo cuidado os sensores de calor, os sistemas eletrônicos de alarme e os raios infravermelhos no limiar de cada porta. Ao chegar ao quarto de Marin Groza, ouviu um estrondo alto, e um momento depois o líder romeno se pôs a gritar em agonia.
Lev Pasternak passou pela porta e seguiu adiante.
3
A sede da CIA fica no outro lado do rio Potomac, em Langley, na Virgínia, onze quilômetros a noroeste de Washington. Na estrada de acesso para a agência há uma luz vermelha piscando no alto de um portão. A passagem é vigiada 24 horas por dia, e os visitantes recebem crachás coloridos que lhes permitem ir apenas ao departamento específico em que têm negócios a tratar. Na frente do prédio cinzento de sete andares, caprichosamente conhecido como Fábrica de Brinquedos, há uma estátua grande de Nathan Hale. Lá dentro, no andar térreo, a parede de vidro de um corredor dá para um pátio interno onde existe um jardim bem cuidado, cheio de magnólias. Por cima da mesa de recepção há um verso esculpido em mármore:
E vocês saberão a verdade
e a verdade os libertará.
O público nunca é admitido no interior do prédio e não há instalações para visitantes. Para os que desejam entrar no conjunto "preto" — invisível — há um túnel que desemboca num saguão, em frente a uma porta de elevador de mogno, permanentemente vigiada por um pelotão de sentinelas" de terno cinza.
Na sala de conferências no sétimo andar, guardada por agentes de segurança com revólveres de calibre 38 de cano curto por baixo dos paletós, estava se realizando a reunião rotineira da manhã de segunda-feira da equipe executiva. Sentados em torno da enorme mesa de carvalho estavam Ned Tillingast, diretor da CIA; general Oliver Brooks, chefe do Estado-Maior do Exército; o secretário de Estado Floyd Baker; Pete Connors, chefe da contra-espionagem; e Stanton Rogers.
Ned Tillingast, o diretor da CIA, era um homem de sessenta e poucos anos, frio e taciturno, oprimido pelo peso de segredos terríveis. Há um setor claro e um setor escuro na CIA. O setor escuro cuida das operações clandestinas e durante os últimos sete anos Tillingast estivera no comando dos seus 4.500 funcionários.
O general Oliver Brooks era um oficial de West Point que conduzia sua vida pessoal e profissional por regulamentos. Era um homem de companhia, e a companhia a que servia era o Exército dos Estados Unidos.
Floyd Baker, o secretário de Estado, era um anacronismo, um remanescente de uma era anterior: típico cavalheiro sulista, alto, cabelos prateados e aparência distinta, com uma cortesia fora de moda. Usava polainas mentais. Possuía uma cadeia de influentes jornais por todo o país e era considerado fabulosamente rico. Não havia ninguém em Washington com um senso político mais penetrante e suas antenas se encontravam constantemente sintonizadas com as mudanças de ventos nos corredores do Congresso.
Pete Connors era um irlandês moreno, homem obstinado e destemido, que bebia muito. Aquele era seu último ano na CIA. Teria de enfrentar a aposentadoria compulsória em junho. Connors era o chefe do serviço de contra-espionagem, o mais secreto e isolado dos setores da CIA. Escalara os degraus da hierarquia por diversas divisões, desde os bons tempos do passado, quando os agentes da CIA eram os "rapazes de ouro". Pete Connors também fora um deles. Participara do golpe que levara o xá de volta ao Trono do Pavão no Irã e se envolvera na Operação Mangusto, a tentativa de derrubar o governo de Castro em 1961.
— Depois da baía dos Porcos, tudo mudou — lamentava Pete de vez em quando. A extensão de sua diatribe dependia, de um modo geral, de seu grau de embriaguez. — Os corações melindrados nos atacaram nas primeiras páginas de todos os jornais do mundo. Chamaram-nos de um bando de palhaços mentirosos e desprezíveis, que tropeçavam nas próprias pernas. Algum desgraçado anti-CIA divulgou os nomes de nossos agentes, e Dick Welch, o chefe do posto em Atenas, foi assassinado.
Pete Connors passara por três casamentos infelizes por causa das pressões e sigilo de seu trabalho, mas em sua opinião nenhum sacrifício era grande demais que não pudesse ser feito por seu país.
Agora, no meio da reunião, seu rosto estava vermelho de raiva.
— Se deixarmos o presidente continuar com essa porra desse programa de povo-para-povo, ele vai entregar o país. É preciso impedir. Não podemos permitir...
Floyd Baker interrompeu-o:
— O presidente assumiu o cargo há menos de uma semana. Estamos todos aqui para executar sua política e...
— Não estou aqui para entregar meu país aos comunas miseráveis. O presidente nunca mencionou seu plano antes do discurso. Pegou todo mundo de surpresa. Não tivemos qualquer oportunidade de preparar uma refutação.
— Talvez fosse justamente isso o que ele estava querendo — sugeriu Baker.
Pete Connors fitou-o aturdido.
— Essa não! Você concorda com o plano!
— Ele é meu presidente — declarou Floyd Baker, firmemente. — Assim como também é o seu.
Ned Tillingast virou-se para Stanton Rogers.
— Connors não deixa de ter razão. O presidente está na verdade planejando convidar a Romênia, Albânia, Bulgária e os outros países comunistas a mandarem seus espiões para cá, apresentando-se como adidos, motoristas, secretárias e criadas. Estamos gastando bilhões de dólares para guardar a porta da frente e o presidente quer escancarar a porta dos fundos.
O general Brooks balançou a cabeça em concordância.
— Também não fui consultado. Em minha opinião, o plano do presidente pode muito bem destruir este país.
Stanton Rogers disse:
— Senhores, alguns de nós podem discordar do presidente, mas não vamos esquecer que o povo elegeu Paul Ellison para dirigir este país. — Seus olhos contemplaram os homens sentados ao redor. — Somos todos parte de sua equipe e temos de seguir sua orientação, apoiando-o por todos os meios possíveis.
Suas palavras foram seguidas por um silêncio relutante. Depois da pausa, Stanton acrescentou:
— Muito bem. O presidente quer um relatório imediato sobre a atual situação na Romênia. Tudo o que vocês têm.
— Inclusive o material secreto? — perguntou Pete Connors.
— Tudo. E quero respostas objetivas. Qual é a situação na Romênia com Alexandros Ionescu?
— Ionescu controla tudo — respondeu Ned Tillingast. — Depois que ele se livrou da família Ceausescu, todos os aliados do ex-presidente foram assassinados, presos ou exilados. Desde que tomou o poder, Ionescu tem sufocado o país. É odiado pelo povo.
— Quais são as perspectivas de uma revolução? Foi Tillingast quem respondeu de novo:
— Eis um problema dos mais interessantes. Lembra o que aconteceu há dois anos, quando Marin Groza quase derrubou o governo de Ionescu?
— Lembro. Groza conseguiu fugir do país por um triz.
— Com a nossa ajuda. Temos informações de que há um movimento popular cada vez maior para trazê-lo de volta. Groza seria bom para a Romênia e também para nós. Estamos atentos à situação.
Stanton Rogers virou-se para o secretário de Estado.
— Tem a lista dos candidatos à embaixada na Romênia?
Floyd Baker abriu uma pasta de couro, tirou alguns papéis e estendeu uma cópia a Rogers.
— Estes nos parecem os melhores. Todos são diplomatas de carreira altamente qualificados. Cada um já foi verificado. Não há problemas de segurança, não há dificuldades financeiras, não há segredos embaraçosos escondidos no passado.
Enquanto Stanton Rogers pegava a lista, o secretário de Estado acrescentava:
— É claro que o Departamento de Estado é a favor de um diplomata de carreira, em vez de uma indicação política. Alguém que foi preparado para esse trabalho. Ainda mais nas circunstâncias específicas. A Romênia é um posto extremamente delicado. É preciso cuidar de tudo com extremo cuidado.
— Concordo. — Stanton Rogers levantou-se. — Discutirei estes nomes com o presidente e depois voltaremos a conversar. Ele está ansioso em preencher o cargo o mais depressa possível.
Enquanto os outros também se levantavam para sair, Ned Tillingast disse:
— Fique aqui, Pete. Quero falar com você.
Assim que ficou a sós com Connors, Tillingast comentou:
— Você foi forte demais, Pete.
— Mas estou certo — declarou Pete Connors, obstinado. — O presidente está tentando entregar nosso país ao inimigo. O que devemos fazer?
— Ficar de boca fechada.
— Somos treinados para encontrar o inimigo e matá-lo, Ned. O que acontece se o inimigo está por trás de nossas linhas... sentado no Gabinete Oval?
— Tome cuidado... tome muito cuidado. Tillingast estava no ofício há mais tempo do que Pete Connors. Trabalhara na OSS de Wild Bill Donovan antes que se tornasse a CIA. Também detestava o que os corações moles do Congresso estavam fazendo com a organização que amava. Na verdade, havia uma profunda divisão nas fileiras da CIA entre o pessoal da linha dura e os que acreditavam que o urso soviético podia ser domado para se tornar um inofensivo animal de estimação. Temos de brigar por todo dólar que recebemos, pensou Tillingast. Em Moscou, o Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti — o KGB — treina mil agentes de uma só vez.
Ned Tillingast recrutara Peter Connors na universidade e Connors se revelara um dos melhores agentes da CIA. Nos últimos anos, porém, Connors se tornara um cowboy — um pouco independente demais, um pouco rápido demais no gatilho. O que era perigoso.
— Pete... já ouviu alguma coisa sobre uma organização clandestina chamada Patriotas pela Liberdade? — indagou Tillingast.
Connors franziu o rosto.
— Não... não posso dizer que já tenha ouvido. Quem são eles?
— Até agora, não passam de um rumor. Tudo o que sei é fumaça. Veja se consegue descobrir alguma coisa.
— Está certo.
Uma hora depois Pete Connors estava telefonando de uma cabine pública em Hains Point.
— Tenho uma mensagem para Odin.
— Aqui é Odin — disse o general Oliver Brooks.
Voltando ao escritório em sua limusine, Stanton Rogers abriu o envelope em que estava a relação dos nomes para o posto de embaixador na Romênia e estudou-a. Era uma lista excelente. O secretário de Estado fizera um bom trabalho. Todos os candidatos haviam servido em países europeus do Leste e Oeste e alguns tinham experiência adicional no Extremo Oriente ou África. O presidente vai ficar satisfeito, pensou Stanton.
— São dinossauros — disse Paul Ellison bruscamente, largando a lista em cima da mesa. — Todos eles.
— Ora, Paul, todos esses homens são experientes diplomatas de carreira.
— E preconceituosos na tradição do Departamento de Estado. Lembra como perdemos a Romênia há três anos? Nosso experiente diplomata de carreira em Bucareste meteu os pés pelas mãos e estragou tudo. Essa turma me preocupa. Todos estão querendo se resguardar. Quando propus um programa de povo-para-povo, estava falando sério. Precisamos causar uma impressão positiva num país que neste momento se mostra muito cauteloso em relação a nós.
— Mas se puser um amador no posto... alguém sem experiência... estará correndo um grande risco.
— Talvez precisemos de alguém com um tipo de experiência diferente. A Romênia será um teste para nós, Stan. Um piloto para todo o meu programa, se preferir assim.
— Hesitou por um instante. — Não estou me iludindo. Minha credibilidade está em jogo. Sei que há muitas pessoas poderosas que não querem que o programa dê certo. Se fracassar agora, ficarei acuado. Terei de esquecer a Bulgária, Albânia, Tchecoslováquia e o resto dos países da Cortina de Ferro. E não tenciono permitir que isso aconteça.
— Posso verificar alguns dos nossos candidatos políticos que...
O presidente Ellison sacudiu a cabeça.
— O problema é o mesmo. Quero alguém com um ponto de vista completamente novo. Alguém que possa promover o degelo. O oposto do americano feio.
Stanton Rogers observava atentamente o presidente, aturdido.
— Paul... tenho a impressão de que você já está com alguém em mente. É verdade?
Paul Ellison tirou um charuto da caixa em cima da mesa e acendeu-o.
— Para ser franco — respondeu ele, falando bem devagar —, talvez eu esteja mesmo.
— Quem é ele?
— Ela. Por acaso leu o artigo que saiu no último número da revista Foreign Affairs intitulado 'Détente agora'?
— Li.
— O que achou?
— Interessante. A autora acha que estamos em condições de tentar atrair os países comunistas para o nosso lado, oferecendo ajuda econômica e... — Ele parou de falar abruptamente. — Era muito parecido com o seu discurso de posse.
— Só que foi escrito há seis meses. Ela tem publicado artigos brilhantes em Commentary e Public affairs. No ano passado li um livro dela sobre a política do Leste europeu e devo admitir que ajudou a esclarecer algumas das minhas idéias.
— Muito bem. Então ela está de acordo com suas teorias. Isso não é motivo para considerá-la para um cargo tão impor...
— Stan... ela foi além da minha teoria. Esboçou um plano detalhado que é extraordinário. Quer reunir os quatro grandes pactos econômicos do mundo.
— Como poderíamos...
— Levaria algum tempo, mas é possível. Como sabe, os países do bloco oriental da Europa formaram em 1949 um pacto de assistência econômica mútua, chamado CO-MECON. Em 1958 os outros países europeus formaram o MCE... Mercado Comum Europeu.
— Certo.
— Temos a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico que inclui os Estados Unidos, alguns países do bloco ocidental e a Iugoslávia. E não se esqueça de que os países do Terceiro Mundo criaram um movimento de não-alinhados que nos exclui. — A voz do presidente estava impregnada de excitação. — Pense nas possibilidades. Se pudéssemos combinar todos esses planos e formar um único grande mercado... por Deus, seria fantástico! Significaria um verdadeiro mercado mundial. E poderia trazer a paz.
Stanton Rogers disse, cauteloso:
— É uma idéia interessante, mas muito distante.
— Conhece o velho ditado chinês: "Uma jornada de mil quilômetros começa com um único passo."
— Ela é uma amadora, Paul.
— Alguns dos nossos melhores embaixadores eram amadores. Anne Armstrong, ex-embaixadora na Grã-Bretanha, era uma educadora, sem qualquer experiência política. Perle Mesta foi nomeada para Luxemburgo, Clare Boothe Luce foi embaixadora na Itália. John Gavin, um ator, foi embaixador no México. Um terço dos nossos atuais embaixadores é constituído pelo que você chama de amadores.
— Mas não conhece nada sobre essa mulher!
— Exceto que ela é brilhante e que estamos na mesma sintonia. Quero que você descubra tudo o que puder a seu respeito. — Ele levantou um exemplar de Foreign affairs. — Seu nome é Mary Ashley.
Dois dias depois o presidente Ellison e Stanton Rogers tomaram o café da manhã juntos.
— Tenho a informação que você pediu. — Stanton Rogers tirou um papel do bolso e começou a ler. — Mary Elizabeth Ashley, Milford Road, 27, Junction City, Kansas. Idade, 35, casada com o doutor Edward Ashley... dois filhos, Beth, de doze anos, e Tim, de dez. Presidente do Capítulo Cinco da Liga de Eleitoras de Junction City. Professora-assistente de ciência política, especialista em Leste europeu, na Universidade Estadual do Kansas. O avô nasceu na Romênia. — Levantou os olhos, com uma expressão pensativa. — Talvez seja o tipo de representante que você deveria mandar para a Romênia.
— É bem possível, Stan. Eu gostaria de ter uma verificação de segurança completa sobre Mary Ashley.
— Pode deixar que tomarei as providências.
4
— Discordo, professora Ashley. — Barry Dylan, o mais brilhante e o mais jovem dos estudantes no seminário de ciência política de Mary Ashley, olhou ao redor, constrangido.
— Alexandros Ionescu é pior do que Ceausescu jamais foi.
— Pode nos dar alguns fatos que sustentem tal declaração? — pediu Mary Ashley.
Havia doze alunos graduados no seminário, realizado numa sala de aula do Edifício Dykstra, na Universidade Estadual do Kansas. Os alunos sentavam-se num semicírculo, de frente para Mary. A lista de espera para ingressar em suas turmas era maior que a de qualquer outro professor da universidade. Ela era uma professora extraordinária, com um senso de humor descontraído e uma simpatia que tornavam sua presença extremamente agradável. Possuía um rosto oval que mudava de atraente para bonito, dependendo de seu estado de espírito. Tinha os malares salientes de uma modelo e olhos cor de avelã. Os cabelos eram escuros e abundantes. O corpo deixava as alunas com inveja e despertava fantasias nos homens; apesar disso, ela não tinha consciência de sua beleza.
Barry especulou se ela seria feliz com o marido. Relutante, ele tornou a concentrar sua atenção no problema em debate.
— Quando assumiu o controle da Romênia, Ionescu perseguiu todos os elementos pró-Groza e restabeleceu uma posição de linha dura, pró-soviética. Nem mesmo Ceausescu foi tão ruim assim.
Outro aluno indagou:
— Então por que o presidente Ellison está tão ansioso em estabelecer relações diplomáticas com ele?
— Porque queremos atraí-lo para a órbita do Ocidente.
— Não se esqueçam de que Ceausescu também tinha um pé em cada lado — frisou Mary. — Em que ano isso começou?
Foi Barry quem respondeu:
— Em 1963, quando a Romênia tomou partido na disputa entre Rússia e China, a fim de demonstrar sua independência nas questões internacionais.
— Como é o relacionamento atual da Romênia com os outros países do Pacto de Varsóvia e com a Rússia em particular? — indagou Mary.
— Eu diria que está mais forte agora. Outra voz:
— Não concordo. A Romênia criticou a invasão russa do Afeganistão e também o acordo soviético com a CEE. Além disso, professora Ashley...
A campainha soou. A aula acabara. Mary disse: — Segunda-feira conversaremos sobre os fatores básicos que influenciam a atitude soviética em relação ao Leste europeu e também discutiremos as possíveis conseqüências do plano do presidente Ellison de se infiltrar no bloco oriental. Um bom fim de semana para vocês.
Mary ficou observando os alunos se levantarem e se encaminharem para a porta.
— Para a senhora também, professora.
Mary Ashley adorava a troca de idéias do seminário. História e geografia adquiriam vida nas discussões acaloradas entre os jovens e brilhantes alunos. Nomes e localidades estrangeiras tornavam-se reais, os eventos históricos assumiam formas definidas. Aquele era o seu quinto ano na Universidade Estadual do Kansas, e dar aulas ainda a emocionava. Tinha cinco cursos de ciência política por ano e ainda promovia os seminários de pós-graduação, sempre versando sobre a União Soviética e os países satélites. Havia ocasiões em que ela se sentia uma fraude. Jamais estive em qualquer dos países sobre os quais dou aula, pensava ela. Nunca saí dos Estados Unidos.
Mary Ashley nascera em Junction City, assim como seus pais. A única pessoa da família que conhecera a Europa fora seu avô, que viera da pequena aldeia romena de Voronet.
Mary planejara uma viagem ao exterior quando recebesse o diploma de mestrado, mas naquele verão conheceu Edward Ashley, e a excursão pela Europa transformou-se numa lua-de-mel de três dias em Waterville, a noventa quilômetros de Junction City, onde Edward estava cuidando de um paciente cardíaco em estado crítico.
— Precisamos viajar no ano que vem — disse Mary a Edward, pouco depois do casamento. — Estou morrendo de vontade de conhecer Roma, Paris e a Romênia.
— Eu também. Está combinado. Iremos no próximo verão.
Mas no verão seguinte Beth nasceu, e Edward estava absorvido demais em seu trabalho no Hospital Comunitário de Geary. Dois anos depois nasceu Tim. Mary tirara seu Ph.D. e fora dar aulas na Universidade Estadual do Kansas... e os anos passaram. Exceto por breves viagens a Chicago, Atlanta e Denver, Mary nunca deixara o Estado do Kansas.
Um dia, ela prometia a sí mesma. Um dia...
Mary recolheu suas anotações e olhou pela janela. A geada pintara a janela com um cinza desolado. Estava começando a nevar outra vez. Vestiu o casaco forrado de couro e a echarpe vermelha de lã e seguiu para a entrada da Vattier Street, onde deixara o carro.
O campus era enorme, 315 acres com 87 prédios, inclusive laboratórios, teatros e capelas, em meio a um cenário bucólico de árvores e relva. A distância, os escuros prédios de calcário da universidade, com suas toninhas, pareciam castelos antigos, preparados para repelir as hordas inimigas. Enquanto Mary passava pelo Denison Hall, um estranho com uma câmara Nikon avançava em sua direção. Ele apontou a câmara para o prédio e disparou. Mary estava no primeiro plano da foto. Eu deveria ter saído da frente, pensou. Estraguei a fotografia.
Uma hora depois o fotógrafo estava a caminho de Washington.
Cada cidade possui o seu ritmo característico, uma vibração que deriva das pessoas e da terra. Junction City, no Condado de Geary, é uma comunidade agrícola, com 20.381 habitantes, duzentos quilômetros a oeste de Kansas City, orgulhando-se de ser o centro geográfico do território continental dos Estados Unidos. Possui um jornal — The Daily Union —, uma emissora de rádio e outra de televisão. A área comercial do centro consiste de algumas lojas dispersas e postos de gasolina pela Rua 6 e pela Washington. Há a Penney's, o First National Bank, a Domino Pizza, a Flower Jeweler's e uma Woolworth's. Há lanchonetes, uma estação rodoviária, uma loja de roupas masculinas e uma loja de bebidas — o tipo de estabelecimentos que se encontra em centenas de pequenas cidades espalhadas pelos Estados Unidos. Mas os habitantes de Junction City amam-na por sua paz e tranqüilidade bucólicas. Pelo menos durante a semana. Nos fins de semana, Junction City torna-se o centro de descanso e recreação para os soldados do Forte Riley, que fica próximo.
Mary Ashley parou para fazer compras para o jantar no Dillon's Market, a caminho de casa. Depois, seguiu para o norte, na direção da Old Milford Road, uma área residencial adorável, que dava para um lago. Carvalhos e olmos estendiam-se pelo lado esquerdo da estrada, enquanto no direito havia lindas casas, dos mais diversos tipos, de pedras, alvenaria ou madeira.
Os Ashley moravam numa casa de pedra de dois andares, no meio de colinas ondulantes. Fora comprada pelo doutor Edward Ashley e sua esposa treze anos antes. Tinha uma sala de estar grande, sala de jantar, biblioteca, copa e cozinha no primeiro andar, uma suíte e dois quartos no segundo.
— É grande demais para apenas duas pessoas — protestara Mary.
Edward a abraçara, murmurando:
— Quem disse que haverá apenas duas pessoas?
Quando Mary chegou em casa, Tim e Beth estavam à sua espera.
— Adivinhe o que aconteceu? — perguntou Tim. — Nossos retratos vão sair no jornal!
— Ajudem-me a guardar as compras — pediu Mary. — Que jornal?
— O homem não disse. Mas tirou fotografias nossas e disse que nos falaria depois.
Mary parou e virou-se para fitar o filho.
— O homem disse por quê?
— Não — respondeu Tim. — Mas tinha uma Nikon sensacional.
No domingo Mary comemorou — embora não fosse essa a palavra que aflorasse em sua mente — seu 35? aniversário. Edward promoveu-lhe uma festa surpresa no clube. Os vizinhos, Florence e Douglas Schiffer, e quatro outros casais estavam à sua espera. Edward ficou feliz como um garotinho pela expressão aturdida de Mary quando entrou no clube e viu a mesa festiva e a faixa de feliz aniversário. Ela não teve coragem de contar-lhe que já sabia da festa há duas semanas. Adorava Edward. E por que não? Quem não adoraria? Ele era inteligente, bonito e carinhoso. O avô e o pai haviam sido médicos e jamais ocorrera a Edward ser qualquer outra coisa. Era o melhor cirurgião de Junction City, um bom pai e um marido maravilhoso.
Ao soprar as velas do bolo de aniversário, Mary olhou para Edward no outro lado da mesa e pensou: Como uma mulher pode ter tanta sorte?
Na manhã de segunda-feira Mary acordou de ressaca. Houvera brindes com champanha na noite anterior e ela não estava acostumada a beber álcool. Teve de fazer um grande esforço para sair da cama. Aquele champanha me liquidou. Nunca mais, prometeu a sí mesma.
Desceu devagar e começou a preparar o desjejum dos filhos, cautelosa, tentando ignorar a cabeça latejando.
— O champanha é a vingança da França contra nós — resmungou Mary.
Beth entrou na copa, carregando seus livros escolares.
— Com quem está falando, mamãe?
— Comigo mesma.
— Que coisa esquisita.
— Quando você está certa, está certa. — Mary pôs uma caixa de cereal na mesa. — Comprei um cereal novo para você. Acho que vai gostar.
Beth sentou à mesa da copa e estudou o rótulo na caixa.
— Não posso comer isso. Você está tentando me matar.
— Não meta idéias estranhas na cabeça — advertiu Mary. — Quer fazer o favor de comer?
Tim, o filho de dez anos, entrou correndo na copa. Sentou-se e disse:
— Quero ovos com bacon.
— O que aconteceu com o bom-dia? — indagou Mary.
— Bom dia. Quero ovos com bacon.
— Por favor.
— Ora, mamãe, pare com isso. Estou atrasado para a escola.
— Fico contente que tenha falado nisso. A Sra. Reynolds me telefonou. Você está mal em matemática. O que tem a dizer?
— Dava para calcular.
— Isso é uma piada, Tim?
— Pessoalmente, não acho a menor graça — comentou Beth, desdenhosa.
Ele fez uma careta para a irmã.
— Se quer uma coisa engraçada, basta se olhar no espelho.
— Já chega — disse Mary. — Tratem de se comportar. Sua dor de cabeça estava cada vez pior. Tim perguntou:
— Posso ir ao rinque de patinação depois da escola, mamãe?
— Você já está patinando em gelo fino. Volte direto para casa e trate de estudar. Como acha que vai parecer uma professora universitária ter um filho reprovado em matemática?
— Não vai ser nada demais. Você não é professora de matemática.
Costumam falar sobre a terrível idade de dois anos, pensou Mary. E o que dizer dos terríveis nove, dez, onze e doze anos?
Beth indagou:
— Tim já contou que teve a pior nota em ortografia? Ele lançou um olhar furioso para a irmã.
— Nunca ouviu falar de Mark Twain?
— O que Mark Twain tem a ver com isso? — perguntou Mary.
— Mark Twain disse que não tem o menor respeito por um homem que só sabe soletrar uma palavra da mesma forma.
Não podemos vencer, pensou Mary. Eles são mais espertos do que nós.
Ela preparara um lanche para os filhos, mas andava preocupada com Beth, que estava empenhada em alguma nova dieta maluca.
— Por favor, Beth, coma todo o seu lanche hoje.
— Só se não tiver conservantes artificiais. Não vou deixar que a ganância da indústria alimentícia arruíne a minha saúde.
O que aconteceu com os bons tempos de antigamente de comidas que faziam mal?, especulou Mary.
Tim tirou um papel solto de um dos cadernos de Beth.
— Olhe só para isto! — gritou ele. — "Querida Beth, vamos sentar juntos durante o período das aulas. Pensei em você durante todo o dia de ontem e..."
— Devolva isso! — berrou Beth. — É meu!
Ela tentou arrancar o papel da mão do irmão, mas Tim se esquivou e leu a assinatura.
— Ei, está assinado "Virgil"! Pensei que você era apaixonada pelo Arnold.
Beth pegou o bilhete.
— O que você sabe sobre o amor? — indagou a filha de doze anos de Mary. — Não passa de uma criança.
O latejar na cabeça de Mary estava se tornando insuportável.
— Crianças... dêem-me um pouco de descanso. Ela ouviu a buzina do ônibus escolar. Tim e Beth se encaminharam para a porta.
— Esperem! — chamou Mary. — Vocês ainda não acabaram de comer!
Ela os seguiu para o vestíbulo,
— Não há tempo, mamãe. Temos de ir.
— Até mais, mamãe.
— Está congelando lá fora. Ponham os casacos e cachecóis.
— Não posso — respondeu Tim. — Perdi meu cachecol.
E eles se foram. Mary sentia-se esgotada. A maternidade é viver no olho de um furacão,
Ela levantou os olhos quando Edward desceu e sentiu-se mais animada. Mesmo depois de tantos anos, pensou Mary, ele ainda é o homem mais atraente que já conheci. Fora a gentileza de Edward que primeiro despertara o seu interesse. Seus olhos eram de um cinzento suave, refletindo uma inteligência efusiva, mas podiam se transformar em chamas quando se deixava arrebatar por alguma coisa.
— Bom dia, querida.
Ele a beijou e os dois foram para a copa.
— Pode me fazer um favor, meu bem?
— Claro, querida. Qualquer coisa.
— Quero vender as crianças.
— As duas?
— As duas.
— Quando?
— Hoje.
— Quem as compraria?
— Estranhos. Eles chegaram à idade em que eu não sou capaz de fazer nada certo. Beth tornou-se maníaca pela alimentação saudável e seu filho está se tornando um ignorante de categoria internacional.
Edward comentou, com expressão pensativa:
— Talvez eles não sejam nossos filhos.
— Espero que não. Estou fazendo um mingau de aveia para você.
Ele olhou para o relógio.
— Desculpe, querida, mas não tenho tempo. Preciso entrar na sala de cirurgia dentro de meia hora. Hank Cates ficou preso numa máquina qualquer. Talvez perca alguns dedos.
— Ele não está muito velho para cuidar da fazenda?
— Não o deixe ouvi-la dizer isso.
Mary sabia que Hank Cates não pagava as contas a seu marido há três anos. Como a maioria dos fazendeiros da comunidade, ele estava sofrendo com os baixos preços agrícolas e com a atitude de indiferença da Administração do Crédito Agrícola. Muitos estavam perdendo as propriedades que haviam trabalhado durante toda a vida. Edward jamais pressionava qualquer paciente pelo pagamento e vários saldavam as contas com colheitas. Os Ashley tinham um celeiro cheio de milho, batata e trigo. Um fazendeiro propusera pagar com uma vaca, mas Mary protestara quando Edward lhe falara a respeito:
— Pelo amor de Deus, diga a ele que é por conta da casa!
Ela contemplou o marido agora e pensou de novo: Como dei sorte!
— Está bem — disse ela. — Talvez eu me decida a ficar com as crianças. Gosto muito do pai delas.
— Para dizer a verdade, eu também gosto da mãe. — Ele a abraçou. — Feliz aniversário, mais um.
— Você ainda me ama, agora que sou uma mulher mais velha?
— Gosto de mulheres mais velhas.
— Obrigada. — Mary lembrou-se subitamente de uma coisa. — Tenho de chegar em casa mais cedo hoje e preparar o jantar. É a nossa vez de receber os Schiffer.
O bridge com os vizinhos era um ritual da noite de segunda-feira. O fato de Douglas Schiffer ser médico e trabalhar com Edward no hospital os tornava ainda mais íntimos.
Mary e Edward saíram de casa juntos, inclinando a cabeça contra o vento implacável. Edward instalou-se em seu Ford Granada e ficou observando a mulher sentar ao volante de sua caminhonete.
— A estrada provavelmente está gelada — gritou ele. — Dirija com cuidado.
— Você também, querido.
Ela soprou-lhe um beijo e os dois carros se afastaram da casa, Edward seguindo para o hospital e Mary para a cidadezinha de Manhattan, onde ficava a universidade, a 25 quilômetros de distância.
Dois homens num carro estacionado a meio quarteirão da casa dos Ashley observavam a cena. Esperaram até que os dois carros sumissem.
— Vamos embora.
Foram até a casa vizinha aos Ashley. Rex Olds, que estava ao volante, ficou sentado no carro, enquanto seu companheiro subia até a porta e tocava a campainha. A porta foi aberta por uma morena atraente, de trinta e poucos anos.
— O que deseja?
— Senhora Douglas Schiffer?
— Sou eu.
O homem meteu a mão no bolso do casaco e tirou um cartão de identificação.
— Meu nome é Donald Zamlock. Trabalho na Agência de Segurança do Departamento de Estado.
— Santo Deus! Não me diga que Doug assaltou um banco!
O agente sorriu polidamente.
— Não, madame. Ou pelo menos não sabemos de nada a respeito. Eu queria apenas fazer algumas perguntas sobre sua vizinha, a senhora Ashley.
Ela fitou-o com súbita preocupação.
— Mary? O que há com ela?
— Posso entrar?
— Claro. — Florence Schiffer levou-o para a sala de estar. — Sente-se, por favor. Aceita um café?
— Não, obrigado. Só tomarei uns poucos minutos do seu tempo.
— Por que está querendo fazer perguntas sobre Mary? Ele exibiu um sorriso tranqüilizador.
— É apenas uma verificação de rotina. Ela não é suspeita de ter feito nada de errado.
— Espero mesmo que não — declarou Florence Schiffer, indignada. — Mary Ashley é uma das melhores pessoas que já conheci. — Uma pausa, e ela acrescentou: — Já falou com ela?
— Não, senhora. A visita é confidencial e agradeceria se a mantivesse assim. Há quanto tempo conhece a senhora Ashley?
— Há cerca de treze anos. Desde o dia em que ela se mudou para a casa ao lado.
— Diria que conhece a senhora Ashley muito bem?
— Claro que sim. Mary é minha melhor amiga. Mas o que...
— Ela e o marido se dão bem?
— Depois de Doug e eu, eles formam o casal mais feliz que já conheci. — Pensou por um instante. — Retiro o que disse. Eles são de fato o casal mais feliz que conheço.
— Fui informado de que a senhora Ashley tem dois filhos. Uma garota de doze anos e um menino de dez?
— Isso mesmo. Beth e Tim.
— Diria que ela é uma boa mãe?
— Ela é uma grande mãe. Mas afinal...
— Senhora Schiffer, em sua opinião a senhora Ashley é uma pessoa emocionalmente estável?
— Claro que é.
— Ela não tem problemas emocionais que sejam do seu conhecimento?
— De jeito nenhum.
— Ela bebe?
— Não. Não gosta de álcool.
— E drogas?
— Veio à cidade errada. Não temos nenhum problema de drogas em Junction City.
— A senhora Ashley não é casada com um médico?
— É sim.
— Se ela quisesse drogas...?
— Está redondamente enganado. Ela não consome drogas. Não funga e não toma pico na veia.
O agente estudou-a por um momento.
— Parece conhecer bem a terminologia.
— Assisto Miami Vice, como todo mundo. — Florence Schiffer estava começando a se irritar. — Tem mais alguma pergunta?
— O avô de Mary Ashley nasceu na Romênia. Já ouviu-a alguma vez falar sobre a Romênia?
— De vez em quando ela relata as histórias que o avô contava sobre a velha terra. Ele nasceu na Romênia, mas veio para os Estados Unidos ainda adolescente.
— Já ouviu a senhora Ashley manifestar alguma opinião negativa sobre o atual governo da Romênia?
— Não. Ou pelo menos não me lembro.
— Só mais uma pergunta. Já ouviu a senhora Ashley ou o doutor Ashley dizerem qualquer coisa contra o governo dos Estados Unidos?
— Absolutamente não!
— Então, na sua avaliação, eles são americanos leais?
— Pode apostar que sim. Importa-se de me explicar... O homem levantou-se.
— Quero agradecer pelo tempo que me dispensou, senhora Schiffer. E gostaria de repetir que se trata de um assunto altamente confidencial. Agradeceria se não falasse a respeito com ninguém... nem mesmo com seu marido.
Um momento depois ele saía pela porta da frente. Florence Schiffer ficou parada ali, a observá-lo fixamente. E murmurou:
— Não posso acreditar que toda essa conversa tenha mesmo ocorrido...
Os dois agentes desceram pela Washington Street, seguindo para o norte.
Passaram pela Câmara de Comércio e pelo prédio em que estava instalada a Real Ordem dos Alces, pelo Irma's Pet Grooming e por um bar chamado The Fat Chance. Os prédios comerciais acabaram abruptamente. Donald Zamlock comentou:
— É incrível, mas a rua principal tem apenas dois quarteirões. Isto não é uma cidade, é uma parada de ônibus.
Rex Olds disse:
— Pode ser para você e para mim, mas para esta gente é uma cidade.
Zamlock sacudiu a cabeça.
— Provavelmente é um bom lugar para se viver, mas juro que eu não gostaria de morar aqui.
O sedã parou na frente do banco e Rex Olds entrou. Voltou vinte minutos depois.
— Tudo certo — disse ele, entrando no carro. — Os Ashley têm sete mil dólares no banco, uma hipoteca sobre a casa e pagam suas contas pontualmente. O gerente do banco acha que o doutor tem um coração mole demais para ser um bom homem de negócios, mas o considera um risco de crédito dos melhores.
Zamlock olhou para uma prancheta ao seu lado.
— Vamos conferir mais alguns nomes e voltar logo à civilização, antes que eu comece a mugir.
Douglas Schiffer era normalmente um homem jovial e tranqüilo, mas naquele momento havia uma expressão sombria em seu rosto. Os Schiffer e os Ashley estavam no meio de seu jogo de bridge semanal, e os Schiffer estavam dez mil pontos atrás. E pela quarta vez naquela noite Florence Schiffer renunciou. Douglas Schiffer bateu com as cartas na mesa.
— Florence! — explodiu ele. — De que lado você está jogando? Sabe quantos pontos estamos perdendo?
— Desculpe — balbuciou ela, nervosa. — Eu... eu não consigo me concentrar.
— Isso é mais do que evidente — resmungou o marido.
— Alguma coisa a está incomodando? — Edward Ashley perguntou a Florence.
— Não posso contar. Todos a fitaram, surpresos.
— O que isso significa? — indagou o marido. Florence Schiffer respirou fundo.
— Mary... é sobre você.
— Como assim?
— Você está metida em alguma encrenca, não é? Mary ficou aturdida.
— Encrenca? Não. Eu... o que a faz pensar assim?
— Eu não deveria contar. Prometi.
— Prometeu a quem? — perguntou Edward.
— Um agente federal de Washington. Ele esteve lá em casa esta manhã, fazendo uma porção de perguntas sobre Mary. Fez com que ela parecesse uma espécie de espiã internacional.
— Que tipo de perguntas? — insistiu Edward.
— As coisas que a gente vê na televisão. Ela é uma americana leal? É uma boa esposa e mãe? Consome drogas?
— Mas por que fariam perguntas assim sobre Mary?
— Ei, esperem um pouco! — interveio Mary, muito excitada. — Acho que sei o que é. Só pode ser por causa da minha nomeação.
— Não estou entendendo — disse Florence.
— Estou para ser promovida a catedrática. Como a universidade realiza algumas pesquisas confidenciais para o governo no campus, imagino que eles precisam investigar todo mundo de maneira meticulosa.
— Graças a Deus que é só isso. — Florence Schiffer deixou escapar um suspiro de alívio. — Pensei que iam prender você.
— Espero que façam isso mesmo. — Mary sorriu. — Na Universidade Estadual do Kansas.
— Agora que o problema foi esclarecido — disse Douglas Schiffer —, podemos continuar o jogo? — Ele se virou para a esposa. — Se você abandonar mais uma vez, vou botá-la nos meus joelhos e aplicar umas boas palmadas.
— Promessas, promessas...
5
Abbeywood, Inglaterra
— Estamos reunidos nos termos das regras habituais — anunciou o presidente. — Não haverá registros, esta reunião nunca será discutida, e só vamos nos referir uns aos outros pelos codinomes que foram determinados.
Havia oito homens na biblioteca do Castelo Claymore, que datava do século XV. Dois homens armados, envoltos por grossos sobretudos, estavam de vigia lá fora, enquanto um terceiro homem guardava a porta da biblioteca. Os oito homens lá dentro haviam chegado separadamente, pouco tempo antes. O presidente continuou:
— O Controlador recebeu algumas informações desconcertantes. Marin Groza está preparando um golpe contra Alexandros Ionescu. Um grupo de oficiais superiores do exército romeno resolveu apoiar Groza. Desta vez ele pode ser bem-sucedido.
Odin perguntou:
— Como isso afetaria nosso plano?
— Pode destruí-lo. Abriria muitas pontes para o Ocidente.
— Então devemos impedir que aconteça — disse Freyr.
— Como? — indagou Balder.
— Temos que assassinar Groza — respondeu o presidente.
— É impossível. Os homens de Ionescu já cometeram meia dúzia de atentados, ao que saibamos. Todos fracassaram. Sua villa, ao que parece, é inexpugnável. De qualquer forma, ninguém nesta sala pode se permitir o envolvimento numa tentativa de assassinato.
— Não estaríamos envolvidos diretamente — explicou o presidente.
— Então como seria?
— O Controlador descobriu um dossiê confidencial sobre um terrorista internacional que pode ser contratado.
— Abul Abbas, o homem que organizou o seqüestro do Achille Lauro?
— Não. Há um novo pistoleiro na cidade, senhores. O melhor. É conhecido como Angel.
— Nunca ouvi falar — disse Sigmund.
— Exatamente. Suas credenciais são das mais impressionantes. Segundo o dossiê do Controlador, Angel esteve envolvido no assassinato sikh de Khalistan, na Índia. Ajudou os terroristas machateros em Porto Rico, assim como o Khmer Vermelho, no Camboja. Planejou o assassinato de meia dúzia de oficiais do exército em Israel. Os israelenses ofereceram um prêmio de um milhão de dólares por ele, vivo ou morto.
— Parece promissor — comentou Thor. — Podemos consegui-lo?
— Ele é caro. Se concordar em aceitar o contrato, vai nos custar dois milhões de dólares.
Freyr soltou um assovio, depois deu de ombros.
— Pode-se dar um jeito. Tiraremos o dinheiro do fundo de despesas gerais que instituímos.
— Como fazemos contato com esse tal de Angel? — perguntou Sigmund.
— Todos os seus contatos são efetuados por intermédio da amante, Neusa Muñez.
— Onde a encontramos?
— Ela vive na Argentina. Angel montou um apartamento para ela em Buenos Aires.
— Qual seria o próximo passo? — perguntou Thor.
— Quem entraria em contato com ela por nós?
— O Controlador sugeriu um homem chamado Harry Lantz — respondeu o presidente.
— O nome parece familiar.
O presidente acrescentou, secamente:
— Tem saído nos jornais. Harry Lantz é um indisciplinado. Foi expulso da CIA por organizar sua quadrilha de traficantes de tóxicos no Vietnam. Enquanto estava na CIA, fez uma excursão pela América do Sul, e por isso conhece o território. Seria um intermediário perfeito. — O presidente fez uma pausa. — Sugiro que façamos uma votação. Todos que estão a favor da contratação de Angel levantem as mãos, por favor.
Oito mãos bem cuidadas se elevaram pelo ar.
— Então está resolvido. — O presidente levantou-se.
— A reunião está encerrada. Por favor, observem as precauções habituais.
Era uma segunda-feira, e o guarda Leslie Hanson estava fazendo um piquenique na estufa do castelo, onde não tinha direito de ficar. Não estava sozinho, como mais tarde teve de explicar a seus superiores. Fazia calor na estufa, e sua companheira, Annie, uma rechonchuda camponesa, persuadira o bom guarda a levar um cesto de piquenique.
— Você entra com a comida e eu ofereço a sobremesa
— comentara Annie, rindo.
A "sobremesa" tinha quase um metro e setenta de altura, seios lindos e firmes, e quadris que deixava um homem com vontade de cravar os dentes.
Infelizmente, porém, no meio da sobremesa a concentração do guarda Hanson foi desviada por uma limusine que saía pelo portão do castelo.
— Este lugar deveria estar fechado às segundas-feiras
— murmurou.
— Não perca o seu lugar, meu bem — sussurrou Annie.
— De jeito nenhum, querida.
Vinte minutos depois o guarda ouviu um segundo carro partindo. Desta vez ele ficou bastante curioso para se levantar e dar uma espiada. Parecia uma limusine oficial, com as janelas escuras que não deixavam ver os passageiros.
— Você não vem, Leslie?
— Já estou indo. Não consigo imaginar quem poderia ter ido ao castelo. Está sempre fechado, a não ser nos dias de visita.
— Exatamente o que vai acontecer comigo, meu bem, se você não vier logo.
Vinte minutos depois, quando ouviu o terceiro carro partindo, a libido do guarda Hanson perdeu a batalha para o seu instinto de policial. Houve mais cinco veículos, sempre limusines, deixando o castelo a intervalos de vinte minutos. Um dos carros parou por um momento para deixar que um cervo passasse pelo caminho, e o guarda Hanson pôde anotar o número da placa.
— Este deveria ser o seu dia de folga — queixou-se Annie.
— Pode ser importante.
Enquanto falava, o guarda Hanson especulava se deveria ou não comunicar o incidente.
— O que estava fazendo no Castelo Claymore? — perguntou o Sargento Twill.
— Uma visita turística, senhor.
— O castelo estava fechado.
— Mas a estufa estava aberta, senhor.
— Então você resolveu fazer uma visita turística à estufa.
— Isso mesmo, senhor.
— Sozinho, não é?
— Para ser franco, senhor...
— Não precisa relatar os detalhes escabrosos. O que o fez desconfiar dos carros?
— O comportamento deles, senhor.
— Carros não têm comportamento, Hanson. Os motoristas é que têm.
— Tem razão, senhor. Os motoristas pareciam muito cautelosos. Os carros partiram a intervalos de vinte minutos.
— Deve saber que há provavelmente mil explicações inocentes para isso. Na verdade, só você é que parece não ter uma explicação inocente.
— É verdade, senhor. Mas achei que deveria comunicar o que aconteceu.
— Agiu certo. Esta é a placa que você anotou?
— É sim, senhor.
— Muito bem. Pode deixar comigo. — O sargento pensou num comentário crítico para acrescentar. — E não se esqueça... é perigoso jogar pedras nos outros se você tem um telhado de vidro.
E riu de sua piada durante toda a manhã.
Quando recebeu a informação sobre a placa do carro, o sargento Twill concluiu que Hanson se enganara. Levou a informação para o inspetor Pakula e explicou a situação.
— Eu não o incomodaria com esse problema, inspetor, mas a placa do carro...
— Entendo. Pode deixar que cuidarei do caso.
— Obrigado, senhor.
No quartel-general do SIS, o Serviço de Informações Secretas da Inglaterra, o inspetor Pakula teve uma rápida reunião com um dos diretores, um homem corpulento e de rosto avermelhado, sir Alex Hyde-White.
— Fez bem em trazer o problema ao meu conhecimento — disse sir Alex, sorrindo, — Mas receio que não seja nada mais sinistro do que tentar arrumar uma viagem real de férias sem que a imprensa tome conhecimento.
— Lamento tê-lo incomodado com algo assim. O inspetor Pakula levantou-se.
— Não tem problema, inspetor. Demonstra que seu serviço está vigilante. Como é mesmo o nome do jovem guarda?
— Hanson, senhor. Leslie Hanson.
Assim que o inspetor Pakula se retirou e a porta foi fechada, sir Alex Hyde-White pegou um telefone vermelho em cima da mesa.
— Tenho uma mensagem para Balder. Estamos com um pequeno problema. Explicarei na próxima reunião. Enquanto isso, quero que providencie três transferências. Sargento policial Twill, inspetor Pakula e guarda Leslie Hanson. Espace as transferências em alguns dias. Quero que sejam enviados para postos separados, o mais longe possível de Londres. Informarei ao Controlador e verei se ele quer que se tome mais alguma providência.
Em seu quarto de hotel em Nova York, Harry Lantz foi despertado no meio da noite pela campainha do telefone. Quem pode saber que estou aqui?, pensou. Olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira e depois atendeu.
— Porra! São quatro horas da madrugada! Quem... Uma voz suave começou a falar e no mesmo instante
Lantz sentou na cama, o coração disparando.
— Pois não, senhor — disse ele. — Está bem, senhor... Não, senhor, mas posso dar um jeito de ficar livre.
Escutou em silêncio por um longo tempo e depois murmurou:
— Compreendo, senhor. Pegarei o primeiro avião para Buenos Aires. Obrigado, senhor.
Lantz desligou e acendeu um cigarro. As mãos tremiam. O homem com quem acabara de falar era uma das pessoas mais poderosas do mundo e o que pedira a Harry Lantz para fazer... Mas afinal, o que está acontecendo?, perguntou a si mesmo. Só pode ser alguma coisa muito grande. O homem ia lhe pagar cinqüenta mil dólares para transmitir um recado. Seria divertido voltar à Argentina. Harry Lantz adorava as mulheres sul-americanas. Conheço uma dúzia de sacanas com tanto tesão que preferem foder a comer.
O dia estava começando muito bem.
Às nove horas da manhã Lantz pegou o telefone e ligou para a Aerolineas Argentinas.
— A que horas parte o primeiro vôo para Buenos Aires?
O 747 chegou ao Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, às cinco horas da tarde seguinte. Fora um longo vôo, mas Harry Lantz não se importara. Cinqüenta mil dólares para transmitir uma mensagem. Sentiu um ímpeto de excitação no instante em que as rodas do avião tocaram de leve na pista. Não visitava a Argentina há quase cinco anos. Seria divertido renovar antigas amizades.
Ao deixar o avião, Harry Lantz ficou aturdido com a lufada de ar quente. Mas é claro, pensou ele. É verão aqui.
Durante a viagem de táxi para o centro da cidade, Lantz divertiu-se ao constatar que os grafites nas paredes dos prédios e nas calçadas não haviam mudado. PLEBISCITO LAS PELOTAS (Foda-se o plebiscito). MILITARES, ASSESINOS (Militares, assassinos). TENEMOS HAMBRE (Estamos com fome). MARIHUANA LIBRE (Maconha livre). DROGA, SEXO Y MUCHO ROCK (Droga, sexo e muito rock). JUICIO Y CASTIGO A LOS CULPABLES (Julgamento e punição para os culpados).
Isso mesmo, era bom estar de volta.
A sesta já terminara, e as ruas estavam apinhadas de pessoas vindo e seguindo indolentemente para encontros. Quando o táxi chegou ao Hotel El Conquistador, no coração do elegante Barrio Norte, Lantz pagou ao motorista com uma nota de um milhão de pesos.
— Fique com o troco — disse ele.
O dinheiro argentino era uma piada. Ele se registrou na recepção, no vasto e moderno saguão, pegou um exemplar do Buenos Aires Herald e outro do La Prensa e deixou que o assistente da gerência o conduzisse à suíte. Sessenta dólares por dia por um quarto, banheiro, sala de estar e cozinha, com ar-condicionado e televisão. Em Washington, um lugar assim custaria um braço e uma perna, pensou Harry Lantz. Resolverei o problema com a tal de Neusa amanhã e ficarei mais alguns dias aqui para me divertir.
Mais de duas semanas se passaram antes que Harry Lantz conseguisse localizar Neusa Muñez.
Sua busca começou pelas listas telefônicas da cidade. Lantz verificou inicialmente os lugares no coração da cidade: Área Constitución, Plaza San Martin, Barrio Norte, Catelinas Norte. Em nenhum deles estava registrada uma Neusa Muñez. Também não havia nenhuma em Bahia Blanca ou Mar del Plata.
Onde será que ela está?, especulou Lantz. Saiu para a rua, procurando antigos contatos. Foi a La Biela, e o bartender exclamou:
— Señor Lantz! Por Dios... ouvi dizer que tinha morrido.
Lantz sorriu.
— E morri mesmo, mas senti muito sua falta, Antonio, e resolvi voltar.
— O que está fazendo em Buenos Aires? Lantz imprimiu à voz um tom pensativo:
— Vim procurar uma velha namorada. Deveríamos ter casado, mas a família dela mudou e eu a perdi de vista. Seu nome é Neusa Muñez.
O bartender coçou a cabeça.
— Nunca ouvi falar. Lo siento.
— Pode perguntar por aí, Antonio?
— Por qué no?
A próxima visita de Lantz foi a um amigo na chefatuia de polícia.
— Lantz! Harry Lantz! Dios! Qué pasa?
— Olá, Jorge. É um prazer tornar a vê-lo, amigo.
— A última notícia que tive de você é que havia sido expulso da CIA.
Harry Lantz soltou uma risada.
— Nada disso, amigo. Eles me suplicaram que continuasse. Mas eu queria me estabelecer por conta própria.
— É mesmo? E qual é o seu negócio?
— Abri uma agência de detetive. E, para ser franco, foi isso que me trouxe a Buenos Aires. Um cliente meu morreu há poucas semanas. Deixou um bocado de dinheiro para a filha, e estou tentando localizá-la. A única informação de que disponho é de que ela mora num apartamento em algum lugar de Buenos Aires.
— Como ela se chama?
— Neusa Muñez.
— Espere um instante.
O instante prolongou-se por meia hora.
— Desculpe, amigo, mas não posso ajudá-lo. O nome não consta do computador ou de qualquer dos nossos arquivos.
— Está bem. Se descobrir alguma coisa sobre ela, estou no El Conquistador.
— Bueno.
Lantz visitou os bares em seguida. Pontos de encontro conhecidos. Pepe Gonzalez e Almeida, Café Tabac.
— Buenas tardes, amigo. Soy de los Estados Unidos. Estoy buscando una mujer. El nombre es Neusa Muñez. Es una emergência.
— Lo siento, señor. No la conozco.
A resposta era a mesma por toda parte. Ninguém jamais ouviu falar da porra da mulher.
Harry Lantz circulou por La Boca, a pitoresca área do cais em que se pode ver velhos navios enferrujando, ancorados no rio. Ninguém por ali conhecia Neusa Muñez. Pela primeira vez, Harry Lantz começou a sentir que poderia estar empenhado numa busca inútil.
Foi no Pilar, um pequeno bar no bairro de Floresta, que sua sorte mudou de repente. Era uma noite de sexta-feira, e o bar estava repleto de trabalhadores. Lantz levou dez minutos para receber a atenção do bartender. Antes que Lantz chegasse à metade de seu discurso preparado, o bartender interrompeu-o:
— Neusa Muñez? Sí, eu a conheço. Se ela quiser falar com você, estará aqui mañana, por volta de meia-noite.
Na noite seguinte Lantz voltou ao Pilar às onze horas e ficou observando o bar ir lotando pouco a pouco. Perto de meia-noite, ele se descobriu mais e mais nervoso. E se ela não aparecesse? E se fosse a Neusa Muñez errada?
Lantz observou um grupo de moças rindo entrar no bar. Elas foram se juntar a alguns rapazes que ocupavam uma mesa. Ela tem de aparecer, pensou Lantz. Se não vier, posso dar adeus a cinqüenta mil dólares.
Especulou como seria a mulher. Devia ser deslumbrante. Ele estava autorizado a oferecer ao namorado dela, Angel, dois milhões de dólares para assassinar alguém. O que significava que o tal de Angel devia ter dinheiro que não acabava mais. Podia muito bem sustentar uma amante linda e jovem. Mais do que isso, podia sustentar uma dúzia de amantes assim. A tal Neusa devia ser uma atriz ou modelo. Talvez até eu possa me divertir um pouco com ela antes de deixar a cidade, pensou Harry Lantz, feliz. Nada como combinar negócios e prazer.
A porta se abriu e Lantz olhou, em expectativa. Uma mulher entrou, sozinha. Era de meia-idade e desgraciosa, o corpo enorme, inchado, seios caídos, que balançavam quando ela andava. O rosto era bexiguento, e os cabelos estavam pintados de louro, mas a pele morena indicava o sangue mestizo, herdado de uma ancestral índia que fora para a cama com um espanhol. Vestia uma saia malfeita e uma suéter destinada a uma mulher muito mais jovem. Uma vigarista sem sorte, concluiu Lantz. Mas quem poderia querer trepar com uma mulher assim?
A mulher correu os olhos vazios e apáticos pelo bar. Acenou com a cabeça vagamente para diversas pessoas e depois abriu caminho pela multidão. Foi até o balcão.
— Quer me pagar um drinque?
Ela tinha um sotaque espanhol carregado e de perto era ainda mais desgraciosa. Parece uma vaca gorda que não dá mais leite, pensou Harry Lantz. E está de porre.
— Não enche, irmã.
— Esteban disse que você está à minha procura. Lantz ficou aturdido.
— Quem?
— Esteban. O bartender.
Harry Lantz ainda não podia aceitar.
— Ele deve ter se enganado. Estou procurando por Neusa Muñez.
— Sí. Yo soy Neusa Muñez.
Só que a errada, pensou Harry Lantz. Mas que merda!
— É amiga de Angel?
Ela sorriu, meio embriagada.
— Sí.
Harry Lantz recuperou-se no mesmo instante.
— Bom, bom... — Forçou um sorriso. — Podemos ir para uma mesa no canto e conversar?
A mulher acenou com a cabeça, indiferente.
— Está bem.
Eles abriram caminho pelo bar enfumaçado. Quando sentaram, Harry Lantz disse:
— Eu gostaria de falar sobre...
— Não quer me pagar um rum? Lantz assentiu.
— Claro.
Um garçom se aproximou, usando um avental imundo. Lantz pediu:
— Um rum e um uísque com soda.
— O rum é duplo, hein? — disse Neusa Muñez. Depois que o garçom se afastou, Lantz virou-se para a mulher sentada a seu lado.
— Quero me encontrar com Angel. Ela o estudou com olhos opacos.
— Para quê? Lantz baixou a voz.
— Tenho um presente para ele.
— Que tipo de presente?
— Dois milhões de dólares.
O garçom trouxe os drinques. Harry Lantz levantou o copo e disse:
— A nós.
— A nós. — Ela bebeu tudo de um só gole. — Por que quer dar dois milhões de dólares a Angel?
— É uma coisa que devo discutir com ele pessoalmente.
— Isso não é possível. Angel não fala com ninguém.
— Por dois milhões de dólares...
— Posso tomar outro rum? Um duplo, hein? Essa não! Ela parece que está prestes a apagar!
— Claro. — Lantz chamou o garçom e pediu o drinque. — Conhece Angel há muito tempo?
Ele procurou imprimir um tom casual à voz. A mulher deu de ombros.
— Conheço.
— Ele deve ser um homem interessante.
Os olhos vazios de Neusa Muñez estavam fixados num ponto da mesa à sua frente.
É demais!, pensou Harry Lantz. É como tentar conversar com uma parede!
O rum chegou, e ela tomou tudo num longo gole. Ela tem o corpo de uma vaca e as maneiras de um porco.
— Quando posso me encontrar com Angel? Neusa Muñez fez um esforço para se levantar.
— Eu já disse que ele não fala com ninguém. Adios. Harry Lantz foi dominado por um súbito pânico.
— Ei, espere um pouco! Não vá embora! Ela parou e fitou-o com os olhos injetados.
— O que você quer?
— Sente-se e direi o que quero. A mulher arriou na cadeira.
— Preciso de um drinque, hein?
Harry Lantz estava aturdido. Que porra de homem é esse Angel? Sua amante não só é a mulher mais feia de toda a América do Sul, mas é também uma bêbada.
Lantz não gostava de lidar com bêbados. Não mereciam confiança. Por outro lado, ele detestava a perspectiva de perder sua comissão de cinqüenta mil dólares.
Observou Neusa Muñez tomar o rum. Especulou quantas doses ela já teria bebido antes de encontrá-lo. Lantz sorriu e disse, persuasivo:
— Se eu não puder falar com Angel, Neusa, como poderei tratar de negócios com ele?
— É muito simples. Você me diz o que quer. Eu digo a Angel. Se ele disser sí, eu digo sí. Se ele disser não, eu digo não.
Harry não gostava da idéia de usá-la como intermediária, mas não tinha alternativa.
— Já ouviu falar de Marin Groza?
— Não.
Claro que ela nunca ouvira. Porque não era o nome de uma marca de rum. Aquela mulher estúpida ia transmitir o recado completamente errado e estragar seu negócio.
— Preciso de um trago, hein? Lantz afagou-lhe a mão gorda.
— Está certo. — Pediu outra dose dupla de rum. — Angel saberá quem é Groza. Você apenas diz Marin Groza. Ele saberá.
— E depois?
Ela era ainda mais estúpida do que parecia. O que ela pensava que Angel deveria fazer por dois milhões de dólares? Dar um beijo no cara? Lantz disse, com muito cuidado:
— As pessoas que me mandaram aqui querem que ele seja liquidado.
— Como assim? Oh, Deus!
— Morto.
— Ahn... — Ela balançou a cabeça, indiferente. — Perguntarei a Angel. — Sua voz estava cada vez mais engrolada. — Como é mesmo o nome do homem?
Lantz tinha vontade de sacudi-la.
— Groza. Marin Groza.
— Está bem. Meu neném está fora da cidade. Telefono para ele esta noite e me encontro aqui com você amanhã. Posso tomar outro rum?
Neusa Muñez estava se revelando um pesadelo.
Na noite seguinte Harry Lantz sentou à mesma mesa no bar, de meia-noite às quatro horas da madrugada, quando a casa fechou. Neusa Muñez não apareceu.
— Sabe onde ela mora? — Lantz perguntou ao bartender.
O bartender fitou-o com expressão inocente.
— Quién sabe?
A sacana estragara tudo. Como um homem supostamente tão eficiente quanto Angel podia se ligar a uma viciada em rum? Harry Lantz orgulhava-se de ser um profissional. Era esperto demais para entrar num negócio como aquele sem antes fazer algumas indagações. O que mais o impressionara fora a informação de que os israelenses fixaram o preço de um milhão de dólares pela cabeça de Angel. Um milhão compraria uma vida inteira de bebida e vigaristas jovens. Mas ele podia esquecer isso e podia esquecer também os seus cinqüenta mil. Seu único elo com Angel se rompera. Teria de procurar O Homem e comunicar que fracassara.
Não vou falar com ele por enquanto, decidiu Harry Lantz. Talvez ela ainda volte aqui. Talvez os outros bares esgotem seu estoque de rum. Talvez eu estivesse maluco quando aceitei a porra desta missão.
6
Na noite seguinte, às onze horas, Harry Lantz estava sentado à mesma mesa no Pilar, mastigando amendoins e roendo as unhas. Às duas horas da madrugada ele viu Neusa Muñez passar pela porta, cambaleando. O coração de Harry logo disparou. Ficou observando a mulher se encaminhar para a sua mesa.
— Oi — murmurou ela, arriando na cadeira.
— O que aconteceu com você? — perguntou Harry. Ele tinha de fazer um grande esforço para controlar sua raiva. Ela piscou os olhos, surpresa.
— Hein?
— Ficou de se encontrar aqui comigo ontem à noite.
— É mesmo?
— Marcamos um encontro, Neusa.
— Ahn... Fui ao cinema com uma amiga. Está passando um filme novo, entende? É sobre um homem que se apaixona pela porra de uma freira e...
Lantz sentia-se tão frustrado que podia até chorar. O que Angel pode ver nesta mulher estúpida e bêbada? Ela deve ter uma boceta de ouro, concluiu Lantz.
— Neusa... você se lembrou de falar com Angel? Ela o fitou distraída, procurando compreender a pergunta.
— Angel? Sí. Posso tomar um trago, hein?
Ele pediu uma dose dupla de rum para a mulher e um uísque também duplo para sí mesmo. Precisava desesperadamente da bebida.
— E o que Angel disse, Neusa?
— Angel? Ah, ele disse sim. Está bem. Harry Lantz sentiu um alívio intenso.
— Isso é maravilhoso!
Ele não estava mais interessado em sua missão como mensageiro. Tinha uma idéia melhor. Aquela bêbada idiota ia levá-lo a Angel. Uma recompensa em dinheiro de um milhão de dólares.
Ele ficou observando-a tomar o rum, derramando um pouco pela blusa já suja.
— O que mais Angel disse?
A mulher franziu a testa em concentração.
— Angel disse que quer saber quem são vocês. Lantz ofereceu seu sorriso mais cativante.
— Diga a ele que isso é confidencial, Neusa. Não posso lhe fornecer essa informação.
Ela balançou a cabeça com indiferença.
— Então Angel vai dizer a você para ir se foder. Posso tomar outro rum antes de ir embora?
A mente de Harry Lantz começou a trabalhar em alta velocidade. Se a mulher fosse embora, ele tinha certeza de que nunca mais tornaria a vê-la.
— Vamos fazer uma coisa, Neusa. Telefonarei às pessoas para as quais estou trabalhando. Se me derem permissão, eu lhe direi um nome. Está bom assim?
Ela deu de ombros.
— Não me importo.
— Mas Angel se importa — explicou Lantz, paciente.
— Diga a ele que terei uma resposta amanhã. Há algum lugar em que eu possa encontrar você?
— Acho que sim.
Ele estava fazendo algum progresso.
— Onde?
— Aqui.
O garçom trouxe o rum e Lantz observou-a tomar tudo de um só gole, como um animal. Sentiu vontade de matá-la.
Lantz ligou a cobrar, a fim de que não pudessem localizá-lo na origem da chamada, de uma cabine pública na rua Calvo. Esperou mais de uma hora para que a ligação fosse completada.
— Não — disse o Controlador. — Eu falei que nenhum nome seria mencionado.
— Sei disso, senhor. Mas estou com um problema. Neusa Muñez, a amante de Angel, diz que ele está disposto a fazer o negócio, mas não levantará um dedo enquanto não souber com quem está tratando. Como não podia deixar de ser, eu disse a ela que precisava consultar as pessoas que me haviam enviado até aqui.
— Como é essa mulher?
O Controlador não era um homem que se pudesse enganar.
— Ela é gorda, feia e estúpida, senhor.
— É muito perigoso usar o meu nome.
Harry Lantz podia sentir que o negócio estava lhe escapando.
— Compreendo, senhor. Mas não se pode esquecer que a reputação de Angel está baseada em sua capacidade de ficar de boca fechada. Se ele algum dia começasse a falar, não duraria cinco minutos neste negócio.
Houve um silêncio prolongado.
— Tem razão nesse ponto. — Houve outro silêncio, ainda mais prolongado. — Está bem. Pode dar meu nome a Angel. Mas ele não deve divulgá-lo e nunca deve entrar em contato comigo diretamente. Todo o trabalho será realizado por seu intermédio.
Harry Lantz sentia-se tão contente que podia sair dançando.
— Direi a ele, senhor. Obrigado.
Desligou, sorrindo. Ia receber cinqüenta mil dólares. E depois a recompensa de um milhão de dólares.
Quando se encontrou com Neusa Muñez, naquela noite, Harry Lantz pediu imediatamente um rum duplo para ela e disse, na maior felicidade:
— Está tudo acertado. Obtive permissão. Ela fitou-o com a indiferença habitual.
— É mesmo?
Ele comunicou o nome de seu empregador. Era conhecido no mundo inteiro, e Lantz esperava que ela se mostrasse impressionada. Mas a mulher deu de ombros.
— Nunca ouvi falar.
— As pessoas para quem trabalho, Neusa, querem que o serviço seja feito o mais depressa possível. Marin Groza está escondido numa villa em Neuilly e...
— Onde?
Oh, Deus Todo-Poderoso! Ele estava tentando se comunicar com uma bêbada idiota. E disse, paciente:
— É uma cidadezinha nos arredores de Paris. Angel saberá onde fica.
— Preciso de outro trago.
Uma hora depois Neusa ainda estava bebendo, e desta vez Harry Lantz a estimulava. Não que ela precise de muito estímulo, pensou Lantz. Quando estiver completamente embriagada, vai me levar a seu namorado. O resto será fácil.
Observou Neusa Muñez, que contemplava seu drinque com os olhos vidrados.
Não deve ser muito difícil pegar Angel. Ele pode ser duro, mas não deve ser muito inteligente.
— Quando Angel voltará à cidade? Ela focalizou os olhos vazios em Lantz.
— Semana que vem.
Harry Lantz pegou a mão da mulher e afagou-a, indagando suavemente:
— Por que nós dois não vamos para a sua casa?
— Está bem. Ele conseguira.
Neusa Muñez morava num sórdido apartamento de dois cômodos, no bairro de Belgrano, em Buenos Aires. O apartamento era sujo e desarrumado, como sua moradora. Passaram pela porta, e Neusa encaminhou-se direto para o pequeno bar no canto da sala. Estava cambaleando.
— Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Lantz. — Mas você pode tomar.
Ele observou-a servir o drinque e tomá-lo. Ela é a mulher mais feia e repulsiva que já conheci, pensou Lantz. Mas o milhão de dólares que vai me proporcionar será uma beleza.
Correu os olhos pelo apartamento. Havia alguns livros empilhados sobre uma mesinha baixa. Lantz pegou-os um a um, esperando descobrir alguma coisa sobre a mente de Angel. Os títulos o surpreenderam: Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado; Fogo da montanha, de Omar Cabezas; Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez; À noite, os gatos, de Antonio Cisneros. Então Angel era um intelectual. Os livros não combinavam com o apartamento nem com a mulher. Lantz aproximou-se dela e passou os braços pela cintura enorme e flácida.
— Sabia que você é muito atraente? — Ele levantou a mão e afagou os seios. Eram do tamanho de melancias. Detestava mulheres de seios grandes. — Tem realmente um corpo sensacional.
— Hein?
Os olhos de Neusa estavam vidrados. Lantz baixou os braços e acariciou as coxas gordas através do vestido fino de algodão, sussurrando:
— Gosta disso?
— De quê?
Ele não estava fazendo nenhum progresso. Tinha de pensar num meio de levar aquela amazona para a cama. Mas também sabia que precisava agir com todo cuidado. Se a ofendesse, ela poderia ficar furiosa e contar tudo a Angel, o que acabaria com suas perspectivas. Poderia tentar a persuasão, mas ela estava bêbada demais para entender o que ele dissesse.
Enquanto Lantz tentava desesperadamente pensar numa manobra esperta, Neusa murmurou:
— Quer foder? Ele sorriu, aliviado.
— É uma grande idéia, meu bem.
— Vamos para o quarto.
Ela estava cambaleando quando Lantz a seguiu para o pequeno quarto. Tinha um closet, com a porta entreaberta, uma cama de casal desarrumada, duas cadeiras e uma cômoda, com um espelho rachado por cima. Foi o closet que atraiu a atenção de Harry Lantz. Viu uma fileira de ternos de homem pendurados lá dentro.
Neusa estava ao lado da cama, tentando abrir os botões da blusa. Em circunstâncias normais, Harry Lantz estaria junto dela, despindo-a, acariciando seu corpo e murmurando obscenidades excitantes em seu ouvido. Mas a visão de Neusa Muñez lhe causava a maior repulsa. Ficou parado, observando, enquanto a saia caía no chão. Ela não usava nada por baixo. Nua, era ainda mais feia do que vestida. Os seios enormes eram flácidos, e a barriga protuberante tremia como geléia quando ela se mexia. As coxas gordas eram uma massa de celulite. Ela é a coisa mais grotesca que já vi, pensou Lantz. Pense de maneira positiva, disse a si mesmo. Isto acabará em poucos minutos, enquanto o milhão de dólares durará para sempre.
Lentamente, forçou-se a tirar as roupas. Ela estava estendida na cama, como um leviatã, à sua espera. Lantz foi ficar ao seu lado.
— Do que você gosta? — perguntou ele.
— Hein? Chocolate. Gosto de chocolate.
Ela estava mais bêbada do que ele pensara. Isso é ótimo. Tornará tudo mais fácil. Começou a acariciar o corpo flácido e branco.
— Você è uma mulher muito bonita, meu bem. Sabia disso?
— Hein?
— Gosto muito de você, Neusa. — Lantz desceu as mãos para o monte peludo entre as pernas gordas e começou a traçar pequenos círculos. — Aposto que leva uma vida emocionante.
— Hein?
— Afinal... ser a namorada de Angel... Deve ser muito interessante. Diga-me uma coisa, meu bem: como é Angel?
Houve silêncio, e ele especulou se Neusa adormecera. Enfiou os dedos na fenda macia e úmida entre as pernas e sentiu-a se mexer.
— Não durma agora, querida. Ainda não. Que tipo de homem é Angel? Ele é bonito?
— Rico. Angel é rico.
A mão de Lantz continuou em ação.
— Ele é bom para você?
— É, sim. Angel é muito bom para mim.
— Também serei bom para você, meu bem.
A voz de Lantz era suave e mole. O problema é que o resto também estava mole. Precisava de uma ereção de um milhão de dólares. Começou a pensar nas irmãs Dolly e algumas das coisas que haviam feito com ele. Visualizou-as trabalhando em seu corpo nu, com as línguas, dedos e mamilos. O pênis começou a ficar duro. Virou rapidamente para cima de Neusa e penetrou-a. É como foder um pudim, pensou Harry Lantz.
— Está gostando?
— Acho que estou.
Harry Lantz sentiu vontade de estrangulá-la. Havia dezenas de mulheres lindas no mundo inteiro que ficavam no maior excitamento por seu ato amoroso e aquela sacana gorda se limitava a dizer que achava que estava gostando. Ele começou a deslocar os quadris para a frente e para trás.
— Fale-me sobre Angel. Quem são os amigos dele? A voz de Neusa estava sonolenta:
— Angel não tem amigos. Eu sou sua amiga.
— Claro que é, meu bem. Angel mora aqui com você ou tem seu próprio apartamento?
Neusa fechou os olhos.
— Estou com sono. Quando você vai gozar? Nunca, pensou ele. Não com esta vaca.
— Já gozei — mentiu Lantz.
— Então vamos dormir.
Ele saiu de cima da mulher e estendeu-se a seu lado, furioso. Por que Angel não podia ter uma amante normal? Uma mulher jovem, bonita, de sangue quente? Ele não teria então qualquer dificuldade para obter as informações que desejava. Mas aquela vaca estúpida... Ainda assim... havia outros meios.
Lantz ficou imóvel na cama por um longo tempo, até ter certeza absoluta de que Neusa estava dormindo. Levantou-se então, com todo cuidado, e foi até o closet.
Acendeu a luz no interior e fechou a porta, a fim de que a claridade não despertasse a baleia roncando.
Havia uma dúzia de ternos e trajes esportes pendurados, seis pares de sapatos de homem no chão. Lantz abriu os paletós e verificou as etiquetas. Os ternos eram todos feitos sob medida por Herrera, avenida la Plata. Os sapatos eram da Vill. Tirei a sorte grande!, pensou Lantz, exultante. Eles devem ter o registro do endereço de Angel. Irei à loja pela manhã e farei algumas perguntas. Um alarme soou em sua mente. Não, nada de perguntas. Ele tinha de ser mais esperto. Afinal, estava lidando com um assassino de categoria internacional. Seria mais seguro deixar que Neusa o levasse a Angel. Tudo o que terei de fazer então será avisar meus amigos no Mossad e receber o dinheiro. Mostrarei a Ned Tillingast e ao resto daquele bando de desgraçados da CIA que o velho Harry Lantz ainda não perdeu a classe. Todos aqueles garotos brilhantes estavam fazendo o possível e o impossível para descobrir Angel e sou eu quem o encontra.
Teve a impressão de ouvir um ruído na cama. Espiou cauteloso pela porta do closet, mas Neusa ainda estava dormindo.
Lantz apagou a luz do closet e voltou para a cama. Os olhos da mulher estavam fechados. Ele foi na ponta dos pés até a cômoda e começou a vasculhar as gavetas, na esperança de encontrar uma fotografia de Angel. Seria uma grande ajuda. Não teve sorte. Retornou à cama. Neusa roncava alto.
Quando Harry Lantz finalmente adormeceu, seus sonhos foram repletos de visões de um iate branco, cheio de mulheres bonitas e jovens, completamente nuas, com seios pequenos e firmes.
Pela manhã, quando Harry Lantz acordou, Neusa não estava na cama. Por um instante, ele foi dominado pelo pânico. Ela já teria saído para se encontrar com Angel? Ouviu barulho na cozinha. Saiu da cama apressado e vestiu-se. Neusa estava no fogão.
— Buenos dias — disse Lantz.
— Quer café? — murmurou Neusa. — Não posso fazer nada para você comer. Tenho um encontro marcado.
Com Angel. Harry Lantz tentou esconder sua excitação.
— Não há problema, pois não estou com fome. Pode ir para o seu encontro. Jantaremos juntos esta noite. — Ele abraçou-a, acariciando os seios enormes. — Onde você gostaria de jantar? Só o melhor para a minha garota.
Eu deveria ser um ator, pensou Lantz.
— Não me importo.
— Conhece o Chiquin, na avenida Cangallo?
— Não.
— Tenho certeza de que vai gostar. Está bem eu vir buscá-la aqui às oito horas? Tenho muitos negócios para tratar hoje.
Ele não tinha negócio nenhum a tratar.
— Está bem.
Lantz teve de recorrer a toda sua força de vontade para se inclinar e dar um beijo de despedida em Neusa. Os lábios da mulher eram flácidos, úmidos e repulsivos.
— Às oito horas.
Ele deixou o apartamento e fez sinal para um táxi. Esperava que Neusa estivesse observando da janela.
— Vire à direita na próxima esquina — ordenou ao motorista.
Depois que viraram a esquina, Harry Lantz acrescentou:
— Vou saltar aqui.
O motorista fitou-o com expressão espantada.
— Pegou um táxi para andar só um quarteirão, señor?
— Isso mesmo. Tenho uma perna ruim. Ferimento de guerra.
Lantz pagou a corrida e depois voltou apressado para uma tabacaria em frente ao prédio de Neusa, no outro lado da rua. Acendeu um cigarro e ficou esperando.
Vinte minutos depois Neusa saiu do prédio. Lantz observou-a se afastar pela rua e seguiu-a a uma distância cautelosa. Não havia a menor possibilidade de perdê-la. Era como seguir o Lusitânia.
Neusa Muñez parecia não ter a menor pressa. Desceu pela avenida Belgrano, passou pela biblioteca Espanhola e seguiu pela avenida Córdoba. Lantz observava quando ela entrou na Berenes, uma loja de couros na San Martin. Ficou parado no outro lado da rua, vendo-a conversar com um vendedor. Especulou se a loja teria alguma ligação com Angel. Fez uma anotação mental.
Neusa saiu alguns minutos depois, carregando um embrulho pequeno. Sua parada seguinte foi numa heladería na Corrientes, para tomar um sorvete. Desceu pela San Martin, andando devagar. Parecia estar passeando a esmo, sem qualquer destino específico em mente.
O que aconteceu com seu encontro marcado?, pensou Lantz. Onde está Angel? Ele não acreditava na declaração de Neusa de que Angel não estava na cidade. O instinto lhe dizia que Angel se encontrava em algum lugar nas proximidades.
Lantz compreendeu subitamente que Neusa Muñez não estava mais à vista. Ela virara uma esquina à frente e desaparecera. Ele acelerou os passos. Não a viu quando dobrou a esquina. Havia pequenas lojas nos dois lados da rua e Lantz foi avançando com todo cuidado, os olhos esquadrinhando tudo, temeroso de que Neusa pudesse avistá-lo antes que ele a visse.
Finalmente localizou-a numa fiambrería, comprando coisas. Seriam para ela ou estaria esperando alguém no apartamento para almoçar? Alguém chamado Angel.
A distância, Lantz observou Neusa entrar numa verdurería e comprar frutas e legumes. Seguiu-a de volta ao prédio em que morava. Até onde ele podia determinar, não houvera qualquer contato suspeito.
Harry Lantz ficou observando o prédio de Neusa do outro lado da rua durante as quatro horas seguintes, mudando de posição constantemente, a fim de não chamar atenção. Acabou chegando à conclusão de que Angel não ia aparecer. Talvez eu consiga lhe arrancar mais alguma informação esta noite, pensou ele. Sem precisar comê-la, é claro. A idéia de ter de fazer amor com Neusa outra vez deixava-o com vontade de vomitar.
No Gabinete Oval da Casa Branca a noite caía. Fora um dia comprido para Paul Ellison. O mundo inteiro parecia composto por comitês e conselhos, telegramas urgentes, reuniões e conversas. Só agora tinha um momento para refletir, um momento para si mesmo. Ou quase para si mesmo. Stanton Rogers estava sentado no outro lado da mesa, e o presidente descobriu-se relaxando pela primeira vez naquele dia.
— Estou tirando-o de sua família, Stan.
— Não tem problema, Paul.
— Eu queria falar com você sobre a investigação de Mary Ashley. Como está indo?
— Está quase concluída. Teremos uma verificação final amanhã ou depois. Até agora, parece que está tudo certo. Estou começando a ficar excitado com a idéia. Acho que vai dar certo.
— Nós faremos com que dê certo. Quer outro drinque?
— Não, obrigado. A menos que você precise de mim para alguma coisa, vou levar Barbara para uma estréia no Kennedy Center.
— Pode ir — disse Paul Ellison. — Alice e eu vamos receber alguns parentes dela.
— Por favor, dê lembranças minhas a Alice. Stanton Rogers levantou-se.
— E você dê lembranças minhas a Barbara.
O presidente ficou observando Stanton Rogers se retirar. E seus pensamentos voltaram a se concentrar em Mary Ashley.
Ao chegar ao apartamento de Neusa naquela noite a fim de levá-la para jantar fora, Harry Lantz bateu na porta e não houve resposta. Sentiu um momento de consternação. Será que ela saíra, esquecendo o encontro?
Experimentou a porta. Não estava trancada. Angel estaria ali à sua espera? Talvez ele tivesse decidido discutir o contrato pessoalmente. Harry assumiu uma atitude firme, profissional, e entrou. A sala estava vazia.
— Olá.
Apenas um eco. Ele passou para o quarto. Neusa estava estendida na cama, bêbada.
— Sua idiota...
Harry se controlou. Não podia esquecer que aquela mulher estúpida e bêbada era a sua mina de ouro. Pôs as mãos nos ombros de Neusa e tentou acordá-la. Ela abriu os olhos.
— O que é?
— Estou preocupado com você. — A voz de Harry Lantz estava impregnada de sinceridade. — Detesto vê-la infeliz e acho que anda bebendo porque alguém a deixa infeliz. Sou seu amigo. Pode me contar tudo. É Angel, não é?
— Angel... — murmurou ela.
— Tenho certeza de que ele é um bom homem — continuou Harry suavemente. — Provavelmente vocês dois tiveram apenas um mal-entendido, não é?
Ele tentou tirá-la da cama. É como desencalhar uma baleia, pensou Lantz.
— Fale-me sobre Angel — pediu ele, sentando-se na cama. — O que ele está fazendo com você?
Neusa fitou-o, os olhos remelentos, tentando focalizá-lo.
— Vamos foder.
Essa não! Ia ser uma longa noite.
— Claro. Grande idéia. Relutante, Lantz começou a se despir.
Quando Harry Lantz acordou pela manhã, sozinho na cama, as lembranças afloraram em sua mente e ele sentiu o estômago revirar. Neusa o acordara no meio da noite.
— Sabe o que eu quero que faça comigo?
E ela lhe dissera. Lantz escutara, aturdido, mas fizera todas as coisas que ela pedira. Não podia se dar o luxo de hostilizá-la. Neusa era um animal selvagem e doentio, e Lantz especulou se Angel alguma vez fizera aquelas coisas com ela. A lembrança do que acontecera deixou Lantz com vontade de vomitar.
Ele ouviu Neusa cantando no banheiro, desafinada. Não tinha certeza se seria capaz de encará-la. Já fui longe demais, pensou Lantz. Se ela não me disser esta manhã onde posso encontrar Angel, vou procurar o alfaiate e o sapateiro.
Empurrou as cobertas para o lado e foi falar com Neusa. Ela estava parada na frente do espelho do banheiro. Tinha os cabelos enrolados e parecia, se possível, ainda mais desgraciosa do que antes.
— Nós dois precisamos ter uma conversa — disse Lantz, a voz firme.
— Claro. — Neusa apontou para a banheira cheia de água. — Preparei um banho para você. Quando acabar, arrumo o café da manhã.
Lantz estava impaciente, mas sabia que não devia pressioná-la demais.
— Você gosta de omelete?
Ele não estava com o menor apetite.
— Gosto, sim.
— Faço uma boa omelete. Angel me ensinou. Lantz ficou observando enquanto ela começava a tirar os enormes rolos do cabelo. Ele entrou na banheira.
Neusa pegou um secador elétrico, ligou-o e pôs-se a enxugar os cabelos.
Lantz refestelou-se na banheira com água quente, pensando: Talvez eu devesse arrumar um revólver e cuidar de Angel pessoalmente. Se deixar os israelenses fazerem isso, provavelmente haverá a porra de um inquérito para saber com quem fica a recompensa. Dessa maneira não haverá qualquer dúvida. Apenas direi a eles onde podem pegar o corpo.
Neusa disse alguma coisa, mas Harry Lantz mal pôde ouvi-la, com o barulho do secado..
— O que foi que disse? — gritou ele. Neusa se aproximou da banheira.
— Tenho um presente de Angel para você.
Ela largou o secador de cabelos elétrico na água e ficou olhando o corpo de Harry Lantz se contorcer na dança da morte.
7
O presidente Paul Ellison largou o último relatório de segurança sobre Mary Ashley e disse:
— Não há nenhuma falha, Stan.
— Sei disso. Acho que ela é a candidata perfeita. Mas é claro que o pessoal do Departamento de Estado não vai ficar muito satisfeito.
— Mandaremos uma caixa de lenços para eles chorarem. E agora vamos torcer para que o Senado concorde com a nossa idéia.
A sala de Mary Ashley no Kedzie Hall era pequena e agradável, forrada de estantes com livros de referências sobre os países da Europa Central. O mobiliário era mínimo, consistindo de uma escrivaninha escalavrada, uma cadeira giratória, e uma mesinha junto à janela em que se acumulavam muitas provas, uma poltrona e uma luminária de leitura. Na parede por trás da escrivaninha havia um mapa dos Bálcãs. Uma fotografia antiga do avô de Mary estava pendurada na parede. Fora tirada na passagem do século, e o vulto na fotografia mantinha uma pose rígida, sem naturalidade, vestindo as roupas da época. Era um dos tesouros de Mary. Fora o avô quem lhe incutira profunda curiosidade pela Romênia. Ele lhe contava histórias românticas da rainha Marie, de baronesas e princesas, histórias de Albert, o príncipe consorte da Inglaterra, de Alexandre II, czar da Rússia, e dezenas de outros personagens emocionantes.
Em algum lugar do nosso passado existe sangue real. Se a revolução não tivesse acontecido, você seria uma princesa.
Mary costumava sonhar com isso.
Ela estava conferindo as provas e dando notas quando a porta se abriu e o reitor Hunter entrou.
— Bom dia, senhora Ashley. Pode me dar um momento?
Era a primeira vez que o reitor a procurava em sua sala. Mary experimentou um súbito momento de exultação. Só podia haver um motivo para que o reitor ali viesse pessoalmente: ele ia comunicar que a universidade a contratara como catedrática.
— Claro — disse ela. — Não quer sentar? Ele sentou.
— Como estão suas turmas?
— Acho que muito bem.
Mary estava ansiosa em transmitir a notícia a Edward. Ele ficaria muito orgulhoso. Não era sempre que uma pessoa de sua idade se tornava catedrática numa universidade. O reitor Hunter parecia constrangido.
— Está metida em alguma encrenca, senhora Ashley? A pergunta pegou Mary completamente desprevenida.
— Encrenca? Eu... não. Por que pergunta?
— Alguns homens de Washington vieram me procurar, fazendo perguntas a seu respeito.
Mary Ashley ouviu o eco das palavras de Florence Schiffer: Algum agente federal de Washington!... Estava fazendo uma porção de perguntas sobre Mary. Do jeito como falava, parecia que ela era uma espiã internacional... Ela é uma americana leal? Tem sido uma boa esposa e mãe... Portanto, no final das contas, o intruso não tinha nada a ver com seu posto de catedrática. Ela se descobriu de repente com dificuldade para falar.
— O que... o que eles queriam saber, reitor Hunter?
— Perguntaram sobre sua reputação como professora e também queriam saber de sua vida pessoal.
— Não posso explicar. Não tenho a menor idéia do que está acontecendo. E não estou metida em nenhuma encrenca. Pelo menos ao que eu saiba.
O reitor observava-a com um ceticismo óbvio.
— Não lhe contaram por que estavam fazendo perguntas a meu respeito?
— Não. Para dizer a verdade, pediram-me que mantivesse a conversa no mais absoluto sigilo. Mas tenho um dever de lealdade para com a minha equipe e achei que seria justo informá-la. Se houver alguma coisa que eu deva saber, prefiro tomar conhecimento por seu intermédio. Qualquer escândalo envolvendo um dos nossos professores poderia ter reflexos prejudiciais sobre a universidade.
Mary sacudiu a cabeça, desamparada.
— Eu... eu não posso imaginar nada.
O reitor fitou-a em silêncio por um momento. Parecia prestes a dizer alguma coisa, mas depois balançou a cabeça e limitou-se a murmurar:
— Está bem, senhora Ashley.
Ela ficou observando o reitor se retirar e especulou: Mas afinal, o que eu poderia ter feito?
Mary se manteve muito quieta durante o jantar. Queria esperar que Edward acabasse de comer antes de contar o que estava acontecendo. Tentariam esclarecer o problema juntos. As crianças estavam insuportáveis outra vez. Beth recusou-se a comer qualquer coisa.
— Ninguém mais come carne. É um costume bárbaro, trazido dos tempos do homem da caverna. Pessoas civilizadas não comem animais vivos.
— Não está vivo — argumentou Tim. — Está morto, e por isso você pode comer.
— Crianças! — Os nervos de Mary estavam à flor da pele. — Não digam mais nada! Beth, vá preparar uma salada para você!
— Ela podia pastar no campo — sugeriu Tim.
— Tim! Termine logo de jantar! — A cabeça de Mary começava a latejar. — Edward...
O telefone tocou.
— É para mim — disse Beth.
Ela se levantou de um pulo e correu para o telefone. Tirou o fone do gancho e murmurou, com sua voz mais sedutora:
— Virgil? — Ela escutou por um momento e sua expressão mudou. Foi com irritação que acrescentou: — Sei disso!
Beth bateu com o telefone e voltou para a mesa.
— Quem era? — perguntou Edward.
— Algum gaiato. Disse que era da Casa Branca, querendo falar com mamãe.
— Casa Branca? — repetiu Edward. O telefone tornou a tocar.
— Eu atendo — disse Mary.
Ela se levantou e foi até o telefone.
— Alô? — Enquanto escutava, sua expressão tornou-se sombria. — Estou no meio do jantar e não acho a menor graça. Você pode... o quê? ... Quem? O presidente?
Houve um súbito silêncio na sala.
— Espere um... eu... oh, boa noite, senhor presidente. — Havia uma expressão atordoada em seu rosto. Toda a família observava, os olhos arregalados. — Sim, senhor. Reconheço sua voz. Eu... eu... peço desculpas por terem batido com o telefone há pouco. Beth pensou que era Virgil e... sim, senhor. Obrigada. — Ela ficou imóvel, escutando. — Se eu estaria disposta a servir como o quê?
O rosto de Mary ficou subitamente vermelho. Edward estava de pé, aproximando-se do telefone, as crianças logo atrás.
— Deve haver algum engano, senhor presidente. Meu nome é Mary Ashley. Sou professora na Universidade Estadual do Kansas e... O senhor leu? Obrigada, senhor... É muita gentileza sua... Eu acho que sim... — Ela escutou em silêncio por um longo momento. — Sim, senhor, eu concordo. Mas isso não significa que eu... Sim, senhor. Sim, senhor. Claro que me sinto lisonjeada. É uma oportunidade maravilhosa, mas eu... Claro que sim, senhor. Conversarei a respeito com meu marido e ligarei depois. — Ela pegou uma caneta e anotou um número. — Sim, senhor. Já anotei. Obrigada, senhor presidente. Adeus.
Lentamente, Mary repôs o fone no gancho e ficou imóvel, em estado de choque.
— O que houve? — perguntou Edward.
— Era mesmo o presidente? — indagou Tim. Mary arriou numa cadeira.
— Era, sim.
Edward pegou a mão de Mary.
— O que ele disse, Mary? O que queria?
Ela estava atordoada, pensando: Então era esse o motivo para todas as perguntas. Ela levantou os olhos para o marido e os filhos e disse, falando bem devagar:
— O presidente leu meu livro e o artigo que saiu na revista Foreign affairs e os achou brilhantes. Disse que é o tipo de pensamento que deseja em seu programa povo-para-povo. E quer me designar para embaixadora na Romênia.
Havia uma expressão de total incredulidade no rosto de Edward.
— Você? Por que você?
Era exatamente o que Mary perguntara a sí mesma, mas sentiu agora que Edward poderia ter sido mais diplomático. Poderia falar: "Mas que idéia maravilhosa! Você dará uma grande embaixadora!" Mas ele estava sendo realista. É verdade, por que logo eu?
— Você não tem qualquer experiência política.
— Sei disso muito bem — respondeu Mary, com alguma irritação. — Concordo que toda a idéia é absurda.
— Você vai ser embaixadora? — perguntou Tim. — Vamos nos mudar para Roma?
— Romênia.
— Onde fica a Romênia? Edward virou-se para os filhos.
— Vocês dois acabem de jantar. Sua mãe e eu gostaríamos de ter uma conversinha em particular.
— Não temos direito a voto? — indagou Tim.
— Votam pela ausência.
Edward pegou Mary pelo braço e levou-a para a biblioteca. Ali, virou-se para ela e disse:
— Desculpe se pareci um idiota pomposo. É que fiquei tão...
— Você tinha toda razão, Edward. Por que haveriam de escolher logo a mim?
Quando Mary o chamava de Edward, ele sabia que se encontrava numa situação difícil.
— Meu bem, provavelmente você daria uma grande embaixadora... ou embaixatriz, não sei como é que chamam. Mas deve admitir que a notícia foi um choque.
Mary abrandou.
— Mais do que isso, um relâmpago. — Ela parecia uma garotinha. — Ainda não posso acreditar. — Riu. — Espere só até eu contar a Florence. Ela vai morrer. Edward observava-a atentamente.
— Está muito excitada com isso, não é? Ela fitou-o, surpresa.
— Claro que estou. Você também não ficaria? Edward escolheu suas palavras com extremo cuidado:
— É uma grande honra, meu bem, e tenho certeza de que não foi uma coisa que ofereceram levianamente. Devem ter um ótimo motivo para escolhê-la. — Ele hesitou. — Temos de pensar a respeito com muito cuidado. Sobre as conseqüências para as nossas vidas.
Ela sabia o que o marido ia dizer e pensou: Edward está certo. Claro que ele está certo.
— Não posso deixar a clinica e abandonar meus pacientes. Tenho de ficar aqui. Não sei por quanto tempo ficaríamos separados, mas se isso é muito importante para você... então acho que devemos arrumar um jeito para que vá com as crianças e eu iria me encontrar com vocês sempre que...
Mary interrompeu-o, a voz suave:
— Você é mesmo doido. Acha que eu poderia viver longe de você?
— Afinal, é uma grande honra e...
— E ser sua esposa também é uma grande honra. Nada é mais importante para mim do que você e as crianças. Eu nunca o deixaria. Esta cidade não pode encontrar outro médico como você, mas tudo o que o governo precisa fazer para encontrar alguém melhor do que eu para a embaixada é procurar nas páginas amarelas.
Edward abraçou-a.
— Tem certeza?
— Absoluta. Foi emocionante ser convidada. Isso é suficiente para...
A porta se abriu e Beth e Tim entraram correndo. Beth disse:
— Acabei de ligar para Virgil e contei a ele que você vai ser embaixadora.
— Então é melhor ligar de novo e dizer que eu não vou ser.
— Por que não? — perguntou Beth.
— Sua mãe acaba de decidir que vai continuar aqui.
— Por quê? — lamentou Beth. — Eu nunca estive na Romênia. Nunca estive em lugar nenhum.
— Eu também não. — Tim virou-se para Beth. — Eu falei que a gente nunca conseguiria escapar daqui.
— O assunto está encerrado — declarou Mary.
Na manhã seguinte Mary ligou para o número que o presidente lhe dera. Quando a telefonista atendeu, ela disse:
— Aqui é a senhora Edward Ashley. Creio que o assessor do presidente... o senhor Greene... está esperando por minha ligação.
— Um momento, por favor. Uma voz de homem atendeu:
— Senhora Ashley?
— Eu mesma. Pode fazer o favor de transmitir um recado meu ao presidente?
— Claro.
— Pode dizer a ele, por gentileza, que me sinto muito lisonjeada com o convite, mas as atividades profissionais de meu marido não lhe permitem sair daqui. Assim, seria impossível eu aceitar. Espero que ele compreenda.
— Transmitirei o recado. — A voz era neutra. — Obrigado, senhora Ashley.
O telefone ficou mudo. Mary largou o fone no gancho, devagar. Estava feito. Por um breve momento, um sonho fascinante lhe fora oferecido, mas não passava disso.
Um sonho. Este é o meu mundo real. E agora é melhor eu me aprontar para a minha próxima aula de ciência política.
Manama, Bahrein
A casa de pedra caiada de branco era anônima, escondida entre dezenas de casas idênticas, a pouca distância a pé dos souks, os enormes e pitorescos mercados ao ar livre. Pertencia a um mercador que simpatizava com a causa da organização conhecida como Patriotas pela Liberdade.
— Precisaremos da casa apenas por um dia — dissera-lhe uma voz pelo telefone.
Tudo fora combinado. Agora, o presidente estava falando aos homens reunidos na sala.
— Surgiu um problema — disse ele. — A moção que aprovamos recentemente apresenta um problema.
— Que espécie de problema? — perguntou Balder.
— O intermediário que escolhemos... Harry Lantz... está morto.
— Morto? Como aconteceu?
— Foi assassinado. Encontraram o corpo flutuando no porto em Buenos Aires.
— A polícia tem alguma idéia do culpado? O caso pode ser relacionado conosco de alguma forma?
— Não. Estamos absolutamente seguros.
— E o nosso plano? — perguntou Thor. — Podemos executá-lo?
— Não no momento. Não sabemos como entrar em contato com Angel. Mas o Controlador deu permissão a Harry Lantz para revelar seu nome a ele. Se Angel estiver interessado em nossa proposta, encontrará um meio de fazer contato. Tudo o que podemos fazer agora é esperar.
A manchete do Daily Union de Junction City dizia: MARY ASHLEY, DE JUNCTION CITY, RECUSA POSTO DE EMBAIXADORA.
Havia uma matéria de duas colunas sobre Mary e uma fotografia sua. Na Rádio KJCK, os noticiários da tarde e da noite falaram sobre a nova celebridade da cidade. O fato de Mary Ashley ter recusado o convite do presidente tornava a história ainda maior do que se ela tivesse aceito. Aos olhos de seus orgulhosos cidadãos, Junction City, Kansas, era muito mais importante do que Bucareste, Romênia.
Ao seguir para a cidade, a fim de fazer compras para o jantar, Mary Ashley ligou o rádio do carro.
— ...O presidente Ellison anunciara antes que a embaixada na Romênia seria o início de seu programa de povo-para-povo, a pedra fundamental de sua política externa. Como a recusa de Mary Ashley ao posto vai se refletir...
Ela trocou de estação.
— ...é casada com o doutor Edward Ashley e se acredita que...
Mary desligou o rádio. Recebera pelo menos três dúzias de telefonemas naquela manhã, de amigos, vizinhos, estudantes e estranhos curiosos. Repórteres haviam-na procurado, de lugares tão distantes como Londres e Tóquio. Estão levando a história além das proporções normais, pensou Mary. Não é culpa minha que o presidente tenha resolvido o sucesso de sua política externa na Romênia. Gostaria de saber até quando esse pandemônio vai durar. Provavelmente acabará em mais um ou dois dias.
Entrou com a caminhonete num posto de gasolina Derby e parou na frente da bomba de auto-serviço. Quando saltou do carro, o senhor Blount, gerente do posto, aproximou-se apressado.
— Bom dia, senhora Ashley. Uma embaixadora não deve bombear pessoalmente sua gasolina. Deixe-me ajudá-la.
Marry sorriu.
— Obrigada, mas estou acostumada a me servir.
— De jeito nenhum! Eu insisto.
Com o tanque já cheio, Mary seguiu para a Washington Street e parou na frente da Shoe Box.
— Bom dia, senhora Ashley — cumprimentou-a o funcionário. — Como vai a embaixadora esta manhã?
Isto vai se tornar cansativo, pensou Mary. Em voz alta, ela disse:
— Não sou embaixadora, mas vou bem, obrigada. — Entregou um par de sapatos. — Gostaria que pusessem solas novas nos sapatos de Tim.
O homem examinou os sapatos.
— Não são os que consertamos na semana passada? Mary suspirou.
— E na semana anterior também.
A próxima parada de Mary foi na Loja de Departamentos Long's. A senhora Hacker, gerente do departamento de roupas, disse-lhe:
— Acabei de ouvir seu nome no rádio. Está pondo Junction City no mapa. Acho que a senhora, Eisenhower e Al Landon são as únicas grandes personalidades políticas do Kansas, senhora embaixadora.
— Não sou embaixadora — respondeu Mary, paciente. — Recusei a indicação.
— Era o que eu estava querendo dizer. Não adiantava. Mary disse:
— Preciso de uma jeans para Beth. De preferência alguma coisa de ferro.
— Qual é a idade de Beth agora? Dez anos?
— Doze.
— Puxa, como as crianças crescem depressa hoje em dia, nãu é? Ela será uma adolescente antes que se possa perceber.
— Beth já nasceu adolescente, senhora Hacker.
— E como está Tim?
— Ele é muito parecido com Beth.
Mary demorou duas vezes mais do que o habitual nas compras. Todos tinham algum comentário a fazer sobre a grande notícia. Foi ao Dillon's para comprar algumas coisas. Estava examinando as prateleiras quando a senhora Dillon a abordou.
— Bom dia, senhora Ashley.
— Bom dia, senhora Dillon. Tem coisas para o café da manhã que não tenham nada?
— Como assim?
Mary consultou a lista que tinha na mão.
— Sem adoçantes artificiais, sódio, gorduras, carboidratos, cafeína, ácido fólico ou flavorizantes.
A senhora Dillon estudou a lista.
— É alguma experiência médica?
— De certa forma. É para Beth. Ela só quer comer alimentos naturais.
— Por que não a leva para o pasto e a deixa pastar? Mary soltou uma risada.
— Foi exatamente o que meu filho sugeriu. — Pegou um pacote e verificou o rótulo. — A culpa é minha. Eu nunca deveria ter ensinado Beth a ler.
Mary voltou para casa com todo cuidado, subindo o caminho sinuoso para Milford Lake. Estava alguns graus acima de zero, mas o vento gelado levava a temperatura para o negativo, pois não havia nada que detivesse o seu avanço pelas planícies intermináveis. Os gramados estavam cobertos de neve, e Mary lembrou-se do inverno anterior, quando uma tempestade de gelo se abatera sobre o condado, partindo os cabos de transmissão de energia elétrica. Ficaram sem eletricidade por quase uma semana. Ela e Edward fizeram amor todas as noites. Talvez tenhamos sorte outra vez este ano, pensou, sorrindo para si mesma.
Quando Mary chegou em casa, Edward ainda não voltara do hospital. Tim estava no escritório, assistindo a um programa de ficção científica. Mary guardou as compras e foi confrontar o filho.
— Você não deveria estar fazendo o dever de casa?
— Não posso.
— E por que não?
— Porque não entendo.
— E não vai mesmo entender se continuar assistindo Jornada nas estrelas. Mostre-me o dever.
Tim mostrou o livro de matemática da quinta série, comentando:
— Estes problemas são muito burros.
— Não existem problemas burros, mas sim alunos burros. E agora vamos estudar este aqui.
Mary leu o problema em voz alta:
— Um trem deixando Minneapolis levava 149 pessoas a bordo. Mais pessoas embarcaram em Atlanta. Agora, havia 223 pessoas a bordo. Quantas pessoas embarcaram em Atlanta? — Ela levantou os olhos. — É muito simples, Tim. Basta subtrair 149 de 223.
— Não, não é isso — protestou Tim, sombriamente. — Tem de se armar uma equação. 149 mais N é igual a 223. N é igual a 223 menos 149. N é igual a 74.
— Isso é uma burrice — concluiu Mary.
Ao passar pelo quarto de Beth, Mary ouviu um barulho. Entrou. Beth estava sentada no chão, de pernas cruzadas, assistindo à televisão, escutando um disco de rock e fazendo o dever de casa.
— Como pode se concentrar com este barulho todo? — perguntou Mary.
Ela foi até a televisão e desligou-a, depois desligou também o toca-discos. Beth levantou os olhos, surpresa.
— Por que fez isso? Era George Michael!
O quarto de Beth era revestido de posters de músicos. Havia Kiss e Van Halen, Motley Crue, Aldo Nova e David Lee Roth. A cama estava coberta de revistas: Seventeen, Teen idol e meia dúzia de outras. As roupas de Beth estavam espalhadas pelo chão. Em desespero, Mary correu os olhos pelo quarto desarrumado.
— Como pode viver assim, Beth? A menina ficou aturdida.
— Viver como, mamãe? Mary rangeu os dentes.
— Nada. — Ela olhou para um envelope na escrivaninha da filha. — Está escrevendo para Rick Springfield?
— Estou apaixonada por ele.
— Pensei que estivesse apaixonada por George Michael.
— Eu queimo por George Michael, mas estou apaixonada por Rick Springfield. Mamãe, você nunca queimou por ninguém no seu tempo?
— No meu tempo estávamos ocupadas demais atravessando o continente em carroças.
Beth suspirou.
— Sabia que Rick Springfield teve uma infância horrível?
— Para ser absolutamente sincera, Beth, eu não tinha a menor idéia.
— Foi uma coisa pavorosa. O pai era militar e estavam sempre mudando de lugar. Ele também é vegetariano. Como eu. Ele é sensacional.
Então é isso o que está por trás dessa dieta maluca de Beth!
— Mamãe, posso ir ao cinema no sábado à noite com Virgil?
— Virgil? O que aconteceu com Arnold? Houve uma pausa.
— Arnold quis bancar o engraçadinho. Ele é nojento. Mary fez um esforço para parecer calma.
— Com "bancar o engraçadinho" você está querendo dizer...?
— Só porque meus seios começaram a crescer, os garotos acham que sou fácil. Você se sentia embaraçada com seu corpo, mamãe?
Mary foi postar-se atrás da filha e enlaçou-a.
— Claro que sim, querida. Eu me sentia muito embaraçada quando tinha a sua idade.
— Detesto ter a menstruação, ficar com seios e toda cabeluda. Por quê?
— Acontece com todas as garotas, mas vai acabar se acostumando.
— Não vou, não. — Beth desvencilhou-se da mãe e declarou, veemente: — Não me importo de ficar apaixonada, mas nunca vou fazer sexo. Ninguém vai me tocar. Nem Arnold, nem Virgil, nem Kevin Bacon.
Mary disse, em tom solene:
— Se é essa a sua decisão...
— Uma decisão irrevogável. Mamãe, o que o presidente Ellison falou quando você disse que não queria ser embaixadora?
— Ele aceitou minha decisão muito bem. E agora, acho que é melhor eu começar a preparar o jantar.
Cozinhar era a tragédia secreta de Mary Ashley. Detestava cozinhar, e por isso não era muito boa; e como gostava de ser boa em tudo o que fazia, detestava ainda mais. Era um círculo vicioso, que fora resolvido em parte pela presença de Lucinda, três vezes por semana, para cozinhar e arrumar a casa. Aquele era um dos dias de folga de Lucinda.
Quando Edward chegou do hospital, Mary estava na cozinha, queimando algumas ervilhas. Ela virou-se no fogão e deu-lhe um beijo.
— Olá, querido. Como foi o seu dia? Nojento?
— Você deve ter se comunicado com nossa filha — comentou Edward. — Para dizer a verdade, foi mesmo nojento. Tratei esta tarde de uma garota de treze anos que tinha herpes genital.
— Oh, querido!
Mary jogou fora as ervilhas e abriu uma lata de tomates.
— Isso me deixa preocupado com Beth.
— Pois não precisa se preocupar — garantiu Mary. — Ela está planejando morrer virgem.
Ao jantar, Tim perguntou:
— Papai, posso ganhar uma prancha de surfe no meu aniversário?
— Não quero interferir no seu sonho, Tim, mas acontece que você mora no Kansas.
— Sei disso, mas Johnny me convidou para ir com ele para o Havaí no próximo verão. Sua família tem uma casa na praia em Maui.
— Se Johnny tem uma casa na praia em Maui — comentou Edward, ponderado —, então provavelmente tem uma prancha de surfe.
Tim virou-se para a mãe.
— Posso ir?
— Veremos. Por favor, não coma tão depressa, Tim. Beth, você não está comendo nada.
— Não há nada aqui que seja apropriado ao consumo humano.
Ela fitou os pais em silêncio por um momento, depois acrescentou:
— Tenho um comunicado a fazer. Vou mudar de nome.
Edward perguntou, com toda cautela:
— Algum motivo em particular?
— Resolvi me tornar uma artista.
Mary e Edward trocaram um olhar longo e angustiado. E foi Edward quem disse:
— Está bem. Descubra quanto consegue obter por eles.
8
Em 1965, num escândalo que abalou as organizações internacionais de serviço secreto, Mehdi ben Barka, um oponente do rei Hassan II, do Marrocos, foi atraído a Paris de seu exílio em Genebra e assassinado com a ajuda do serviço secreto francês. Em decorrência desse incidente, o presidente Charles de Gaulle tirou o serviço secreto do controle do gabinete do primeiro-ministro e colocou-o sob a égide do Ministério da Defesa. Por isso é que o atual ministro da defesa, Roland Passy, era o responsável pela segurança de Marin Groza, a quem o governo francês concedera asilo. Havia gendarmes de guarda na frente da villa em Neuilly em turnos de 24 horas, mas era o conhecimento de que Lev Pasternak estava no comando da segurança interna da propriedade que dava confiança a Passy. Ele vira pessoalmente as medidas de segurança e estava convencido de que a casa era inexpugnável.
Nas últimas semanas havia rumores no mundo diplomático de que era iminente um golpe, que Marin Groza estava planejando voltar à Romênia e que Alexandros Ionescu seria deposto pelos principais militares do país.
Lev Pasternak bateu na porta e entrou na biblioteca atulhada de livros que servia como escritório de Marin Groza. O líder rebelde romeno estava sentado à sua escrivaninha, trabalhando. Levantou os olhos quando Lev Pasternak entrou.
— Todo mundo quer saber quando vai ser a revolução — disse Pasternak. — É o segredo menos bem guardado do mundo.
— Diga a eles para terem mais um pouco de paciência. Você irá comigo para Bucareste, Lev?
Mais do que qualquer outra coisa, Lev Pasternak ansiava em voltar para Israel. Aceitarei o cargo apenas em caráter temporário, dissera a Marin Groza. Até você estar pronto para entrar em ação. O temporário se transformara em semanas e meses, até que três anos haviam transcorrido. E agora era o momento de tomar outra decisão.
Num mundo povoado por pigmeus, pensou Lev Pasternak, tive o privilégio de servir a um gigante. Marin Groza era o homem mais altruísta e idealista que Lev Pasternak já conhecera.
Quando fora trabalhar para Groza, Pasternak especulara sobre a família do homem. Groza nunca falava a respeito, mas o oficial que promovera o encontro de Pasternak com o líder rebelde romeno lhe contara toda a história:
— Groza foi traído. A Securitate capturou-o e torturou-o por cinco dias. Prometeram libertá-lo se revelasse os nomes de seus companheiros no movimento subterrâneo. Ele se recusou a falar. Prenderam sua esposa e a filha de quatorze anos e levaram-nas para a sala de interrogatório. Ofereceram uma opção a Groza: fale ou observe-as morrerem. Era a decisão mais difícil que um homem já teve de tomar. Eram as vidas de seus entes mais amados contra as vidas de centenas de pessoas que acreditavam nele.
O homem fizera uma pausa e depois continuara, mais devagar:
— Creio que, ao final, Groza tomou a sua decisão porque estava convencido de que ele e sua família seriam mortos de qualquer maneira. Recusou-se a revelar os nomes. Os guardas amarraram-no numa cadeira e obrigaram-no a assistir à esposa e à filha serem estupradas até morrerem. Mas ainda não haviam acabado com Groza. Depois que tudo acabou e os corpos ensangüentados das duas estavam caídos a seus pés, eles o castraram.
— Santo Deus!
O oficial fitara Pasternak nos olhos e acrescentara:
— A coisa mais importante que você deve compreender é que Marin Groza não quer voltar à Romênia em busca de vingança. Ele quer voltar para libertar seu povo. Quer dar um jeito para que coisas assim nunca mais aconteçam.
Lev Pasternak estivera com Groza desde aquele dia; quanto mais tempo passava com o líder revolucionário, mais o amava. Agora, precisava decidir se renunciava à volta a Israel e ia para a Romênia com ele.
Pasternak estava atravessando o corredor naquela noite. Ao' passar pela porta do quarto de Marin Groza, ouviu os gritos familiares de desespero. Então é sexta-feira, pensou Pasternak. Era o dia das prostitutas. Eram escolhidas na Inglaterra, América do Norte, Brasil, Japão, Tailândia e meia dúzia de outros países, ao acaso. Não tinham a menor idéia de seu destino ou de quem iam visitar. Eram recebidas no Aeroporto Charles de Gaulle, e levadas de carro diretamente para a villa. Depois de algumas horas, seguiam para o aeroporto e embarcavam num vôo de volta. Toda noite de sexta-feira os corredores ressoavam com os gritos de Marin Groza. Todos presumiam que estava ocorrendo alguma prática sexual fora do normal. O único que sabia o que realmente acontecia por trás da porta do quarto era Lev Pasternak. Pois as visitas das prostitutas nada tinham a ver com sexo. Eram uma penitência. Uma vez por semana, Groza tirava as roupas e mandava que uma mulher o amarrasse a uma cadeira e o açoitasse brutalmente. A cada vez que isso acontecia, ele via a esposa e a filha serem estupradas até a morte, gritando por socorro. E berrava:
— Perdoem-me! Eu falarei! Oh, Deus, por favor, deixe-me falar...
O contato foi efetuado dez dias depois de o corpo de Harry Lantz ser encontrado. O Controlador estava no meio de uma reunião com seu estado-maior, na sala de conferências, quando a campainha do interfone soou.
— Sei que pediu para não ser incomodado, senhor, mas há uma ligação do exterior. Parece urgente. Uma certa miss Neusa Muñez está ligando de Buenos Aires. Eu disse a ela...
— Não tem problema. — Ele manteve as emoções sob firme controle. — Atenderei em minha sala.
Pediu licença aos participantes da reunião, passou para a sua sala e trancou a porta. Pegou o telefone.
— Alô? É miss Muñez?
— A própria. — A voz tinha um sotaque sul-americano, rude e inculto. — Recebi uma mensagem para você de Angel. Ele não gostou do mensageiro abelhudo que você mandou.
Ele teve de escolher as palavras com todo cuidado:
— Sinto muito. Mas ainda gostaríamos que Angel fizesse o trabalho. Seria possível?
— Claro. Ele diz que quer fazer.
O homem conteve um suspiro de alívio.
— Ótimo. Como podemos acertar o adiantamento? A mulher soltou uma risada.
— Angel não precisa de adiantamento. Ninguém engana Angel. — De certa forma, as palavras eram assustadoras. — Depois que o trabalho for realizado, ele diz para você depositar o dinheiro no... espere um instante... anotei em algum lugar... ah, aqui está... no Banco do Estado, em Zurique. É algum lugar na Suíça. Ela parecia uma débil mental.
— Precisarei do número da conta.
— Ah, sim. O número é... meu Deus, esqueci. Espere um pouco. Anotei em algum lugar. — Ele ouviu o farfalhar de papéis e depois de algum tempo a mulher voltou ao telefone. — Aqui está. Jota-três-quatro-nove-zero-sete-sete.
Ele repetiu o número.
— Quando ele pode resolver o problema?
— Quando estiver pronto, señor. Angel diz que o senhor saberá quando o trabalho for realizado. Lerá a notícia nos jornais.
— Está certo. Vou lhe dar meu telefone particular, caso Angel precise entrar em contato comigo.
Ele deu o número, falando bem devagar.
Tbilisi, Rússia
A reunião se realizava numa dacha isolada, à margem do rio Kura. O presidente disse:
— Surgiram dois assuntos urgentes. O primeiro é uma boa notícia. O Controlador foi procurado por Angel. O contrato será executado.
— Esta é uma notícia sensacional! — exclamou Freyr. — E qual é a má notícia?
— Envolve a candidata do presidente para a embaixada na Romênia. Mas é possível contornar a situação...
Era difícil para Mary Ashley concentrar os pensamentos na aula. Alguma coisa mudara. Aos olhos de seus alunos, ela se tornara uma celebridade. Era uma sensação inebriante. Podia sentir a turma absorvendo cada palavra sua.
— Como sabemos, o ano de 1956 foi uma vertente para muitos países do Leste europeu. Com a volta de Gomulka ao poder, o comunismo nacionalista emergiu na Polônia. Na Tchecoslováquia, Antonin Mavorony assumia a liderança do Partido Comunista. Não houve grandes mudanças políticas na Romênia nesse ano...
Romênia... Bucareste... Pelas fotografias que Mary vira, era uma das cidades mais lindas da Europa. Lembrava de como ficava aterrorizada quando era pequena com as histórias do terrível príncipe Vlad, da Transilvânia. Ele era um vampiro, Mary, e vivia em seu enorme castelo no alto das montanhas de Brasov, sugando o sangue de vitimas inocentes.
Mary percebeu subitamente o profundo silêncio na sala. A turma a observava. Por quanto tempo terei ficado assim, a sonhar?, especulou. Apressou-se em continuar com a aula:
— Na Romênia, Gheorghiu-Dej estava consolidando seu poder no Partido dos Trabalhadores...
A aula parecia interminável, mas felizmente estava quase acabando.
— O trabalho de vocês será escrever um ensaio sobre o planejamento e administração econômica da União Soviética, descrevendo a organização básica das agências do governo e o controle do Partido Comunista. Quero que analisem as dimensões internas e externas da política soviética, com ênfase em suas posições na Polônia, Tchecoslováquia e Romênia.
Romênia... Seja bem-vinda à Romênia, senhora embaixadora. A limusine está aqui para levá-la à embaixada. Sua embaixada. Ela fora convidada a viver numa das mais excitantes capitais do mundo, reportando-se ao presidente dos Estados Unidos, na base de seu programa povo-para-povo. Eu poderia ser parte da história.
Saiu de seu devaneio como o barulho da campainha. A aula terminara. Estava na hora de ir para casa e trocar de roupa. Edward voltaria mais cedo do hospital. Ia levá-la para jantar no clube.
Como convinha a uma quase-embaixadora.
— Código Azul! Código Azul! — a voz crepitava pelos alto-falantes, em todos os corredores do hospital.
Mesmo enquanto a turma de emergência convergia para a entrada da ambulância, já se podia ouvir a sirene se aproximando. O Hospital Comunitário de Geary é um prédio escuro, de três andares, aparência austera, empoleirado numa colina na St. Mary's Road, na parte sudoeste de Junction City. Conta com leitos, duas modernas salas de operação e diversas salas de exame e administrativas.
Fora uma sexta-feira movimentada, e a enfermaria de emergência no último andar já estava repleta de soldados feridos, que vinham para a cidade do Forte Riley, ali perto, base da 1ª Divisão de Infantaria, conhecida como A Grande Vermelha, por causa das baixas nos fins de semana.
O doutor Edward Ashley estava costurando o couro cabeludo de um soldado que perdera numa briga de bar. Ele servira no Hospital Memorial de Geary por treze anos, e antes de se tornar médico particular fora cirurgião da Força Aérea, com o posto de capitão. Vários hospitais importantes em grandes cidades tentaram atraí-lo, mas ele preferia permanecer onde estava.
Terminou com o soldado em que estava trabalhando e olhou ao redor. Havia pelo menos uma dúzia de soldados esperando para serem remendados. Ouviu o barulho da sirene da ambulância se aproximando.
— Estão tocando a nossa música.
O doutor Douglas Schiffer, que estava cuidando de uma vítima de ferimento a bala, balançou a cabeça.
— Isto aqui até parece o M*A*S*H. Dá para pensar que estamos no meio de alguma guerra.
Edward Ashley comentou:
— É a única que eles têm, Doug. É por isso que vêm para a cidade todo fim de semana e ficam um pouco enlouquecidos. Sentem-se frustrados.
Deu o último ponto no soldado.
— Já acabei, soldado. Está pronto para outra. — Virando-se para Douglas Schiffer, Edward acrescentou: — É melhor descermos para a emergência.
O paciente vestia um uniforme de soldado e parecia não ter mais que dezoito anos. Estava em estado de choque. Suava muito, e a respiração era difícil. O doutor Ashley sentiu o pulso. Estava fraco e irregular. Havia uma mancha de sangue na frente da túnica. Edward Ashley virou-se para um dos paramédicos que haviam trazido o paciente.
— Qual é o caso?
— Um ferimento a faca no peito, doutor.
— Vamos verificar se o pulmão foi atingido. — Virou-se para uma enfermeira. — Quero uma radiografia do tórax. Tem três minutos para providenciar.
O doutor Douglas Schiffer examinava a veia jugular do soldado. Estava intumescida. Ele olhou para Edward.
— Está distendida. Provavelmente o pericárdio foi atingido.
O que significava que a bolsa que protegia o coração estava cheia de sangue, comprimindo-o de tal forma que não permitia o funcionamento adequado. A enfermeira que conferia a pressão do paciente informou:
— A pressão está caindo muito depressa.
O monitor que media o eletrocardiograma do paciente tornou-se mais lento. Estavam perdendo o paciente. Outra enfermeira entrou apressada com a radiografia do tórax.
— Tamponamento pericárdico.
O coração tinha um buraco. O pulmão sucumbira.
— Temos de intubar e expandir o pulmão. — A voz de Edward Ashley era suave, mas não havia como se enganar com a urgência. — Chamem um anestesista. Vamos abri-lo. Podemos fazer a intubação.
Uma enfermeira entregou um tubo endotraqueal ao doutor Schiffer. Edward Ashley acenou com a cabeça para ele.
— Agora.
Com todo o cuidado, Douglas Schiffer começou a enfiar o tubo pela traquéia do soldado inconsciente. Havia uma bolsa na extremidade do tubo, e Schiffer começou a espremê-la, em ritmo firme, ventilando os pulmões. O monitor se tornou ainda mais lento, e a curva foi ficando reta. O cheiro da morte pairava na sala.
— Ele apagou.
Não havia tempo de levar o paciente para a sala de operações. O doutor Ashley precisava tomar uma decisão imediata.
— Vamos efetuar uma toracotomia. Bisturi.
No instante em que o bisturi foi posto em sua mão, Edward inclinou-se e fez uma incisão no peito do soldado. Quase não houve sangue, porque o coração estava encarcerado no pericárdio.
— Retrator!
O instrumento foi posto em sua mão e ele o inseriu no paciente, a fim de afastar as costelas.
— Tesoura! E recuem!
Ele chegou mais perto, a fim de poder alcançar o pericárdio. Ajeitou a tesoura e fez o corte. O sangue, liberado da bolsa, esguichou no mesmo instante, atingindo as enfermeiras e o doutor Ashley. Ele começou a massagear o coração. O monitor começou a bipar e a pulsação tornou-se palpável. Havia uma pequena laceração no ápice do ventrículo esquerdo.
— Levem-no para a sala de cirurgia.
Três minutos depois o paciente estava na mesa de operações.
— Transfusão... mil centímetros cúbicos.
Não havia tempo para verificar o tipo de sangue e por isso se usou o O negativo — doador universal. Enquanto a transfusão começava, o doutor Ashley disse:
— Um tubo de tórax 32.
Uma enfermeira entregou-lhe. O doutor Schiffer disse:
— Pode deixar que eu fecho, Ed. Por que não vai se lavar?
O avental cirúrgico de Edward Ashley estava encharcado de sangue. Ele olhou para o monitor. O coração estava forte e firme.
— Obrigado.
Edward Ashley tomara um banho de chuveiro e trocara de roupa, estava agora em sua sala, redigindo o relatório médico. Era uma sala agradável, com estantes ocupadas por livros de medicina e troféus esportivos. Tinha uma escrivaninha, uma poltrona e uma mesinha, com duas cadeiras de espaldar reto. Nas paredes estavam os seus diplomas, emoldurados de maneira impecável.
Ele sentia o corpo rígido e cansado da tensão por que acabara de passar. Ao mesmo tempo, sentia-se sexualmente excitado, como sempre acontecia depois de uma cirurgia importante. O fato de se confrontar com a morte amplia os valores da força vital, um psiquiatra explicara certa ocasião a Edward. Fazer amor é a afirmação da continuidade da natureza. Qualquer que seja o motivo, pensou Edward, eu gostaria que Mary estivesse aqui.
Escolheu um cachimbo na pequena estante por sobre a escrivaninha e acendeu-o. Foi se instalar na poltrona e esticou as pernas. Pensar em Mary fazia com que se sentisse culpado. Fora o responsável por ela recusar o convite do presidente, e seus motivos eram válidos. Porém há mais do que isso, admitiu para sí mesmo. Fiquei com ciúme. Reagi como um pirralho mimado. O que teria acontecido se o presidente me fizesse uma oferta assim? Provavelmente eu aceitaria na mesma hora. Tudo o que pude pensar foi que queria que Mary ficasse em casa e cuidasse de mim e das crianças. Eis aí o autêntico porco chauvinista!
Continuou sentado, fumando o cachimbo, irritado consigo mesmo. Tarde demais, pensou. Mas darei um jeito de compensá-la. Vou surpreendê-la neste verão com uma viagem a Paris e Londres. Talvez até a leve à Romênia. Teremos uma verdadeira lua-de-mel.
O Junction City Country Club é um prédio de calcário com três andares, em meio a colinas viçosas. Tem um campo de golfe com dezoito buracos, duas quadras de tênis, uma piscina, um bar e um restaurante, com uma lareira grande numa extremidade, um salão de jogos em cima e vestiários embaixo.
O pai de Edward fora sócio do clube, assim como o pai de Mary, e os dois freqüentavam-no desde crianças. A cidade era uma comunidade fechada, e o clube era seu símbolo.
Já era tarde quando Edward e Mary chegaram, e restavam apenas umas poucas pessoas no restaurante. Todas olharam e ficaram observando Mary sentar, sussurrando comentários umas para as outras. Mary já estava se acostumando a isso. Edward fitou-a e indagou:
— Algum arrependimento?
Claro que havia, mas eram castelos de areia, sonhos encantadores e impossíveis, como todo mundo tem. Se eu tivesse nascido uma princesa; se eu fosse uma milionária; se eu recebesse o Prêmio Nobel pela cura do câncer; se... se... se...
Mary sorriu.
— Absolutamente nenhum, querido. Já foi uma sorte que tivessem me convidado. De qualquer forma, eu nunca poderia deixar você e as crianças. — Aninhou a mão do marido entre as suas. — Não há nenhum arrependimento. Estou contente de ter recusado.
Ele se inclinou sobre a mesa e sussurrou:
— Vou fazer uma oferta que você não poderá recusar.
— Veremos — murmurou Mary, sorrindo.
No começo, logo que casaram, o ato de amor fora intenso e exigente. Possuíam uma consciente necessidade física um do outro, que só era satisfeita quando ambos ficavam completamente esgotados. A urgência abrandara com o tempo, mas as emoções ainda persistiam, constantes, ternas e satisfatórias.
Quando voltaram para casa agora, despiram-se sem pressa e foram para a cama. Edward abraçou-a e depois começou a acariciar seu corpo gentilmente, brincando com os seios, apertando os mamilos com os dedos, descendo a mão para a maciez aveludada. Mary gemeu de prazer.
— É maravilhoso...
Ela ficou por cima e começou a lamber-lhe o corpo, sentindo-o ficar duro. Quando ambos estavam prontos, fizeram amor até se sentirem exaustos. Edward abraçou a esposa, sussurrando:
— Eu a amo tanto, Mary...
— E eu amo você duas vezes mais. Boa noite, querido.
Às três horas da madrugada o telefone explodiu. Edward, sonolento, tirou o fone do gancho e aproximou-o do ouvido.
— Alô?
Uma voz de mulher disse, em tom de urgência:
— Doutor Ashley?
— Sou eu mesmo.
— Pete Grimes está tendo um ataque do coração. Sente dores horríveis. Acho que está morrendo. Não sei o que fazer.
Edward sentou na cama, tentando dissipar o sono.
— Não faça nada. Procure mantê-lo quieto. Estarei aí dentro de meia hora.
Desligou, saiu da cama e começou a se vestir.
— Edward...
Ele olhou para Mary, que estava com os olhos entreabertos.
— O que aconteceu?
— Está tudo bem. Volte a dormir.
— Acorde-me quando você voltar — murmurou Mary. — Acho que vou me sentir sensual de novo.
Edward sorriu.
— Voltarei o mais depressa possível.
Cinco minutos depois ele estava a caminho da fazenda dos Grimes.
Desceu a colina pela Old Milford Road, na direção da J Hill Road. Era uma madrugada gelada, o vento de noroeste baixando a temperatura para o negativo. Edward ligou o aquecedor do carro. Enquanto guiava, pensou se não deveria ter pedido uma ambulância antes de sair de casa. Os dois últimos "ataques de coração" de Pete Grimes haviam se revelado úlceras perfuradas. Não. Era melhor verificar primeiro.
Entrou com o carro na rota 18, a estrada de duas pistas que passava por Junction City. A cidade estava adormecida, as casas abrigadas contra o vento frio e penetrante.
Ao chegar ao final da rua 6, Edward fez a volta para pegar a rota 57 e seguiu para a Grandview Plaza. Quantas vezes já passara por aquelas estradas nos dias quentes de verão, sentindo no ar o cheiro do milho e do feno da pradaria, passando por miniaturas de florestas com choupos, cedros e oliveiras russas, as pilhas do feno de agosto empilhadas à beira? Os campos estavam impregnados com o odor dos cedros queimados, que precisavam ser destruídos periodicamente, porque invadiam as plantações. E quantos invernos passara por aquela estrada, através de uma paisagem congelada, os cabos de transmissão de energia delicadamente rendados de gelo, a fumaça solitária de chaminés distantes? Havia uma sensação inebriante de isolamento, no casulo da escuridão da madrugada, observando os campos e árvores passarem em silêncio.
Edward guiava o mais depressa possível, tomando cuidado com a estrada traiçoeira sob as rodas. Pensou em Mary deitada na cama quente, à sua espera. Acorde-me quando eu voltar. Acho que vou me sentir sensual outra vez.
Ele tinha muita sorte. Farei tudo para compensá-la, prometeu a sí mesmo. Eu lhe darei a melhor lua-de-mel que uma mulher já teve.
À frente, no cruzamento das rodovias 57 e 77, havia um sinal vermelho. No instante em que Edward se aproximou do cruzamento, um caminhão surgiu do nada. Ele ouviu um rugido súbito e o carro ficou imprensado entre dois faróis brilhantes que corriam em sua direção. Teve um vislumbre do gigantesco caminhão de cinco toneladas do exército e o último som que ouviu foi o grito de sua própria voz.
Os sinos da igreja de Neuilly repicaram pelo ar tranqüilo do meio-dia. Os gendarmes que guardavam a villa de Marin Groza não tinham motivos para prestar qualquer atenção ao empoeirado sedã Renault que passava. Angel guiava devagar, mas não o suficiente para despertar suspeitas, observando tudo. Dois guardas na frente, um muro alto, provavelmente eletrificado, e lá dentro, com toda certeza, a habitual parafernália de fachos, sensores e alarmes. Seria preciso um exército para tomar a villa. Mas eu não preciso de um exército, pensou Angel. Só do meu gênio. Marin Groza já é um homem morto. Ah, seria ótimo se minha mãe estivesse viva para ver como enriqueci. Isso a deixaria muito feliz.
Na Argentina, as famílias pobres eram realmente pobres, e a mãe de Angel fora uma dos infelizes descamisados. Ninguém sabia ou se importava com quem fora o pai. Ao longo dos anos, Angel observara amigos e parentes morrerem de fome e doença. A morte era um modo de vida, e Angel pensou, filosófico: Já que vai acontecer de qualquer maneira, por que não aproveitar para lucrar alguma coisa? No começo, houvera os que duvidavam dos talentos letais de Angel, mas os que tentavam se opor a ele tinham o hábito de desaparecer. À reputação de Angel como assassino profissional fora aumentando. Nunca fracassei, pensou Angel. Sou Angel. O Anjo da Morte.
9
A estrada coberta de neve do Kansas estava cheia de veículos, com luzes vermelhas faiscantes imprimindo uma cor de sangue ao ar gelado. Um caminhão de bombeiros, ambulância, reboque, quatro carros da patrulha rodoviária, o carro do xerife e, no centro, iluminado pelos faróis, o caminhão militar M871, de cinco toneladas, e parcialmente por baixo o carro esmagado de Edward Ashley. Uma dúzia de policiais e bombeiros se concentravam ao redor, balançando os braços e batendo com os pés, tentando se esquentar no frio do alvorecer. No meio da estrada, coberto por uma lona, estava um corpo. Outro carro da polícia se aproximou e parou derrapando. Mary Ashley saltou correndo. Tremia tanto que mal conseguia ficar de pé. Viu a lona e avançou em sua direção. O xerife Munster agarrou-a pelo braço.
— Acho melhor não o ver, senhora Ashley.
— Largue-me!
Ela estava gritando. Desvencilhou-se da mão do xerife e correu para a lona.
— Por favor, senhora Ashley, é melhor não ver como ele ficou.
O xerife amparou-a no instante em que ela caía, desfalecida.
Mary despertou no banco traseiro do carro do xerife. Munster estava sentado no banco da frente, observando-a. O aquecedor estava ligado, e o interior do carro era quente.
— O que aconteceu? — perguntou Mary, apaticamente.
— Você desmaiou.
Ela se lembrou de repente. É melhor não ver como ele ficou,
Mary olhou pela janela para todos os veículos de emergência e as luzes vermelhas brilhando e pensou: É uma cena do inferno. Apesar do calor do carro, seus dentes batiam.
— Como... — Ela estava com dificuldade para pronunciar as palavras. — Como aconteceu?
— Ele avançou o sinal vermelho. Um caminhão militar vinha pela 77 e tentou evitá-lo, mas seu marido se lançou direto para cima.
Mary fechou os olhos e observou o acidente acontecer em sua mente. Viu o caminhão avançar para cima de Edward e sentiu seu pânico no último instante. Só pôde pensar em uma coisa para dizer:
— Edward era um mo-motorista muito cuidadoso. Nunca passaria assim por um si-sinal sem parar.
O xerife disse, compreensivo:
— Temos testemunhas, senhora Ashley. Um padre e duas freiras viram o acidente, assim como o coronel Jenkins, do Forte Riley. Todos disseram a mesma coisa. Seu marido avançou o sinal.
Depois disso, tudo pareceu acontecer em câmara lenta. Ela observou o corpo de Edward ser levado na ambulância. A polícia interrogava um padre e duas freiras, e Mary pensou: Vão pegar um resfriado se continuarem parados assim nesse frio. O xerife Munster disse:
— Estão levando o corpo para o necrotério. O corpo.
— Obrigada — murmurou Mary, polidamente. Ele a fitava com expressão estranha.
— É melhor eu levá-la de volta para casa. Como se chama o médico da família?
— Edward Ashley — respondeu Mary. — Edward Ashley é o médico da família.
Mais tarde, ela se lembrou de ter chegado em casa e ser acompanhada pelo xerife Munster. Florence e Douglas Schiffer estavam à sua espera na sala de estar. As crianças ainda dormiam. Florence abraçou-a.
— Oh, querida, lamento tanto, tão profundamente...
— Está tudo bem — disse Mary, calmamente. — Edward sofreu um acidente.
Ela soltou uma risadinha. Douglas observava-a, atentamente.
— Deixe-me levá-la para o seu quarto.
— Estou bem, obrigada. Gostariam de tomar um chá?
— Vou levá-la para a cama — insistiu Douglas.
— Não estou com sono. Vocês têm certeza de que não querem nada?
Enquanto Douglas a conduzia para o quarto, Mary murmurou:
— Foi um acidente. Edward sofreu um acidente.
Douglas Schiffer fitou-a nos olhos. Estavam arregalados e vazios. Ele sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Desceu para buscar a valise médica. Ao voltar, constatou que Mary não se mexera.
— Vou lhe dar uma coisa para dormir.
Deu-lhe um sedativo, ajudou-a a deitar-se e sentou ao seu lado. Uma hora depois Mary ainda estava acordada. Douglas deu-lhe outro sedativo. E depois um terceiro. Ela então acabou dormindo.
Em Junction City há investigações rigorosas sempre que acontece um 1048 — acidente de trânsito com vítima. Uma ambulância é enviada do Serviço de Ambulâncias do Condado e um homem do xerife comparece ao local. Se o pessoal do exército está envolvido no acidente, a Divisão de Investigações Criminais militar realiza um inquérito, paralelo à investigação do xerife.
Shel Planchard, um oficial à paisana do setor do DIC em Forte Riley, o xerife e um assistente estavam examinando o relatório sobre o acidente, no gabinete do xerife, na rua 9.
— Tem uma coisa que não consigo entender — comentou Munster.
— Qual é o problema, xerife? — perguntou Planchard.
— Houve cinco testemunhas do acidente, não é? Um padre e duas freiras, o coronel Jenkins e o motorista do caminhão, sargento Wallis. Todos disseram que o carro de Ashley entrou na estrada, avançou o sinal e foi atingido pelo caminhão militar.
— Isso mesmo — disse o homem do DIC. — E onde está o problema?
O xerife Munster coçou a cabeça.
— Já viu algum relatório de acidente em que duas testemunhas dissessem a mesma coisa? — Ele bateu com o punho nos papéis. — O que me deixa perturbado é que cada uma das cinco testemunhas neste caso disse exatamente a mesma coisa.
O homem do DIC deu de ombros.
— Isso apenas comprova que o acidente foi bastante óbvio.
— E tem outra coisa me incomodando — acrescentou o xerife.
— O que é?
— O que um padre, duas freiras e um coronel estavam fazendo na estrada às quatro horas da madrugada?
— Não há nada de misterioso nisso. O padre e as freiras estavam a caminho de Leonardville, e o coronel voltava para o Forte Riley.
— Verifiquei com o pessoal do trânsito. A última multa que Ashley recebeu foi há seis anos, por estacionamento ilegal. Nunca teve qualquer registro de acidente.
O homem do DIC fitou-o atentamente.
— O que está querendo sugerir, xerife? Munster deu de ombros.
— Não estou sugerindo nada, mas apenas dizendo que o caso parece esquisito.
— Estamos falando de um acidente visto por cinco testemunhas. Se acha que existe alguma conspiração envolvida, há uma grande falha em sua teoria. Se...
O xerife suspirou.
— Sei disso. Se não fosse um acidente, o caminhão do exército só precisava seguir adiante. Não haveria necessidade de todas as testemunhas e o resto.
— Exatamente. — O homem do DIC levantou-se e espreguiçou-se. — Tenho de voltar ao quartel. Pelo que me diz respeito, o motorista do caminhão, sargento Wallis, é inocente. — Ele olhou para o xerife. — Estamos de acordo?
O xerife Munster respondeu com evidente relutância:
— Estamos. Deve ter sido um acidente.
Mary foi acordada pelo barulho das crianças chorando. Permaneceu imóvel, os olhos fechados, pensando: Isto é parte do meu pesadelo. Estou dormindo e quando acordar descobrirei que Edward continua vivo.
Mas o choro persistia. Quando não pôde mais suportar, abriu os olhos e continuou imóvel, olhando para o teto. Por fim, com muita relutância, forçou-se a sair da cama. Sentia-se drogada. Entrou no quarto de Tim. Florence e Beth estavam com ele. Os três choravam. Eu gostaria de poder chorar, pensou Mary. Ah, como eu gostaria de poder chorar. Beth olhou para a mãe.
— Papai... está mesmo morto?
Mary acenou com a cabeça, incapaz de pronunciar as palavras. Sentou-se na beira da cama.
— Tive de contar a eles — desculpou-se Florence. — Iam sair para brincar com os amigos.
— Está tudo bem — murmurou Mary, afagando os cabelos de Tim. — Não chore, querido. Tudo vai acabar bem.
Nada jamais estaria bem outra vez.
Nunca mais.
O comando do Departamento de Investigações Criminais do Exército dos Estados Unidos no Forte Riley fica no Prédio 169, uma antiga estrutura de pedra cercada por árvores, com degraus que levam a uma varanda. Numa sala do primeiro andar, Shel Planchard, o oficial do DIC, estava conversando com o coronel Jenkins.
— Lamento, senhor, mas tenho más notícias. O sargento Wallis, o motorista daquele caminhão que matou aquele médico civil...
— O que tem ele?
— Sofreu um ataque cardíaco fatal esta manhã.
— É uma pena.
O homem do DIC acrescentou, em tom impassível:
— Tem razão, senhor. O corpo está sendo cremado esta manhã. Foi um ataque fulminante.
— Lamentável. — O coronel levantou-se. — Estou sendo transferido para o exterior. — Ele se permitiu um pequeno sorriso. — Uma promoção um tanto importante.
— Parabéns, senhor. Fez por onde.
Mary Ashley concluiu mais tarde que só não perdera a sanidade porque ficara em estado de choque. Tudo parecia estar acontecendo com outra pessoa. Ela se encontrava debaixo d'água, deslocando-se devagar, ouvindo vozes distantes, filtradas por algodão.
O serviço fúnebre foi realizado na Agência Funerária Mass-Hinitt-Alexander, na Jefferson Street. Era um prédio azul, com um pórtico branco e um enorme relógio branco suspenso por cima da entrada. A funerária estava repleta de amigos e colegas de Edward. Havia dezenas de coroas e buquês. Uma das coroas maiores tinha um cartão que dizia simplesmente: "Meus pêsames mais profundos, Paul Ellison."
Mary, Beth e Tim sentaram-se sozinhos na pequena sala reservada para a família. As crianças estavam imóveis, com os olhos vermelhos.
O caixão com o corpo de Edward estava fechado. Mary não suportava pensar no motivo para isso. O ministro estava falando:
— Senhor, tens sido a nossa morada. Em todas as gerações, antes de as montanhas serem formadas ou quando criastes a terra e o mundo, de eternidade para eternidade. Tu és Deus. Por isso, não teremos medo, mesmo que a terra mude e as montanhas sejam arremessadas para as profundezas dos mares...
Ela e Edward estavam no pequeno barco a vela no Lago Milford.
— Gosta de velejar? — perguntara ele, na primeira noite em que saíram juntos.
— Nunca velejei.
— Então vamos velejar no sábado. Está marcado. Casaram uma semana depois.
— Sabe por que casei com você? — indagava Edward, zombeteiro. — Passou no teste. Riu muito e não caiu na água.
Quando o serviço fúnebre acabou, Mary e as crianças foram para a limusine preta e comprida que encabeçara o cortejo fúnebre até o cemitério.
O Cemitério Highland, na Ash Street, é um vasto parque, contornado por um caminho de cascalho. É o mais antigo cemitério de Junction City, e muitas das lápides que ali estão já foram erodidas pelo tempo. Por causa do frio intenso, a cerimônia à beira do túmulo foi breve.
— Eu sou a ressurreição e a vida; aquele que acreditar em mim, embora esteja morto, haverá de viver; e quem viver e acreditar em mim jamais morrerá. Eu sou aquele que vive e estava morto; estou vivo por toda a eternidade.
Misericordiosamente, tudo acabou. Mary e as crianças ficaram paradas ao vento uivante, observando o caixão ser baixado para a terra congelada e indiferente.
Adeus, meu querido.
A morte é supostamente o fim, mas para Mary Ashley foi o começo de um inferno insuportável. Ela e Edward haviam conversado sobre a morte, e Mary se dispuser a a aceitar o inevitável; só que agora a morte assumia uma realidade imediata e aterradora. Não era mais um evento vago que só ocorreria em algum dia distante e remoto. E não havia meio de enfrentar. Tudo em Mary clamava para negar o que acontecera a Edward. Quando ele morrera, tudo o que era maravilhoso morrera junto. A realidade insistia em atingi-la em renovadas ondas de choque. Ela se descobriu furiosa com Deus. Por que não me levou primeiro?, indagou. Estava furiosa com Edward por abandoná-la, furiosa com os filhos, furiosa consigo mesma.
Sou uma mulher de 35 anos com dois filhos e não sei quem eu sou. Quando eu era a senhora Edward Ashley, tinha uma identidade, pertencia a alguém que também me pertencia.
O tempo estava passando, escarnecendo de seu vazio. Sua vida era como um trem em disparada, sobre o qual não tinha o menor controle.
Florence, Douglas e outros amigos lhe faziam companhia, tentando atenuar seu sofrimento, mas Mary desejava que todos sumissem, que a deixassem em paz. Florence apareceu uma tarde e encontrou Mary diante da televisão, assistindo a uma partida de futebol americano do time da Universidade Estadual do Kansas.
— Ela nem percebeu que eu estava lá — contou Florence ao marido naquela noite. — Concentrava-se desesperadamente no jogo. — Ela estremeceu. — Foi assustador.
— Por quê?
— Mary detesta o futebol americano. Era Edward que não perdia um jogo.
Mary precisou recorrer às últimas reservas de força de vontade para cuidar dos destroços deixados pela morte de Edward. Havia o testamento e o seguro, as contas bancárias, as taxas e contas a pagar, e hipotecas e bens sujeitos a penhor a e déficits, e ela queria gritar para os advogados, banqueiros e contadores que a deixassem em paz.
Não quero pensar em nada, disse a si mesma. Edward estava morto e as pessoas só queriam falar em dinheiro.
Mas ela foi obrigada a enfrentar os problemas.
Frank Dunphy, o contador de Edward, disse:
— Infelizmente, senhora Ashley, as contas e as despesas com o funeral vão consumir uma boa parte do dinheiro do seguro de vida. Seu marido não costumava pressionar os pacientes para lhe pagarem. Devia muito dinheiro. Falarei com uma agência de cobrança para procurar as pessoas que estão devendo...
— Não faça isso — protestou Mary com veemência. — Edward não gostaria.
Dunphy ficou desorientado.
— Neste caso, sobram-lhe trinta mil dólares em dinheiro e esta casa, que está hipotecada. Se vendesse a casa...
— Edward não gostaria que eu vendesse.
Ela se mantinha rígida, controlando seu desespero. Dunphy pensou: Eu gostaria que minha mulher se preocupasse tanto assim comigo.
O pior ainda estava para acontecer. Chegou o momento de cuidar das coisas pessoais de Edward. Florence ofereceu-se para ajudar, mas Mary disse:
— Não. Edward gostaria que eu cuidasse de tudo sozinha.
Havia tantas coisas pequenas e íntimas. Uma dúzia de cachimbos, uma lata nova de fumo, dois óculos de leitura, anotações para uma conferência médica que ele nunca faria. Mary entrou no closet de Edward e passou as mãos pelos ternos que ele nunca mais tornaria a usar. A gravata azul que ele pusera na última noite que passaram juntos. As luvas e o cachecol que o mantinham aquecido contra os ventos frios do inverno. Ele não precisaria mais em sua sepultura gelada. Separou o aparelho de barba e a escova de dentes, movimentando-se como um autômato.
Encontrou bilhetes amorosos que haviam escrito um para o outro, trazendo recordações de dias difíceis, quando Edward se iniciara na clínica particular, um jantar do Dia de Ação de Graças sem peru, piqueniques no verão e passeios de trem no inverno, a primeira gravidez, ambos lendo e tocando música clássica para Beth ainda no útero, a carta de amor que Edward escrevera por ocasião do nascimento de Tim, a maçã dourada que ele lhe dera quando começara a dar aulas, uma centena de outras coisas que fizeram lágrimas aflorarem a seus olhos. A morte de Edward era como um cruel truque de mágica. Num momento Edward estava ali, vivo, falando, sorrindo, amando, e no instante seguinte desaparecera na terra fria.
Sou uma pessoa amadurecida. Tenho de aceitar a realidade. Não, não sou amadurecida. Não posso aceitar. Não quero viver.
Ela permaneceu acordada durante a longa noite, pensando como seria simples ir ao encontro de Edward, acabar com a agonia insuportável, ficar em paz. Somos criados para esperar um final feliz, pensou Mary. Mas não existe nenhum final feliz. Há apenas a morte à nossa espera. Encontramos o amor e a felicidade que de repente nos são arrebatados sem qualquer motivo. Estamos numa espaçonave abandonada, deslizando a esmo entre as estrelas. O mundo é Dachau e somos todos judeus.
Acabou cochilando, e durante a madrugada seus gritos desesperados acordaram os filhos, que correram para o seu quarto e se meteram na cama, abraçando-a.
— Você não vai morrer, não é? — murmurou Tim.
Mary pensou: Não posso me matar. Eles precisam de mim. Edward nunca me perdoaria.
Tinha de continuar a viver. Pelos filhos. Tinha de lhes dar o amor que Edward não seria mais capaz de proporcionar. Todos somos tão carentes sem Edward. Precisamos demais um do outro. É irônico que a morte de Edward seja mais difícil de aceitar porque tivemos uma vida comum maravilhosa. Há muitas razões para sentir saudade dele, muitas lembranças de coisas que nunca mais tornarão a acontecer. Onde está você, Deus? Está me ouvindo? Ajude-me. Por favor, ajude-me.
Ring Lardner disse: "Três em cada três vão morrer, portanto cale a boca e dê as cartas." Tenho de dar as cartas. Estou sendo egoísta demais. Estou me comportando da pior forma possível, como se fosse a única pessoa do mundo que sofre. Deus não está tentando me punir. A vida é uma caixa de saldos cósmica. Neste momento, em algum lugar do mundo, alguém está perdendo um filho, esquiando por uma montanha abaixo, tendo um orgasmo, cortando os cabelos, deitado num leito de hospital, cantando num palco, se afogando, casando, passando fome numa sarjeta. No final das contas, não somos todos essa mesma pessoa? Uma eternidade é um bilhão de anos, e há uma eternidade, cada átomo de nossos corpos era parte de uma estrela. Preste atenção a mim, Deus. Somos todos uma parte de Seu universo, e se morremos, parte do Seu universo morrerá conosco.
Edward estava por toda parte.
Nas canções que Mary ouvia no rádio, nas colinas por que haviam passado juntos. Na cama ao seu lado quando ela despertava ao nascer do sol.
Tenho que levantar cedo esta manhã, querida. Preciso fazer uma histerectomia e uma operação de quadris.
A voz de Edward soava nitidamente. Ela começou a lhe falar: Estou preocupada com as crianças, Edward. Não querem ir à escola. Beth diz que é porque têm medo de não me encontrar aqui quando voltarem.
Mary visitava o cemitério todos os dias, parada no ar gelado, lamentando o que perdera para sempre. Mas isso não lhe proporcionava qualquer conforto. Você não está aqui, pensou ela. Diga-me onde você está. Por favor.
Lembrou-se de um conto de Marguerite Yourcenar, 'Como Wang-Fô foi salvo'. Um artista chinês fora condenado à morte pelo imperador por mentir, por criar imagens de um mundo cuja beleza era contestada pela realidade. Mas o artista enganou o imperador, pintando um barco e usando-o para escapar. Quero escapar também, pensou Mary. Não suporto mais continuar aqui sem você, querido.
Florence e Douglas tentavam confortá-la.
— Ele está em paz — diziam a Mary.
E uma centena de outros clichês. As palavras fáceis de consolo, só que não havia nenhum consolo. Não agora. Nem nunca.
Ela acordava no meio da noite e corria para os quartos dos filhos, a fim de se certificar de que eles estavam seguros. Meus filhos vão morrer, pensou Mary. Todos vamos morrer. Pessoas andavam calmamente pelas ruas. Idiotas, rindo e felizes — e todos vão morrer. Suas horas estavam contadas, e as desperdiçavam em estúpidos jogos de cartas, assistindo a filmes tolos e a partidas de futebol americano sem o menor sentido. Acordem!, ela tinha vontade de gritar. A terra é o matadouro de Deus, e somos o Seu gado. Será que não sabem o que vai lhes acontecer e com todas as pessoas a quem amam?
A resposta lhe veio lentamente, dolorosamente, através dos véus negros do desespero. Claro que sabiam. Os jogos constituíam uma forma de desafio, o riso era um ato de bravata — uma bravata nascida do conhecimento de que a vida era finita, de que todos enfrentavam o mesmo destino; e pouco a pouco o medo e a ira de Mary foram se desvanecendo, transformando-se em espanto pela coragem de seus semelhantes. Estou envergonhada de mim mesma. Tenho de encontrar meu caminho pelo labirinto do tempo. Ao final, cada um de nós está sozinho, mas enquanto isso devemos nos manter unidos, proporcionando uns aos outros conforto e afeição.
A Bíblia diz que a morte não é o fim, mas apenas uma transição. Edward nunca a deixaria e aos filhos. Ele estava por ali, em algum lugar.
Ela mantinha conversas com o marido. Falei com a professora de Tim hoje. As notas dele estão melhorando. Beth está de cama, resfriada. Lembra de como ela está sempre resfriada nesta época do ano? Vamos jantar na casa de Florence e Douglas esta noite. Eles têm sido maravilhosos, querido.
E no meio da noite escura: O reitor esteve aqui em casa. Queria saber se eu planejava voltar a dar aulas na universidade. Respondi que agora não. Não quero deixar as crianças sozinhas, mesmo que por pouco tempo. Elas precisam muito de mim. Você acha que eu deveria voltar um dia?
Poucos dias depois: Douglas foi promovido, Edward. Tornou-se o chefe de equipe no hospital.
Poderia Edward ouvi-la? Ela não sabia. Haveria um Deus e uma vida posterior? Ou tudo não passava de uma fábula? T.S. Eliot disse: "Sem alguma espécie de Deus, o homem nem sequer é muito interessante."
O presidente Paul Ellison, Stanton Rogers e Floyd Baker estavam reunidos no Gabinete Oval. O secretário de Estado disse:
~ Senhor presidente, estamos sofrendo muita pressão. Não creio que possamos protelar por mais tempo a indicação de um embaixador para a Romênia. Eu gostaria que examinasse a lista que lhe entreguei e escolhesse...
— Obrigado, Floyd. Agradeço seu esforço, mas ainda acho que Mary Ashley seria ideal. Sua situação doméstica mudou. O que foi uma tragédia do azar para ela pode ser uma sorte para nós. Quero tentar de novo. — Ele se virou para Stanton Rogers. — Stan, gostaria que você voasse até o Kansas e a persuadisse a aceitar o posto.
— Se é assim que deseja, senhor presidente, partirei o mais depressa possível.
Mary estava fazendo o jantar quando o telefone tocou. Ela atendeu, e uma telefonista disse:
— Aqui é da Casa Branca. O presidente deseja falar com a senhora Edward Ashley.
Agora não, pensou Mary. Não quero falar com ele nem com ninguém.
Lembrou-se de como o primeiro telefonema do presidente a deixara excitada. Agora não tinha o menor sentido. Ela disse:
— Aqui é a senhora Ashley, mas...
— Quer aguardar um momento, por favor?
A voz familiar soou pela linha momentos depois:
— Aqui é Paul Ellison, senhora Ashley. Quero que saiba como lamentamos profundamente o que aconteceu com seu marido. Fui informado de que ele era um homem extraordinário.
— Obrigada, senhor presidente. Foi muita gentileza sua me mandar as flores.
— Não quero me intrometer em sua privacidade, senhora Ashley, e sei que tudo ainda está muito recente. Mas agora que sua situação doméstica mudou, estou lhe pedindo para reconsiderar a oferta do posto de embaixadora.
— Obrigada, mas eu não poderia...
— Peço que me escute, por favor. Estou mandando alguém até aí de avião para uma conversa. Seu nome é Stanton Rogers. Eu agradeceria se pelo menos o recebesse.
Mary não sabia o que dizer. Como explicar que seu mundo fora virado pelo avesso, que sua vida fora destruída? Só Beth e Tim tinham importância agora. Resolveu que, por uma questão de cortesia, receberia o .homem e recusaria da forma mais graciosa possível.
— Eu o receberei, senhor presidente, mas não vou mudar de idéia.
Havia um bar popular no boulevard Bineau que os guardas de Marin Groza freqüentavam quando não estavam de serviço na villa em Neuilly. Até mesmo Lev Pasternak aparecia no bar de vez em quando. Angel escolheu uma mesa num ponto em que podia ouvir as conversas. Os guardas, longe das rotinas rígidas na villa, gostavam de beber e sempre falavam quando bebiam. Angel ficava escutando, procurando o ponto vulnerável da villa. Sempre havia um ponto vulnerável. Era preciso apenas ser bastante esperto para descobri-lo.
Três dias passaram antes que Angel ouvisse uma conversa que deu a pista para a solução do problema. Um guarda estava dizendo:
— Não sei o que Groza faz com as putas que leva para lá, mas elas certamente fazem o diabo com ele. Deviam ouvir os gritos. Na semana passada dei uma olhada nos chicotes que ele guarda em seu armário...
E na noite seguinte:
— As vigaristas que nosso destemido líder traz para a villa são lindas. Elas vêm de todas as partes do mundo. Lev cuida de tudo pessoalmente. Ele é esperto. Nunca usa a mesma mulher duas vezes. Com isso, ninguém pode usar as mulheres para atingir Marin Groza.
Era tudo o que Angel precisava saber.
Na manhã seguinte, bem cedo, Angel trocou de carro de aluguel e foi para Paris num Fiat. A loja de sexo ficava em Montmartre, na Place Pigalle, no meio de uma área povoada por prostitutas e cafetões. Angel entrou, andando devagar pelos corredores, estudando com atenção as mercadorias à venda. Havia algemas e correntes, capacetes com pontas de ferro, calças de couro com aberturas na frente, vibradores no formato de pênis, lubrificantes, bonecas infláveis e videoteipes pornográficos. Havia creme anal e chicotes de couro com dois metros de comprimento e tiras soltas na extremidade.
Angel escolheu um chicote, pagou em dinheiro e foi embora.
Na manhã seguinte, Angel levou o chicote de volta à loja. O gerente protestou:
— Não aceitamos devoluções.
— Não é isso que estou querendo — explicou Angel. — Eu me sinto constrangido de andar com isto. Agradeceria se pudesse me enviar pelo correio. Pagarei um extra, é claro.
Ao final da tarde, Angel estava num avião, a caminho de Buenos Aires.
O chicote, embrulhado com todo cuidado, chegou à villa em Neuilly no dia seguinte. Foi interceptado pelo guarda no portão. Ele leu a etiqueta da loja no embrulho, abriu-o e examinou o chicote com a maior atenção. Era de se pensar que o velho já tinha chicotes suficientes.
Ele passou adiante e outro guarda levou-o para o quarto de Marin Groza, guardando-o junto com os outros.
10
O Forte Riley, um dos mais antigos quartéis ainda ativos dos Estados Unidos, foi construído em 1853, quando o Kan-sas ainda era considerado um território índio. Sua função era proteger as caravanas de carroças dos ataques dos índios. Hoje é usado basicamente como uma base de helicópteros e campo de pouso para pequenos aviões.
Quando Stanton Rogers ali pousou, a bordo de um DC-7, foi recebido pelo comandante da base e seu estado-maior. Uma limusine esperava para conduzi-lo à casa dos Ashley. Ele telefonara para Mary depois do contato do presidente.
— Prometo que minha visita será a mais breve possível, senhora Ashley. Planejo procurá-la na tarde de segunda-feira, se não for inconveniente.
Ele está sendo muito polido e é um homem importante. Por que o presidente o está mandando conversar comigo?
— Não há problema. — Num reflexo inconsciente, Mary acrescentara: — Gostaria de jantar conosco?
Ele hesitara.
— Obrigado.
Será uma noite comprida e tediosa, pensou Stanton. Florence Schiffer ficara emocionada ao saber da notícia.
— O assessor de política externa do presidente vem jantar aqui? Isso significa que você vai aceitar o convite!
— Não significa nada disso, Florence. Prometi ao presidente que conversaria com ele. E é só.
Florence abraçara Mary.
— Quero apenas que você faça o que puder torná-la feliz.
— Sei disso.
Stanton Rogers era um homem formidável, concluiu Mary. Ela já o vira no Encontro com a Imprensa e em fotografias na revista Time, mas pensou agora: Ele parece mais alto pessoalmente. Rogers mostrava-se polido, mas um tanto distante.
— Permita-me transmitir novamente os sinceros pêsames do presidente por sua tragédia, senhora Ashley.
— Obrigada.
Mary apresentou-o a Beth e a Tim. Ficaram conversando, enquanto Mary ia à cozinha para verificar como Lu-cinda estava se saindo com o jantar.
— Posso servir quando quiser — comunicou Lucinda. — Mas ele vai detestar.
Quando Mary a informara de que Stanton Rogers jantaria em casa e queria que ela preparasse uma carne assada, Lucinda dissera: