─ Talvez seja um erro apressar as coisas. Leva-se muito tempo para se conhecer realmente uma pessoa. É possível que você mude de...
─ Você será meu padrinho ─ disse Toby, sem ligar para o comentário. ─ Acha que devemos nos casar aqui ou em Las Vegas?
Clifton sabia que estava perdendo tempo. Só havia um meio de impedir o desastre: tinha de achar um jeito de deter Jill.
Na mesma tarde, telefonou para Jill e pediu-lhe que viesse a seu escritório. Ela chegou com uma hora de atraso, deu-lhe um beijo no rosto, sentou-se na ponta do sofá e disse:
─ Não disponho de muito tempo, vou me encontrar com Toby.
─ Não demorará muito.
Clifton estudou-a. Era uma Jill diferente. Quase não tinha nenhuma semelhança com a moça que ele encontrara pela primeira vez há alguns meses. Agora, parecia dona de uma confiança, de uma segurança que antes não possuía. Bem, não era a primeira vez que Clifton lidava com garotas dessa espécie.
─ Jill, vou ser bem claro. Você é prejudicial para Toby. Quero que saia de Hollywood.
Tirou um envelope branco de uma gaveta.
─ Aqui estão cinco mil dólares em dinheiro. É o suficiente para levá-la a qualquer lugar.
Ela ficou olhando-o por um momento com uma expressão de surpresa; depois recostou-se no sofá e começou a rir.
─ Não estou brincando ─ disse Clifton Lawrence. ─ Acha que Toby se casaria com você se descobrisse que você já foi para a cama com Hollywood inteira?
Jill encarou Clifton por um longo momento. Queria dizer-lhe que era ele o responsável por tudo que lhe acontecera, ele e os outros donos do poder que se haviam recusado a lhe dar uma chance. Eles a fizeram pagar com o corpo, o amor-próprio, a alma. Mas Jill sabia que seria impossível fazê-lo compreender. Clifton estava blefando; não ousaria contar a Toby sobre ela, seria sua palavra contra a dela.
Levantou-se e saiu do escritório.
Uma hora mais tarde Clifton recebeu uma chamada de Toby. Nunca o vira tão excitado.
─ Não sei o que você disse a Jill, meu chapa, mas tenho de lhe contar: ela não quer esperar. Estamos a caminho de Las Vegas para nos casarmos!
O Lear estava a trinta e cinco milhas do Aeroporto Internacional de Los Angeles, voando a duzentos e cinquenta nós. David Kenyon fez contato com o controle de pouso LAX e deu sua posição.
Estava eufórico, ia ao encontro de Jill.
Cissy se recuperara da maioria dos ferimentos sofridos no acidente, mas seu rosto fora severamente atingido. David a mandara ao maior cirurgião plástico do mundo, um médico brasileiro. Ela partira há seis semanas e nesse meio tempo mandara-lhe notícias entusiasmadas sobre o médico.
Vinte e quatro horas antes, David recebera um telefonema de Cissy, dizendo que não voltaria. Estava apaixonada.
David não podia acreditar em sua sorte.
─ Isso é... é maravilhoso ─ gaguejou. ─ Espero que você e o doutor sejam felizes.
─ Oh, não é o doutor ─ replicou Cissy. ─ É o dono de uma pequena plantação. Ele se parece demais com você, David. A única diferença é que me ama.
O som do rádio interrompeu-lhe os pensamentos. "Lear 3 Alfa Papa, aqui fala o controle de pouso de Los Angeles. Tem permissão para aterrissar na pista 25 da esquerda. Quando pousar, por favor, desloque-se para a rampa à sua direita."
─ Entendido.
David começou a descer e seu coração disparou. Estava prestes a encontrar Jill, a dizer-lhe que ainda a amava, a pedi-la em casamento.
Ao atravessar o terminal, passou por uma banca de jornais e viu a manchete: "TOBY TEMPLE CASA-SE COM ATRIZ". Leu a notícia duas vezes e foi para o bar do aeroporto.
Ficou bêbado durante três dias e depois voou de volta para o Texas.
28
Foi uma lua-de-mel fantástica, Toby e Jill voaram num jato particular para Las Hadas, onde se hospedaram com os Potiño em sua estância encantada, incrustada entre a selva e a praia mexicana. Os recém-casados ficaram numa villa afastada, cercada de cactos, hibiscos e buganvílias de cores brilhantes, onde aves exóticas cantavam a noite inteira. Passaram dez dias entre passeios, iates e festas. Tiveram jantares deliciosos no Legazpi, preparados por grandes chefs especializados, e nadaram em piscinas naturais. Jill fez compras nas sofisticadas butiques de Plaza.
Do México voaram para Biarritz, onde ficaram no Hotel du Palais, a espetacular casa que Napoleão III construiu para a Imperatriz Eugénia. O casal em lua-de-mel jogou nos cassinos, assistiu a touradas e fez amor noites inteiras.
Da costa basca voaram para Gstaad, a mil e duzentos metros acima do nível do mar, nos Alpes Suíços. Voaram entre os picos das montanhas para apreciar a vista, passando sobre o Mont Blanc e o Matterhorn. Esquiaram pelas estonteantes encostas brancas, andaram de trenó puxado por cães, degustaram fondues em várias festas e dançaram. Toby nunca fora tão feliz. Achara a mulher que tornava sua vida completa. Já não estava mais solitário.
Por ele, a lua-de-mel duraria para sempre, mas Jill estava ansiosa por voltar. Não tinha qualquer interesse por aqueles lugares nem por aquelas pessoas. Sentia-se como uma rainha recentemente coroada que tivesse sido afastada de seu país. Jill Castle mal podia voltar a Hollywood.
A Sra. Toby Temple tinha contas a acertar.
LIVRO
TERCEIRO
29
É possível sentir o cheiro do fracasso: adere como um miasma. Tal como os cães detectam o odor do medo numa pessoa, pode-se sentir quando um homem começa a cair.
Sobretudo em Hollywood.
Todo mundo no Negócio sabia que Clifton Lawrence estava acabado antes mesmo de ele próprio perceber. Podia-se sentir o cheiro no ar à sua volta.
Clifton não tivera qualquer notícia de Toby ou Jill na semana que se passara desde a volta do casal da lua-de-mel. Ele mandara um presente caro e três recados telefônicos, que não foram respondidos. De algum modo, Jill conseguira por Toby contra ele. Clifton sabia que precisava conseguir uma trégua. Ele e Toby significavam demais um para outro, não podiam deixar que alguém se intrometesse.
Clifton foi até a casa deles numa manhã em que sabia que Toby estava no estúdio. Jill viu-o chegar e abriu a porta para ele. Estava maravilhosa e Cliftn lhe disse isso. Ela foi amável. Sentaram-se no jardim e tomaram café, Jill contou-lhe sobre a lua-de-mel e os lugares que visitara.
─ Sinto muito por Toby não ter respondido a seus telefonemas, Clifton. Você não imagina como ele tem andado atarefado por aqui.
Ele sorriu, desculpando-se, e ele compreendeu que se enganara. Jill não era sua inimiga.
─ Gostaria de começar tudo de novo: vamos ser amigos.
─ Concordo, Clifton. Obrigada.
Clifton teve uma imensa sensação de alívio.
─ Quero dar uma festa para você e Toby. Alugarei o salão privado do Bistro, no próximo sábado. Black─tie. Cem convidados, seus amigos mais íntimos. Que acha?
─ Ótimo. Toby ficará satisfeito.
Jill esperou até a tarde do dia da festa para telefonar.
─ Sinto muito, Clifton. Receio não poder ir esta noite. Estou um pouco cansada. Toby acha que devo ficar em casa e descansar.
Clifton deu um jeito de esconder o que sentia.
─ Lamento, Jill, mas compreendo. Toby virá, não?
Ouviu seu suspiro do outro lado:
─ Receio que não, meu caro. Ele não vai a lugar nenhum sem mim. Mas espero que a festa corra bem. ─ E desligou.
Era tarde demais para cancelar a festa. A conta foi de três mil dólares, mas custou bem mais do que isso a Clifton. Seus convidados de honra lhe deram um fora, seu único cliente, e todo o mundo, chefes de estúdios, estrelas, diretores, todo o mundo importante de Hollywood percebeu isso. Clifton tentou disfarçar dizendo que Toby não estava passando bem. Foi a pior coisa que poderia ter dito. Ao pegar um exemplar do Herald Examiner na tarde seguinte, deu com a foto do Sr. e Sra. Toby Temple tirada no Estádio Dodgers, na noite anterior.
Clifton Lawrence sabia agora que lutava por sua própria vida. Se Toby o abandonasse, não haveria ninguém para lhe dar a mão. Nenhuma das grandes agências o admitiria porque ele não lhes poderia trazer clientes importantes; e Clifton não tolerava a idéia de começar tudo de novo sozinho. Era tarde demais para isso. Tinha de achar um meio de conseguir a paz com Jill. Telefonou para ela e disse que gostaria de visitá-la.
─ É claro. ─ disse ela. ─ Eu disse a Toby ontem à noite que não temos visto você ultimamente.
─ Chego aí dentro de quinze minutos ─ falou Clifton.
Foi até o bar e preparou um uísque duplo. Isso vinha acontecendo com frequência nos últimos tempos. Era um mau hábito beber durante o dia de trabalho, mas a quem estava enganando? Que trabalho? Recebia diariamente ofertas importantes para Toby, mas não conseguia fazer com que o grande homem sentasse para discuti-las com ele. Antigamente, costumavam conversar sobre tudo. Recordou os bons tempos do passado, as viagens que haviam feito, as festas, os risos, as garotas. Os dois eram unidos como irmãos gémeos. Toby precisara dele, contara com ele. E agora... Clifton preparou mais um drinque e ficou satisfeito ao constatar que suas mãos já não estavam tremendo tanto.
Quando Clifton chegou à casa dos Temple, encontrou Jill no terraço tomando café. Ela ergueu os olhos e sorriu ao vê-lo aproximar-se. "Você é um vendedor", ele disse para si mesmo. "Convença-a."
─ É bom ver você, Clifton. Sente-se.
─ Obrigado, Jill.
Sentou-se diante dela, do outro lado de uma grande mesa de ferro forjado, e examinou-a. Jill usava um vestido branco de verão e o contraste entre ele e o cabelo negro e a pele dourada, queimada de sol, era fabuloso. Ela parecia mais jovem e, única palavra que ocorreu a Clifton, inocente. Observava-o com um olhar afetuoso e amável.
─ Quer tomar café, Clifton?
─ Não, obrigado. Já tomei.
─ Toby não está.
─ Eu sei. Queria conversar com você a sós.
─ Que posso fazer por você?
─ Aceitar meu pedido de desculpas ─ disse ele apressadamente.
Jamais implorara nada a ninguém em sua vida; seria a primeira vez.
─ Nós... eu comecei com o pé esquerdo. Talvez tenha sido culpa minha, provavelmente foi. Toby tem sido meu cliente e amigo por tanto tempo que eu... eu queria protegê-lo. Você compreende?
─ Claro, Clifton ─ disse Jill, com os olhos castanhos fixos nele.
Ele respirou fundo.
─ Não sei se ele lhe contou a história, mas fui eu que lancei Toby. Soube que se tornaria um grande astro desde a primeira vez que o vi.
Percebeu que Jill estava prestando o máximo de atenção.
─ Naquela época, eu cuidava de uma porção de clientes. Desfiz-me de todos para poder concentrar-me na carreira dele.
─ Toby me falou do muito que você fez por ele ─ disse ela.
─ Ele falou? ─ Clifton odiou a ansiedade que percebeu na própria voz.
Jill sorriu.
─ Contou-me sobre aquela vez em que fez de conta que Sam Goldwin havia telefonado para você e como você foi vê-lo assim mesmo. Foi simpático aquilo.
Clifton inclinou-se e falou:
─ Não quero que nada aconteça a meu relacionamento com Toby. Preciso ter você do meu lado. Peço-lhe que se esqueça de tudo que aconteceu entre nós. Peço desculpas por ter agido daquela maneira. Pensei estar protegendo Toby. Bem, enganei-me; acho que você vai fazer muito bem a ele.
─ É o que quero. Muito.
─ Se Toby me abandonasse, eu... acho que me mataria. Não me refiro apenas aos negócios. Eu e ele temos... ele tem sido como um filho para mim. Gosto muito dele.
Desprezou-se por fazê-lo, mas voltou a implorar:
─ Por favor, Jill, pelo amor de Deus... ─ calou-se, com a voz embargada.
Observou-o por um longo momento com aqueles profundos olhos castanhos e depois estendeu a mão.
─ Não guardo ressentimentos ─ disse. ─ Pode vir jantar conosco amanhã à noite?
Clifton respirou fundo e sorriu satisfeito, dizendo:
─ Obrigado. ─ Percebeu que de repente seus olhos ficaram úmidos. ─ Eu... eu não vou esquecer isso. Nunca.
Na manhã seguinte, quando Clifton chegou ao escritório, deu com uma carta registrada notificando-o de que seus serviços haviam sido dispensados e que já não tinha mais autoridade para atuar como agente de Toby Temple.
30
Jill Castle Temple foi a coisa mais sensacional a atingir Hollywood desde o aparecimento do cinemascope. Numa cidade em que todos participavam do jogo de elogiar as roupas do imperador, ela usava a língua como uma foice. Numa cidade em que a adulação era a moeda corrente das conversas, Jill dizia o que pensava, destemidamente. Tinha Toby a seu lado e brandia seu poder como uma arma, atacando todos os importantes executivos dos estúdios. Eles não ousavam ofendê-la porque não queriam ofender Toby. Ele era o astro mais lucrativo de Hollywood e todos o queriam, precisavam dele.
Toby fazia mais sucesso do que nunca. Seu programa de televisão ainda ocupava o primeiro lugar nos índices semanais, seus filmes davam enorme lucro e quando ia a Las Vegas, a renda dos cassinos duplicava. Toby era o produto mais quente dos show business. Queriam-no como convidado, para álbuns de discos, em aparições pessoais, para promoções, eventos beneficentes, filmes, queriam-no, queriam-no, queriam-no.
As pessoas mais importantes da cidade se desdobravam para agradar-lhe. Logo aprendera que a maneira de fazê-lo era satisfazendo Jill. Ela passou a encarregar-se pessoalmente da programação dos compromissos de Toby, organizando a vida dele de maneira que só comportasse lugar para as pessoas que ela aprovava. Ergueu uma barricada intransponível em torno dele e só os ricos, os famosos e os poderosos tinham permissão para transpô-la. Jill era a guardiã da chama. A garotinha polonesa de Odessa, no Texas, recebia e era recebida por governantes, embaixadores, artistas de renome mundial e o presidente dos Estados Unidos. Essa cidade lhe fizera coisas terríveis, mas jamais tornaria a fazê-las, enquanto ela tivesse Toby Temple.
A lista de ódio de Jill era integrada por aqueles que estivessem realmente em dificuldades.
Certa vez foi para a cama com Toby e amou-o sensualmente. Quando o viu relaxado embora exausto, aninhou-se em seus braços e disse:
─ Querido, já lhe contei sobre a época em que estava procurando um agente e fui ver aquela mulher... como era mesmo o nome dela? Ah, sim, Rose Dunning. Ela disse que tinha um papel para mim e sentou-se na cama para ler as falas comigo.
Toby virou-se para olhá-la, franzindo o cenho:
─ Que aconteceu?
Jill sorriu:
─ Inocente e estúpida como eu era, comecei a ler e senti a mão dela subindo pela minha coxa.
Jill inclinou a cabeça para trás e riu:
─ Fiquei apavorada. Nunca corri tanto na vida.
Dez dias depois, a licença de agente de Rose Dunning foi revogada em caráter definitivo pela comissão de licenciamento da cidade.
No fim de semana seguinte, Toby e Jill foram para sua casa de Palm Springs. Ele estava deitado numa mesa de massagens no pátio, sobre uma pesada toalha turca, enquanto Jill ministrava-lhe uma longa e relaxante massagem. Estava deitado de costas, com chumaços de algodão protegendo-lhe os olhos do sol forte. Ela massageava-lhe os pés usando uma suave loção cremosa.
─ Você abriu mesmo os olhos com relação a Clifton ─ disse ele. ─ Não passava de um parasita, sugando-me. Ouvi dizer que ele anda pela cidade tentando encontrar um sócio, mas ninguém o quer. Sem mim, ele não consegue nem ser preso.
Jill fez uma pausa e falou:
─ Tenho pena de Clifton.
─ Esse é o seu maldito problema, querida. Você pensa com o coração e não com a cabeça. Precisa aprender a ser mais dura.
Ela sorriu tranquilamente:
─ Não posso evitar. Sou como sou.
Começou a massagear as pernas de Toby, passando as mãos lentamente em direção às coxas com movimentos leves e sensuais. Ele começou a ter uma ereção.
─ Jesus... ─ gemeu.
As mãos dela estavam mais acima, movendo-se em direção à virilha de Toby, fazendo aumentar a rigidez. Ela mergulhou as mãos entre suas pernas, e enfiou-lhe um dedo coberto de creme. O enorme pênis estava duro como pedra.
─ Rápido, baby ─ disse ele. ─ Suba em mim.
Estavam na marina, no veleiro Jill, o grande barco à vela e a motor que Toby comprara para ela. O primeiro show de televisão de Toby para a nova temporada devia ser gravado no dia seguinte.
─ Estas são as melhores férias da minha vida ─ disse Toby. ─ Estou com ódio de ter que voltar ao trabalho.
─ Mas é um show tão maravilhoso ─ disse Jill. ─ Foi divertido participar dele. Foram todos tão gentis.
Fez uma pausa e acrescentou num tom casual:
─ Quase todos.
─ Que quer dizer? ─ a voz de Toby soou aguda. ─ Quem não foi gentil com você?
─ Ninguém, querido. Nem devia ter tocado no assunto.
Mas acabou por deixar Toby extrair-lhe o nome, e no dia seguinte Eddie Berrigan, o diretor de elenco, foi despedido.
Nos meses seguintes, Jill contou a Toby uma série de novos casos sobre outros diretores de elenco constantes de sua lista, e um por um eles desapareceram. Todos que a haviam usado teriam de pagar. Era, pensou ela, tal como o ritual do acasalamento com a abelha rainha: todos haviam tido seu prazer e agora precisavam ser destruídos.
Desferiu o ataque contra Sam Winters, o homem que dissera a Toby que ela não tinha talento. Jamais disse uma só palavra contra ele; pelo contrário, elogiava-o perante o marido. Mas sempre elogiava um pouquinho mais os colegas de Sam... Os outros estúdios apresentavam mais vantagens para ele... diretores que realmente o compreendiam. Acrescentava que não podia deixar que Sam Winters não lhe reconhecia realmente o talento. Dentro de pouco tempo, Toby passou a ter a mesma impressão. Sem Clifton Lawrence, ele não tinha ninguém com quem falar, ninguém para confiar, senão Jill. Quando decidiu passar a filmar em outro estúdio, pensou que a idéia fosse exclusivamente sua. Mas Jill fez com que Sam Winters soubesse a verdade.
Estava vingada.
Em torno de Toby, havia quem achasse que Jill não poderia durar muito, que não passava de uma intrusa passageira, uma mania temporária. Por isso a toleraram ou tratavam-na com um desprezo levemente velado. Foi aí que erraram. Um por um, ela eliminou todos. Não queria por perto ninguém que tivesse sido importante na vida do marido ou pudesse influenciá-lo contra ela. Cuidou para que Toby mudasse de advogado e de agência publicitária; contratou pessoal escolhido por ela própria. Livrou-se dos Macs e da corte de parasitas de Toby. Substituiu todos os empregados: agora, a casa era sua e era ela quem dava as ordens.
As festas na casa dos Temple tornaram-se o programa mais quente da cidade. Todo mundo que era alguém estava lá. Atores misturavam-se à gente da alta sociedade, governadores e chefes de poderosas empresas. A imprensa sempre comparecia com força total, de modo que os felizes convidados sempre ficavam recompensados: não apenas frequentavam a casa dos Temple e se divertiam, como todo mundo ficava sabendo disso.
Quando não recebiam, os Temples eram convidados. Havia uma avalancha de convites: para pré-estreias, jantares de caridade, eventos políticos, inaugurações de restaurantes e hotéis.
Toby gostaria de ficar em casa a sós com Jill, mas ela adorava sair. Em certas noites, tinham de aparecer em três ou quatro festas e ela o impelia de uma para outra.
─ Jesus, você deveria ser diretora social de Grossinger ─ dizia Toby rindo.
─ Faço isso por você, querido ─ respondia ela.
Toby estava fazendo um filme para a MGM e tinha um horário exaustivo. Chegou tarde em casa certa noite e deu com seu traje a rigor pronto para ser vestido.
─ Não vamos sair de novo, vamos, baby? Não ficamos em casa à noite nem uma vez a merda do ano inteiro!
─ É a festa de aniversário dos Davis. Ficariam magoadíssimos se não aparecêssemos.
Toby sentou-se pesadamente na cama.
─ Eu contava com um bom banho quente e uma noite tranquila. Só nós dois.
Mas foi à festa. E porque sempre tinha de aparecer, sempre ser o centro das atenções, recorreu ao seu enorme reservatório de energia até fazer todo mundo rir, aplaudir e comentar como Toby Temple era brilhantemente engraçado. Mais tarde, naquela noite, não conseguiu dormir, o corpo esgotado, mas a mente ativa, revivendo os triunfos da noite frase por frase, riso por riso. Era um homem muito feliz. E tudo graças a Jill.
Como sua mãe a teria adorado!
Em março, recebeu o convite para o Festival de Cinema de Cannes.
─ Impossível ─ disse Toby quando Jill mostrou-lhe os convites. ─ O único Cannes que vai me ver é o que está no meu banheiro. Estou cansado, querida. Tenho me matado de trabalhar.
Jerry Guttman, o relações-públicas de Toby, dissera a Jill que seu filme tinha chance de ganhar o prémio de melhor filme e que a presença dele ajudaria muito. Achava importante o comparecimento do astro.
Ultimamente, Toby vinha se queixando de cansaço o tempo todo, dizendo que não conseguia dormir. Tomava soníferos à noite, que o deixavam com uma sensação de torpor na manhã seguinte. Jill combatia o cansaço de Toby dando-lhe benzedrina no café da manhã, para que ele tivesse energia suficiente durante o dia. Agora, o ciclo de estimulantes e calmantes parecia que o estava afetando.
─ Já aceitei o convite ─ disse Jill a Toby, ─ mas vou cancelar. Não há problema, querido.
─ Vamos passar um mês em Palm Springs, deitados no sabão.
─ Quê? ─ ela olhou para Toby, sentado, imóvel.
─ Queria dizer sol. Não sei como foi sair sabão.
Ela riu.
─ Porque você é engraçado.
Apertou a mão dele.
─ Seja como for, a idéia de Palm Springs é maravilhosa. Adoro ficar sozinha com você.
─ Não sei o que há de errado comigo ─ suspirou Toby. ─ Simplesmente me falta aquele ânimo. Acho que estou ficando velho.
─ Você nunca vai envelhecer. Vai acabar comigo.
Ele riu:
─ É? Acho que meu pau viverá por muito tempo depois que eu morrer ─ disse ele, rindo.
Passou a mão pela nuca e falou:
─ Acho que vou tirar um cochilo. Para dizer a verdade, não estou me sentindo muito bem. Não temos compromisso para esta noite, temos?
─ Nada que eu não possa cancelar. Dispensarei os empregados e eu mesma prepararei o jantar. Só nós dois.
─ Ei, boa idéia.
Observou-a afastar-se e pensou: "Jesus, sou o sujeito mais sortudo de todos os tempos".
Estavam na cama, mais tarde, na mesma noite, Jill preparara um banho quente para Toby e fizera-lhe uma massagem relaxante, comprimindo-lhe os músculos cansados, aliviando-lhe as tensões.
─ Ah, isso é maravilhoso ─ murmurou ele. ─ Como é que eu podia viver sem você?
─ Não faço a menor idéia. ─ Ela se aninhou junto dele. ─ Toby, fale-me do Festival de Cinema de Cannes. Como é? Nunca assisti a nenhum.
─ Não passa de uma multidão de "cavadores", que vêm do mundo inteiro vender seus filmes horrorosos uns aos outros. É a maior farsa do mundo.
─ Do jeito que você fala, parece excitante.
─ É? Bem, imagino que de certa forma seja excitante. O lugar fica cheio de tipos.
Estudou-a por um momento.
─ Você quer mesmo ir a esse festival estúpido?
Ela abanou a cabeça rapidamente:
─ Não. Nós vamos para Palm Springs.
─ Droga, podemos ir a Palm Springs a qualquer hora.
─ Francamente, Toby, não importa.
Ele sorriu.
─ Sabe por que sou tão louco por você? Qualquer outra mulher estaria me enchendo para levá-la ao festival. Você está morrendo de vontade de ir, mas não diz nada. Não. Você quer ir para Palm Springs comigo? Já cancelou nossa participação?
─ Ainda não, mas...
─ Não cancele. Nós vamos para a Índia. ─ Uma expressão de espanto cobriu-lhe o rosto. ─ Eu falei Índia? Queria dizer Cannes.
Quando o avião aterrissou em Orly, entregaram um cabograma a Toby: seu pai morrera no hospital. Era tarde demais para voltar e assistir ao enterro. Ele fez com que uma nova ala fosse acrescentada à casa de repouso, dando-lhe o nome de seus pais.
O mundo inteiro estava em Cannes.
Hollywood, Londres, Roma, tudo junto numa Babel, numa gloriosa cacofonia de som e fúria, em Technicolor e Panavision. De todos os pontos do globo os fabricantes de filmes fluíam para a Riviera francesa, carregando sonhos enlatados debaixo do braço, rolos de celulóide em inglês, francês, japonês, húngaro, polonês, que os tornariam ricos e famosos da noite para o dia. A croisette estava atulhada de profissionais e amadores, veteranos e estreantes, recém-chegados e ultrapassados, todos competindo pelos prestigiosos prêmios. Ganhar um prêmio no Festival de Cannes significava dinheiro no banco; se o vencedor não tivesse um contrato de distribuição, poderia conseguir um e, se já o tivesse, poderia melhorá-lo.
Todos os hotéis de Cannes estavam lotados e os excedentes se espalharam ao longo da costa, até Antibes, Beaulieum, Saint-Tropez e Menton. Os habitantes das pequenas cidades contemplavam maravilhados os rostos famosos que enchiam suas ruas, restaurantes e bares.
Todos os quartos haviam sido reservados com meses de antecedência, mas Toby Temple não teve a menor dificuldade para conseguir uma grande suíte no Carton. Toby e Jill eram festejados em toda a parte; as câmaras dos fotógrafos espocavam incessantemente e suas imagens eram espalhadas pelo mundo inteiro. O "casal de ouro", o "rei e a rainha de Hollywood". Os repórteres entrevistavam Jill, perguntando sua opinião sobre tudo, desde vinhos franceses até política africana. Estava muito longe de Josephine Czinski, de Odessa, no Texas.
O filme de Toby não ganhou o prémio, mas duas noites antes do encerramento do festival a comissão julgadora anunciou a concessão de um prêmio especial a Toby Temple por sua contribuição no campo do entretenimento.
Era uma cerimónia em Black-tie e o grande salão de banquete do Carlton Hotel estava apinhado de convidados. Jill sentou-se ao lado de Toby e notou que ele não estava comendo.
─ Que há, querido? ─ perguntou.
Toby sacudiu a cabeça:
─ Acho que apanhei sol demais hoje. Sinto-me um pouco tonto.
─ Amanhã vou fazê-lo descansar.
Jill programara entrevistas para Toby com o Paris-Match e o Times de Londres pela manhã, almoço com um grupo de repórteres de televisão e depois um coquetel. Resolveu cancelar o compromisso menos importante.
No fim do jantar, o prefeito de Cannes se levantou e apresentou Toby:
─ Minhas senhoras, meus senhores, distintos convidados: é um grande privilégio apresentar-lhes um homem cuja obra proporcionou prazer e felicidade ao mundo inteiro. Tenho a honra de presenteá-lo com esta medalha especial, símbolo de nossa afeição e admiração.
Ergueu uma medalha de ouro presa por uma fita e inclinou-se num cumprimento a Toby.
─ Monsieur Toby Temple!
Houve uma entusiástica salva de palmas da audiência, enquanto todos se levantavam em ovação. Toby continuou sentado, imóvel.
─ Levante-se ─ sussurrou Jill.
Lentamente, Toby se pôs de pé, pálido e trémulo. Ficou parado um momento, sorriu e começou a andar em direção ao microfone. A meio caminho, tropeçou e caiu, inconsciente.
Toby Temple foi levado de avião a Paris, num jacto de transporte da Força Aérea francesa, e encaminhado às pressas ao Hospital Americano, onde foi colocado na enfermaria de tratamento intensivo. Foram convocados os maiores especialistas franceses, enquanto Jill esperava num quarto particular do hospital. Durante trinta e seis horas, recusou-se a comer, beber ou atender aos telefonemas que chegavam aos milhares, de toda as partes do mundo.
Ela ficou só, olhando para as paredes, sem ver nem ouvir a atividade incessante à sua volta. Sua mente concentrava-se numa única idéia: Toby tinha de ficar bem. Toby era seu sol e, se se apagasse, a sombra pereceria. Ela não podia deixar que isso acontecesse.
Eram cinco horas da manhã quando o Dr. Duclos, chefe da equipe, entrou no quarto que Jill reservava, com o fim de ficar junto de Toby.
─ Sra. Temple, receio que não haja razão para tentar atenuar o choque. Seu marido sofreu um profundo derrame cerebral. Tudo indica que não voltará a andar nem a falar.
31
Quando finalmente permitiram que Jill entrasse no quarto de Toby no hospital, em Paris, ela ficou chocada com seu aspecto. Da noite para o dia, tornara-se velho e dessecado, como se seus fluidos vitais se houvessem esgotado. Perdera em parte o uso dos braços e das pernas e, embora conseguisse emitir sons animais, semelhantes a grunhidos, não podia falar.
Após seis semanas os médicos permitiram que Toby fosse removido. Quando Jill e ele chegaram à Califórnia, foram recebidos no aeroporto pela imprensa e pela televisão, além de uma multidão de amigos. A notícia da doença de Toby Temple causara grande comoção: havia uma sucessão de telefonemas de amigos perguntando sobre o estado de saúde de Toby e suas melhoras; havia mensagens do presidente e de senadores, além de milhares de cartas e postais dos fãs que amavam Toby e estavam rezando por ele.
Mas os convites haviam cessado, ninguém aparecia para saber como Jill se sentia, se gostaria de comparecer a um jantar tranquilo, dar um passeio ou ver um filme. Ninguém em Hollywood se importava nem um pouco com ela.
Ela convocara o médico particular de Toby, Dr. Eli Kaplan, que por sua vez chamara dois grandes neurologistas, um do centro médico da UCLA e o outro do Hospital John Hopkins. Seu diagnóstico foi idêntico ao do Dr. Duclos, de Paris.
─ É importante compreender ─ disse o Dr. Kaplan a Jill ─ que a mente de Toby não sofreu dano algum. Ele ouve e compreende tudo que se diz, mas sua fala e as funções motoras foram lesadas, de modo que ele não pode responder.
─ Será que... que ele vai ficar assim para sempre?
O Dr. Kaplan hesitou.
─ É impossível ter certeza absoluta, evidentemente, mas em nossa opinião o sistema nervoso dele sofreu um dano sério demais para que a terapia produza qualquer efeito apreciável.
─ Mas o senhor não tem certeza.
─ Não...
Jill, porém, tinha.
Além das três enfermeiras que cuidavam de Toby vinte e quatro horas por dia, Jill contratou os serviços de um fisioterapeuta, que vinha todas as manhãs para fazer exercícios com Toby. Carregava-o para a piscina e segurava-o, puxando delicadamente os músculos e tendões enquanto Toby tentava debilmente mexer braços e pernas, na água tépida. Não houve qualquer melhora. Na quarta semana foi chamada uma fonoaudióloga; durante uma hora, todas as tardes, ela tentava ajudar Toby a reaprender a falar, a formar os sons das palavras.
Depois de dois meses, Jill não conseguiu observar qualquer melhora. Absolutamente nenhuma. Mandou chamar Dr. Kaplan.
─ O senhor tem de fazer alguma coisa por ele ─ exigiu. ─ Não pode deixá-lo ficar assim.
O médico olhou para ela, desanimado.
─ Sinto muito, Jill. Tentei explicar-lhe...
Jill ficou sentada na biblioteca, sozinha, depois que o Dr. Kaplan se retirou. Sentia os primeiros sinais de uma das terríveis dores de cabeça, mas agora não havia tempo para pensar em si mesma. Ela subiu.
Toby estava recostado na cama, com os olhos perdidos no vácuo. Quando Jill se aproximou, seus profundos olhos azuis que se iluminaram e a acompanharam, brilhantes e cheios de vida, enquanto Jill se acercava da cama, observandooo. Seus lábios se moveram, emitindo um som ininteligível. Lágrimas de frustração começaram a inundar-lhe os olhos. Jill recordou as palavras do Dr. Kaplan: "É importante compreender que a mente dele não sofreu dano algum".
Sentou-se na beira da cama.
─ Toby, quero que preste atenção. Você vai sair desta cama. Você vai andar e vai falar.
As lágrimas rolaram pelas faces de Toby.
─ Você vai conseguir ─ disse Jill. ─ Você vai conseguir, por mim.
Na manhã seguinte, Jill despediu as enfermeiras, o fisioterapeuta e a fonoaudióloga. Logo que soube disso, o Dr. Kaplan apressou-se a procurá-la.
─ Concordo quanto ao fisioterapeuta, Jill, mas as enfermeiras! Toby precisa de alguém cuidando dele vinte e quatro horas...
─ Eu cuidarei dele.
O médico abanou a cabeça.
─ Você não faz idéia do que está arranjando. Uma pessoa só não pode...
─ Chamarei se precisar do senhor.
Mandou-o sair.
Começou a provação.
Jill pretendia tentar aquilo que, segundo os médicos, era impossível. Quando pela primeira vez segurou Toby para pô-lo na cadeira de rodas, ficou assustada com seu pouco peso. Levou-o para baixo no elevador que fora instalado na casa e começou a exercitá-lo na piscina, como vira fazer o fisioterapeuta. Mas o que acontecia agora era diferente: enquanto o fisioterapeuta se mostrava delicado e incentivador. Jill era severa e implacável. Quando Toby tentava falar, querendo mostrar que estava cansado e não aguentava mais, Jill dizia:
─ Ainda não acabou. Mais uma vez. Por mim, Toby.
E obrigava-o a continuar.
E outra vez, e mais outra, até que ele parava, chorando silencosamente de exaustão.
À tarde, Jill tentava ensinar Toby a falar.
─ Oo... oooooooooooo.
─ Aa... aaaaaaaaaaa.
─ Não! Oooooooooooo. Faça um círculo com os lábios, Toby. Faça com que seus lábios lhe obedeçam. Oooooooooooo.
─ Aa... aaaaaaaaaaaa.
─ Não, droga! Você vai falar! Agora, faça: Oooooooooooo!
E ele tentava mais uma vez.
Jill o alimentava todas as noites e depois se deitava a seu lado, enlaçando-o. Fazia as mãos inertes deslizarem sobre seu corpo, lentamente, passando pelos seios, pela fenda macia entre suas pernas.
─ Sinta isso, Toby ─ murmurava. ─ É tudo seu, querido. Pertence a você. Eu quero você. Quero que você fique bom para podermos fazer amor novamente. Quero que você trepe em mim, Toby.
Ele olhava para Jill com aqueles olhos vivos e brilhantes, emitindo sons incoerentes e lamuriosos.
─ Logo, Toby, logo.
Jill era incansável. Dispensou os empregados porque não queria ninguém por perto e daí em diante passou a cozinhar; fazia todas as compras por telefone e jamais saía de casa. No início andava muito ocupada atendendo aos telefonemas, mas logo eles começaram a diminuir e finalmente cessaram. Os noticiários deixaram de informar sobre o estado de Toby Temple. O mundo sabia que ele estava morrendo. Era apenas uma questão de tempo.
Mas Jill não deixaria que Toby morresse. Se isso acontecesse, ela morreria com ele.
Os dias se fundiam numa rotina penosa e interminável. Jill se levantava às seis da manhã. Primeiro, limpava Toby, cuja incontinência era total. Embora usasse sonda e fraldas, sujava-se durante a noite, sendo preciso às vezes trocar a roupa da cama e seu pijama. O cheiro no quarto era quase insuportável. Jill enchia uma bacia de água morna, pegava uma esponja e um pano macio e limpava fezes e urina do corpo de Toby. Depois secava-o, punha-lhe talco, barbeava-o e penteava-lhe o cabelo.
─ Pronto. Você está lindo. Seus fãs deveriam vê-lo agora. Mas logo o verão. Vão brigar por uma chance de vê-lo. O presidente estará presente, todo mundo estará lá para ver Toby Temple.
Em seguida, ela preparava o café da manhã. Fazia mingau de aveia, creme de trigo e ovos mexidos, comida que podia dar-lhe com uma colher. Alimentava-o como se fosse um bebê, falando o tempo todo, prometendo-lhe que iria ficar bom.
─ Você é Toby Temple ─ repetia ela. ─ Todo mundo gosta de você, todo mundo quer vê-lo de volta. Seus fãs estão lá fora, esperando por você, Toby; você tem de ficar bom, por eles.
E tinha início mais um longo e penoso dia.
Ela levava seu corpo inútil e aleijado até a piscina na cadeira de rodas, para os exercícios. Depois disso, fazia-lhe massagens e ensinava-o a falar. Nessa altura era hora de preparar o almoço, após o qual começava tudo de novo. Todo o tempo, Jill repetia para o marido quão maravilhoso ele era, o quanto o amava. Ele era Toby Temple e o mundo aguardava seu regresso. À noite, ela pegava um dos álbuns de recortes e mostrava-o a Toby.
─ Aqui estamos nós com a rainha. Lembra-se dos aplausos naquela noite? É assim que vai ser outra vez. Você será maior do que nunca, Toby, maior que nunca.
Punha-o para dormir e arrastava-se para a cama portátil que colocara ao lado dele, exausta. No meio da noite, acordava com o mau cheiro das fezes de Toby na cama. Levantava-se penosamente, trocava a fralda de Toby e limpava-o. Já então era hora de começar a preparar o café da manhã e dar início a um outro dia.
E mais outro, numa infinita sucessão de dias.
A cada dia Jill forçava Toby um pouco mais, um pouco além. Seus nervos estavam tão abalados que, quando achava que ele não estava se esforçando, dava-lhe um tapa no rosto.
─ Vamos derrotá-los ─ dizia com raiva. ─ Você vai ficar bom.
O corpo de Jill estava exausto da massacrante rotina à qual estava se submetendo, mas quando se deitava à noite o sono lhe escapava. Havia muitas visões rodopiando em sua cabeça, como cenas de filmes antigos. Ela e Toby cercados por repórteres no Festival de Cannes... O presidente em sua casa em Palm Springs, elogiando Jill por sua beleza... Fãs empurrando-se em torno deles numa pré-estréia... O casal de ouro. Toby levantando-se para receber a medalha e caindo... caindo... E finalmente ela adormecia.
Às vezes Jill despertava com uma súbita e violenta dor de cabeça que não passava. Ficava deitada na solidão do quarto escuro, lutando contra a dor, até que o sol nascia e chegava a hora dolorosa de se levantar.
E tudo começava de novo. Era como se ela e Toby fossem os únicos e solitários sobreviventes de algum holocausto há muito esquecido. O mundo de Jill se reduzira às dimensões da casa, dos aposentos desse homem. Ela se movia incansavelmente desde o amanhecer até depois da meia-noite.
E guiava Toby, seu Toby prisioneiro do inferno, em um mundo que se limitava a ela, a quem ele devia obedecer cegamente.
As semanas, terríveis e dolorosas, se sucederam e transformaram-se em meses. Agora, Toby chorava quando via Jiull aproximar-se dele, pois sabia que ia ser castigado. A cada dia ela se tornava mais implacável; forçava seus membros frouxos e inúteis a se moverem, até que o sofrimento se tornasse insuportáveis. Toby implorava, com horríveis sons gorgolejantes, que ela parasse, mas Jill dizia:
─ Ainda não. Não enquanto você não voltar a ser um homem, até mostrarmos a eles.
Continuava a torcer-lhe os músculos exaustos. Ele era um bebê crescido, desprotegido, um vegetal, um nada. Mas quando o olhava, Jill o via tal como iria ser e afirmava:
─ Você vai andar!
Fazia-o levantar-se e segurava-o, ao mesmo tempo forçando uma perna após a outra, movendo-o numa grotesca paródia do caminhar, como uma marionete bêbada e desengonçada.
Suas dores de cabeça haviam se tornado mais frequentes, geradas por luzes brilhantes, um som forte ou um movimento súbito. "Tenho de ir ao médico", pensou ela. "Mais tarde, quando Toby estiver bom." Agora não havia tempo nem espaço para ela própria.
Só para Toby.
Era como se Jill estivesse possuída. Suas roupas estavam largas, mas não imaginava quanto peso teria perdido ou como estaria sua aparência. Seu rosto tornara-se magro e abatido, os olhos fundos. O outrora maravilhoso cabelo negro estava sem brilho e oleoso. Ela não o notava, nem lhe teria dado importância.
Um dia, Jill achou um telegrama embaixo da porta, pedindo-lhe que telefonasse para o Dr. Kaplan. Não havia tempo, era preciso manter a rotina.
Os dias e noites transformaram-se numa indistinta visão kafkiana: levar Toby, fazer exercícios, trocar Toby, barbeá-lo, alimentá-lo.
E depois começar tudo de novo.
Ela arranjou um andador para Toby; amarrou-lhe os dedos na barra e movia-lhe as pernas, segurando-o, tentando mostrar-lhe os movimentos, fazendo-o andar de um lado para outro pelo quarto até que ela adormecia de pé, sem saber mais onde estava ou quem era, ou o que fazia.
Então, um dia, Jill compreendeu que tudo terminara.
Havia passado metade da noite acordada com Toby e finalmente fora para seu próprio quarto, onde adormecera pouco antes do amanhecer. Ao despertar, Jill viu que o sol estava alto, dormira até depois do meio-dia. Toby não fora alimentado, lavado nem trocado; lá estaria na cama, desamparado, à espera dela, provavelmente em pânico. Jill tentou levantar-se e percebeu que não podia se mover. Estava tomada por um cansaço tão infinito e profundo que seu corpo exausto já não lhe obedecia mais. Ficou deitada, sem ajuda, compreendendo que havia fracassado, que tudo fora em vão, todos os dias e noites de inferno, traíra, tal como acontecera a Toby. Jill não tinha mais força e isso lhe deu vontade de chorar. Estava tudo acabado.
Ouviu um som na porta do quarto e levantou os olhos: Toby estava lá, de pé, sozinho, os braços trêmulos segurando o andador, a boca emitindo incompreensíveis ruídos, num esforço para dizer algo.
─ Jiiiiigh... Jiiiiigh...
Ele estava tentando dizer "Jill". Ela se pôs a soluçar incontrolavelmente, sem poder parar.
A partir desse dia, a melhora de Toby foi espetacular. Pela primeira vez, ele compreendeu que iria ficar bom; já não reclamava quando Jill o impelia além dos limites de sua resistência, gostava disso. Queria ficar bom para ela. Ela se transformara numa deusa; se antes a amava, agora a adorava.
E algo acontecera a Jill. Antes, lutara por sua própria vida; Toby era apenas o instrumento que era obrigada a usar. Mas de algum modo isso mudara; era como ele se houvesse tornado parte dela. Os dois eram um só corpo, uma só mente, uma só alma, obcecados pelo mesmo propósito. Haviam atravessado uma terrível purgação, a vida dele estivera nas mãos dela, que lhe dera alimento e forças, que a salvara, e daí nascera uma espécie de amor. Toby pertencia a Jill, tanto quanto ela pertencia a ele.
Jill modificou a dieta de Toby, de modo que este começou a recuperar o peso perdido. Todos os dias ficava algum tempo ao sol e dava longos passeios pelos jardins, primeiro com o andador e depois com uma bengala, desenvolvendo as forças. Quando finalmente Toby conseguiu andar sem qualquer apoio, os dois celebraram com um jantar à luz de velas, na sala.
Finalmente, Jill achou que Toby estava pronto para ser visto. Telefonou para o Dr. Kaplan e imediatamente a enfermeira lhe passou o aparelho.
─ Jill! Fiquei preocupadíssimo. Tentei telefonar para você mas ninguém atendia nunca. Mandei um telegrama e, quando não recebi resposta, pensei que você tivesse levado Toby para algum lugar. Ele está... ele...
─ Venha ver com seus próprios olhos, Eli.
O Dr. Kaplan não pôde disfarçar seu espanto.
─ É inacreditável ─ disse a Jill. ─ É... parece um milagre.
─ É um milagre ─ respondeu Jill. "Só que nessa vida a gente faz os próprios milagres, pois Deus está ocupado com outras coisas."
─ As pessoas ainda me procuram perguntando por Toby ─ disse o Dr. Kaplan. ─ Parece que ninguém conseguia se comunicar com você. Sam Winters telefona no mínimo uma vez por semana e Clifton Lawrence também tem perguntado por ele.
Jill não deu importância a Clifton Lawrence. Mas Sam Winters! Isso era bom. Tinha de descobrir um meio de dizer ao mundo que Toby Temple ainda era um super astro, que os dois ainda eram o casal de ouro.
Na manhã seguinte, telefonou para Sam Winters e perguntou-lhe se gostaria de ir visitar Toby. Sam chegou uma hora depois; Jill abriu a porta da frente para recebê-lo e Sam tentou disfarçar o choque que teve com o aspecto dela. Parecia dez anos mais velha em comparação com a última vez que a vira; seus olhos eram dois fundos poços castanhos e o rosto estava marcado por linhas profundas. Emagrecera tanto que parecia quase esquelética.
─ Obrigada por ter vindo, Sam. Toby ficará satisfeito em vê-lo.
Sam preparava-se para encontrá-lo na cama, uma sombra do homem que fora, mas teve uma surpresa espantosa. Toby estava deitado numa almofada na beira da piscina e ao ver Sam levantou-se, com certa lentidão, mas firmemente, e seu aperto de mão foi seguro. Estava bronzeado e parecia saudável, melhor do que antes do derrame. Era como se por alguma alquimia misteriosa a saúde e a vitalidade de Jill tivesse fluído para o corpo de Toby e a doença que o devastara a houvesse atingido também.
─ É bom ver você, Sam.
A fala de Toby estava mais lenta e precisa que antes, mas era clara e forte. Não havia sinal de paralisia sobre a qual Sam ouvira falar. Lá estava o mesmo rosto de garoto, com os brilhantes olhos azuis. Sam abraçou Toby e disse:
─ Jesus, você nos deu um susto.
Toby riu e falou:
─ Não precisa me chamar de "Jesus" quando estivermos a sós.
Sam observou Toby com mais atenção, maravilhado.
─ Honestamente, não posso acreditar. Diabos, você está mais jovem. A cidade inteira estava tomando providência para o enterro.
─ Só passando por cima do meu cadáver ─ sorriu Toby.
─ É fantástico o que os médicos de hoje... ─ começou Sam.
─ Os médicos, não. ─ Toby voltou-se para Jill com seus olhos brilhantes de pura adoração. ─ Quer saber quem é o responsável? Jill. Ela sozinha. Com as próprias mãos. Botou todo mundo para fora e me pôs de novo em pé.
Sam lançou um olhar para Jill, espantado. Nunca lhe parecera o tipo de moça capaz de um ato de tamanho desprendimento. Talvez a houvesse julgado mal.
─ Quais são seus planos? ─ perguntou a Toby. ─ Suponho que pretenda descansar e...
─ Ele vai voltar ao trabalho ─ interrompeu Jill. ─ Toby é talentoso demais para ficar sentado sem fazer nada.
─ Estou ansioso para trabalhar ─ concordou Toby.
─ Talvez Sam tenha um projeto para você ─ sugeriu Jill.
Ambos o observavam. Sam não queria desencorajar Toby, mas também não queria alimentar falsas esperanças. Não era possível fazer um filme com determinado astro a menos que ele estivesse segurado e nenhuma companhia de seguros cobriria Toby Temple.
─ Não há nada disponível no momento ─ disse Sam cautelosamente. ─ Mas é claro que ficarei de olhos abertos.
─ Você está com medo de usá-lo, não está?
Era como se ela estivesse lendo seus pensamentos.
─ É claro que não.
Mas ambos sabiam que ele estava mentindo.
Ninguém em Hollywood se arriscaria a usar Toby Temple outra vez.
Toby e Jill assistiam a um jovem comediante na televisão.
─ Ele é pobre ─ resmungou Toby. ─ Droga, gostaria de voltar à televisão. Talvez devesse arranjar um agente. Alguém que pudesse andar por aí e ver o que está se passando.
─ Não! ─ O tom de Jill foi firme. ─ Não vamos deixar ninguém vender você. Você não é nenhum miserável procurando emprego. Você é Toby Temple. Vamos fazer com que venham até você.
Ele sorriu com amargura e disse:
─ Eles não estão esmurrando as portas, querida.
─ Mas esmurrarão ─ prometeu ela. ─ Eles não sabem como você está. E está melhor do que nunca, temos só que mostrar a eles.
─ Talvez eu devesse posar nu para uma dessas revistas.
Jill não prestara atenção.
─ Tenho uma idéia ─ disse ela. ─ Um one-man show.
─ Hein?
─ Um one-man show. ─ Havia um entusiasmo crescente em sua voz. ─ Vou programar você para o Huntington Hartford Theatre. Todo mundo em Hollywood irá. E depois disso, começarão a esmurrar as portas!
E todo mundo foi: produtores, diretores, estrelas, críticos, todo mundo que era alguém no show business. O teatro da Vine Street há muito que estava com a lotação esgotada e centenas de pessoas não conseguiram entrar. Havia uma multidão que aplaudia do lado de fora quando Toby e Jill chegaram numa limusine com chofer. Era seu Toby Temple. Voltara para eles, renascido, e o adoravam mais do que nunca.
O público que enchia o teatro estava lá em parte por respeito a um homem que já fora grande, mas a razão principal era a curiosidade. Estavam presentes para pagar o tributo final a um herói agonizante, a uma estrela apagada.
A própria Jill planejara o show. Procurara O'Hanlon e Rainger e estes escreveram um material sensacional, que começava com um monólogo criticando a cidade por enterrar Toby enquanto ele ainda vivia. ]Jill procurara uma equipe de compositores premiada com três Oscars, que jamais havia composto material especial para alguém. Mas Jill disse:
─ Toby insiste em que vocês são os únicos compositores do mundo que...
Dick Landry, o diretor, voou imediatamente de Londres para a montagem do show.
Jill reunira os maiores talentos que pôde encontrar para atuarem como coadjuvantes de Toby, mas de fato tudo dependeria dele próprio. E ele estaria sozinho no palco.
O momento finalmente chegou. As luzes se atenuaram e o teatro se encheu daquele silêncio expectante que precede o levantamento do pano, prece silenciosa a implorar que naquela noite se fizesse a mágica.
E a mágica se fez.
Quando Toby Temple caminhou para o palco, seu andar firme e seguro, o familiar sorriso travesso iluminando aquele rosto de garoto, houve um momento de silêncio e depois uma selvagem explosão de aplausos, gritos, todos de pé numa ovação que sacudiu o teatro por uns bons cinco minutos.
Toby ficou parado, esperando que cessasse o pandemónio, e quando finalmente o teatro se acalmou, disse:
─ E isso é recepção que se preze?
E a assistência gargalhou.
Toby foi sensacional. Contou histórias, cantou e dançou, agrediu todo mundo e foi como se nunca se tivesse afastado. O público mostrou-se insaciável. Ainda era um superastro, mas agora transformara-se em algo mais: era uma lenda viva.
A crítica do Variety disse no dia seguinte: "O público compareceu para enterrar Toby Temple, mas ficou para elogiá-lo e aclamá-lo. E como mereceu! Não há ninguém no show business que tenha a mágica do velho mestre. Foi uma noite de ovações e ninguém que tenha tido a sorte de estar presente poderá esquecer aquele memorável...”
A crítica do Hollywood Reporter disse: "A plateia foi presenciar o retorno de um grande astro, mas Toby Temple provou que jamais se ausentara".
Todas as outras críticas obedeceram ao mesmo tom. A partir desse momento, os telefones de Toby não pararam de tocar e houve uma avalanche de telegramas contendo convites.
Estavam esmurrando as portas.
Toby levou seu show a Chicago, Washington e Nova York; onde quer que fosse, era uma sensação. O interesse por ele era agora maior do que nunca; numa onda de afetuosa nostalgia, velhos filmes seus foram exibidos em cinemas de arte e universidades. As emissoras de televisão promoveram uma Semana Toby Temple, levando ao ar seus antigos shows.
Apareceram os bonecos Toby Temple, os jogos Toby Temple, os quebra-cabeças e as revistas humorísticas Toby Temple, as camisetas Toby Temple. Vieram os comerciais de cigarros, café e dentifricos.
Toby fez uma aparição num filme musical da Universal e foi contratado para participar como convidado de todos os grandes espetáculos de variedades. As redes de televisão puseram em ação equipes de redatores, numa competição para a criação de um novo programa para Toby Temple.
O sol voltara a brilhar, e brilhava para Jill.
Ressurgiam as festas, recepções, este embaixador, aquele senador, exibições privadas e... Todos os solicitavam, para tudo. Foram homenageados com um jantar na Casa Branca, honra geralmente reservada a chefes de Estados. Eram aplaudidos aonde quer que fossem.
Mas agora Jill era aplaudida tanto quanto Toby. A magnífica história de sua façanha, cuidar sozinha de Toby até curá-lo, contrariando todas as expectativas, excitara a imaginação do mundo. A imprensa passou a celebrar a história de amor do século: a revista Time pôs os dois na capa e a matéria correspondente continha um belo tributo a Jill.
Foi filmado um contrato de cinco milhões de dólares para Toby estrelar um novo programa semanal de televisão, a começar em setembro, ou seja, dentro de doze semanas apenas.
─ Vamos para Palm Springs e você poderá descansar até setembro ─ disse Jill.
Toby abanou a cabeça:
─ Você passou muito tempo enclausurada. Vamos viver um pouco. ─ Enlaçou-a e acrescentou: ─ Não sou muito bom com palavras, querida, a não ser para contar piadas. Não sei como lhe dizer o que sinto por você. Eu... só quero que você saiba que minha vida começou no dia em que a conheci.
E afastou-se abruptamente para que Jill não visse as lágrimas em seus olhos.
Toby levou seu one-man show a Londres, Paris e... o maior lance de todos, Moscou. Todo mundo brigava para contratá-lo. Transformara-se num grande ídolo da Europa, tanto quanto o era na América.
Estavam a bordo do Jill, num dia de sol brilhante, a caminho de Catalina. Havia uma dúzia de convidados no barco, dentre os quais Sam Winters, além de O'Hanlon e Rainger, que havia sido escolhidos para chefiar a equipe de redator do novo programa de televisão. Estavam todos no salão, jogando e conversando. Jill olhou em volta e reparou na ausência de Toby. Saiu para o convés.
Ele estava de pé na balaustrada, olhando para o mar. Jill se aproximou e perguntou:
─ Você está se sentindo bem?
─ Estou apenas olhando a água, querida.
─ É lindo, não?
─ Lindo para os tubarões ─ ele estremeceu. ─ Não é assim que eu quero morrer. Sempre tive pavor de afogamento.
Ela pôs sua mão na dele.
─ Que é que o está preocupando?
Toby olhou para ela.
─ Acho que não quero morrer. Tenho medo do que há do outro lado. Aqui, sou um homem importante, todo mundo conhece Toby Temple. Mas lá...? Sabe como acho que seja o inferno? Um lugar onde não há público.
O Friars Club promoveu um jantar tendo Toby Temple como convidado de honra. Havia uma dúzia de grandes cômicos no palco, ao lado de Toby, Jill, Sam Winters e o diretor da rede de televisão com a qual ele firmara contrato. Solicitaram a Jill que se levantasse para ser cumprimentada. Aplaudiram-na de pé.
"Estão me aplaudindo", pensou ela. "Não a Toby. A mim!"
O mestre-de-cerimónias era o apresentador do famoso programa de entrevistas na televisão.
─ Não sei como expressar minha felicidade por ver Toby aqui ─ disse ele. ─ Porque se hoje à noite não o estivéssemos homenageando, este banquete estaria sendo realizado no cemitério de Forest Lawn.
Risos.
─ E, podem acreditar, a comida lá é horrível. Vocês já comeram no Forest Lawn? Eles servem restos da Última Ceia.
Risos.
Ele se voltou para Toby.
─ Estamos orgulhosos de você, Toby. Estou sendo franco. Sei que você foi solicitado a doar parte de seu corpo à ciência, vão colocá-lo num vidro na Faculdade de Medicina de Harvard. O único problema é que até agora ainda não encontraram um vidro suficientemente grande para contê-lo.
Gargalhadas.
Quando Toby se levantou para revidar, superou-os todos.
Todos acharam que aquele foi o melhor jantar já promovido pelo Friars.
Naquela noite, Clifton Lawrence estava na plateia.
Sentara-se numa mesa no fundo da sala, perto da cozinha, junto ao pessoal sem importância. Até mesmo para conseguir essa mesa, fora obrigado a recorrer a velhas amizades. Desde que Toby Temple o despedira, Clifton Lawrence passara a usar o distintivo de perdedor: tentara formar uma sociedade com uma grande agência, mas, sem clientes, nada tinha a oferecer. Em seguida, procurara as agências menores, mas estas não estavam interessadas num "ex" de meia-idade; queriam jovens agressivos. Finalmente, Clifton se conformara com um cargo assalariado numa pequena agência nova. Ganhava por semana menos do que gastara certa noite no Romanoff.
Lembrava-se de seu primeiro dia nessa agência. A firma pertencia a três agressivos jovens ─ não, garotos, ─ todos com menos de trinta anos. Seus clientes eram estrelas de rock. Dois dos agentes usavam barba; todos usavam jeans, camisas esporte e tênis sem meias. Fizeram com que Clifton se sentisse um velho de mil anos de idade. Falavam uma língua que ele não entendia, chamavam-no de "Papai" e "Velho", e Clifton pensou no respeito que outrora despertara nessa cidade e teve vontade de chorar.
Aquele homem, outrora animado e alegre, era agora uma pessoa abatida e amargurada. Toby Temple fora sua vida e Clifton falava compulsivamente sobre aqueles dias. Só pensava nisso. Nisso e em Jill. Culpava-a por tudo que lhe acontecera. Toby não era o responsável; fora influenciado por aquela cadela. Ah, como Clifton odiava Jill.
Estava sentado no fundo da sala, observando a multidão que aplaudia Jill, quando um dos homens na mesa disse:
─ O Toby é mesmo um bastardo de sorte. Eu bem que gostaria de provar daquilo. Ela é genial na cama.
─ É? ─ perguntou alguém cinicamente. ─ Como é que você sabe?
─ Ela trabalha naquele filme pornô que está no Pussycat Theatre. Diabos, eu pensei que ela ia arrancar o fígado do cara de tanto sugá-lo.
Clifton de repente sentiu a boca tão seca que mal pôde proferir as palavras.
─ Você... você tem certeza de que era ela? ─ perguntou.
O estranho se voltou para ele.
─ Tenho, tenho certeza, sim. Ela usou um nome diferente, Josephine qualquer coisa. Um nome polaco doido.
O homem encarou-o e falou:
─ Ei! Você não era Clifton Lawrence?
Existe uma área no Santa Monica Boulevard, entre Fairfax e La Cienega, que está sob jurisdição municipal. Parte de uma ilha cercada pela cidade de Los Angeles, a área opera sob leis municipais menos severas que as da cidade. Num conjunto de seis quarteirões, há quatro cinemas que só exibem pornografia pesada, meia dúzia de livrarias onde os compradores podem ocupar cabines privadas e assistir a filmes através de visores individuais e uma dúzia de salões de massagens equipados com jovens adolescentes, especialistas em tudo menos massagem. O Pussycat Theatre fica no meio de tudo isso.
Havia talvez cerca de duas dúzias de pessoas na sala escura, todos homens, com excepção de duas mulheres de mãos dadas.
Clifton examinou a assistência e ficou imaginando o que impeliria essas pessoas a cavernas escuras no meio de um dia de sol, assistindo, durante horas, a outras pessoas fornicando num filme.
Começou a principal atração e Clifton esqueceu tudo, menos o que estava na tela. Inclinou-se para a frente em sua cadeira, concentrando-se nos rostos das atrizes. A história era sobre um jovem professor universitário que levava as alunas para seu quarto, para aulas noturnas. Todas eram jovens, espantosamente atraentes e incrivelmente dotadas. Faziam uma série de exercícios sexuais, orais, vaginais e anais, até o professor ficar satisfeito com o desempenho.
Mas nenhuma das garotas era Jill. "Ela tem de aparecer", pensou Clifton. Essa era a única chance que teria de se vingar do que ela lhe fizera. Faria com que Toby visse o filme. Isso o magoaria, mas ele acabaria superado. Jill seria destruída. Quando Toby ficasse sabendo sobre o tipo de prostituta que fizera sua esposa, chutá-la-ia para sempre. Jill tinha de estar nesse filme.
E de repente, lá estava ela, na ampla tela, em cores maravilhosas, gloriosas, reais. Havia mudado muito; agora estava mais magra, mais bonita e sofisticada. Mas era Jill. Clifton ficou lá, contemplando a cena, deliciando-se, deleitando seus sentidos, inundado por uma eletrizante sensação de triunfo e vingança.
Esperou até aparecer os créditos e lá estava, Josephine Czinski. Levantou-se e dirigiu-se à cabine de projeção. Lá encontrou um homem em mangas de camisa, lendo uma publicação turística, que levantou os olhos quando Clifton entrou e disse:
─ Não é permitido entrar aqui, amigo.
─ Quero comprar uma cópia desse filme.
O homem abanou a cabeça.
─ Não está à venda ─ e voltou a ler.
─ Dou-lhe cem dólares para me fazer uma cópia. Ninguém vai ficar sabendo.
O homem nem se dignou a levantar os olhos.
─ Duzentos dólares ─ disse Clifton. O operador virou uma página.
─ Trezentos.
Ele ergueu a cabeça e examinou Clifton.
─ Em dinheiro?
─ Em dinheiro.
Às dez horas da manhã seguinte Clifton chegou à casa de Toby Temple com uma lata de filme debaixo do braço. "Não, filme não", pensou alegremente. "Dinamite. O bastante para mandar Jill Castle para o inferno."
A porta foi aberta por um mordomo inglês que Clifton jamais vira antes.
─ Diga ao Sr. Temple que Clifton Lawrence quer vê-lo.
─ Sinto muito, senhor. O Sr. Temple não está.
─ Eu espero ─ disse Clifton com firmeza.
─ Receio que não seja possível ─ replicou o mordomo. ─ O Sr. e a Sra. Temple viajaram para a Europa esta manhã.
32
A Europa foi uma sucessão de triunfos.
Na noite da estréia de Toby no Palladium, em Londres, a Oxford Street ficou tomada por uma multidão que tentava desesperadamente ver Toby e Jill. A polícia metropolitana isolou toda a área em torno da Argyll Street. Quando a multidão se descontrolou, a polícia foi chamada às pressas para ajudar. Precisamente às oito horas a família real chegou e o espetáculo começou.
Toby superou as mais inusitadas expectativas. Com o rosto irradiando inocência, fez ataques brilhantes ao governo britânico e sua antiquada presunção. Explicou como conseguiram tornar-se menos poderosos que Uganda e até que ponto o mereceram. Todos rolaram de rir, pois sabiam que Toby Temple estava brincando. Nada daquilo era sério. Toby os amava.
Tanto quanto eles o amavam.
A recepção em Paris foi ainda mais tumultuada. Jill e Toby hospedaram-se no palácio presidencial e passearam pela cidade numa limusine oficial. Estavam na primeira página dos jornais todos os dias e quando foram ao teatro foi preciso pedir reforço à polícia para conter a multidão. Terminada a apresentação, o casal se dirigia, sob escolta, para o carro, quando de súbito a multidão rompeu a guarda da polícia e centenas de franceses cercavam os dois, gritando:
"Toby, Toby... on veut Toby!"
A maré humana segurava canetas e livros de autógrafos, empurrando-se para tocar o grande Toby Temple e sua maravilhosa Jill. A polícia não teve condição de detê-los; a multidão afastou os polícias, despedaçando a roupa de Toby, lutando por uma recordação. Toby e Jill quase foram esmagados pelos corpos que se comprimiam, mas Jill não teve medo. A agitação era um tributo a ela; seu esforço fora por eles, ela lhes devolvera Toby.
A última parada era Moscou.
Moscou em junho é uma das cidades mais encantadoras do mundo. Árvores graciosas, berezka branca e lipa em canteiros amarelos enfeitam avenidas onde as pessoas passeiam ao sol. É a estação de turismo. Com exceção dos visitantes oficiais, todos os turistas que vão à Rússia ficam a cargo da Intourist, órgão do governo responsável pelo transporte, hotéis e passeios programados. Mas Toby e Jill foram recebidos no Aeroporto Internacional de Sheremetyevo por uma grande limusine e conduzidos ao Metropoles Hotel, geralmente reservado para os VIPs dos países satélites. A suíte fora provida de vodca Stolichnaya e caviar negro.
O General Iúri Romanovitch, alto oficial do partido, veio ao hotel dar-lhes as boas-vindas.
─ Não exibimos muitos filmes americanos na Rússia, Sr. Temple, mas os seus foram vistos várias vezes. O povo russo acha que seu talento transcende todas as fronteiras.
Toby programara três apresentações no Teatro Bolchói. Na noite da estréia, Jill participou da ovação. Por causa da barreira da língua, Toby usou quase que exclusivamente pantomima e a audiência adorou. Fez uma crítica falando em seu arremedo de russo e o som do riso e dos aplausos ecoou pelo enorme teatro como uma bênção de amor.
Durante os dois dias seguintes, o General Romanóvitch acompanhou Toby e Jill em excursões turísticas particulares. Foram ao Parque Górky, andaram na enorme roda-gigante e visitaram a histórica Catedral de São Basílio. Foram levados ao Circo Estatal de Moscou e homenageados com um banquete em Aragvi, onde provaram o caviar dourado, a mais rara das oito espécies de caviar. os zakuchki, que significa, literalmente, "bocadinhos", e o pachteet, patê delicado que é servido com torradas. Como sobremesa, tiveram yoblotchnaya, o delicioso doce de maçã com molho de abricó.
E mais turismo. Visitaram o Museu de Arte Púchkin, o Mausoléu de Lênin e a Detsky Mir, encantadora loja infantil de Moscou.
Foram levados a lugares desconhecidos pela maioria dos russos. À Rua Granovsko, cheia de automóveis Chaikas e Volgas, todos com motorista; lá, por trás de uma porta simples com a tabuleta onde se lia Departamento de passes especiais, foram conduzidos a uma loja atulhada de luxuosos produtos alimentícios importados de toda a parte do mundo, onde a Nachalstvo, a elite da sociedade russa, faz suas privilegiadas compras.
Visitaram uma luxuosa dacha, onde se exibiam filmes estrangeiros numa sala privada para uns poucos privilegiados. Foi uma visão fascinante do Estado do Povo.
Na tarde do dia em que Toby faria sua última apresentação, o casal se preparava para ir fazer compras quando Toby disse:
─ Por que não vai sozinha, querida? Acho que vou cochilar um pouco.
Jill estudou-o por um momento.
─ Você está se sentindo bem?
─ Otimamente. Estou só um pouco cansado. Vá e compre Moscou inteira.
Ela hesitou. Toby estava pálido. Quando essa viagem chegasse ao fim, faria com que ele tivesse um bom descanso antes de iniciar o novo show na televisão.
─ Está bem ─ concordou. ─ Durma um pouco.
Jill atravessava o saguão em direção à saída quando ouviu uma voz masculina que chamava: "Josephine!" Ao se voltar já sabia quem era e numa fração de segundo a mágica tornou a acontecer.
David Kenyon caminhava em sua direção, sorrindo e dizendo:
─ Estou tão feliz em vê-la.
Jill sentiu como se seu coração fosse parar. "Ele é o único homem que me faz sentir-me dessa maneira", pensou.
─ Toma um drinque comigo? ─ perguntou David.
─ Sim ─ disse ela.
O bar do hotel era grande e estava cheio, mas conseguiram encontrar uma mesa relativamente tranquila num dos cantos, onde poderiam conversar.
─ Que está fazendo em Moscou? ─ perguntou Jill.
─ Vim a pedido do governo. Estamos tentando estabelecer um acordo sobre petróleo.
Um garção entediado aproximou-se da mesa e anotou os pedidos de drinques.
─ Como vai Cissy?
David olhou-a por um momento e então falou:
─ Divorciamo-nos há alguns anos.
E mudou de assunto deliberadamente.
─ Acompanhei tudo que tem acontecido com você. Sou fã de Toby Temple desde que era garoto. ─ De algum modo, aquilo fazia com que Toby parecesse muito velho. ─ Fico feliz em saber que ele está recuperado. Quando li sobre o derrame, fiquei preocupado com você.
Nos olhos dele havia uma expressão da qual Jill se lembrava há muito tempo, um desejo, uma necessidade.
─ Achei Toby sensacional em Hollywood e em Londres ─ dizia David.
─ Você estava lá? ─ perguntou Jill, surpresa.
─ Estava. ─ E acrescentou rapidamente: ─ Tinha alguns negócios a tratar.
─ Por que não veio aos bastidores?
Ele hesitou.
─ Não queria forçar minha presença a você. Não sabia se quereria me ver.
Os drinques chegaram em copos pesados e curtos.
─ A você e Toby ─ disse David.
E havia algo em sua maneira de falar, um substrato de tristeza, uma carência...
─ Você costuma ficar no Metrópole? ─ perguntou Jill.
─ Não. Para falar a verdade tive um trabalhão para arranjar... ─ Percebera a armadilha tarde demais e sorriu com amargura: ─ Sabia que você estaria aqui. Deveria ter deixado Moscou há cinco dias atrás, mas não parti, na esperança de encontrar você.
─ Por quê, David?
Ele custou muito a responder. Finalmente falou:
─ É tarde demais agora, mas de qualquer modo quero contar-lhe. Acho que você tem o direito de saber.
E contou sobre seu casamento com Cissy, como esta o enganara, a tentativa de suicídio e sobre a noite em que convidara Jill a encontrá-lo no lago. Foi um desabafo de emoção que a deixou perturbada.
─ Sempre amei você.
Ela ficou escutando, uma sensação de felicidade percorrendo-lhe o corpo como um vinho cálido. Era como a concretização de um sonho encantador, era tudo que ela sempre quisera, sempre desejara. Jill examinou o homem à sua frente e recordou suas mãos fortes a tocá-la, a potência de seu corpo ávido, e sentiu0se estremecer. Mas Toby se tornara parte dela, era sua própria carne, enquanto David...
Uma voz a seu lado falou:
─ Sra. Temple! Procuramo-la por toda a parte! ─ Era o General Romanóvitch.
Jill olhou para David.
─ Telefone-me pela manhã.
A última apresentação de Toby no Teatro Bolshoi foi mais fantástica do que tudo jamais visto lá. O público jogou flores, aplaudiu, bateu com os pés no chão, recusou-se a sair. Foi o clímax perfeito para a série de triunfos de Toby. Uma grande festa estava programada para depois do espetáculo, mas Toby disse a Jill:
─ Estou estourando, deusa. Por que você não vai? Voltarei para o hotel e dormirei um pouco.
Jill foi sozinha à festa, mas era como se David estivesse a seu lado o tempo todo. Ela conversou com os anfitriões, dançou e agradeceu as homenagens que lhe foram prestadas, mas sua mente não parava de reviver o encontro com David. "Casei com a moça errada. Cissy e eu nos divorciamos. Nunca deixei de amar você."
Às duas da manhã o acompanhante de Jill deixou-a no hotel. Ela entrou na suíte e encontrou Toby caído no chão no meio do quarto, inconsciente, a mão direita estendida em direção ao telefone.
Toby Temple foi levado às presas numa ambulância para a Policlínica Diplomática, no número 3 da Rua Svertchkov. Três grandes especialistas foram chamados no meio da noite para examiná-lo. Todos foram solidários com Jill; o diretor do hospital acompanhou-a a uma sala privada, onde ela ficou à espera de notícias. "É como uma reprise", pensou Jill. "Tudo isso já aconteceu antes." Parecia vago, irreal.
Horas mais tarde a porta da sala se abriu e um russo baixo e gordo entrou. Usava um terno que lhe caía mal e parecia um bombeiro mal sucedido.
─ Sou o Dr. Durov ─ disse. ─ Estou encarregado do caso de seu marido.
─ Quero saber como ele está.
─ Sente-se, Sra. Temple, por favor.
Jill nem mesmo reparara que havia levantado.
─ Diga-me!
─ Seu marido sofreu um derrame; em termos técnicos, uma trombose cerebral.
─ É muito grave?
─ É o tipo mais ─ como se diz? ─ mais danoso, mais perigoso. Se ele sobreviver ─ e é cedo para sabermos, ─ jamais voltará a andar ou falar. Sua mente está bem, mas ele ficou completamente paralisado.
Antes de Jill deixar Moscou, David telefonou-lhe.
─ Nem sei como dizer o quanto sinto ─ disse ele. ─ Ficarei à sua disposição: a qualquer hora que precisar de mim, estarei a seu lado. Lembre-se disso.
Foi a única coisa que ajudou Jill a conservar a sanidade no pesadelo que estava prestes a começar.
A volta para casa foi uma repetição diabólica: a maca de hospital no avião, a ambulância do aeroporto até a casa, o quarto de doente.
Só que desta vez era diferente; Jill compreendeu isso no momento em que a deixaram ver Toby. Seu coração batia, seus órgãos vitais funcionavam; sob todos os aspectos, era um organismo vivo. E no entanto não era. Era um cadáver que respirava, um homem morto numa tenda de oxigênio, com o corpo atravessado por tubos e agulhas, como antenas que o alimentavam com os fluidos vitais necessários para mantê-lo vivo. O rosto estava contorcido num rito pavoroso que dava a impressão de que ele estava sorrindo, os lábios repuxados deixando as gengivas à mostra. "Receio não poder dar-lhe qualquer esperança", dissera o médico russo.
Isso fora semanas atrás. Agora estavam em casa, em Bel Air. Jill chamara imediatamente o Dr. Kaplan e este mandara vir outros especialistas, mas a resposta fora sempre a mesma: um forte derrame, que lesara gravemente ou destruíra os centros nervosos, havendo muito pouca chance de reversão do dano já causado.
Havia enfermeiras trabalhando as vinte e quatro horas do dia e um fisioterapeuta para os exercícios, mas era tudo em vão.
O objeto de todas essas atenções era grotesco. A pele de Toby tornara-se amarelada e seu cabelo caía aos tufos. Os membros paralisados ficaram enrugados e viscosos e o rosto conservou a horrenda careta que ele não podia controlar. Era uma visão monstruosa, o rosto da morte.
Mas os olhos estavam cheios de vida. E quanta vida! Luziam com a força e a frustração da mente aprisionada naquele invólucro inútil. Sempre que Jill entrava no quarto, os olhos de Toby a seguiam famintos, desesperados, implorando. Pelo quê? Para que ela o fizesse andar outra vez? Voltar a falar? Transformá-lo de novo num homem?
Ela contemplava-o em silêncio, pensando: "Uma parte de mim está deitada naquela cama, sofrendo, aprisionada". Eles estavam ligados um ao outro. Ela teria dado tudo para salvar Toby, para salvar a si mesma, mas sabia que era impossível. Dessa vez era.
Os telefones tocavam constantemente, como uma reprise daqueles outros telefonemas, daquelas outras ofertas de solidariedade. Mas um dos telefonemas era diferente, o de David Kenyon. "Só quero que você saiba que para tudo que eu puder fazer, seja o que for, estarei às ordens."
Jill pensou nele, alto, bonito e forte ─ e pensou na criatura deformada no quarto ao lado.
─ Obrigada, David, fico-lhe grata. Mas não há nada, não por enquanto.
─ Há bons médicos em Houston ─ disse ele. ─ Dos melhores do mundo. Posso mandá-los ver Toby.
Jill sentiu um aperto na garganta. Oh, que vontade de pedir a David que viesse para junto dela, que a levasse daquele lugar!
Mas não podia. Estava ligada a Toby e sabia que jamais poderia deixá-lo.
Não enquanto ele vivesse.
O Dr. Kaplan terminara de examinar Toby e Jill esperava por ele na biblioteca. Virou-se para olhá-lo quando o doutor atravessou a porta. Ele falou, numa tentativa de humor.
─ Bem, Jill, tenho boas e más notícias.
─ Conte-me primeiro as más.
─ Receio que o sistema nervoso de Toby esteja lesado demais para permitir uma reabilitação. Isso está fora de dúvida. Desta vez não será possível: ele jamais andará ou falará de novo.
Ela o encarou por muito tempo e então perguntou:
─ E quais são as boas notícias?
O Dr. Kaplan sorriu:
─ O coração de Toby é surpreendentemente forte. Com o cuidado adequado, poderá viver por mais vinte anos.
Jill olhou-o estupefata. Vinte anos. Era essa a boa notícia! Pensou em si própria, atrelada à horrível gárgula no andar de cima, aprisionada num pesadelo para o qual não havia saída. Jamais poderia separar-se de Toby enquanto ele vivesse. Porque ninguém compreenderia. Ela era a heroína que salvara a vida dele e todos se sentiriam traídos, enganados, se agora o abandonasse.
Até mesmo David Kenyon.
Ele telefonava todos os dias agora. Falava da lealdade e do maravilhoso desprendimento de Jill, e ambos sentiam a profunda corrente emocional que fluía entre eles.
A frase jamais dita era: "Quando Toby morrer".
33
As enfermeiras revezavam-se em turnos, cuidando de Toby durante as vinte e quatro horas do dia; eram objetivas e eficientes como máquinas, totalmente impessoais. Jill dava graças pela presença delas, pois não agüentava aproximar-se de Toby. Sentia repulsa à visão daquela pavorosa máscara distorcida. Arranjava desculpa para ficar longe do quarto. Quando se obrigava a chegar perto dele, imediatamente percebia uma mudança em Toby, até mesmo as enfermeiras o notavam. Ele permanecia imóvel, impotente, aprisionado em sua gaiola espástica. Mas, no momento em que Jill entrava na sala, aqueles brilhantes olhos azuis punham-se a luzir de vitalidade. Jill podia ler os pensamentos de Toby tão claramente como se ele estivesse falando. "Não me deixe morrer. Ajude-me. Ajude-me!"
Jill ficava olhando o corpo destroçado e pensava: "Não posso ajudar você. Você não quer viver assim. Você quer morrer".
A idéia começou a tomar corpo em Jill.
Os jornais estavam cheios de histórias sobre maridos cujas esposas livravam-nos do sofrimento. Até mesmo certos médicos admitiam que às vezes deixavam morrer determinados pacientes. Chamava-se eutanásia. Assassinato por misericórdia. Mas Jill sabia que também podia ser considerado crime, mesmo se tudo que restava de vida em Toby fossem aqueles malditos olhos que não deixavam de segui-la por toda a parte.
Nas semanas que se seguiram, Jill não saiu de casa. Passou a maior parte do tempo em seu quarto, fechada. As dores de cabeça voltaram e ela não conseguia alivio.
Os jornais e revistas contavam as humanas histórias do astro paralítico e sua devotada esposa, que antes cuidara dele até curá-lo. Todos especulavam sobre a possibilidade de Jill repetir o milagre, mas ela sabia que não haveria mais nenhum milagre. Toby jamais se recuperaria.
"Vinte anos", dissera o Dr. Kaplan. E David estava lá fora esperando por ela. Tinha de achar um meio de escapar da prisão.
Tudo começou num sombrio e deprimente domingo. Chovera a manhã toda e a chuva continuara pelo dia afora, batendo no telhado e nas janelas da casa até Jill pensar que iria enlouquecer. Estava em seu quarto, lendo, tentando não ouvir o odioso tamborilar da chuva, quando a enfermeira da noite entrou. Seu nome era Ingrid Johnson, uma mulher formal, de tipo nórdico.
─ O fogão lá de cima não está funcionando ─ avisou ela. ─ Terei de preparar o jantar do Sr. Temple na cozinha. Poderia ficar com ele alguns minutos?
Jill percebeu a reprovação no tom da enfermeira, que achava estranho uma esposa não se aproximar do marido acamado.
─ Cuidarei dele ─ disse Jill.
Deixou o livro e atravessou o corredor em direção ao quarto de Toby; logo que entrou, suas narinas foram invadidas pelo cheiro familiar de doença. Num instante, todas as fibras de seu ser foram tomadas por lembranças daqueles longos e terríveis meses durante os quais lutara para salvar Toby.
Ele estava recostado num grande travesseiro. Ao ver Jill, seus olhos se iluminaram, lançando mensagens de desespero. "Onde você esteve? Por que tem de ficar longe de mim? Preciso de você. Ajude-me!" Era como seus olhos fossem dotados de voz. Jill olhou para o repelente corpo deformado, com aquela sorridente máscara da morte, e sentiu-se nauseada. "Você nunca vai ficar bom, maldito! Você tem de morrer! Eu quero que você morra!"
Enquanto olhava para Toby, Jill viu a expressão se alterar em seus olhos: o choque e a perplexidade foram gradualmente substituídos por tamanho ódio, tamanha malevolência, que ela involuntariamente recuou um passo. Então compreendeu o que acontecera. Expressara seus pensamentos em voz alta.
Virou-se e saiu correndo do quarto.
Pela manhã, a chuva parou. A velha cadeira de rodas de Toby fora trazida do porão e a enfermeira do dia, Frances Gordon, estava levando o doente para o jardim, onde poderia ficar um pouco ao sol. Jill ouviu o som da cadeira de rodas no corredor, em direção ao elevador; esperou alguns minutos e então desceu. Estava atravessando a biblioteca quando o telefone tocou; era David, falando de Washington.
─ Como está você hoje? ─ perguntou uma voz afetuosa. Jill nunca se sentira tão satisfeita por ouvi-lo quanto nesse momento.
─ Estou bem, David.
─ Gostaria que você estivesse a meu lado, querida.
─ Eu também. Amo-o tanto. Eu quero você. Quero me sentir novamente em seus braços. Oh, David...
Um instinto qualquer fez com que Jill se virasse: Toby estava no corredor, amarrado à sua cadeira de rodas, onde a enfermeira o deixara por um momento. Os olhos azuis luziam em direção a Jill com tanto ódio, tanta malignidade, que foi como um golpe físico. A mente dele falava com ela através dos olhos, gritando para ela: "Eu vou matar você!" Em pânico, ela deixou cair o telefone.
Jill fugiu da sala e subiu, sentindo atrás de si o ódio de Toby, como uma força violenta e maléfica. Ficou o dia todo no quarto, recusando-se a comer. Sentada numa cadeira, num estado quase de transe, sua mente repassando continuamente a cena ao telefone. Toby sabia. Ele sabia. Jamais poderia olhá-lo de frente.
Finalmente a noite chegou. Era julho e o ar ainda conservava o calor do dia. Jill abriu as janelas do quarto para aproveitar qualquer tênue brisa que porventura soprasse.
No quarto de Toby, a enfermeira Gallagher estava de serviço. Nas pontas dos pés, foi dar uma olhada em seu paciente. Gostaria de poder ler a mente dele, assim talvez pudesse ajudar o pobre homem. Ajeitou as cobertas em torno de Toby.
─ Agora durma um bom sono ─ disse ela animadamente. ─ Voltarei para ver como está.
Não ouve qualquer reação; ele nem mesmo moveu os olhos em sua direção.
"Talvez seja melhor mesmo eu não poder ler sua mente", pensou a enfermeira Gallagher. Deu uma última olhada e foi para sua saleta assistir a algum programa tardio de televisão. Ela gostava de entrevistas, adorava ver estrelas de cinema conversando sobre si mesmas. Isso as tornava tão incrivelmente humanas, iguais às pessoas comuns. Procurou manter o volume reduzido para não incomodar o doente. Mas de qualquer maneira Toby Temple não teria ouvido. Seus pensamentos estavam em outro lugar.
A casa estava adormecida, a salvo na segurança dos bosques de Bel Air. Uns poucos e atenuados ruídos de trânsito subiam do Sunset Boulevard lá embaixo. A enfermeira Gallagher assistia a um filme na televisão; gostaria que passassem um dos velhos filmes de Toby Temple. Seria excitante assistir a ele na televisão sabendo que ele em pessoa estava ali, a poucos metros de distância.
Às quatro da manhã a enfermeira cochilou diante de um filme de terror.
No quarto de Toby reinava um silêncio profundo.
No quarto de Jill, o único som audível era o tique-tique de relógio na mesa-de-cabeceira. Ela dormia despida, num sono profundo, um braço enlaçando um travesseiro, seu corpo, uma mancha escura sobre os lençóis brancos. Os ruídos da rua chegavam ali atenuados e distantes.
Jill se virou, inquieta e estremeceu. Sonhava que estava no Alasca com David, em lua-de-mel. Os dois se achavam numa vasta planície gelada e de repente caíra uma tempestade; o vento lançava o ar gelado contra suas faces, dificultando-lhes a respiração. Ela se virou para David, mas ele desaparecera. Ela estava sozinha no frígido Ártico, tossindo, lutando para recobrar o fôlego. Foi o som de alguém sufocando que despertou Jill. Ouviu um horrível chiado roufenho, um arfar agonizante e abriu os olhos: o som partira de sua própria garganta. Não podia respirar. Uma camada de ar gelado a envolvia como um cobertor obsceno, acariciando seu corpo nu, afagando-lhe os seios, beijando-lhe os lábios com um hálito frígido e de um cheiro fétido, que lembrava um túmulo. Seu coração batia desesperadamente enquanto ela tentava respirar; seus pulmões pareciam estar queimados pelo frio. Tentou levantar-se mas parecia que um peso invisível a impedia. Sabia que aquilo tinha de ser um sonho, mas ao mesmo tempo ouvia aquele horrendo arfar de sua garganta enquanto lutava para respirar. Estava morrendo. Mas seria possível alguém morrer durante um pesadelo? Jill sentia os tentáculos gelados tateando seu corpo, movendo-se entre suas pernas, penetrando-a, finalmente dentro dela e de súbito, inesperadamente, compreendeu que era Toby. De algum modo, de alguma maneira, era ele. E a súbita onda de horror deu a Jill forças para se arrastar até os pés da cama, ofegante, mente e corpo lutando para sobreviver. Caiu ao chão, levantou-se com dificuldade e correu para a porta, sentindo o frio a persegui-la, cercando-a, agarrando-a. Seus dedos encontraram a maçaneta e abriram a porta. Ela correu para fora, ofegante, enchendo de oxigênio os pulmões famintos.
O corredor estava quente, tranquilo, silencioso. Jill ficou ali tremula, os dentes batendo incontrolavelmente. Virou-se para olhar seu quarto: tudo parecia normal e em paz. Ela tivera um pesadelo. Hesitou por um momento e depois caminhou lentamente de volta ao quarto. O aposento estava quente, nada havia a temer. Claro que Toby não far-lhe-ia mal.
Na saleta, a enfermeira Gallagher acordou e foi olhar seu paciente.
Toby Temple estava em sua cama, exatamente como ela o deixara. Seus olhos, voltados para o teto, estavam fixos em algo invisível para a enfermeira Gallagher.
Depois disso, o pesadelo passou a se repetir regularmente, tal como uma negra profecia de destruição, uma presciencia de algum horror iminente. Lentamente, Jill foi tomada de terror. Aonde quer que fosse na casa, sentia a presença de Toby. Quando a enfermeira o levava para fora, Jill o ouvia. A cadeira de rodas passara a ranger, emitindo um som agudo que atacava os nervos de Jill sempre que o ouvia. "Preciso mandar consertá-la", pensou ela. Evitava aproximar-se do quarto de Toby, mas não fazia diferença: ele estava em toda a parte, esperando por ela.
As dores de cabeça tornaram-se constantes, um pulsar violento, rítmico, que não a deixava descansar. Jill queria que a dor passasse por uma hora, um minuto, um segundo. precisava de dormir. Foi para o quarto de empregada atrás da cozinha, o mais longe possível dos aposentos de Toby. O quarto estava quente e tranquilo. Jill deitou-se na cama e fechou os olhos: adormeceu quase instantaneamente.
Foi despertada pelo ar fétido e gelado enchendo o quarto, agarrando-a, tentando sepultá-la. Saltou da cama e correu para fora do quarto.
Os dias eram horríveis, mas as noites eram apavorantes. Obedeciam sempre à mesma rotina: Jill ia para seu quarto, encolhia-se na cama, lutava para permanecer acordada, temendo adormecer pois, sabia que Toby viria. Mas seu corpo exausto acabava levando a melhor e ela adormecia.
O frio a despertava. Jill ficava deitada, tremendo, sentindo o ar gelado movendo-se em sua direção, uma presença malévola envolvendo-a como uma maldição terrível. Levantava-se e fugia num silencioso terror.
Eram três horas da madrugada.
Jill adormecera numa cadeira enquanto lia um livro. Acordou lentamente, aos poucos, e abriu os olhos para a total escuridão do quarto, sentindo que havia algo terrivelmente errado. Então compreendeu o que era. Adormecera com todas as luzes acesas. Sentiu o coração disparar e pensou: "Não há razão para medo. A enfermeira deve ter apagado as luzes".
Foi então que ouviu o ruído. Vinha do corredor, crek... crek... A cadeira de rodas, aproximando-se da porta de seu quarto. Jill sentiu um arrepio na nuca. "É apenas um galho de árvore batendo no telhado, ou os estalidos da casa", disse consigo mesma. Mas sabia que não era. Conhecia bem demais aquele ruído: crek... crek... como a música da morte a buscá-la. "Não pode ser Toby", pensou. "Ele está na cama, impotente. Estou ficando louca." Mas ouvia o som aproximar-se cada vez mais. Estava agora do outro lado da porta. Parara, como que esperando. E de repente ouviu o ruído de algo que caía com estrépito, seguido de silêncio.
Jill passou o resto da noite encolhida na cadeira, no escuro, apavorada demais para se mover.
Na manhã seguinte, do lado de fora de seu quarto, encontrou uma jarra quebrada, junto à mesa do corredor sobre a qual costumava ficar.
Jill conversou com o Dr. Kaplan.
─ Você acredita que a mente possa... possa controlar o corpo? ─ perguntava ela.
O médico olhou-a intrigado.
─ De que forma?
─ Se Toby quisesse... quisesse muito levantar-se da cama, ele poderia fazê-lo?
─ Você diz, sem ajuda? Em seu estado atual? ─ lançou-lhe um olhar incrédulo. ─ Ele está totalmente desprovido de mobilidade. Totalmente.
Mas Jill ainda não estava convencida.
─ Se... se ele estivesse realmente decidido a se levantar... se houvesse algo que achasse que tinha de fazer...
O Dr. Kaplan abanou a cabeça.
─ Nossa mente envia ordens ao corpo, mas se os impulsos motores se acham bloqueados, se não há músculos para cumprir essas ordens, então nada pode acontecer.
Jill tinha de descobrir.
─ Você acredita que a mente possa descolar objetos?
─ Refere-se a psicocinese? Há muitas experiências sendo feitas, mas ainda não encontrei nenhuma prova que me convencesse.
Havia a jarra quebrada junto à porta do quarto.
Jill teve vontade de falar ao médico sobre aquilo, sobre o ar
gelado que a seguia, sobre a cadeira de rodas de Toby do outro lado da porta, mas ele iria pensar que estava louca. Estaria? Havia algo de errado com ela? Estaria perdendo a razão?
Quando o Dr. Kaplan se retirou, Jill aproximou-se do espelho e ficou chocada com o que viu. Suas faces estavam encovadas e os olhos enormes, num rosto pálido e ossudo. "Se continuar assim", pensou "morrerei antes de Toby." Examinou o cabelo oleoso e sem vida, as unhas rachadas e quebradas. "Não posso permitir jamais que David me veja assim. Tenho de começar a me cuidar. De agora em diante", disse a si mesma, "você vai passar a ir ao salão de beleza uma vez por semana, vai comer três refeições por dia e dormir oito horas."
Na manhã seguinte, Jill marcou uma hora no salão de beleza. Estava exausta e sob o morno e confortável zumbido do secador acabou cochilando, e o pesadelo começou. Estava dormindo em sua cama. Ouvia Toby entrar no quarto na cadeira de rodas. Crek... crek... Lentamente, ele se levantava da cadeira, ficava de pé e se aproximava dela, o rosto contorcido, as mãos esqueléticas estendidas para o seu pescoço. Jill despertou gritando, apavorada, criando uma enorme confusão no salão de beleza. Acabou por sair às pressas, sem mesmo pentear o cabelo.
Depois dessa experiência, ficou com medo de sair de casa.
E com medo de ficar em casa.
Parecia que havia algo errado com sua mente. Já não se tratava apenas das dores de cabeça. Começara a ter esquecimentos. Descia para apanhar alguma coisa, entrava na cozinha e ficava lá parada, sem saber o que fora buscar. Sua memória começou a lhe pregar estranhas peças. Certa vez, a enfermeira Gordon veio falar com ela e Jill pensou o que uma enfermeira estaria fazendo ali. De repente, lembrou-se: o diretor a esperava no set. Tentou recordar sua fala: "Acho que nada bem, doutor". Tinha de falar com o diretor para saber como queria que lesse a fala. A enfermeira Gordon segurava sua mão e dizia: "Sra. Temple! Sra. Temple! Está se sentindo bem?" E Jill se viu de volta a seu ambiente, mais uma vez no presente, à mercê do terror daquilo que lhe estava acontecendo. Sabia que não podia continuar assim, tinha de descobrir se havia algo errado com sua mente ou se Toby, de algum modo, conseguia mover-se, se descobrira um meio de atacá-la, de tentar matá-la.
Precisava vê-lo. Obrigou-se a percorrer o longo corredor em direção ao quarto de Toby; ficou um momento do lado de fora, reunindo forças, e então entrou.
Toby estava deitado na cama enquanto a enfermeira dava-lhe um banho de esponja. Ela levantou os olhos, viu Jill e disse:
─ Ora, aqui está a Sra. Temple. Estamos tomando um bom banho, não é?
Jill se voltou para olhar a figura na cama.
Os braços e as pernas de Toby haviam definhado, transformando-se em apêndices retorcidos presos ao tórax atrofiado e deformado. Entre suas pernas, como uma comprida e indecente serpente, jazia o pênis inútil, flácido e repulsivo. O tom amarelo desaparecera de suas faces, mas a careta boquiaberta e a expressão de imbecilidade continuavam. O corpo estava morto, mas os olhos permaneciam desesperadamente vivos. Movimentavam-se bruscamente, procurando, planejando, odiando; penetrantes olhos azuis cheios de tramas secretas, de mortal determinação. Era a mente de Toby que Jill via. "É importante lembrar que a mente dele está ilesa", dissera-lhe o médico. A mente podia apenas, sentir, odiar. Aquela mente nada mais tinha a fazer senão planejar sua vingança, elaborar um meio de destruí-la. Toby desejava sua morte, assim como Jill desejava a dele.
Agora, enquanto o olhava, fixando aqueles olhos que luziam de ódio, ela podia ouvi-lo dizer: "Vou matar você", e sentia as ondas de repugnância que a atingiam como golpes.
Jill fixou aqueles olhos, lembrou-se da jarra quebrada e compreendeu que nenhum de seus pesadelos havia sido ilusão. Ele descobrira um meio.
Ficou sabendo então que seria a vida de Toby contra a sua própria.
34
Quando o Dr. Kaplan terminou o exame em Toby, foi falar com Jill.
─ Acho que você deve suspender a terapia na piscina ─ disse ele.
─ É perda de tempo. Eu esperava que conseguíssemos alguma ligeira melhoria na musculatura dele, mas não está adiantando nada. Eu mesma falarei com o terapeuta.
─ Não!
Foi um grito agudo. O médico olhou-a surpreso.
─ Jill, sei o que você fez por Toby da outra vez, mas desta vez é inútil. Eu...
─ Não podemos desistir. Ainda não.
Havia desespero na voz dela. O Dr. Kaplan hesitou e finalmente encolheu os ombros.
─ Bem, se é assim tão importante para você...
─ É.
Naquele momento, era a coisa mais importante do mundo. Era o que salvaria sua vida.
Agora ela sabia o que tinha a fazer.
O dia seguinte era uma sexta-feira. David telefonou para dizer a Jill que teria de viajar até Madrid a negócios.
─ Talvez eu não possa telefonar durante o fim de semana.
─ Sentirei sua falta ─ disse Jill. ─ Sentirei muito.
─ Também terei saudades de você. Você está bem? Parece estranha. Está cansada?
Jill lutava para manter os olhos abertos, para esquecer a terrível dor de cabeça. Não se lembrava da última vez que comera ou dormira. Estava tão fraca que mal podia ficar de pé. Procurou pôr energia na voz:
─ Estou bem, David.
─ Amo você, querida. Cuide-se.
─ Vou me cuidar, David. Amo você. Por favor, lembre-se disso. Aconteça o que acontecer.
Ouviu o carro do fisioterapeuta que chegou e desceu, a cabeça latejando, as pernas tremulas quase incapazes de sustentá-la.
Abriu a porta da frente no momento em que ele ia tocar a campainha.
─ Bom dia, Sra. Temple ─ disse ele, começando a entrar.
Mas Jill barrou-lhe a passagem. Ele a olhou surpreso.
─ O Dr. Kaplan decidiu suspender a terapia de Toby ─ disse ela.
O fisioterapeuta franziu o cenho. Significava que fora até ali inutilmente. Alguém deveria tê-lo avisado antes. Em condições normais teria reclamado, mas a Sra. Temple era uma pessoa admirável, com tantos problemas... Ele sorriu e falou:
─ Está bem, Sra. Temple. Eu compreendo.
E voltou para seu carro.
Jill esperou até ouvir o carro afastar-se. Então começou a subir a escada. A meio caminho foi atingida por mais uma tonteira e teve de se agarrar ao corrimão até sentir-se melhor. Não podia parar agora. Se parasse, morreria.
Foi até a porta do quarto de Toby, girou a maçaneta e entrou. A enfermeira Gallagher estava sentada numa poltrona, bordando.
Levantou os olhos, surpresa ao ver Jill de pé à porta.
─ Ora! ─ disse ela. ─ Temos uma visita. Que bom!
Voltou-se para a cama:
─ Sei que o Sr. Temple ficou satisfeito. Não é mesmo, Sr. Temple?
Toby estava recostado, apoiado em travesseiros, os olhos transmitindo sua mensagem a Jill. "Vou matar você."
Ela desviou o olhar e aproximou-se da enfermeira.
─ Cheguei à conclusão de que não estou passando tempo suficiente com meu marido.
─ Bem, para falar a verdade, é exatamente o que estive pensando ─ respondeu a enfermeira Gallagher asperamente. ─ Mas percebi que a senhora também anda doente e então disse a mim mesma...
─ Estou me sentindo muito melhor agora ─ interrompeu Jill. ─ Gostaria de ficar a sós com o Sr. Temple.
A enfermeira reuniu seus apetrechos de bordado e levantou-se.
─ É claro ─ disse. Estou certa de que ele apreciará isso. ─ Virou-se para a figura na cama. ─ Não é mesmo, Sr. Temple? ─ E acrescentou, dirigindo-se a Jill: ─ Vou até a cozinha preparar uma boa xícara de chá para mim.
─ Não. Seu turno termina dentro de meia hora. Pode sair agora.
Ficarei com ele até a enfermeira Gordon chegar.
Jill lançou-lhe um sorriso rápido e reconfortante.
─ Não se preocupe. Ficarei aqui com ele.
─ Acho que poderia fazer algumas compras e...
─ Ótimo ─ falou Jill. ─ Pode ir.
Ficou ali parada, imóvel, até ouvir bater a porta da frente e depois o som do carro da enfermeira que se afastava. Quando o ruído do motor desapareceu no ar do verão, Jill voltou-se para Toby.
Seus olhos estavam fixos no rosto dela, sem oscilar, sem piscar. Obrigando-se a se aproximar da cama, Jill afastou as cobertas e olhou para o corpo consumido e paralisado, para as pernas flácidas e inúteis.
A cadeira de rodas estava num canto. Trouxe-a para perto da cama e colocou-a de maneira a permitir-lhe passar Toby da cama para a cadeira. Estendeu as mãos para ele e parou. O rosto contorcido e mudificado estava a centímetros de distância, a boca num sorriso idiota, os brilhantes olhos azuis lançando malevolência. Jill inclinou-se e levantou-o nos braços. Ele pesava pouquíssimo, mas em condições de exaustão mal conseguiu erguê-lo. Ao tocar em seu corpo, sentiu o ar frio começando a envolvê-la. A pressão em sua cabeça tornava-se insuportável. Brilhantes pontos coloridos luziam diante de seus olhos, numa dança cada vez mais rápida, fazendo-a entontecer. Sentiu que ia desmaiar, mas sabia que não podia deixar que isso acontecesse. Não, se quisesse viver. Num esforço sobre-humano, arrastou o corpo inerte para a cadeira de rodas e prendeu-o com as correias. Olhou para o relógio: restavam-lhe apenas vinte minutos.
Jill levou cinco minutos para ir até seu quarto, vestir um maiô e voltar ao quarto de Toby.
Soltou o freio da cadeira de rodas e começou a empurrá-la pelo corredor, até o elevador. Ficou atrás de Toby enquanto o elevador descia, para não ver seus olhos. Mas podia senti-los. E também a umidade do ar malévolo que começava a encher o elevador, envolvendo-a, acariciando-a, enchendo-lhe os pulmões com sua putrescência, até que começou a sufocar. Não conseguia respirar.
Caiu de joelhos, lutando para respirar, para permanecer consciente, presa ali dentro com ele. Ao sentir a escuridão do desmaio fechar-se à sua volta, a porta do elevador abriu-se e Jill arrastou-se para o sol quente, deixando-se cair ao chão, respirando profundamente, recobrando aos poucos a energia. Voltou-se para o elevador: Toby estava na cadeira de rodas, observando, esperando. Puxou depressa para fora e dirigiu-se para a piscina. O dia estava lindo, sem nuvens, quente e perfumado, com o sol cintilando na água azul e pura.
Empurrou a cadeira de rodas até a borda da extremidade mais funda da piscina e freou-a. Deu a volta até a frente da cadeira. Os olhos de Toby estavam fixos nela, alerta, espantados. Pegou a correia que o prendia à cadeira e apertou-a ao máximo, puxando-a com todas as forças que lhe restavam, sentindo-se tonta de novo com o esforço. De repente, estava terminado. Jill observou a mudança no olhar de Toby quando este compreendeu o que estava acontecendo: um pânico violento e demoníaco começou a invadi-lo.
Soltou o freio, agarrou a cadeira e começou a empurrá-la em direção à água. Toby tentava mover seus lábios paralisados, num esforço para gritar, mas não se fez qualquer som e o resultado era apavorante. Jill não conseguia encará-lo nos olhos. Não queria saber.
Empurrou a cadeira de rodas até a borda da piscina.
E a cadeira ficou presa. A pequena borda de cimento detinha sua passagem. Jill empurrou com mais força, mas ela não virava. Era como se Toby a estivesse segurando por simples força de vontade. Jill podia vê-lo lutando para se soltar, lutando pela vida. Ia soltar-se, libertar-se, agarrar-lhe o pescoço com os dedos esqueléticos... Ela ouvia seus gritos. "Não quero morrer... Não quero morrer..." e, não sabendo se era real ou efeito de sua imaginação, num ímpeto de pânico, reuniu uma súbita força e empurrou o mais que pôde o encosto da cadeira de rodas. Ela se projetou para a frente, no ar, suspensa durante o que pareceu uma eternidade, e então rolou para dentro da piscina, caindo na água com estrondo. Por muito tempo pareceu flutuar e então, lentamente, começou a afundar-se os redemoinhos da água fizeram-na girar, de modo que a última coisa que Jill viu foram os olhos de Toby condenando-a ao inferno enquanto a água se fechava sobre ele.
Ela ficou ali de pé por muito tempo, tremendo sob o sol quente do meio-dia, deixando que as forças fluíssem de volta para sua mente e seu corpo. Quando finalmente conseguiu se mover, desceu os degraus da piscina para molhar o maiô.
Em seguida voltou à casa e telefonou para a polícia.
35
A morte de Toby foi manchete nos jornais do mundo inteiro. Se ele se havia transformado em herói popular, Jill transformara-se em heroína. Centenas de milhares de palavras foram impressas a respeito deles, suas fotos apareciam em todos os jornais e revistas. Sua grande história de amor era contada e repetida, o final trágico conferindo-lhe ainda maior pungência. Cartas e telegramas de pêsames fluíram, de chefes de Estado, donas-de-casa, políticos, milionários, secretárias. O mundo sofrera uma perda: Toby partilhava o dom de seu riso com os fãs e estes ser-lhe-iam eternamente gratos. As ondas radiofônicas encheram-se de homenagens a ele e todas as redes de televisão prestaram-lhe tributo.
Jamais haveria outro Toby Temple.
O inquérito teve lugar no edifício da Corte Criminal, na Grand Avenue, no centro de Los Angeles, numa sala pequena e repleta. Havia um funcionário encarregado do interrogatório, chefiando um júri composto por seis pessoas.
A sala estava repleta até o máximo de sua capacidade. Quando Jill chegou, viu-se cercada de fotógrafos, repórteres e fãs. Usava um conjunto simples, de lã preta; estava sem maquilagem e jamais parecera tão bonita. Nos poucos dias desde a morte de Toby, ela milagrosamente florescera, recuperando sua antiga imagem. Pela primeira vez em meses, conseguia dormir profundamente e sem sonhos. Tinha um apetite voraz e as dores de cabeça haviam desaparecido. O demônio que lhe sugava a vida havia partido.
Jill falara com David todos os dias; ele quisera comparecer ao inquérito, mas ela o dissuadira. Teriam tempo bastante mais tarde.
"O resto de nossas vidas", dissera-lhe David.
Havia seis testemunhas no inquérito. As enfermeiras Gallagher, Gordon e Jonhson depuseram sobre a rotina geral do paciente e seu estado. Era a vez da enfermeira Gallagher.
─ A que horas a senhora deveria deixar o serviço na manhã em questão? ─ perguntou o encarregado do interrogatório.
─ Às dez.
─ A que horas saiu?
Hesitação.
─ Nove e meia.
─ Era costume seu, Sra. Gallagher, deixar o paciente antes do fim de seu turno?
─ Não, senhor. Foi a primeira vez.
─ Poderia explicar o que aconteceu para fazê-la sair cedo naquela manhã?
─ Foi sugestão da Sra. Temple. Ela queria ficar a sós com o marido.
─ Obrigado. É só.
A enfermeira Gallagher desceu da plataforma. "Claro que a morte de Toby Temple fora acidental", pensara ela. "Era lamentável que tivessem de sujeitar uma mulher maravilhosa como Jill Temple a semelhante provação." A enfermeira deu uma olhada para Jill e sentiu uma rápida punhalada de culpa. Lembrou-se da noite em que entrara no quarto dela e encontrara-a adormecida numa cadeira. A enfermeira havia apagado as luzes sem fazer ruído e fechara a porta para que a Sra. Temple não fosse perturbada. No corredor escuro, batera num vaso que estava sobre um pedestal e ele caíra, quebrando-se. Tinha pretendido falar a esse respeito com a Sra. Temple, mas como o vaso parecera muito caro e Jill não mencionara o fato, a enfermeira Gallagher decidira não falar nada.
O fisioterapeuta estava no banco das testemunhas.
─ Você costumava fazer uma sessão diária de tratamento com o Sr. Temple?
─ Sim, senhor.
─ Esse tratamento tinha lugar na piscina?
─ Sim, senhor. A piscina era aquecida a uma temperatura de quarenta e sete graus e...
─ Você fez o tratamento do Sr. Temple no dia em questão?
─ Não, senhor.
─ Poderia dizer-nos por quê?
─ Ela me mandou embora.
─ Por "ela" você quer dizer a Sra. Temple?
─ Certo.
─ Ela deu alguma razão?
─ Disse que o Dr. Kaplan não queria que ele continuasse o tratamento.
─ E assim você saiu sem ter visto o Sr Temple?
─ Certo. Isso mesmo.
Chegou a vez do Dr. Kaplan.
─ A Sra. Temple lhe telefonou após o acidente, Dr. Kaplan. O senhor examinou o falecido logo que chegou ao local?
─ Sim. A polícia havia retirado o corpo da piscina. Ainda estava preso à cadeira de rodas. O cirurgião da polícia e eu examinamos o corpo e concluímos que era tarde demais para tentar revivê-lo.
Ambos os pulmões estavam cheios de água. Não pudemos constatar nenhum sinal vital.
─ Que fez o senhor então, Dr. Kaplan?
─ Cuidei da Sra. Temple. Ela estava em estado de histeria aguda. Fiquei muito preocupado com ela.
─ Dr. Kaplan, o senhor tivera uma conversa anterior com a Sra. Temple sobre a suspensão da fisioterapia?
─ Tive. Disse a ela que achava o tratamento uma perda de tempo.
─ Qual foi a reação da Sra. Temple?
O Dr. Kaplan olhou para Jill Temple e disse:
─ A reação dela foi muito estranha. Insistiu para que continuássemos tentando. ─ Hesitou. ─ Já que estou sob juramento e como o júri deste inquérito está interessado em ouvir a verdade, sinto que há algo que tenho a obrigação de dizer.
Um silêncio completo caíra sobre a sala. Jill olhava-o fixamente.
O Dr. Kaplan voltou-se para os jurados.
─ Gostaria de dizer, para os autos, que a Sra. Temple é provavelmente a melhor e mais corajosa mulher que tive a honra de conhecer.
Todos os olhares se voltaram para Jill.
─ Quando seu marido sofreu o primeiro derrame, ninguém achou que houvesse a menor chance de recuperação. Mas ela cuidou dele e curou-o sozinha. Fez por ele o que nenhum médico que conheço poderia ter feito. Eu jamais poderia descrever-lhes sua dedicação e devoção ao marido.
Olhou para Jill e acrescentou:
─ Ela é um exemplo para todos nós.
Os espectadores romperam em aplausos.
─ É só, doutor ─ disse o examinador. ─ Gostaria de chamar a Sra. Temple para depor.
Todos observaram quando Jill se levantou e lentamente caminhou até o banco das testemunhas, onde prestou juramento.
─ Reconheço a provação que este inquérito representa para a senhora, Sra. Temple, e procurarei terminar tudo o mais rápido possível.
─ Obrigada ─ a voz dela soou baixo.
─ Quando o Dr. Kaplan disse que pretendia suspender a fisioterapia, por que é que a senhora quis prossegui-la?
Ela levantou os olhos e o examinador reconheceu a profunda dor neles estampados.
─ Porque eu queria que meu marido tivesse todas as chances possíveis de se recuperar. Toby amava a vida e eu queria trazê-lo de volta a ela. Eu... ─ sua voz hesitou, mas Jill prosseguiu: ─ Eu mesma tinha de ajudá-lo.
─ No dia da morte de seu marido, o fisioterapeuta chegou e a senhora o dispensou.
─ Sim.
─ Contudo, antes, Sra. Temple, a senhora dissera que o tratamento continuasse. Poderia explicar sua atitude?
─ É muito simples. Compreendi que nosso amor era a única coisa suficientemente forte para curar Toby. Já o curara uma vez...
Ela parou, sem condições de prosseguir. Depois, obviamente
controlando-se, continuou numa voz rouca:
─ Eu tinha de fazê-lo ver o quanto o amava, o quanto queria vê-lo recuperado.
Todos os presentes estavam atentos, esforçando-se para não perder uma só palavra.
─ Poderia contar-nos o que aconteceu na manhã do acidente?
Houve um minuto inteiro de silêncio, enquanto Jill reunia as forças para finalmente falar.
─ Entrei no quarto de Toby. Ele parecia feliz por me ver. Disse-lhe que eu mesma o levaria à piscina, que iria curá-lo de novo. Vesti um maiô para poder fazer os exercícios com ele na água. Quando me pus a erguê-lo da cama para a cadeira de rodas, eu... senti-me tonta. Acho que deveria ter compreendido naquele momento que não contava com força física suficiente para o que pretendia fazer. Mas não podia parar. Não, se pretendia ajudá-lo. Coloquei-o na cadeira e falei com ele durante todo o caminho até a piscina. Empurrei-o até a borda...
Ela parou e a sala ficou cheia de um tenso silêncio. O único ruído era o das canetas dos repórteres correndo desesperadamente sobre os blocos de taquigrafia.
─ Abaixei-me para desatar as correias que seguravam Toby à cadeira e me senti tonta de novo e comecei a cair... Acho que soltei o freio acidentalmente. A cadeira começou a rolar para dentro da piscina com... com Toby preso a ela ─ Jill tinha a voz embargada. ─ Pulei na piscina atrás dele e tentei soltá-lo, mas as correias estavam apertadas demais. Tentei tirar a cadeira da água mas estava... estava tão pesada. Estava... pesada... demais.
Ela fechou os olhos por um momento, para esconder sua profunda angústia, depois, quase num sussurro, falou:
─ Tentei ajudar Toby e o matei.
O júri do inquérito levou menos de três minutos para obter um veredito: Toby Temple morrera num acidente.
Clifton Lawrence, sentado no fundo da sala, ouviu o veredito.
Tinha certeza de que Jill o assassinara, mas não havia maneira de prová-lo. Ela escapara.
O caso estava encerrado.
36
Não havia mais lugar para assistir ao funeral. Foi realizado em Forest Lawn, numa ensolarada manhã de agosto, no dia em que Toby Temple deveria iniciar sua nova série de televisão. Havia milhares de pessoas esmagando os belos gramados, tentando enxergar as celebridades que compareceram para prestar suas últimas homenagens. Câmaras de televisão cobriam os serviços fúnebres em tomadas longas e tiravam closes das estrelas, produtores e diretores junto ao túmulo. O presidente dos Estados Unidos enviara um representante. Estavam presentes governadores, chefes de estúdios, presidentes de grandes empresas e representantes de todos os sindicatos a que Toby pertencera: SAG, AFTRA, ASCAP e AGVA. O presidente da filial de Beverly Hills dos Veteranos de Guerra comparecera em uniforme completo. Havia contingentes da polícia e do corpo de bombeiros local.
E a arraia-miúda estava presente. Os coadjuvantes, os extras e os doublés que haviam trabalhado com Toby Temple. As encarregadas do guarda-roupa, os mensageiros, os novatos e os veteranos, os assistentes de direção e outros, todos foram prestar homenagem a um grande americano. Lá estavam O'Hanlon e Rainger, recordando o rapazinho magricela que entrara em seu escritório na Twentieth Century-Fox. "Parece que vocês vão escrever piadas para mim... Ele usa as mãos como se estivesse cortando lenha. Talvez pudéssemos escrever uma cena de lenhador para ele... Ele força demais... Jesus, com aquele material, você não faria o mesmo? Um cômico abre portas engraçadas. Um comediante abre portas engraçado." E Toby Temple trabalhara, aprendera e chegara ao topo. "Era um furão", pensara Rainger. "Mas era o nosso furão."
Clifton Lawrence estava lá. O pequeno agente fora ao barbeiro e mandara passar suas roupas a ferro, mas os olhos o traíram. Eram os olhos de quem fracassara entre seus iguais. Também Clifton estava perdido em recordações. Lembrava-se daquele primeiro e presunçoso telefonema. "Há um jovem cômico que Sam Goldwin quer que você veja..." e o desempenho de Toby na escola. "Não se precisa comer todo o vidro de caviar para saber que é bom, certo?... Decidi aceitá-lo como cliente, Toby... Se você for capaz de pôr os tomadores de cerveja no bolso, o pessoal do champanha virá automaticamente... Posso fazer de você a maior estrela do ramo." Todos haviam querido Toby Temple: os estúdios, as redes de televisão, os night clubs. "Você tem tantos clientes que às vezes acho que não me dá atenção suficiente... É como sexo em grupo, Clifton. Sempre sobra um que fica de pau duro... Preciso de seus conselhos, Clifton... É sobre aquela garota..."
Clifton Lawrence tinha muito o que lembrar.
Ao lado dele estava Alice Tanner.
Ela se achava perdida na lembrança da primeira entrevista de Toby em seu escritório. "Em algum lugar, escondido sob todos aqueles astros do cinema, está um jovem cheio de talento... Depois de ver aqueles profissionais ontem à noite, eu... eu acho que não tenho talento." E a paixão por ele. "Oh, Toby, amo-o tanto..." "Também amo você, Alice..." E então ele se fora. Mas Alice era grata pelo fato de tê-lo tido um dia.
Al Caruso viera prestar seu tributo. Estava encurvado, grisalho, e seus olhos castanhos de Papai Noel estavam cheios de lágrimas. Recordara como Toby fora maravilhoso para Millie.
Sam Winters estava lá. Pensava nas alegrias que Toby Temple proporcionara a milhões de pessoas e imaginava como avaliar aquilo em relação à dor que Toby causara a uns poucos.
Alguém cutucou Sam, que se virou e deu com uma garota bonita, de cerca de dezoito anos.
─ O senhor não me conhece, Sr. Winters ─ sorriu ela, ─ mas ouvi falar que está procurando uma garota para o novo filme de William Forbes. Sou de Ohio e...
David Kenyon estava lá. Jill pedira-lhe que não fosse, mas ele insistira. Queria estar perto dela, Jill achou que agora já não importava, terminara de representar seu papel.
A peça estava encerrada e seu papel completo. Sentia-se tão feliz e tão cansada... Era como se a terrível provação que enfrentara tivesse derretido o cerne de amargura que havia dentro dela, cauterizado todas as feridas, as decepções e os ódios. Jill Castle morrera no holocausto e Josephine Czinski renascera das cinzas. Estava novamente em paz, cheia de amor por todo o mundo e uma sensação de contentamento que não experimentava desde menina. Jamais sentira tanta felicidade. Queria partilhar com o mundo.
Os serviços fúnebres aproximavam-se do fim. Alguém tomou o braço de Jill e ela se deixou levar até a limusine. Ao chegar ao carro, deu com David de pé, uma expressão de adoração no rosto. Sorriu para ele; David tomou-lhe as mãos e os dois trocaram algumas palavras. Um fotógrafo bateu o instantâneo.
Jill e David decidiram esperar alguns meses para o casamento, de modo a satisfazer o decoro público. David passou grande parte desse tempo fora do país, mas os dois se falavam diariamente. Quatro meses após o funeral de Toby, David telefonou para Jill e disse:
─ Tive uma idéia brilhante. Não esperemos mais. Tenho de ir à Europa na semana que vem para uma conferência. Vamos para a França no Bretagne. O capitão pode celebrar nosso casamento; podemos passar a lua-de-mel em Paris e depois viajar para onde você quiser, pelo tempo que você quiser. Que acha?
─ Oh, sim, David, sim!
Ela lançou um último e longo olhar à casa, pensando em tudo que acontecera ali. Recordando o primeiro jantar e todas as maravilhosas festas mais tarde, a doença de Toby e sua luta para fazê-lo recobrar a saúde. E depois... havia lembranças demais.
Jill estava satisfeita por partir.
37
O jato particular de David levou Jill até Nova York, onde uma limusine a esperava para transportá-la ao Regency Hotel, na Park Avenue. O gerente, em pessoa, acompanhou Jill a uma enorme suíte de cobertura.
─ O hotel está inteiramente à sua disposição, Sra. Temple ─ disse ele. ─ O Sr. Kenyon instruiu-nos no sentido de proporcionar-lhe tudo de que precisa.
Dez minutos depois de Jill ter-se registrado no hotel, David telefonou do Texas.
─ Confortável? ─ perguntou.
─ Está um pouco apertado ─ riu ela. ─ São cinco quartos, David. Que é que eu vou fazer com todos eles?
─ Se eu estivesse aí, mostraria a você ─ respondeu ele.
─ Promessas, promessas ─ troçou Jill. ─ Quando é que vou ver você?
─ O Bretagne parte ao meio-dia de amanhã. Tenho alguns negócios a completar por aqui. Encontro você a bordo; reservei a suíte nupcial. Está feliz, querida?
─ Nunca estive tão feliz ─ respondeu Jill.
E era verdade. Tudo que acontecera, toda a dor e o sofrimento valeram a pena. Agora aquilo parecia vago e remoto, como um sonho meio esquecido.
─ Um automóvel a apanhará de manhã. Sua passagem estará com o motorista.
─ Estarei pronta ─ disse Jill.
Amanhã.
Poderia ter começado com a foto de Jill e David Kenyon tirada no funeral de Toby e vendida a uma cadeia de jornais. Poderia ter surgido de algum comentário casual feito por um empregado do hotel onde Jill estava hospedada, ou por um membro da tripulação do Bretagne. De qualquer maneira, seria impossível manter em segredo os planos de casamento de alguém tão famoso quanto Jill Temple. A primeira notícia a respeito apareceu num boletim da Associated Press. Depois disso, transformou-se em assunto de primeira página nos jornais do país inteiro e da Europa.
A história apareceu também no Hollywood Reporter no Daily Variety.
A limusine chegou ao hotel precisamente às dez horas. Um porteiro e três camareiros levaram a bagagem de Jill para o carro. O trânsito da manhã estava desafogado e o percurso até ao Cais 90 levou menos de meia hora.
Um alto oficial do navio esperava por Jill na prancha de embarque.
─ Estamos honrados por tê-la a bordo, Sra. Temple ─ disse ele. ─ Está tudo pronto à sua espera. Venha por aqui, por favor.
Ele acompanhou Jill ao Convés Promenade e conduziu-a a uma suíte ampla e arejada, com terraço privativo. Os aposentos estavam cheios de flores recém-colhidas.
─ O capitão me pediu para lhe transmitir seus cumprimentos. Ele a espera para o jantar desta noite; pediu-me que lhe dissesse o quanto está ansioso para celebrar a cerimônia do casamento.
─ Obrigada ─ disse Jill. ─ Sabe se o Sr. Kenyon já está a bordo?
─ Acabamos de receber um telefonema. Ele está a caminho, vindo do aeroporto. Sua bagagem já está aqui. Se precisar de alguma coisa, por favor, avise-me.
─ Obrigada ─ disse ela. ─ Não preciso de nada.
E era verdade. Não havia coisa alguma que necessitasse e não tivesse. Era a pessoa mais feliz do mundo.
Bateram na porta do camarote e um camareiro entrou, trazendo mais flores. Jill olhou para o cartão: eram do presidente dos Estados Unidos. Lembranças. Ela as expulsou da mente e começou a desfazer as malas.
Ele estava no tombadilho do convés principal, examinando os passageiros que embarcavam. Todos estavam alegres, preparando-se para um período de férias ou encontrando-se com amigos a bordo. Uns poucos sorriam para ele, mas o homem não lhes deu atenção. Estava observando a prancha de embarque.
Às onze e quarenta, vinte minutos antes da partida, um Silver Shadow com motorista aproximou-se em alta velocidade do Cais 90 e estacionou. David Kenyon saltou do carro, deu uma olhada no relógio e disse ao motorista:
─ Ótimo tempo, Otto.
─ Obrigado, senhor. Eu gostaria de desejar ao senhor e à Sra. Kenyon uma feliz lua-de-mel.
─ Obrigado.
David Kenyon apressou-se em direção à prancha de embarque, onde apresentou sua passagem. Foi acompanhado a bordo pelo mesmo oficial que recebera Jill.
─ A Sra. Temple está em seu camarote, Sr. Kenyon.
─ Obrigado.
David podia visualizá-la na suíte nupcial, à sua espera, e sentiu o coração bater mais depressa. Ao começar a se afastar, uma voz chamou:
─ Sr. Kenyon...
Ele se voltou. O homem que estava no convés aproximou-se com um sorriso no rosto. David jamais o vira antes, mas seu instinto de milionário fazia-o desconfiar de estranhos amistosos. Quase sempre queriam alguma coisa.
O homem estendeu a mão e David apertou-a cautelosamente.
─ Nós nos conhecemos? ─ perguntou.
─ Sou um velho amigo de Jill ─ disse o homem, e David relaxou. ─ Meu nome é Lawrence. Clifton Lawrence.
─ Como vai, Sr. Lawrence? ─ ele estava ansioso por terminar a conversa.
─ Jill me pediu que viesse recebê-lo ─ disse Clifton. ─ Ela preparou uma pequena surpresa para o senhor.
─ Que tipo de surpresa? ─ perguntou David, encarando-o.
─ Venha comigo e lhe mostrarei.
David hesitou por um momento.
─ Vai demorar muito?
Clifton Lawrence olhou para ele e sorriu:
─ Claro que não.
Os dois pegaram um elevador até o convés C, atravessando os grupos de visitantes e passageiros que embarcavam. Percorreram um corredor até um conjunto de portas amplas, que Clifton abriu para David passar. Ele se viu numa ampla e vazia sala de projeção. Olhou em volta, espantado.
─ É aqui?
─ É ─ sorriu Clifton.
Voltou-se e olhou para o operador na cabine, assentindo com a cabeça. O operador era ganancioso: Clifton tivera de lhe dar duzentos dólares para que concordasse em ajudá-lo.
─ Se algum dia eles descobrirem, perderei o emprego ─ resmungara ele.
─ Ninguém jamais saberá ─ assegurou-lhe Clifton. ─ É só uma brincadeira. Tudo que você tem a fazer é trancar as portas logo que eu entrar com meu amigo e começar a passar o filme. Sairemos dentro de dez minutos.
O operador acabara concordando.
Agora David olhava para Clifton, perplexo.
─ Filmes? ─ perguntou.
─ Sente-se, Sr. Kenyon.
David obedeceu e sentou-se numa cadeira de canto, suas longas pernas estendidas na passagem. Clifton escolheu um assento do outro lado. Observou o rosto de David quando as luzes se apagaram e as imagens coloridas começaram a brilhar sobre a grande tela.
Parecia que alguém lhe golpeava o plexo solar com martelos de ferro. David olhava as imagens obscenas à sua frente e o cérebro se recusava a aceitar o que os seus olhos estavam vendo. Jill, uma Jill jovem, tal como fora quando pela primeira vez se apaixonara por ela, estava nua numa cama. David podia ver com clareza todos os detalhes. Assistiu, mudo de incredulidade, à cena em que um homem montava na garota da tela e enfiava o pênis em sua boca; ela começou a sugá-lo com ternura, carinhosamente, enquanto outra garota entrava em cena, abria as pernas de Jill e metia a língua bem dentro dela. David pensou que fosse vomitar. Por um desesperado e esperançoso instante, mas a câmara cobria todos os movimentos de Jill. Então apareceu um mexicano, deitando-se sobre ela, e um nebuloso véu vermelho desceu sobre os olhos de David. Tinha novamente quinze anos e era sua irmã Beth que via ali, sua irmã sentada em cima do jardineiro mexicano, despido em sua cama, dizendo: "Oh, Deus, eu o amo, Juan. Trepe em mim, não pare!", e David de pé à porta, incrédulo, observando a irmã, que adorava. Fora tomado de uma raiva cega, violenta; agarrara um cortador de papel de aço que estava na escrivaninha, correra até a cama e empurrara a irmã. Então mergulhara a lâmina muitas e muitas vezes no peito do jardineiro, até as paredes cobrirem-se de sangue, enquanto Beth gritava: "Oh, Deus, não! Pare, David! Eu o amo, nós vamos nos casar!" Havia sangue por toda a parte. A mãe de David chegara correndo e o afastara. Mas depois ele soube que sua mãe havia telefonado para o procurador de justiça, amigo íntimo da família Kenyon. Haviam conversado durante muito tempo. Em seguida, o corpo do mexicano fora levado para a prisão e na manhã seguinte divulgou-se a notícia de seu suicídio na cela. Três semanas depois, Beth fora internada numa instituição para doentes mentais.
Tudo ressurgia agora em David, a insuportável culpa pelo que fizera, e isso o descontrolou. Agarrou o homem sentado à sua frente e deu-lhe um soco no rosto, golpeando-o, gritando palavras sem sentido, por Beth, por Jill e pela sua própria vergonha. Clifton Lawrence tentou defender-se, mas não era possível deter os golpes. Um soco explodiu em seu nariz e ele ouviu o som de algo que se quebrava. Outro acertou-lhe a boca e o sangue começou a jorrar como um rio. Ele ficou inerte, à espera do próximo golpe. Mas de repente tudo cessou. Não havia qualquer ruído na sala senão sua própria respiração difícil e estertorosa, além dos sons sensuais que vinham da tela.
Clifton puxou um lenço para tentar estancar o sangue. Saiu da sala tropeçando, cobrindo o nariz e a boca com o lenço, e encaminhou-se para o camarote de Jill. Ao passar pelo salão de festas, a porta de vaivém da cozinha abriu-se por um instante e Clifton entrou, passando pelos atarefados cozinheiros, garçons e auxiliares. Encontrou uma máquina de gelo, juntou vários pedacinhos num pedaço de pano e aplicou-o no nariz e na boca. Quando ia saindo, deu com um enorme bolo de casamento à sua frente, encimado por pequenas figuras de açúcar representando o casal. Clifton estendeu a mão, arrancou a cabeça da noiva e esmagou-a entre os dedos.
Então saiu à procura de Jill.
O navio zarpara. Jill sentia o movimento do vapor de cinquenta e cinco mil toneladas deslizando para longe do cais. Imaginava a razão da demora de David.
Terminava de desfazer as malas quando ouviu uma batida na porta do camarote. Correu até lá, chamando: "David!" Abriu a porta, os braços estendidos.
Lá estava Clifton Lawrence, o rosto ferido e sangrando. Jill abaixou os braços estendidos.
─ Que está fazendo aqui? Que... que acontece com você?
─ Só passei para dizer alô, Jill.
Ela mal conseguia compreendê-lo.
─ E lhe dar um recado de David.
Jill olhava-o, sem compreender.
─ De David?
Clifton entrou no camarote. Estava deixando Jill nervosa.
─ Onde está David?
Virou-se para ela e disse:
─ lembra-se de como costumavam ser os filmes de antigamente? Havia os bons sujeitos, de chapéu branco, e os maus sujeitos, de chapéu preto, e no final a gente sempre sabia que os maus iriam ter o que mereciam. Eu cresci com esses filmes, Jill. Cresci acreditando que a vida era assim mesmo, que os caras de chapéu branco sempre saíam ganhando.
─ Não sei do que você está falando.
─ É bom saber que de vez em quando a vida funciona como aqueles filmes.
Sorriu para ela com os lábios manchados e sangrentos:
─ David se foi. Para sempre.
Jill olhava-o incrédula.
E nesse momento ambos sentiram que o navio parava. Clifton saiu para a varanda e olhou para fora da amurada.
─ Venha cá.
Jill hesitou um instante e então acompanhou-o, cheia de um medo sem nome que aumentava cada vez mais. Debruçou-se na amurada. Lá embaixo, avistou David passando para o rebocador, deixando o Bretagne. Agarrou-se à amurada para não cair.
─ Por quê? ─ perguntou sem poder acreditar. ─ Que aconteceu?
Clifton Lawrence virou-se e disse:
─ Passei o seu filme para ele.
E imediatamente ela compreendeu e soluçou:
─ Oh, meu Deus. Não! Por favor, não! Você me matou!
─ Então estamos quites.
─ Fora! ─ gritou ela. ─ Fora daqui!
Atirou-se contra ele e suas unhas atingiram-lhe as faces, arranhando-o profundamente. Clifton esquivou-se e bateu-lhe com força no rosto. Ela caiu de joelhos, com as mãos na cabeça, que estalava de dor.
Clifton ficou olhando para ela durante um longo momento. Era essa a imagem que queria guardar na lembrança.
─ Adeus, Josephine Czinski ─ disse.
Clifton saiu do camarote e caminhou até o convés, cobrindo a parte inferior do rosto com o lenço. Andava lentamente, estudando os rostos dos passageiros, em busca de uma cara nova, de um tipo fora do comum. Nunca se sabe quando se vai dar com um novo talento. Ele se sentia pronto para voltar ao trabalho.
Quem poderia saber? Talvez tivesse sorte e viesse a descobrir um novo Toby Temple.
Pouco depois da saída de Clifton. Claude Dessard foi até o camarote de Jill e bateu. Não houve resposta, mas o comissário podia ouvir ruídos do lado de dentro. Esperou um momento, elevou a voz e falou:
─ Sra. Temple, aqui é Claude Dessard, o comissário-chefe. Posso ser-lhe útil em alguma coisa.
Não houve resposta. A esse altura, o sistema de alarme interno de Dessard enviava-lhe fortes sinais. Seus instintos lhe diziam que havia algo tremendamente errado e um pressentimento lhe indicava que, de algum modo, tudo girava em torno dessa mulher. Uma série de pensamentos loucos desenfreados, agitavam-se em seu cérebro. Ela fora assassinada ou raptada ou... Experimentou a maçaneta. A porta estava destrancada. Lentamente, Dessard a abriu. Jill Temple estava de pé na outra extremidade do camarote, olhando pela escotilha, de costas para ele. Dessard abriu a boca para falar, mas algo na rigidez da figura o deteve. Ficou ali por um momento, sem saber o que fazer, decidindo se deveria sair discretamente, quando de súbito o camarote se encheu de um som estranho, penetrante, como o de um animal ferido. Impotente diante de tamanho sofrimento, Dessard recuou, fechando cuidadosamente a porta atrás de si.
Ficou um instante do lado de fora, ouvindo o lamento sem palavras que vinha lá de dentro; então, profundamente perturbado virou-se e encaminhou-se para a sala de projeção no convés principal.
No jantar daquela noite havia dois lugares vazios na mesa do comandante. No meio da refeição, ele fez um sinal para Dessard, anfitrião de um grupo de pessoas menos importantes numa outra mesa. Dessard pediu licença e foi depressa até a mesa do comandante.
─ Ah, Dessard ─ disse cordialmente, para então baixar a voz, mudando de tom. ─ Que aconteceu com a Sra. Temple e o Sr. Kenyon?
Dessard deu uma olhada para os demais convidados e sussurrou:
─ Como o senhor sabe, o Sr. Kenyon deixou o navio em companhia do prático do Farol Ambrose. A Sra. Temple está em seu camarote.
O comandante soltou uma praga em voz baixa. Era um homem metódico, que não gostava de alterações em sua rotina.
─ Merda! Todas as providências para o casamento foram tomadas.
─ Eu sei, comandante.
Dessard encolheu os ombros e levantou os olhos:
─ Americanos...
Jill estava sozinha, sentada no camarote às escuras, encolhida numa cadeira, os joelhos encostados ao peito, os olhos perdidos no vazio. Sofria, mas não por David Kenyon ou Toby Temple, nem mesmo por ela própria. Sofria por uma garotinha chamada Josephine Czinski. Fizera tantos planos para ela e agora todos os maravilhosos sonhos encantados haviam chegado ao fim.
Jill ficou ali, sem nada ver, entorpecida por uma derrota além de qualquer compreensão. Poucas horas atrás o mundo lhe pertencera, ela tinha tudo que sempre quisera, e agora não tinha nada. Gradualmente, percebeu que sua dor de cabeça voltara; não notara antes por causa da outra dor, da dor terrível que lhe rompia as entranhas. Mas agora sentia a pressão em torno da cabeça. Encolheu-se mais ainda, em posição fetal, tentando isolar-se de tudo. Estava tão cansada, tão terrivelmente cansada. A única coisa que queria era sentar-se ali para sempre e não ter que pensar. Talvez então a dor passasse, pelo menos por um certo tempo.
Jill arrastou-se até a cama, deitou-se e fechou os olhos.
Então sentiu. Uma onda de ar frio e fétido movendo-se em sua, direção, cercando-a, acariciando-a. E ouviu a voz dele chamando seu nome. "Sim", pensou. "Sim." Lentamente, quase em transe, levantou-se e saiu do camarote, seguindo a voz que a chamava, soando dentro de sua cabeça.
Eram duas horas da manhã e os conveses estavam desertos quando Jill saiu do camarote. Ficou olhando o mar, observando as ondas que se quebravam suavemente contra o casco do navio que atravessava as águas, ouvindo a voz. Sua dor de cabeça piorara, numa agonia lancinante. Mas a voz lhe dizia para não se preocupar, que tudo sairia bem. "Olhe para baixo", falou a voz.
Jill olhou para a superfície da água e viu algo flutuando. Era um rosto. O rosto de Toby, sorrindo para ela, os olhos azuis fixando-a sob a água. Uma brisa gelada começou a soprar, impelindo-a gentilmente para junto da amurada.
─ Eu tinha de fazer aquilo, Toby ─ murmurou ela. ─ Você compreende, não é?
A cabeça na água assentia, flutuava, convidando-a. O vento se tornou mais frio e o corpo de Jill começou a tremer. "Não tenha medo", disse-lhe a voz. "A água é profunda e cálida... Você estará comigo... Para sempre, venha, Jill..."
Ela fechou os olhos, por um momento, mas ao abri-los o rosto sorridente ainda estava lá, acompanhando a marcha do navio, os membros mutilados balançando dentro d'água. "Venha para mim", disse a voz.
Jill se debruçou para explicar a Toby, para que ele a deixasse em paz, mas o vento gelado a empurrou e de súbito ela estava flutuando no suave ar aveludado da noite, girando no espaço. O rosto de Toby se aproximava, vinha ao encontro dela, e Jill sentiu os braços paralisados a enlaçá-la prendendo-a. E os dois se reuniram para todo o sempre.
Restaram apenas o suave vento da noite e o mar eterno.
E lá em cima, as estrelas, onde tudo fora escrito.
AGRADECIMENTO
Gostaria de manifestar o meu apreço pela generosa assistência que me foi prestada pelos seguintes produtores de cinema e televisão:
Seymour Berns
Larry Gelbart
Bert Granet
Harvey Orkin
Marty Rackin
David Swift
Robert Weitman
E a minha profunda gratidão, por terem partilhado comigo de suas memórias e experiências, a:
Marty Allen
Milton Berle
Red Buttons
George Burns
Jack Carter
Buddy Hackett
Groucho Marx
Jan Murray
O autor
O AUTOR E SUA OBRA
Sidney Sheldon teve uma carreira movimentada. Nascido em Chicago, frequentou a Northwestern University como bolsista, abandonando os estudos durante os anos de Depressão para trabalhar como operário numa fábrica, balconista de uma loja de roupas, locutor de rádio e compositor de músicas populares, isso tudo antes de se dirigir para Hollywood. Na Meca do cinema teve a sua carreira interrompida ao ser convocado para servir na Força Aérea americana durante a guerra. Ao ser desmobilizado das Forças Armadas, começou a escrever para o teatro, em Nova York.
Aos vinte e cinco anos realizava a proeza inédita, como autor teatral, de manter três musicais em cartaz na Broadway, com casas cheias todas as noites. Voltando a Hollywood, escreveu o argumento de um filme vencedor, em 1947, do Oscar da Academia de Cinema, "O solteirão cobiçado", com Cary Grant no papel principal, e obteve outras láureas nos anos seguintes, como os prémios recebidos da Screen Writers Association (Associação dos Roteiristas Cinematográficos) por "Desfile de Páscoa", com Fred Astaire e Judy Garland, e "Bonita e valente", estrelado por Betty Hutton. Produziu e dirigiu "O palhaço que não ri", com Donald O'Connor desempenhando na tela o papel de Buster Keaton, e logo depois colhia mais um significado prémio na Broadway, o trofeu Tony, pelo seu musical "Redhead". Na televisão, criou dois seriados de grande sucesso de audiência, "The Patty Duke Show" e I Dream of Jannie (no Brasil, "Jeannie É um Génio"). Seu mais recente trabalho, "Bloodline", encontra-se em tradução, ainda sem título definitivo em português.
Sheldon debutou auspiciosamente na ficção, tendo o seu livro "A outra face" sido recebido por um rigoroso crítico, o do jornal "The New York Times", como "o melhor romance de estréia do ano".
A ele se seguiu "O outro lado da meia-noite", logo transformado em Best-seller mundial e filme campeão de bilheteira. "Um estranho no espelho" traz a marca inequívoca do talento do autor e deve repetir o sucesso de suas obras anteriores.
(FIM)
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