Embora tenha um incrivelmente agradável sistema de hidromassagem na banheira extra grande. É como estar num jacúzi.
Durante a viagem, mantivemo-nos de olho no retrovisor para garantir que não havia jornalistas a seguir-nos. O último troço do trajeto estava bastante deserto, pelo que, se houvesse alguém no nosso encalço, facilmente teria sido visto. O Russell disse à Marybeth que ia numa viagem de negócios. Prospeção de móveis ou assim. A mim, não interessa o que lhe disse. Ela já não tem importância.
– Estou tão feliz – murmuro. – Acho que já não me sentia tão feliz há muito tempo.
O Russell sorri, embora haja algo tenso na sua expressão. Não fez segredo de que não queria matar o Douglas.
Ainda não posso acreditar que me obrigou a fazer o trabalho sujo enquanto se encolhia de medo na cozinha. Tem sorte em ser atraente, pois perdi muito do respeito que lhe tinha nessa noite. Devia estar agradecido, não a olhar para mim como se eu fosse alguma espécie de monstro, por amor de Deus.
Bem, se não estiver feliz, pode voltar para a megera da sua mulher e eu arranjarei alguém novo com quem gozar os meus milhões de dólares.
Verto o resto do champanhe no copo do Russell.
– É delicioso – observo. – Onde o arranjaste?
– A Marybeth gosta. – Ultimamente, parece ter começado a falar da mulher com mais frequência e menos ressentimento do que antes. Não é bom sinal.
– Tens mais? – pergunto.
– Acho que não há mais champanhe. Mas talvez haja algum vinho na cozinha.
Irrita-me que o Russell não se ofereça para o ir buscar. Os homens são todos iguais – no início, fazem todos os esforços para nos dar tudo o que queremos, mas depois acabam por nos tomar por garantidas. Que tipo de cavalheiro não se oferece para ir buscar uma garrafa de vinho a uma mulher?
Mas apetece-me, e o champanhe que temos estado a beber só estava meio cheio para começar, por isso agarro numa toalha para enrolar em torno do meu corpo nu e saio da casa de banho para a sala de estar, deixando um rasto de pegadas húmidas na madeira do soalho. A chuva cai pesadamente no alpendre, gotejando do telhado. O que é bom, na eventualidade de alguém nos ter tentado seguir. Não haverá marcas de pneus para rastrear.
Entro na cozinha e, com efeito, está uma garrafa em cima da bancada. É pinot noir, está três quartos cheia e parece um pouco barata, mas é melhor do que nada. Agarro-a e começo a dirigir-me de novo à casa de banho, mas então paro bruscamente.
Uma das janelas da cabana está escancarada.
67
Estaria aquela janela aberta quando cá chegámos? Não me lembro de estar aberta. Por outro lado, estávamos mais concentrados em celebrar o detetive Ramirez me ter dito que planeava prender a Millie Calloway. Saímos impunes – saímos realmente impunes.
Estava aberta, então, quando entrámos? Não me consigo realmente lembrar. Podia certamente ter estado.
E a janela chama bastante mais a atenção agora que está a chover. Jorram gotas para o interior, humedecendo a madeira em volta. Aquela janela devia estar fechada.
Pouso a garrafa de vinho na mesa de apoio junto ao sofá e dirijo-me à janela. As gotas de chuva são gélidas, atingindo-me no rosto e salpicando os meus braços nus. Após uma breve luta, consigo fechar as vidraças.
Pronto.
Agarro no vinho e levo-o para a casa de banho, onde o Russell continua na banheira, o cabelo escuro colado ao crânio. Inicialmente, julgo que tem o rosto molhado da água da banheira, mas então percebo o que se passa.
– Estás a chorar? – atiro-lhe.
O Russell limpa os olhos, constrangido.
– Eu só... não posso crer que o matámos. Nunca tinha feito nada assim.
Não compreendo por que está o Russell a chorar. Fui eu quem matou o Douglas. E não o lamento minimamente. No que me diz respeito, o Douglas merecia tudo o que teve.
– Recompõe-te – atiro-lhe. – O que está feito, feito está.
Seja como for, era uma pessoa terrível. Andava a atormentar-me.
– Porque o traíste.
E isso basta para me deixar na miséria? Ainda que o Russell não saiba que menti ao Douglas sobre não poder ter filhos. É melhor não lhe dizer. Fá-lo-á sentir-se ainda pior.
– Olha... – Abro a toalha e deixo-a cair no chão. Em seguida, encho-lhe o copo com o líquido bordeaux, fazendo o mesmo com o meu. – Por que não me deixas ajudar-te a esquecer isso?
Enquanto subo de novo para a banheira, mergulhando no líquido quente, o Russell engole o conteúdo do copo de vinho, deixando para trás uma mancha vermelha nos seus lábios. Decido que é a ideia certa e esvazio o meu próprio copo de vinho. É do barato, por isso não é como se precisasse de o saborear. Ao fim de mais um copo ou dois, sentir-nos-emos ambos muito melhor.
68
Tinha toda a razão.
Ao fim de dois copos de vinho, o Russell já não está a chorar. E eu sinto uma agradável euforia. Há muito tempo que as coisas não corriam exatamente como eu queria. Depois dos últimos seis meses, precisava de uma vitória, e a de hoje foi das grandes. O Douglas está morto, vou receber uma herança enorme, e a Millie vai arcar por completo com as culpas de tudo. Serviu bastante bem o seu propósito.
– Podia ficar nesta banheira para sempre – suspiro ao reclinar-me, a minha pele nua a roçar contra a do Russell. – É agradável, não é?
– Ahã – responde. – Mas estou meio sonolento. Talvez esteja um pouco ébrio.
Eu não estou ébria, mas sinto-me decididamente um pouco alegre. É agradável. Está tudo tão tranquilo na banheira, exceto por uma música qualquer a tocar ao longe.
– Wendy – diz o Russell. – Não é o teu telemóvel?
Tem razão.
Deve ser o Joe Bendeck. Pedi-lhe para me ligar acerca do substancial património do Douglas. Tiro um certo prazer de o Joe nunca ter gostado de mim e agora eu ser a proprietária de todo o património do Douglas, incluindo a sua empresa, pelo que sou basicamente a sua chefe. Não tem alternativa a não ser bajular-me. Vou gostar de ser uma cabra rica.
Desta vez, agarro num roupão, que aperto sobre o meu
corpo nu antes de sair apressadamente para a sala de estar, onde deixei o meu telemóvel sobre a mesa de café. Com efeito, aparece no ecrã o nome de Joseph Ben-deck. Apanho-o mesmo antes de a chamada ir para o correio de voz.
– Olá, Joe – digo.
– Olá, Wendy.
Tiro prazer de quão absolutamente miserável soa. Sabe bem vencer.
– Era suposto ligar-me esta tarde – recordo-lhe. – São quase dez horas.
– Desculpe. – Há um fio de amargura na sua voz. – O meu melhor amigo acaba de ser assassinado. Não estou propriamente a funcionar a cem por cento neste momento.
– Bem, isso é um problema – digo com rigidez, deambulando até à cozinha. Olho pela janela. Está realmente a chover a cântaros. – É o executor do património do Douglas e, se não consegue fazer o seu trabalho, talvez devesse dar o seu lugar a outro.
– Não. O Doug queria-me a mim. É... O mínimo que posso fazer é seguir os seus desejos.
– Tudo bem. – Se tentar algum truque, certificar-me-ei de que é afastado da empresa. Na verdade, devia provavelmente afastá-lo de qualquer modo. Não confio mais nele do que confiava no Douglas no fim. – Quando vão os bens dele ser transferidos para mim? Preciso de poder pagar as contas.
A morte do Douglas não significa que a hipoteca não precisa de ser paga. Nem sequer tenho um cartão de crédito ativo, pois cancelou-os a todos. Só a penthome tem uma hipoteca de seis dígitos, por isso vou precisar de algum dinheiro – e depressa.
– Quer que o dinheiro do Doug seja transferido para si? – pergunta o Joe.
– Sim. – Tamborilo os dedos na bancada da cozinha. – É assim que funciona, não é?
– Não propriamente... – Por um momento, o Joe fica em silêncio. – Wendy, está ciente que o Doug mudou o seu testamento no mês passado?
0 que?
– Não. Está a falar de quê?
– Mudou o testamento. Deixou tudo à caridade.
Invade-me uma vaga de tonturas. Poucos meses após o nosso casamento, o Douglas mandou redigir um testamento em que me deixava tudo. Fui com ele ao advogado para me assegurar de que o fazia, sobretudo porque o Douglas era um mestre da procrastinação. Nem me passou pela cabeça que pudesse ter mudado o testamento no curto período desde que nos separámos. Não teria feito isso.
A menos que...
– Está a mentir – cuspo para o telefone. – Está a inventar isto só para me impedir de receber qualquer parte do seu dinheiro.
– Seria tentador. Mas não, não estou a inventar. Tenho uma cópia autenticada do testamento mesmo à minha frente.
– Mas... – gaguejo. – Mas como pôde fazer isso?
– Bem, quando o Doug me explicou, referiu qualquer coisa sobre a Wendy ser uma cabra mentirosa e manipuladora, e que não queria que ficasse com dinheiro algum.
O meu coração parece saltar-me no peito e, por um momento, a minha visão fica turva. Como pode isto estar a acontecer? O Douglas falou em dar todo o seu dinheiro à caridade, mas nunca imaginei que já tivesse iniciado o processo.
– Isto é um ultraje – vocifero. – Não pode cortar-me do testamento! Sou a mulher dele, por amor de Deus! Vou contestar isto e, acredite, vou vencer.
– Tudo bem. Como queira, Wendy. Mas, entretanto, vou precisar que desocupe tanto a penthome como a casa na ilha, pois vamos vendê-los.
– Vá para o Inferno – silvo para o telefone.
Carrego no botão vermelho do meu telemóvel para desligar a chamada, mas tenho as mãos a tremer. Tenho de acreditar que o Douglas não pôde simplesmente assinar um papel a dizer que me vai deixar sem nada e já está. Posso combater isto. E, com o Douglas morto, não pode ripostar. De uma maneira ou de outra, vou receber a minha parte.
Ainda que não vá ter propriamente o património que imaginava. Mas não faz mal.
Enquanto olho fixamente para o meu telemóvel, tentando decidir o meu próximo passo, o aparelho começa de novo a tocar na minha mão. Inspiro fundo ao ver a identidade de quem me liga:
A Polícia de Nova Iorque.
69
Deve ser o detetive Ramirez. Ligou-me há horas, quando ainda estava na cidade, para me informar que iam prender a Millie. Espero que este seja um telefonema de seguimento para me comunicar que ela está devidamente atrás das grades. Com sorte, esta chamada não será tão perturbadora como a anterior.
– Estou? – digo para o telefone, tentando soar como uma viúva devastada. Aquelas aulas de representação que tive na universidade estão a compensar. Mereço um prémio da Academia pela minha atuação diante da Millie.
– Senhora Garrick? – É a voz de Ramirez. – Daqui fala o detetive Ramirez.
– Olá, detetive. Espero que tenha aquela mulher que matou o meu marido segura atrás das grades!
– Na verdade... – Oh, Senhor, o que foi agora? – Não conseguimos localizar a Wilhelmina Calloway. Fomos ao seu apartamento com um mandado de detenção e ela não estava lá.
– Bem, onde está ela?
– Se soubéssemos, tê-la-íamos detido, não é?
Mais uma vez, sinto aquele aperto no peito.
– O que estão a fazer para encontrar essa mulher? É muito perigosa, sabe?
– Não se preocupe. Acabaremos por a localizar. Prometo.
– Ótimo. Ainda bem que tem tudo sob controlo.
– Mas há uma outra coisa de que preciso falar consigo, senhora Garrick.
O que foi agora? Olho na direção da casa de banho. Não sei por que está o Russell ainda lá dentro quando sabe que eu saí. Vai ficar todo engelhado.
– Com certeza, detetive.
– Eis o que se passa, então – diz Ramirez, pigarreando. –O administrador de condomínio do apartamento esteve ausente da cidade nos últimos dois dias. Estava na Europa e não conseguimos contactá-lo. Em todo o caso, falei finalmente com ele esta tarde e disse-me algo realmente interessante.
– Oh?
– Disse que há uma câmara de segurança na entrada das traseiras do edifício.
Acho que o meu coração para por uns bons cinco segundos.
– Desculpe?
– De alguma forma, escapou-nos – diz. – Diz que a põe longe da vista porque os residentes não gostam de sentir que estão a ser espiados. E eis a parte engraçada: foi o seu marido quem, há cerca de um ano, forneceu o equipamento de segurança através da sua empresa, pois estava preocupado com aquela entrada das traseiras.
– Ah... ah, foi? – pergunto, embargada. Oiço um estrondo que parece vir da casa de banho, seguido de um chape de água, mas ignoro-o. Se o Russell tentou sair da casa de banho e caiu, terá simplesmente de se levantar sozinho.
– Sim, e acabámos agora mesmo de analisar todas as gravações. E nem quero acreditar. Segundo essas gravações, o seu marido não ia àquele apartamento há meses. Do género, durante todo o tempo em que a menina Calloway lá trabalhou. Portanto, não sei como andavam a ter um caso no apartamento, se nunca lá esteve sequer. A senhora sabe?
A minha boca parece quase demasiado seca para deixar sair quaisquer palavras, mas consigo responder:
– Talvez se encontrassem noutro sítio?
– Talvez. Só que não vejo quaisquer cobranças nos cartões de crédito por quartos de hotel ou algo parecido.
– É claro que não ia pagar com o cartão de crédito. Então eu veria. Provavelmente pagou em dinheiro.
– Talvez tenha razão – reconhece Ramirez. – Mas eis a parte realmente interessante. Na noite em que o seu marido foi assassinado, só apareceu à entrada das traseiras depois da hora a que o porteiro viu a Millie sair do edifício.
– Isso... isso é estranho...
Se viu essas gravações, também deve saber que eu estava no edifício à hora a que o Douglas foi assassinado. E, se sabe isso, estou em grandes sarilhos.
– Escute – diz. – Perguntava-me se podia vir à esquadra para esclarecer alguma confusão da nossa parte. Vamos enviar um carro-patrulha a sua casa.
– Eu... não estou em minha casa neste momento...
– Ah, não? Onde está, então?
Afasto o telemóvel do ouvido. A voz do detetive Ramirez soa subitamente distante:
– Estou? Senhora Garrick?
Carrego no botão vermelho para desligar a chamada e largo o telemóvel em cima da bancada, como se me pudesse queimar. Debruço-me sobre o lava-loiça da cozinha, combatendo uma vaga de náuseas e de tonturas.
Não posso acreditar que havia uma câmara na entrada das traseiras. Perguntei espaticamente por isso e disseram-me que não havia nenhuma. Mas isso era antes de o Douglas tão generosamente ter fornecido uma, porque é claro que faria algo assim – era esse o tipo de cromo preocupado, generoso e apaixonado por tecnologia que o meu marido era. Ou talvez tenha sido ainda outra tentativa de documentar o que eu andava a fazer nas suas costas.
Se havia uma câmara, isso bastará para ilibar a Millie. E cravar um prego bem grande no meu caixão.
Esfrego as têmporas, que começaram a latejar. Tenho de descobrir uma maneira de dar a volta a isto, porque não vou passar o resto da minha vida na prisão. Mas tenho algumas ideias. Já representei tão bem o papel de esposa maltratada para a Millie. Terei apenas de contar a história do meu terrível marido abusivo. Talvez, nessa noite fatídica, viesse a investir para mim, pronto a espancar-me até à inconsciência, pelo que eu fiz o que tinha de fazer. A legítima defesa é legal – era ele ou eu.
Isto poderia resultar.
– Russell! – chamo. – Precisamos de falar.
O Russell é uma enorme complicação. Se a polícia analisou as transmissões de vídeo da entrada das traseiras, tê-lo-á visto entrar também nessa noite. Mas talvez não haja nada a ligá-lo diretamente a mim. Ele e eu temos de combinar as nossas histórias. Espero que não aja como um bebé em relação a tudo isto. Consigo imaginá-lo a quebrar e a contar toda a história sórdida à polícia.
Corro para a casa de banho. O Russell não vai ficar satisfeito ao ouvir isto – era esperar demasiado que tudo fluísse sem entraves. Mas, de uma forma ou de outra, superá-lo-emos. Já antes me vi em más situações e saí delas.
– Russell – volto a dizer. – O que...
Ao chegar à porta da casa de banho, a primeira coisa que vejo é todo o vermelho. Tanto vermelho, a nadar diante dos meus olhos. A água na banheira, que costumava ser transparente, a roçar o enevoado, está agora de um profundo carmesim. Ergo o olhar e localizo a fonte do sangue, vindo de uma ferida hiante na garganta do Russell.
E, então, olho para o seu rosto. Para o queixo caído. Para os olhos que fitam fixamente em frente, sem pestanejar.
70
O Russell está morto.
Assassinado.
E aconteceu entre o momento em que saí da casa de banho e agora.
Lembro-me da janela aberta que avistei anteriormente ao sair para ir buscar o vinho. Alguém entrou nesta cabana. Alguém veio a esta cabana e fez isto ao Russell.
Temo saber quem é esse alguém. Neste momento, há uma pessoa que está numa vendetta contra mim, bem como um historial de comportamento violento. E a polícia foi incapaz de a encontrar.
– Millie? – chamo.
Não obtenho resposta.
E, então, as luzes apagam-se.
Gostaria de dizer que foi a tempestade, mas não me parece que o vento esteja suficientemente forte para mandar a luz abaixo. Alguém cortou a eletricidade.
Aperto os braços sobre o peito enquanto um calafrio me atravessa. A cabana ficou negra como breu agora que a energia se foi. Tenho o meu telemóvel, e tinha alguma rede, mas deixei-o na cozinha. Se for esperta, é provável que já o tenha agarrado por esta altura. O que significa que não tenho forma de pedir ajuda.
– Millie? – chamo novamente.
Não obtenho resposta. Está a brincar comigo – deve odiar-me, neste momento. E tem todo o direito a odiar-me. Estava a tentar ajudar-me e eu atirei-lhe com as culpas de tudo para cima. Foi demasiado fácil.
E, agora, as palavras da minha amiga Audrey ressoam na minha cabeça: É dura, acredita. É perigosa.
A Millie é extremamente perigosa. Isso é evidente.
E eu fiz dela uma inimiga.
– Millie – repito, num guincho. – Por favor, oiça-me. Eu... peço desculpa. Não devia ter feito o que fiz. Mas tem de saber que o Douglas era abusivo. Estava a dizer-lhe a verdade.
Partem-se vidros algures do outro lado da sala. Viro a cabeça na direção do som. A não ser que a Millie tenha óculos de visão noturna, deve estar tão cega como eu na escuridão. Talvez haja alguma forma de eu poder usar isso em meu favor.
– O Douglas fez-me imensas coisas terríveis. Era horrível como marido. Precisava de sair daquele casamento. Tem de compreender...
A Millie continua a não responder. Mas posso sentir a sua raiva fervente. Meti-me com a mulher errada.
– Millie – prossigo. – Tem de saber que eu não estava a fingir. E a sua bondade para comigo... Significou tudo. Tive de fazer o que fiz.
Surge um relâmpago, e é suficientemente brilhante para me mostrar que tenho o caminho livre até à cozinha, que está cheia de facas e de outras coisas que teoricamente posso usar como arma, mesmo que ela tenha ficado com o meu telemóvel.
Que se lixe o argumentar com aquela psicopata. Se é luta que quer, vai tê-la.
Corro na direção da cozinha. Os passos da Millie seguem-me, mas não paro. Mantenho os braços estendidos diante de mim, esperando não colidir de frente com uma parede. Pela graça de Deus, consigo chegar à cozinha. Passo pela pequena mesa, tentando não tropeçar nela. Consigo ultrapassar esse obstáculo, mas então os meus pés escorregam debaixo de mim.
O chão está coberto de sangue.
Deve ser sangue do Russell, trazido para aqui pelas solas dos sapatos dela. Quando fecho os olhos, ainda o consigo ver estendido na casa de banho, a garganta cortada, os olhos fixos no nada. Foi a Millie quem lhe fez isso, a quem nem verdadeiramente odeia. Não posso sequer imaginar o que me terá reservado.
Não lhe darei oportunidade de o fazer. Hei de dar luta até ao fim. Ela pode ser dura, mas eu também sou.
Ponho-me de pé, apesar de sentir a anca direita a latejar devido à queda. Apalpo caminho até à bancada da cozinha e tateio às cegas em busca do bloco de facas. Tenho a certeza de que vi um na bancada. Não é imaginação minha.
Por favor, aparece. Por favor.
Mas as minhas mãos saem vazias. Não consigo sentir nada que se assemelhe a uma arma na bancada da cozinha. Naturalmente, a Millie é demasiado esperta para isso. Só a consegui enganar antes porque confiava em mim, mas, agora que conhece o meu jogo, previu todos os meus passos. Já assassinou uma pessoa esta noite e tem toda a intenção de fazer de mim a sua próxima vítima.
Tateio em busca do fogão. Estou certa de que vi uma frigideira. Se conseguir agarrá-la e, de alguma forma, acertar-lhe com força suficiente, talvez consiga derrubá-la. É a minha única hipótese.
Mas, então, oiço os passos atrás de mim, cada vez mais perto. Demasiado.
Oh, meu Deus. Ela está comigo na cozinha.
71
Tateio às cegas. A Millie está mesmo atrás de mim. Provavelmente a menos de dois metros. Se ao menos surgisse outro relâmpago. Então, talvez conseguisse encontrar algo que pudesse usar contra ela. Mas está demasiado escuro. Não consigo ver o que está mesmo à minha frente.
– Wendy – diz ela.
Viro-me, recuando contra o fogão. O meu coração parece querer-me explodir do peito e, por um momento, a divisão começa a girar. Respiro fundo, tentando acalmar-me. Não me fará bem algum se desmaiar. Provavelmente, acordaria de mãos e pés atados.
Os meus olhos conseguiram ajustar-se à escuridão. Consigo distinguir claramente a silhueta da Millie do outro lado da divisão. E, então, algo reluz na sua mão direita.
É uma faca. Deve ser a mesma que utilizou para matar o Russell, provavelmente ainda encharcada no seu sangue.
Oh, meu Deus.
– Por favor – imploro-lhe. – Posso dar-lhe o que quiser. Vou ser podre de rica.
A Millie dá um passo em frente.
– Sei que tem dificuldades financeiras – continuo a balbuciar. – Posso pagar toda a sua educação. A sua renda. E mais um bónus por cima. Nunca mais terá de se preocupar com o dinheiro.
Mal a consigo ver na cozinha escura, mas a silhueta da Millie abana a cabeça.
– Direi à polícia que estava errada. – A minha voz adquiriu um timbre histérico. – Dir-lhes-ei que não estava lá de todo. Que me enganei acerca de tudo.
Bem posso prometer-lhe isso, tendo em conta que a polícia tem as gravações que mostram que a Millie nunca esteve no apartamento ao mesmo tempo que o verdadeiro Douglas. Mas a Millie não sabe disso. Quando sair daqui, há fortes probabilidades que a polícia me leve sob custódia, mas aceito isso. Irei para a prisão, se for preciso, mas não quero morrer.
A Millie não parece sensibilizada pela minha oferta. Dá outro passo em frente enquanto eu tento recuar, mas não tenho nenhum sítio para onde ir.
– Por favor – imploro-lhe. – Por favor, não faça isto.
Nesse momento, um relâmpago ilumina a divisão – demasiado tarde para me ajudar a procurar uma arma na bancada. Os meus olhos esforçam-se por assimilar a pequena centelha de luz e, por um instante, consigo ver claramente o rosto da mulher que avança para mim com uma faca na mão direita.
Oh, Jesus Cristo.
Não é a Millie.
72
Marybeth? – sussurro.
A secretária do meu marido – que acontece ser também a mulher do Russell – está agora a poucos passos de mim, trespassando-me com o seu olhar. Nunca antes tive medo da Marybeth. Mesmo quando andava a dormir com o seu marido, nunca lhe dediquei um segundo pensamento. Parecia razoavelmente simpática, e o Russell nunca me disse o contrário.
Subestimei-a. A garganta cortada do Russell é prova disso.
Sou – objetivamente – mais atraente do que a Marybeth. Tem mais uns dez anos do que eu e nota-se. O seu cabelo louro é fibroso, tem finas rugas em torno dos olhos e à volta da boca, e a pele sob o seu queixo pende demasiado frouxa. Mas então a cozinha mergulha de novo nas trevas e ela torna-se outra vez uma silhueta.
– Sente-se – ordena a Marybeth.
– Eu... não consigo ver nada – gaguejo.
Por um segundo, sou ofuscada por outro clarão de luz –ela ligou a lanterna do seu telemóvel. Aponta-a na direção da mesa da cozinha: um pequeno quadrado de madeira com duas cadeiras dobráveis, uma de cada lado. Cambaleio em direção à mesa e deixo-me cair num dos dois lugares, segundos antes de as minhas pernas cederem.
A Marybeth senta-se na outra cadeira. Agora que temos a luz do telemóvel, posso distinguir de novo os traços do seu rosto. Os seus lábios formam uma linha reta e os seus geralmente brandos olhos azuis são como punhais. Veste uma gabardina manchada com o sangue do Russell. Parece absolutamente aterradora.
Mas tiro algum conforto de ainda não me ter matado. Por alguma razão, quer-me viva, o que me dá algum tempo para descobrir como sair daqui.
– O que quer? – pergunto-lhe.
Ela pestaneja. O branco dos seus olhos reluz, engastado numas órbitas escuras e encovadas.
– Há quanto tempo andava a dormir com o meu marido?
Abro a boca, ponderando se devia mentir. Mas, então, olho-a nos olhos e entendo que é melhor não brincar com esta mulher.
– Dez meses.
– Dez meses – repete, cuspindo as palavras. – Mesmo debaixo do meu nariz. Éramos felizes até ter aparecido, sabe? Fomo-lo durante vinte anos. Ele não era perfeito, mas amava-me. – A voz falha-lhe. – Mas, assim que a conheceu...
– Peço imensa desculpa. Não é como se o tivéssemos planeado.
– Mas tinham planos. Grandes planos. Ele planeava deixar-me por si...
Não o diz como uma pergunta, por isso mantenho a boca fechada. O Russell dizia que planeava deixar a Marybeth por mim, mas, mesmo no fim, já não estava assim tão certa. Acabou por não ser o homem que eu julgava que era.
– Ele amava-a muito – acabo por dizer, esperando aplacá-la.
– Então por que andava a dormir consigo? – explode.
– Olhe – digo, tentando manter a calma, apesar de o meu coração continuar acelerado. – Ele queria voltar para si. Estava com dúvidas. Se não o tivesse...
Ela olha-me fixamente. Não me posso esquecer que esta mulher acaba de assassinar o marido. Não está à procura de voltar a juntar-se com ele. A única coisa no seu pensamento é a vingança.
– E o Doug... – Os seus olhos são como gelo ao fitarem os meus. – Matou-o, não foi? Juntamente com o Russell.
Abro a boca, pronta a negar. Mas, então, vejo a expressão nos seus olhos e percebo que não era uma pergunta.
– Sim, matei.
Por uma fração de segundo, os seus olhos suavizam-se ao encherem-se de lágrimas.
– O Doug Garrick era um homem realmente bom. O melhor. Era como um irmão para mim.
– Eu sei. E... lamento.
– Lamenta! – explode. – Não lhe passou à frente na fila do cinema. Assassinou-o! Está morto por sua causa!
Cerro os lábios, temendo dizer mais uma palavra, pois nada que eu diga irá corrigir a situação. A Marybeth está furiosa comigo – dormi com o seu marido e matei o seu amado chefe. Mas isso não quer dizer que mereça morrer aqui, às suas mãos.
Tenho de encontrar uma saída.
Os meus olhos pousam na faca segura na sua mão direita. Tem-na no colo e ainda está ensopada com o sangue do Russell – o seu sangue está absolutamente em todo o lado. Haverá alguma hipótese de lhe poder tirar a faca? A Marybeth não está propriamente no auge da forma física.
– O que quer de mim? – pergunto-lhe.
Ela leva a mão ao bolso da sua gabardina e tira uma folha em branco. Em seguida, continua a vasculhar até encontrar uma caneta. Faz deslizar ambos os objetos sobre a mesa da cozinha na minha direção.
– Quero que escreva uma confissão – anuncia.
A bílis sobe-me à garganta e tenho de a empurrar de novo para baixo.
– O quê?
– Ouviu o que eu disse. – Os seus olhos refulgem. – Quero que escreva tudo o que fez. Como seduziu o Russell. Como os dois conspiraram para matar o seu marido. Quero uma confissão completa.
– Está bem... – Não quero fazer isto, mas vi o que fez ao Russell. A ideia de me cortar a garganta como fez a ele...
– Faça-o!
As minhas mãos não param de tremer enquanto escrevo a minha confissão na folha em branco, agora manchada por impressões digitais carmesim. Não sei ao certo o que quer que eu diga, por isso tento manter as coisas simples. Não estou demasiado preocupada, pois nada que eu escreva sob a ameaça de uma faca será válido em tribunal.
A quem possa interessar,
Ao longo dos últimos dez meses, mantive um caso amoroso com Russell Simonds. Juntos, matámos o meu marido, Douglas Garrick.
Estudo-lhe os traços faciais. O seu rosto nada revela.
– É isto que quer? – pergunto.
– Sim, mas ainda não terminou.
– O que mais quer que eu diga?
– Eis o que tem de escrever. – Com a sua longa unha, bate no papel. – Já não consigo viver com a culpa.
Rabisco a frase, que sai quase ilegível, tal é o tremor nas minhas mãos. Por um segundo, a página fica desfocada e nem sequer consigo continuar a escrever, mas depois recupera a nitidez.
– Ror isso, esta noite – Continua –, decidi pôr termo às vidas de ambos.
Paro de escrever, deixando cair a caneta dos meus dedos dormentes.
– Marybeth...
– Escreva!
Ergue a faca, aproximando-a do meu rosto. Por um segundo, fecho os olhos, recordando a ferida aberta na garganta do Russell. Oh, meu Deus. Esta mulher está a falar a sério. Escrevo a última frase da minha confissão.
– Agora assine – ordena a Marybeth.
Assim faço. Não estou em posição de recusar.
Agarra na minha confissão assinada e lê-a, embora continuando a manter-me debaixo de olho.
– Ótimo – decreta.
Compreendo o que se deve seguir. A confissão termina comigo a dizer que vou pôr termo à minha própria vida. O que significa que, até ao fim da noite, ela vai matar-me. O pensamento causa-me violentas tonturas e, apesar de esta mulher me estar a ameaçar com uma faca, corro para o lava-loiça da cozinha para vomitar. Ela deixa-me ir.
Debruço-me sobre o lava-loiça, vomitando em seco mesmo após ter esvaziado o estômago. Manchei a bancada de vermelho com o meu vómito, devido ao pinot noir. A cadeira da cozinha range atrás de mim e, passado um segundo, a Marybeth está ao meu lado junto ao lava-loiça.
– Por favor, não faça isto – imploro-lhe.
Ela inclina a cabeça.
– Não foi o que fez ao Doug? Não acha que merece?
Foi diferente com o Douglas. Tratava-me tão horrivelmente que não tive opção. E, mesmo na morte, continua a atormentar-me com o seu testamento. Céus, como vou eu contestar aquele estúpido testamento? Mas preocupar-me-ei com isso quando sair daqui. Primeiro, tenho de afastar esta mulher do precipício.
– Toda a gente comete erros – digo. – Sinto-me terrivelmente com as coisas que fiz. E agora tenho de viver com elas.
– Isso não chega – responde-me.
Sinto um sufoco no peito, como se tivesse um espartilho a apertar-me.
– Não chega mandar-me para a prisão para o resto da vida?
– Não. Merece pior. É uma pessoa verdadeiramente desprezível. E merece morrer de forma dolorosa e horrível.
O espartilho aperta-se ainda mais.
– O que acha que vai acontecer, então? Acha que a polícia vai acreditar que eu me esfaqueei até à morte? As pessoas não fazem realmente isso. Saberão que foi alguém a fazer-mo.
Por um momento, a Marybeth fica em silêncio.
– Tem razão – admite, pensativa. – Se fosse esfaqueada, perceberiam que não foi um suicídio.
Oh, graças a Deus. Consegui finalmente que esta mulher ouvisse a razão.
– Exato.
– Por isso é que não é dessa forma que vai morrer.
Sinto outra vaga de tonturas que quase me faz cair por terra.
– O quê? Do que está a falar?
Terá outra arma aqui dentro? Uma pistola? Umas matracas? O que vai esta mulher fazer-me?
– Alguma vez ouviu falar num medicamento chamado digoxina? – pergunta.
Digoxina? Por que me é familiar?
E então lembro-me. O Douglas costumava tomar esse medicamento. Para o seu coração. E a Marybeth tem uma cópia das chaves da casa em Long Island onde ele guardava a sua medicação.
– A intoxicação por digoxina é extremamente grave – prossegue. – Primeiro, sentem-se náuseas, tonturas, cãibras abdominais terríveis e a visão desfocada. É excruciante. Mas a forma como mata é fazendo o coração entrar numa arritmia mortal.
– Então – digo lentamente –, está à espera que eu engula um monte de digoxina?
Se me pedir para engolir comprimidos, terei de arranjar uma escapatória. Posso pô-los debaixo da língua e cuspi-los quando tiver oportunidade. Não me pode obrigar.
Mas, então, os seus lábios curvam-se num sorriso.
– Já o fez, Wendy.
Oh, meu Deus, o vinho.
Debruço-me de novo para o lava-loiça, mas nada sai. Ao mesmo tempo, o meu estômago é dominado por uma cãibra que me faz subir as lágrimas aos olhos. Apesar das tonturas crescentes, consegui aguentar-me de pé, mas agora deixo-me cair no chão, agarrada ao estômago.
A Marybeth agacha-se ao meu lado.
– Não sei bem quanto tempo isto irá demorar. Mais uma hora? Duas? Não há pressa. Não anda ninguém à nossa procura por aqui.
Ergo o olhar e encaro-a. O seu rosto alterna entre focado e desfocado.
– Por favor, leve-me ao hospital.
– Não me parece.
– Por favor – arquejo. – Tenha piedade...
– Como a Wendy teve piedade do Doug?
Estendo o braço, os meus dedos mal roçando a perna das suas calças de ganga. Tento agarrar-me a ela, mas é como se a minha mão já não obedecesse às minhas ordens.
– Faço tudo o que quiser. Dou-lhe tudo o que quiser. Prometo.
– E eu prometo – responde a Marybeth – que a sua morte será lenta e dolorosa. E, ao contrário de si, eu nunca quebro as minhas promessas.
73
MILLIE
É tempo de enfrentar a situação.
Dormi no carro do Enzo ontem à noite. Sabia que a polícia tinha um mandado para a minha detenção, e simplesmente não estava preparada para ser outra vez encarcerada. Por isso escondi-me, estacionada num beco escuro, e dormi no banco de trás. Houve um tempo em que costumava viver no meu carro, por isso dormir assim deu-me uma séria sensação de déjà vu.
Fez-me também perceber que não posso dormir no banco de trás do carro do Enzo para sempre. Tenho de me entregar e esperar que a verdade venha ao de cima.
Ao estacionar em frente ao meu prédio de apartamentos, espero ver lá metade da polícia, acampada e à minha espera. Ao invés, porém, só lá está um carro-patrulha. Ainda assim, sei que está ali por mim.
Com efeito, mal saio do Mazda do Enzo, um jovem agente salta do carro-patrulha.
– Wilhelmina Calloway? – pergunta.
– Sim – confirmo.
Wilhelmina Calloway, está detida. Preparo-me para o ouvir dizer, mas não o faz.
– Poderia fazer o favor de me acompanhar à esquadra?
– Estou detida?
Abana a cabeça.
– Que eu saiba, não. O detetive Ramirez gostaria muito de conversar consigo, mas não é obrigada a ir.
Muito bem, então. É um bom começo.
Subo para o banco de trás do carro-patrulha. Tive o meu telemóvel desligado a noite inteira, e ligo-o agora. Tenho algumas chamadas perdidas da Polícia de Nova Iorque e vinte chamadas não atendidas do Enzo. Deve ter descoberto que lhe levei o carro. Não oiço as mensagens de voz, mas percorro a longa fiada de mensagens de texto que me enviou.
Onde estás?
Tens o meu carro?
Levaste o meu carro!
Por favor, volta com o meu carro. Vamos conversar.
Não vás àquela cabana!
Onde estás? Muito preocupado.
Volta, por favor. Não vás à cabana. Eu amo-te.
Vou resolver isto. Volta.
E assim por diante.
As mensagens de texto continuam noite dentro. Passou metade da noite acordado, preocupado comigo. Devo-lhe uma explicação, ou ao menos dizer-lhe que estou bem. Por isso, envio-lhe uma mensagem:
Estou bem. No banco de trás de um carro da polícia agora mesmo. Não estou detida. O teu carro está em frente ao meu prédio.
A resposta do Enzo surge quase instantaneamente, como se estivesse a olhar para o telemóvel, à espera de uma mensagem minha:
Onde estavas?? ?????
Respondo-lhe:
Dormi no carro. Está tudo bem.
Três bolhas aparecem no ecrã enquanto escreve. Espero que diga que me ama ou que estava preocupado, ou talvez que me repreenda por lhe ter roubado o carro. Mas, em vez disso, diz algo extremamente inesperado:
A Wendy Garrick está morta. Vi nas notícias.
0 que? Como???
Suicidou-se.
74
Desta vez, a sala de interrogatório não parece tão assustadora.
Enquanto estava no carro-patrulha, devorei todos os artigos que pude encontrar sobre o suicídio da Wendy Garrick. Aparentemente, cortou a garganta ao namorado e depois engoliu um monte de comprimidos. Até deixou um bilhete de suicídio.
Isto dá uma dimensão completamente nova ao que aconteceu ao Douglas Garrick.
Há já cerca de meia hora que estou na sala quando o detetive Ramirez finalmente entra. Ainda traz a mesma expressão séria no rosto, mas já não parece tão ominoso. Parece apenas... perplexo.
– Olá, menina Calloway – diz, sentando-se na cadeira à minha frente.
– Olá, detetive – respondo.
As suas sobrancelhas juntam-se.
– Soube do que aconteceu à Wendy Garrick?
– Sim. Deu nas notícias.
– Deve saber – diz – que, no seu bilhete de suicídio, ela confessou também o homicídio do senhor Garrick. Permito-me um ligeiríssimo sorriso.
-Já não sou suspeita, então?
– Na verdade... – responde, recostando-se na sua cadeira de plástico, que range sob o seu peso. – Já tinha deixado de ser suspeita. Acontece que havia uma câmara na entrada das traseiras de que ninguém sabia. Examinámos as gravações e parece que a menina nunca esteve
sequer no prédio ao mesmo tempo que o senhor Garrick.
– Certo. A Wendy montou-me uma cilada.
Este tempo todo, havia uma câmara. Todo o pânico e stresse dos dois últimos dias... e a prova da minha inocência estava logo ali desde o começo.
Ele anui.
– É o que parece. Por isso, quero pedir-lhe desculpa. Compreende como poderíamos pensar que era a menina a responsável pelo homicídio.
– Claro. Tenho registo criminal, portanto, se um crime foi cometido, devo ter sido eu a fazê-lo.
Ramirez tem a graça de parecer envergonhado.
– É verdade que tirei algumas conclusões precipitadas, mas tem de admitir que as coisas não pareciam boas para o seu lado. E a Wendy Garrick insistia tanto em como tinha de ser a responsável.
Tem razão. Ela fez um bom trabalho ao armar-me a cilada. Mas, se tivesse sido um pouco mais esperta, não teria de o fazer de todo. Em última instância, a Wendy Garrick dificultou muito mais a sua própria vida do que necessitava. Podia ter aprendido muito comigo.
Ainda assim, toda esta experiência amargou-me. Ao longo dos anos, ajudei muitas mulheres e, apesar de as coisas nem sempre correrem conforme o planeado, sempre senti que estava a travar o bom combate. Quando me procuravam à procura de auxílio, nunca sentia qualquer hesitação em fazer o que estava certo.
Mas, agora, começo a questionar-me. A Wendy parecia verdadeiramente uma vítima. Depois desta experiência, vai ser difícil confiar na próxima pessoa que procurar a minha ajuda. E essa é uma das coisas por que mais rancor lhe guardo.
-Já não sou suspeita, então? – pergunto a Ramirez.
– Correto. No que me diz respeito, o caso está encerrado.
O Douglas está morto. Sabem que a Wendy foi a responsável. E também está morta. Não é necessária uma investigação, nem mais detenções ou um julgamento. Estou livre.
– Então, não compreendo. Por que estou aqui?
– Bem... – Ramirez esboça um sorriso acanhado. – Acontece que tem uma certa reputação.
– Reputação? – O meu estômago revolve-se ligeiramente. Isto não soa bem. – De quê?
– De heroína.
– De... desculpe?
– Reconheço que julgava estar a tentar ajudar a senhora Garrick – diz – porque já ajudou outras mulheres antes. E quero que saiba que é apreciado. Vemos algumas coisas más por aqui, e às vezes chegamos demasiado tarde às vítimas.
O seu comentário acerta em cheio. Fiz todos os possíveis para evitar que alguma vez fosse «demasiado tarde». E onde quer que o futuro me leve – como empregada doméstica ou como assistente social – vou continuar a fazê-lo.
– Eu... faço o melhor que posso com os recursos que tenho.
– Compreendo isso – sorri-me. – E só quero que saiba que me pode considerar mais um recurso. Quero que fique com o meu cartão e, se alguma vez vir alguma situação em que uma mulher esteja em perigo, quero que me ligue imediatamente. Escrevi o meu número de telemóvel na parte de trás. Desta vez, prometo que acreditarei em si.
Faz deslizar o cartão sobre a mesa. Agarro-o, olhando para o seu nome. Benito Ramirez. Finalmente – um amigo na polícia. Mal posso acreditar.
– Só para que fique claro, não está a fazer-se a mim, certo?
Atira a cabeça para trás e ri.
– Não. Sou demasiado velho para si. E parto do princípio de que esteja com aquele sujeito italiano que veio ontem à esquadra armar um escândalo por sua causa, sobre como tínhamos a pessoa errada e não sairia daqui enquanto não ouvíssemos o que tinha para dizer. Pensei que íamos ter de prender o homem.
Sorrio para comigo.
– A sério?
– Oh, sim. Na verdade, está lá fora agora mesmo. Recusa-se a sair da sala de espera enquanto não a vir.
– Bem, então – digo, ainda incapaz de apagar o sorriso do meu rosto (embora não esteja realmente a tentar) –, suponho que vou andando.
Quando me levanto, Ramirez faz o mesmo. Estende-me a mão e eu aperto-a. Em seguida, saio para ver o Enzo e ir finalmente para casa.
Epílogo
MILLIE
Três meses depois
Não compreendo como tinha o Enzo tanta coisa naquele seu pequeno estúdio.
Entra no meu apartamento com o que parece ser a sua caixa de pertences número dez milhões e deposita-a em cima de outra caixa. Sim, está bem, não é uma tortura ver o Enzo carregar caixas, os músculos dos seus braços intumescidos sob a sua T-shirt, mas, por amor de Deus, o que está em todas aquelas caixas? O homem parece alternar entre umas sete ou oito T-shirts e dois pares de calças de ganga. O que mais pode ter?
– É tudo? – pergunto-lhe, enquanto limpa o suor da testa.
– Não. Há mais duas.
– Mais duas!
Quase começo a arrepender-me disto. Bem, não propriamente. Depois de me separar do Brock, o Enzo e eu continuámos exatamente onde estávamos antes de ter partido para Itália. Só que, desta vez, ambos sabíamos que não podíamos viver um sem o outro. Assim, quando acabou por verificar que estava a desperdiçar o dinheiro da renda todos os meses, pois passava já todas as noites no meu apartamento, eu apressei-me a sugerir que viesse viver comigo.
É engraçado. Quando está certo, sabemos simplesmente que está certo.
– Duas caixas pequenas – diz o Enzo. – Não é nada.
– Hum – respondo. Não acredito nele. A sua definição de «caixa pequena» é tudo o que tenha um peso inferior ao meu.
Sorri-me.
– Desculpa ser tão irritante.
Não é irritante de todo. Na verdade, é a única razão por que me foi permitido ficar sequer neste apartamento. A senhora Randall continuava decidida a pôr-me no olho da rua, mesmo depois de eu ter sido completamente ilibada, mas o Enzo foi falar com ela e, de repente, passou a ter todo o gosto em deixar-me ficar. É bastante encantador.
O Enzo atravessa a sala para me envolver nos seus braços. Apesar de estar um pouco suado de carregar caixas de um lado para o outro entre os nossos apartamentos, não me importo. Deixo-o na mesma beijar-me. Sempre.
– Muito bem – diz, quando finalmente se afasta. – Vou buscar as outras caixas.
Gemo. Vamos ter de examinar essas caixas os dois juntos e de nos livrar de muita coisa. Além disso, tenho um plano para libertar algum espaço nas gavetas hoje.
Alguns minutos depois de o Enzo sair, ouve-se a campainha da porta de baixo. O Enzo falou em encomendar uma piza para o jantar, mas não creio que já tenha feito o pedido. O que significa que só uma pessoa pode estar lá em baixo.
Carrego no botão para o deixar subir.
Passado um minuto, oiço bater à minha porta. Agarro na caixa que estava em cima da minha cama e levo-a para a sala de estar. Mantenho-a equilibrada num braço enquanto abro a porta com o outro.
O Brock está à minha porta. Como sempre, veste um dos seus fatos caros, tem o cabelo perfeitamente arranjado, os dentes de um branco reluzente. É a primeira vez que o vejo em três meses, quase me esqueci de quão impecavelmente atraente é. Estou certa de que um dia será um marido maravilhoso para alguma mulher. Mas nunca iria ser eu.
– Olá – diz. – Tens as minhas coisas?
– Está tudo aqui mesmo.
Ergo a caixa para os braços expectantes do Brock. Quando estava a tentar abrir espaço para o Enzo, dei-me conta de que ainda tinha uma gaveta cheia de roupas e pertences aleatórios que o Brock tinha deixado para trás. Ponderei deitar simplesmente tudo fora, mas lembrei-me da forma como me avisou quando a polícia arranjou um mandado para a minha detenção e decidi ligar-lhe a perguntar se queria as suas coisas de volta. Respondeu-me que passaria por cá no dia seguinte.
– Obrigado, Millie – diz.
– Sem problemas.
O Brock hesita junto à porta.
– Pareces bem.
Oh, meu Deus, vamos jogar esse jogo?
– Obrigada. Tu também – respondo. E, porque não consigo evitar, continuo. – Andas a sair com alguém?
Abana a cabeça.
– Ninguém especial.
Não me faz a mesma pergunta, o que agradeço. Depois de todas as vezes que o recusei quando me pediu para ir viver com ele, seria cruel dizer-lhe que o Enzo vem viver comigo. E, apesar da forma como as coisas acabaram com o Brock quando me abandonou na esquadra, sei que me amava. Muito mais do que eu a ele.
– Bem... – Muda a caixa de um braço para o outro. – Boa sorte com... tudo.
– Para ti também. Vemo-nos por aí, suponho. – Não sei por que acrescentei esta última parte. Provavelmente, nunca mais o voltarei a ver.
Estou prestes a fechar a porta quando o Brock estende a mão para me deter.
– Oh, e Millie?
– Sim?
Sacode a caixa, olha para o conteúdo e depois ergue de novo o olhar para mim.
– O meu frasco extra de comprimidos está aqui dentro?
Cravo as unhas nas palmas das mãos.
– O quê?
– O meu frasco extra de digoxina – esclarece. – O que costumava manter no teu armário dos medicamentos para quando passava cá a noite. Ainda o tens? Costumo levar o frasco extra quando vou em viagem.
– Hã... – Cravo mais as unhas na pele. – Não, eu... Não o vi no armário dos medicamentos. Devo tê-lo deitado fora. Desculpa.
Sacode uma mão.
– Sem problemas. Alegro-me só por não te teres livrado da minha camisola de Yale.
O Brock acena-me uma última vez em despedida e, em vez de fechar a porta, fico a vê-lo descer as escadas, sempre de respiração suspensa. Só solto o fôlego depois de desaparecer de vista.
Não pensava que se fosse lembrar do frasco de comprimidos que deixou no armário dos medicamentos. Mas eu lembrava-me certamente. Da primeira vez que lá o encontrei, quando namorávamos, pesquisei o fármaco, só para saber mais sobre o meu namorado. Foi assim que descobri que, em doses elevadas, a digoxina pode causar arritmias fatais. Na altura, arquivei a informação no fundo da minha mente.
Apesar dos seus perigos, a digoxina é um medicamento frequentemente utilizado para o coração. Tanto que até o Douglas Garrick a tomava para a sua fibrilação auricular. Mas os comprimidos que a Wendy Garrick tomou numa dose fatal não vieram da reserva do Douglas, como a polícia presumiu.
Depois de levar as chaves do carro do Enzo, logo após ter sabido que havia provavelmente um mandado para a minha detenção, acabei por não ir àquela cabana, afinal – cumpri a minha promessa ao Enzo. Em vez disso, fui a Manhattan. Fui ao apartamento da mulher do Russell Simonds, a Marybeth, que calhava ser empregada do verdadeiro Douglas Garrick, e apresentei-me.
A Marybeth revelou-se uma mulher encantadora. Estava bastante destroçada com a morte do seu chefe, e senti-me terrivelmente ao ter de lhe explicar o que sabia sobre o seu marido. Mas, após termos uma longa e agradável conversa, ficou a sentir-se muito melhor. E, depois de se recordar de um avultado seguro de vida feito pelo Russell alguns anos antes, a Marybeth decidiu fazer uma pequena viagem terapêutica àquela cabana nos bosques.
Eu fui à minha vida, com menos um frasco de digoxina.
A parte irónica é que, se a Wendy tivesse antes administrado ao marido um pouco a mais da sua própria medicação, tê-lo-ia provavelmente matado, e teria sido difícil provar que a dose não fora acidental. Podia ter-se poupado a muitos problemas.
Em vez disso, cometeu um erro de discernimento incrivelmente grave. Subestimou uma pessoa extremamente perigosa.
Eu.
E pagou o derradeiro preço.
Uma Carta da Freida
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Quero dizer um enorme obrigada por terem escolhido ler o Segredo da Criada. Se gostaram e querem manter-se a par de todos os meus lançamentos mais recentes com a Bookouture, basta inscreverem-se no link que se segue. O vosso endereço de e-mail nunca será partilhado e podem anular a subscrição em qualquer altura. www.bookouture.com/freida-mcfadden Espero que tenham adorado o Segredo da Criada e, se sim, ficaria muito grata se pudessem escrever uma opinião. Adoraria saber o que pensam, e faz tanta diferença para ajudar novos leitores a descobrirem um dos meus livros pela primeira vez.
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Agradecimentos
Quero agradecer à Bookouture por ajudar a fazer do primeiro livro da série A Criada um sucesso tão espetacular e por me apoiar nesta sequela. Obrigada à minha editora, Ellen Gleeson, que tem uma visão incrível dos meus livros e um entusiasmo ilimitado! Obrigada à minha mãe pelos comentários iniciais, e também à Kate. E, como sempre, obrigada aos meus incrivelmente encorajadores leitores – fazem com que tudo valha a pena!