FREIDA McFADDEN

O SEGREDO DA CRIADA

Tradução de Carla Ribeiro


Prólogo

Esta noite, serei assassinada.

Os relâmpagos fulguram à minha volta, iluminando a sala de estar da pequena cabana onde vim passar a noite, e onde a minha vida em breve alcançará um fim abrupto. Mal consigo distinguir as tábuas do soalho sob os meus pés e, por uma fração de segundo, imagino o meu corpo estendido sobre essas tábuas, uma poça vermelha a alastrar debaixo de mim num círculo irregular, infiltrando-se na madeira. Os meus olhos abertos, a olhar para o nada. A minha boca ligeiramente entreaberta, um fio de sangue a escorrer-me pelo queixo.

Não. Não.

Esta noite não.

Assim que a cabana volta a ficar às escuras, tateio às cegas diante de mim, afastando-me do conforto do sofá. A tempestade é forte, mas não o suficiente para deitar a luz abaixo. Não, outra pessoa é responsável por isso. Alguém que já tirou uma vida esta noite e espera que eu seja a próxima.

Tudo começou com um simples trabalho de limpeza. E agora pode acabar com o meu sangue a ser esfregado do chão da cabana.

Espero que outro relâmpago me mostre o caminho e avanço cautelosamente em direção à cozinha. Não tenho um plano em mente, mas a cozinha contém possíveis armas. Há um bloco inteiro de facas lá dentro – e, à falta disso, até um garfo pode ser útil. Só com as minhas mãos estou perdida. Com uma faca talvez as minhas hipóteses possam ser ligeiramente melhores.

A cozinha tem umas grandes janelas fixas que deixam entrar um pouco mais de luz do que no resto da cabana. As minhas pupilas dilatam-se, esforçando-se por absorver o máximo possível. Cambaleio em direção à bancada da cozinha, mas, ao fim de três passos no linóleo, os meus pés escorregam debaixo de mim e caio violentamente ao chão, batendo com o cotovelo com tanta força que me vêm as lágrimas aos olhos.

Ainda que, para ser justa, já as tivesse antes.

Ao tentar levantar-me, percebo que o chão da cozinha está molhado. Surge um novo relâmpago e olho para as minhas mãos. Estão ambas manchadas de carmesim. Não escorreguei numa poça de água ou em leite derramado.

Escorreguei em sangue.

Por um momento, fico ali sentada, a fazer um inventário do meu corpo. Nada me dói. Continuo intacta. O que significa que o sangue não é meu.

Ainda não, pelo menos.

Mexe-te. Já. E a tua única hipótese.

Desta vez, tenho mais sucesso na minha tentativa de me levantar. Chego à bancada da cozinha, soltando um suspiro de alívio no momento em que os meus dedos estabelecem contacto com a superfície fria e dura. Tateio em busca do bloco de facas, mas não o consigo encontrar. Onde está?

E, então, oiço os passos a aproximarem-se. É difícil ajuizar, sobretudo por estar tudo tão escuro, mas tenho quase a certeza de que agora está mais alguém na cozinha comigo. Todos os pelos do meu pescoço se eriçam quando um par de olhos me trespassa.

Já não estou sozinha.

O meu coração cai-me aos pés. Cometi um erro de discernimento incrivelmente grave. Subestimei uma pessoa extremamente perigosa.

E agora vou pagar o derradeiro preço.


PRIMEIRA PARTE

1

MILLIE

Três meses antes

Ao fim de uma hora a esfregar, a cozinha de Amber Degraw está praticamente imaculada.

Tendo em conta que, tanto quanto consigo perceber, Amber parece fazer quase todas as suas refeições em restaurantes da zona, não parece que seja propriamente um esforço necessário. Se tivesse de apostar dinheiro, diria que nem sequer sabe como ligar o seu sofisticado forno. Tem uma bela e enorme cozinha cheia de eletrodomésticos, que estou bastante certa de que não usou nem uma vez. Tem um robô de cozinha, uma arrozeira, uma fritadeira sem óleo e até uma coisa chamada desidratador. Parece algo contraditório que alguém com oito tipos diferentes de hidratante na sua casa de banho tenha também um desidratador, mas quem sou eu para julgar?

Pronto, está bem, julgo um bocadinho.

Mas esfreguei cuidadosamente cada um desses eletrodomésticos não utilizados, limpei o frigorífico, guardei várias dúzias de pratos e esfreguei o chão até ficar suficientemente brilhante para quase ver nele o meu reflexo. Agora, só me falta arrumar a última pilha de roupa lavada e o apartamento penthouse dos Degraw ficará oficialmente impecável.

– Millie! – A voz ofegante de Amber faz-se ouvir na cozinha, e eu limpo um pouco de suor da testa com as costas da mão. – Millie, onde está?

– Aqui! – grito, apesar de ser bastante óbvio onde estou. O mega apartamento, que fundiu dois apartamentos contíguos num só, é grande, mas não é assim tão grande. Se não estou na sala de estar, é quase certo que estou na cozinha.

Amber entra na divisão, com o seu habitual aspeto impecavelmente elegante, num dos seus muitos, muitos, vestidos de marca. Este é estampado em zebra, com um profundo decote em V e mangas a afunilar junto aos seus pulsos esguios. Combinou o vestido com umas botas de zebra a condizer e, embora esteja tão dolorosamente linda como sempre, parte de mim não sabe ao certo se a deva elogiar pelo visual ou caçá-la num safari.

– Aí está! – diz, com um laivo de acusação na voz, como se eu não estivesse exatamente onde devia estar.

– Estou mesmo a acabar – respondo. – Vou só buscar a roupa lavada e...

– Na verdade – interrompe-me Amber –, quero que fique.

Encolho-me por dentro. Faço limpezas para Amber duas vezes por semana, mas também faço outros trabalhos, incluindo tomar conta da sua filha de nove meses, a Olive. Tento ser flexível porque o salário é fantástico, mas ela não é muito boa a pedir com antecedência. Parece que todos os meus trabalhos como ama nesta casa são na base da informação estritamente necessária. E, aparentemente, não preciso de saber nada até cerca de vinte minutos antes de acontecer.

– Tenho uma pedicura – diz, com toda a gravidade com que alguém me poderia informar de que vai para o hospital ser operado ao coração. – Preciso que fique de olho na Olive na minha ausência.

A Olive é uma menina doce. Não me importo minimamente de tomar conta dela – geralmente. Na verdade, há alturas em que de bom grado aproveitaria a oportunidade de ganhar algum dinheiro ao exorbitante preço por hora que Amber me paga, e que me permite manter um teto sobre a minha cabeça e comer algo que não tenha sido pescado de um caixote do lixo. Mas, neste momento, não posso.

– Tenho aulas daqui a uma hora.

– Oh! – Amber franze o sobrolho, voltando depois rapidamente a adotar uma expressão neutra. Da última vez que cá estive, disse-me que tinha lido um artigo sobre como sorrir e franzir o sobrolho são as principais causas de rugas, pelo que tenta manter-se sempre o mais inexpressiva possível. – Não pode faltar? Não têm as palestras gravadas? Ou alguma transcrição que possa pedir?

Não, não têm. Além do mais, já faltei a duas aulas nas duas últimas semanas devido a pedidos de última hora de Amber para tomar conta da bebé. Estou a tentar tirar a minha licenciatura, e preciso de uma nota decente nesta disciplina. E, seja como for, gosto da cadeira. Psicologia Social é divertido e interessante. E uma avaliação positiva é crucial para o meu curso.

– Não lhe pediria – diz Amber –, se não fosse importante.

A sua definição de importante deve divergir da minha. Para mim, «importante» é acabar a faculdade e obter aquele diploma de Serviço Social. Não sei muito bem como pode uma pedicura ser assim tão importante. Quer dizer, ainda estamos no fim do inverno. Quem lhe vai sequer ver os pés?

– Amber – começo a dizer.

Como que seguindo a deixa, um choro agudo emerge da sala de estar. Embora não esteja oficialmente a tomar conta da Olive neste momento, costumo manter-me de olho nela sempre que estou aqui. Amber leva a Olive três vezes por semana a um grupo de brincadeira com as amigas e parece passar o resto do tempo a planear maneiras em como se ver livre dela. Queixou-se a mim que o Sr. Degraw não a deixa contratar uma ama a tempo inteiro porque ela própria não trabalha, daí ir organizando o cuidado da filha através de uma série de amas temporárias – maioritariamente eu. Em todo o caso, a Olive estava no seu parque quando comecei a limpar e fiquei com ela na sala de estar até o aspirador a adormecer.

– Millie – diz vincadamente Amber.

Com um suspiro, pouso a esponja que segurava; nos últimos tempos, parece ter-se fundido com a minha mão. Lavo as mãos no lava-loiça e limpo-as às minhas calças de ganga.

– Já vou, Olive! – grito.

Quando regresso à sala de estar, a Olive conseguiu erguer-se na beira do parque e chora tão desesperadamente que o seu rostinho redondo ficou vermelho-vivo. A Olive é o tipo de bebé que poderíamos ver na capa de uma revista de puericultura.

É tão perfeitamente querubínica e bela, até aos suaves caracóis louros que estão agora colados ao lado esquerdo da sua cabeça devido à sesta. De momento, não parece assim tão querubínica, mas, ao ver-me, ergue imediatamente os braços e os seus soluços diminuem.

Estendo as mãos para o parque e puxo-a para os meus braços. Ela enterra o seu rostinho molhado no meu ombro, e eu já não me sinto tão mal por faltar às aulas, se tiver de ser. Não sei o que se passa, mas, assim que fiz trinta anos, foi como se um interruptor se tivesse ligado dentro de mim, fazendo-me pensar que os bebés são a coisa mais adorável em todo o universo. Adoro passar tempo com a Olive, apesar de não ser a minha bebé.

– Fico-lhe grata, Millie – a Amber está já a vestir o seu casaco e a tirar a sua bolsa Gucci do bengaleiro junto à porta. – E acredite, os dedos dos meus pés agradecem-lhe.

Sim, sim.

– Quando volta?

– Não vou demorar – assegura-me, o que ambas sabemos ser uma mentira descarada. – Afinal, sei que a minha princesinha vai sentir a minha falta!

– É claro – murmuro.

Enquanto Amber vasculha a sua bolsa em busca das chaves, do telemóvel ou do pó compacto, a Olive encosta-se mais a mim. Ergue o seu rostinho redondo e sorri-me com os seus quatro minúsculos dentes brancos.

– Mamã – diz.

Amber paralisa, a mão ainda dentro da bolsa. Todo o tempo parece parar.

– O que foi que ela disse?

Oh, não.

– Disse... Millie?

A Olive, alheia aos problemas que está a causar, sorri-me novamente e volta a balbuciar, desta vez mais alto:

– Mamã!

O rosto de Amber cora sob a base.

– Ela acabou de lhe chamar mamai

– Não...

– Mamã! – exclama alegremente a Olive. Oh, meu Deus, queres parar com isso, miúda?

Amber atira a sua bolsa para cima da mesa de café, o rosto torcido numa máscara de raiva que quase de certeza irá causar rugas.

– Anda a dizer à Olive que é mãe dela?

– Não! – exclamo. – Digo-lhe que sou a Millie. Millie. De certeza que fica apenas confusa, sobretudo porque sou eu quem...

Ela arregala os olhos.

– Porque passa mais tempo com ela do que eu? Era isso que ia dizer?

– Não! É claro que não!

– Está a dizer que eu sou má mãe? – Amber dá um passo na minha direção e a Olive parece alarmada. – Acha que é mais mãe da minha menina do que eu?

– Não! Nunca...

Então por que lhe anda a dizer que é mãe dela?

– Não ando! – O meu exorbitante salário de ama está a ir pelo cano abaixo. – Juro. Millie. É só isso que eu digo. Soa como mamã, mais nada. Tem a mesma primeira letra.

Amber respira fundo para se acalmar. Depois dá outro passo na minha direção.

– Dê-me a minha bebé.

– Com certeza...

Mas a Olive não está a facilitar as coisas. Ao ver a mãe avançar para ela de braços estendidos, agarra-se com mais força ao meu pescoço.

– Mamã! – soluça contra a minha garganta.

– Olive – murmuro. – Eu não sou a tua mamã. Aquela é a tua mamã – e esta prestes a despedir-me se não me largares.

– É tão injusto! – exclama Amber. – Amamentei-a durante mais de uma semana! Isso não vale nada?

– Lamento imenso...

Finalmente, Amber arranca a Olive dos meus braços, enquanto a bebé chora desalmadamente.

– Mamã! – grita, estendendo para mim os seus braços gorduchos.

– Ela não é a tua mamã! – diz Amber, repreendendo a bebé. – Eu é que sou. Queres ver as estrias? Essa mulher não é tua mãe.

– Mamã! – chora.

– Millie – corrijo eu. – Millie.

Mas que diferença faz? Ela não precisa de saber o meu nome. Porque, depois de hoje, nunca mais me deixarão voltar a entrar nesta casa. Estou tão despedida.


2

Durante a minha caminhada da estação de comboios para o meu T1 no sul do Bronx, mantenho um braço firmemente apertado sobre a minha bolsa e o outro agarrado à lata de gás-pimenta que tenho enfiada no bolso, mesmo estando em plena luz do dia. Todo o cuidado é pouco neste bairro.

Hoje, sinto-me sortuda por sequer ter o meu pequeno apartamento no meio de um dos bairros mais perigosos de Nova Iorque. Se não conseguir outro emprego em breve para substituir os rendimentos que acabo de perder depois de Amber Degraw me ter dispensado (sem qualquer oferta de uma referência), o melhor que poderei esperar será uma caixa de cartão na rua à porta do decrépito edifício de tijolo onde atualmente vivo.

Se não tivesse decidido ir para a universidade, já poderia ter poupado algum dinheiro por esta altura. Mas, estúpida que sou, decidi tentar melhorar-me.

Enquanto percorro o último quarteirão até ao meu prédio, os meus ténis a chiar contra a lama do passeio, tenho a sensação que está alguém atrás de mim, a seguir-me. Claro que estou sempre em alerta máximo por aqui. Mas há alturas em que sinto com muita força que atraí o tipo errado de atenção.

Neste momento, por exemplo, além de sentir um formigueiro na nuca, oiço passos nas minhas costas. Passos que parecem ir ficando mais altos à medida que caminho. Quem quer que esteja atrás de mim está a aproximar-se.

Mas não me viro. Limito-me a apertar mais o meu sensato casaco preto contra o corpo e a andar mais depressa, passando por um Mazda preto com o farol direito rachado, por uma boca-de-incêndio vermelha a verter água por toda a rua e subindo os cinco degraus irregulares de betão até à porta do meu prédio.

Tenho as minhas chaves a postos. Contrariamente ao que acontece no ostentoso prédio de apartamentos dos Degraw no Upper West Side, aqui não há porteiro. Há um intercomunicador e uma chave para abrir a porta. Quando a senhoria, a Sra. Randall, me arrendou o apartamento, deu-me um severo sermão sobre não deixar entrar ninguém atrás de mim. É uma boa maneira de ser assaltada ou violada.

Enquanto enfio a chave na fechadura, que parece sempre prender, os passos tornam-se novamente mais altos. Passado um segundo, surge sobre mim uma sombra que não posso ignorar. Ergo o olhar e identifico um homem em meados da casa dos vinte, com uma gabardina preta e o cabelo escuro ligeiramente húmido. Parece-me vagamente familiar – sobretudo a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda.

– Vivo no segundo andar – relembra-me, ao ver a hesitação no meu rosto. – Segundo C.

– Oh! – respondo, apesar de continuar a não me sentir lá muito entusiasmada com a ideia de o deixar entrar.

O homem tira um molho de chaves do bolso e sacode-as diante do meu rosto. Uma delas tem os mesmos entalhes que a minha.

– Segundo C – repete. – Mesmo por baixo de si.

Acabo por ceder e entrar para deixar que o homem com a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda também entre no meu prédio, atendendo a que facilmente o poderia fazer à força se quisesse. Vou à frente, subindo pesadamente os degraus um a um enquanto me interrogo sobre como raios vou pagar a renda do próximo mês.

Preciso de um novo emprego – e já. Durante algum tempo, tive um trabalho a tempo parcial como empregada de bar, do qual estupidamente desisti porque tomar conta da Olive pagava muito melhor e o planeamento de última hora dificultava a conciliação com o segundo emprego. E não é como se fosse fácil para alguém como eu arranjar outro trabalho. Não com o meu historial.

– Belo tempo que temos tido – comenta o homem com a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda, seguindo um passo atrás de mim nos degraus.

– Ahã – respondo. A última coisa que me apetece neste momento é falar sobre o tempo.

– Ouvi dizer que vai nevar outra vez na próxima semana – acrescenta.

– Oh?

– Sim. Estão previstos vinte centímetros. Um último viva antes da primavera.

Já nem consigo tentar fingir interesse. Ao chegarmos ao segundo andar, o homem sorri.

– Tenha um bom dia, então – diz.

– Igualmente – murmuro.

Enquanto desce o corredor rumo ao seu próprio apartamento, não posso deixar de pensar no que me disse quando O deixei entrar. Segundo C. Mesmo por baixo de si.

Como sabia que eu moro no Terceiro C?

Faço um esgar e subo um pouco mais depressa os degraus até ao meu apartamento. Mais uma vez, tenho as chaves a postos e, mal entro, fecho a porta atrás de mim, rodo a chave na fechadura e corro o ferrolho. Provavelmente, estou a dar demasiada importância ao comentário do homem, mas todo o cuidado é pouco. Sobretudo quando se vive no sul do Bronx.

O meu estômago ronca, mas, mais ainda do que por comida, anseio por um banho quente. Certifico-me de que as persianas estão corridas antes de me despir e saltar para o duche. Sei por experiência própria que há um minúsculo intervalo entre a água sair a ferver ou gelada. Desde que vivo aqui, tornei-me especialista em ajustar a temperatura. Mas pode subir ou descer vinte graus numa fração de segundo, por isso não demoro muito tempo. Preciso só de lavar alguma da sujidade do meu corpo. Ao fim de um dia a andar pela cidade, fica sempre coberto por uma camada de pó preto. Odeio pensar no aspecto que os meus pulmões terão.

Não posso acreditar que perdi aquele emprego. Amber apoiava-se tanto em mim que pensava estar segura pelo menos até a Olive ir para o jardim de infância, talvez mais tempo. Quase começava a sentir-me confortável, como se tivesse um emprego estável e um rendimento com que podia contar.

Agora, tenho de procurar outra coisa. Talvez múltiplos outros empregos para substituir aquele. E não é tão fácil para mim como para a maioria das pessoas. Não posso propriamente pôr um anúncio nas aplicações populares de cuidados infantis, pois todas exigem uma verificação de antecedentes. E, assim que isso acontecesse, quaisquer perspetivas de emprego deixariam de estar em cima da mesa. Ninguém quer alguém como eu a trabalhar em sua casa.

De momento, tenho uma certa falta de referências. Porque, durante algum tempo, os trabalhos de limpeza que eu fazia não eram propriamente só de limpeza. Costumava fazer outro serviço para várias das famílias para quem limpava. Mas já não faço isso. Há anos que não o faço.

Bem, não adianta remoer no passado. Não quando o futuro parece tão sombrio.

Para de ter pena de ti mesma, Millie. Já estiveste em situações piores do que esta e saíste delas.

A temperatura do duche desce bruscamente e eu solto um grito involuntário. Estendo a mão para a torneira e fecho a água. Consegui uns bons dez minutos. Melhor do que estava à espera.

Embrulho-me no meu roupão de felpa, sem me dar ao trabalho de calçar uns chinelos. Deixo um rasto de pequenas pegadas molhadas até à cozinha, que é apenas uma continuação da sala de estar. No mega apartamento dos Degraw, a cozinha, a sala de estar e a sala de jantar eram todas divisões separadas. Neste apartamento, porém, fundiram-se numa única divisão polivalente que, ironicamente, é muito mais pequena do que qualquer das salas da casa dos Degraw. Até a casa de banho de lá é maior do que todo o meu espaço de habitação.

Ponho uma panela de água ao lume para ferver. Não sei o que vou fazer para o jantar, mas provavelmente será algum tipo de massa cozida, seja ramen, esparguete ou espirais. Estou a estudar as minhas opções quando oiço bater à porta.

Hesito, apertando o cinto do meu roupão à volta da cintura. Tiro uma caixa de esparguete do armário.

– Millie! – a voz soa abafada atrás da porta. – Deixa-me entrar, Millie!

Estremeço. Oh, não!

E então...

– Eu sei que estás aí!


3

Não posso ignorar o homem aos murros à minha porta.

Os meus pés deixam atrás de si um rasto de pegadas molhadas enquanto atravesso os poucos metros até à porta. Aproximo a minha vista ao óculo. Está um homem parado do outro lado, de braços cruzados sobre os bolsos do peito do seu fato de trabalho da Brooks Brothers.

– Millie – a voz tornou-se um rosnido grave. – Deixa-me entrar. Já.

Afasto-me um passo da porta. Por um momento, levo as pontas dos dedos às têmporas. Mas isto é inevitável – tenho de o deixar entrar. Assim, estendo a mão, abro o ferrolho, rodo a chave na fechadura e entreabro cuidadosamente a porta.

– Millie. – Abre o resto da porta e desliza para dentro de minha casa. Os seus dedos rodeiam-me o braço. – Que raio?

Deixo descair os ombros.

– Desculpa, Brock.

Brock Cunningham, com quem tenho andado a sair desde há seis meses, lança-me um olhar.

– Tínhamos planos para jantar esta noite. Não apareceste. E não respondes às mensagens nem atendes o teu telemóvel.

Tem razão em todos os aspetos. Sou basicamente a pior namorada de sempre. Era suposto eu e o Brock encontrarmo-nos num restaurante em Chelsea depois de eu terminar as minhas aulas por hoje, mas, depois de Amber me ter despedido, mal me conseguia concentrar nas aulas – e não me apetecia certamente jantar fora – pelo que vim simplesmente direita a casa. Ainda assim, sabia que se ligasse ao Brock a dizer que não queria ir, sentir-se-ia obrigado a convencer-me – e, enquanto advogado, é superconvincente. Por isso, tinha o plano de lhe enviar uma mensagem de texto a desmarcar, mas fui adiando, e depois estava tão ocupada a sentir pena de mim mesma que me esqueci por completo.

Como disse, pior namorada de sempre.

– Desculpa – repito.

– Estava preocupado contigo – diz. – Pensei que talvez algo terrível te tivesse acontecido.

– Porquê?

Uma sirene ensurdecedora faz-se ouvir do lado de fora da janela, e o Brock olha para mim como se eu tivesse feito uma pergunta muito estúpida. Sinto uma pontada de culpa. Provavelmente, o Brock tinha montes de coisas para fazer esta noite, e eu não só o fiz esperar por mim no restaurante como um idiota, como também o fiz desperdiçar o resto da noite a vir até ao sul do Bronx para se certificar de que eu estava bem.

No mínimo dos mínimos, devo-lhe uma explicação.

– A Amber Degraw despediu-me – digo. – Portanto, estou basicamente lixada.

– A sério? – arqueia as sobrancelhas. O Brock tem as sobrancelhas mais perfeitas que eu alguma vez vi num homem, e estou convencida de que as deve arranjar profissionalmente, ainda que jamais admita tal coisa. – Por que te despediu? Pensava que tinhas dito que não podia funcionar sem ti. Disseste que estavas basicamente a criar-lhe a filha.

– Exato – respondo. – A miúda não parava de me chamar mamã e a Amber passou-se.

O Brock fita-me por um momento. Depois, inesperadamente, desata a rir. De início, fico ofendida. Acabo de

perder o meu emprego. Será que não percebe o quanto isso é uma treta?

Mas então, passado um segundo, dou por mim a juntar-me ao riso. Atiro a cabeça para trás e rio-me do ridículo de toda a situação. Lembro-me da Olive a estender os braços para mim e a soluçar «mamã» enquanto a Amber ficava cada vez mais furiosa. Pensei seriamente que lhe ia rebentar um aneurisma no cérebro.

Passado um minuto, estamos ambos a limpar as lágrimas dos olhos. O Brock envolve-me nos seus braços e puxa-me para si, não mais zangado por o ter deixado pendurado. Não se zanga facilmente. A maioria das pessoas contaria isso entre as suas qualidades, embora haja alturas em que eu gostaria que mostrasse um pouco mais de paixão.

De modo geral, porém, estamos no ponto ideal do nosso relacionamento. Seis meses. Haverá melhor altura numa relação do que os seis meses? Sinceramente, não sei, porque é apenas a segunda vez que atinjo esse marco. Mas parece-me que os seis meses são aquela fase perfeita em que largamos o constrangimento do início da relação, mas ainda estamos a mostrar um ao outro o nosso melhor lado.

O Brock, por exemplo, é um atraente advogado de trinta e dois anos de uma família abastada. Parece basicamente perfeito. Estou certa de que tem maus hábitos, mas não faço ideia de quais são. Talvez limpe a cera do canal auditivo com o dedo e depois o limpe à bancada da cozinha ou ao sofá. Ou talvez coma a cera. Apenas quero dizer que pode ter muitos maus hábitos que eu desconheço, alguns deles não envolvendo sequer a cera dos ouvidos.

Bem, tem uma imperfeição. Apesar de ser um jovem robusto, com o rosto corado de saúde, sofre, na verdade, de um problema cardíaco que desenvolveu em criança.

Mas não parece afetá-lo minimamente. Toma um comprimido todos os dias e parece não passar daí. Ainda assim, é suficientemente importante para manter um frasco de reserva no meu armário dos medicamentos. E a sua doença e a incerteza quanto à sua esperança de vida deixaram-no um pouco mais ávido de assentar do que a maioria dos homens.

– Deixa-me levar-te a jantar fora – pede o Brock. – Quero animar-te.

Abano a cabeça.

– Só quero ficar em casa a sentir pena de mim mesma. E depois talvez procurar empregos na Internet.

– Agora? Ainda há poucas horas perdeste o teu emprego. Não podes esperar pelo menos até amanhã?

Ergo o olhar para o fulminar.

– Alguns de nós precisam de dinheiro para pagar a renda.

Lentamente, assente.

– Está bem, mas e se não tivesses de te preocupar com a renda?

Tenho um mau pressentimento de que sei onde isto vai dar.

– Brock...

– Vá lá, por que não queres viver comigo, Millie? – pergunta, franzindo o sobrolho. – Tenho um T2 com vista para o Central Park, num prédio onde ninguém te vai cortar a garganta durante a noite. E, seja como for, vais tantas vezes lá a casa...

Não é a primeira vez que me sugere que vá viver com ele, e não posso dizer que os seus argumentos não sejam persuasivos. Se me mudasse para casa do Brock, estaria a viver no colo do luxo e não teria de pagar nem um cêntimo por isso. Não me deixaria contribuir mesmo que eu quisesse. Podia focar-me em obter a minha licenciatura para poder tornar-me assistente social e fazer algum bem no mundo. Parece uma decisão simples.

Sempre que pondero dizer-lhe que sim, contudo, uma voz ao fundo da minha cabeça grita: Não o faças!

A voz na minha cabeça é tão persuasiva quanto a do Brock. Há muitos bons motivos para irmos viver juntos. Mas há uma boa razão para não o fazer. Não faz ideia de quem eu realmente sou. Ainda que ande mesmo a comer a cera dos próprios ouvidos, os meus segredos são muito piores.

Portanto, eis-me aqui, na relação mais normal e saudável da minha vida adulta, e aparentemente decidida a estragar tudo. Mas estou a modos que num dilema. Se lhe contar a verdade sobre o meu passado, pode deixar-me, e eu não quero isso. Mas se não lhe contar...

De uma maneira ou de outra, vai descobrir tudo. Simplesmente não estou preparada para isso.

– Desculpa – digo-lhe. – Como disse, preciso do meu próprio espaço neste momento.

O Brock abre a boca para protestar, mas depois muda de ideias. Conhece-me o suficiente para saber quão teimosa posso ser. Veem? Já está a descobrir alguns dos meus maiores defeitos.

– Diz-me ao menos que vais pensar no assunto.

– Vou pensar no assunto – minto.


4

Vou para a minha décima entrevista de emprego nas últimas três semanas, e começo a ficar nervosa.

Não tenho dinheiro suficiente na conta bancária para cobrir sequer um mês de renda. Sei que é suposto termos uma reserva de seis meses no banco, por via das dúvidas, mas isso funciona melhor na teoria do que na prática. Adoraria ter uma reserva de seis meses no banco. Raios, adoraria ter uma reserva de dois meses. Em vez disso, tenho menos de duzentos dólares.

Não sei o que fiz de errado nas outras nove entrevistas para vagas de empregada de limpeza ou ama. Uma das mulheres garantiu-me abertamente que planeava contratar-me, mas passou uma semana e não ouvi um pio da parte dela. Ou de qualquer uma das outras. Presumo que tenha feito uma verificação de antecedentes e tudo acabou por aí.

Se eu fosse qualquer outra pessoa, podia simplesmente juntar-me a algum tipo de serviço de limpezas e não teria de passar por este processo. Mas todos se recusam a contratar-me. Eu tentei. As verificações de antecedentes tornam isso impossível – ninguém quer alguém com registo criminal em sua casa. É por isso que ponho anúncios na Internet e espero o melhor.

Também não tenho grandes esperanças para a entrevista de hoje. Vou encontrar-me com um homem chamado Douglas Garrick, que vive num prédio de apartamentos no Upper West Side, logo a oeste do Central Park. É um daqueles edifícios góticos com pequenas torres a erguer-se da linha do horizonte. Dá a vaga impressão de que devia estar cercado por um fosso e guardado por um dragão, em vez de ser um local onde se pode simplesmente entrar da rua.

Um porteiro de cabelos brancos abre-me a porta da frente com um inclinar do seu boné preto. Enquanto lhe sorrio, tenho uma vez mais aquela sensação de formigueiro na nuca. Como se alguém me estivesse a observar.

Desde aquela noite em que regressei a casa após ter sido despedida, tive várias vezes essa sensação. Fazia sentido no meu bairro do sul do Bronx, onde provavelmente há assaltantes em cada esquina, prontos a atacar se eu aparentasse ter algum dinheiro, mas não aqui. Não num dos bairros mais elegantes de Manhattan.

Antes de entrar no prédio de apartamentos, viro-me para olhar para trás. Há dúzias de pessoas a circular na rua, mas nenhuma me presta atenção. Existem muitas pessoas singulares e interessantes a caminhar pelas ruas de Manhattan, e eu não sou uma delas. Não há razões para alguém estar a olhar para mim.

Então vejo o carro.

É um Mazda preto familiar. Provavelmente, há milhares de carros iguais na cidade, mas, ao observá-lo, tenho uma estranha sensação de déjà vu. Demoro um segundo a perceber porquê.

O carro tem o farol direito rachado. Tenho a certeza de que vi um Mazda preto com o farol direito rachado estacionado perto do meu prédio de apartamentos no sul do Bronx.

Não vi?

Espreito pelo para-brisas. O carro está vazio. Baixo o olhar para ver a matrícula. É de Nova Iorque – nada de entusiasmante aí. Tiro um momento para a memorizar: 58F321. A matrícula não me diz nada, mas, se o voltar a ver, lembrar-me-ei.

– Menina? – chama o porteiro, arrancando-me do meu transe. – Vai entrar?

– Oh! – tusso para a mão. – Sim. Sim, desculpe lá.

Entro no átrio do edifício. Em vez de ter luzes no teto, o

vestíbulo é iluminado por candelabros e candeeiros nas laterais das paredes que pretendem assemelhar-se a tochas. O teto baixo curva-se numa cúpula, o que me dá a ligeira sensação de estar a entrar num túnel. Obras de arte adornam as paredes, todas provavelmente de valor incalculável.

– Quem vem visitar, menina? – pergunta-me o porteiro.

– Os Garrick. Vinte A.

– Ah! – pisca-me o olho. – A penthouse.

Oh, fantástico – uma família penthouse. Por que me dou sequer ao trabalho?

Depois de ligar para cima para confirmar a minha entrevista, o porteiro tem de entrar no elevador e introduzir uma chave especial para eu poder subir à penthouse. Depois de as portas do elevador se fecharem, faço um rápido inventário à minha aparência. Aliso o meu cabelo louro, que prendi atrás num puxo simples. Trago o meu melhor par de calças pretas e um colete de malha. Começo a ajeitar o peito, mas então reparo que há uma câmara no elevador e prefiro não proporcionar um espetáculo ao porteiro.

As portas do elevador abrem diretamente para o átrio da penthouse dos Garrick. Ao sair, respiro fundo e quase consigo cheirar a riqueza no ar. É uma combinação de água de colónia cara e notas de cem dólares novas. Por um momento, fico no átrio, sem saber muito bem se me devo aventurar sem ser formalmente recebida, pelo que, ao invés, foco a minha atenção num pedestal branco exibindo uma estátua cinzenta que é essencialmente apenas uma grande pedra vertical lisa – do tipo que se poderia encontrar em qualquer parque da cidade. Ainda assim, provavelmente vale mais do que tudo o que alguma vez tive no mundo.

– Millie? – oiço uma voz segundos antes de um homem se materializar no átrio. – Millie Calloway?

Foi o Sr. Garrick quem me convidou para a entrevista de hoje. É invulgar ser contactada pelo homem da casa. Quase 100% dos meus principais empregadores no ramo das limpezas têm sido mulheres. Mas o Sr. Garrick parece ansioso por me cumprimentar. Entra apressadamente no átrio com um sorriso nos lábios, de mão já estendida.

– Senhor Garrick? – pergunto.

– Por favor – diz ao deslizar a sua mão forte para a minha –, trate-me por Douglas.

Douglas Garrick parece exatamente o tipo de homem que se esperaria que vivesse numa penthouse no Upper West Side. Está no início dos quarenta e é atraente naquele estilo clássico, cinzelado. Veste um fato que parece extremamente caro e tem o cabelo castanho-escuro lustroso e habilmente cortado e arranjado. Os seus profundos olhos castanhos são astutos e estabelecem precisamente a medida certa de contacto visual com os meus.

– Prazer em conhecê-lo... Douglas – digo.

– Muito obrigado por ter vindo hoje – Douglas Garrick sorri com gratidão enquanto me conduz à ampla sala de estar. – Geralmente, é a minha mulher, a Wendy, quem trata das tarefas domésticas. Orgulha-se de tentar fazer tudo sozinha, mas não se tem sentido bem, por isso insisti em arranjar alguma ajuda.

A sua última afirmação parece-me estranha. Normalmente, as mulheres que vivem em apartamentos enormes como este não «tentam fazer tudo» sozinhas. Por regra, têm criadas para as criadas.

– Claro – respondo. – Disse que procurava alguém para

cozinhar e limpar...?

Anui.

– As tarefas domésticas gerais, como limpar o pó, arrumar e, claro, tratar da roupa. E preparar as refeições algumas noites por semana. Acha que isso seria um problema?

– De modo algum – estou disposta a aceitar praticamente tudo. – Há muitos anos que limpo apartamentos e casas. Posso trazer os meus próprios produtos de limpeza e...

– Não, isso não será necessário – interrompe-me Douglas. – A minha mulher... A Wendy é muito exigente em relação aos produtos de limpeza. É sensível aos cheiros, sabe? Desencadeiam os seus sintomas. Tem de usar os nossos produtos de limpeza especiais, caso contrário...

– Com certeza – assinto. – Como quiser.

– Maravilhoso. – Os seus ombros relaxam. – E precisaríamos que começasse de imediato.

– Não há problema.

– Ótimo, ótimo – Douglas sorri, apologético. – Porque, como pode ver, esta casa está a modos que uma confusão.

Ao entrar na sala de estar, assimilo o que me rodeia. Tal como o resto do edifício, este apartamento faz-me sentir como se tivesse sido transportada para o passado. Salvo o deslumbrante sofá de cabedal, a maioria da mobília parece ter sido construída há centenas de anos e depois cristalizada no tempo para ser especialmente transportada para esta sala de estar. Se soubesse mais sobre decoração de interiores, talvez fosse capaz de identificar que a mesa de café foi talhada à mão no início do século XX ou que a estante com as portas de vidro veio, sei lá, do período do revivalismo neoclássico francês ou algo assim. Tudo o que sei dizer ao certo é que cada peça custou uma pequena fortuna.

E outra coisa que sei é que este apartamento não está uma confusão. Está o oposto disso. Se começasse a limpar, nem sei bem o que faria. Precisaria de um microscópio para encontrar uma partícula de pó.

– Posso começar quando quiser – digo cuidadosamente.

– Fantástico – responde Douglas, acenando em aprovação. – Apraz-me muito ouvir isso. Porque não nos sentamos para podermos conversar mais a fundo?

Sento-me ao lado de Douglas no sofá modular, afundando-me no cabedal macio. Oh, meu Deus, é a coisa mais agradável que alguma vez senti contra a minha pele. Podia deixar o Brock e casar antes simplesmente com este sofá e todas as minhas necessidades seriam satisfeitas.

O Douglas fita-me atentamente com os seus olhos profundos sob um par de densas sobrancelhas castanho-escuras.

– Fale-me de si, então, Millie.

Aprecio que, desde o início, não tenha havido qualquer indício de sedução na sua voz. Os seus olhos mantêm-se respeitosamente fixos nos meus e não descem para os meus seios ou pernas. Só por uma vez me envolvi com o meu patrão e nunca, nunca, mais volto a seguir por esse caminho. Preferia arrancar os meus próprios dentes com um alicate.

– Bem – pigarreio. – Atualmente, ando na faculdade comunitária. Planeio tornar-me assistente social, mas entretanto trabalho para pagar os estudos.

– Isso é admirável – sorri, mostrando uma fila de dentes brancos e direitos. – E tem experiência a cozinhar?

Aquiesço.

– Cozinhei para muitas das famílias para quem trabalhei. Não sou profissional, mas tive algumas aulas. Além disso... – olho em redor, incapaz de ver quaisquer brinquedos ou sinais de que viva aqui uma criança. – Tomo conta de crianças.

O Douglas estremece.

– Isso não será necessário.

Retraio-me, amaldiçoando a minha grande boca. Não falou em cuidar de crianças. Provavelmente, fiz-lhe lembrar alguns horríveis problemas de infertilidade.

– Desculpe – peço.

Encolhe os ombros.

– Não faz mal. Que tal uma visita guiada?

A penthouse dos Garrick envergonha o mega apartamento de Amber. É uma espécie completamente diferente de apartamento. A sala de estar é, pelo menos, do tamanho de uma piscina olímpica. Ao canto, há um bar com meia dúzia de bancos vintage instalados à volta. Apesar do tema antiquado da sala de estar, a cozinha tem todos os eletrodomésticos mais recentes, incluindo, estou certa, o melhor desidratador do mercado.

– Deve ter aqui tudo o que precisa – diz-me Douglas, varrendo com a mão a vasta extensão da cozinha.

– Parece perfeito – respondo, cruzando os dedos para que o forno traga algum tipo de manual que explique o que faz cada um dos mais de vinte botões no mostrador.

– Excelente – diz. – Agora, deixe-me mostrar-lhe o segundo andar.

Segundo andar?

Os apartamentos em Manhattan não têm dois andares. Mas, aparentemente, este tem. Douglas leva-me numa visita guiada ao andar de cima, mostrando-me pelo menos meia dúzia de quartos. O quarto principal é tão grande que preciso de uns binóculos para ver a cama king sise na outra ponta do espaço. Há uma divisão inteiramente de livros, que me faz vagamente recordar aquela cena de A Bela e o Monstro em que a Bela é levada à biblioteca. Outra divisão parece incluir uma parede cheia de almofadas. Suponho que seja o quarto das almofadas.

Depois de me levar a uma divisão que contém o que deve ser uma lareira artificial, e em que uma das paredes é toda ela uma enorme janela com uma vista arrebatadora do horizonte de Nova Iorque, chegamos a uma derradeira porta. Hesita, o punho erguido para bater.

– Este é o nosso quarto de hóspedes – informa-me. – A Wendy tem estado aqui a recuperar. Provavelmente, devia deixá-la descansar.

– Lamento saber que a sua mulher está doente – digo.

– Tem estado doente durante a maior parte do nosso casamento – explica-me. – Sofre de uma... de uma doença crónica. Tem dias bons e dias maus. Às vezes, é o seu eu habitual, mas por vezes mal consegue sair da cama. E noutros dias...

– Sim...?

– Nada – esboça um sorriso débil. – Seja como for, se a porta estiver fechada, deixe-a simplesmente em paz. Precisa de descansar.

– Compreendo perfeitamente.

Por um instante, Douglas olha fixamente para a porta, uma expressão conturbada no rosto. Toca-lhe com as pontas dos dedos e abana a cabeça.

– Então, Millie – interroga. – Quando pode começar?


5

Em 1964, uma mulher chamada Kitty Genovese foi assassinada.

Kitty era uma empregada de bar de vinte e oito anos. Foi violada e esfaqueada por volta das três da manhã a cerca de trinta metros do seu apartamento em Queens. Gritou por socorro, mas, apesar de vários vizinhos a terem ouvido, ninguém foi em seu auxílio. O seu atacante, Winston Moseley, deixou-a fugazmente e regressou passados dez minutos, altura em que a esfaqueou várias outras vezes e lhe roubou cinquenta dólares. A mulher morreu das facadas.

– Kitty Genovese foi atacada, violada e assassinada diante de trinta e oito testemunhas – anuncia o professor Kindred ao auditório. – Trinta e oito pessoas assistiram ao seu ataque e nem uma saiu em seu auxílio ou chamou a polícia.

O nosso professor, um homem na casa dos sessenta cujo cabelo parece estar sempre espetado, fixa em cada um de nós um olhar acusador, como se fôssemos nós as trinta e oito pessoas que deixaram aquela mulher morrer.

– Isto – diz – é o efeito do espectador. É um fenómeno da psicologia social em que os indivíduos têm menor probabilidade de oferecer ajuda a uma vítima quando há outras pessoas presentes.

Os alunos na sala rabiscam os seus apontamentos ou escrevem nos seus portáteis. Eu limito-me a olhar fixamente para o professor.

– Pensem nisto – continua o professor Kindred. – Mais de três dúzias de pessoas permitiram que uma mulher fosse violada e assassinada, limitando-se a assistir sem nada fazer. Isto demonstra perfeitamente a difusão da responsabilidade num grupo.

Remexo-me no meu lugar, imaginando o que faria nessa situação – se olhasse pela minha janela e visse um homem a atacar uma mulher. Não ficaria sentada de braços cruzados, isso é certo. Saltaria pela janela, se fosse preciso.

Não. Não faria tal coisa. Aprendi a controlar-me melhor do que isso. Mas ligaria para o 112. Sairia com uma faca. Não faria nada com ela, mas talvez fosse suficiente para assustar o atacante.

Ao deixar o auditório, ainda me sinto abalada ao pensar naquela pobre rapariga que foi morta há mais de meio século. Quando saio para a rua, quase passo pelo Brock sem o ver. Tem de correr atrás de mim e de me agarrar no braço.

Pois claro. Fizemos planos para jantar.

– Ei – diz, sorrindo com os dentes mais brancos que eu alguma vez vi. Nunca lhe perguntei se os branqueia profissionalmente, mas deve fazê-lo. Os dentes não podem ser naturalmente assim tão brancos. É inumano. – Vamos celebrar esta noite, certo? O teu novo emprego.

– Certo – consigo esboçar um sorriso. – Desculpa.

– Estás bem?

– Estou só... abalada com a palestra que acabo de ter. Estivemos a ouvir sobre uma mulher nos anos sessenta que foi violada diante de trinta e oito espectadores, que não fizeram nada. Como pôde algo assim acontecer?

– Kitty Genovese, certo? – o Brock faz estalar os dedos. – Lembro-me disso da minha cadeira de Psicologia na Universidade.

– Certo. E é horrível.

– Mas é treta. – Enfia a mão na minha. Tem a palma quente. – A história foi sensacionalizada pelo New York Times.

Houve muito menos testemunhas do que o Times avançou. E, com base na posição dos apartamentos, a maioria não conseguiu ver o que realmente se passava e pensou que era apenas uma discussão entre namorados. E várias chamaram mesmo a polícia. Acho que ela estava nos braços de uma vizinha quando a ambulância chegou.

– Oh! – Sinto-me ligeiramente desconfortável, como tantas vezes me acontece quando o Brock sabe mais sobre algo do que eu. O que é bastante frequente, na verdade. Tanto quanto consigo perceber, o homem sabe praticamente tudo. É uma das muitas coisas que o tornam tão perfeito.

– Afinal não é uma história assim tão sensacional, pois não? – O Brock solta-me a mão e passa-me um braço à volta dos ombros. Capto um vislumbre do nosso reflexo na montra de uma loja e não posso deixar de pensar que ficamos bem juntos enquanto casal. Parecemos o tipo de casal que convidaria quinhentas pessoas para o seu casamento e depois compraria uma casa com uma vedação branca nos subúrbios, passando em seguida a enchê-la de filhos. – Seja como for, não devias sentir-te mal por algo que aconteceu há décadas. És simplesmente... demasiado simpática, sabes?

Sempre tive este impulso de ajudar as pessoas que estão em apuros. Infelizmente, às vezes, isso deixa-me a mim em apuros. Se ao menos fosse tão simpática quanto o Brock pensa que sou – não faz ideia.

– Desculpa, não o consigo evitar.

– Suponho que é por isso que te queres tornar assistente social – diz, piscando-me o olho. – A menos que eu te consiga convencer a optar por uma carreira mais lucrativa.

Foi o meu último namorado que me convenceu a seguir a carreira da assistência social – para poder ajudar as pessoas necessitadas sem sair dos limites da lei. Tens sempre de ajudar toda a gente, Mille. É isso que adoro em ti. Ele compreendia-me verdadeiramente. Infelizmente, já não está por perto.

– Enfim – o Brock aperta-me os ombros. – Não pensemos mais em mulheres que foram assassinadas nos anos sessenta. Fala-me do teu novo emprego.

Ponho-o a par dos pormenores do impressionante apartamento dos Garrick. Quando lhe falo da vista, da localização e do segundo andar, solta um assobio baixinho.

– Esse apartamento deve ter custado uma fortuna – comenta, ao sairmos para a rua, evitando por pouco sermos abalroados por uma bicicleta. Tanto quanto consigo perceber, os ciclistas na cidade não têm o menor respeito pelos semáforos ou pelos peões. – Aposto que pagaram para aí vinte milhões. No mínimo.

– Uau. Achas?

– De certeza. É bom que te estejam a pagar bem.

– Estão. – Quando o Douglas discutiu o preço por hora, quase senti cifrões a saltar-me das órbitas.

– Como disseste que se chamava o tipo que te contratou?

– Douglas Garrick.

– Ei, é o diretor-executivo da Coinstock. – O Brock estala os dedos. – Estive com ele uma vez, quando contratou a minha firma para ajudar com uma patente. É um tipo genuinamente simpático.

– Sim. Pareceu simpático.

Pareceu realmente simpático. Mas não consigo parar de pensar naquela porta fechada no segundo andar. Na mulher que nem pôde sair para me conhecer. Por mais entusiasmada que esteja com este emprego, há algo nessa situação que me deixa inquieta.

– E sabes que mais? – o Brock puxa-me para uma passadeira. O semáforo está a piscar, prestes a ficar vermelho, e conseguimos atravessar mesmo a tempo. – O prédio fica apenas a uns cinco quarteirões de onde eu vivo.

Fica a dica.

Sabia da proximidade entre a penthouse e o apartamento do Brock, claro. Retorço-me, sentindo-me tão desconfortável como quando estava na sala de aula. O Brock tornou-se como um cão com um osso. Quer que eu vá viver com ele e não parece estar disposto a largar o assunto. Simplesmente não consigo sacudir a sensação de que, se realmente me conhecesse, não quereria tal coisa. Adoro estar com o Brock e não quero estragar tudo.

– Brock... – digo.

– Está bem, está bem – revira os olhos. – Olha, não te quero pressionar. Se não estás pronta para ir viver comigo, tudo bem. Mas, para que conste, acho que fazemos uma boa equipa. E, seja como for, já passas metade das tuas noites em minha casa, certo?

– Ahã – respondo, o mais evasivamente possível.

– Além do mais... – mostra-me os seus dentes brancos. – Os meus pais gostariam de te conhecer.

Pronto, agora vou ter de vomitar. Apesar de me andar a importunar para ir viver com ele, mesmo assim, não me passou pela cabeça que tivesse falado de mim aos pais. Mas é claro que falou. Provavelmente, liga-lhes uma vez por semana, aos domingos às oito da noite, para os pôr a par de todos os pormenores pertinentes da sua vida perfeita.

– Oh! – digo debilmente.

– E eu também gostaria de conhecer os teus – acrescenta.

Esta seria uma excelente altura para lhe dizer que estou de relações cortadas com os meus pais. Mas as palavras não saem.

É tão difícil. O último tipo com quem namorei sabia tudo sobre mim desde o início, por isso nunca tive de revelar o meu passado complicado – nunca houve um momento aterrador de pôr as cartas todas na mesa. E, como disse, o Brock é tão... perfeito.

As únicas coisas que não são perfeitas nele são pequenos pormenores insignificantes, como quando deixou o tampo da sanita levantado no meu apartamento. E mesmo isso é algo que só fez uma vez.

O problema do Brock é que está pronto para assentar. E eu, apesar de ter a mesma idade, ainda não cheguei a esse ponto. Além de que não quer esperar. Tem um ótimo emprego na melhor sociedade de advogados e ganha mais do que o suficiente para sustentar uma família. Apesar de a sua última visita ao cardiologista lhe ter passado um atestado de boa saúde, preocupa-o não chegar à longevidade expectável para um homem caucasiano neste país. Quer casar e ter filhos enquanto ainda os pode apreciar.

Eu, entretanto, sinto-me como se ainda estivesse em processo de crescimento. Ainda estudo, afinal. Não estou pronta para casar. Simplesmente... não posso.

– Está tudo bem. – Por um momento, para de caminhar e encara-me. Um homem que vinha a andar atrás de nós quase colide connosco e pragueja ao seguir o seu caminho. – Não te quero apressar. Mas preciso que saibas que sou louco por ti, Millie.

– Eu também sou louca por ti – respondo.

Toma-me as duas mãos nas suas enquanto me olha nos olhos.

– Na verdade, a modos que te amo.

O meu coração acelera um pouco. Já antes o tinha ouvido dizer que era louco por mim, mas nunca que me amava. Mesmo com um «a modos que» como atenuante.

Abro a boca, sem saber muito bem o que vou dizer. Mas, antes que quaisquer palavras possam sair, tenho aquela sensação de formigueiro na nuca.

Porque me sinto como se estivesse alguém a observar-me? Estarei a perder o juízo?

– Bem – acabo por responder. – Isso é a modos que querido.

Não estou pronta para também o dizer. Não posso dar esse próximo passo na nossa relação quando há tanto sobre mim que o Brock ainda não sabe. Felizmente, não insiste no assunto.

– Anda – diz antes. – Vamos comer sushi.

A dada altura, provavelmente também terei de lhe dizer que não gosto de sushi.


6

É o meu primeiro dia a trabalhar para os Garrick.

Douglas já disse ao porteiro para me deixar entrar e deixou-me uma cópia da chave para eu poder introduzi-la na ranhura do elevador, que range e geme ao subir os vinte andares. Bem, dezanove. Apesar de o apartamento ser o Vinte A, o prédio não tem décimo terceiro andar. Nada de azar por aqui.

As engrenagens do elevador param com um guincho estridente ao chegar ao meu destino. Mais uma vez, as portas abrem-se para o impressionante apartamento dos Garrick. Apesar de Douglas dizer que vão precisar dos meus serviços várias vezes por semana, o apartamento mal parece necessitar. Tem pó, como todos os apartamentos da cidade, mas, fora isso, está relativamente arrumado.

– Olá? – chamo. – Douglas?

Ninguém responde.

– Senhora Garrick? – tento novamente.

Entro na sala de estar, que mais uma vez me faz sentir como se estivesse numa casa de há um ou dois séculos. Jamais seria capaz de pagar uma única peça desta mobília antiga, mesmo que gastasse todas as minhas poupanças. A maior parte da minha própria mobília veio do passeio à entrada do meu prédio.

Dirijo-me à cornija que está posicionada sobre o que deve ser uma falsa lareira. Há cerca de meia dúzia de fotografias alinhadas. Todas mostram Douglas Garrick e uma mulher magra como um palito de longos cabelos acobreados. Numa estão numa pista de esqui, noutra posam em traje formal, e noutra ainda estão diante do que parece ser uma gruta. Estudo a mulher, provavelmente Wendy Garrick. Pergunto-me se a irei conhecer em breve ou se ficará trancada naquele quarto de cada vez que eu cá vier. Não tenho nenhum problema com isso, contudo – já tive muitos clientes a quem nunca pus a vista em cima durante todo o tempo em que tratei das limpezas.

Um forte baque ecoa no andar de cima e eu afasto-me da cornija com um salto. Não quero que ninguém pense que estava a bisbilhotar. Essa não seria decididamente uma boa apresentação a Wendy Garrick.

Distancio-me da cornija, olhando para o fundo das escadas. Não está ninguém na escadaria e não oiço passos. Não parece que venha aí alguém.

Decido começar a tratar da roupa. Douglas indicou-me o cesto de vime onde guardam a roupa suja no quarto principal. Assim que a máquina estiver a lavar, posso começar a dedicar-me a algumas das outras tarefas.

Subo os degraus de madeira polida até ao enorme quarto principal. No quarto de vestir, encontro o grande cesto de vime que Douglas me mostrou no outro dia. Mas, ao abrir o cesto da roupa suja, fico estupefacta.

No tempo que levo a tratar da roupa de outras pessoas, já vi muitas coisas loucas. Vi roupa que não chegava propriamente ao cesto da roupa suja, ficando antes espalhada num círculo à sua volta. Vi todo o tipo de manchas, de chocolate a óleo, passando por algumas que estou bastante certa de que eram de sangue. Mas nunca tinha visto isto antes.

Toda a roupa suja está dobrada.

Por um momento, fico a olhar para ela, tentando perceber se entendi mal. Talvez esta roupa já tenha sido lavada e precise de ser arrumada. Por que haveria a roupa suja de estar dobrada?

Mas este é o cesto que Douglas me mostrou. Por isso tenho de presumir que é de roupa suja que se trata.

Agarro no cesto e saio do quarto principal. Quando vou a descer o corredor em direção às máquinas de lavar e de secar, percebo que a porta do quarto de hóspedes está entreaberta.

– Senhora Garrick? – chamo.

Semicerro os olhos à fresta da porta. Consigo apenas vislumbrar um olho verde. A olhar-me fixamente.

– Sou a Millie – começo a erguer a mão quando percebo que tal não vai ser possível enquanto seguro no cesto da roupa suja, por isso pouso-o. – A sua nova empregada de limpeza.

Começo a dirigir-me à porta, de mão estendida, mas antes de conseguir chegar sequer a meio do caminho, a fresta aberta desaparece. A porta fechou-se de chofre.

Muito bem...

Compreendo que algumas pessoas não são propriamente sociáveis e não gostam sobretudo de o ser com o pessoal das limpezas. Mas não podia ao menos ter dito olá? Só para eu não ficar aqui especada no meio do corredor, constrangida?

Por outro lado, é a casa dela. E Douglas disse-me que tem uma doença. Portanto não a vou coagir a vir conhecer-me.

Seria assim tão terrível, porém, se eu lhe batesse à porta e apenas lhe dissesse o meu nome?

Mas não – Douglas disse-me para não a incomodar. Por isso não o farei. Vou acabar de tratar da roupa, fazer-lhes o jantar e depois vou à minha vida.


7

Depois de pôr a roupa a lavar e de dar uma ligeira arrumação ao andar de cima (embora, devo admitir, não haja muito que fazer), desço à cozinha para tratar do jantar.

Felizmente, está uma lista na porta do frigorífico que foi deixada para mim. É uma ementa impressa para a semana, incluindo receitas e instruções específicas para como fazer as compras. Parte do texto é manuscrito – parece ser uma caligrafia mais feminina, mas é difícil dizer. À medida que vou lendo as instruções, começo a ficar cada vez menos entusiasmada com o meu emprego:

0 patê deve ser comprado à terça-feira na Oliver’s Delicatessen antes das quatro da tarde.

Se só houver terrina disponível, não compre. Nesse caso, compre o patê no François.

0 patê deve ser servido em pão camponês obtido no London Market. Corte uma fatia e barre suavemente. Cubra com cornichos, obtidos no Sr. Royal.

A única coisa em que consigo pensar é: o que raio é patê? E o que são cornichons? Ao menos sei o que é pão. Mas por que tenho de ir a quatro lojas para comprar estes três produtos? E o Sr. Royal é uma pessoa ou um lugar?

O lado positivo é que pouco é deixado à imaginação. As receitas estão organizadas por data, por isso limito-me a procurar o dia de hoje e a começar a preparar o jantar desta noite de...

Galinha de caça da Cornualha. Bem, isto vai ser interessante.

Duas horas depois, tenho a roupa arrumada. A galinha

de caça da Cornualha está a assar no forno e cheira bastante bem, se me permitem que o diga. Já pus dois lugares à mesa da sala de jantar, por isso agora estou apenas na cozinha, sem fazer nada enquanto espero que a comida fique pronta. Com sorte, isso coincidirá com a hora da refeição, que é rigorosamente às sete da tarde.

Quando estou mesmo a abrir o forno para ver como está a galinha, as portas do elevador abrem-se com um rangido – ouvem-se a quilómetros de distância. Passos pesados descem o corredor, cada vez mais altos.

– Wendy! – é a voz de Douglas a ecoar pelo apartamento. – Wendy, cheguei!

Dirijo-me à entrada da cozinha e olho para a escadaria de acesso ao segundo andar. Espero um momento, à escuta do som da porta do quarto de hóspedes a abrir, esperando captar por fim um vislumbre da infame Sra. Garrick, mas não oiço nada.

– Olá. – Limpo as mãos às calças de ganga ao sair da cozinha. – O jantar está quase pronto, prometo.

Douglas está de pé na sala de estar, de olhos postos na escadaria.

– Excelente. Muito obrigado, Millie.

– Não tem de quê. – Sigo-lhe o olhar escadas acima. –Quer que vá buscar a senhora Garrick?

– Hum... – Olha para os dois lugares à mesa de jantar em carvalho ao estilo vitoriano, onde parece que se poderia ter servido a própria rainha. – Tenho um pressentimento de que não se vai juntar a mim esta noite.

– Quer que lhe leve um prato lá acima?

– Não é preciso. Eu levo – esboça um sorriso de esguelha. – Ainda deve estar a sentir-se em baixo, de certeza.

– É claro – murmuro. – Deixe-me ir tirar a comida do forno.

Apresso-me a regressar à cozinha para ver como está a comida. Tiro uma galinha de caça da Cornualha do forno e tem um aspeto bastante incrível. Quer dizer, tendo em conta que nunca a tinha cozinhado antes ou sequer ouvido falar nela a não ser de forma completamente teórica.

Demoro outros dez minutos a cortar a estúpida coisa de acordo com as instruções específicas, mas finalmente obtenho dois belos pratos de comida. Levo-os para a sala de jantar, mesmo a tempo de ver Douglas a descer o lanço de escadas.

– Como está ela? – pergunto ao pôr os pratos na mesa.

Por um momento, fica calado, como que a ponderar a resposta.

– Não é um bom dia.

– Lamento muito.

Encolhe um ombro.

– É o que é. Mas obrigado pela sua ajuda hoje, Millie.

– Sem problemas. Quer que leve o prato à senhora Garrick?

Não sei se é imaginação minha, mas os lábios de Douglas crispam-se ante a minha sugestão.

-Já se ofereceu, e eu disse que o faria, não foi?

– Sim, mas... – interrompo-me antes que diga algo estúpido. Deve achar que estou a ser metediça, e não está inteiramente enganado. – Enfim, tenha uma boa noite.

– Sim – responde vagamente. – Boa noite, Millie. Mais uma vez, obrigado.

Agarro no meu casaco e dirijo-me aos elevadores. Sustenho a respiração, esperando que as portas se fechem, e então deixo descair os ombros. Não sei o que é, mas há algo naquele apartamento que me faz sentir inquieta.


8

Talvez – diz o Brock – seja uma vampira. E não possa sair do quarto durante o dia ou transforma-se em pó.

Contei tudo ao Brock sobre a família Garrick e, durante uma bebida pós-jantar no seu apartamento, sugere-me algumas explicações nada úteis para o porquê de eu lá ter estado meia dúzia de vezes e Wendy Garrick nunca ter saído daquele quarto de hóspedes, apesar de eu ter a certeza de que está lá dentro. Aquela vez em que a porta se entreabriu foi o mais perto que estive de a ver.

– Não é uma vampira – digo, enfiando as pernas debaixo de mim no sofá do Brock.

– Não sabes isso.

– Sei. Porque os vampiros não existem.

– Um lobisomem, então?

Dou-lhe uma palmada no braço que quase o faz entornar o copo de vinho que tem na mão.

– Isso nem sequer faz sentido. Por que teria ela de ficar no quarto se fosse um lobisomem?

– Está bem, então talvez... – diz, pensativo. – Talvez tenha uma pequena fita verde à volta do pescoço e, se alguém a desatar, cai-lhe a cabeça?

Bebo um gole do vinho caro que o Brock me serviu. As garrafas caras são de longe melhores do que as baratas, mas nunca consigo detetar todas as notas subtis de melada ou lavanda ou seja lá o que for. Está sempre a perguntar-me, pelo que agora minto e digo-lhe que as consigo sentir, mas não consigo realmente. Estou a fingir o vinho.

– Tenho um pressentimento estranho – observo. – Só isso.

– Bem, já te dei todas as minhas melhores ideias – rodeando-me com o braço, puxa-me mais para si. – Portanto, se não é uma vampira, um lobisomem ou uma cabeça cortada, o que achas tu que se passa?

– Eu... – Pouso o meu copo de vinho na mesa de café e mordo o lábio inferior. – Sinceramente, não faço ideia. É só um mau pressentimento.

Por um momento, o Brock parece distraído, olhando para o meu copo quase cheio em cima da mesa.

– Não vais acabar isso?

– Não sei. Acho que não.

– Mas é um Giuseppe Quintarelli – diz, como se isso explicasse absolutamente tudo.

– Suponho que não tenho sede.

– Sede? – Parece traumatizado com a minha afirmação. – Millie, não se bebe vinho por se estar com sede.

– Está bem. – Agarro no copo e bebo outro gole. Às vezes, pergunto-me por que anda sequer comigo, além de, segundo diz, me achar bonita. Age como se tivesse imensa sorte por estar comigo. Mas isso é de loucos. Não sou eu o bom partido. Ele é que é. – Tens razão. É muito bom.

Acabo o resto do copo de vinho, mas a verdade é que passo todo esse tempo a pensar nos Garrick.


9

Adquiri o hábito de me pôr à escuta de cada vez que passo pela porta do quarto de hóspedes.

É bisbilhotar. Sei que sim – não o nego mas não consigo evitar. Há um mês que trabalho para os Garrick e ainda não conheci oficialmente Wendy Garrick. Ouvi ruídos vindos daquele quarto, ainda assim. E, em pelo menos três ocasiões, vi a porta entreaberta. Mas fechou-se sempre antes que eu me conseguisse apresentar.

Não seria um eufemismo dizer que a minha imaginação anda em roda viva. Vi muitas coisas estranhas nos meus anos a limpar casas. E muitas coisas más. Houve um período em que costumava tentar resolver algumas dessas coisas más. Mas há já muito tempo que não o faço.

Desde que o Enzo partiu.

Quando vou a descer o corredor, oiço nitidamente algo vindo do quarto de hóspedes. Geralmente, está tudo bastante sossegado lá dentro, pelo que isto é algo diferente. Paro, de aspirador na mão, e encosto o ouvido à porta. E desta vez consigo ouvir o som com muito mais clareza.

É um choro.

Está alguém a soluçar lá dentro.

Prometi a Douglas que não batia à porta. Mas, por alguma razão, vem-me à cabeça Kitty Genovese. Ainda que o Brock diga que toda a história foi um exagero, sei que acontecem coisas más quando as pessoas normais passam ao largo.

Assim, bato com os nós dos dedos na porta. Imediatamente, o choro cessa.

– Olá? – chamo. – Senhora Garrick? Sente-se bem?

Não obtenho resposta.

– Senhora Garrick? – repito. – Está bem?

Nada.

Tento uma tática diferente.

– Não saio daqui até ver que está bem. Fico aqui o dia inteiro, se for preciso.

E então fico ali parada, à espera.

Ao fim de alguns segundos, oiço passos suaves atrás da porta. Recuo um passo enquanto esta se entreabre uns cinco centímetros, até eu poder ver aquele olho verde a fitar-me. Com efeito, o branco do olho está manchado por veias vermelhas e a pálpebra está inchada.

– O. Que. Quer? – silva-me a proprietária do olho.

– Sou a Millie – digo. – A sua empregada de limpeza.

Não reage a isso.

– E ouvi chorar – acrescento.

– Estou bem – responde firmemente.

– Tem a certeza? Porque eu...

– Estou certa de que o meu marido lhe disse que não me tenho andado a sentir bem. – O seu tom é seco. – Só quero descansar.

– Sim, mas...

Antes que eu possa dizer mais uma palavra, Wendy Garrick fecha-me a porta na cara. Lá se vai a minha intenção de chegar a ela. Pelo menos tentei.

Pesadamente, volto a descer as escadas, arrastando o aspirador comigo. Estou a perder o meu tempo ao tentar sequer envolver-me. Sempre que falo no assunto ao Brock por estes dias, diz-me que tenho de me meter na minha vida.

Estou a guardar o aspirador quando as portas do elevador se abrem com um rangido. Douglas entra na sala de estar, a assobiar baixinho, com outro dos seus fatos dolorosamente caros. Segura um ramo de rosas numa mão e uma caixa retangular azul na outra.

– Olá, Millie. – Parece estranhamente alegre, tendo em conta que a mulher está no andar de cima a soluçar. –Como vai isso? Está quase a terminar?

– Sim... – Não sei bem se devo dizer-lhe o que ouvi. Mas, se a mulher dele está a chorar, deve querer saber, não? – A sua mulher parece um pouco em baixo. Ouvi-a a chorar no quarto.

Manchas vermelhas surgem-lhe nas maçãs do rosto.

– Não... falou com ela, pois não?

Não quero mentir, mas, ao mesmo tempo, disse-me explicitamente para não incomodar a Wendy.

– Não, é claro que não.

– Ótimo. – Os seus ombros relaxam. – É melhor deixá-la simplesmente em paz. Como disse, não está bem.

– Sim, já tinha referido isso...

– E... – Ergue a caixa retangular azul. – Tenho um presente para ela. – Pousa as flores para poder abrir a caixa de veludo e ergue-a para eu poder espreitar o interior. –Acho que vai adorar isto.

Olho para o conteúdo da caixa. É a pulseira mais bela que alguma vez vi, cravejada de diamantes perfeitos.

– Está gravada – diz com orgulho.

– De certeza que vai adorar.

Douglas agarra nas flores e começa a subir as escadas. Vejo-o desaparecer pelo corredor, seguindo-se o som de uma porta a abrir e a fechar.

Não consigo perceber esta situação. Douglas parece um marido maravilhoso e dedicado. Wendy, por outro lado, nunca sai do quarto. Talvez saia quando eu não estou por perto, mas nunca lhe vi sequer o rosto completo, a não ser nas fotografias.

Há algo de anormal nesta situação, e eu não sei o que é.

Mas, como diz o Brock, não tenho nada a ver com isso. Devia simplesmente esquecer.


10

Passa por cá esta noite?

Apesar de já ter combinado com Douglas passar esta noite pela penthouse para levar as compras e limpar, confirma sempre com uma mensagem de texto. É extremamente organizado. Tendo em conta o que me estão a pagar, respondo sempre de imediato.

Sim, estarei aí!

Não tenho aulas hoje, pelo que a minha tarde consistirá em ir às compras para os Garrick, seguindo depois para casa deles para lhes limpar a sujidade invisível e preparar o jantar. Há já bem mais de um mês que trabalho para a família e conheço a rotina. Tenho a lista de compras na mão, mas preciso de ir a Manhattan para adquirir tudo o que querem.

Ontem à noite, o Brock pediu-me para ficar em casa dele, e tenho vindo a passar lá muitas noites, pois vive muito perto do apartamento e bastante perto da universidade, mas essa é ainda mais uma razão para dizer não. Se passar mais tempo no seu apartamento, estaremos basicamente a viver juntos. E isso é algo que não posso fazer.

Não ainda, pelo menos. Não até lhe dizer a verdade. Merece ao menos isso.

Mas tenho medo. Medo de que o Brock se passe e me largue na hora se souber tudo sobre mim. E tenho ainda mais medo de que, quando os seus pais ricos e de classe alta descobrirem, o convençam a deixar-me. O Brock é perfeito, a sua família é perfeita, e eu estou tão longe da perfeição que nem sequer tem graça.

A minha última relação foi o oposto de perfeita. E, de alguma forma, isso parecia-me mais adequado. Não sei muito bem o que diz a meu respeito que o meu par ideal fosse um indivíduo como o Enzo Accardi.

O Enzo e eu começámos há quatro anos como amigos, depois de um emprego meu ter acabado de forma extremamente inesperada. Não tinha muitos amigos, pelo que fiquei obscenamente grata pelo seu apoio. Chegámos a um ponto em que passávamos quase todo o nosso tempo livre juntos, além de que ajudámos cerca de uma dúzia de mulheres a escapar das suas relações abusivas. Muitas vezes, tratava-se apenas de obter os recursos adequados, mas noutras tínhamos de ser criativos. O Enzo fazia contactos que lhe permitiam obter novas identidades, telemóveis pré-pagos que não podiam ser localizados e bilhetes de avião para destinos distantes. Tirávamos mulheres das suas relações tóxicas sem termos de recorrer à violência.

Bem, não, isso não é verdade. Para ser inteiramente sincera, houve algumas vezes em que as coisas ficaram um pouco... complicadas. O Enzo e eu combinámos nunca mais falar dessas ocasiões. Fizemos o que tínhamos de fazer.

Foi o Enzo quem me convenceu a voltar para a universidade para tirar uma licenciatura em serviço social. Mal sabia eu que me estava a pôr no caminho para uma vida normal que eu jamais sonhara ser possível para mim. Mesmo com o meu registo criminal, podia conseguir um emprego como assistente social. Podia fazer o que adorava dentro dos limites da lei.

O Brock gosta de dizer que nós os dois fazemos uma boa equipa. Talvez seja verdade. Mas o Enzo e eu éramos realmente uma boa equipa: trabalhávamos juntos. Tínhamos uma missão. Além disso, era amável, apaixonado e muito atraente. Sobretudo esta última característica – por mais que tentasse ser sua amiga, era difícil não estar agudamente ciente dos seus atributos mais superficiais. Na altura, odiava estar a desenvolver uma frustrante paixoneta pelo homem.

Então, certa noite, estava no seu apartamento, a partilhar uma caixa de piza entregue pelo nosso restaurante preferido (também, por coincidência, o mais barato). Tínhamos os nossos ingredientes preferidos na piza: pepperoni e extra queijo. Lembro-me de o Enzo beber um longo gole da sua garrafa de cerveja e sorrir na minha direção, isto é agradável, disse.

Sim, concordei. É mesmo agradável.

Pousou a sua cerveja na mesa de café. Depois de todas as casas que limpara, sentia uma ligeira vertigem sempre que alguém não Usava uma base. Gosto de passar tempo contigo, Millie.

Não tinha muita experiência com homens, mas a forma como me olhava era inconfundível. E, se dúvidas houvesse, dissiparam-se quando se inclinou para mim e me deu um longo e demorado beijo, com que soube que iria sonhar durante anos no futuro. E, quando os nossos lábios finalmente se separaram, sussurrou: Talvez possamos passar mais tempo juntos?

O que mais podia eu dizer senão sim? Mulher alguma seria capaz de recusar um pedido daqueles ao Enzo Accardi.

É engraçado, porque sempre vi o Enzo um pouco como um mulherengo, mas, depois desse primeiro beijo, só tinha olhos para mim. A nossa relação avançou depressa, mas tudo parecia muito certo. Ao fim de poucas semanas, passávamos já todas as noites um com o outro e, pouco tempo depois, decidimos viver juntos. Simplesmente entendíamo-nos, nós os dois. Entre os estudos e a minha relação com o Enzo, estava mais feliz do que alguma vez tinha estado na minha vida.

Ainda me lembro do dia em que tudo se desintegrou.

Estávamos sentados no nosso sofá, que o Enzo tinha trazido da berma em frente ao nosso prédio, mas estava ainda bastante bom e utilizável (com apenas uma mancha que não conseguíamos identificar, mas não fazia mal, pois limitámo-nos a virar essa almofada ao contrário). Tinha um braço musculado a envolver-me os ombros e estávamos a ver O Padrinho II, pois o Enzo ficara recentemente horrorizado ao descobrir que eu não tinha visto a trilogia. É um clássico, Millie! Lembro-me de estar aninhada contra o seu corpo, a pensar em como me sentia feliz e também em como o meu namorado era muito mais sexy do que o Robert De Niro.

E, então, o telemóvel dele tocou.

A conversa que se seguiu foi inteiramente em italiano, e eu esforcei os ouvidos, tentando captar uma ou duas palavras. Malata, repetia, uma e outra vez. Finalmente, introduzi a palavra no meu telemóvel, que a traduziu para mim:

Doente.

Depois de desligar, explicou-me a situação com o sotaque cerrado que às vezes adquiria quando estava stressado ou zangado.

A sua mãe tivera uma apoplexia. Estava no hospital. Tinha de voltar à Sicília para a ver, especialmente porque o pai e a irmã tinham ambos morrido e ele era o único que lhe restava. Fiquei confusa, pois sempre me tinha dito que jamais poderia regressar a casa. Antes de partir, tinha espancado um homem muito poderoso quase até à morte com as próprias mãos, e agora tinha a cabeça a prémio.

Disseste-me que não podias voltar, lembrei-lhe. Disseste que havia pessoas más que te matariam se regressasses. Não foi isso que disseste?

Sim, sim, respondeu-me. Mas já não ê um problema. Essas pessoas más... foram despachadas por outras pessoas más.

O que podia eu fazer? Não podia dizer ao meu namorado que não lhe era permitido ver a própria mãe depois de esta ter acabado de ter uma apoplexia. Assim, dei-lhe a minha bênção e partiu para a ver no dia seguinte. Depois de o acompanhar ao aeroporto e de nos beijarmos durante uns cinco minutos consecutivos antes de passar pela segurança, prometeu-me que regressaria «muito em breve».

Não contava que nunca mais regressasse.

Estou certa de que tencionava voltar – não me teria mentido intencionalmente. Nos primeiros dias, falávamos por telefone todas as noites, e às vezes ficava bastante escaldante. Sussurrava-me ao telefone o quanto sentia a minha falta e como voltaríamos a estar juntos em breve. Mas, à medida que a doença da mãe se arrastava, foi-se tornando cada vez mais óbvio que não podia partir. E ela não podia vir para cá.

Há um ano inteiro que não lhe tocava ou via o seu rosto quando finalmente lhe perguntei abertamente: Diz-me a verdade. Quando vais voltar?

Ele Soltou Um longo suspiro. Não sei. Não posso deixá-la, Millie.

E eu não posso esperar para sempre, disse-lhe eu.

Eu sei, respondeu com tristeza. E depois... Compreendo o que tens de fazer.

E foi assim. Foi o fim. De forma assim tão simples, acabara. Portanto, quando alguns meses depois o Brock me convidou para sair, não havia razões para dizer não.

Com o Enzo, a minha vida era uma espécie de aventura excitante, mas agora estou a caminho da vida perfeita e normal que nunca pensei que fosse possível para mim. O Brock não conhece ninguém capaz de desencantar um passaporte falso em vinte e quatro horas – imagino que, se lhe pedisse algo assim, olharia para mim em absoluto choque.

O Enzo conhecia um tipo para tudo. Era praticamente o seu lema quando eu lhe pedia ajuda. Conheço um tipo.

E, agora, estou a fazer a tarefa mais normal que existe. Ir às compras. Ainda que, em abono da verdade, não haja nada de normal na lista de produtos que Douglas me encarregou de comprar. Ao consultar os primeiros artigos na lista que me enviou esta manhã por mensagem de texto, retraio-me ante a caça ao tesouro em que me está a enviar:

Cidra mão-de-buda

Rebentos de samambaia

Cucamelão

Fisális peruana

Juro por Deus que deve estar a inventar estes nomes. Cucamelão? Isso não existe, pois não? Parece nitidamente inventado.

Apertando a lista de compras, agarro no meu casaco e começo a descer as escadas. Não faço ideia de quanto tempo vou levar a encontrar um cucamelão, ou a descobrir sequer do que se trata, por isso é melhor dar-me algum tempo.

Ao chegar ao patamar do rés-do-chão, quase colido de frente com aquele homem que vive por baixo de mim. Mesmo por baixo de mim. O da cicatriz sobre a sobrancelha esquerda. Retraio-me ao vê-lo.

– Ei – sorri. Tem um dente de ouro no lugar do segundo incisivo esquerdo que me faz lembrar Joe Pesei em Sozinho em Casa, o meu filme preferido em criança. – Está com pressa?

– Sim – esboço um sorriso apologético. – Desculpe.

– Sem problemas. – O seu sorriso expande-se. – Sou o Xavier, a propósito.

– Prazer em conhecê-lo – respondo, evitando claramente dar-lhe o meu primeiro nome.

– Millie, não é?

Bem, essa estratégia falhou. Sinto um desconforto no estômago – este homem sabe exatamente onde vivo e, de algum modo, sabe o meu primeiro nome. Provavelmente o apelido também. Claro que facilmente o pode ter deduzido das nossas caixas do correio.

Continuo a ter a sensação intermitente de que estou a ser observada. Há alturas em que penso que talvez seja tudo da minha cabeça, mas neste momento não tenho assim tanta certeza. O Xavier sabe demasiado a meu respeito. Será possível que...?

Céus, não posso pensar nessa possibilidade agora. Já é suficientemente assustador andar pelas ruas do sul do Bronx sem me preocupar com a possibilidade de o sujeito que vive por baixo de mim me andar a perseguir. Talvez devesse aceitar a oferta do Brock de vivermos juntos. Provavelmente, o Xavier deixar-me-á em paz se eu me mudar para o Upper West Side. E, se não o fizer, terá de se haver com o porteiro de fatinho e chapéu. Ninguém passa por um desses porteiros. Acho que conseguem usar aqueles chapéus como bumerangues, se for preciso.

– O que vai fazer hoje? – pergunta-me o Xavier.

Dirijo-me à saída.

– Apenas umas compras.

– Ah, sim? Quer companhia?

– Não, obrigada.

O Xavier parece ter mais a dizer, mas não lhe dou oportunidade. Passo por ele e saio porta fora. Quer acabe ou não com o Brock, poderei ter de me mudar num futuro próximo. Não me sinto confortável perto deste homem. Tenho o mau pressentimento de que é o tipo de indivíduo que não sabe aceitar um não como resposta.


11

Ao chegar ao apartamento dos Garrick, tenho nos braços quatro sacos a transbordar de compras. Estava a sair-me bem a equilibrá-los até chegar ao último quarteirão, em que estive à beira de deixar cair tudo. Mas, pela graça de Deus, aqui estou, cucamelão incluído. (Existem mesmo e consegui encontrá-los numa mercearia espanhola.)

Felizmente, não tenho de me atrapalhar com o puxador, pois as portas do elevador abrem-se e posso entrar diretamente. Esperava conseguir chegar à cozinha de uma assentada, mas, a meio do caminho, tenho de largar todos os sacos no chão e fazer uma pausa. Se deixasse cair o cucamelão e o partisse, acho que teria de me sentar no chão e chorar.

Enquanto estou na sala de estar, a tentar decifrar a melhor estratégia para levar as compras para a cozinha, oiço um som.

Gritos.

Bem, gritos abafados. Não consigo propriamente ouvir as palavras, mas parece que alguém no quarto de cima está realmente a descarregar. Deixando as compras para trás, chego-me mais perto da escadaria para tentar ouvir o que se passa. E é então que oiço o estrondo.

Parece vidro a partir.

Levo a mão ao corrimão da escadaria, pronta a subir os degraus para me certificar de que está tudo bem. Mas, antes de dar sequer um passo, uma porta bate no andar de cima. Em seguida, passos cada vez mais altos fazem-se ouvir nas escadas, e eu recuo.

– Millie. – Douglas para bruscamente ao fundo das escadas. Veste uma camisa formal e tem o rosto corado, como se a sua gravata estivesse demasiado apertada, apesar de lhe pender frouxa à volta do pescoço. Na mão direita, segura um saco para presentes. – O que faz aqui?

– Eu... – Olho para os quatro sacos de compras. – Trouxe as compras, la guardá-las.

Semicerra os olhos.

– Então por que não está na cozinha?

Esboço-lhe um sorriso tímido.

– Ouvi um estrondo. Receei que...

Ao dizer as palavras, vejo um rasgão no tecido da sua elegante camisa formal. E não como se uma costura se tivesse soltado. Tem um violento corte mesmo por cima do bolso do peito.

– Está tudo bem – diz com rispidez. – Eu trato das compras. Pode ir.

– Está bem...

Não consigo desviar os olhos do rasgão na sua camisa. Como terá aquilo ocorrido? O homem trabalha como diretor-executivo – não há trabalhos pesados envolvidos. Poderá ter acontecido agora mesmo, no quarto de hóspedes?

– Além do mais... – Estende o saco para presentes na sua mão direita. – Preciso que devolva isto por mim. A Wendy não o quis.

Aceito o pequeno saco cor-de-rosa. No interior, capto um vislumbre de tecido sedoso.

– Sim, com certeza. O talão está aqui dentro?

– Não, era um presente.

– Eu... não creio que o possa devolver sem talão. De onde veio?

Douglas cerra os dentes.

– Não sei. Foi a minha assistente que escolheu. Envio-

lhe uma cópia do talão por e-mail.

– Se foi a sua assistente que escolheu, não seria mais fácil ser ela a devolver?

Inclina a cabeça na minha direção.

– Desculpe, mas não é o seu trabalho fazer recados para mim?

Puxo a cabeça para trás. É a primeira vez desde que comecei a trabalhar aqui que Douglas se dirige a mim com tamanho desrespeito. Sempre achei que parecia um homem relativamente simpático, ainda que stressado e distraído. Agora, percebo que tem um outro lado.

Mas não temos todos?

Douglas Garrick olha-me fixamente. Está à espera que eu saia, mas cada fibra do meu ser me diz que devia ficar. Que devia verificar o andar de cima e certificar-me de que tudo está bem.

Mas, então, Douglas interpõe-se entre mim e a escadaria. Cruza os braços sobre o peito e arqueia-me as suas espessas sobrancelhas. Não vou passar por este homem e, mesmo que o fizesse, tenho um pressentimento que, se batesse à porta do quarto de hóspedes, Wendy Garrick me asseguraria que está ótima.

Portanto, no fim de contas, não há nada que eu possa fazer a não ser partir.

12

Ao percorrer o trajeto de cinco quarteirões entre a estação de metro e o meu prédio, noto uma vez mais aquela sensação de formigueiro na nuca. Quando a sinto em Manhattan, na sofisticada zona onde trabalho e onde o meu namorado vive, parece-me que estou a ser paranoica. Mas agora, no sul do Bronx, quando o sol já desceu no céu, a paranoia é bom senso. Não me visto para chamar a atenção. Trago umas calças de ganga pelo menos um tamanho acima, umas Nike cinzentas que outrora costumavam ser brancas e um casaco que é mais volumoso do que moderno – de cor escura, para se misturar com a noite. Mas, ao mesmo tempo, sou nitidamente uma mulher. Mesmo com o gorro enfiado no cabelo louro e o meu feio casaco acolchoado, a maioria das pessoas identificar-me-ia como tal do fundo do quarteirão.

Acelero o passo, portanto. Além disso, trago uma lata de gás-pimenta no meu bolso. Tenho os dedos fechados em seu redor. Mas a sensação não desaparece até eu ter entrado no edifício e fechado a porta atrás de mim.

É essa a questão. Nunca tenho essa sensação de formigueiro quando estou no meu apartamento. Não a tenho quando estou a limpar a penthouse. Sinto-a apenas quando estou no exterior, em alturas em que podia realmente estar alguém a observar-me. O que me leva a pensar que a sensação é real.

Ou estou a enlouquecer. Também é uma possibilidade.

O Brock enviou-me uma mensagem a perguntar se eu

queria ir a sua casa esta noite e eu disse-lhe que não. Estou demasiado cansada.

Afasto da minha mente quaisquer pensamentos sobre o Brock enquanto tiro algumas cartas da minha caixa do correio – tudo contas. Como é possível eu ter tantas contas? Sinto que sobrevivo à base de praticamente nada. Em todo o caso, estou a enfiar as cartas na minha bolsa quando a fechadura roda na porta do prédio. Passado um segundo, surge uma corrente de ar frio e o homem da cicatriz sobre a sobrancelha esquerda abre caminho para o interior.

Xavier. Foi como disse que se chamava.

– Olá, Millie – diz, num tom demasiado alegre. – Como está?

– Bem – respondo rigidamente.

Rodo nos calcanhares e dirijo-me à escadaria, esperando que fique para trás a ver o seu próprio correio. Não tenho essa sorte. O Xavier corre atrás de mim, tentando acompanhar-me e pondo-se a meu lado.

– Tem planos para esta noite? – pergunta-me.

– Não – respondo, subindo apressadamente as escadas até ao segundo andar. Aí, poderei despedir-me do Xavier.

– Podia ir lá a casa – sugere. – Ver um filme.

– Estou ocupada.

– Não, não está. Ainda agora disse que não tinha planos para esta noite.

Cerro os dentes.

– Estou cansada. Vou apenas tomar um duche e deitar-me.

O Xavier sorri-me, fazendo brilhar o seu dente de ouro às luzes ténues do teto da escadaria.

– Quer companhia para isso?

Viro-lhe costas.

– Não, obrigada.

Chegámos ao patamar do segundo andar, e eu espero que o Xavier vá à sua vida. Mas, em vez disso, continua a subir as escadas a meu lado. Sinto um nó no estômago e levo a mão ao bolso para procurar a minha lata de gás-pimenta.

– Porque não? – insiste. – Vá lá. Não pode gostar realmente daquele betinho rico que a vem sempre cá visitar. Precisa de um homem a sério.

Desta vez, ignoro-o. Dentro de um minuto, estarei no meu apartamento. Só preciso de lá chegar.

– Millie?

Cinco degraus. Mais cinco degraus para subir e estarei livre deste cretino. Quatro, três, dois...

Mas, então, uma mão agarra-me o braço, cravando os dedos em mim.

Não vou conseguir.


13

Ei! – A mão carnuda de Xavier aperta-se com força sobre o meu braço. – Ei!

Retorço-me, mas o seu aperto é como um torno – é mais forte do que parece. Abro a boca, pronta para gritar, mas põe a mão aberta sobre os meus lábios antes que eu possa emitir algum som. A parte de trás da minha cabeça colide com a parede, fazendo-me bater os dentes.

– Então agora já tens algo a dizer? – pergunta-me, com um sorriso escarninho. – Mas antes pensavas que eras demasiado boa para mim. Não é verdade?

Tento sacudi-lo, mas encosta o corpo ao meu de forma a fazer-me sentir a protuberância nas suas calças. Lambe os lábios gretados.

– Vamos lá para dentro divertir-nos um pouco, está bem?

No entanto, cometeu o erro de agarrar o braço errado. Tiro a lata de gás-pimenta e fecho os olhos enquanto a esvazio em cheio no seu rosto. Grita e então, assim que largo o bocal, empurro-o com todas as minhas forças.

Sempre me queixei de como são íngremes os degraus neste edifício, mas, por uma vez, isso é-me vantajoso, pois o Xavier cai pelo lanço de escadas. A dada altura, oiço um estalido repugnante, seguido de um baque quando aterra ao fundo. E, depois, silêncio.

Por um momento, fico ao cimo das escadas, a olhar para o corpo estendido no patamar seguinte. Estará morto? Será que o matei?

Desço os degraus a toda a pressa, parando bruscamente ao fundo. Ainda tenho a lata de gás-pimenta na minha mão direita quando me baixo para ver mais de perto. O seu peito parece continuar a subir e a descer, e então solta um gemido baixo. Ainda está vivo. Nem sequer o deixei totalmente inconsciente.

Que pena. Se alguém merecia um pescoço partido, era este tipo.

Não. Provavelmente é melhor que não esteja morto.

Impulsivamente, puxo o pé atrás e, com todas as minhas forças, pontapeio-o nas costelas. Desta vez, geme mais alto. Definitivamente ainda está vivo. Dou-lhe outro pontapé, por via das dúvidas. E depois um terceiro para o caminho. De cada vez que a minha sapatilha estabelece contacto com as suas costelas, sorrio para comigo.

Olho para o lanço seguinte de escadas. Ao primeiro, sobreviveu. Pergunto-me o que aconteceria se caísse por um segundo lanço. Ou talvez um terceiro. Nem parece assim tão pesado. Aposto que conseguia virá-lo e...

Não. Meu Deus, em que estou a pensar?

Não posso fazer isso. Já passei dez anos na prisão. Não vou voltar para lá.

Agarro no meu telemóvel e ligo para o 112. Vou obter a minha justiça, e não será matando este homem.


14

Uma hora depois, a polícia e uma ambulância estão estacionadas à porta do prédio. Não é incrivelmente invulgar ver um carro da polícia estacionado na nossa rua, mas desta vez as luzes estão a piscar.

Tinha esperança de que levassem o Xavier diretamente para a prisão, mas tinha um braço partido, um traumatismo craniano e possivelmente algumas costelas fraturadas. Quando a polícia chegou, começava a ficar mais coerente e até a tentar levantar-se. Ainda bem que chegaram, caso contrário teria tido de procurar algo mais com que o deixar inconsciente.

Irritou-me que nenhum dos meus vizinhos tivesse saído para me ajudar. Apesar do que o Brock disse sobre Kitty Genovese, eu posso dizer com certeza que um homem tentou violar-me no corredor do meu prédio e ninguém veio em meu auxílio. O que se passa com as pessoas? A sério.

Uma agente da polícia fez-me algumas perguntas à chegada, mas depois pediram-me para esperar no meu apartamento enquanto tratavam das coisas. Portanto, é isso que tenho estado a fazer. Liguei ao Brock e disse-lhe que um vizinho me tinha tentado atacar, apesar de ter sido vaga quanto aos pormenores de como escapei. Está a caminho, mas eu não vou a lado algum até ter feito um depoimento formal que faça o Xavier ir para a prisão assim que lhe tratarem do braço partido. Espero que o sacana precise de cirurgia.

Da janela, tenho uma boa vista da ambulância a afastar-se. Tenho estado a assistir a tudo desde que me mandaram voltar para cima. A polícia esteve a falar com alguns dos meus vizinhos lá fora, e passaram muito tempo a conversar com o Xavier na parte de trás da ambulância antes de o levarem. Alguns dos agentes ainda estão a conversar à entrada. Não consigo sequer imaginar o que há a dizer. Um homem atacou-me a segundos da minha própria porta. Parece bastante simples.

E, então, um dos agentes aponta para a minha janela.

Passado um segundo, um dos polícias entra no edifício e eu afasto-me da janela. Limpo as mãos suadas às minhas calças de ganga. Ainda tenho uma marca vermelha no braço, onde o Xavier me agarrou, e a minha nuca lateja ligeiramente de ter batido contra a parede, mas ele está em muito pior forma do que eu.

É o que merece.

Um segundo após as batidas à minha porta começarem, eu abro-a. O agente que lá está ronda os trinta anos ou assim, com demasiada barba no queixo e uma expressão ligeiramente aborrecida. Como se este fosse o quinto sujeito com quem lida esta noite a tentar violar uma mulher nas escadas junto à sua porta da frente.

– Olá – diz. – É a Wilhelmina Calloway?

Retraio-me ante o uso do meu nome completo.

– Isso mesmo.

– Sou o agente Scavo. Posso entrar?

Quando estava na prisão, todas as mulheres diziam que, se um polícia pedir para entrar em nossa casa, temos O direito a dizer não. Não deixes esses sacanas entrar. Mas, por outro lado, não estão aqui para me investigar. Opto pelo meio-termo – deixo-o entrar, mas não nos sentamos.

É um polícia diferente da pessoa com quem falei logo a seguir ao incidente. Essa era mulher e abraçou-me. Não creio que este sujeito me vá abraçar. Nem quero.

– Então, tenho de recapitular o que aconteceu esta noite – diz Scavo – entre si e o senhor Marin.

– Tudo bem. – Cruzo os braços sobre o peito, subitamente com frio, apesar de o aquecimento estar efetivamente a funcionar, para variar. – O que quer saber?

Scavo olha-me de cima a baixo.

– Era isso que tinha vestido esta noite durante o incidente?

Não sei do que está a falar. Di-lo como se eu estivesse vestida de forma inapropriada. Estou de T-shirt e com as mesmas calças de ganga que trazia anteriormente. A T-shirt é ligeiramente justa, mas nada que chamasse a atenção. Como se isso importasse sequer.

– Sim, mas tinha um casaco por cima.

– Ahã – Scavo faz uma careta, como se não acreditasse realmente em mim. Como se eu tivesse seduzido o Xavier com a minha T-shirt super sensual e as minhas calças de ganga largas. – Diga-me exatamente o que aconteceu, então.

Pela terceira vez esta noite, repito a história. É mais fácil desta vez. Não me treme a voz ao descrever a forma como me agarrou. Ergo o pulso como prova, para mostrar a Scavo as marcas vermelhas, apesar de não parecer minimamente impressionado.

– E é tudo? – pergunta. – Apenas lhe agarrou no braço?

– Não – cerro os punhos em frustração. – Já lhe disse. Agarrou-me e apertou-se contra mim.

– Tipo como?

– Tipo empurrando o corpo contra o meu!

Franze o sobrolho.

– Será possível que tenha interpretado mal toda a situação? Que talvez estivesse apenas a ser cordial?

Olho-o fixamente.

– Porque eis a questão, menina Calloway. – Scavo fixa o olhar em mim. – O senhor Marin diz que estava apenas a ter uma conversa cordial consigo e a menina passou-se. Atingiu-o com gás-pimenta e a seguir empurrou-o escadas abaixo.

– Está a gozar comigo? – Neste momento, é ao agente Scavo que quero atingir com gás-pimenta e empurrar escadas abaixo. – Não foi de todo isso que aconteceu! Acredita realmente nisso? Está a tomar o lado dele

– Bem, uma das suas vizinhas viu-a junto dele, a pontapeá-lo repetidamente nas costelas. Teve medo de sair.

Abro a boca, mas tudo o que sai é um guincho.

– Achamos que o senhor Marin tem um par de costelas partidas – continua o agente. – E temos uma testemunha que a viu pontapeá-lo nas costelas enquanto estava inconsciente no chão. Por isso, diga-me o que devo pensar.

Gostaria mesmo, mesmo muito de não ter pontapeado o Xavier nas costelas. Mas era tão tentador. E sei o quanto as fraturas nas costelas podem ser dolorosas.

– Estava apenas perturbada.

– Perturbada porquê? O senhor Marin acha que ficou perturbada porque estava a namoriscar e não estava a ser correspondida. Disse que foi por isso que o atacou.

Sinto-me como se alguém tivesse acabado de me dar um murro no estômago. Ou nas costelas.

– Eu ataquei-o?

Scavo arqueia uma sobrancelha.

– E tem registo criminal, não tem, menina Calloway? Um historial de comportamento violento?

– Isto é uma treta – arquejo. – Aquele homem atacou-me. Se eu não me tivesse defendido...

– Portanto, eis a questão – diz. – É apenas a sua palavra contra a dele em como foi atacada, e uma testemunha viu-a pontapeá-lo enquanto estava no chão. E é ele quem tem os ossos partidos.

As minhas pernas tremem debaixo de mim. Subitamente, dou por mim a desejar que tivéssemos decidido conversar sentados.

– Estou detida?

– Neste momento, o senhor Marin ainda não decidiu se vai apresentar queixa. – Scavo faz um esgar, como se achasse que o meu atacante devia decididamente fazê-lo. Como se desejasse poder enfiar-me um par de algemas agora mesmo. – Portanto, até se decidir, sugiro que se mantenha por perto.

Odeio este homem. O que aconteceu à outra agente? A que me abraçou e me disse que o Xavier nunca mais me poderia voltar a fazer mal? Para onde foi ela?

Dito aquilo, acompanho o agente Scavo à porta. Quando a abro, o Brock está lá, com as suas roupas de trabalho – uma camisa formal azul-céu e calças beges – de mão erguida para bater. Scavo esboça um sorriso afetado ao vê-lo, mas não tece comentários. O Brock parece querer perguntar algo ao agente, mas, felizmente, Scavo parece estar com pressa de partir.

Consigo manter a compostura até ter puxado o Brock para dentro do apartamento e trancado a porta atrás dele. Só então é que as lágrimas me sobem aos olhos. Mas não são lágrimas de tristeza. São de fúria. Como se atreve a falar-me assim? Fui atacada no meu próprio prédio e, de alguma forma, o meu atacante é que é a vítima?

– Millie. – Brock envolve-me nos braços. – Jesus Cristo, estás bem? Vim o mais rápido que pude.

Assinto em silêncio enquanto me afasto. Se falar, não serei capaz de conter as lágrimas. E, por alguma razão, não quero chorar diante do Brock.

– Espero que aquele sacana vá para a prisão durante muito tempo – diz.

Devia contar-lhe o que aconteceu. O que aquele agente me disse. Mas, se o fizer, terei de explicar porquê. Terei de explicar o meu historial de violência. O meu registo criminal. Todas as razões para ninguém acreditar em mim.

Se o Enzo aqui estivesse, seria diferente. Poderia contar-lhe tudo. E ele compreenderia. Haveria uma ligeira probabilidade de despedaçar o Xavier Marin membro a membro com as suas próprias mãos, mas eu não teria qualquer problema com isso – de modo algum. Ao olhar para o Brock, a ideia de que faça algo parecido quase me faz rir alto. Mas o lado positivo é que, se o Xavier realmente me acusar de agressão, o Brock pode defender-me. Sim, isso seria maravilhoso para o nosso relacionamento.

– Não podes dormir aqui – diz o Brock. Por uma vez, estou inteiramente de acordo. – Tenho o meu carro estacionado mesmo à porta. Deixa-me levar-te para minha casa.

Os meus ombros descaem.

– Está bem.

– E devias ficar comigo – acrescenta. Ao ver a expressão no meu rosto, apressa-se a prosseguir. – Não me refiro a mudares-te para minha casa. Mas leva, tipo, roupa para uma semana. E talvez devesses começar a procurar outro sítio para viver.

Não tenho forças para discutir neste momento, além de que tem razão. Se o Xavier voltar para este prédio, não poderei continuar a viver aqui. Terei de arranjar outro sítio. Apesar de mal conseguir cobrir a renda deste apartamento, mesmo com o dinheiro que os Garrick me pagam. Terei de procurar um bairro ainda pior no Bronx?

Seja como for, pensarei nisso mais tarde. Agora, tenho de fazer as malas.


15

O quarto principal da casa dos Garrick é tão grande que, se eu falasse, juro que faria eco.

Estou a arrumar uma pilha de roupa lavada. Seria de pensar que a maioria da roupa do casal iria para a limpeza a seco, mas, dado que Wendy parece nunca sair do quarto, suponho que não vista muitas vezes peças que exijam esse tipo de limpeza. Baseando-me no que vejo passar pela máquina de lavar, veste sobretudo camisas de noite. Neste momento, estou a dobrar uma delicada camisa de noite branca com rendas na gola, que me parece que chegaria aos tornozelos de Wendy, pela sua altura na única quase conversa que tivemos.

E é então que a vejo.

Na gola da camisa de noite há uma mancha. Uma mancha irregular castanha com camadas de vermelho, agora entranhada no tecido. Já antes me deparei com manchas como esta ao tratar da roupa. É algo inconfundível.

É sangue.

Não só isso, é bastante sangue. Mesmo junto ao decote, infiltrando-se no tecido por baixo. Fecho os olhos, incapaz de me impedir de pensar em qual poderá ter sido a sua causa.

Os meus olhos voltam a abrir-se de repente devido ao som do meu telemóvel a tocar. Tiro-o do bolso das minhas calças de ganga e o meu coração abate-se. O ecrã identifica a chamada como vinda da esquadra da polícia no Bronx. Não me parece que isto vá trazer boas notícias.

Bem, provavelmente não me prenderiam pelo telefone.

– Estou? – digo, sentando-me na beira da cama dos Garrick, que é sensivelmente do tamanho de um transatlântico.

– Wilhelmina Calloway? Daqui fala o agente Scavo.

O meu estômago revolve-se – o som do nome daquele polícia causa-me calafrios.

– Sim?

– Tenho boas notícias para si.

Se este homem ainda está no caso, não há boas notícias. Mas talvez devesse tentar ser otimista. Por esta altura, mereço uma vitória.

– O quê?

– O senhor Marin decidiu não apresentar queixa – diz.

São essas as boas notícias? Aperto o telemóvel com tanta

força que os meus dedos começam a formigar.

– Então e eu? Quero apresentar queixa.

– Menina Calloway, temos uma testemunha que a viu atacá-lo – contrapõe, pigarreando. – Tem sorte em ser este o único desfecho. Se ainda estivesse em liberdade condicional, voltaria agora mesmo diretamente para a prisão. E, claro, pode sempre instaurar um processo cível contra si.

Engulo o nó na minha garganta.

– Onde está agora, então?

– Foi libertado esta manhã.

– Libertaram-no esta manhã da prisão?

Scavo suspira.

– Não, nunca esteve detido. Teve alta do hospital esta manhã.

O que significa que esta noite estará de regresso ao prédio. O que significa que nunca mais lá posso voltar.

– Oiça, menina – diz Scavo. – Desta vez, teve sorte, mas precisa de consultar algum tipo de psiquiatra. Controlar os seus problemas de raiva. Caso contrário, vai acabar de novo na prisão.

– Obrigada pela dica – respondo, entredentes.

Ao desligar, ergo o olhar e percebo que não estou sozinha no quarto principal. Na outra ponta do quarto, postado junto à porta, está Douglas Garrick. Vestido com um fato Armani e uma vibrante gravata vermelha, o cabelo castanho-escuro penteado para trás, como sempre.

Pergunto-me quanto terá ouvido da conversa. Claro que só seria mau se tivesse ouvido o lado de Scavo.

– Olá, Millie – diz.

Apresso-me a levantar-me e a guardar o telemóvel no bolso.

– Olá. Desculpe, eu... estava só a tratar da roupa.

Não contesta a minha afirmação por estar a falar ao telemóvel. Em vez disso, entra no quarto, afrouxando a gravata vermelha com o polegar. Despe o casaco e atira-o para cima da cómoda.

– Bem? – pergunta.

Encaro-o, desconcertada.

– Vai deixar o meu casaco simplesmente ali estendido na cómoda?

Demoro um segundo a perceber o que quer que eu faça. O seu roupeiro está a menos de dois metros de nós, e ter-lhe-ia sido relativamente fácil pendurar o seu próprio casaco, mas, em vez disso, deixa a tarefa para mim. É justo, visto que é o meu trabalho, mas há uma intensidade na sua voz que me deixa inquieta. Tenho vindo a notá-la cada vez mais nas nossas interações.

– Peço imensa desculpa – murmuro. – Deixe-me pendurar isso por si.

Douglas Garrick vê-me tratar do seu casaco, estudando-me atentamente. No outro dia, pesquisei-o no Google, mas não há muito sobre ele – nem sequer uma foto decente. Aparentemente, é uma pessoa extremamente reservada. Tudo o que consegui descobrir foi que é o diretor-executivo de uma empresa de grande dimensão chamada Coinstock, como o Brock disse. É uma espécie de génio das tecnologias que inventou um software utilizado por praticamente todos os bancos do país. O Brock disse-me que parecia um tipo simpático, mas não se conhece realmente alguém só através de uma interação profissional. Douglas parece ser um homem hábil a ligar o charme quando necessita.

– É casada? – pergunta-me.

A pergunta faz-me paralisar a meio caminho do cabide.

– Não...

Um dos cantos da sua boca curva-se para cima.

– Namorado?

– Sim – respondo rigidamente.

Não comenta a minha resposta, mas os seus olhos percorrem-me até eu me começar a contorcer. Não importa quão atraente é – não me agrada que olhe para mim desta maneira. Quando nos conhecemos, impressionou-me a forma como controlava o olhar, mas suponho que era só fachada. Se continuar a olhar-me assim...

Bem, não há muito que eu possa fazer a esse respeito, suponho. Não depois de um polícia ter acabado de me acusar de agredir um homem.

Estou prestes a redirecionar-lhe verbalmente o olhar para o meu rosto quando os seus olhos acabam por pousar na camisa de noite branca ainda estendida na cama king sise. Olha fixamente para a mancha de sangue na gola. Talvez seja imaginação minha, mas estou certa de que oiço uma inalação brusca.

– Bem. – Olho para a camisa de noite e de novo para Douglas. – Se me dá licença, preciso de pesquisar como tirar nódoas de molho de tomate de um tecido.

Fita-me por mais um instante, depois acena em aprovação.

– Bom. Faça isso.

Mas eu não preciso de pesquisar nada. Já sei como tirar manchas de sangue de um tecido.


16

Q Brock e eu estamos a jantar juntos, mas não me consigo concentrar numa palavra do que está a dizer.

O tempo aqueceu e estamos numa mesa ao ar livre num simpático restaurantezinho do Médio Oriente na East Village. O Brock está devastadoramente atraente no seu fato de executivo e eu estreei um novo vestido de verão. Enquanto comemos as nossas entradas, o Brock conta-me tudo sobre um dos seus clientes, e geralmente sinto-me feliz por passar uma tarde com o meu incrível namorado. Fico sempre ligeiramente espantada por alguém como o Brock se interessar por alguém como eu e, em circunstâncias normais, estaria a beber cada palavra sua (mesmo estando a falar sobre direito de patentes, o que, para ser sincera, é a modos que aborrecido). Mas, hoje, a minha cabeça está noutro lugar.

Porque tenho outra vez aquela sensação de formigueiro na nuca. Como se alguém me estivesse a observar.

Devia ter dito ao Brock que queria comer no interior do restaurante. Já não me sinto segura com o Xavier nas ruas. Não sei por que escolheu visar-me, mas passou uma semana desde que me atacou e sinto frequentemente aqueles olhos a trespassar-me. Gostaria de pensar que é imaginação minha, mas não tenho assim tanta certeza. Mesmo com um braço partido – mesmo noutro bairro – o Xavier pode ainda andar a seguir-me.

– Não achas, Millie? – pergunta o Brock.

Encaro-o, desorientada. Tenho o garfo na minha mão direita e espetei um pedaço de borrego, mas não creio que tenha comido nada pelo menos nos últimos dez minutos.

– Hã? – digo debilmente.

O Brock junta as sobrancelhas, fazendo a pequena área de pele entre elas enrugar-se de uma forma que normalmente acho gira, mas que neste momento me parece irritante.

– Estás bem?

– Sim – minto.

Aceita a minha resposta sem questionar. Reparei que, especialmente para um advogado, o Brock é muito crédulo. Qualquer outra pessoa ter-me-ia provavelmente interrogado sobre o meu passado, mas ele não é assim. É um alívio não ter de lhe contar tudo, mas às vezes gostaria que me pressionasse. Porque estou farta de lhe esconder todos os meus segredos.

O Brock e eu conhecemo-nos durante um breve período em que julguei que poderia estar interessada num tipo qualquer de carreira jurídica, antes de perceber que os meus antecedentes tornariam isso difícil, se não mesmo impossível. A faculdade comunitária providenciou uma oportunidade para eu o acompanhar no trabalho, apesar de, no primeiro dia, o Brock ter admitido, em tom tímido:

0 meu emprego não ela muito entusiasmante. Eu tinha imaginado idas a tribunais, mas, em vez disso, passou a maior parte do tempo simplesmente a preencher papelada. Enquanto eu assistia.

Lamento, disse-me no fim da nossa semana juntos. Estou certo de que esperava algo diferente.

Não faz mal, respondi. De qualquer forma, não queria ser advogada.

Deixe-me compensá-la. Ofereço-lhe o jantar.

Mais tarde, o Brock admitiu que tinha passado a semana inteira a tentar pensar numa forma de me convidar para sair. A verdade é que quase recusei. Ainda estava com pena de mim mesma, depois de o Enzo me ter dito que não tinha intenção de regressar aos Estados Unidos, e não me apetecia ficar de coração partido uma segunda vez. Mas então imaginei as belas mulheres italianas a fazerem-se ao meu ex-namorado e decidi: que raio?! Por que não haveria eu também de me divertir um pouco?

O Brock tem sido um bom namorado. A cada semana que passa, procuro a sua falha fatal, mas mantém-se frustrantemente perfeito. E quando descobriu que não tinham acusado o Xavier de agressão, mostrou-se devidamente zangado. Ofereceu-se para ir comigo à esquadra e falar com o agente responsável pelo caso. Oferta essa que tive de recusar por motivos óbvios.

E, depois, simplesmente esqueceu o assunto. Eu não consegui parar de pensar naquilo toda a semana, mas o Brock seguiu em frente, embora afirmando repetidamente o óbvio: que preciso de encontrar outro sítio para viver.

– Estás um pouco pálida – observa o Brock.

Esfrego a nuca e viro-me para olhar para trás. Estou certa de que vou dar de caras com o Xavier, mas não está aqui ninguém. Pelo menos, não o vejo. Mas está seguramente algures.

– Vamos viver juntos – digo eu, de repente.

O Brock para a meio de uma frase. Tem uma pequena gota de molho de tahini ao canto da boca.

– O quê?

– Acho que estamos prontos – replico. É outra mentira. Não me sinto preparada para ir viver com o Brock, mas também não tenho a menor intenção de voltar para o meu apartamento no sul do Bronx enquanto o Xavier ainda lá morar, e não sei se me sentirei mais segura noutro lugar qualquer desse bairro. Nem sequer tenho a certeza de me sentir segura aqui, quanto mais no Bronx.

Em todo o caso, é a coisa certa a dizer. Um enorme sorriso ilumina o rosto do meu namorado.

– Está bem. Parece-me bem. – Do outro lado da mesa, estende uma mão para agarrar a minha. – Amo-te, Millie.

Abro a boca, ciente de que cheguei a um ponto crítico em que tenho de lho dizer de volta. Mas, nesse momento, a sensação arrepiante na minha nuca torna-se insuportável. Uma vez mais, viro a cabeça, certa de que vou ver o Xavier a poucos metros de mim, a fitar-me.

Semicerro os olhos enquanto perscruto a rua atrás de mim. Onde está aquele cretino?

Mas não vejo o Xavier em lado algum. Ou se escondeu atrás de uma caixa do correio ou não está aqui.

Vejo, no entanto, alguém que não esperava.

Douglas Garrick.


17

Douglas Garrick está atrás de mim.

Mais especificamente, está a atravessar a rua. O sinal está vermelho e precipita-se para a passadeira enquanto um táxi amarelo faz soar fortemente a sua buzina. Observo-o por um momento, com o coração a palpitar. De alguma forma, tinha partido do princípio que era o Xavier quem me andava a seguir, mas agora já não tenho assim tanta certeza. Terá sido Douglas o tempo todo?

– Espera um minuto – digo ao Brock. – Volto já.

– Mas que...

Não lhe dou hipótese de terminar o seu pensamento antes de me lançar pela rua atrás de Douglas, obrigando um carro azul a travar bruscamente. O condutor roga-me pragas, mas eu ignoro-o e continuo a andar.

O que faz Douglas na East Village? Vive no Upper West Side e trabalha em Wall Street.

Se me estava a observar, já não está. E outro aspeto interessante é que não está sozinho. Parece estar a caminhar com uma mulher de cabelo louro e que segura uma bolsa de tiracolo castanha, pendurada ao ombro direito.

O que se passa? Por que estava a observar-me? E quem é aquela mulher? Apesar de não ter conseguido ver bem Wendy Garrick na vida real, vi fotografias dela, e aquela mulher não é a Sra. Garrick.

Sigo-o por mais um quarteirão. Talvez esteja a iludir-me, mas não creio que faça ideia de que vou atrás dele enquanto caminha com a mulher pela Segunda Avenida. Ela ergue a voz, mas não consigo ouvir o que dizem. E, se me aproximar mais, podem ver-me.

Não sei por quanto mais tempo o poderei seguir. O Brock está ainda no restaurante e provavelmente acha que perdi o juízo. Espero que este pequeno incidente não chegue ao seu telefonema semanal para os pais.

Felizmente, Douglas e a mulher param diante de um pequeno prédio de apartamentos em arenito castanho. Como o meu próprio edifício, também este não tem porteiro. Ela procura uma chave na bolsa, destranca a porta e abre-a. Consigo obter uma boa visão da mulher mesmo antes de ambos desaparecerem no interior.

É dolorosamente óbvio o que se passa. Douglas tem uma amante secreta que vive neste edifício. Ainda é suficientemente cedo para poder dizer à Wendy que ficou a trabalhar até tarde esta noite quando chegar a casa.

Mas por que estavam a discutir?

Não é difícil imaginar, claro. Se ela é amante dele e ele é casado, talvez esteja zangada por não ter deixado a esposa. É uma mulher de pelo menos trinta e tal anos e não aparentava ser uma flausina apenas em busca de diversão. Talvez tenha esperanças que Douglas deixe Wendy e se case depois com ela.

Ainda estou a olhar para o prédio de arenito castanho, tentando decidir o meu próximo passo, quando o meu telemóvel começa a tocar no meu bolso. Retraio-me ao ver o nome do Brock no ecrã. Oxalá tivesse deixado o telefone na bolsa. Neste momento, porém, tenho de atender a chamada. O homem disse-me que podíamos viver juntos, disse que me amava, e então eu saltei da cadeira como uma louca e desatei a correr em sentido oposto.

– Millie? – parece desconcertado do outro lado da linha. – O que aconteceu? Para onde foste?

– Eu... vi uma velha amiga – respondo. – Queria pôr a conversa em dia com ela. Não a via há anos.

– Certo... – relutante, parece aceitar a minha explicação

ridícula, como eu sabia que faria. – Vais voltar?

Lanço um último olhar ao prédio de arenito castanho.

– Sim. Volto daqui a alguns minutos.

– Alguns minutos!

Seja o que for que Douglas Garrick está a fazer naquele prédio de apartamentos, não o vou descobrir ficando aqui a olhar fixamente para o edifício. Assim, começo a regressar ao restaurante, já a preparar-me para o interrogatório do Brock. Vai querer mais respostas para o porquê de eu ter fugido. Mas a verdade far-me-á parecer louca.

– Estou agora mesmo a regressar – digo-lhe. – Prometo.

– Queres que pague a conta? – pergunta. – Estás bem? O que se passa?

– Nada. – Atravesso a rua para regressar ao restaurante, acelerando ligeiramente o passo. – Como disse, vi uma velha amiga.

– Não parecias bem.

– Mas estou – insisto. – Eu...

Em plena insistência de que estou perfeitamente bem, paro de falar. Porque vejo algo que me faz o coração cair-me aos pés.

É um Mazda preto com o farol dianteiro do lado direito rachado. O mesmo que vi estacionado perto do meu prédio e, por vezes, perto de onde os Garrick vivem.

Baixo os olhos para ver a matrícula. 58F321. Vasculho o meu cérebro, tentando recordar-me de qual era a matrícula da última vez que o vi. Por que não a anotei? Tinha a certeza de que me lembraria.

Mas aquele farol direito rachado. Parece tão familiar.

– Millie? – A voz do Brock sai do meu telemóvel. – Millie? Estás aí?

Olho para o veículo. Durante todo este tempo, presumi que era o Xavier quem me andava a seguir. Mas agora encontro este carro estacionado perto do prédio da amante de Douglas. Apesar de não ter a certeza absoluta de que é o mesmo carro que me tem andado a seguir, estaria disposta a apostar muito dinheiro nisso. Parece um carro miserável para ser conduzido por um multimilionário, mas talvez não, se estiver a tentar ser discreto.

Mas por que haveria o Douglas de me andar a seguir? Afinal, já tinha esta sensação antes de começar sequer a trabalhar para os Garrick. Isso significaria que Douglas me andava a seguir antes mesmo de eu começar a trabalhar para ele.

Uma horrível sensação de frio desce-me pela espinha. O que se passa aqui?


18

Hoje, vou arrumar as minhas coisas para me mudar.

A verdade é que ainda não me sinto lá muito bem com a ideia de ir viver com o Brock, mas, se Xavier Marin mora naquele prédio de apartamentos, então eu não vou morar. E tenho de admitir que não será uma tortura viver no T2 do Brock no Upper West Side. Não é propriamente uma penthouse, mas é lindo. Até tem uma varanda que não serve também de saída de emergência. Além do mais, quando fica calor no verão, tem ar condicionado. Ar condicionado! É o cúmulo do luxo.

O Brock conduz-me ao Bronx no seu Audi. Não tem muito espaço na bagageira, mas, felizmente, eu não tenho muitas coisas. Uma das vantagens deste apartamento era vir parcialmente mobilado, pelo que a maioria das coisas que lá estão não são minhas. O que não couber na mala e no banco traseiro pode ficar para trás.

– Estou tão feliz por irmos viver juntos – diz-me o Brock, enquanto percorremos pela última vez as ruas até ao meu apartamento. – Vai ser ótimo.

O sorriso na minha cara parece de plástico.

– Sim.

Como posso fazer isto? Ir viver com o Brock quando não sabe a verdade sobre o meu passado? Não é justo. E não será justo para mim quando descobrir e me puser no olho da rua.

Continuo a trabalhar para os Garrick – por enquanto. Quanto mais pensava no assunto, menos certezas tinha que Douglas me tivesse estado a observar nesse dia. Afinal, estava a falar com a amante e não parecia minimamente concentrado em mim. Tirei conclusões precipitadas. E descobrir que o meu patrão anda a ter um caso não é razão para abdicar de um emprego lucrativo, sobretudo porque arranjar um novo é sempre difícil para mim. Posso ir viver com o Brock, mas seria um erro tornar-me dependente dele. Preciso do meu próprio rendimento – para a eventualidade de me pôr realmente no supracitado olho da rua.

Num sinal vermelho, o Brock pousa a mão no meu joelho. Sorri-me e parece incrivelmente atraente – como uma estrela de cinema – mas a única coisa em que consigo pensar é em como isto é má ideia. Está a cometer um erro terrível e nem sabe. E parte de mim gostaria que tirasse o raio da mão do meu joelho.

Não voltou a dizer que me ama desde aquele dia no restaurante. Consigo perceber que está mortinho por o fazer, mas já o disse duas vezes e eu nenhuma. Se o voltar a dizer, terei de lho dizer de volta ou... Bem, terei de o dizer de volta se quiser que esta relação continue. Já não há margem para dúvidas.

– Ei! – Ao virarmos para a minha rua, o Brock tira a mão. – O que se passa aqui?

Está um carro da polícia com as luzes a piscar estacionado em frente ao meu prédio. Cerro os lábios para me abster de lhe dizer que há sempre carros da polícia estacionados por aqui. Sinto o estômago às voltas enquanto me pergunto se haverá alguma hipótese de estarem aqui por mim. Talvez Xavier tenha mudado de ideias quanto a apresentar queixa.

Oh, meu Deus, será que me vão levar daqui algemada?

– Brock – digo, com urgência. – Talvez devêssemos sair daqui. Voltar noutra altura.

Franze o nariz.

– Não vou voltar outra vez ao Bronx amanhã. Vamos lá,

vai correr tudo bem.

Quando estou prestes a ter um verdadeiro ataque de pânico, a porta do meu prédio abre-se e vejo um agente conduzir um homem para a rua, de mãos algemadas atrás das costas. Parece que não estão aqui por mim, afinal. Provavelmente é outra apreensão de droga.

E, então, vejo a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda do homem algemado. É o Xavier.

Abro a minha janela mesmo a tempo de o ouvir gritar com o agente que o conduz ao carro-patrulha.

– Tem de acreditar em mim! Aquela droga... nunca a vi antes! Não é minha!

Mesmo de onde estamos estacionados, consigo ver o agente revirar os olhos.

– Pois, isso é o que todos dizem quando lhes encontramos uma batelada de heroína no apartamento.

Um segundo antes de chegarem ao carro-patrulha, os olhos do Xavier enchem-se de pânico. Embora tenha de saber que é uma jogada estúpida, solta-se do polícia e desata a correr pelo quarteirão. Claro que tem as mãos algemadas atrás das costas, o que significa que não irá longe. O agente alcança-o passados poucos segundos e eu vejo-o ser atirado ao chão.

É o melhor espetáculo que vejo em meses.

O Brock arregala os olhos ante a cena à nossa frente.

– Jesus Cristo. Tens sorte em ires sair daqui.

– É ele – murmuro. – É o homem que me atacou.

– Uau. Então também andava metido na droga? Suponho que não seja de admirar.

Não me deu a sensação de que Xavier estivesse sob o efeito de drogas durante as nossas interações. Parecia sempre perfeitamente sóbrio. Mas, se as encontraram no seu apartamento... melhor ainda, se encontraram lá muita droga – suficiente para sugerir que andaria a traficar –então não vai voltar tão cedo.

– Não tenho de me mudar – digo, de rompante.

O Brock fica boquiaberto.

– O quê?

– Não vai mais viver no prédio – saliento. – Por isso não tenho de partir.

O Brock estica o lábio inferior.

– Não compreendo. Não queres viver comigo?

É uma pergunta incrivelmente espinhosa. Sim, seria agradável ter o espaço extra e o ar condicionado e o porteiro para impedir os assaltantes de entrar. Mas essa não é uma boa razão para alguém ir viver com o namorado.

– Quero – respondo. – Um dia. Mas... ainda não.

– Compreendo. – O seu tom é gélido.

– Lamento imenso. – Estico-me para lhe apertar a mão, mas não retribui o aperto. – Sou simplesmente o tipo de pessoa que precisa do seu próprio espaço. Só isso.

Os seus olhos azuis encontram os meus.

– É mesmo só isso?

Imagino que os pais do Brock sejam do tipo que faria uma verificação de antecedentes a qualquer mulher com quem o filho fosse viver. Caramba, podem até já ter feito uma. Mas aposto que procuraram por Millie Calloway, o que foi a minha única salvação. É só uma questão de tempo até descobrirem que o meu primeiro nome é WiIhelmina, e então o Brock descobrirá tudo.

Tenho de confessar a verdade antes que isso aconteça.

Mas, com aquele cretino do Xavier na prisão, consegui uma curta trégua.


19

O apartamento dos Garrick parece tranquilo hoje.

Ouvi um som vindo do quarto de hóspedes, mas não eram choros nem gritos nem qualquer outra coisa suspeita. Soava apenas como se estivesse alguém lá dentro –uma mulher a quem não devo incomodar.

Depois de encontrar o sangue naquela camisa de noite, pensei genuinamente que Douglas ia arranjar uma desculpa para me despedir, mas por enquanto não o fez. O que é bom, tendo em conta que preciso do dinheiro. (O Brock continua a sugerir que eu devia ir viver com ele, mas para já tenho conseguido esquivar-me.)

E, agora que tive alguns dias para pensar no assunto, não estou convencida de que o carmesim na camisa de noite fosse tão ominoso como me pareceu na altura. Continuo a ter a certeza de que a mancha era de sangue, mas há muitas razões inocentes para se ter manchas de sangue nas roupas. Lidei com crianças suficientes com profusas hemorragias nasais para saber que é um erro tirar conclusões precipitadas. E, assim, consegui tirar o caso da cabeça.

Bem, maioritariamente.

Depois de arrumar alguns dos outros quartos, desço o corredor até à casa de banho principal do andar de cima. Geralmente, as casas de banho não estão muito sujas. Faz sentido, tendo em conta que só duas pessoas vivem aqui, e mal parece que precisem de alguém para limpar com tanta frequência, mas não vou discutir o assunto. É para limpar que me pagam, e se tenho de limpar algo que já está relativamente limpo, então é o que farei.

Só que, ao entrar na casa de banho agora, vejo algo que nunca antes tinha visto. Algo que me faz sentir como se me tivessem dado um murro no estômago.

É a marca ensanguentada de uma mão no lavatório.

Bem, para dizer a verdade, é cerca de meia mão. Como se alguém se tivesse agarrado ao lavatório com uma mão coberta de sangue.

Os meus olhos voltam-se para o chão. Não percebi ao entrar, mas agora vejo as pequenas gotas de sangue nas placas de linóleo. Parecem formar um pequeno rasto.

Sigo o rasto de gotas carmesim até ao exterior da casa de banho. Não há luzes no corredor, por isso, de alguma forma, não o vi da primeira vez, mas agora consigo distinguir as manchas de sangue que formam um trilho na alcatifa. E o trilho acaba à porta do quarto de hóspedes.

Não é suposto bater à porta. Douglas deixou isso bem claro quando comecei a trabalhar aqui. E, da única vez que bati, Wendy Garrick não ficou satisfeita por me ver.

Mas, mais uma vez, penso em Kitty Genovese. Como posso não investigar quando há literalmente um rasto de sangue a conduzir-me até à porta?

Assim, ergo o punho e bato.

Tinha ouvido alguns sons anteriormente, mas de repente faz-se silêncio do outro lado da porta. Ninguém me diz para entrar ou não entrar. Por isso, bato novamente.

– Senhora Garrick? – chamo. – Wendy?

Não obtenho resposta.

Cerro os dentes de frustração. Não sei o que se passa ali dentro, mas não me vou embora enquanto não puder confirmar que ela não se está a esvair em sangue. Tenho uma regra sobre não limpar em torno de cadáveres.

Embora não devesse, levo a mão à maçaneta. Tento rodá-la, mas não cede. Trancada.

– Senhora Garrick – digo. – A sua casa de banho está cheia de sangue.

Continuo a não obter resposta.

– Oiça, se não abrir a porta, vou ter de chamar a polícia.

Isso arranca-lhe uma reação. Oiço alguns movimentos

atrapalhados atrás da porta, seguidos de uma voz ligeiramente embargada.

– Estou aqui. Estou bem. Não chame a polícia.

– Tem a certeza?

– Sim. Por favor... vá-se embora. Estou a tentar dormir.

Podia afastar-me, mas na verdade não posso. Não depois de ter visto todo aquele sangue na casa de banho. Nem é por o sangue estar lá, mas por quem o derramou estar demasiado ferido para o conseguir limpar.

– Quero vê-la – digo. – Abra a porta, por favor.

– Estou bem, já lhe disse. Tive apenas um sangramento devido a um dente partido.

– Abra a porta por dois segundos e eu deixo-a em paz. Mas juro-lhe que não saio daqui enquanto não abrir.

Faz-se outro longo silêncio atrás da porta. Enquanto espero, o meu olhar vagueia para o rasto de gotas de sangue vindo da casa de banho. Há muitas explicações inocentes que o justifiquem. Talvez se estivesse a depilar e cortou-se. Talvez tenha sido realmente um dente partido.

E, depois, há algumas explicações não tão inocentes.

Finalmente, ouve-se um estalido da maçaneta. A porta foi destrancada. E, muito lentamente, entreabre-se.

Tenho de tapar a boca com a mão para me impedir de gritar.


20

Wendy – murmuro. – Oh, meu Deus!

– Eu disse-lhe – responde. – Estou bem. Não é tão mau como parece.

Vi muitas coisas más na minha vida, mas o rosto de Wendy Garrick é daquelas que me hão de assombrar durante anos. A mulher foi esmurrada e, a julgar pelo seu aspeto, não aconteceu tudo de uma vez. Os hematomas

que lhe cobrem o rosto estão em diferentes fases de cura. O da sua maçã do rosto esquerda parece recente, mas outros têm um aspeto amarelado que dá a impressão de terem sido formados por um golpe muito anterior.

Wendy disse-me que o sangramento vinha de um dos seus dentes, e eu acredito firmemente que quem lhe fez isto ao rosto fosse capaz de lhe partir um.

– É da minha medicação – diz-me. – Dei uma queda e tomo anticoagulantes. Faz com que facilmente forme nódoas negras.

Esta mulher já se viu ao espelho? Está realmente a tentar dizer-me que isto se deveu a uma quedai

Veste uma camisa de noite cor-de-rosa às flores e, tal como a casa de banho, a frente está manchada de sangue. E nem sequer é a primeira camisa de noite ensanguentada que vejo desde que aqui estou.

– Tem de ir a um hospital – consigo dizer.

– A um hospital? – repete, estremecendo. – E o que fariam eles, ao certo?

– Verificar se tem ossos partidos.

– Não tenho. Estou bem.

– E depois pode denunciar isto – acrescento.

Wendy Garrick fita-me através de uns olhos margeados de hematomas. Respira fundo e retrai-se. Pergunto-me se terá uma costela partida. Não me surpreenderia.

– Oiça bem, Millie – diz, em voz baixa. – Não faz ideia daquilo com que está a lidar aqui. Não quer envolver-se nesta situação. Tem de se afastar e de me deixar em paz.

– Wendy...

– Falo a sério. – Os seus olhos pisados dilatam-se e, pela primeira vez, vejo neles verdadeiro medo. – Se sabe o que é bom para si, tem de fechar esta porta e sair daqui.

– Mas...

– Tem de se afastar, Millie. – Há agora uma urgência terrível na sua voz. – Não faz ideia. Simplesmente afaste-se.

Abro a boca para protestar, mas, antes que o possa fazer, já me fechou a porta na cara.

A mensagem é absolutamente clara. O que quer que esteja a acontecer nesta casa, Wendy não quer a minha ajuda. Não quer que me intrometa. Quer que me meta na minha vida.

Infelizmente, nunca tive muito jeito para isso.


21

Em 2007, um prestigiado violinista chamado Josh Bell, que tinha recentemente esgotado um concerto com bilhetes ao preço médio de algumas centenas de dólares cada, fez-se passar por músico de rua. Foi para uma estação de metro em Washington, de calças de ganga e boné de beisebol, e tocou a mesma exata música que no seu concerto, num violino artesanal avaliado em mais de três milhões e meio de dólares.

– Quase ninguém parou sequer para ouvir – explica o Dr. Kindred ao auditório cheio de estudantes. – Na verdade, quando ocasionalmente as crianças paravam, os pais destas agarravam-nas e faziam-nas seguir caminho. Este homem esgotou um concerto em Boston e, nesse dia, só cerca de cinquenta pessoas pararam durante tempo suficiente para depositar um dólar no estojo do seu violino. Como explicam isto?

Após alguma hesitação, uma rapariga na fila da frente põe a mão no ar. Está sempre ansiosa por responder a perguntas.

– Acho que, em parte, foi por a beleza ser mais difícil de percecionar quando num cenário singelo.

Todos os dias apanho o metro do Bronx para a cidade e é frequente ver pessoas a tocar os seus instrumentos enquanto espero pela sua chegada. A estação mesmo junto ao meu prédio tresanda a urina, por razões em que prefiro não pensar, mas, se houver alguém a tocar música enquanto espero, já não é assim tão mau.

Eu teria parado para ouvir Josh Bell. Poderia até ter deixado um dólar no estojo do seu violino, apesar de precisar de cada dólar que tenho.

– Muito bem – diz o Dr. Kindred. – Algum outro possível fator em jogo?

Hesito por um momento antes de pôr a mão no ar. Geralmente, não participo nas aulas porque tenho cerca de dez anos a mais do que a pessoa mais velha na sala (com exceção do professor). Mas mais ninguém parece estar a responder.

– Ninguém quis ajudá-lo – afirmo.

O Dr. Kindred assente e acaricia a barba no seu queixo.

– O que quer dizer com isso?

– Bem... – digo. – Ele tinha um estojo de violino com dinheiro no interior. As pessoas partiram do princípio de que procurava ajuda na forma de dinheiro. E, como não queriam ajudá-lo, ignoraram-no. Sentiam que se parassem tinham de ajudar.

– Ah! – concorda. – Não diz muito de bom sobre o género humano, então, se ninguém estava disposto a apreciar uma bela música porque significava ter possivelmente de ajudar alguém necessitado.

O professor continua a olhar para mim, por isso sinto que tenho de dizer algo.

– Pelo menos cinquenta pessoas pararam. Já é alguma coisa.

– Bem verdade – concorda. – É realmente alguma coisa.

Eu teria ajudado, ainda assim. Ajudo sempre. Nunca me consigo afastar, nunca, nem mesmo quando devia.

Depois de a palestra acabar, quando vou a sair do edifício, avisto um rosto familiar a descer a rua. Fico um pouco surpreendida ao constatar que é Amber Degraw, a mulher que me despediu quando a sua filha bebé não parava de me chamar mamã. Não é tanto por a ver que estou surpreendida, mas por a ver a empurrar um carrinho com a pequena Olive, que brinca com uma espécie de roca que traz enfiada o mais possível dentro da boca. Tem os dedos viscosos de baba.

Quando trabalhava para Amber, nunca parecia interessada em levar a Olive a passear. Portanto isto é bom para ambas.

Pondero virar a esquina para evitar um encontro confrangedor, mas então a Amber vê-me e ergue a mão num cumprimento entusiástico. Aparentemente, esqueceu-se por completo da forma como me despediu.

– Millie! – chama. – Meu Deus, que maravilhoso vê-la!

A sério? Não foi isso que disse da última vez que nos vimos.

– Olá, Amber – respondo, já resignada a fazer educadamente conversa.

Parando ao meu lado, solta a pega do carrinho durante tempo suficiente para alisar o seu lustroso cabelo louro-arruivado. Hoje, Amber está inteiramente voltada para o cabedal. Veste umas calças de couro, enfiadas numas botas de cabedal pelo joelho, com uma suave gabardina em couro castanho.

– Como está? – inclina a cabeça para o lado como se eu fosse uma amiga casual que foi atingida por alguns azares, e não alguém que despediu. – Tudo bem?

– Claro – respondo por entre dentes cerrados. – Tudo ótimo.

– Onde trabalha agora?

Sinto-me relutante em dizer-lhe seja o que for sobre a minha posição atual. Já me despediu pela mais estúpida das razões – não há nada, a meu ver, de que esta mulher não seja capaz.

– Estou entre empregos.

– Vi-a na rua no outro dia – comenta. – la a entrar naquele velho edifício da Rua 86. O Douglas Garrick vive lá, não é verdade?

Paraliso, surpreendida por ter conhecimento dessa informação. Por outro lado, nos círculos dos ricos, toda a

gente parece conhecer toda a gente.

– Sim, trabalho para os Garrick agora.

– Oh, era isso que estava lá a fazer?

O sorriso que curva os lábios da Amber faz-me sentir inquieta. O que está a sugerir ao certo?

– Sim...

Pisca-me o olho.

– De certeza que está a aproveitar ao máximo.

Não me agrada o seu tom, mas lembro a mim mesma que não tenho de ficar aqui a conversar com Amber – um dos benefícios de já não estar ao seu serviço. Tenho, ainda assim, de dizer olá à pequena Olive, cujo queixo brilha de baba. Há algum tempo que não a vejo e os bebés podem mudar muito depressa nesta idade. Provavelmente, já mal me reconhece.

– Olá, Olive! – chilreio.

Olive tira a roca da garganta e ergue os seus enormes olhos azuis para me fitar.

– Mamã! – grita com regozijo.

A cor esvai-se do rosto da Amber.

– Não! Ela não é a tua mamã! Eu é que sou!

– Mamã! – A Olive estende os seus braços gorduchos para mim. – Mamã!

Quando eu não a tomo nos braços, a menina começa a soluçar. Amber lança-me um olhar venenoso.

– Veja como a perturbou!

Com essa observação, vira-me costas e começa a descer aceleradamente a rua para se afastar de mim, enquanto a Olive continua a gritar «Mamã!». Apesar de tudo, o encontro pôs-me um sorriso no rosto. Parece que afinal se lembrava de mim.

Enquanto vejo a Amber desaparecer ao longe, o meu telemóvel começa a tocar – instantaneamente, o meu bom humor evapora-se. É provavelmente uma de duas pessoas. Ou Douglas, a dizer-me que estou despedida por lhe importunar a mulher, ou o Brock, o que seria ainda pior.

As coisas têm estado decididamente frias entre mim e o meu namorado desde que lhe disse abruptamente que não queria ir viver com ele. Expliquei-lhe repetidas vezes que preciso do meu próprio espaço e que me sinto mais segura agora que o Xavier vai passar os próximos tempos encarcerado, mas continua a não compreender. Tenho um mau pressentimento de que teremos de dar um passo em frente na nossa relação muito, muito em breve, ou então irá terminar.

Só que, quando olho para o meu telemóvel, não é Douglas ou o Brock. É um número que não reconheço.

– Estou? – digo.

– Fala a Wilhelmina Calloway?

Hesito, perguntando-me se a voz do outro lado da linha me vai dizer que a garantia do meu carro está prestes a expirar, ou então lançar-se numa torrente de alguma língua estrangeira.

– Sim...

– Olá! Daqui fala a Lisa, do jobmatch!

Os meus ombros relaxam. É do serviço que usei para pôr o meu anúncio para os trabalhos de empregada de limpeza.

– Olá, Lisa.

– Menina Calloway – diz-me a Lisa, na sua voz alegre. –Não obtivemos qualquer resposta aos nossos e-mails, por isso esta é a segunda chamada relativamente ao seu cartão de crédito.

– Ao meu cartão de crédito?

– Sim – responde a Lisa. – O seu American Express foi rejeitado.

Abano a cabeça ante a minha própria estupidez.

– Peço imensa desculpa. Cancelei esse cartão. A minha intenção era utilizar o meu MasterCard. Mas já não preciso do anúncio.

– Bem – diz a Lisa. – Quero só certificar-me de que compreende que o anúncio nunca foi publicado, uma vez que nunca recebemos o pagamento.

Paro de andar em plena Primeira Avenida.

– Espere aí – peço. – O meu anúncio para a função de empregada doméstica nunca foi publicado?

– Temo que não, visto que nunca recebemos o pagamento. Como disse, temos estado a tentar contactá-la...

Mas eu não estou a ouvir. Não sei como é possível que o meu anúncio para o lugar de empregada doméstica nunca tenha aparecido online.

– Tem a certeza? – pergunto subitamente. – Está a dizer que o meu anúncio nunca esteve de todo online. Nem por um dia?

– Nem por um dia – confirma a Lisa.

Penso em quando andava à procura de emprego, há um par de meses. A maioria das entrevistas foram com potenciais empregadores a quem tinha contactado através dos seus próprios anúncios. Na verdade, só uma pessoa me contactou de forma espontânea.

Douglas Garrick.


22

Tudo o que sei é que vou chegar ao fundo da questão.

Foi Douglas Garrick a ligar para mim. Lembro-me perfeitamente. Atendi o telefone e disse-me que procurava uma empregada doméstica para fazer as limpezas, tratar da roupa, preparar refeições ligeiras e fazer recados ocasionais. Não referiu o anúncio, ou pelo menos não creio que o tenha feito, mas, na altura, parti simplesmente do princípio que era por isso que me estava a ligar. Afinal, não havia outra razão.

Como obteve o meu número, se não foi devido ao anúncio?

Toda a situação me causa um sentimento de mal-estar. Continuo a ter a sensação que alguém me observa, apesar de Xavier estar alegadamente na prisão. E aquele Mazda preto estava estacionado à porta do prédio onde Douglas entrou com a amante. Douglas tinha o meu número, de alguma forma, apesar de o anúncio nunca ter sido publicado.

Sabia quem eu era.

Fico parada na rua, diante de uma pizaria. O irresistível aroma a molho de tomate, gordura e queijo fundido invade-me as narinas, mas só me faz sentir náuseas. Perscruto a rua à minha frente, à procura de algo suspeito.

Não vejo Douglas. Não vejo Xavier.

Mas está alguém à espreita. Alguém me observa. Tenho a certeza absoluta.

Agarro novamente no meu telemóvel. Tem uma mensagem de Douglas a confirmar se vou passar pelo apartamento esta noite para limpar, apesar de ainda lá ter estado há dois dias e de ter a certeza de que a casa ainda está praticamente imaculada. Normalmente, respondo-lhe por mensagem de texto, mas agora olho fixamente para o ecrã. Antes que possa mudar de ideias, marco o número dele para lhe ligar.

Enquanto a ligação é feita e o aparelho começa a chamar, um telemóvel toca mesmo atrás de mim. Cai-me o coração aos pés.

Viro-me, mas o telemóvel que toca parece pertencer a uma adolescente. Atende a chamada e oiço-a gritar «Oh, meu Deus!» para o aparelho ao passar por mim. Caramba, estou assustadiça.

– Estou? Millie?

É a voz de Douglas do outro lado da linha. Não está meio metro atrás de mim. Onde quer que esteja, parece bastante mais tranquilo do que a rua movimentada onde me encontro.

– Oh, olá.

– Tudo bem? Sempre vai lá a casa esta noite para limpar?

– Sim... – praguejo para comigo por não ter preparado uma história antes de ligar. Estava a ser impulsiva. – Estava só a trabalhar no meu currículo e tinha uma pergunta rápida para si.

– Não nos vai deixar, pois não? – Há um toque de humor na sua voz, mas também algo sombrio a pairar sob a superfície. – Espero certamente que não.

– Não, de modo algum. Queria só arranjar algum trabalho extra e perguntava-me como ouviu falar em mim. Por exemplo, como obteve o meu número?

Pensa por um momento.

– Na verdade, foi a Wendy que me deu o seu número.

– A Wendy? A sua mulher?

– Conhece mais alguma Wendy? – pergunta a rir. – Disse-me que uma amiga lhe tinha dado o seu número e que era muito boa.

– Disse que amiga?

– Não. – A sua voz adquire, então, um matiz ligeiramente defensivo. – Já lhe demos informações suficientes. Por favor, não incomode a Wendy com isto.

– É claro que não – aquiesço. – Muito obrigada pela informação. E certamente que irei ao apartamento esta noite.

Irei ao apartamento esta noite. Mas se pensa que não vou perguntar à Wendy por isto, está redondamente enganado.


23

Esta noite, chego ao apartamento com uma braçada de roupa vinda da limpeza a seco. Toda de Douglas Garrick. Fui buscar quatro fatos, todos provavelmente com um preço superior ao que eu ganho num ano. Se fosse desonesta e tentasse vendê-los por minha conta, provavelmente faria um belo montante. Mas não vale a pena. Já tenho pavor de Douglas, e a última coisa que quero é fazê-lo zangar-se comigo.

Ainda que o que estou prestes a fazer hoje possa muito bem servir esse propósito.

Quando chego à sala de estar, com a roupa pendurada do braço, a casa está em silêncio. Wendy está provavelmente no andar de cima e Douglas presumivelmente a trabalhar até tarde – ou com a amante. Levo a roupa para o andar de cima, o bater dos meus ténis contra cada degrau a ecoar por todo o apartamento. Já limpei casas muito maiores do que esta, mas nunca estive numa que parecesse ter ecos tão altos. Pergunto-me se estará relacionado com a idade do edifício.

Não me surpreende que a porta do quarto de hóspedes esteja fechada. Agarro na roupa limpa e levo-a para o quarto principal. Penduro os fatos de Douglas, mas a minha mente está na mulher fechada no quarto de hóspedes. Estou decidida a falar com ela hoje.

Assim que acabo de arrumar os fatos, esgueiro-me pelo corredor até ao quarto de hóspedes.

Por alguma razão, as luzes do corredor não acendem. Perguntei a Douglas por isso uma vez e respondeu-me que era algum tipo de problema elétrico. Resmungou qualquer coisa sobre mandá-lo arranjar, mas as luzes têm estado sempre sem funcionar desde que comecei a trabalhar aqui. Somando à arquitetura tão antiga, a falta de luzes no andar de cima dá-lhe um ambiente arrepiante.

Paro em frente ao quarto de hóspedes. A alcatifa sob os meus pés está limpa – limpei todo o sangue da casa de banho e tirei as nódoas da alcatifa utilizando água oxigenada. Não há qualquer sinal do sangue de Wendy alguma vez ter gotejado sobre ela. E Douglas não sabe que eu sei.

Ergo a mão, prestes a bater à porta, e um calafrio percorre-me. Não posso deixar de me lembrar do aviso de Wendy da última vez que falámos:

Se sabe o que é bom para si, tem de fechar esta porta e sair daqui.

Engulo as minhas dúvidas. Não, eu nunca me afasto. Com determinação renovada, bato com o punho na porta.

Estou totalmente preparada para lhe implorar de novo que abra, mas desta vez oiço passos atrás da porta. Passado um momento, a porta entreabre-se. Mais uma vez, fito o rosto maltratado de Wendy, embora seja certo que parece melhor do que há alguns dias.

– O que foi? – Há um tom de resignação na sua voz. –Estava a tentar dormir.

Os meus olhos descem para a sua camisa de noite amarelo-clara, que felizmente não parece ter sangue desta vez.

– É uma camisa de noite bonita. Eu durmo sempre simplesmente com a minha T-shirt dos Mets.

Ela cruza os braços sobre o peito.

– Foi para me dizer isso que me acordou?

– Não... não foi. Na verdade, preciso de lhe fazer uma pergunta.

Wendy muda o seu peso de um chinelo para o outro.

Não tinha percebido até agora o quão magra está. A mulher está flagrantemente emaciada. Suponho que possa ser devido à sua doença, mas não sei se alguma vez tinha visto uma mulher tão magra. As suas clavículas projetam-se dolorosamente e, quando puxa a camisa de noite, consigo distinguir cada osso na sua mão raiada por veias azuis. Os seus olhos parecem enormes no seu rosto magro.

– O que quer?

– Quero saber como obteve o meu número.

Começa a brincar com uma madeixa do seu cabelo acobreado e eu reconheço a pulseira que lhe pende do braço. É a mesma que Douglas lhe ofereceu recentemente.

– Como assim?

– Douglas disse-me que lhe deu o meu número para me ligar por causa das limpezas. Mas como o conseguiu?

– Pôs um anúncio, não foi? Deve ter sido assim que obtive o número. – Solta um longo suspiro. – Agora, se não se importa, vou voltar para a cama. Foi um longo dia.

– Na verdade, descobri que o anúncio nunca foi publicado. Portanto, como disse, como conseguiu o meu número?

Quase consigo ver as engrenagens a rodar no cérebro de Wendy.

– Diga-me a verdade – interrompo, antes que possa congeminar outra mentira.

Wendy baixa os olhos.

– Por favor. Não quero fazer isto. Simplesmente esqueça.

– Diga-me – insisto, por entre dentes cerrados.

– Por que nunca faz o que eu lhe peço? – exclama, erguendo as mãos. – Muito bem. Obtive o seu número da Ginger Howell.

E, agora, sinto-me como se alguém tivesse acabado de me dar um murro. Sei quem é a Ginger Howell, mas não a vejo há anos. Dois anos, para ser mais exata. Foi uma das últimas mulheres para quem trabalhei antes de o Enzo partir para Itália. Arranjámos-lhe um advogado disposto a trabalhar numa base de contingência para a ajudar a divorciar-se do monstro do marido. Ele lutou com unhas e dentes, e estávamos à beira de lhe tentar arranjar um passaporte e uma identidade novos, mas acabou por a deixar ir.

Espero que esteja bem. A Ginger parecia boa pessoa. Não merecia o que o marido lhe andava a fazer.

Mas se Wendy soube de mim pela Ginger, então...

– Por que disse ao Douglas para me ligar, Wendy? – pergunto. – Preciso que me diga a verdadeira razão – acrescento, ao vê-la começar a abrir a boca.

Continua a recusar-se a olhar para mim, olhando antes fixamente para a alcatifa.

– Acho que sabe porquê.

Um repique surdo ecoa ao fundo da minha cabeça. Mal aqui entrei, suspeitei que havia algo de estranho nesta casa. Sempre que tentava aproximar-me de Wendy, contudo, ela não parecia interessada em falar comigo.

– Parti o pulso – diz com amargura. – Ele empurrou-me e partiu, mas, quando fui ao médico, recusou-se a sair da sala. Tive de lhes dizer que escorreguei no gelo e caí. Foi a única razão para me ter deixado arranjar alguma ajuda para a casa. De outro modo, nunca deixa ninguém entrar aqui.

Cerro os punhos.

– Por que não disse nada?

– Porque foi uma ideia estúpida trazê-la aqui. – Os seus olhos raiados de sangue enchem-se de lágrimas. – Estava desesperada, mas soube assim que a vi que não podia ir avante com isto. Não conhece o Douglas. Não sabe como ele é. Fugir não é uma opção.

– Está enganada – digo.

Atira a cabeça para trás e solta uma risada eivada de ácido.

– Não faz ideia do que está a dizer. O Douglas está em toda a parte. Vê tudo.

Penso em todas as vezes na rua em que senti que alguém me observava.

– Está a ver-nos agora? Está a ouvir esta conversa?

– Eu... não sei. – Os seus olhos dardejam pelo corredor. – Não consegui encontrar nenhuma câmara na casa, mas isso não quer dizer que não existam. O Douglas tem acesso a tecnologia que não podemos imaginar. É um génio, sabe? – Desta vez, o seu riso é triste. – Costumava achar isso atraente nele.

– Não deixa de valer a pena tentar.

As suas maçãs do rosto pisadas coram ligeiramente.

– Não compreende. Ele gastaria até ao último cêntimo que tem para me localizar.

Está certa – e Douglas tem muitos cêntimos para gastar. Com um marido assim, seria difícil escapar – não faço realmente ideia do que é capaz. E não sei se posso ajudá-la. Sobretudo porque não tenho os recursos que o Enzo tinha... não conheço um «tipo» para tudo. Foi por isso que jurei deixar esta vida e concentrar-me em tirar a minha licenciatura, para poder ajudar mulheres de uma forma que não envolvesse vergar a lei. Mas cada molécula no meu corpo grita que tenho de tentar ajudar esta mulher – agora.

Jamais ignoraria um homem no metro que precisasse de ajuda. Ou uma mulher que estivesse a ser esfaqueada até à morte junto à minha janela. Não posso deixar que isto aconteça debaixo do meu nariz.

– Tem algum dinheiro? – pergunto. – Em numerário, quero eu dizer?

Hesitantemente, anui.

– Tenho andado a vender aos poucos algumas das minhas joias. Tenho tantas... Sempre que me bate, compra-me algo novo e caro. Tenho algum dinheiro escondido num sítio onde não creio que o vá encontrar. Não durará muito, mas talvez o suficiente.

A minha mente não para.

– Tem alguns amigos que a possam ajudar? Amigos que talvez não conheça? Do secundário ou da universidade ou...?

– Por favor, pare – crocita. – Não parece entender o que estou a tentar dizer-lhe. O Douglas é extremamente perigoso. Não pode subestimar este homem. Se tentar ajudar-me, não vai resultar e... vai arrepender-se. Acredite.

– Mas, Wendy...

– Não posso fazê-lo, está bem!

Olha para a pulseira no seu braço esquerdo – lembro-me de como o Douglas estava orgulhoso quando a exibiu. Com uma expressão desvairada nos olhos, ela atrapalha-se com o fecho até a fazer deslizar do seu pulso esguio.

– Odeio os presentes que me dá. – A sua voz escorre veneno. – Mal os consigo olhar, mas ele espera que os use.

Aperta a pulseira no punho, estendendo depois a mão para agarrar a minha. Enfia-me a pulseira na palma.

– Tire isto da minha vista. Já nem a posso ver. Se perguntar, digo... digo-lhe que a perdi.

Abro a mão para olhar para a pequena pulseira. Pergunto-me se estará manchada com o seu sangue.

– Não posso aceitar isto, Wendy.

– Então deite-a fora – cospe. – Não a quero mais em minha casa. Especialmente depois do que escreveu nela.

Aproximo a pulseira do rosto para examinar a inscrição. Leio as letras minúsculas:

Para W. És minha para sempre. Com amor, D.

– Sua para sempre – diz amargamente Wendy. – Sua propriedade.

A mensagem é inequívoca.

– Por favor, deixe-me ajudá-la. – Agarro-lhe no pulso, esquecendo-me que pode ser o partido. Ela estremece e eu solto-a. – Faço o que for preciso. Não tenho medo do seu marido. Podemos arranjar uma maneira de sair disto.

E, então, vejo-o nos seus olhos. Um lampejo de hesitação. De esperança. Dura apenas uma fração de segundo, mas está lá. Esta mulher está desesperada.

– Não – diz com firmeza. – E agora tem de ir.

Antes que eu consiga dizer mais uma palavra, fecha-me a porta na cara.

Wendy Garrick está absolutamente aterrorizada com o marido – e também eu tenho medo do homem. Mas, ao fim de todos estes anos, aprendi a não me deixar controlar pelo medo. Derrubei Xavier. Derrubei homens tão poderosos quanto Douglas. Não me interessa o que Wendy diz. Posso lidar com ele.


24

Se tivesse uma moeda por cada vez que um ciclista quase me abalroou na ciclovia quando atravesso uma rua, não teria de trabalhar para os Garrick. Quando vou a atravessar a rua para chegar ao prédio de apartamentos dos Garrick, um ciclista sem capacete e de telemóvel ao ouvido passa a milímetros de me mandar para o hospital. Por que são sempre os ciclistas que vão ao telemóvel que também não usam capacete? É tipo

uma regra.

Mesmo antes de chegar à entrada do prédio, o meu telemóvel toca dentro da bolsa. Hesito, pensando em deixá-lo ir para o correio de voz. Em seguida, remexo na minha bolsa e tiro-o.

O nome do Brock surge no ecrã. Agora, sinto-me ainda mais tentada a deixá-lo ir para o correio de voz. Não quero ter mais outra conversa sobre o porquê de não me poder mudar para sua casa. Ou, como gosta de dizer, de não me querer mudar para sua casa.

Finalmente, suspiro e primo o botão verde no meu telemóvel para atender a chamada.

– Olá – digo.

– Olá, Millie – responde. – Apetece-te jantar comigo esta noite?

– Provavelmente vou ficar até tarde em casa dos Garrick esta noite – digo-lhe, o que não é inteiramente mentira.

– Oh!

Pergunto-me quantos convites para jantar terei de recusar antes de parar de perguntar. E não quero isso. Gosto muito do Brock, embora possa não o amar ainda. Não o quero perder.

– Escuta – digo. – O Douglas vai ausentar-se por uns dias a começar amanhã, por isso não precisam de mim para cozinhar. E se jantássemos amanhã à noite?

– Está bem. – A sua voz soa um pouco estranha. – Além disso, quando estivermos a jantar, acho que precisamos de ter uma conversa.

Solto um riso estrangulado.

– Isso não parece bom.

– Eu só... – oiço-o pigarrear. – Gosto muito de ti, Millie. Precisamos apenas de discutir em que posição estou.

– Estás muito bem.

– Estou mesmo?

Não sei o que dizer. Mas tem razão. Eu e o Brock precisamos mesmo de ter uma conversa. O mais cedo possível. Tenho de lhe confessar a verdade sobre tudo no meu passado, e então poderá decidir se quer avançar. Gostaria de pensar que é uma pessoa suficientemente decente para não se deixar afugentar por uma década na prisão, mas não paro de imaginar a expressão no seu rosto quando lhe contar. E não é de felicidade.

– Tudo bem – digo. – Podemos ter uma conversa.

– Encontramo-nos no meu apartamento às sete?

– Claro.

Faz-se uma pausa do outro lado da linha e quase receio que me vá dizer de novo que me ama, mas em vez disso despede-se.

– Até amanhã.

Depois de desligarmos, fico por um momento a olhar para o ecrã do meu telemóvel. E se eu lhe ligasse de volta e lhe contasse tudo agora mesmo? Arrancar simplesmente o penso rápido. E, então, não teria de esperar e de carregar esta sensação de mal-estar no meu estômago durante mais um dia.

Não, não posso fazer isso. Terá de ser amanhã.

Continuo a dirigir-me ao prédio, com um peso na boca do estômago. O porteiro apressa-se a abrir-me a porta e, ao fazê-lo, pisca-me o olho.

Parece-me um pouco estranho. O homem tem pelo menos mais trinta anos do que eu. Estará a tentar fazer-se a mim? Por um momento, tento recordar se já antes o vi piscar-me o olho, mas depois afasto-o do pensamento. Um porteiro tarado é o menor dos meus problemas.

Quando, com um rangido, as engrenagens param no vigésimo andar e as portas se abrem para a penthouse, quase dou um salto. Em todas as vezes que aqui vim nos últimos meses, isto é algo que nunca antes vi. E é o suficiente para me fazer ficar de queixo caído.

A Wendy está de pé em frente à porta do elevador da penthouse – saiu do quarto. E fita-me com os seus grandes olhos verdes.

– Precisamos de falar – diz.


25

Agarrando-me pelo braço, Wendy puxa-me para o sofá. Apesar da sua magreza, é forte. De alguma forma, não me surpreende por completo.

Sento-me no sofá e ela ao meu lado, alisando a camisa de noite sobre os joelhos ossudos. Os hematomas no seu rosto parecem muito melhores, mas os seus olhos estão tão raiados de sangue como da última vez que a vi.

– Disse que estava disposta a ajudar-me – começa. – Estava a falar a sério?

– É claro que estava a falar a sério!

O mais ligeiro dos sorrisos aflora-lhe aos lábios. Percebo então que Wendy é muito bonita. Entre o aspeto enfraquecido do seu corpo e os seus hematomas, não tinha reparado antes.

– Segui o seu conselho.

– O meu conselho?

– Depois de partir – diz –, pensei em matar-me.

Inspiro bruscamente.

– Não foi esse o conselho que eu lhe dei.

– Eu sei – responde rapidamente. – Mas parecia tudo tão irremediável. Quando convenci o Douglas a contratá-la, pareceu-me que era o meu último salva-vidas para sair desta situação terrível. E, quando a mandei embora, foi como se não houvesse hipótese de alguma vez lhe escapar. Por isso, fui para a casa de banho e pensei em cortar os pulsos.

– Oh, meu Deus, Wendy...

– Mas não o fiz. – Endireita o queixo. – Porque, por uma vez, não me sentia inteiramente sozinha. E lembrei-me do que me tinha dito sobre falar com alguém que o Douglas não conhecesse. Alguém do meu passado que nunca tivesse conhecido. E lembrei-me da minha velha amiga da faculdade, a Fiona. Era uma das minhas melhores amigas, não falamos há séculos e não tinha qualquer contacto com ela através das redes sociais.

Arqueio as sobrancelhas.

– Vai tentar encontrá-la, então?

– Já encontrei. – As maçãs do rosto geralmente pálidas da Wendy ruborizam-se. – Consegui o número de telefone dela ligando a outra amiga da faculdade... e é claro que a fiz jurar segredo. E esta manhã a Fiona e eu conversámos durante horas. Tem uma quinta mesmo à saída de Potsdam, no norte de Nova Iorque. Está maioritariamente desligada do mundo, exceto pelo telefone fixo. Contei-lhe tudo sobre a minha situação e disse-me que posso ficar com ela o tempo que precisar.

Embora aplauda a sua iniciativa, isto não resolverá o problema. Mesmo que não a encontre lá, não pode ficar escondida para sempre no norte de Nova Iorque. Nem sequer terá forma de arranjar emprego sem algum tipo de identificação ou número de segurança social. Era nisso que o Enzo costumava ajudar. Com o tipo de recursos que Douglas tem, encontrá-la-á num instante quando ela utilizar o seu verdadeiro nome. Aprendi também, por experiência própria, que de nada adianta ir à polícia quando se trata destes homens incrivelmente ricos e poderosos –sabem como untar as mãos certas.

– Sei que não é uma solução permanente – admite. –Mas não faz mal. Desde que possa ficar lá algum tempo e planear os meus próximos passos. Talvez possa arranjar um advogado que me ajude a lidar com o sistema enquanto estou escondida dele. Ou talvez possa encontrar alguém que me ajude a recomeçar. – Trémula, respira fundo. – O importante é que deixarei de estar com ele. E que não será capaz de me alcançar.

– Isso é fantástico, Wendy – digo. E digo-o a sério, apesar de estar prestes a perder um emprego muito lucrativo. É certo que guardei a pulseira que me impingiu no outro dia, e podia provavelmente pô-la no prego por um mês de renda. Além do mais, tenho um pressentimento que, depois da minha conversa com o Brock amanhã, talvez acabemos por ir viver juntos, afinal. (Ou por acabar para sempre. Ou uma ou outra.)

– Mas eis a questão – acrescenta Wendy. – Preciso da sua ajuda.

– Com certeza! Tudo o que precisar.

– É algo a modos que grande – diz. – Mas eu compenso-a.

– Seja o que for.

– Preciso de boleia. – Treme-lhe ligeiramente a mão ao puxar a gola. – O meu plano é partir amanhã, quando o Douglas sair da cidade. Estará do outro lado do país, por isso, mesmo que tenha alguma suspeita de que eu parti, não haverá nada que possa fazer a esse respeito... não de imediato, pelo menos.

– Certo...

– A Fiona diz que me pode ir buscar, se eu conseguir chegar a Albany – prossegue. – Não pode deixar a quinta o dia todo. Portanto, preciso de boleia até Albany. Podia alugar um carro, mas teria de lhes dar a minha identificação e...

– Eu faço-o – interrompo. – Alugo o carro. Levo-a a Albany. Sem problemas.

– Obrigada, Millie. – Aperta-me as mãos nas suas. – Prometo que lhe dou o dinheiro em numerário. Não sabe o quanto lhe agradeço por isto.

– Não se preocupe com o dinheiro – digo, apesar de estar muito preocupada com o dinheiro em geral. – Precisa mais dele do que eu.

Wendy rodeia-me com os braços e só então sinto quão

frágil é realmente o seu corpo. Podia esmagá-la, se a abraçasse com um pouco mais de força.

Ao afastar-se, tem lágrimas nos olhos.

– Tem de saber que, se me ajudar, estará a pôr-se em perigo.

– Compreendo isso.

– Não, não compreende. – Lambe os lábios ligeiramente gretados. – O Douglas é um homem extremamente perigoso e, digo-lhe, fará o que for preciso para me encontrar e trazer de volta, o que for preciso.

– Não tenho medo – respondo.

No fundo da minha mente, porém, há uma voz que me diz que talvez devesse ter medo. Que seria um erro grave subestimar Douglas Garrick.


26

Na manhã seguinte, alugo um carro.

Apesar de lhe ter dito que não era necessário, Wendy deu-me o valor em dinheiro do aluguer, ainda que eu vá utilizar o meu cartão de crédito para o fazer. Não quero o aluguer deste carro associado a ela seja de que maneira for.

Claro que há probabilidades razoáveis de Douglas Garrick vir a suspeitar que eu tive algo a ver com o desaparecimento da mulher. Mas nunca, jamais, a denunciarei. Nem que me torture, o que sinceramente não excluiria. Um homem capaz de fazer aquilo ao rosto da mulher é capaz de tudo.

– Olá, bem-vinda à Happy Car Rental – chilreia uma rapariga ao balcão, que não parece ter idade suficiente para alugar ela própria um carro. – Em que posso ajudar?

– Reservei um Ford Focus cinzento – digo-lhe. – Fiz a reserva online.

A rapariga introduz os meus dados no computador enquanto eu tamborilo com os dedos no balcão. Durante a espera, não posso deixar de sentir um formigueiro na nuca. Como se alguém me estivesse a observar. Outra vez.

Viro-me para trás. A montra da agência de aluguer de veículos é toda de janelas fixas, do chão ao teto, pelo que facilmente alguém poderia estar a olhar para o interior. Quase espero ver um homem de rosto colado ao vidro, a olhar-me fixamente. Mas não está lá ninguém.

Involuntariamente, estremeço. Segundo a Sra. Randall, Xavier Marin está na prisão. Sem fiança, disse-me – despejou-o. Por que tenho então, ainda, a sensação que alguém me observa? E não é a primeira vez. Já me senti assim pelo menos meia dúzia de vezes desde que Xavier foi preso.

A verdade é que não sei quem me tem andado a observar durante todo este tempo. E se for realmente Douglas Garrick quem me tem andado a seguir pela cidade? Não faz propriamente sentido, pois já sentia esses olhos atrás de mim antes de começar a trabalhar para ele. Mas não posso descartar a possibilidade. Foi ele que eu vi quando estava na esplanada daquele restaurante.

E se Douglas souber exatamente o que andamos a fazer? Se estiver lá fora, à espreitai

– Então, tenho o seu carro – diz a rapariga. – É o Hyundai vermelho.

– Não – respondo, impaciente. – Fiz uma reserva para um Ford Focus cinzento. – Manter o anonimato e não atrair atenções para nós é crucial. Aprendi isso com o Enzo.

– Não sei o que lhe dizer. Aqui diz Hyundai vermelho. Não temos nenhum Ford Focus cinzento no nosso inventário neste momento.

– É inacreditável. Fiz uma reserva e nem sequer têm o que eu reservei?

A rapariga encolhe os ombros, impotente. E nem é a primeira vez que isto me acontece. De que adianta fazer uma reserva se não cedem simplesmente o que reservámos?

– Não quero um carro vermelho – digo rigidamente. – E se for um Hyundai cinzento?

Abana a cabeça.

– Estamos com poucos ligeiros. Posso alugar-lhe um Honda CR-V cinzento.

Demoro um momento a ponderar se um SUV sobressairia mais do que um ligeiro vermelho. Finalmente, aceito o Hyundai vermelho. Para dizer a verdade, só quero sair daqui. O objetivo desta viagem é tirar Wendy da cidade, mas não creio que fosse assim tão mau sair eu também.


27

Será uma viagem de sensivelmente cinco horas até ao nosso destino, considerando o trânsito. Ou, pelo menos, é isso que o meu GPS diz.

O nosso plano é procurar um motel barato à beira da estrada quando chegarmos perto de Albany. Deixarei lá a Wendy para passar a noite e a Fiona irá buscá-la na manhã seguinte. Trará roupa que chegue para um par de semanas e dinheiro suficiente para durar vários meses. Douglas jamais a encontrará.

Estaciono o meu dolorosamente conspícuo Hyundai vermelho a um quarteirão do prédio, para que o porteiro que me está sempre a piscar o olho não avise Douglas que viu a mulher dele entrar num veículo com a empregada doméstica. O carro é tão ridiculamente vermelho que é como se estivesse a conduzir um maldito carro dos bombeiros. Mas não há nada que eu possa fazer em relação a isso agora.

Enquanto espero no carro que a Wendy se materialize, uma mensagem de texto de Douglas chega ao meu telemóvel:

Passa lá por casa esta noite?

Douglas pediu-me para limpar o apartamento na sua ausência. Aceitei fazê-lo, por isso não me admira que continue a monitorizar e confirmar o meu horário das limpezas, mesmo estando fora da cidade. Faz-me sentir um pouco inquieta, tendo em conta que vai regressar a casa para descobrir que a mulher desapareceu. Mas, no interesse de tentar fingir que as coisas estão o mais normais possível, respondo-lhe:

Lá estarei.

É claro que não estarei. Estarei a transportar a mulher dele para um lugar seguro.

Apesar da minha irritação com a confusão na agência de aluguer de veículos e da longa viagem que tenho pela frente, tenho de sorrir para comigo. Wendy vai finalmente deixar Douglas. Era isto que eu costumava achar tão gratificante. E foi por isto que decidi formar-me em serviço social. O que eu quero é passar a minha vida a ajudar pessoas assim.

Pelo retrovisor, vejo a Wendy descer a rua com duas malas de viagem. Tem o cabelo apanhado atrás num simples rabo de cavalo, traz uns óculos escuros empoleirados no nariz e veste uma confortável camisola com capuz e umas calças de ganga azuis.

Saio do carro para a ajudar a guardar as malas na bagageira. Está absolutamente radiante.

– Tinha-me esquecido de como as calças de ganga são confortáveis – comenta.

– Não usa calças de ganga?

– O Douglas odeia. – Torce o nariz. – Por isso é que não levo mais nada a não ser calças de ganga!

Rio-me enquanto ponho as suas malas na bagageira. Entramos no carro, ligo o GPS e fazemo-nos à estrada. Há já um par de anos que não me sentava a um volante, e sabe bem voltar a conduzir. Claro que conduzir na cidade é super stressante, mas em breve entrarei na autoestrada e aí a viagem será tranquila – pelo menos até chegarmos ao trânsito da hora de ponta.

– O Douglas não desconfiou de nada, então? – pergunto eu à Wendy.

Ela empurra os óculos de sol para a ponte do seu nariz de botão.

– Acho que não. Entrou para se despedir antes de partir e eu fingi que estava a dormir na cama. – Olha para o relógio. – E, neste momento, está provavelmente a apanhar um avião para Los Angeles.

– Ótimo.

Ela ergue os óculos de sol para me fitar.

– Não falou a ninguém de nada disto, pois não?

– De modo algum. Nem a uma alma.

Ela parece ficar aliviada.

– Mal posso esperar para sair daqui. Quase não consegui dormir esta noite.

– Não se preocupe. Sou uma condutora super-rápida. Quando der por isso, já estaremos no motel.

No momento em que digo isto, travo bruscamente num sinal vermelho, evitando por pouco um peão, que me mostra graciosamente o dedo do meio. Pronto, está bem, temos de chegar depressa, mas, acima de tudo, temos de chegar inteiras.

Enquanto espero que o semáforo mude, lanço um olhar ao retrovisor e não posso deixar de reparar num carro atrás de mim. É um veículo familiar preto.

E tem o farol dianteiro do lado direito rachado.

Ou será o esquerdo? Estico o pescoço para olhar para trás, pois confundo sempre a esquerda e a direita no espelho. Não, é definitivamente o farol dianteiro do lado direito que está rachado.

Estico ainda mais o pescoço para ver a grelha da frente, que tem um pequeno círculo que é o logótipo da Mazda. Sinto um aperto no coração. É um Mazda preto com o farol dianteiro do lado direito rachado. O mesmo carro que tenho visto múltiplas vezes nos últimos meses.

Tento captar um vislumbre da matrícula, mas, antes que consiga ver seja o que for com clareza, ouve-se uma explosão de buzinas atrás de mim. Tenho de me pôr de novo em movimento antes que alguém saque de uma arma e me dê um tiro.

– Sente-se bem? – A Wendy tem a testa franzida sobre os seus óculos de sol. – O que se passa?

Pergunto-me quanto lhe devo dizer. Não há maneira de eu conseguir ver bem aquela matrícula enquanto conduzo, mas, ao mesmo tempo, ela já está extremamente nervosa. Não quero assustá-la e dizer-lhe que acho que pode estar alguém a seguir-me.

Especialmente se esse alguém for o seu marido.

Não tem de ser o Douglas. Apesar do que a Sra. Randall disse, é perfeitamente possível que o Xavier Marin tenha saído da prisão. E agora esteja a atormentar-me.

Mas isso não faz muito sentido. Esteja ou não na prisão, o Xavier tem agora certamente os seus próprios problemas. Não andará a perder o seu tempo a seguir-me até Manhattan, e muito menos até Albany.

Enquanto me dirijo à autoestrada, tento conduzir de forma criativa. Sempre que mudo de faixa, mantenho o Mazda na minha linha de visão, tentando ver se muda de faixa comigo. Nem sempre o faz, mas sempre que olho pelos retrovisores, vejo-o atrás de mim. E, a dada altura, consigo vislumbrar os três primeiros caracteres da matrícula: 58F.

Os mesmos do carro que me tem andado a seguir.

– Millie! – arqueja a Wendy, quando quase embato num SUV verde. – Abrande, por favor! Não quero ter um acidente.

– Desculpe – murmuro. – É que já há algum tempo que não agarrava num volante.

Chegamos finalmente à FDR Drive, e eu vou com um olho no retrovisor. Aquele Mazda preto veio atrás de mim o tempo todo. E será muito mais fácil ao carro continuar a seguir-me quando eu estiver na autoestrada. Ainda não chegámos ao trânsito da hora de ponta, pelo que as faixas devem estar bem abertas.

Mas isso também significa que posso ir o mais rápido que quiser e evitá-lo.

Ao entrar na FDR, ponho o pé no acelerador, preparando-me para meter prego a fundo. Vejamos se aquele velho e desconjuntado Mazda chega aos cento e trinta. Mas, então, Olho para o retrovisor.

O Mazda desapareceu. Não virou para a autoestrada comigo.

Solto uma exalação, simultaneamente aliviada e confusa. Tinha a certeza de que o carro me estava a seguir. Teria apostado a minha vida nisso. Mas, afinal, foi tudo apenas uma coincidência. Não há ninguém a seguir-me.

Vai correr tudo bem.

28

Vamos parar no McDonald – sugere a Wendy.

Está obscenamente entusiasmada com a ideia de provar comida rápida. Cerca de metade da minha dieta consiste em comida rápida, pelo que não estou nem de longe tão excitada. Mas o Douglas é rigoroso quanto ao que a Wendy pode ou não comer, embora eu receie que, estando ela tão magra e privada de produtos gordos, se comer uma só batata frita do McDonald, isso a possa matar.

Felizmente, surge um sinal à beira da autoestrada com o logótipo do McDonald’s bem destacado. Assim, viro na saída seguinte. Em todo o caso, estava a precisar de pôr gasolina.

Entro no parque do estacionamento do McDonald’s e os olhos da Wendy iluminam-se. Quando abre a porta, o cheiro a comida a fritar invade-me as narinas. Estou prestes a segui-la para o exterior do carro quando o meu telemóvel toca. Agarro-o e o meu coração cai-me aos pés ao ver o nome do Brock.

Oh, não – estava tão absorta em salvar a Wendy que me esqueci por completo de cancelar o nosso jantar. Como fui capaz de lhe fazer isso outra vez? Sou tão louca pelo Brock. Por que insisto em sabotar a nossa relação?

Às vezes, pergunto-me se estou a fazer de propósito. Para que me deixe agora, antes de eu ter de lhe contar a verdade e me deixar por uma razão que provocará muito mais dor.

– Vá andando – crocito. – Encontro-me consigo lá dentro. Esta não vai ser uma conversa rápida. Ou, talvez, seja muito rápida.

Mal a Wendy sai do carro, atendo a chamada. Como seria de esperar, o Brock parece à beira da fúria.

– Onde estás? Pensava que vinhas cá às sete.

– Hã – digo. – Tive uma mudança de planos.

– Tudo bem. A que hora chegas, então?

Oxalá pudesse dizer que estou mesmo ao virar da esquina, mas a realidade é que estou a horas de distância. E não há uma forma fácil de lho dizer.

– Acho que não vou poder ir esta noite.

– Porque não?

Mais do que tudo, gostaria de lhe poder dizer. Seria um alívio partilhar isto com alguém, mas a Wendy fez-me jurar segredo por uma boa razão.

– Tenho trabalho para fazer. Estudar.

– Estás a falar a sério? – O Brock passou de à beira da fúria para absolutamente encolerizado. – Millie, tínhamos planos para esta noite. E não só não apareceste sem me avisar como agora dás uma desculpa da treta sobre estudar?

Não sei por que não é uma desculpa válida. Podia precisar de estudar esta noite!

– Escuta, Brock...

– Não, escuta tu – rosna. – Tenho sido paciente, mas a minha paciência está a esgotar-se. Preciso de saber o que sentes por mim e aonde vai esta relação. Porque eu estou pronto para algo mais e gostaria de saber que não ando a perder o meu tempo.

O Brock está tão pronto para assentar. Sei que isso se deve em parte ao seu coração fraco, e talvez outra parte seja apenas aquela ânsia indescritível por algo mais que tantas pessoas desenvolvem aos trinta. Não está a brincar. Tenho de o levar a sério ou então de o deixar ir. É o mais correto a fazer.

– Não estás a perder o teu tempo – murmuro para o telemóvel. – Prometo. As coisas estão apenas um pouco

loucas para mim, mas juro que gosto realmente de ti.

– Gostas? Às vezes não tenho a certeza de que isso seja verdade.

Sei o que procura. E sei que tenho duas opções. Ou lhe digo o que quer ouvir ou então tenho de acabar com tudo.

E eu não quero acabar. Embora não sinta o que estou prestes a dizer, o Brock é um homem realmente bom. A vida que imaginei com ele é o que sempre desejei. E não o quero perder.

– Gosto realmente de ti – respiro fundo. – Eu... eu amo-te.

Quase consigo ouvir a combatividade a esvair-se do meu namorado.

– Eu também te amo, Millie. A sério que sim.

– E precisamos realmente de ter uma conversa. – Tenho de lhe contar tudo sobre mim. E em breve. Não aguento ficar à espera do inevitável. Tenho de lhe explicar tudo e de me assegurar de que continua a querer estar comigo. – Assim que as coisas acalmarem, está bem? Na próxima semana.

– Está bem – concorda o Brock, porque tenho basicamente a certeza de que aceitaria o que quer que fosse neste momento. – E, se acabares o teu estudo, talvez possamos jantar amanhã? E passar a noite em minha casa.

Passamos sempre a noite em sua casa. Nem sei porque se deu ao trabalho de deixar uma muda de roupa e um frasco dos seus comprimidos na minha. Mas devo admitir que o seu apartamento é mais agradável e muito mais conveniente.

– Claro.

– Amo-te, Millie.

Oh! Pelos vistos, agora vamos acabar todas as nossas conversas desta forma.

– Eu também te amo.

Desligo a chamada, ainda sem me sentir lá muito bem com a conversa. Ainda tenho o meu namorado, mas por quanto tempo? Diz que me ama, mas às vezes sinto que mal sabe quem eu sou.

Mas talvez vá ficar tudo bem. Talvez descubra a verdade sobre mim e continue a amar-me. E ainda possamos estar juntos, comprar aquela casa nos subúrbios e enchê-la de filhos. Podemos ter uma vida normal e perfeita.

Só que tenho fortes suspeitas de que isso jamais poderá acontecer comigo. Nunca fui normal ou perfeita, e só houve um homem na minha vida que compreendeu isso.


29

Nas melhores circunstâncias, a viagem teria demorado entre três e quatro horas. Com o trânsito, demora quase cinco horas na estrada, com outros trinta minutos somados para quando parámos naquele McDonald’s – valeu a pena para ver a Wendy devorar um hambúrguer de cem gramas e umas batatas fritas médias. Agora, ainda tenho de fazer a viagem de regresso, embora já passe das nove, pelo que as estradas devem ao menos estar livres. De certeza que consigo chegar em menos de três horas.

Ao aproximarmo-nos de Albany, saio da autoestrada numa área de serviço que anuncia um motel. Acontece ser exatamente o que procurávamos – um local de aspeto barato com uma luz tremeluzente a anunciar vagas. Os quartos abrem para o exterior, pelo que a Wendy não terá de atravessar um átrio para lhes chegar. Entro no parque de estacionamento pouco ocupado.

– Bem – digo –, chegámos.

– Sim... – A Wendy e eu não falámos muito durante a viagem, feita sobretudo a ouvir música, e agora o pânico cresce-lhe nos olhos. – Millie, talvez isto seja um erro.

– Não é um erro. Está decididamente a agir da forma certa.

– Ele é mais inteligente do que eu – diz, apertando as mãos. – O Douglas é um génio e tem uma fortuna à sua disposição. Vai encontrar-me. Vai verificar cada motel, e o tipo da receção dir-lhe-á provavelmente tudo sobre mim.

– Não dirá, não – respondo com firmeza. – Porque sou eu que vou reservar o quarto para si, lembra-se? Ninguém a vai ver.

A Wendy parece ainda estar quase à beira de um ataque de pânico, mas respira fundo algumas vezes e acaba por concordar.

– Está bem, talvez tenha razão.

Entrega-me algum dinheiro da sua bolsa e eu saio do carro para ir à receção do motel. O homem ao balcão ronda os vinte e poucos anos, com uma barba cerrada e um telemóvel na mão direita, e não podia parecer menos entusiasmado por estar a fazer o turno da noite.

– Olá – digo. – Gostaria de reservar um quarto, por favor.

Não ergue o olhar do seu telemóvel.

– Identificação com fotografia, por favor.

Estava preparada para esta exigência, razão pela qual não deixei a Wendy fazer a sua própria reserva. Mas sinto-me segura, ainda assim, ao entregar a minha carta de condução. Não será introduzida no sistema – provavelmente apenas no disco rígido deste computador. Não que o Douglas vá necessariamente procurar por mim, mas nunca se sabe. Se é tão esperto como a Wendy pensa, pode juntar as peças.

E, se assim for, posso correr grave perigo.

Felizmente, o homem aceita o dinheiro sem discutir e não pede o meu cartão de crédito. Teria de lho entregar, se tivesse sido necessário, mas parece que podemos fazer isto sem deixar um rasto eletrónico.

– Quarto 207 – diz, tirando uma chave do suporte atrás de si. É superantiquado. – Fica nas traseiras.

– Ótimo – digo.

Pisca-me o olho.

– Sabia que era o que queria.

Gemo interiormente. É claro que sabia que não havia hipóteses de o tipo não se ir lembrar de mim – uma mulher solteira a pedir um quarto a altas horas da noite – mas, com sorte, não lhe dará grande importância. Talvez pense que vou vender-me por lá. É esse o objetivo.

Regresso ao carro com a chave do quarto do motel. A Wendy desce do lugar do passageiro, tendo mudado a posição do boné de beisebol que enverga de modo a pender-lhe sobre a testa. Imagino que, em algum momento do futuro próximo, irá provavelmente cortar e pintar o cabelo, talvez usando uma tesoura de cozinha e tinta barata da drogaria. Mas, por agora, o boné servirá.

– Muito obrigada por isto – diz a Wendy, lacrimosa. –Salvou-me a vida, Millie.

– Era o mínimo que podia fazer.

Ela lança-me um olhar.

-Julgo que ambas sabemos que isso não é verdade.

Ajudo-a a tirar as malas da bagageira e, por um momento, ficamos simplesmente ali, no parque de estacionamento deserto, a olhar uma para a outra. Não sei se alguma vez voltarei a ver a Wendy. Espero que não, porque, se tal acontecer, significará que esta missão falhou.

– Obrigada – diz uma vez mais. E, antes que eu perceba completamente o que está a acontecer, já ela me abraçou. Mais uma vez, assombra-me quão frágil o seu corpo parece ser. Espero que coma muitas vezes no McDonald’s nos próximos anos.

– Boa sorte – digo-lhe.

– Tenha cuidado – responde-me numa voz rouca. – Por favor, tenha cuidado. O Douglas virá à minha procura e não vai deixar pedra por revolver.

– Posso lidar com ele. Prometo.

A Wendy não parece propriamente acreditar em mim, mas tira as suas malas da bagageira. Vejo-a dirigir-se ao quarto 207, que fica nas traseiras do motel. Fico a observá-la até desaparecer de vista. Depois, volto para o carro e regresso a casa.


30

É quase meia-noite quando regresso à cidade.

Em forte contraste com o trânsito cerrado de quando parti, as ruas estão desertas e, mesmo quando demoro a passar um sinal verde, ninguém buzina. Não está ninguém na rua à meia-noite de uma quarta-feira.

A Happy Car Rental cobrar-me-á um dia extra se eu devolver o carro depois da meia-noite, por isso tenho de chegar ao local da agência a horas. Quando entro no parque de estacionamento, ainda faltam cinco minutos para a meia-noite. É melhor que não me arranjem problemas.

Ao balcão da agência de aluguer de veículos está um rapaz que parece tão alerta e entusiástico como o rapaz do motel há três horas. Largo as chaves do Hyundai no balcão e empurro-as na direção dele.

– Ainda não é meia-noite – informo-o. – Por isso é só um dia.

Preparo-me para uma discussão, mas o rapaz limita-se a encolher os ombros e a aceitar as chaves.

– Está bem – responde.

Deixo escapar um bocejo. Passei quase oito horas seguidas a conduzir e apercebo-me de como estou cansada. Mal posso esperar por me enfiar na minha cama. Felizmente, não tenho aulas amanhã, por isso posso dormir até tarde. E, como é óbvio, o meu trabalho como empregada de limpeza já não existe.

Só que, mal volto a sair para as ruas, questiono a sabedoria de devolver o carro à meia-noite. Agora, tenho de voltar ao sul do Bronx e não tenho carro. Apesar de me sentir confiante em como me posso proteger, não estou muito certa, ainda assim, de que o metro seja boa ideia a esta hora. Talvez ao fim de semana; numa quarta-feira à noite, porém, seremos só eu e os assaltantes e violadores.

Mas não posso pagar um uber neste momento. Já nem sequer tenho emprego.

Enquanto paro na esquina ao fundo do quarteirão da Happy Car Rental, a ponderar as minhas opções, um par de faróis ilumina a rua. Viro a cabeça, mesmo a tempo de ver um carro a aproximar-se. Um ligeiro preto com o logótipo da Mazda na grelha da frente.

E o farol do lado direito rachado.

Antes mesmo de conseguir ver bem a matrícula, já sei que é o mesmo carro que me tem andado a seguir nos últimos meses. O mesmo que ia atrás de mim esta tarde quando estava a conduzir com a Wendy. E agora apanhou-me sozinha. Numa esquina deserta. A meio da noite.

O Mazda encosta à berma da estrada. Consigo apenas distinguir a vaga silhueta de um homem no lugar do condutor. O motor desliga-se, mas deixa os faróis a brilhar na minha direção, suficientemente intensos para eu ter de me virar.

E, então, a porta do veículo abre-se.


31

Não vou cair sem dar luta.

Freneticamente, vasculho a minha bolsa à procura da minha lata de gás-pimenta. Ainda me resta algum, depois de ter atingido o Xavier naquela primeira vez. Se for o Douglas, não deixarei que me arranque qualquer informação. E, se for o Xavier, já o venci uma vez e posso voltar a fazê-lo. Não tenho medo.

Ainda que o meu coração esteja a palpitar com bastante violência enquanto o homem sai do carro.

Os meus dedos estabelecem contacto com a lata de gás-pimenta. Tiro-a, de dedo no bocal.

– Não se aproxime! – silvo à sombra escura.

Lentamente, a sombra ergue as mãos no ar. Oiço uma voz familiar.

– Não dispares, Millie.

Levo uma fração de segundo a reconhecer a voz. De repente, invade-me uma sensação de calor e o meu rosto abre-se involuntariamente num sorriso. Baixo a lata de gás-pimenta e atiro-me ao homem ainda de mãos no ar.

– Enzo! – exclamo, envolvendo-o nos meus braços. –Oh, meu Deus!

Ele retribui o abraço e, por um momento, não sinto mais nada a não ser pura alegria, envolta nos braços confortantes do meu ex-namorado. Costumava sentir-me sempre tão segura quando me abraçava assim, e não sabia se alguma vez voltaria a estar nos seus braços. E agora aqui está ele. Os seus ombros largos, o denso cabelo preto, o seu olhar penetrante. E a minha característica preferida nele – o sorriso, que me faz sentir como se achasse que sou a pessoa mais incrível que alguma vez conheceu.

– Millie – sussurra aos meus cabelos. – Estou tão feliz por estar de volta.

– Quando regressaste?

Hesita fugazmente.

– Há pouco mais de três meses.

Se houvesse um disco a tocar uma bela música de reencontro, este é o momento em que o disco teria parado abruptamente. Afasto-me do Enzo, de queixo caído.

-Três meses?

A expressão acanhada diz-me tudo o que precisava de saber – e, infelizmente, tudo faz terrível e perfeito sentido. Nos últimos meses, tenho tido a sensação de que havia alguém a seguir-me – a observar-me. Pus as culpas no Xavier ou no Douglas, mas nenhum tinha nada a ver com isso. Foi o Enzo o tempo todo. É o Enzo o proprietário do Mazda preto com o farol direito rachado. Fiquei tão entusiasmada por o ver que estava a ignorar o que tinha mesmo à frente dos olhos.

– Andavas a perseguir-me! – Dou-lhe uma palmada no braço. – És inacreditável! Por que haverias de fazer isso?

– Perseguir não – diz, cerrando os maxilares. Céus, tinha-me esquecido de como é atraente. É uma distração, e não me posso deixar distrair, pois estou legitimamente furiosa com este homem. – Perseguir não... sou guarda-costas.

– Guarda-costas? – Cruza os braços sobre o peito. – É uma desculpa bastante fraca. Por que não vieste simplesmente ter comigo e dizer olá em vez de me andares a seguir por aí durante três meses?

– Porque... – Baixa os seus olhos muito negros. – Pensei que estavas zangada comigo por não ter voltado quando querias.

– Certo. E estava zangada. Perguntei-te quando regressavas e nem sequer foste capaz de me dar uma resposta.

– Mas, Millie, não podia. A minha mãe... estava tão doente e eu era tudo o que ela tinha. Como podia deixá-la?

– Deixaste-a agora – saliento.

– Sim – concorda, franzindo o sobrolho. – Isso é porque morreu.

Bem, agora sinto-me uma verdadeira idiota.

– Lamento muito, Enzo.

Por um momento, fica calado.

– Sim.

– Teria... – Engulo o pequeno nó que se formou na minha garganta. – Se me tivesses dito, podia ter estado lá para ti. Mas tu simplesmente... descartaste-me. Sabes disso.

– Não podia voltar – diz, cerrando os dentes. – Foi só isso que te disse. Nunca disse que já não te amava. – Lança-me um olhar. – Foste tu quem quis acabar com o que tínhamos. Tu é que começaste a namorar com esse tal Brócolo.

Reviro os olhos.

– O nome dele é Brock.

– Estou só a dizer que foste tu quem quis seguir em frente. Não eu. Eu ainda... Eu nunca deixei de sentir amor por ti.

Resfolego.

– Sim, pois. Esperas que acredite que não estiveste com nenhuma outra mulher depois de mim.

– Não. Nenhuma outra mulher.

Os seus olhos encontram os meus – está a falar a sério. Algo que o Enzo não faz é mentir. Não a mim, pelo menos. Por outro lado, posso estar enganada. Também não o tomava por um perseguidor.

– Não devias ter começado a seguir-me daquela maneira – digo com severidade. – Foi sinistro. Devias ter-me dito que estavas de volta.

– Para me poderes mandar passear? – As suas sobrancelhas negras arqueiam-se. – Enfim, como disse, sou guarda-costas. Precisas de um guarda-costas.

– Não preciso nada. Sei tomar conta de mim mesma.

Agora é a vez do Enzo resfolegar.

– Oh, a sério Vives naquele bairro terrível do sul do Bronx. Achas que não precisas que vele por ti? Pois deixa-me jurar-te que houve pelo menos um dia em que não terias chegado da estação de comboios ao teu prédio, se eu não tivesse estado atrás de ti, a fazer de guarda-costas.

Todos os pelos na parte de trás do meu pescoço se eriçam. Estará a dizer a verdade? Haveria perigos à espreita nas sombras atrás de mim que derrotou antes que eu sequer percebesse?

– Como disseste, tenho namorado – digo baixinho. – E, se eu precisar, pode proteger-me, muito obrigada.

– Como te protegeu do Xavier Marin?

Ouvir o nome desse homem dos lábios do Enzo é como um murro no rosto.

– O que queres dizer com isso?

Mesmo no escuro, posso ver as mãos do Enzo cerrar-se em punhos.

– Aquele homem... atacou-te. Não pude fazer nada para o impedir porque foi no teu próprio prédio. E depois deixa-

ramno simplesmente livre. E esse teu Brócolo...

Sinto o rosto a arder.

– Brock.

– Desculpa. Brock. – A sua voz está eivada de fúria. – Não fez nada. Nada. Não se importa que o homem que lhe atacou a namorada continue por aí. Sem castigo! Saiu impune! Mas eu... eu importo-me. – Bate com um punho no peito. – Por isso assegurei que tem o que merece, de que nunca mais te volta a incomodar.

Subitamente, sinto a cabeça à roda. Lembro-me do Xavier a ser levado do meu prédio algemado, a gritar que as drogas encontradas não lhe pertenciam. A Sra. Randall disse que todos tinham ficado surpreendidos ao saber que andava a traficar droga.

– Foste tu que...

Encolhe um ombro.

– Conheço um tipo.

É devido ao Enzo que o Xavier está na prisão. Se não fosse por ele, aquele homem ainda andaria nas ruas. O Enzo tem razão – o Brock não fez nada.

Subitamente, já não sei o que pensar.

– Anda – diz, acenando com uma mão na direção do seu Mazda. – Dou-te boleia para casa. Tu, pensa se me odeias ou não.

É justo.

Subo para o carro ao lado do Enzo, que se senta no lugar do condutor. Tem o seu cheiro. Aquele cheiro amadeirado que sempre o acompanha. Fecho os olhos, perdida no passado. Por que teve de partir? Agora as coisas são tão complicadas. Fez demasiadas coisas erradas. Não posso simplesmente perdoar-lhe.

Pois não?

– Então – diz, ao começarmos a dirigir-nos à zona alta da cidade. – Para onde ias hoje com tanta pressa?

Puxo um fio solto das minhas calças de ganga.

– Como se não soubesses.

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