– Não sei tudo, Millie. – Lança-me um olhar, o seu rosto par cialmente obscurecido pelas sombras. – Diz-me.

E é isso que faço.


32

Conto-lhe tudo. Até aos últimos pormenores dos abusos de Douglas e da fuga de Wendy.

Prometi à Wendy que não dizia a ninguém, mas o Enzo não é qualquer um. Ele percebe. Nós os dois trabalhámos lado a lado para ajudar mulheres como a Wendy. Se há em todo o mundo algum ser humano a quem possa confiar a história, é ele.

Levo quase o caminho todo até à minha porta da frente a chegar ao fim da história. O Enzo não disse grande coisa. É típico dele, porém. Nunca conheci ouvinte tão intenso. Muitas vezes aprecio a forma como presta atenção ao que eu digo. Mas, ao mesmo tempo, dá comigo em doida quando não consigo perceber o que está a pensar.

– E pronto – digo por fim, após descrever como deixei a Wendy no motel e o meu regresso à cidade. – Agora ela está a salvo.

O Enzo continua calado.

– Talvez – acaba por dizer.

– Nada de talvez. Está.

– Esse homem, Douglas Garrick – diz. – É poderoso e perigoso. Não creio que vá ser assim tão fácil.

– Só dizes isso porque o fiz sem ti. Não acreditas que possa fazer isto sozinha.

Ele vira para a rua em frente ao meu prédio. Está completamente escura e inerte, exceto por um homem solitário ao canto que fuma algo que provavelmente não é um cigarro. Olhando para esta rua, consigo perceber por que o Enzo se sentiu obrigado a proteger-me, embora continue a não acreditar que precisasse.

Vira-se para me olhar nos olhos.

– Acredito que podes fazer tudo – diz baixinho. – Mas, Millie, estou só a dizer... tem cuidado.

– A Wendy é muito cuidadosa.

– Não. – Os seus olhos negros trespassam-me. – Tem cuidado m. Ela foi-se embora, mas tu continuas aqui.

Compreendo o que está a dizer. Se Douglas tiver a menor suspeita de que eu estive envolvida no desaparecimento da mulher, pode tornar-me a vida muito difícil. Mas estou preparada. Já lidei com homens piores e saí por cima.

– Terei cuidado – digo-lhe. – Já não é responsabilidade tua preocupares-te comigo. Por isso não precisas de me proteger.

– Quem o fará, então? O Brócolo?

Sinto o rosto a arder.

– Na verdade, não preciso que nenhum dos dois me proteja. Quando aquele sacana me atacou no meu prédio, cuidei bastante bem de mim mesma. Por isso não te preocupes comigo. Se te vais preocupar com alguém, devias preocupar-te com a segurança do Douglas Garrick. De mim.

– Bem – diz –, isso também.

Por um momento, ficamos a olhar um para o outro. Quem me dera que o Enzo não me tivesse deixado e voltado para Itália. Se isso não tivesse acontecido, podia ter-me ajudado com a Wendy. Podia ter-me falado mais cedo sobre as suas reservas, de modo a podermos resolvê-las. Podia tê-la ajudado a obter uma nova identidade para que tivesse mais opções.

E eu iria para casa com ele esta noite, em vez de com o Brócolo. Quer dizer, com o Brock.

– É melhor ir – digo.

Lentamente, aquiesce.

– Está bem.

Desaperto o cinto de segurança, apesar de me sentir relutante em sair do carro.

– Tens de parar de me seguir.

– Está bem.

– Digo-o a sério. – Lanço-lhe um olhar fulminante. – Namoro com outra pessoa, agora. Andas a perseguir-me. É sinistro e desnecessário. Tens de parar. Caso contrário... terei de chamar a polícia ou assim.

– Já disse que sim. – Leva uma mão ao peito. Veste uma T-shirt sob o casaco leve e ainda consigo, infelizmente, distinguir todos os seus músculos por baixo. – Dou-te a minha palavra. Acabou-se a vigilância.

– Ótimo.

Deixarei de ter aquela sensação sinistra de que há alguém a observar-me. Resolvi oficialmente o mistério do Mazda preto com o farol rachado, e este carro nunca mais me voltará a incomodar. Devia sentir-me aliviada, mas não sinto. Quando muito, sinto-me ainda mais inquieta. Tinha um anjo da guarda e nem sabia.

– Enfim... – Abro a porta do lado do passageiro. – Suponho que isto é o adeus.

Começo a sair do carro, mas então a mão do Enzo fecha-se sobre o meu antebraço. Viro-me para o fitar e vejo-lhe as sobrancelhas escuras franzidas.

– Ainda tenho o mesmo número de telefone – diz-me. –Se precisares de mim, liga. Lá estarei.

Tento forçar um sorriso, mas não se materializa.

– Não vou precisar de ti. Devias... sei lá, arranjar outra namorada. A sério.

Solta-me o braço, mas os seus lábios continuam franzidos.

– Liga só. Eu espero.

É exasperante o quanto parece estar certo que eu lhe vou ligar. Se há algo que devia saber sobre mim, é que sei tomar conta de mim mesma. Às vezes, demasiado bem.

Mas, ao subir os degraus para o terceiro andar do meu prédio, um pressentimento terrível sobe-me à boca do estômago. E se o Enzo tiver razão? E se subestimei Douglas Garrick? Afinal, é um homem verdadeiramente terrível, a julgar por tudo o que vi. E, além disso, é incrivelmente rico.

Não pode ser assim tão fácil para a Wendy escapar-lhe, pois não? Quando o Enzo e eu costumávamos ajudar mulheres a fugir dos seus maridos abusivos, planeávamos tudo meticulosamente e, mesmo assim, às vezes éramos descobertos. Tenho a sensação de que Douglas é mais esperto do que muitos dos outros homens com quem lidámos. Embora saiba agora que não era ele no carro que me seguia, pode ter outras formas de controlar a mulher.

E se sabia exatamente o que planeávamos fazer esta noite?

O pensamento atinge-me como uma tonelada de tijolo ao chegar ao patamar do terceiro andar. Tal como a rua, o terceiro andar do meu prédio está totalmente silencioso. E mesmo que o Enzo ainda esteja lá fora – apesar de eu o ter feito prometer que não ficaria – não me pode ajudar aqui dentro.

Olho para a porta fechada do meu apartamento. Tem uma trava do lado de dentro, mas não a posso correr ao sair para o dia. A fechadura da porta é quase pateticamente fácil de arrombar. Até eu podia provavelmente fazê-lo. Mas nunca me preocupei com isso, pois não tenho nada que valha a pena roubar.

Se alguém quisesse entrar no meu apartamento, seria demasiado fácil.

Tenho as chaves da minha porta na mão direita, mas hesito antes de as introduzir na fechadura. E se Douglas estiver mesmo um passo à minha frente? Se estiver à espera no meu apartamento, pronto para me persuadir a denunciar a localização da Wendy por quaisquer meios necessários?

Onde quer que o Enzo esteja, não pode ter ido longe. Tenho o seu número gravado no meu telemóvel – nunca o apaguei. Podia ligar-lhe e pedir-lhe para entrar comigo no apartamento, só para garantir que é seguro.

Claro que, depois daquele discurso que eu fiz sobre como não preciso dele, isso implicaria engolir o meu orgulho. Mas já fiz muito disso na vida. O que é mais uma vez?

Aperto as chaves na mão. Tenho de tomar uma decisão.

Afasto as dúvidas enervantes e introduzo a chave na fechadura. Ao rodá-la, sinto o coração palpitar no peito, mas abro a porta.

Por um segundo, quase espero que algo me salte para cima. Amaldiçoo-me por não ter o meu gás-pimenta pronto. Mas, ao entrar, está tudo tranquilo. Não há ninguém à minha espera. Ninguém me salta para cima. Não está aqui ninguém.

– Olá? – chamo. Como se o intruso estivesse por aqui à espera de um cumprimento adequado.

Não obtenho resposta. Estou sozinha neste apartamento. Talvez Douglas venha a juntar todas as peças, mas tal ainda não aconteceu.

Portanto, fecho a porta do apartamento atrás de mim e corro o ferrolho.


33

Sabes – diz-me o Brock, enquanto enfia uma garfada de massa Pad Thai na boca –, abriu uma vaga para rececionista a tempo parcial na minha sociedade de advogados. Estás interessada?

Estamos os dois a jantar no apartamento do Brock, na sua minúscula sala de jantar. Os Garrick têm uma verdadeira sala de jantar, mas a maioria dos apartamentos em Nova Iorque tem apenas uma minúscula área na sala de estar com uma mesa que pode ser manualmente estendida para acomodar mais de quatro pessoas. E o apartamento do Brock é considerado grande para os padrões de Manhattan. Num apartamento pequeno, não haveria de todo área de jantar, e a cozinha, a sala de estar, o quarto e a casa de banho seriam todos uma divisão, como em minha casa.

Dito isto, podia ter melhor, se quisesse. Os pais são ricos – não insanamente ricos como Douglas Garrick, mas decididamente de classe alta –, só que o Brock não quer aceitar o dinheiro dos pais, por mais que lho tentem oferecer. Ensinaram-me a pescar, gosta de dizer. Sente que é suficiente terem financiado o seu curso universitário na Ivy League e a faculdade de direito, e que agora é da sua responsabilidade ganhar o seu próprio sustento, isto é, pescar.

Respeito isso nele. É realmente uma excelente pessoa. E estou agradecida por não me ter pressionado a marcar outra data específica para termos a Conversa, ainda que agora pareça que podia simplesmente adiá-la indefinidamente – embora saiba que não devo.

Misturo um pouco mais do meu caril vermelho com o arroz branco. Adoro a comida deste restaurante, pois os caris são sempre superpicantes.

– Um emprego de secretária, hã?

O Brock assente.

– Andas à procura, certo?

Passaram três dias desde que deixei a Wendy em Albany. Disse ao Brock algo vago sobre já não necessitarem dos meus serviços, e não teve razões para suspeitar que algo mais se passasse. Douglas Garrick deve supostamente regressar da sua viagem de negócios amanhã e, sempre que penso nisso, sinto um mal-estar no estômago. Mas ainda acredito que vai tudo correr bem.

Seja como for, terei de arranjar uma maneira de deixar aquele trabalho como empregada de limpeza. Talvez envie uma mensagem de texto a Douglas na próxima semana a dizer-lhe que a minha agenda ficou cheia e não posso trabalhar mais para ele. Isso deixar-me-á miseravelmente desempregada, e a ideia de um emprego com horário regular e oh, meu Deus, regalias é incrível.

– Parece ótimo – digo. – Mas seria um emprego como rececionista compatível com o meu horário escolar?

– Como disse, é a tempo parcial – responde-me. – Na verdade, esperam encontrar alguém que possa fazer os fins de semana, por isso seria perfeito para ti.

Seria perfeito. Absolutamente perfeito. E o Brock disse-me que todos na sua firma são bem pagos. E, então, não teria de aceitar ter de trabalhar para todos aqueles casais neuróticos de Manhattan.

Claro que, se a firma do Brock pensar em contratar-me, fará uma verificação de antecedentes. E, quando descobrirem o meu passado, também ele descobrirá. Posso até imaginar alguém da firma a importuná-lo com isso. Ei, Brock, ouvi dizer que a tua namorada tem registo criminal.

Quase consigo imaginar a sua reação. O seu habitual sorriso descontraído a fugir-lhe do rosto. O que? Como assim?

E, depois, a conversa ao chegar a casa do trabalho... oh, meu Deus...

Isto está a ficar de loucos. Já escondi a verdade durante tempo suficiente. E, se disse ao Enzo que é O Tal, então significa que o meu interesse é sério. Significa ser completamente honesta.

– Além disso – acrescenta o Brock –, os meus pais vêm à cidade para um casamento no próximo mês. E eu... – esboça um sorriso torto. – Gostaria que jantássemos todos juntos.

– Os teus pais? – engulo em seco.

– Quero que te conheçam. – Estendendo o braço sobre a pequena mesa de jantar, pousa a sua mão na minha. –Quero que conheçam a mulher que amo.

Se estivéssemos num concurso de «amo-te», o Brock estaria a aniquilar-me a uma proporção de uns dez para um.

Isto está a ficar descontrolado. Não posso adiar mais a Conversa. Tenho de lhe contar tudo. Agora.

– Ei, Brock. – Pouso o meu garfo. – Há algo que preciso de te dizer.

Arqueia uma sobrancelha.

– Oh?

– Sim...

– Isso não parece bom.

– Não, é... – Tento engolir, mas tenho a garganta demasiado seca. Agarro no meu copo, mas bebi a água toda enquanto comia o caril picante. – Deixa-me ir buscar um pouco mais de água.

O Brock olha-me fixamente enquanto agarro no meu copo e corro para a cozinha. Enfio o copo debaixo do filtro de água, desejando por uma vez que esta corresse um pouco mais devagar. Enquanto estou a encher o copo, o meu telemóvel começa a vibrar no meu bolso. Alguém está a ligar-me.

O nome da Wendy aparece no ecrã. Fiquei com o seu número, para o caso de algo correr mal com o nosso plano de fuga e ela precisar da minha intervenção. Mas deixou esse telemóvel para trás na penthouse. Por que me está a ligar agora, então?

Atendo a chamada, baixando a voz para o Brock não poder ouvir. Estou certa de que não aprovaria nada disto, e é particularmente importante não lhe dizer uma palavra, uma vez que aparentemente conhece Douglas Garrick e considera-o um tipo simpático.

– Wendy – sussurro. – O que se passa?

Por um segundo, oiço apenas silêncio do outro lado da linha. Depois, o som de um soluçar baixinho.

– Estou de volta. Ele trouxe-me de volta.

– Oh, meu Deus...

– Millie – falha-lhe a voz –, pode vir aqui, por favor?

O apartamento do Brock fica a apenas quinze minutos a pé da penthouse. Podia estar lá em vinte. Mas como posso? Acabo de iniciar uma discussão séria com o meu namorado, que provavelmente levará o resto da noite.

Mas o Brock não precisa tanto de mim quanto a Wendy.

– Estarei aí em breve – prometo-lhe.

Deixo o meu copo de água na cozinha e volto a sair para a zona de jantar. O Brock mal parece ter tocado na sua massa PadThai desde que eu saí da sala.

– Então? – pergunta.

– Ouve – digo. – Surgiu uma emergência. Tenho... tenho de ir.

– Agora?

– Peço imensa desculpa – respondo. – Falamos amanhã à noite. Prometo.

O Brock projeta o lábio inferior.

– Millie...

– Prometo – imploro com o olhar. – E... adoraria conhecer

os teus pais. Acho que vai ser ótimo.

Essa última afirmação parece aplacá-lo.

– Sei que estás nervosa com a ideia de conhecer os meus pais – diz mas vais adorar a minha mãe. Também é de Brooklyn. Andou na Universidade de Brooklyn e também tem o mesmo sotaque que tu.

– Eu não tenho sotaque!

– Tens, sim – sorri. – Um sotaque ligeiro. É giro.

– Pois, pois...

Erguendo-se da mesa, estende-me os braços. Apesar de estar em pulgas por correr para a penthouse, deixo-o abraçar-me.

– Quero só que saibas – diz o Brock – que, seja qual for a coisa terrível que sentes que precisas de me contar sobre ti, está tudo bem. Amar-te-ei de qualquer forma.

Olho para os seus olhos azuis e consigo perceber que está a falar a sério.

– Falaremos disto em breve – prometo. – E... também te amo.

Torna-se mais fácil de cada vez que o digo.

Beija-me profundamente e, por um momento, desejo verdadeiramente não ter de partir. Mas não tenho escolha.


34

As engrenagens do elevador rangem mais do que o habitual.

Pergunto-me quantos anos tem este elevador. Li algures que começaram a ser utilizados em casas particulares nos finais dos anos 1920. Portanto, mesmo que este seja um dos primeiríssimos da história, tem, ainda assim, menos de um século. O que é reconfortante, suponho.

No entanto, um destes dias, estou certa de que todas estas velhas engrenagens vão enferrujar em pleno andamento e eu ficarei simplesmente presa neste elevador para o resto da vida.

Olho para o meu relógio. Passaram menos de vinte minutos desde que a Wendy ligou. Tentei ligar-lhe de volta para lhe dizer que estava a caminho, mas não atendeu. Temo o que vou encontrar quando chegar ao vigésimo andar.

Meu Deus, pode este elevador andar mais devagar? Finalmente, o elevador para com um rangido e as portas abrem-se. O sol desceu no céu e o apartamento está às escuras. Por que não acendeu ninguém as luzes? O que se passa aqui?

– Olá? – chamo.

Ocorre-me então um pensamento terrível.

E se Douglas está aqui? Se obrigou a Wendy a ligar-me e a pedir-me para vir, a fim de me poder castigar por a ter ajudado? Parece o tipo de coisa de que seria capaz.

Às cegas, vasculho a minha bolsa à procura do gás-pimenta. Encontro-o junto ao meu pó compacto e tiro-o, apertando-o na mão direita.

– Wendy? – grito.

Com a mão esquerda, vou ao bolso das minhas calças de ganga, onde enfiei o telemóvel. Não quero ligar à polícia, mas, ao mesmo tempo, tenho um pressentimento terrível sobre o que vou encontrar neste apartamento.

Entro na sala de estar, os meus passos no soalho altos como tiros neste silencioso e vazio apartamento. O meu coração para ao ver as manchas vermelhas no tapete. E, depois, o corpo estendido no sofá modular.

– Wendy! – exclamo.

É muito pior do que eu pensava. Douglas não anda à procura da mulher ou a tentar exercer vingança. Já a encontrou e, agora, jaz morta no sofá. Corro para ela, esperando ver um ferimento de faca ainda aberto no seu peito e uma mancha carmesim na frente do seu vestido azul-escuro. Mas não vejo nada disso.

E, então, abre os olhos.

– Wendy! – Sinto-me como se estivesse prestes a morrer de ataque cardíaco. Oxalá tivesse alguma da medicação do Brock disponível, pois o meu coração adotou um ritmo insano e irregular. – Oh, meu Deus! Pensei que estava...

– Morta? – Senta-se no sofá, e é então que percebo que o carmesim no chão é vinho tinto que se derramou de um copo tombado sobre a mesa de café. Douglas vai passar-se se eu não o limpar. Ela ri amargamente. – Oh, quem me dera.

Estava tão concentrada em perscrutar-lhe o corpo à procura de ferimentos ou sangue que não vi o novo hematoma a desabrochar no seu rosto, onde o último já quase se tinha desvanecido. Retraio-me ao vê-lo – posso apenas imaginar o que causou tal coisa.

– O seu rosto – murmuro.

– Não é o pior. – Soerguendo-se no sofá, a Wendy estremece e agarra-se à caixa torácica. – Partiu-me seguramente as costelas.

– Tem de ir ao hospital!

– Nem pensar. – Lança-me um olhar. – Mas um saco de gelo seria bem-vindo.

Corro para a cozinha e encontro um no congelador. Cubro-o com um pano da loiça e levo-lho. Ela aceita-o com gratidão, pondera por um momento onde o quer e acaba por o encostar ao peito.

– Estava à minha espera – começa, num tom pouco acima de um sussurro. – Quando chegámos à quinta da Fiona em Potsdam. Já lá estava. Ele sabia.

Abano a cabeça. Não compreendo como isto aconteceu. Contava que pudesse acabar por a encontrar, mas tão rápido?

– Não sei como me encontrou tão depressa. – Fecha os olhos, como que a tentar afastar uma dor de cabeça. –Pensava que havia a hipótese de acabar por me encontrar, mas não tão cedo. Pensei que tinha mais tempo...

– Eu sei...

– Millie – Muda de posição, o que faz o saco de gelo sair fugazmente do lugar –, disse a alguém onde fomos?

– De maneira alguma!

Bem, isso não é inteiramente verdade. Disse a uma pessoa. Disse ao Enzo.

Mas dizer ao Enzo é o mesmo que não dizer a ninguém. O Enzo jamais diria uma palavra sobre algo assim. Quando muito, tentaria protegê-la.

– Fui estúpida ao pensar que alguma vez poderia fugir dele. – Ajusta o saco de gelo. – É isto a minha vida. É mais fácil se simplesmente... aceitar.

– Não devia aceitar. – Agarro-lhe a mão e aperto-a. –Wendy, eu vou ajudá-la. Não tem de passar o resto da sua vida a suportá-lo.

– Sei que tem boas intenções...

– Não. – O meu maxilar contrai-se. – Oiça-me bem. Vou ajudá-la. Prometo.

A Wendy não diz nada. Já não acredita em mim. Mas vou resolver isto, de alguma forma.

Não deixarei Douglas Garrick sair impune depois de a magoar desta maneira.

35

Continuo a trabalhar para os Garrick.

Não disse ao Brock a verdadeira razão por que decidi ficar com eles e recusar a entrevista na sua firma, apenas que afinal precisavam de mim. Não me fez mais perguntas, mas sobretudo porque tenho andado a evitá-lo.

Da próxima vez que o vir, terei de lhe confessar a verdade sobre o meu passado. É altura. Mas isso não quer dizer que não esteja receosa, daí ter estado convenientemente «ocupada» nos últimos dias. Apesar de ter prometido explicar-lhe tudo «em breve», nunca há literalmente uma boa altura. Talvez nunca venha a haver.

Mas tenho de lhe dizer. Tem de saber a verdade antes de me apresentar aos pais, por amor de Deus.

Esta noite, estou a preparar o jantar para os Garrick. Tenho peitos de frango a assar no forno e batatas a cozer no fogão, que irei passar pelo processador de alimentos para fazer um puré de batata perfeitamente sedoso, exatamente como Douglas gosta. Sentir-me-ia tentada a cuspir-lhe, se não soubesse que a Wendy também o vai comer.

Enquanto estou a verificar o forno, a Wendy espreita para a cozinha. O seu rosto pisado parece muito melhor e já não estremece ao andar, pelo que presumo que esteja a sarar.

– O jantar está quase pronto – digo-lhe.

Ela deixa-se ficar à porta da cozinha por um momento.

– Preciso de falar consigo por um instante, Millie – diz por fim. – Pode vir à sala de estar?

Não deve haver problema em deixar a comida por alguns minutos, por isso sigo imediatamente a Wendy até à sua sala de estar e a uma secretária ao canto da divisão. Tem uma expressão estranha no rosto, e sinto um lampejo de preocupação. Há um par de dias, prometi-lhe que encontraria uma saída para a sua situação, mas ainda não cumpri essa promessa. Mas fá-lo-ei.

Estou só a tentar descobrir uma forma de o fazer sozinha.

– Descobri uma coisa no outro dia na estante do Douglas – diz-me. – Algo que gostaria que visse.

Com uma mistura de curiosidade e ansiedade, sigo-a enquanto coxeia escadas acima até uma estante no corredor. Puxa o que parece ser um dicionário e pousa-o numa prateleira vazia. Abre-o e é então que percebo que o dicionário foi completamente esvaziado.

E que tem no interior uma arma.

Tapo a boca com a mão.

– Oh, meu Deus! Isso é do Douglas?

Ela anui.

– Sabia que tinha uma arma algures em casa, mas nunca soube onde a guardava.

– Nem sequer a tranca?

– Suponho que queira ser capaz de lhe chegar rapidamente, se precisar – a Wendy ergue a arma do livro. Segura-a como alguém que nunca antes agarrou numa arma. – Isto é uma saída.

– Não. Não – reprimo a vaga de pânico no meu peito. –Acredite em mim, por mais desesperada que esteja, não quer fazer isso.

Não tenho muita experiência com armas, mas tenho muita experiência a realizar atos drásticos por desespero. E nunca, nunca mais volto a seguir por esse caminho. Como ela também não devia.

Mas a Wendy não está a ouvir. Segura a arma com as duas mãos e aponta-a ao outro lado da sala. Não tem o dedo no gatilho, mas a sua intenção é óbvia.

– Por favor, não faça isso – imploro-lhe.

– E está carregada – diz. – Pesquisei como verificar. Tem cinco balas dentro.

Não consigo parar de abanar a cabeça.

– Wendy, não quer fazer isto. Garanto-lhe.

Ela vira-se para me fitar, a maçã do rosto esquerda ainda púrpura do punho do marido, embora começando a esmorecer num tom amarelo.

– Que alternativa tenho?

– Quer passar o resto da sua vida na prisão?

– Já lá estou.

– Escute. – O mais suavemente possível, tiro-lhe a arma das mãos. Deposito-a de novo na secretária. – Não quer fazer isto. Há outra maneira.

-Já não acredito em si.

Imagino a Wendy a apontar a arma ao rosto de Douglas. Da forma como a segurava agora mesmo e o quanto tremia, provavelmente falharia mesmo de perto.

– Faz sequer alguma ideia de como disparar esta coisa?

Ela encolhe os ombros.

– Aponta-se a quem queremos matar e depois prime-se o gatilho. Não é nada de transcendente.

– É um pouco mais complicado do que isso.

Os seus olhos arregalam-se.

– Já alguma vez disparou uma arma, Millie?

Hesito por demasiado tempo. Sim, tenho alguma experiência a disparar uma arma. O Enzo estava convencido de que era uma boa competência a aprender, por isso fomos os dois algumas vezes ao campo de tiro. Fizemos um curso de segurança no manuseio de armas e obtivemos certificados. Mas nunca disparei nenhuma fora do campo de tiro. Não sou propriamente uma especialista.

– Mais ou menos.

Ela lança-me um olhar significativo.

– Millie...

– Não. – Agarro na arma e guardo-a de novo no falso dicionário. Fecho-o com um estalo. – Isso não vai acontecer.

– Mas...

O que quer que a Wendy estivesse prestes a dizer é interrompido pelo som do abrir das portas do elevador. Rapidamente, agarro no dicionário e enfio-o de novo na prateleira onde o encontrei enquanto a Wendy corre de volta para o quarto de hóspedes a uma velocidade surpreendente. Apresso-me a descer as escadas para que Douglas não perceba o que eu estava a fazer.

Douglas entra na sala de estar e parece ligeiramente surpreendido por me ver a descer as escadas. As suas densas sobrancelhas negras sobem-lhe pela testa.

– Julguei que estaria a preparar o jantar?

– E estou – garanto-lhe. – Está agora mesmo no forno.

– Compreendo... – Os seus olhos profundos estudam-me o rosto com minúcia suficiente para me fazer retorcer. –O que é o jantar, então?

– Peito de frango assado, puré de batata e cenouras glaceadas – respondo, apesar de a ementa de hoje ter sido cuidadosamente programada pelo próprio Douglas.

Douglas fica um momento a refletir.

– Não ponha batatas no prato da minha mulher. Fazem-lhe mal ao estômago.

– Está bem...

– E só meia dose de frango para ela – acrescenta. – Não tem estado bem e duvido que consiga comer muito.

Enquanto escorro as batatas que a Wendy não poderá partilhar, compreendo finalmente o porquê de ela ser tão dolorosamente magra. É o Douglas quem lhe leva a comida todas as noites. Controla cada porção que lhe entra na boca.

Além de tudo o resto, fá-la sistematicamente passar

fome. Ainda uma outra forma de a controlar, de a manter débil e de lhe matar o espírito.

A Wendy tem razão. Isto tem de acabar.

Pelo lado positivo, agora é seguro cuspir no puré de batata.


36

Quando vou para a cama, ainda estou a pensar naquela arma escondida dentro do dicionário.

A expressão nos olhos da Wendy ao mostrar-ma confundível. Está a falar a sério. Chegou a um ponto de desespero em que pensa para consigo: ou ele ou eu. E esse é um mau lugar para se estar. É então que se começam a cometer erros estúpidos.

Mais cedo do que tarde, terei de ligar ao Enzo. Ajudá-la-á melhor do que eu. Mas não posso ligar-lhe agora. É quase meia-noite e, se me vir a ligar-lhe a esta hora, pensará de certeza que é um convite sexual. Não quero que fique com a ideia errada.

Ainda que uma pequena parte de mim não tenha parado de pensar nele desde aquela noite em que fui a Albany.

Continuo zangada por ter desaparecido como desapareceu, mas não posso negar a pura alegria que senti quando saiu daquele carro. Ocorre-me agora que nunca me senti assim pelo Brock, e não estou certa de que alguma vez venha a sentir.

Mas isso não é justo para o Brock. O meu namorado tem tantas qualidades. Acima de tudo, é um homem confiável que jamais me abandonaria em tempos de necessidade. Disso tenho a certeza.

Por outro lado, não lhe pude contar nada do que se está a passar com a Wendy. A sua reação teria sido ligar imediatamente à polícia e não se envolver. O típico pensamento de advogado.

Como se lhe estivessem a arder as orelhas no bairro do lado, uma mensagem de texto do Brock aparece no meu telemóvel:

Amo-te.

Cerro os dentes. Oh, meu Deus, quantas vezes tem este homem de me dizer que me ama? Espera que o escreva de volta, mas simplesmente não me consigo obrigar a fazê-lo neste momento. Estes «amo-te» estão a manter-me refém. Assim, tiro antes uma selfie a fazer cara de beijo e envio-lha em resposta. É a modos que o mesmo que dizer amo-te, não é? Ele responde de imediato.

Estás gira. Oxalá estivesses aqui.

Oh, meu Deus, tem literalmente tudo o que me diz de ser uma espécie de jogo de culpa por não ter ido viver com ele?

Atiro o telemóvel para o lado, frustrada. Vou a levantar-me para ir escovar os dentes quando o aparelho começa a tocar. É provavelmente o Brock, tendo em conta que não respondi à sua mensagem. Vai provavelmente perguntar-me se pode vir cá. E eu terei de lhe responder que não com jeitinho.

Só que, ao olhar para o ecrã do meu telemóvel, vejo que não é o Brock. É o Douglas.

Por que está o Douglas a ligar-me à meia-noite?

Por um minuto, fico a olhar para o telemóvel, o meu coração a palpitar. Não há nenhuma boa razão para o meu patrão me estar a ligar à meia-noite. Sinto-me tentada a deixar ir para o correio de voz, mas, em vez disso, deslizo o dedo pelo ecrã para atender a chamada.

– Millie – A voz soa ligeiramente seca. –, acordei-a?

– Não...

– Ótimo – diz. – Peço desculpa por ligar tão tarde, mas achei que seria melhor dizer-lhe já. Depois desta semana, não iremos necessitar mais dos seus serviços.

– Está... está a despedir-me?

– Bem, não propriamente a despedi-la – responde. –Mais a dispensá-la. A Wendy parece estar a sentir-se melhor e gostaria de voltar a ter alguma privacidade na nossa própria casa.

– Oh...

– Não é que não tenha feito um trabalho adequado... –Caramba, obrigadinha. – É só que um casal precisa da sua privacidade. Compreende o que estou a dizer?

Percebo perfeitamente a mensagem. Não quer que eu fale com a Wendy ou que a tente ajudar.

– Compreende, não é verdade, Millie? – insiste.

– Claro – respondo, entre dentes cerrados. – É claro que sim.

– Ótimo. – O seu tom aligeira. – E, só para lhe agradecer por tudo o que fez por nós, gostaria de lhe oferecer um par de bilhetes para um jogo dos Mets. Gostaria disso, não gostaria?

– Sim – respondo lentamente. – Gosto dos Mets...

– Perfeito! Está tudo resolvido, então.

– Ahã.

– Boa noite, Millie. Durma bem.

Ao desligar a chamada, sinto ainda uma inquietação. Algo me estava a incomodar naquela conversa – algo que não consigo identificar ao certo. Deixo-me cair de novo na cama e é então que olho para a T-shirt demasiado grande que uso para dormir.

É uma T-shirt dos Mets.

Ergo o olhar para a janela à minha frente. As persianas estão fechadas, como sempre. Corro para a janela, enfio os dedos entre os estores e olho para a rua. Está completamente às escuras. Não vejo nenhum homem ominoso no exterior. Não está ninguém a olhar para a minha janela com uns binóculos.

Talvez tenha sido apenas uma coincidência. Quer dizer, sou de Nova Iorque. Quem não gosta dos Mets?

Mas não creio que fosse. Havia algo no seu tom quando falou em oferecer-me os bilhetes para os Mets. Gostaria de lhe oferecer um par de bilhetes para um jogo dos Mets. Gostaria disso, não gostaria?

Oh, meu Deus, e se me consegue ver aqui dentro?

Mas não é como se fosse um segredo enorme eu usar uma camisola dos Mets para dormir. Posso ter aberto a porta com ela vestida, a dada altura. E todos os namorados que tive sabem dela, ainda que essa lista só inclua o Brock e o Enzo.

Ainda assim – tenho mais algumas camisolas com que também durmo. Douglas sabia o que eu tinha vestido esta noite.

Jurei à Wendy que jamais desistiria dela, mas tenho de admitir: estou totalmente aterrada. As persianas estão corridas. Nunca as abro à noite, muito menos quando estou a vestir a minha camisola de dormir.

Tremem-me as mãos enquanto agarro no telemóvel e envio uma mensagem ao Brock:

Queres passar por cá?

Como sempre, responde de imediato:

Estarei aí assim que puder.


37

Assim que acabar de dobrar esta roupa, vou encontrar-me com o Brock para jantar.

Douglas enviou-me uma mensagem de texto a combinar uma hora para a minha última sessão de limpezas. Depois disto, terei de procurar um novo emprego, por isso espero que me dê uma gorjeta enorme. Ainda que não tenha grandes esperanças.

Ainda bem que esta será a última vez que trabalho para os Garrick. Não desisti da Wendy, mas não quero estar mais nesta casa. Douglas Garrick dá-me calafrios, e quanto mais me puder afastar dele, melhor. Farei o que puder para ajudar a Wendy do exterior.

Há algo mais a pesar intensamente na minha mente esta noite: assim que tiver terminado aqui, o Brock e eu vamos ter a Conversa. Das últimas vezes que o vi, evitámos cuidadosamente quaisquer discussões sérias, mas isso já se prolongou o suficiente. Vamo-nos encontrar no seu apartamento e vou contar-lhe tudo. Um Guia Completo para a Milite. E talvez tudo termine ou talvez ele esteja bem com tudo. Só há uma maneira de descobrir.

A maioria da roupa dos Garrick vai para a limpeza a seco, portanto é só uma pequena pilha de camisolas interiores, roupa interior e meias, sendo que a maioria nem sequer parecia suja quando a atirei para a máquina de lavar. Enquanto organizo e arrumo tudo nas devidas gavetas, não consigo parar de pensar na arma escondida na estante.

Fiz a Wendy jurar que não faria nada estúpido, mas, apesar de ter prometido, não acredito inteiramente nela. Chegou ao fim das suas forças. Pude ver-lhe o desespero no rosto pisado enquanto segurava aquela arma nas mãos. Da próxima vez que Douglas a irritar, pode muito bem matá-lo.

Não que eu tivesse algum problema com o sacana ser despachado. Mas, se ela o fizer, vai para a prisão. Nunca foi a nenhum médico ou hospital para documentar a forma como era maltratada e, mesmo estando eu disposta a jurar o que sei em tribunal, pode não ser suficiente.

Decidi oficialmente que vou ligar ao Enzo amanhã. Talvez o melhor seja afastar-me por inteiro desta situação –sobretudo porque já nem estarei a trabalhar aqui – e deixá-lo lidar com ela. Afinal, conhece todos «os tipos». Fazia sentido sermos uma equipa quando namorávamos, mas a verdade é que é difícil estar perto dele agora.

O Enzo ajudará a Wendy. Sei que sim.

Estou mesmo a acabar de tratar da roupa quando oiço um estrondo vindo do fundo do corredor. Já antes ouvi algo assim aqui. A diferença é que agora sei que é o som da Wendy a ser magoada.

Saio do quarto principal para ver o que se passa. Como sempre, a porta do quarto de hóspedes está fechada, mas consigo ouvir a voz de Douglas, vinda do interior.

– Acabo de ver esta cobrança no cartão de crédito! – vocifera, ao fundo do corredor. – O que é isto? Oitenta dólares por um almoço no La Cipolla?

Nunca o ouvi falar assim. Não deve saber que estou na casa. Disse-me para sair mais cedo, por isso deve pensar que já parti e que pode dizer-lhe o que quiser sem que eu oiça.

– Eu... peço desculpa. – A Wendy parece frenética. – Encontrei-me com a minha amiga Gisele para almoçar, que está entre empregos, por isso ofereci-me para pagar.

– Quem te disse que podias sair de casa?

– O quê?

– Quem te disse que podias sair de casa, Wendy?

– Eu... eu só... Desculpa, é que é tão difícil estar sempre dentro de casa e...

– Alguém podia ter-te visto! – reclama. – Podiam ter-te visto o rosto, e o que pensariam de mim então?

– Eu... Lamento muito, eu...

– Aposto que lamentas. Não pensas em nada, pois não? Queres que as pessoas pensem que sou um monstro!

– Não. Isso não é verdade. Juro.

Faz-se um longo silêncio no quarto. Acabou a discussão? Ou preciso de irromper por ali adentro ou de chamar a polícia? Mas não, não posso chamar a polícia – a Wendy disse-me que isso estava fora de questão.

O que eu não daria por um amigo na Polícia de Nova Iorque...

Em bicos de pés, chego-me o mais perto que me atrevo do quarto, procurando ouvi-los. Quando estou prestes a bater à porta, Douglas recomeça a falar, e desta vez parece ainda mais zangado.

– É um restaurante terrivelmente romântico para ires com uma amiga, não é? – pergunta.

– O quê? Não! Não é... romântico...

– Consigo sempre perceber quando estás a mentir, Wendy. Com quem tiveste realmente esse almoço extravagante?

– Já te disse! Com a Gisele.

– Certo. Agora diz-me a verdade. Foi com o mesmo tipo que te levou para Norte?

Chego-me mais perto do quarto. A Wendy está a soluçar.

– Foi com a Gisele – geme.

– Isso é treta – silva. – Não vou permitir que a vagabunda da minha mulher se ande a passear pela cidade com outro homem! É humilhante.

Então, um estrondo doentio emerge do interior do quarto. E a Wendy grita.

Não posso deixar que a magoe. Tenho de fazer algo. Só que, de repente, o quarto ficou completamente silencioso.

E, então, oiço um gorgolejar vindo do interior do espaço.

Como de uma mulher a ser estrangulada.

Já não há margem para perder tempo. O que quer que esteja a acontecer naquele quarto, tenho de o impedir.

É quando me lembro da arma.


38

Lembro-me exatamente de onde está.

Corro para a estante e tiro o dicionário. A arma está aninhada no mesmo espaço escavado onde se encontrava há dois dias, quando a Wendy a encontrou. Como eu sabia que estaria. Com mãos ligeiramente trémulas, agarro na arma.

Enquanto olho fixamente para o revólver na minha mão, pergunto-me se estarei a cometer um erro grave. Embora esteja a acontecer algo terrível naquele quarto, não sei se melhorará a situação juntar uma arma à mistura. Quando existe a hipótese de alguém ser alvejado, as coisas rapidamente podem descarrilar.

Mas eu não vou alvejar Douglas. Isso está fora de questão. A minha única intenção é assustá-lo. Afinal, não há nada mais assustador do que uma arma. Conto com o fator surpresa para pôr termo à situação.

Com o revólver aninhado na mão, apresso-me a descer novamente o corredor escuro até ao quarto de hóspedes. A discussão cessou e tudo está em silêncio no interior do quarto. E, de alguma forma, isso é o mais assustador de tudo.

Pondero bater, mas então decido tentar o puxador. Roda facilmente na minha mão. Enquanto abro a porta, uma voz fala-me do fundo da minha cabeça:

Pousa a arma, Millie. Lida com isto sem ela. Estás a cometer um erro terrível.

Mas é demasiado tarde.

Abro a porta do quarto de hóspedes. A visão diante dos meus olhos deixa-me sem fôlego. Douglas e Wendy. Tem-na encostada à parede, as mãos apertadas sobre a sua garganta, e o rosto da Wendy começa a ficar azul. Tem a boca aberta para gritar, mas nenhum som consegue emergir.

Oh, meu Deus, está a tentar matá-la.

Não sei se a vai estrangular ou partir-lhe o pescoço com as próprias mãos, mas tenho de fazer alguma coisa e já –não posso ficar simplesmente aqui parada e deixar que isto aconteça. Mas aprendi com os erros do passado. Posso ter uma arma, mas não tenho a menor intenção de o matar. A ameaça deve ser suficiente. E depois direi à polícia o que vi.

Tu consegues, Milite. Não o magoes. Obriga-o apenas a soltá-la.

– Douglas! – grito-lhe. – Largue-a!

Espero que se afaste dela, cheio de falsas desculpas e explicações. Mas, de alguma forma, os seus dedos não cedem. A Wendy solta outro gorgolejo.

Por isso, agarro na arma e aponto ao peito.

– Falo a sério. – A minha voz treme. – Largue-a ou disparo.

Mas Douglas, por alguma razão, não ouve o que eu lhe digo. Tem o olhar desvairado e parece decidido a acabar com isto – aqui e agora. A Wendy parou de o arranhar e o seu corpo ficou lânguido. O tempo para negociar acabou. Se eu não fizer algo nos próximos segundos, vai matá-la.

E eu terei deixado que isso acontecesse.

-Juro por Deus – crocito –, ou a larga ou disparo!

Mas não a larga. Continua simplesmente a apertar.

Não tenho escolha. Só há uma coisa a fazer.

Primo o gatilho.


39

Douglas fica frouxo segundos depois de o tiro ecoar pelo apartamento. É mais alto do que eu esperava, suficientemente forte para os vizinhos terem certamente ouvido. Bem, talvez não. As paredes e tetos são provavelmente insonorizados num sítio como este, e temos o piso por baixo de nós como tampão.

Pelo lado positivo, os dedos de Douglas escorregam do pescoço da Wendy, que cai de joelhos, tossindo e chorando e agarrando-se à garganta. O marido jaz ao seu lado no chão, o corpo inerte. Ao fim de um segundo, uma poça carmesim começa a alastrar-se pela sumptuosa alcatifa.

Oh, não.

Outra vez não.

A arma cai-me dos dedos e aterra no chão ao meu lado com um forte baque. Sinto-me completamente paralisada. Douglas Garrick não se mexe de todo, e a poça debaixo dele continua a crescer. A minha intenção era atingi-lo no ombro, o suficiente para o ferir e o obrigar a tirar as mãos da Wendy, mas não o suficiente para o matar.

Parece que falhei.

A Wendy esfrega os olhos lacrimosos. Miraculosamente, ainda está consciente. Ajoelha-se ao lado do marido, pondo-lhe uma mão no pescoço, sobre a artéria carótida. Mantém-na lá por um momento, erguendo depois os olhos para mim.

– Não tem pulsação.

Oh, meu Deus!

– Está morto – sussurra, em voz rouca. – Está realmente morto.

– Não queria matá-lo – gaguejo. – Estava... estava só a tentar fazê-lo tirar-lhe as mãos de cima. Nunca foi minha intenção...

– Obrigada – diz a Wendy. – Obrigada por me salvar a vida. Sabia que o faria.

Por um momento, ficamos apenas a olhar uma para a outra. É certo que lhe salvei a vida. Tenho de me lembrar disso. É o que terei de explicar à polícia quando chegar.

– Tem de ir – diz a Wendy, levantando-se, apesar de as suas pernas parecerem trémulas. – Nós... podemos limpar as impressões digitais da arma. Isso deve resultar, não deve? Sim, sim, estou certa de que resultará. Esperarei um par de horas para ligar à polícia, e depois digo-lhes... Oh! Posso dizer que pensei que o Douglas era um intruso e lhe dei um tiro por acidente. Foi tudo um acidente, sabe? Acreditarão nisso. De certeza que sim.

Fala aceleradamente – está em pânico. Por mais que adorasse ver-me livre das consequências, há um enorme buraco na sua história.

– Mas o porteiro viu o Douglas entrar no prédio.

Ela abana a cabeça.

– Não, não viu. Alguns dos residentes têm acesso à entrada das traseiras, o Douglas entra sempre por lá.

– Há lá alguma câmara?

– Não, nenhuma.

– E quanto às dos elevadores?

– Essas? – solta um resfolego. – São meramente decorativas. Uma avariou há cinco anos e a outra está fora de serviço há pelo menos dois.

Poderia isto realmente funcionar? Acabo de alvejar Douglas Garrick a sangue-frio. Haverá alguma hipótese de eu poder sair disto sem consequências? Por outro lado, não seria a primeira vez.

– Agora, vá embora. – A Wendy passa por cima do corpo de Douglas, evitando cuidadosamente a poça de sangue. – Eu assumo a responsabilidade por isto. É culpa minha. Fui eu que a trouxe para esta situação e não a vou arrastar comigo para o fundo. Saia daqui enquanto ainda pode.

– Wendy...

– Vá! – Os seus olhos parecem quase tão desvairados como os de Douglas quando tinha as mãos a apertar-lhe o pescoço. – Por favor, Millie. É a única maneira.

– Está bem – digo baixinho. – Mas... se precisar de mim...

Ela estende a mão para me apertar o braço.

– Acredite, já fez o suficiente – hesita. – Devia apagar todas as nossas mensagens de texto. As minhas e também as do Douglas. Por via das dúvidas.

É uma ideia extremamente boa. A Wendy e eu discutimos algumas coisas que eu não gostaria que a polícia soubesse se começarem a investigar este homicídio. E talvez seja melhor que não vejam as mensagens entre mim e Douglas a enunciar que esta seria a minha última sessão. Agarro na minha bolsa e, com as mãos quase demasiado trémulas para o fazer, consigo, ainda assim, apagar as conversas com ambos do meu telemóvel.

– Não tente contactar-me – diz a Wendy. – Eu trato disto, Millie. Não se preocupe.

Começo a protestar, mas depois fecho a boca. Não adianta. A Wendy já decidiu que quer arcar com as consequências, e é do meu interesse deixá-la. Despeço-me da penthouse, sabendo que nunca mais voltarei a pôr os pés neste lugar. A última coisa que vejo ao sair do quarto é a Wendy de pé junto ao cadáver de Douglas.

E está a sorrir.


40

Durante toda a viagem de regresso a casa, não consigo parar de tremer.

Todos no metro devem achar que sou louca, pois, apesar de estar cheio, ninguém se sentou ao meu lado durante o regresso ao Bronx. Basicamente, passei toda a viagem abraçada a mim mesma e a balançar para a frente e para trás.

Não posso acreditar que o matei. Não era minha intenção.

Não, isso não é justo. Alvejei o homem no peito. Seria mentira dizer que não o queria morto. Mas esta era a última forma como queria que as coisas se desenrolassem quando vi aquela arma no dicionário.

Vai ficar tudo bem, ainda assim. Já passei por isto antes. A Wendy cingir-se-á à sua história e a polícia não fará ideia que eu estive envolvida.

Agora, só tenho de lidar com ter morto um homem.

Outra vez.

Mal saio da estação de metro, o meu telemóvel vibra. Uma chamada não atendida. Tiro-o da bolsa, quase à espera que seja a Wendy, mas, em vez disso, o ecrã está cheio de chamadas perdidas e mensagens de voz do Brock.

Oh, não! Era suposto jantarmos esta noite. Era suposto ser hoje que íamos ter a conversa. Bem, isso já não vai acontecer.

Por um momento, fico a olhar para o nome do Brock no meu telemóvel, sabendo que tenho de lhe ligar, mas não querendo fazê-lo. Finalmente, carrego no seu nome. Atende quase de imediato.

– Millie? – Parece uma combinação de fúria e preocupação. – Onde estás?

– Eu... – desejo ter tirado um momento para pensar numa desculpa válida antes de lhe ligar. – Não me sinto bem.

– Oh, a sério? – Parece cético. – Qual é o problema, ao certo?

– Tenho... tenho um vírus estomacal. – Quando não diz nada, decido juntar mais alguns pormenores. – Surgiu de repente. Sinto-me péssima. Simplesmente não paro de vomitar, sabes? E, além disso... bem, sai pelos dois extremos. Acho que preciso de ficar em casa esta noite.

Preparo-me para o ouvir contestar a minha história falsa, mas, em vez disso, a sua voz suaviza-se.

– Não pareces bem.

– Pois...

– Podia passar por aí – oferece-se. – Levar-te uma canja de galinha? Esfregar-te as costas?

Tenho o namorado mais doce de sempre. É simplesmente tão boa pessoa. E, assim que isto acabar, vou decididamente compensá-lo. Amo-o mesmo. Acho eu.

– Não, mas obrigada – murmuro ao telemóvel. – Preciso só de estar sozinha e recuperar. Fica para a próxima?

– Claro – concorda. – Põe-te simplesmente melhor.

Ao desligar a chamada, também me sinto culpada pela forma como estou a tratar o Brock, além de tudo o resto. Mas não quero arrastá-lo para esta confusão. A única pessoa com quem poderia falar sobre isto é o Enzo, e isso é má ideia por múltiplas razões. Preciso simplesmente de ir para casa e de tentar não pensar em nada disto. Em breve, tudo terá ficado para trás.


41

Acordo a sentir-me como se tivesse sido atropelada por um camião, e tenho a têmpora direita a latejar.

Não consegui dormir esta noite. Andei às voltas na cama e, sempre que começava a adormecer, via o cadáver de Douglas caído no chão do apartamento. Finalmente, dirigi-me tropegamente à casa de banho e tomei um dos comprimidos para dormir que lá tenho guardados. Mergulhei então num sono cheio de sonhos, assombrada pelos olhos mortos do meu antigo patrão a fitar-me.

Viro-me na cama, tocando no ninho de ratos que é o meu cabelo. O latejar na minha têmpora intensifica-se e demoro um momento a perceber que há também batidas a vir da porta da frente.

Está alguém à porta.

Consigo arrastar-me para fora da cama e embrulhar o corpo num roupão.

– Já vou! – crocito, esperando que as batidas possam parar. Mas quem quer que esteja à porta é persistente.

Espreito pelo óculo. Está lá um homem, com uma imaculada camisa branca e uma gravata preta sob uma gabardina.

– Quem é? – pergunto.

– Sou o detetive Ramirez, da Polícia de Nova Iorque –responde a voz abafada do homem.

Oh, não!

Mas, bem, não há razões para entrar em pânico. O meu patrão está morto, por isso é óbvio que quererão fazer– me algumas perguntas. Não há motivos para preocupação.

Destranco a porta e entreabro-a. Não pode entrar aqui sem a minha explícita autorização e não tenho a menor intenção de lha dar. Não que tenha algo a esconder, mas nunca se sabe.

– Menina Calloway? – pergunta, numa voz surpreendentemente profunda. Baseando-me nos papos sob os seus olhos e na proporção de grisalho para preto no seu cabelo curto, situá-lo-ia nos cinquenta e poucos anos.

– Olá – respondo, hesitante.

– Perguntava-me se lhe podia fazer algumas perguntas – diz.

Esforço-me ao máximo por manter o meu rosto inexpressivo.

– Sobre o quê?

Hesita, perscrutando-me o rosto.

– Conhece um homem chamado Douglas Garrick?

– Sim... – Não há nenhum mal em admitir isso. Seria relativamente fácil provar que eu trabalhei para os Garrick.

– Foi assassinado ontem à noite.

– Oh! – Tapo a boca com a mão, tentando parecer surpreendida. – Isso é horrível.

– Esperava que pudesse ir à esquadra e responder a algumas perguntas.

O rosto do detetive Ramirez é uma máscara. Os seus lábios são uma linha reta, nada revelando. Mas ir à esquadra? Isso parece sério. Por outro lado, não está a puxar de um par de algemas e a ler-me os direitos. De certeza que estão só a encarar o caso de forma extra séria por o Douglas ser tão rico e importante.

– Quando quer que vá?

– Agora – responde sem hesitar. – Posso dar-lhe boleia.

– Tenho... tenho de ir?

Não tenho obrigação de ir se não estiver detida – conheço demasiado bem os meus direitos. Mas gostaria de ouvir o que tem a dizer.

– Não tem – acaba o detetive por responder. – Mas eu recomendá-lo-ia vivamente. De uma forma ou de outra, vamos ter de conversar.

Sinto um mal-estar no estômago. Isto parece ser algo mais do que apenas algumas perguntas casuais sobre o meu empregador.

– Gostaria de ligar ao meu advogado – digo.

Ramirez mantém os olhos nos meus.

– Não creio que seja necessário, mas está no seu direito.

Não sei que tipo de perguntas me vão fazer, mas não me agrada a ideia de estar na esquadra sem um advogado presente, diga o que disser. Infelizmente, há apenas um advogado que conheço suficientemente bem para lhe poder ligar neste momento. E esta vai ser uma conversa difícil.

Ramirez espera enquanto eu vou buscar o meu telemóvel e seleciono o número do Brock. Já deve estar no trabalho, por esta altura, mas atende ao fim de poucos toques. Passa a maior parte do dia à sua secretária e raras vezes vai a tribunal.

– Olá, Millie – diz. – Estás bem?

– Hã – respondo eu. – Não propriamente...

– O vírus estomacal piorou?

– O quê?

Por um momento, o Brock fica em silêncio.

– Disseste-me ontem à noite que tinhas um vírus estomacal.

Oh, certo. Quase me esquecia da mentira que lhe contei para não ir ao seu apartamento.

– Sim, isso melhorou, mas preciso da tua ajuda com outra coisa. Algo importante.

– Claro. Do que precisas?

– Então, hã... – baixo a voz para que Ramirez não me consiga ouvir. – Sabes o meu antigo patrão, Douglas Garrick? Na verdade, foi... foi assassinado ontem à noite.

-Jesus – arqueja o Brock. – Isso é horrível, Millie. Sabem quem foi?

– Não, mas... – lanço um olhar a Ramirez, que me observa. – Querem interrogar-me na esquadra.

– Oh, uau. Acham que sabes algo importante?

– Suponho. Ainda que não saiba, na verdade. Mas, enfim... sentir-me-ia melhor se tivesse um advogado presente comigo – pigarreio. – Ou seja, tu.

– Sim, claro. – Quero estender os braços pelo telefone e dar-lhe um abraço. – Posso encontrar-me lá contigo assim que terminar umas coisas. De certeza que vai correr tudo bem, mas de bom grado estarei lá para ti.

Enquanto anoto a morada da esquadra onde o detetive Ramirez me irá interrogar, não posso deixar de pensar para comigo que o Brock e eu não tardaremos a ter a Conversa que tencionávamos começar ontem à noite, afinal.


42

Quando chego à esquadra da polícia em Manhattan, estou verdadeiramente apavorada. O detetive Ramirez tentou fazer conversa durante a via-; carro, mas eu respondi-lhe sobretudo em monossílabos e grunhidos. Mesmo enquanto falava sobre o tempo, deu-me a sensação de que andava à caça de informação e não quis dar-lhe nada.

Mas, ao chegarmos à esquadra, o Brock está à minha espera. Veste o seu fato cinzento e aquela gravata azul que faz os seus olhos parecerem ainda mais azuis. Sorri ao ver-me entrar com o detetive, não aparentando estar minimamente preocupado. Isso provavelmente irá mudar muito em breve.

– Aquele ali é o meu advogado – digo a Ramirez. – Gostaria de falar com ele em privado antes de ser interrogada.

Ramirez anui secamente.

– Vamos encaminhá-los para uma sala para conversarem e, quando estiver pronta, gostaria de lhe fazer umas perguntas.

Conduz-me a uma pequena sala quadrada com uma mesa de plástico e algumas cadeiras também de plástico a rodeá-la. Não entrava numa sala de interrogatório há anos, e a visão causa-me um aperto no peito. Sobretudo quando o detetive me senta numa das cadeiras e me deixa ali sozinha com a porta fechada. Pensava que o Brock ia entrar comigo, mas parece estar ocupado no exterior. Pergunto-me o que lhe estarão a dizer.

Passo quase outros quarenta minutos sozinha na sala, num pânico crescente. Quando o rosto familiar do Brock surge à porta, quase desato a chorar.

– Por que demoraste tanto? – exclamo.

O Brock tem uma expressão conturbada no rosto. Parece um pouco rígido ao instalar-se na cadeira diante de mim. Há uma cratera entre as suas sobrancelhas.

– Millie – diz. – Estive a falar com o detetive lá fora. Estão relutantes em dizer-me grande coisa, mas isto não é um interrogatório de rotina. És a principal suspeita.

Fico a olhar para ele. Como pode ser? A Wendy disse à polícia que foi ela que alvejou o Douglas. Estão a duvidar da sua história? Devia ser um caso simples.

A não ser que...

– Têm um mandado de busca para o teu apartamento –diz-me. Um mandado? – Têm lá uma equipa agora mesmo.

Estão a fazer buscas no meu apartamento? Não posso imaginar o que

procuram. Não tenho lá nada que seja minimamente suspeito. Felizmente, não sujei de sangue as minhas roupas ontem à noite. Verifiquei.

– Por que haveriam de pensar que o mataste? – O Brock abana a cabeça. – Não faz sentido.

É agora. Tenho de lhe falar do meu passado. Se vai agir como meu advogado, precisa de saber. Caso contrário, passará por idiota.

– Escuta – digo-lhe. – Há algo que precisas de saber sobre mim.

Arqueia as sobrancelhas na minha direção, expectante.

É tão difícil. Amaldiçoo-me por não ter dito nada mais cedo. Agora que estou a fazer isto, porém, lembro-me do porquê de o ter adiado durante tanto tempo.

– Sabes, é que eu tenho... registo criminal.

– Tens o quê? – O seu maxilar parece estar prestes a desencaixar-se. – Registo criminal? Quer dizer que estiveste presa?

– Sim. É mais ou menos isso que registo criminal significa.

– Por que?

E agora vem a parte difícil.

– Foi por homicídio.

O Brock parece estar a uns dois segundos de cair para o lado – espero que o seu coração esteja bem.

– Homicídio?

– Foi em legítima defesa – alego, o que não é inteiramente verdade. – Estava um homem a atacar a minha amiga e eu impedi-o. Era adolescente, na altura.

Ele lança-me um olhar.

– Não se vai para a prisão por legítima defesa.

– Algumas pessoas vão.

Não parece acreditar em mim, mas não vou entrar em grandes pormenores sobre o rapaz que estava a tentar violar a minha amiga. Sobre como fiz o que tinha de fazer para o parar, apesar de os procuradores terem feito parecer que fui longe de mais.

– Não admira que nunca tenhas tirado o teu curso superior – murmura para consigo. – Sempre disse a mim mesmo que tinhas apenas despertado tarde.

– Desculpa. – Baixo os olhos. – Devia ter-te contado.

– Parece-te, caramba?

– Desculpa – repito. – Mas tinha medo que, se te dissesse, olhasses para mim como... bem, da maneira como estás a olhar agora mesmo.

O Brock passa uma mão pelo cabelo.

-Jesus, Millie. Eu só... Sabia que havia algo de que não me querias falar, mas nunca imaginei...

– Pois – murmuro.

– Muito bem – diz, afrouxando um pouco a gravata azul. – Muito bem, tens registo criminal. Pondo isso de parte por um momento, por que acham que mataste o Douglas Garrick?

Não posso responder a essa pergunta, pois não sei o

que a Wendy disse à polícia. Ainda que tudo o que eu diga ao Brock seja supostamente confidencial, não me consigo obrigar a contar-lhe o que aconteceu ontem à noite.

– Não faço ideia.

Inclina a cabeça, pensativo.

– Disseste-me ontem à noite que estavas doente. Saíste mais cedo do apartamento?

– Bem, acabei o meu trabalho – respondo cautelosamente, sabendo que o porteiro pode confirmar quando saí do apartamento. – Mas, como não me estava a sentir bem, fui direta para casa. Já estava quase a chegar quando falámos ao telefone.

O Douglas... nem sequer estava lá quando deixei o apartamento.

– Bem. – O Brock esfrega o queixo. – Estão só a arranjar-te dificuldades por causa do teu registo criminal. Vamos resolver isto.

Quem me dera ter a sua confiança.


43

Acontece que Ramirez não pode falar comigo de imediato, o que suspeito ser alguma espécie de tática para me quebrar. O Brock tem de atender uma chamada do trabalho, pelo que me deixa sozinha na sala de interrogatório, onde passo a hora seguinte num silencioso pânico.

Há já mais de duas horas que estou na esquadra quando Ramirez entra finalmente para falar comigo, seguido de perto pelo Brock. Este senta-se ao meu lado e aperta-me rapidamente a mão por baixo da mesa. É reconfortante saber que não me odeia totalmente, apesar da descoberta do meu registo criminal. Embora o dia seja ainda uma criança.

– Obrigado pela sua paciência, menina Calloway – diz o detetive. A sua expressão continua a ser completamente neutra. – Tenho algumas perguntas para si sobre o senhor Garrick.

– Está bem – aquiesço. Estamos a ser gravados, por isso mantenho um tom calmo e comedido.

– Onde esteve ontem à noite? – pergunta-me Ramirez.

– Fui ao apartamento dos Garrick fazer algumas limpezas ligeiras e tratar da roupa e a seguir fui para casa.

– A que horas saiu do apartamento?

– Por volta das seis e meia – respondo.

– E falou com o senhor Garrick enquanto lá esteve? Abano a cabeça, lembrando-me do que a Wendy me disse. Temos simplesmente de manter as nossas histórias coesas e devemos ficar bem.

– Não.

Ramirez parece surpreendido com a minha resposta.

– Então, o senhor Garrick não lhe pediu para se encontrarem no apartamento ontem à noite?

Pestanejo, confusa.

– Não...

– Menina Calloway. – Os olhos do detetive parecem escurecer enquanto me fita. – Qual é a sua relação com Douglas Garrick?

– A minha relação? – Olho para o Brock, que está de sobrolho franzido. – É o meu empregador. Bem, ele e a mulher, a Wendy.

– Têm uma relação sexual?

Quase me engasgo.

– Não!

– Nem uma vez?

Quero estender os braços e abanar o detetive, mas, felizmente, o Brock intervém.

– A menina Calloway já respondeu à sua pergunta. Não tem nenhum tipo de relacionamento com o senhor Garrick além do puramente profissional.

O detetive Ramirez agarra na pasta que pousou ao seu lado na mesa. Tira um bloco de papéis agrafados, que faz deslizar na minha direção.

– Encontrámos um telemóvel pré-pago na gaveta da cómoda do senhor Garrick. Essas foram as mensagens de texto trocadas entre o telemóvel pré-pago e o seu.

Agarro nos papéis e começo a examiná-los enquanto o Brock espreita por cima do meu ombro. Reconheço as mensagens. São as que Douglas me enviou ao longo dos últimos meses para confirmar os meus dias de trabalho. Mas, fora do contexto, parecem adquirir um sentido diferente.

Passa lá por casa esta noite ?

Vemo-nos logo à noite.

Venha esta noite.

Além do mais, todas as minhas mensagens sobre compras e roupa desapareceram. Cada mensagem parece envolver o planeamento de encontros. Os olhos do Brock saltam-lhe das órbitas ao ler as mensagens de texto.

– Sim, são as nossas mensagens – confirmo. – Mas são todas sobre o trabalho.

– O senhor Garrick enviava-lhe mensagens sobre o trabalho de um telemóvel pré-pago?

Cerro os dentes.

– Não sabia que era um telemóvel pré-pago. Pensava que era simplesmente o seu telemóvel normal.

– Compreendo – diz Ramirez.

– Além do mais – acrescento havia outras mensagens. Maioritariamente sobre compras e roupa. Não estão aqui... parecem ter sido apagadas.

– Tem as mensagens no seu telemóvel?

– Não... – Porque a Wendy me disse para as apagar. – Livrei-me de todas as mensagens.

– Porquê?

– Por que não haveria de o fazer? – Solto uma risada que soa demasiado aguda. – Quer dizer, o detetive guarda todas as mensagens que recebe?

Provavelmente, sim. Provavelmente, tem no seu telemóvel mensagens de texto que remontam há dez anos. Embora deva admitir que jamais teria apagado aquelas mensagens, se a Wendy não me tivesse dito para o fazer.

– Além disso – continua –, havia chamadas feitas para si a horas tão tardias como a meia-noite. Está a dizer que o

Seu patrão lhe ligava à meia-noite?

– Só aconteceu uma vez – respondo debilmente.

Reconheço quão fraco tudo isto soa. Não faz sentido –

por que andava Douglas a enviar-me mensagens de texto de um telemóvel pré-pagol Não é como se me estivesse a preparar para arcar com as culpas pelo seu próprio homicídio. Olho para o Brock, que ficou estranhamente silencioso na pior altura possível.

– Além do mais... – Ramirez abre novamente a pasta. Oh, meu Deus, há mais? Como pode haver mais? – Reconhece isto?

É uma granulosa fotografia impressa de uma pulseira. Reconheço-a como a mesma pulseira que Douglas ofereceu a Wendy depois de lhe ter posto aquele olho negro.

– Sim – respondo. – É a pulseira da Wendy.

Ramirez arqueia as sobrancelhas.

– Então por que a encontrámos num guarda-joias no seu apartamento?

– Ela... ela deu-ma.

As sobrancelhas do detetive aproximam-se ainda mais da linha do couro cabeludo.

– A Wendy Garrick deu-lhe uma pulseira de diamantes de dez mil dólares?

Uma pulseira de dez mil dólares? Foi isso que aquela pulseira custou? Tive algo no valor de dez mil dólares no meu pequeno e miserável guarda-joias?

– Disse-me que tinha sido um presente do marido – digo.

– E quanto à inscrição? – Tira ainda outra fotografia da pasta e passa-ma. – Parece-lhe familiar?

A inscrição que eu tinha lido na pulseira da Wendy está agora ampliada na imagem, pelo que tanto eu como o Brock a podemos ler claramente.

Vara W. És minha para sempre. Com amor, D.

– Certo – digo eu. – Para W. Para Wendy.

Ramirez bate na foto.

– O seu nome não começa por W? Wilhelmina?

– Eu... – Subitamente, sinto a boca seca. Espero que o Brock intervenha e proteste contra esta linha de interrogatório, mas continua mudo, também à espera de ouvir a minha resposta. – Respondo sempre por Millie.

– Mas o seu nome é Wilhelmina.

– Sim...

– Além do mais... – Oh, não, há mais? Como pode haver mais? Mas, outra vez, estende a mão para aquela estúpida pasta. Tira outra fotografia impressa. – Isto foi um presente do senhor Garrick?

Tiro-lhe a fotografia das mãos. É o vestido que Douglas me pediu para devolver. Mas depois nunca me deu nenhum talão nem me disse de onde era. Com tanta coisa a acontecer, esqueci-me completamente dele. Por isso tem estado apenas guardado num saco para presentes dentro do roupeiro do meu quarto.

– Não – respondo debilmente, embora possa já ver onde isto vai dar. – O senhor Garrick pediu-me para devolver o vestido.

– Então, por que estava há mais de um mês no seu quarto?

– Ele... nunca me deu o talão.

Nem consigo olhar para o Brock. Sabe Deus que pensamentos lhe estarão a passar pela cabeça. Quero assegurar-lhe que isto é tudo um mal-entendido terrível, mas não posso ter essa conversa com o detetive na sala.

– Olhe – digo. – Eu ia devolvê-lo. Pedi-lhe o talão e ele disse que mo enviava, mas acabámos os dois por nos esquecer.

– Menina Calloway – diz Ramirez –, sabia que esse vestido foi comprado na Oscar de La Renta por seis mil dólares? Acha realmente que se esqueceria de o devolver?

Santo Deus...

Arrisco um rápido olhar na direção do Brock. Tem uma expressão vidrada e abana ligeiramente a cabeça. Trouxe-o para ser meu advogado, mas está a revelar-se completamente inútil.

– Além do mais – acrescenta Ramirez. Oh, não. Não pode haver mais nada. Não aceitei certamente mais nenhuma oferta dos Garrick. Não há mais nada que possa tirar

daquela pasta. – Passou a noite num motel com o Douglas Garrick na semana passada?

– Não! – exclamo.

Pigarreia.

– Então não deu entrada num motel em Albany na quarta-feira passada enquanto o senhor Garrick tinha lá uma reunião de negócios, nem pagou a noite em dinheiro?

Abro a boca, mas não sai nenhum som.

– Na quarta-feira passada? – explode o Brock. – Era o dia em que nos devíamos encontrar para jantar e tu deixaste-me pendurado! Era aí que estavas?

Não posso mentir. Dei a minha carta de condução ao funcionário do motel.

– Sim, reservei um quarto num motel em Albany. Mas não é o que pensa.

Ramirez cruza os braços sobre o peito.

– Estou a ouvir.

Não sei o que dizer. Não quero revelar o segredo da Wendy. Se descobrirem os problemas conjugais que os Garrick andavam a ter, o homicídio pode ser-lhe imputado. Ainda que não queira ser culpada por isto, também não quero que ela o seja.

– Precisava apenas de uma noite fora – digo debilmente.

– E, então, foi passar a noite a um motel aleatório em Albany?

– Não andava a ter um caso com o Douglas Garrick. –Olho do Brock para Ramirez, que parecem ambos incrivelmente céticos. – Juro. E, mesmo que andasse, e não andava, isso não quer dizer que o matei, por amor de Deus!

– Acabou tudo consigo ontem à noite. – Ramirez mantém os olhos cravados em mim enquanto larga esta revelação. – Ficou furiosa e, de raiva, alvejou-o com a sua própria arma.

– Não... – Sinto a boca horrivelmente seca. – Isso não é nem remotamente verdade. Não faz ideia.

Com a cabeça, Ramirez aponta para as fotografias na mesa.

– Pode ver como parece suspeito.

– Mas não é verdade! – exclamo. – Nunca tive um caso com Douglas Garrick. Isto é absolutamente de loucos.

Desta vez, o detetive não diz nada. Limita-se a olhar para mim.

– Nunca lhe toquei sequer – protesto. – Juro-lhe! Pergunte à Wendy Garrick. Ela confirmará tudo o que eu estou a dizer. Pergunte-lhe!

– Menina Calloway – diz o detetive Ramirez. – Foi a Wendy Garrick quem nos contou do seu caso com o marido dela.

0 que?

– Desculpe?

– Disse que o senhor Garrick lhe confessou a verdade ontem e que a convidou a ir lá com a intenção de acabar com tudo – explica. – Mas, ao chegar a casa, encontrou-o estendido no chão, morto a tiro.

Não... Não seria capaz... Depois de tudo o que fiz por ela...

– E – acrescenta – as suas impressões digitais estão na arma.


44

Daí em diante, o interrogatório apenas piora.

Tento atamancar uma versão da verdade. Uma que não acabe comigo a matar Douglas Garrick a tiro na sua própria casa. Explico que Douglas Garrick era abusivo com a Wendy e as minhas tentativas de a ajudar. Digo-lhe que a Wendy me tinha mostrado a arma e dito que a ia usar para proteção, devendo ter sido assim que as minhas impressões digitais lá foram parar, embora esteja a ter dificuldade em explicar por que não estão 3S impressões digitais da Wendy na arma. Consigo perceber pela expressão no rosto do detetive Ramirez que não acredita numa palavra do que eu estou a dizer.

Quando chego ao fim da minha incoerente história, estou certa de que Ramirez me vai ler os direitos e levar para uma cela. Mas, em vez disso, abana a cabeça.

– Volto já – diz-me. – Não saia daqui.

Levanta-se e sai da sala, fechando a porta atrás de si com um eco retumbante e deixando-me a sós com o Brock na sala de interrogatório.

O Brock olha fixamente para a mesa de plástico, de olhos vidrados. Era suposto estar aqui como meu advogado, mas há vinte minutos que não diz uma palavra. Se soubesse que era assim que as coisas se iam desenrolar, nunca lhe teria pedido para vir.

– Brock? – chamo.

Lentamente, ergue o olhar.

– Estás bem? – pergunto suavemente.

– Não. – Lança-me um olhar cáustico. – Que diabo foi aquilo, Millie? A sério?

– Brock – exclamo, com voz aguda. – Não podes realmente acreditar...

– Acreditar em quê? – retorque. – Até há poucas horas, nem sabia que estiveste na prisão por homicídio. E agora descubro que me tens andado a trair com aquele sacana rico para quem trabalhavas...

– Eu não te traí! – expludo. – Jamais te trairia!

– Então que raio andavas a fazer na última quarta-feira à noite? – pergunta-me. – O que andavas a fazer ontem à noite? E em todas as outras noites em que era suposto irmos jantar e me deixaste pendurado? Deves compreender que tudo isto parece bastante suspeito. Sobretudo tendo em conta, enfim, que aparentemente já mataste um tipo uma vez.

Bem, não apenas uma vez. Mas sinto que dar-lhe essa informação não ajudaria o meu caso.

– Já te disse, estava a tentar ajudar a Wendy.

– Estavas a tentar ajudar a mulher que agora te acusa de teres tido um caso com o marido dela e de o assassinares?

Bem, dito dessa forma...

– Não sei por que disse isso ao detetive. Talvez tenha entrado em pânico. Mas acredita, era abusivo com ela. Vi-o com os meus próprios olhos.

– Millie – Brock fita-me com uma expressão angustiada nas suas belas feições –, ontem à noite, liguei-te e parecias muito perturbada com qualquer coisa. É óbvio que não tinhas nenhum vírus estomacal. Isso era mentira.

– Sim – admito. – Isso era mentira.

– Millie – falha-lhe a voz ao dizer o meu nome. – Mataste o Douglas Garrick?

Quase tudo aquilo de que o detetive Ramirez me acusou era falso. Mas uma coisa era absolutamente verdadeira. Alvejei o Douglas Garrick. Matei-o. E, embora negue tudo o resto, esse facto permanece.

– Oh, Cristo – murmura o Brock. – Millie, não posso crer que foste capaz de...

– Mas não é o que pensas – digo.

A cadeira de plástico do Brock raspa contra o chão duro da sala de interrogatório quando se levanta.

– Não posso representar-te, Millie. Não é apropriado e... simplesmente não.

Apesar da inutilidade do meu namorado durante o interrogatório, a ideia de me abandonar assusta-me ainda mais.

– Sabes que não tenho dinheiro para um advogado...

– Então podes usar o defensor público – diz. – Ou pedir um empréstimo, ou... não sei. Mas não posso ser eu. Lamento.

– É assim, então. – O meu queixo treme ao erguer o olhar. – Estás a acabar comigo.

– Suponho que sim. – Abana a cabeça. – Sinceramente, nem sei quem és. – Passa a mão pelo cabelo, puxando obsessivamente as madeixas. – Não posso crer que isto está a acontecer. Não posso mesmo. Queria que conhecesses os meus pais. Pensava realmente que tu e eu...

Não precisa de completar o pensamento. Imaginava um futuro em que casaríamos. Teríamos filhos juntos. Envelheceríamos juntos. Não imaginava que fosse acabar numa esquadra, comigo a ser interrogada por homicídio.

Assim, não o posso realmente culpar por partir. Mas não deixo de irromper em lágrimas mal a porta se fecha nas suas costas.


45

O verdadeiro milagre é que, depois de tudo isto, o detetive Ramirez não me prende. Quando me dá a notícia de que posso partir, chego mesmo a perguntar-lhe:

– Tem a certeza?

Estava certa de que me iam levar sob custódia, mas deixa-me sair com um aviso para não deixar a cidade. Dado que não tenho dinheiro nem carro, não vou a lado nenhum nos próximos tempos.

Depois de sair da esquadra, agarro instintivamente no telemóvel. É quando percebo que não tenho ninguém a quem ligar. Normalmente, teria ligado ao Brock para o informar de que fui libertada, mas tenho a sensação de que não quer saber.

Claro que há uma pessoa que quereria saber.

O Enzo.

O Enzo ajudar-me-ia. Se lhe ligasse, acreditaria sem questionar cada palavra que eu dissesse. Mas não sei se quero seguir outra vez por esse caminho. E fiz todo aquele discurso sobre não precisar da sua ajuda, pelo que não estou prestes a voltar para ele a rastejar uma semana depois, implorando que me salve.

Posso salvar-me a mim mesma. Nem sequer estou detida. Talvez toda esta situação se resolva.

Após ponderar as minhas opções por um instante, seleciono o número da Wendy da minha lista de contactos. Não sei se é apropriado ligar-lhe neste momento, mas preciso de respostas. Tínhamos um acordo ontem e o que o detetive alega vai totalmente contra o que decidimos. Por outro lado, talvez estivesse apenas a inventar coisas para me assustar e levar a confessar ou a implicar a Wendy. Não excluiria nada em relação àquele detetive.

Naturalmente, vai logo para o correio de voz.

Mais vale ir para casa. Afinal, amanhã podem prender-me e nunca mais lá poderei voltar. Não é como se pudesse pagar uma fiança.

Apanho o comboio de regresso ao meu apartamento no Bronx. Depois de tudo o que aconteceu hoje, mal consigo pôr um pé à frente do outro. Tenho de passar uns bons cinco minutos a vasculhar a minha bolsa à procura das chaves, até ter a certeza de que as perdi. Quando estou prestes a desistir, encontro-as enfiadas no fundo da bolsa.

– Millie!

Mal entro no edifício, a minha senhoria, a Sra. Randall, sai apressadamente do seu apartamento no primeiro andar, envergando um dos seus vestidos demasiado grandes que não lhe apertam a cintura. Traz o rosto enrugado todo franzido e projeta o lábio inferior.

– A polícia esteve aqui! – exclama. – Obrigaram-me a abrir o teu apartamento e fizeram buscas! Tinham um papel a dizer que eu tinha de os deixar entrar!

– Eu sei – gemo. – Peço desculpa por isso.

A Sra. Randall semicerra os olhos para me fitar.

– Andas a esconder droga lá em cima?

– Não! De todo! – Só assassinei alguém, mais nada. Caramba.

– Não quero mais sarilhos no meu prédio – diz. – E tu só trazes sarilhos. Duas vezes que a polícia veio cá por tua causa! Quero-te fora. Tens uma semana.

– Uma semana! – exclamo. – Mas, senhora Randall...

– Uma semana e mudo as fechaduras – silva. – Não te quero por perto, seja o que for que fazes naquele teu apartamento.

Sinto um aperto no coração. Como raios vou eu encontrar outro apartamento com tudo o que me está a acontecer? Talvez seja melhor se for presa. Ao menos então terei um sítio onde ficar. E comida gratuita.

Subo as escadas até ao meu apartamento. Espero encontrá-lo esquadrinhado e não fico desiludida. Os agentes que revistaram o local não fizeram qualquer esforço em voltar a pôr tudo nos seus devidos lugares. Levarei o resto da noite a arrumar tudo.

Deixo-me cair no sofá, exausta. Não posso lidar com esta confusão esta noite. Talvez amanhã. Talvez nunca. De que adianta, se vou para a prisão, seja como for?

Ao invés, agarro no controlo remoto e ligo a minha televisão manhosa. Suponho que é isto que vou fazer na minha última noite de liberdade.

Infelizmente, a televisão está sintonizada num canal noticioso. A história do homicídio de Douglas Garrick está em todas as notícias neste momento. A apresentadora no ecrã, com o seu brilhante cabelo louro, informa que a polícia está a falar com uma «pessoa de interesse».

Ei, apareci nas notícias. Sou uma «pessoa de interesse».

O programa passa então para um vídeo da Wendy. Está a falar com um jornalista e tem os olhos raiados de sangue e inchados.

Os hematomas no seu rosto parecem ter desaparecido por completo, o que presumo se deva à maquilhagem. Vira-se para se dirigir à câmara.

– O meu marido Douglas era um homem incrível – afirma, numa voz surpreendentemente forte que não parece de todo ela. – Era generoso, brilhante e planeávamos constituir família em breve. Não merecia ter a sua vida interrompida desta forma. Não é justo que... – Para de falar, embargada pela emoção. – Eu... peço desculpa...

O que foi aquilo?

Como pode a Wendy falar assim de Douglas depois do que lhe fez? Entendo não querer falar mal dos mortos, mas está a dar a ideia de que era um santo. O homem estava a segundos de a estrangular até à morte quando eu lhe acabei com a vida. Por que não diz ela isso ao jornalista?

O vídeo passa para a apresentadora loura. Os seus límpidos olhos azuis fixam-se no ecrã.

– Se só agora se juntou a nós, a nossa principal notícia é o brutal homicídio de Douglas Garrick, o multimilionário diretor– –executivo da Coinstock. Foi encontrado morto ontem à noite no seu apartamento no Upper West Side, com um tiro fatal no peito.

O ecrã passa para uma fotografia de um homem na casa dos quarenta, com a legenda «Douglas Garrick, diretor-executivo da Coinstock». Fico a olhar fixamente para lá, para o cabelo escuro do homem e os seus suaves olhos castanhos, o duplo queixo e as rugas em torno dos seus olhos ao sorrir para a câmara. Enquanto olho para a foto de Douglas Garrick, percebo uma coisa.

Nunca vi este homem na vida.

O homem cuja fotografia aparece no ecrã é-me completamente desconhecido. Parece-se um pouco com o homem com quem interagi no apartamento e, ao longe, poderia não se notar a diferença. Mas não é ele. Não é decididamente ele. Este homem é alguém completamente diferente.

Portanto, se o homem no ecrã é o Douglas Garrick...

Quem diabo matei ontem à noite?


SEGUNDA PARTE

46

WENDY

Devem achar que sou uma pessoa horrível.

Ajudaria se dissesse que, apesar de nunca me ter agredido, o Douglas era um péssimo marido? Humilhou-me e fez-me a vida miserável. E eu ter-me-ia contentado com o divórcio.

Não tinha de acabar em homicídio. Foi inteiramente culpa dele.

E a Millie? Bem, é uma baixa a lamentar. Mas não é tão doce como poderiam julgar. Se passar a vida atrás das grades, é para o bem maior.

Mas, mesmo depois de ouvirem o meu lado da história, talvez continuem a achar que sou uma pessoa horrível. Talvez pensem que o Douglas não merecia morrer. Talvez julguem que eu é que mereço ir para a prisão para o resto da vida.

E a verdade é que não quero realmente saber.

***

Como Sair Impune do Homicídio do Seu Marido — Um Guia de Wendy Garrick

Passo 1: Conhecer um Homem Solteiro, Ingénuo e Podre de Rico

Quatro anos antes

Não entendo a arte contemporânea.

A minha amiga Alisa enviou-me um convite para esta exposição, mas é demasiado estranha para mim. Estou

habituada a admirar quadros que são belas obras de talento artístico. Mas isto? Nem sei o que isto é.

O título da exposição é simplesmente Vestes. E é exatamente disso que se trata. Roupa. Pendurada das paredes, cortada em pedaços, reconstruída numa manta de retalhos de bombazina, cetim, seda e poliéster. É absolutamente absurdo. Quando foi que a arte se transformou em algo que parece ter sido feito por uma criança durante as aulas de trabalhos manuais da escola?

A obra que estou agora mesmo a observar intitula-se Meias. É um nome adequado. É uma estrutura enorme, pelo menos da minha altura, em que cada centímetro está coberto por meias de várias formas e tamanhos.

Eu só... simplesmente não percebo.

– Tenho um buraco numa das minhas meias – diz uma voz masculina atrás de mim. – Acha que se importavam, se eu levasse uma destas emprestada?

Viro a cabeça para identificar a origem da voz. Reconheço imediatamente Douglas Garrick. Antes deste evento, estudei com muito cuidado uma fotografia rara que a Alisa me arranjou – memorizei o seu cabelo castanho desgrenhado, as rugas de um quase sorriso em torno dos olhos, um incisivo torto do lado esquerdo. Veste uma camisa branca barata, que parece ter sido comprada no Walmart, e falhou um botão. Não, esperem, falhou todos OS botões. Cada um dos seus botões está desfasado uma posição. E precisa – desesperadamente – de se barbear.

Ninguém imaginaria que este homem é uma das pessoas mais ricas em todo o país.

– Não vejo como dariam pela falta – respondo, tentando soar fria, apesar de ter o coração aos saltos no peito.

Sorri e estende a mão. Mal se notava na foto que eu vi, mas, na vida real, tem uma papada, embora não seja nada que alguma dieta e exercício não resolvessem.

– Doug Garrick.

Agarro-lhe a mão, que está quente e engole a minha como se estivessem destinadas a encaixar.

– Wendy Palmer.

– Muito prazer em conhecê-la, Wendy Palmer – diz, enquanto os seus olhos castanhos encontram os meus.

– Igualmente, senhor Garrick.

– Então... – pergunta, apoiando-se nos calcanhares dos seus sapatos gastos. – O que acha de Vestes?

Lanço um olhar às várias obras de arte centradas na roupa que se encontram espalhadas pela sala. Sei um pouco sobre o Douglas Garrick, e acredito ser um homem que aprecia a verdade.

– A realidade – digo – é que não entendo muito bem. Podia criar qualquer destas peças eu mesma com um pouco de cola Elmer’s e uma caixa de roupa da Goodwill.

O Douglas franze o sobrolho.

– Mas não é esse o objetivo? O artista tentar desafiar o status quo e apresentar uma crítica à arte tradicional, demonstrando que até os objetos mais corriqueiros podem ser transformados em algo que suscita emoções.

– Oh! – Raios, agora tenho de pensar em algo inteligente para dizer. – Bem, acho que a interligação da textura e da cor...

Paro bruscamente ao ver o sorriso pretensioso nos lábios do Douglas. Ele sustém-no por uma fração de segundo e depois desata a rir.

– Pareceu-lhe, com estes disparates, que eu sabia do que estava a falar?

– Um pouco – admito timidamente.

– Sabe o que eu adoro nesta galeria? – diz. – A comida. É... – beija as pontas dos dedos. – Espetacular. Estou disposto a olhar para algumas paredes de meias por estes aperitivos.

– Sim – murmuro.

Não comi nada desde que aqui estou. Este vestido Donna Karan assenta-me como uma luva, abraçando-me igualmente bem os seios, a barriga e o traseiro, mas poderia formar-se um bojo inestético, se eu começasse a emborcar camarões com molho cocktail.

Observa as minhas mãos vazias.

– Deixe-me ir buscar-lhe alguns dos meus preferidos. Confie em mim.

Sorrio.

– Estou intrigada.

– Não mexa nem um músculo, Wendy Palmer.

O Douglas pisca-me o olho antes de rumar apressadamente à mesa dos aperitivos. Agarra num prato e começa a empilhar um número perturbador de alimentos. Oh, Senhor. Por que está a pôr tanta comida naquele prato? Não tomo pequeno-almoço nem almoço, e já comi uma salada antes de vir para cá. O que está este homem a fazer-me?

Estou quase a ter um ataque de pânico devido a toda a comida que está a pôr naquele prato, mas é um prato pequeno, por isso vai ficar tudo bem. Basta-me jantar menos amanhã à noite.

– Aqui tem. – Apressa-se a voltar para o meu lado, ansioso por me mostrar os produtos que escolheu para mim. – São os meus preferidos. Prove primeiro a tarte de cogumelos.

Agarro na tarte e dou uma dentada. É celestial. Só este bocado deve ter provavelmente umas quinhentas calorias, se tivesse de adivinhar. Não admira que o Douglas tenha uma papada. E não quer saber, porque não é mulher e, além disso, é incrivelmente rico.

– Agora – diz. – Há além uma peça chamada Calças. Quer arriscar um palpite sobre o que vamos ver?

Sorri-me, prendendo-me o olhar, apesar de o meu vestido exibir uma quantidade impressionante de decote. Quando vim aqui com a intenção de seduzir Douglas Garrick, não imaginava este homem.

Isto vai ser muito mais fácil do que eu esperava.


47

Passo 2: Dar o Nó com o Homem Podre de Rico

Três anos antes

O Douglas pode ser absolutamente desesperante.

Está a atormentar-me. Finge ser um tipo simpático – e até terra a terra, tendo em conta o seu trabalho e fortuna pessoal mas é sádico. Não há outra explicação para o porquê de se comportar desta maneira.

– O que pensas tu que estás a fazer? – atiro-lhe.

Tem ao menos a graça de parecer embaraçado. Como devia! Já é suficientemente mau o homem sentar-se na nossa sala de estar em cuecas – cuecas! mas supostamente devíamos chegar daqui a menos de uma hora a uma festa em casa da Leland Jasper e não está de todo pronto. Tinha planeado tudo na perfeição para chegarmos elegantemente atrasados, mas agora aqui está, na cozinha, de Calças de fato de treino e T-shirt, e a comer Nutella do frasco com uma faca de manteiga.

O meu coração não aguenta esta loucura.

– Deu-me fome – diz. Pousa a faca na bancada da cozinha, manchando a superfície de mármore com a pasta castanho-escura.

– Douglas – respondo, com uma paciência cada vez mais escassa. – É suposto sairmos daqui a dez minutos. Nem sequer estás vestido.

– Sair para onde?

Está a atormentar-me. Está a fazer isto de propósito. Não posso imaginar que este comportamento não seja intencionai – ninguém pode ser assim tão despistado.

– Para casa da Leland! A festa é esta noite!

– Oh, certo – gemendo, esfrega as têmporas. – Cristo, temos de ir? Odiamos a Leland e o marido. Não foi o que dissemos? Além do mais, que tipo de nome é Leland? De certeza que foi ela que o inventou.

Está certo em todos os aspetos, mas isso não quer dizer que possamos faltar a esta festa. Vai lá estar toda a gente. E quero que me vejam a usar o meu novo vestido Prada, o cabelo acobreado perfeitamente arranjado e com madeixas, de braço dado com o meu atraente e impossivelmente rico noivo, que irá usar um fato Armani que disfarça o bojo do seu abdómen. Escolhi-o com esse propósito específico. Antes de me ter, costumava andar por aí com fatos baratos que deixavam ver o contorno da sua barriga.

– Temos de ir – respondo entredentes. – Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre o assunto. Tens de te vestir. Já.

– Mas, Wendy – Douglas agarra-me no braço e puxa-me para si. O seu hálito cheira a avelã. –, vá lá, a festa vai ser uma seca enorme. Vamos antes... sei lá, ver um filme, só os dois? Como costumávamos fazer quando começámos a sair? O novo filme dos Vingadores, talvez?

Algo que não percebi sobre o Douglas até o conhecer foi que é um cromo sem solução. Nem tenta disfarçar. Tudo o que quer é ver filmes de super-heróis e vegetar no sofá com o portátil empoleirado nas pernas, a comer Nutella do frasco. A única razão para ter chegado a diretor-executivo da Coinstock é ser um génio louco que inventou uma tecnologia que acabou por ser usada em todos os bancos do país.

– Vamos a esta festa – digo-lhe, pelo que parece ser a centésima vez. O homem nunca me dá ouvidos, juro. –Agora, vai-te vestir. Mexe-te.

– Está bem, está bem.

Inclina-se numa tentativa de me dar um beijo com Nutella, mas eu tenho um Prada vestido, por isso dou um passo atrás e ergo as mãos para o manter afastado.

– Podes beijar-me depois de mudares de roupa – digo-lhe.

O Douglas volta a guardar o frasco no armário e sai pesadamente da cozinha para a nossa impossivelmente pequena sala de estar. Este apartamento é todo ele uma desgraça. Só temos três quartos, e um deles é o escritório do Douglas, pelo que é como se tivéssemos apenas dois. Assim que nos casarmos, vamos fazer uma melhoria substancial, e também comprar a minha casa de sonho nos subúrbios. Bem, na verdade, é a casa de sonho do Douglas, porque o meu sonho não é certamente viver nos subúrbios.

Sorrio sempre que penso na casa onde vamos viver um dia. Em pequena, o meu pai trabalhava na manutenção e a minha mãe mal ganhava o salário mínimo a trabalhar num infantário. Tínhamos uma casa minúscula, onde eu partilhava o quarto com a minha irmã mais nova, que, até aos oito anos, costumava fazer chichi na cama. Estudei o suficiente na escola para conseguir uma bolsa de estudos para um pretensioso colégio privado, onde todos os outros miúdos gozavam comigo por não me vestir tão bem como eles.

Tudo o que queria era umas calças de ganga de marca como as da minha bela e cruel colega de turma Madeleine Edmundson. E talvez um casaco de inverno sem ser em segunda mão e cheio de buracos.

Pensei que podia dar a volta à minha situação na faculdade, mas as coisas não correram da forma que eu esperava. Houve aquele horrível incidente em que me acusaram de plágio e não me deixaram regressar para o terceiro ano. Todas as minhas perspetivas de carreira pareceram ir por água abaixo enquanto me escoltavam ao exterior do recinto universitário.

Oxalá me pudessem todos ver agora.

Nesse momento, desesperantemente, a campainha toca. Antes que eu possa dizer ao Douglas que vou tratar de quem quer que esteja à porta, diz:

– É provavelmente o Joe. Vem deixar uns papéis de que eu preciso. Será apenas um minuto.

Joe Bendeck é o advogado do Douglas. Embora seja provavelmente parte da razão de ser tão rico, não é a minha pessoa preferida no mundo e sente também uma mal disfarçada aversão por mim. Ainda bem que será o Douglas a ver-se livre dele.

É estranho, porém, que passe por cá a uma hora tão tardia da noite. Não inaudito, mas invulgar, ainda assim. Pergunto-me o que quererá...

Enquanto o Douglas vai falar com o Joe, deixo-me ficar por perto, a ouvir a sua conversa. Geralmente, o Douglas não me envolve nos seus negócios, mas é inteligente saber o mais possível do que se passa.

– É tudo? – pergunta a voz do Douglas.

– Sim – responde o Joe. – E tenho também outra coisa para ti...

Oiço o rumorejar de papel. O Douglas a abrir um envelope.

– Oh, Joe. Já te disse que não lhe posso pedir para fazer isto...

– Tens de o fazer, Doug. O teu casamento é daqui a poucas semanas e não podes casar com aquela mulher sem um acordo pré-nupcial.

– Porque não? Confio nela.

– Grande erro.

– Olha, não posso... é como começar um casamento com o pé errado.

– Deixa-me dar-te alguns conselhos jurídicos gratuitos, Doug. Se isto desmoronar para ti, ela ficará com metade de tudo aquilo para que trabalhaste. Este documento é a única coisa que te protege. Serias um perfeito idiota em casar com ela sem a fazeres assinar um.

– Mas...

– Nada de mas. Não casas com essa mulher a menos que ela assine isto. Se verdadeiramente te amar e pretender ficar casada contigo, não se deverá importar, certo?

Sustenho a respiração, esperando para ver o que o Douglas diz. Espero que diga ao Joe para ir para o Inferno. Mas, além de seu advogado, o Joe é também o seu mais velho e íntimo amigo.

– Está bem – concorda o Douglas. – Vou tratar disso.


48

-É extremamente generoso – informa-me o Joe Bendeck.

O Joe está diante de mim e do Douglas na nossa sala de estar, a explicar-me os termos do acordo pré-nupcial. O Douglas não mo deu nessa noite. Esperou mais alguns dias, suavizando o golpe com algumas flores e um colar de diamantes da Tiffany’s. Não suavizou lá muito.

– Não me sinto confortável com a ideia de um acordo pré-nupcial. – Olho para o Douglas, que está sentado ao meu lado, vestido como um perfeito desmazelado, de calças de ganga e T-shirt. – Querido, temos de passar por isto?

– É muito generoso – salienta novamente o Joe. – Dez milhões de dólares se se divorciarem. Mas não pode ir atrás de nenhum dos seus outros bens.

– Eu não quero os bens. – Ponho a mão no joelho do Douglas. O tecido das suas calças de ganga parece gasto sob a minha mão. – Só quero casar-me em paz.

– Então assine – diz o Joe. – E nunca mais a volto a incomodar com isto.

– Eu só... – Tiro um lenço bordado do bolso e limpo os olhos. – Pensava que confiavas em mim, Douglas.

– Oh, por amor de Deus – resmunga o Joe. – Doug, vais mesmo cair nesta treta?

O Douglas lança um olhar ao amigo e passa o braço por cima dos meus ombros. Não consegue resistir a uma mulher a chorar.

– Wendy, não é nada disso. Eu confio em ti. E amo-te tanto.

Levanto o rosto lacrimoso para o encarar.

– Eu também te amo.

– Mas – acrescenta – não posso casar contigo sem um acordo pré-nupcial. Lamento.

Vejo nos olhos castanhos do Douglas que está a falar a sério. O Joe convenceu-o, e agora está completamente rendido.

Lanço um olhar furtivo aos papéis na mesa de café à minha frente. Formam uma pilha com cinco centímetros de espessura. Mas o Joe sublinhou os pontos principais para mim. Diz, preto no branco, que, se nos divorciarmos, receberei dez milhões de dólares. Não é nem perto de metade do que o Douglas vale, mas não é nada de desprezar. Manter-me-á confortável para o resto da vida se as coisas não resultarem aqui.

Não que eu esteja à espera que nos divorciemos. Espero que o Douglas e eu fiquemos juntos até que a morte nos separe e tudo o mais. Mas nunca se sabe. O Douglas é uma peça em reconstrução, e admito que há hipóteses de eu não o conseguir reconstruir a meu gosto.

– Tudo bem – concordo. – Eu assino.


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Passo 3: Gozar a Vida de Casada... Por Algum Tempo

Dois anos antes

-Jesus Cristo. Este sítio é de loucos.

0 Douglas está relutante em comprar esta penthome. Acha que devíamos viver o resto das nossas vidas naquele minúsculo apartamento de três quartos. Bem, temos a casa que comprámos na ilha, mas não sei quanto tempo lá irei passar.

O Douglas gosta da casa, ainda assim. Tem cinco quartos, e não parava de falar de forma irritante em todos os filhos com que os íamos encher.

– Não é maior do que o do Orson Dennings – saliento.

A nossa agente imobiliária, a Tammy, acena entusiasticamente com a cabeça.

– É apenas uma penthome de nível médio.

O Douglas ergue o olhar para as claraboias, pestanejando.

– Não percebo por que precisamos sequer de uma penthouse. Temos uma casa inteira!

Só percebi o quanto o meu marido é sovina quando começámos a procurar um apartamento. Qualquer coisa com mais de quatro quartos é «demasiado grande». E está sempre a falar da casa na ilha, como se alguém fosse passar todo o seu tempo em Longisland. Por favor.

– Estava a guardar o apartamento para o caso de precisar de vir à cidade para reuniões – lembra-me. – Mas não é lá que vamos viver. É na casa que vamos viver.

– Por que só podemos viver num lugar?

– Porque não somos loucos!

– Muitas pessoas mantêm uma residência nos subúrbios e outra na cidade – intervém a Tammy.

– Nós já temos uma residência na cidade! – argumenta o Douglas.

Está a ficar frustrado. O Douglas cresceu com uma mãe solteira num apartamento em Staten Island. Andou numa escola pública especial na baixa para miúdos supercromos e conseguiu formar-se no MIT através de uma combinação de bolsas, trabalhar enquanto estudava e empréstimos. Não está habituado a ter dinheiro. Não sabe o que lhe fazer.

Devia aprender comigo. O meu pai nunca conduziu nada a não ser carros usados e a minha mãe recortava cupões. Nenhuma peça de roupa comprada para a minha irmã mais velha era deitada fora até as outras três terem tido oportunidade de a usar também. Cada peça de roupa era usada até estar por um fio.

Odiava viver assim. Costumava ficar acordada na cama a fantasiar sobre como seria ser rica um dia. E, agora que o somos, por que não haveríamos de obter tudo o que sempre sonhámos?

Após termos passado as nossas infâncias a ser pobres, temos ambos dinheiro. E vamos agir como tal, raios.

– Douglas – passo-lhe um dedo pelo braço. – Sei que parece um pouco extravagante, mas é o meu apartamento de sonho. Já me apaixonei por ele.

– E – acrescenta a Tammy – o preço foi reduzido.

– Porque ninguém pode pagar este sítio ridículo – resmunga o Douglas, embora consiga perceber que parte da sua combatividade se esvaiu.

– Por favor, querido – pestanejo-lhe. – Será tão bom ter um sítio onde passar a noite quando trouxermos os meninos à cidade.

Resulta sempre. Sempre que quero levar a minha avante, tudo o que tenho de fazer é evocar os nossos potenciais e fictícios filhos. O Douglas quer quatro, mas não é ele quem tem de os parir.

– Está bem. – O seu olhar suaviza-se. – Porque não? Suponho que pode ser, tipo, uma dedução fiscal ou assim.

– Claro! – chilreia a Tammy, que é uma verdadeira tretas.

– Obrigada, querido. – Inclino-me para dar um beijo ao meu marido. Enquanto me envolve nos braços, não posso deixar de reparar que está um pouco mais flácido do que quando nos conhecemos, o que é o sentido oposto àquele em que devia ir. É algo em que terá de trabalhar mais, entre outras coisas. O Douglas ainda é verdadeiramente uma obra em curso.


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Adoro almoçar com a minha amiga Audrey. Tem sempre os melhores mexericos.

Sempre sonhei ter uma vida assim. Em que estou livre a meio do dia para almoçar com uma amiga num dos restaurantes mais caros da cidade. Às vezes, quero beliscar-me para ter a certeza de que não é um sonho.

E, depois, há outras vezes em que estou com o Douglas e toda a minha energia é sugada. Às vezes, quero beliscá-lo a ele.

A Audrey parece estar prestes a rebentar com algum excelente mexerico. É casada com um homem bastante rico (e bastante mais velho do que ela), mas não tão rico como o Douglas. Jamais poderia pagar um apartamento como o que nós temos.

– Adivinha só – diz-me a Audrey, limpando os seus lábios cor de framboesa. É sempre o começo de algum mexerico espantoso. Não sei como ouve todas estas coisas. Eu jamais lhe contaria quaisquer segredos sobre mim. – O divórcio da Ginger Howell foi finalizado.

– Oh! – digo. – Esse foi difícil.

O marido da Ginger, Cárter, é o oposto do Douglas. É um tipo superpossessivo que nunca tirava os olhos dela sempre que estávamos numa festa. Quando saía connosco, a Ginger tinha sempre de lhe dizer exatamente quando ia sair, o que ia fazer e quando voltaria. Estou certa de que era esgotante para ela, mas havia também algo na forma como o marido a comandava que me parecia sensual. O Cárter é também devastadoramente atraente

e mantém-se em bastante boa forma, ao contrário do meu marido.

– Bem – diz a Audrey, mordiscando uma folha de alface. – Teve ajuda da Millie.

– Millie? Quem é essa?

A Audrey olha para mim, espantada, e eu sinto as maçãs do rosto corar. Será a Millie alguém importante no nosso círculo social de quem eu me esqueci, de algum modo? Mas, então, a Audrey responde:

– É uma empregada de limpeza.

– Certo...

– Mas tem uma reputação... – A Audrey baixa ligeiramente a voz, o que significa que está prestes a contar-me um mexerico realmente bom. – Ajuda as mulheres que têm problemas com os maridos. Trata do assunto por elas.

– Problemas?

Mentalmente, percorro a lista de maus hábitos do Douglas. Quando vai à casa de banho, usa sempre metade do rolo de papel higiénico. Come diretamente dos recipientes no frigorífico, apesar de eu lhe ter pedido repetidamente para não o fazer. Quando vamos a um restaurante fino, não se dá ao trabalho de aprender que garfo utilizar em que altura, e mesmo quando eu lho saliento ao início da refeição, continua a errar metade das vezes, o que me leva a pensar que está apenas a adivinhar.

Costumava pensar que podia mudar o Douglas. Que, com a minha ajuda, poderia tornar-se uma pessoa melhor, como eu. Mas só parece estar a piorar.

– Problemas graves – esclarece a Audrey. – Tipo, o marido da Ginger era abusivo. Batia-lhe. Chegou mesmo a partir-lhe o braço.

– Oh! – arquejo. Não posso dizer que tenha esse problema. O Douglas jamais me encostaria um dedo. Ficaria horrorizado com a ideia. – Que horror.

Ela assente sobriamente.

– Então, essa tal Millie dá uma ajuda. Diz às mulheres o que dizer e fazer. Arranja-lhes os recursos certos. Arranjou um excelente advogado à Ginger. E até ouvi dizer que ajudou algumas mulheres a desaparecer quando era essa a única opção.

– Uau.

– E não é tudo. – A Audrey mastiga uma das suas folhas de alface, limpando em seguida os lábios com o guardanapo. – Ouvi dizer que, num par de situações em que não havia saída, a Millie... enfim, despachou o tipo.

Tapo a boca.

– Não...

– Sim! – A Audrey parece encantada por estar a partilhar esta revelação. – É dura, acredita. É perigosa. Se achar que um tipo anda a fazer mal a uma mulher, fará basicamente tudo para o parar. Foi para a prisão por arrear porrada num tipo que estava a tentar violar a amiga. Matou-o.

– Céus...

A Audrey come outra garfada da sua salada e afasta-a.

– Estou tão cheia – anuncia, apesar de mal ter comido metade e de ser apenas uma pequena salada verde para entrada. – Wendy, de certeza que não queres comer nada?

Bebo um gole da minha mimosa.

– Tomei um pequeno-almoço enorme.

Ela semicerra os olhos na minha direção, possivelmente porque não pedi qualquer comida durante os nossos três últimos almoços juntas. Mas tomo sempre uma bebida.

– Suponho que não estejas a ter sorte com a questão do bebé – observa.

Amaldiçoo o facto de, há alguns meses, ter referido casualmente que o Douglas estava entusiasmado pela ideia de ter filhos em breve. Simplesmente escapou-me. Há já cerca de um ano que andamos a tentar ter um bebé. Não tem corrido bem – ou seja, não estou grávida.

– Ainda não – respondo.

– Conheço um especialista em fertilidade fabuloso – diz a Audrey. – A Laura foi vê-lo, e olha para ela agora.

A nossa amiga Laura tem agora dois rapazinhos gémeos, que não paravam de gritar da última vez que me cruzei com ela na rua. Retraio-me.

– Deixa estar. Preferimos tentar à moda antiga.

– Sim, mas não vais para nova – lembra-me ela. – Tique-taque, Wendy.

– Tudo bem. Dá-me o nome desse médico.

Gravo o número no meu telemóvel, embora não tenha intenção de ligar. Mas, se o Douglas me perguntar pelo assunto, posso ao menos fingir que estou a fazer alguma coisa.


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Passo 4: Perceber que Você e o Seu Marido São Completamente Errados Um para o Outro

Um ano antes

O Douglas entra na sala de jantar da nossa casa em Long Island e para bruscamente ao ver os dois lugares à mesa.

– Onde está o resto do nosso jantar? – pergunta. – Na cozinha?

– Não. – Já estou sentada à mesa, com um guardanapo no colo. – É isto o nosso jantar. A Blanca fez-nos uma salada.

O Douglas olha para a taça de verduras como se lhe tivessem servido veneno.

– É isto? É só isto o jantar?

Suspiro. Lembro-me de reparar na papada do Douglas no dia em que o conheci; nessa noite, jurei pô-lo em forma para que desaparecesse. Mas, quando muito, está ainda menos em forma do que nessa noite. Sinceramente, é como se nem se importasse.

– É alface, tomate, pepino e cenoura ralada – indico-lhe. – Comer salada todos os dias é o que me impede de ficar inchada. Devias experimentar.

– Wendy, és um pau de virar tripas – afirma. – Apavora-te a ideia de comer seja o que for que não seja uma folha de alface ou um talo de aipo.

Reteso-me.

– Estou só a manter-me saudável.

– Estou preocupado contigo. – De cenho franzido, senta-se diante da ofensiva salada. – Nunca comes nada. E ontem desmaiaste depois da tua corrida.

– Não desmaiei nada!

– Desmaiaste, sim! Estavas tão pálida, e depois sentaste-te no sofá e eu não te conseguia acordar. Estive quase a chamar uma ambulância.

– Estava cansada. Tinha acabado de fazer uma longa corrida – animo-me. – Por que não vens correr comigo amanhã?

-Jesus, não creio que conseguisse acompanhar-te.

Inclino a cabeça.

– Hum. Qual de nós é pouco saudável, então?

O Douglas coça o cabelo escuro.

– Além disso, talvez seja por seres tão magra que não consegues engravidar. Li que não é bom para a fertilidade.

– Oh, meu Deus – gemo. – Tem sempre de ir dar aí, não é? Já não podemos ter uma conversa em que não me culpes por ainda não ter engravidado?

O Douglas abre a boca para dizer qualquer coisa, mas depois parece mudar de ideias.

– Desculpa, tens razão.

Baixa os olhos para a salada à sua frente. Franze o nariz.

– Há algum molho nisto?

– É um vinagrete sem gordura.

– Não o vejo.

– É incolor.

Enfia o garfo na alface crocante e espeta alguns pedaços. Mete-os na boca e mastiga.

– Tens a certeza de que isto tem molho? Porque parece que estou a comer a relva à porta de nossa casa.

– Disse à Blanca para pôr só um borrifo. Não tem gordura, mas tem calorias.

O Douglas continua a mastigar. A sua maçã-de-adão sobe e desce enquanto engole o bocado de salada. Depois de terminar, arrasta a cadeira para trás no chão e levanta-se.

– Aonde vais? – pergunto-lhe.

– Ao KFC.

– O quê? – Ponho-me de pé. – Vá lá, Douglas. Tu consegues. Vamos fazer isto juntos.

– Por que não vens comigo? – sugere.

– Estás a brincar.

– Costumávamos ir à comida rápida, às vezes, quando namorávamos – relembra-me. É verdade, embora tenha tentado esquecer essas memórias horríveis. – Vá lá. Vamos pelo drive-through. Vai ser divertido. Ouvi dizer que têm uma sanduíche em que o pão é feito de frango frito. Não queres experimentar? Ou ver pelo menos como é?

Os meus dias de comida rápida deviam supostamente ter terminado quando casei com um milionário das tecnologias. Abano a cabeça.

O Douglas lança-me um olhar triste, mas não para. Sai de casa, entra no carro e arranca, provavelmente para comprar uma sanduíche com um pão feito de frango frito.

É nesse momento que sei que não posso continuar a ser fiel ao meu marido, pois já não o respeito.

52

Devido ao desmoronar do meu casamento, decido que se impõe um pouco de terapia de compras. Nomeadamente, precisamos de mobília nova. Espero até estar de volta à cidade, pois não se consegue encontrar nada decente na ilha. Sem que eu soubesse, o Douglas providenciou para que a maior parte da sua mobília fosse transferida do seu apartamento para a nossa penthouse, e toda ela é medonha. Parece o tipo de mobília que se compraria numa loja com as palavras «desconto» ou «armazém» no nome. Mal suporto vê-la.

Tentei explicar ao Douglas que os móveis de uma casa devem combinar, e que peças clássicas e antigas combinariam não só umas com as outras, mas também com a decoração do nosso edifício gótico. O Douglas limitou-se a olhar para mim, perplexo, pois não estava a falar em JavaScript ou Klingon ou seja lá o que for que entende melhor. Finalmente, assentiu e disse-me para comprar o que quisesse.

Estou, pois, prestes a sair em busca de umas belas antiguidades com que decorar o nosso apartamento quando encontro a Marybeth Simonds no átrio do meu prédio.

A Marybeth é rececionista na empresa do Douglas. Cruzei-me com ela algumas vezes e é razoavelmente simpática. Quarenta e poucos anos, cabelo louro a ficar grisalho e um rosto insípido. Usa umas saias foleiras que têm precisamente o comprimento certo para fazer as suas barrigas das pernas parecerem o mais largas possível. Da primeira vez que lhe pus a vista em cima, determinei que não era uma ameaça à fidelidade do meu marido, e nunca mais lhe dediquei outro pensamento.

– Wendy! – exclama. – Oh, ainda bem que a apanhei.

Segura um envelope de papel pardo, provavelmente com alguns documentos incrivelmente desinteressantes destinados ao Douglas. Tem de os ir buscar para ele, pois raras vezes vai ao escritório. Prefere trabalhar em qualquer dos vários cafés espalhados pela cidade, ou então na nossa casa em Long Island.

– O Doug está? – pergunta-me.

– Temo que não. – Olho para o meu relógio. – E não tenho tempo para receber papéis avulsos. Terá de os deixar com o porteiro.

O sorriso da Marybeth vacila ligeiramente, mas ela anui. O Douglas gosta dela devido à sua natureza afável, o que, suspeito, significa que é um capacho.

– Claro, com certeza, Wendy. Para onde vai?

A sua familiaridade surpreende-me, mas lembro-me de como, quando era pobre, o dia a dia dos incrivelmente ricos me costumava fascinar. Costumava ler artigos sobre pessoas como eu.

– Vou só comprar alguns móveis – respondo.

– Móveis? – Os seus olhos iluminam-se. – Sabe, o meu marido, o Russell, é o gerente de uma loja de mobiliário. É uma loja pequena, mas a mobília de lá é incrível. E far-lhe-ia um excelente preço. – Vasculha a sua bolsa, quase deixando cair o envelope de papel pardo, e acaba por retirar um cartão retangular branco com uma pequena mancha de batom. – Aqui tem o cartão dele. Diga-lhe que fui eu que a enviei.

Agarro no cartão com as pontas do indicador e do polegar, relutante em tocar-lhe após ter estado na bolsa mistério da Marybeth.

– Sim. Talvez.

– Bem... – sorri-me alegremente. – Foi bom vê-la, Wendy.

Começa a dirigir-se ao porteiro, mas, antes que o possa fazer, chamo o seu nome.

– Marybeth?

Ela vira-se, o mesmo sorriso simpático plasmado nas feições.

– Sim?

– Preferia que me tratasse por senhora Garrick – digo-lhe. – Não somos amigas, afinal. Sou a mulher do seu chefe.

A Marybeth esforça-se por manter o sorriso nos lábios.

– Com certeza. Peço imensa desculpa, senhora Garrick. Pergunto-me se estarei a ser má. Mas não casei com um dos homens mais ricos da cidade para ser tratada por Wendy pela sua rececionista.


53

Só para provar que não sou a mulher mais horrível no planeta, decido comprar uma ou duas peças de mobiliário ao Russell Simonds. Bem podemos atirar-lhes um pouco do nosso dinheiro. E, se forem realmente demasiado foleiras para ter em casa – como suspeito que serão posso sempre doá-las.

Não é de admirar que a loja de mobiliário seja compacta. Esperava sofás rígidos e quadrados, mas, ao entrar, deparo ao invés com uma bonita cómoda. Paro por um instante a admirar a deslumbrante cómoda de carvalho, que foi cuidadosamente areada e tingida, encontrando-se guarnecida por um belo espelho ornamentado. Passo o dedo por uma das três gavetas entalhadas, cada uma com uma pequena fechadura.

É exatamente o que procurava. Preciso disto para a minha casa.

– É uma bela peça, não é?

Viro a cabeça para identificar o proprietário da voz rica e profunda atrás de mim. Por uma fração de segundo, quase julgo estar a olhar para o meu marido. Mas não, este homem não é, decididamente, o Douglas Garrick. Tem mais ou menos a mesma altura, uma constituição similar – ou a constituição que o Douglas poderia ter se fosse ao ginásio de vez em quando – e o seu cabelo é sensivelmente da mesma cor, embora impecavelmente aparado. Apesar de trabalhar numa loja de mobiliário, veste uma imaculada camisa branca com uma gravata habilmente apertada. Este homem parece aquele em que eu esperava transformar o Douglas quando o conheci naquela exposição de arte moderna. É o Douglas 2.0, enquanto o meu marido mal chega a ser a versão beta.

– É uma peça antiga – diz-me mas restaurei-a pessoalmente.

– Fez um trabalho incrível – murmuro. – Adoro-a.

Ele sorri-me e os meus joelhos tremem ligeiramente.

– Ora, isso não é maneira de regatear.

– Não tenho o menor interesse em regatear – respondo. – Quando quero algo, faço o que for preciso para o obter.

Surge-lhe um lampejo de diversão no olhar ante o meu comentário.

– Sou o Russell. – Estende-me a mão e, ao tomá-la, sinto um delicioso formigueiro subir-me pelo braço. – Esta é a minha loja, e adoraria vender-lhe esta cómoda hoje. Aposto que ficaria lindamente no seu apartamento.

Russell Simonds. Deve ser o marido da Marybeth. De alguma forma, esperava um homem barrigudo e com uma grande calva no topo do cabelo grisalho. Não este homem.

– Sou a Wendy Garrick – digo-lhe. – A sua mulher, a Marybeth, trabalha para o meu marido. Foi ela quem sugeriu que viesse cá.

O sorriso divertido demora-se nos seus lábios.

– Ainda bem que o fez.

Acabo por comprar cerca de metade da loja antes de terminar. De cada vez que o Russell me fala noutra peça restaurada de mobiliário antigo, tenho simplesmente de a ter. E então, quando lhe estou a entregar o meu cartão de crédito com o limite chocantemente elevado, puxa de um cartão de visita, impecavelmente branco e limpo, e rabisca nove dígitos na parte de trás.

– Qualquer problema com a mobília – diz-me –, é só avisar.

Guardo o cartão na minha bolsa.

– Assim farei.

E enquanto o Russell regista as minhas compras, não posso deixar de pensar que há mais uma coisa na loja que gostaria de levar comigo para casa. E quando eu quero algo, faço o que for preciso para o obter.


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Passo 5: Tentar Encontrar a Felicidade Noutro Lugar

Seis meses antes

É possível que me esteja a apaixonar.

Tentei apaixonar-me pelo Douglas. Tentei mesmo. Pensei que me afeiçoaria a ele. Que mudaria – tal como eu mudei ao subir a pulso. O Douglas não faz ideia de quão espantoso poderia ser se se desse ao trabalho de cuidar de si mesmo, fazer uma pequena cirurgia plástica ou arranjar aquele dente torto. (Por amor de Deus, que multimilionário anda por aí de dentes imperfeitos? Pensará que estamos em Inglaterra?)

Mas o Douglas não tem qualquer interesse em nenhuma dessas coisas. Não tem o menor interesse em ser o homem que eu quero que seja. Só quer ser ele mesmo.

Já o Russell, por outro lado...

Apesar de andarmos a dormir juntos há já seis meses, não consigo parar de olhar para o homem do outro lado da mesa. Para o seu espesso cabelo cor de chocolate, cortado curto dos lados, mas suficientemente longo no topo para encaracolar ligeiramente, e para as suas densas e poderosas sobrancelhas. Nunca antes descrevi umas sobrancelhas como «poderosas», mas o homem podia comandar uma sala com elas. São o meu traço preferido nele. Ainda que, para ser justa, adore tudo o que o compõe.

Exceto a sua conta bancária.

A empregada aproxima-se da nossa mesa, um sorriso de orelha a orelha plasmado no rosto. Num restaurante tão caro, o pessoal é sempre inquebrantavelmente simpático. O Douglas odeia sítios assim. Não me agrada quando se alvoroçam tanto comigo.

– Vão querer sobremesa? – pergunta-nos a empregada.

– Temos um incrível bolo de chocolate sem farinha.

– Não, obrigado – responde o Russell.

Aceno em concordância. Nunca comemos sobremesa. Tal como eu, o Russell cuida bem de si mesmo. Vai ao ginásio várias vezes por semana, e o seu corpo é todo músculo esculpido, com apenas uma ligeira e inevitável barriga de meia-idade. Pena que a Marybeth não lhe dê valor. Nem se dá ao trabalho de pintar o seu cabelo louro – em poucos anos, estará grisalha como uma mula.

O Russell estende os braços sobre a mesa para agarrar as minhas mãos. Dado que estamos em público e somos ambos casados, é completamente inapropriado. Nas últimas semanas do nosso tórrido caso, porém, mandámos um pouco a cautela ao vento. Parte de mim quase quer ser apanhada. Porque, pela primeira vez na minha vida, estou apaixonada.

Se o Douglas se quiser divorciar de mim, agarro nos meus dez milhões e vou à minha vida.

– Oxalá não tivesse de voltar para o trabalho – murmura o Russell.

– Talvez possas chegar atrasado? – sugiro.

Um sorriso brinca-lhe nos lábios. Adoro a sua avidez. O Douglas deixou de ser assim pouco depois de nos casarmos e, mesmo antes, nunca foi tão competente na cama como o Russell. Simplesmente não tinha a mesma energia.

Nos primeiros tempos, reservávamos quartos de hotel para os nossos encontros, mas ultimamente o Douglas raramente vai à penthouse, pelo que tenho simplesmente levado o Russell para lá. Há a entrada das traseiras, onde sei que não há câmaras, pelo que não temos de lidar com o olhar do porteiro.

– Não devia – diz. – A loja tem estado movimentada nos últimos tempos.

– Não é para isso que servem os vendedores?

Geralmente, o Russell tem um ajudante a trabalhar na loja, embora talvez pudesse contratar mais um, dado que praticamente tenho andado a financiar o negócio com as minhas compras. Para ser justa, adorei cada bela antiguidade que lá comprei. O Russell tem um gosto impecável. Se tivesse dinheiro, saberia verdadeiramente como o gastar.

– Que tal esta noite? – sugere.

– Então e a Marybeth?

Os seus lábios curvam-se de repugnância, como sempre acontece quando o tema da sua mulher é evocado. É algo que nos aproximou – a nossa mútua aversão pelos nossos cônjuges.

– Digo-lhe que vou ficar outra vez a trabalhar até tarde.

A empregada regressa com a conta, e eu entrego-lhe o meu cartão platina. Sou sempre eu a pagar quando vamos a restaurantes sofisticados, pois, embora não goste de o admitir, o Russell está um pouco apertado em termos de dinheiro. Mas isso não me incomoda. Não é pelo dinheiro que gosto dele – tenho bem que chegue neste momento.

– Vou contar os segundos para te ver esta noite – murmura o Russell. Debaixo da mesa, os seus dedos sobem-me pela saia até eu me começar a sentir um pouco ofegante.

– Russell – rio-me baixinho. – Aqui não. Há pessoas em volta.

– Não me consigo conter perto de ti.

– Russell...

A minha fruição do que o meu amante está a fazer debaixo da mesa é interrompida pelo pigarrear da empregada. Tem o meu cartão platina na mão.

– Lamento muito, mas não passou. Foi rejeitado.

Reviro os olhos.

– É das vossas máquinas. Por favor, volte a passá-lo.

– Tentei três vezes.

Solto um suspiro. Meu Deus, as pessoas nestes restaurantes são simpáticas, mas às vezes são também dolorosamente incompetentes. Por alguma razão estão a servir às mesas para ganhar a vida. Vou à minha bolsa e tiro o meu Visa.

– Tente este.

Só que, passado um minuto, a empregada regressa com o segundo cartão.

– Este também foi rejeitado – informa-me. O seu tom já não é tão delicado como quando nos estava a servir. E as pessoas da mesa ao lado começaram a olhar.

Não sei o que se passa. Sou casada com o Douglas Garrick, caramba. O meu limite de crédito é infinito. Tem nitidamente de ser um problema do lado deles, mas mais ninguém parece estar a ter dificuldades.

– Tente o meu cartão – intervém o Russell. Tira o seu cartão de crédito da carteira e entrega-o.

Enquanto a empregada se afasta para experimentar o novo cartão, lanço-lhe um olhar apologético.

– Desculpa. Não sei o que se passa.

– Sem problemas – responde, apesar de não poder realmente custear um restaurante destes. Não é o tipo de local a que viríamos se soubéssemos que seria ele a pagar. Mas não há muito que possamos fazer neste momento.

O cartão de crédito do Russell é aceite sem problemas. Algo se passa com os meus cartões. Estaremos a ter algum tipo de problema financeiro de que não estou ciente? As pessoas como nós não têm dívidas de cartões de crédito. Mas a verdade é que não estou a par das finanças. Tenho os meus cartões de crédito e uso-os sem pensar no assunto.

Terei de falar com o Douglas sobre isto esta noite.


55

Liguei várias vezes ao Douglas, mas não atendeu. Enviei-lhe também inúmeras mensagens de texto, a que não respondeu.

Não sei o que se passa. Tentei usar os meus cartões de crédito noutra loja e, mais uma vez, foram rejeitados. Pelo que não era culpa do restaurante.

Liguei para a operadora dos cartões de crédito para tentar chegar ao cerne da questão. E disseram-me algo chocante. Os meus cartões foram cancelados. Todos.

Finalmente, decido ir à nossa casa em Long Island falar com o Douglas. Apesar do nosso deslumbrante apartamento na cidade, cheio de móveis antigos, prefere a casa. Diz que gosta do sossego. Dorme melhor sem as constantes buzinas e sirenes da cidade, e gosta do ar fresco. Mas Long Island é um sítio tão dolorosamente enfadonho. Não há lá absolutamente nada para fazer nem nenhum lugar decente onde fazer compras.

Ao chegar à casa, encontro-a vazia. Percebo que não venho cá há mais de uma semana, apesar de o Douglas dormir aqui quase todas as noites. Suponho que o meu marido e eu nos tenhamos afastado nos últimos tempos. A única altura em que fazemos sexo é uma vez por mês, quando estamos a tentar conceber.

A casa está limpa, ao menos – ao entrar pela porta, quase esperava encontrar caixas de piza sujas e meias usadas penduradas do sofá, porque o Douglas pode ser um pouco desmazelado. A sala de estar parece... acolhedora, suponho que seria a palavra certa.

0 Douglas livrou-se do sofá branco que eu escolhi e substituiu-o por um azul-escuro com almofadas de aspeto maltratado. Sento-me no sofá para esperar que chegue a casa e tenho de admitir que é confortável, apesar de incrivelmente feio.

Só quase às nove horas oiço o som da porta da garagem a abrir. Endireito-me no sofá, decidindo depois levantar-me. Será o tipo de conversa em que é preciso estar de pé. Posso senti-lo.

Passado um minuto, o Douglas entra pelas traseiras. Traz o cabelo mais em desalinho do que o habitual e tem olheiras a rodear-lhe os olhos. A gravata pende-lhe frouxamente em redor do pescoço e, ao ver-me na sala de estar, para bruscamente.

– Cancelaste os meus cartões de crédito – digo-lhe, por entre dentes cerrados.

– Perguntava-me o que seria preciso para te fazer vir aqui.

Achará que isto é algum tipo de piada?

– Estava a tentar almoçar e o meu cartão foi rejeitado. Fiquei sem forma de pagar. Dás-te conta disso?

O Douglas entra na sala de estar, acabando de tirar a gravata.

– O quê? O Russell não tinha o cartão de crédito dele?

Fico boquiaberta.

– Eu...

Atira a gravata para cima do sofá.

– Não compreendo por que estás tão surpreendida. Achas que podes andar por toda a cidade aos amas os com outro fulano e eu não vou descobrir? Achas que podes pagar um quarto de hotel com o meu cartão de crédito sem eu saber? Quão estúpido achas que eu sou?

– Eu... lamento. – Sinto o coração a palpitar. Nunca, jamais, ouvi o Douglas falar desta maneira, mas há uma parte de mim que se alegra por estarmos a ter esta conversa. Estou farta de estar casada com o Douglas Garrick. Ainda bem que estamos a pôr tudo às claras. – Não era minha intenção que acontecesse.

– Oh, por favor. É o melhor que consegues inventar? –Olha-me com repugnância. – E com o marido da Marybeth? Como foste capaz, Wendy? A Marybeth é praticamente família.

Família dele, talvez. Eu nunca gostei da mulher, mesmo antes de começar a dormir com o marido. E agora que sei a companheira inadequada que era para o Russell, detesto-a ainda mais.

– Ela sabe?

Abana a cabeça.

– Não podia fazer-lhe uma coisa dessas. Destrui-la-ia –resfolega. – Não que tu te importasses com isso.

– Não é como se tivéssemos o casamento perfeito, Douglas – saliento. – Sabes isso tão bem como eu.

O meu comentário tira-lhe parte do espírito combativo. Os seus olhos castanhos suavizam-se. No fundo, o meu marido é um pouco lorpa. Foi por isso que casei com ele em primeiro lugar. Sabia que me daria tudo o que eu quisesse.

– Acho que devíamos fazer terapia de casal – diz. – Encontrei um terapeuta altamente recomendado. Sei que estou ocupado, mas arranjarei tempo para isto. Para nós.

Imagino-me sentada com o Douglas no gabinete de um terapeuta, a discutir a nossa miríade de problemas, que se resumem a querermos coisas completamente diferentes da vida.

– Não sei...

– Wendy. – Acercando-se de mim, agarra a minha mão. Por um momento, permito-o, sabendo que a irei retirar daqui a poucos segundos. – Não quero desistir de nós. És a minha mulher. E, embora estejamos a ter algumas dificuldades nessa área, quero que sejas a mãe dos meus filhos.

Percebo que é neste momento que tenho de lhe confessar tudo. Tenho de arrancar o penso rápido ou então jamais me livrarei deste homem. E, ao fim de todo este tempo, merece a verdade.

– A realidade – digo – é que não posso ter filhos.

É ele, no fim de contas, o primeiro a retirar a mão.

– 0 que? De que estás a falar?

– Há muitos anos, tive uma infeção que destruiu as minhas trompas de Falópio – conto-lhe. Aconteceu quando tinha vinte e dois anos. Sentia dores horríveis na zona pélvica, e os médicos explicaram-me mais tarde que a infeção era assintomática até que alastrou para as minhas trompas. As dores eram tão fortes que fui submetida a uma intervenção laparoscópica para limpar parte do tecido cicatricial, e foi então que me informaram que jamais seria capaz de conceber um filho de forma natural. Há uma pequena hipótese de poder engravidar por meio das tecnologias reprodutivas, mas até isso é extremamente improvável devido à extensa cicatrização.

Na altura, foi devastador ouvi-lo, e amaldiçoei a minha sorte. Apesar de ter crescido pobre, ainda sonhava encher a minha casa de filhos um dia, tal como os meus pais tinham feito. Chorei durante vinte e quatro horas consecutivas ao saber da notícia.

Com o passar dos anos, porém, descobri que era uma bênção. Vi tantas das minhas amigas amarradas aos filhos, e como a prole de uma pessoa lhe pode secar as contas bancárias. Dei-me conta que era uma sorte não ter filhos. Na realidade, aquela infeção foi a melhor coisa que alguma vez me aconteceu.

O Douglas abana a cabeça.

– Não compreendo. Estás a dizer que, durante todo este tempo, sabias que jamais poderias engravidar?

– Isso mesmo.

Deixa-se cair no sofá confortável, com uma expressão vidrada nos olhos.

– Andamos a tentar há anos. Nunca disseste sequer uma palavra. Não posso acreditar que me mentiste dessa maneira.

Perturbei-o, mas é melhor assim. Como disse, o penso rápido precisava de ser arrancado.

– Sabia que não era o que querias ouvir.

Ergue os olhos para mim, ligeiramente húmidos.

– Bem, e quanto à adoção? Ou...

Oh, Senhor, a última coisa que eu quero é cuidar dos fedelhos de outra pessoa.

– Eu não quero filhos, Douglas. Nunca quis. O que quero é sair deste casamento.

– Mas... – Treme-lhe o maxilar inferior. Ainda tem aquela papada. Em todo o nosso casamento, não fiz quaisquer avanços no sentido de o ajudar a livrar-se dela. Acreditava que era uma obra em curso, mas nunca fiz verdadeiros progressos. – Eu amo-te, Wendy. Não me amas?

-Já não – respondo. É mais amável do que dizer-lhe que nunca o amei. – Já não quero estar contigo. Não te respeito e queremos coisas diferentes. É melhor seguirmos caminhos separados.

Quando tiver os meus dez milhões de dólares, não terei de me voltar a preocupar que cancele o meu estúpido cartão de crédito. Serei independente. O Russell pode deixar a mulher e poderemos fazer o que quisermos.

– Tudo bem. – Com esforço, o Douglas levanta-se. –Queres sair deste casamento? Assim seja. Mas não vais receber nem um cêntimo do meu dinheiro.

Infelizmente, não depende dele. Quer castigar-me, mas conheço os meus direitos.

– O acordo pré-nupcial dá-me dez milhões de dólares. Não pedirei mais do que isso.

– Certo. – A expressão vidrada desapareceu dos seus olhos castanhos, que se tornaram agora incisivos e se focam no meu rosto como um laser. – Recebes dez milhões de dólares se nos divorciarmos. Mas o acordo pré-nupcial diz que, se eu tiver provas de que me traíste, não recebes nada.

Lembro-me do grosso documento que o Joe me entregou antes do casamento. Tinha ponderado levá-lo a um advogado, mas podia ver, preto no branco, que dizia que eu recebia dez milhões em caso de divórcio. Não queria desperdiçar milhares de dólares que não tinha a contratar um advogado.

– Terei todo o gosto em mostrar-te a cláusula onde diz isso. – Um sorriso dança-lhe nos lábios. – Está logo na página cento e setenta e oito. Não sei como te escapou.

Cerro os punhos.

– O Joe enganou-me. Estava sempre tão decidido a fazer-te desconfiar de mim.

– Não, o acordo pré-nupcial foi ideia minha. Tal como a cláusula da infidelidade. – O Douglas desaperta o botão de cima do seu colarinho. – Disse-lhe para agir como se fosse ideia dele para que não te zangasses comigo. Queria que confiasses em mim. Apesar de eu não confiar em ti.

Com fúria crescente, olho para o meu marido.

– Não podes simplesmente pôr lá coisas sem me dizeres. Isso é... é enganar-me.

Arqueia as sobrancelhas.

– Oh, como quando te abstiveste de me contar que jamais poderias engravidar, queres tu dizer?

Sinto um aperto no peito. Torna-se um pouco difícil respirar. O Douglas estava sempre a falar em como o ar é muito melhor aqui, mas eu não o noto.

– Tudo bem. Mas boa sorte a provar que eu te fui infiel.

Ainda que me mate, não poderei ver o Russell por algum tempo. Não posso dar ao Douglas qualquer oportunidade de provar a minha infidelidade.

– Oh, não te preocupes. Já tenho fotografias, vídeos... é só escolher.

Arquejo.

– Contrataste um detetive para me espiar?

Fulmina-me com um olhar venenoso.

– Tudo o que tive de fazer foi instalar algumas câmaras ocultas no nosso próprio apartamento. Subtil, não?

Raios. Nunca devíamos ter sido tão descuidados. Se eu soubesse...

– Talvez possas recuperar o teu antigo emprego – observa o Douglas, pensativo. – Qual era mesmo? Não costumavas trabalhar num balcão da Macytf Parece divertido.

Odeio este homem. Senti muitas emoções por ele ao longo dos últimos três anos, mas nunca senti este tipo de ódio por ninguém na minha vida. Sim, não fui inteiramente honesta, mas deixar-me na penúria? É verdadeiramente um sádico.

– Não me divorcio de ti, então – digo. – Não assino os papéis. Não me tirarás da tua vida.

– Tudo bem – responde, com uma calma exasperante. –Mas não vais recuperar os teus cartões de crédito. E todas as contas bancárias estão em meu nome. Vou cortar-te o acesso.

Não sabia que o Douglas tinha isto em si. Mas suponho que não se chega a diretor-executivo de uma empresa tão grande sem se ter um par de tomates.

– Podes continuar no apartamento – acrescenta. – Por enquanto. Mas, daqui a uns meses, vou pô-lo no mercado. Assim, podes decidir o que queres fazer.

Dito isto, dá meia-volta e encaminha-se para fora da sala de estar. A sua gravata ainda está caída no sofá, e parte de mim sente-se tentada a agarrar nela, enrolar-lha à volta do pescoço e espremer-lhe a vida.

Não o faço, claro, mas é uma ideia incrivelmente apelativa.

Pois, se o Douglas se divorciar de mim com provas do meu adultério, não recebo nada. Mas, se morrer, segundo o seu testamento, fico com tudo.


56

Passo 6: Descobrir como Transformar o Seu Marido num Homem que Merece Morrer

Quatro meses antes

– O Douglas anda a ameaçar pôr o apartamento no mercado em breve – digo ao Russell. – Não sei o que fazer.

Estamos deitados juntos na gigantesca cama kingsize do quarto principal. Sentia pânico de cá voltar após ter sabido das câmaras que o Douglas tinha instalado, por isso contratei um especialista para as encontrar e desmantelar. Não ficar neste apartamento não era uma opção –afinal, é tão meu como do Douglas. Fui eu que escolhi esta cama, embora possa provavelmente contar pelos dedos das mãos o número de vezes que o Douglas dormiu nela. Nunca gostou deste apartamento. O Russell, por outro lado, está completamente apaixonado por ele. Aprecia-o tanto como eu.

Mas, ainda que recebesse os dez milhões de dólares, não poderia ficar aqui. E, sem esse dinheiro, é um sonho ridículo.

– Não o fará. – O Russell passa os dedos pela minha barriga nua. – Se vender o apartamento, terão de viver juntos. E ele não quer isso.

Dá-me vontade de deitar as mãos à cabeça.

– Sabe-se lá o que ele quer! Está só a tentar castigar-me. – Toda a minha mentira sobre tentar engravidar levou-o claramente para lá dos limites. Quer que sofra pelos meus pecados. – Mas o que posso eu fazer?

– Podias divorciar-te dele na mesma – sugere. – E ficar comigo. Eu deixo a Marybeth.

– Mas ficaremos na miséria!

– Não ficaremos, não. – Parece ofendido com essa sugestão. – Tenho a minha loja. E tu também podias arranjar algo. Não ficaremos na penúria.

Às vezes, sinto que eu e o Russell fomos feitos um para o outro, mas outras vezes diz coisas assim.

Por agora, vou esperando. Quando o Douglas e eu nos divorciarmos, acabou-se – não tenho direito algum ao seu dinheiro. Por isso, todos os dias torço para que, ao descer a rua, seja atropelado por um autocarro. Acontece constantemente na cidade. Por que não pode acontecer ao meu marido, por uma vez?

– Se ao menos morresse – digo. – Seria de esperar, com a quantidade de comida gordurosa que consome, que já tivesse caído fulminado por um ataque cardíaco.

– Só tem quarenta e dois anos.

– Há muitos homens a morrer de ataque cardíaco na casa dos quarenta – saliento. – O Douglas até toma medicamentos para o coração. Podia acontecer.

– Esperar que o Douglas tenha um ataque cardíaco não é um plano sólido para o futuro.

O Russell não parece gostar de fantasiar com a morte do Douglas da mesma forma que eu. Mas isso é só porque não o conhece como eu.

– Tem de haver uma saída para esta situação do acordo pré-nupcial – comento. – O Douglas está a ser um sacana sádico e tem de pagar pela maneira como me tem vindo a tratar. Devia haver algum modo de castigar os maridos que tratam as mulheres desta forma. Cortar-me o dinheiro e ameaçar tirar-me a minha casa... Isso é basicamente, tipo, abuso.

Ao dizer as palavras, algo aflora ao fundo do meu pensamento. Uma história que a minha amiga Audrey me contou há séculos. Sobre uma empregada doméstica que defende as mulheres que são maltratadas pelos maridos.

E dura, acredita... Se achar que um tipo anda a fazer mal a uma mulher, fará basicamente tudo para o parar.

Fecho os olhos, tentando lembrar-me do nome da mulher. E então ocorre-me:

Millie.

O Douglas não é terrível da mesma forma que o marido da Ginger era – não é fisicamente abusivo. Mas não deixa de ser maléfico e manipulador. O abuso não é necessariamente apenas físico – não será ter o meu marido a expulsar-me da minha própria casa e a deixar-me na miséria tão abusivo como partir-me um osso?

Concordaria essa mulher das limpezas com isto? Não sei. Talvez precisasse de um pouco de persuasão.

Mas... e se visse um homem tratar-me terrivelmente e acreditasse ser o meu marido? Claro que não poderia ser realmente o Douglas, pois anda ativamente a evitar-me. E jamais me poria fisicamente as mãos em cima, ainda que eu o provocasse. Mas essa tal Millie não sabe quem é o meu marido. O Douglas limpou meticulosamente a Internet de fotografias suas. Se a Millie visse um homem a bater-me, sentir-se-ia impelida a ajudar-me. Se o que ele fizer for suficientemente mau, nem serei capaz de a impedir.

Lentamente, começa a formar-se um plano na minha cabeça.

57

Algumas semanas antes

Ao ver-me ao espelho, quase grito.

O meu rosto parece um pesadelo de florescentes hematomas púrpura, misturados com outros a esmorecer em amarelo. É doloroso de contemplar. O Russell vê-me dar os últimos retoques na maçã do rosto e parece impressionado.

– És uma mágica, Wendy – diz-me. – Parece real.

Passei horas a praticar. Vi vários vídeos no YouTube, e sou agora uma especialista mundial em criar hematomas de aspeto realista. Parece realmente que alguém me deu uma tareia substancial.

Espero que a Millie aprecie o trabalho despendido nesta obra-prima.

De modo geral, a Millie parece estar a acreditar verdadeiramente na nossa pequena encenação. E, além disso, é uma excelente cozinheira e empregada doméstica. Até me conseguiu arranjar alguns cucamelões – os meus preferidos. É uma pena o que lhe vai acontecer.

Mas não há outra maneira.

– Está quase perfeito – digo, guardando a minha paleta de maquilhagem. – Só falta uma coisa.

O Russell arqueia uma sobrancelha. Tem vindo a representar na perfeição o papel de Douglas desde que a Millie chegou. É incrível – quando se combinam a aparência e a personalidade do Russell com a riqueza e o poder do Douglas, obtém-se verdadeiramente o homem ideal.

– A sério? A mim parece perfeito.

Inspeciono o meu rosto ao espelho uma vez mais. Perfeito não chega. Tem de ser melhor do que perfeito. Se a Millie suspeitar por um segundo que isto é maquilhagem, acaba-se o jogo. Tem de ser impecável.

– Tens de me dar um murro – anuncio.

O Russell atira a cabeça para trás e solta uma risada.

– Certo. Parece-me bem.

– Falo a sério. Preciso que me abras o lábio. Tem de parecer real.

O sorriso apaga-se do rosto do Russell ao perceber que o digo cem por cento a sério.

– O quê?

– Ela não pode desconfiar que isto é maquilhagem – explico-lhe. – E não posso simular um lábio fendido com o material que tenho. Tens de me esmurrar.

O Russell lança-me um olhar horrorizado ao mesmo tempo que se afasta de mim.

– Não te vou dar um murro na cara.

– Não tens de te sentir mal. Estou a dizer-te para o fazeres.

– Nunca bati numa mulher na minha vida – parece ligeiramente indisposto. O que me leva a questionar se terá a fibra necessária para ir avante com este plano. Terá de fazer bem pior do que dar-me um murro no rosto antes de isto terminar. – Não te vou bater, Wendy.

– Tens de o fazer.

– Não farei. Não posso.

Estou tão frustrada que me apetece gritar. Pensará que isto é uma piada? Tenho umas pequenas poupanças na minha conta pessoal, que guardei para dias difíceis, além de algum dinheiro que fiz a vender joias e roupa. Mas tenho estado a usá-las para viver e para pagar o salário –extremamente generoso, devo acrescentar – da Millie. Gastei já também uma parte a comprar um vestido que a polícia acabará por suspeitar que o Douglas deu à Millie, bem como uma cara pulseira gravada. E, claro, enchi o armário de produtos de limpeza que adquiri a pretexto de ter alergias terríveis, mas que realmente comprei para que o porteiro não apanhasse a Millie a carregar frascos de detergente para o chão e cera para móveis.

Seja como for, o dinheiro não vai durar muito mais tempo. Tenho de acabar com isto – em breve.

Preciso que me esmurre.

– És patético – cuspo-lhe. – Não posso crer que te recusas a fazer esta coisinha por mim. Temos uma hipótese de deitar a mão à sorte grande, e aqui estás tu, a dar cabo de tudo.

– Wendy...

Lanço-lhe um sorriso escarninho.

– Não admira que, na casa dos quarenta, não passes de um vendedor de mobília. Patético.

– Basta, Wendy – diz o Russell, entredentes.

A sua mão direita cerra-se num punho. É sensível em relação à sua carreira. Sei que sim. Sempre sonhou ser um empresário de sucesso, e gerir uma pouco próspera loja de móveis antigos está bem longe desse sonho. Podia ajudá-lo a fazer muito mais – podia transformá-lo no homem que quer ser. No homem que merece ser.

Só precisa de me bater.

– És cá um falhado – prossigo. – O que vais fazer quando a loja falir? Arranjar um emprego no McDonald’s, a salgar batatas fritas?

– Chega! Para!

– Queres que pare? Então bate-me!

Antes que eu sequer perceba o que está a acontecer, uma explosão de dor eclode do lado esquerdo do meu rosto. Arquejo e cambaleio para trás, agarrando-me ao toalheiro. Por um segundo, vejo estrelas.

– Wendy! – O grito angustiado do Russell arranca-me ao meu torpor. – Jesus Cristo, peço imensa desculpa!

Parece estar à beira das lágrimas, mas não se sente tão mal como o meu rosto. Céus, acertou-me mesmo com força. Não tinha a certeza de que fosse capaz. Toco no rosto e percebo que há sangue a jorrar do meu nariz.

– Estás a sangrar – arqueja.

Foi à procura de alguns toalhetes de papel, e faço os possíveis por estancar o fluxo de sangue do meu nariz. Ao fim de alguns minutos, parece parar. Bem, maioritariamente.

Quando olho para o Russell, as suas poderosas sobrancelhas estão franzidas.

– Estás bem? Peço imensa desculpa.

A casa de banho está um desastre. O meu sangue gotejou pelo chão todo. E há uma marca ensanguentada de uma mão na beira do lavatório, onde me agarrei enquanto tentava desesperadamente fazer com que o meu nariz parasse de sangrar.

Oh, meu Deus, é perfeito.


58

Passo 7: Matar o Sacana

Na noite em que Douglas foi assassinado

As engrenagens rangem dolorosamente no elevador. Chegou.

É este o momento. Foi para isto que passámos os últimos meses a trabalhar. A Millie saiu do apartamento há uma hora, trémula e convencida de que tinha acabado de assassinar o meu marido. A polícia interrogá-la-á. Ela quebrará e confessará o que fez. E eu terei plantado cuidadosamente provas para os convencer que o fez porque andava a ter um caso com o Douglas. Não me posso dar ao luxo de ser envolvida.

Agora, só resta uma peça no quebra-cabeças. Temos de matar o Douglas, desta vez a sério.

O Russell está à espera na cozinha, segurando a arma que a Millie ainda agora usou para o alvejar com um cartucho vazio – só que, desta vez, com balas reais. Está pronto.

As portas do elevador abrem-se e eu desço o corredor para ir cumprimentar o meu marido uma última vez. Paro bruscamente, surpreendida pela sua aparência. Perdeu peso desde a última vez que o vi e tem olheiras púrpura cravadas debaixo dos olhos. Tem uma barba de pelo menos dois dias no queixo.

– Estás com um aspeto horrível – deixo escapar.

O Douglas ergue bruscamente o olhar.

– Prazer em ver-te também, Wendy.

– Quero dizer... – Afasto uma madeixa de cabelo da cara. Limpei cuidadosamente toda a maquilhagem dos meus falsos hematomas depois de a Millie partir. – Quero dizer que pareces... cansado.

Ele solta um longo e atormentado suspiro.

– Tenho andado a trabalhar noite e dia numa nova atualização do software. E então tu ligas-me a implorar que venha cá praticamente a meio da noite.

– Trouxeste-os?

O Douglas ergue a pasta de cabedal esfarrapada que traz sempre consigo.

– Tenho os papéis do divórcio aqui mesmo. Espero que estejas pronta para assinar.

Não propriamente. Mas não precisa de saber disso.

Levo o Douglas à sala de estar. O meu corpo retesa-se, esperando que o Russell saia da cozinha e alveje o meu marido à queima-roupa no peito. É suposto fazê-lo assim que entrarmos na sala. É suposto fazê-lo... agora.

Maldição.

O Douglas consegue percorrer todo o caminho até ao nosso sofá modular sem ser assassinado pelo meu amante. Fico bastante desiludida. Deixa-se cair na almofada e pousa a pasta na mesa de café.

– Vamos acabar com isto – murmura.

Não, ainda não. Não o trouxe aqui para assinar os papéis do divórcio. Isso é o oposto do porquê de eu o querer aqui. Só que o Russell não sai. Não o vejo nem consigo ouvi-lo. O que se passa?

– Posso ir buscar-te algo para beber? – pergunto. Parece estar prestes a recusar, por isso prossigo rapidamente. –Vou buscar-te um pouco de água.

Antes que o Douglas possa protestar, lanço-me em direção à cozinha, deixando-o para trás no sofá com os papéis do divórcio. Neste momento, estou absolutamente furiosa. Até aqui, tudo correu exatamente da forma como planeei. Só mais uma coisa precisa de acontecer. O Russell tem de matar o Douglas.

Quando entro na cozinha, porém, o Russell está encolhido ao canto. A arma está em cima da bancada e parece estar a ter um ataque de pânico. Agarra-se à bancada com as luvas de cabedal e tem a respiração acelerada, o rosto branco como um lençol.

– Russell! – silvo-lhe. – De que raio estás à espera?

Tem sido extraordinariamente difícil esta noite. Antes mesmo de a Millie chegar, já ele ameaçava recuar, enumerando uma lista de preocupações. Tens a certeza que é seguro ser alvejado com um cartucho vazio? Não foi assim que o Brandon Lee morreu? E se ela decidir antes esfaquear-me?

Finalmente, convenci-o a ir avante com a cena em que fingia estrangular-me. E, depois de a Millie o ter alvejado com o cartucho vazio e ele não ter morrido, pensava que tínhamos ultrapassado isto – a parte mais difícil estava feita. Só que agora parece estar a ter dificuldades em sorver ar para os seus pulmões.

– Não sou capaz – diz, engolindo em seco. Tem a fronte transpirada e as suas poderosas sobrancelhas fundiram-se ao meio da testa. – Não posso alvejá-lo, Wendy. Por favor, não me obrigues.

Está a brincar? Passámos meses a engendrar isto juntos. Tivemos tanto cuidado em entrar sempre pela porta das traseiras e preparar o cenário exatamente da forma certa. Mal saio do apartamento, pois não posso correr o risco de me cruzar com a Millie, e tenho dedicado toda a minha energia a dar a impressão que o Douglas ainda vive aqui. Cheguei mesmo a comprar um monte de roupa de homem para ela poder lavar. (Apesar de, no primeiro dia, me ter estupidamente esquecido de a desdobrar toda. Estou certa que achou que éramos um bando de psicopatas que dobram a própria roupa suja.) Gastei tanto tempo e energia a planear tudo isto.

E agora aqui está ele, prestes a arruinar tudo.

– És absolutamente ridículo – cerro os dentes. – Qual é o teu problema? Era este o plano desde o início! É assim que vamos conseguir tudo o que queremos.

– Eu não quero isto! – a sua voz é um sussurro urgente. – Só quero estar contigo. E ainda podemos – atravessa a cozinha e tenta enlaçar-me a cintura com as mãos. – Escuta, não temos de fazer isto. Podemos partir agora mesmo. Tu deixas o Douglas, eu deixo a Marybeth, e podemos estar juntos. Não temos de o matar.

– Só que então não teremos nada – afasto o seu abraço, furiosa. Pensava que o Russell queria as mesmas coisas que eu, mas agora já não tenho assim tanta certeza. Porque, se quisesse, o meu marido já teria neste momento uma bala no peito. – É a única maneira, Russell.

– Não quero fazer isto. – Agora está a choramingar. –Não quero matá-lo, Wendy. Por favor, não me obrigues a fazer isto. Por favor.

Oh, Senhor.

Estou há demasiado tempo nesta cozinha. O Douglas vai começar a perguntar-se por que estou a demorar tanto e virá investigar. Ou pode até ouvir o Russell a entrar em pânico. Não tenho tempo para fazer um discurso motivacional. Tenho de tratar disto eu mesma.

De debaixo do lava-loiça, tiro um par das luvas de borracha descartáveis que a Millie usa para limpar a cozinha. Enfio-as nas mãos, servindo depois ao meu marido um último copo de água. Agarro na arma, mas, após hesitar um pouco, guardo-a no bolso do meu casaco. Os bolsos são grandes e a arma cabe perfeitamente – é como se, ao vesti-lo, soubesse já que ia ter de fazer isto, pois o Russell ia portar-se como um bebé grande e quase dar cabo de tudo.

Quando regresso à sala de estar, o Douglas está sentado no sofá, a folhear a pilha de papéis que é o nosso acordo de divórcio. Há muito que me pede para o assinar, e eu tenho vindo a recusar. Sabia que aceitar fazê-lo o faria vir aqui.

Com a mão livre, tateio a arma no bolso do meu casaco. É pesada, distendendo ligeiramente o tecido. Não há razões para esperar. Podia sacá-la agora mesmo e matá-lo. Mas não. Tenho de o fazer olhos nos olhos. Para que pareça que a Millie o alvejou de frente.

E, além do mais, parte de mim quer ver-lhe a cara quando o fizer. Para que entenda as consequências de se meter comigo. Tentou tirar-me tudo e deixar-me na miséria, e agora terá o que merece.

Rapidamente, pouso o copo de água em cima da mesa, antes que possa reparar que estou a usar luvas de borracha. Em seguida, enfio as mãos de novo nos bolsos. Foi a Millie quem arrumou este conjunto de loiça, pelo que as suas impressões digitais estarão espalhadas por todo o copo. É demasiado perfeito.

– Tenho uma caneta por aqui algures – murmura o Douglas, vasculhando o interior da velha pasta. Ao fim de um momento, tira uma esferográfica. – Aqui está.

– Muito bem, então. – Os meus dedos cerram-se em torno do revólver no meu bolso. – Vamos acabar com isto, como disseste.

O Douglas começa a estender-me os papéis, mas depois para. Os seus ombros descaem.

– Não quero que seja assim, Wendy.

Franzo-lhe o sobrolho.

– O que quer isso dizer?

– Quer dizer que... – Atira os papéis do divórcio para cima da mesa de café. – Eu amo-te, Wendy. Não me quero divorciar. Tenho andado doente com isso. Não interessa o que aconteceu no passado... Gostaria de começar de novo. Só nós os dois.

Há uma expressão esperançosa no seu rosto. Tenho de admitir que a ideia é apelativa. Por mais que tenhamos planeado os acontecimentos desta noite, não há garantia que o Russell e eu conseguiremos sair impunes de um homicídio. O meu plano original era passar a minha vida com o Douglas e, embora não tenha conseguido moldá-lo no que queria, não é inteiramente objetável. E, acima de tudo, teremos quantidades indescritíveis de dinheiro. Pode-se ser feliz com qualquer pessoa, se houver dinheiro que chegue.

– Talvez... – digo.

Um sorriso toca-lhe os lábios e os círculos púrpura sob os seus olhos aligeiram um pouco.

– Gostaria muito. Gostaria de recomeçar completamente do zero.

– Em que sentido?

– Em primeiro lugar, quero livrar-me de tudo isto. – Olha para o nosso espaçoso apartamento. – Não precisamos deste espaço gigantesco, ou sequer da casa enorme em Long Island, se vamos ser só nós os dois. Todo este dinheiro atravessou-se no caminho do nosso casamento. Temos demasiado. – Sorri timidamente. – Falei com o Joe sobre criar uma fundação beneficente com grande parte do meu dinheiro. Podemos fazer tanto bem, sobretudo se não vamos ter filhos... Sabe Deus que nós não precisamos dele. Talvez possas fazer parte da fundação? Podíamos fazê-lo juntos.

Terá perdido o juízo? Como pode achar que é isso que eu quero?

– Douglas, eu não quero isso. Quero voltar às nossas vidas tal como eram dantes.

– Mas dantes não eras feliz. – O seu rosto ensombra-se. – Traíste-me. Estávamos completamente desligados.

Cerro os dentes.

– E, então, achas que a pobreza nos fará felizes?

– Não, mas... – Esfrega as mãos nos joelhos. – Olha, não seremos pobres. Deixaremos apenas de ser zilionários. E não vejo nenhum mal nisso. Como disse, nem sei para que precisamos de todo este dinheiro. Nem sequer o

quero!

E é por isto que eu e o Douglas nunca seremos felizes juntos. Simplesmente não compreende. Não sabe o que é termos as outras raparigas a rirem-se de nós e a perguntar se encontrámos o nosso casaco no caixote do lixo. Não sabe o que é ter um pai que se magoou nas costas, pelo que recebe uma pensão de invalidez, mas em que os pagamentos não são suficientes para manter as luzes acesas, pelo que de vez em quando há que fazer tudo às escuras, com lanternas. E ainda que as nossas irmãs ajam como se fosse uma aventura, não é. Não é uma aventura. É ser-se miseravelmente pobre e não ter nada.

O Douglas não compreende isso. Nunca compreenderá. Temos finalmente o dinheiro com que eu sonhava enquanto fazia os meus trabalhos de casa à luz de uma lanterna e quer simplesmente doá-lo todo! Deixa-me tão zangada que sinto vontade de estender as mãos e estrangulá-lo como o Russell me fingiu estrangular mais cedo, só que desta vez a sério.

Só que eu não preciso de o estrangular.

Tenho uma arma no bolso.

Puxo da arma e a minha mão mantém-se surpreendentemente firme ao apontá-la ao peito do meu marido. Os seus olhos ligeiramente raiados de sangue arregalam-se. Sabia que as coisas estavam más, mas não sabia que estavam assim tanto.

– Wendy – crocita. – O que estás a fazer?

– Acho que sabes.

O Douglas olha para o cano da arma e o seu corpo parece encolher. Abana a cabeça de forma quase impercetível. Seria de esperar que pudesse implorar pela vida, mas não o faz. Há uma expressão de resignação nos seus olhos.

– Alguma vez sentiste amor por mim, realmente? – pergunta.

A resposta a essa pergunta feri-lo-ia nos seus sentimentos. Apesar de tudo, não quero destruí-lo nos seus últimos instantes de vida.

– Não é disso que se trata – limito-me, pois, a responder.

Nunca antes disparei uma arma, mas sempre me pareceu algo óbvio. Pensava que seria o Russell a fazê-lo, mas continua escondido na cozinha, por isso cabe-me a mim.

O tiro é muito mais forte do que eu julgava que seria –um poderoso estrondo que parece ecoar pela sala muito depois de a arma ter disparado. A força sobe-me pelos braços até aos ombros e projeta-me o pescoço e a cabeça para trás. Mas mantenho as mãos firmes.

A bala atinge o Douglas em cheio no peito. É um bom tiro, sobretudo para a minha primeira vez. Há um segundo ou dois, antes de morrer, em que olha para o sangue que alastra rapidamente pela sua camisa branca e compreende o que está prestes a acontecer. Mas, então, a cor esvai-se do seu rosto e desaba sobre o sofá. Os seus olhos ainda estão entreabertos, revirados nas órbitas, e o seu peito não se mexe.

– Lamento – digo, baixinho. – De verdade que sim. Oxalá tivéssemos podido fazer com que resultasse.

Ainda sinto os ouvidos a tinir quando o Russell aparece a correr. A primeira coisa que faz é tapar a boca com a mão, e eu só penso para comigo que espero que não vomite o chão todo. Isso daria realmente cabo das coisas quando a polícia chegar.

– Fizeste-o – arqueja. – Não posso acreditar que o fizeste.

– Fiz. – Ergo-me do sofá e largo a arma na mesa de café. Tiro as luvas de borracha das mãos. – E, se não queres ir para a prisão, sugiro que saias daqui imediatamente.

O Russell parece estar ainda a tentar controlar a sua respiração.

– Achas mesmo que podes atirar com as culpas de tudo isto para a Millie?

– Vê só.

TERCEIRA PARTE

59

MILLIE

A minha cabeça não para de andar à roda.

Desligo a televisão e fecho os olhos por um minuto. Ainda só passou um dia desde que alvejei mortalmente um homem num apartamento no Upper West Side, mas o que acabo de ver mudou tudo.

Tento visualizar o Douglas Garrick. Vejo claramente o seu cabelo penteado para trás, os seus profundos olhos castanhos, as suas maçãs do rosto salientes. Vi-o inúmeras vezes nos últimos meses. E aquele homem na reportagem da televisão não era ele.

Ou, pelo menos, não me parece.

Agarro no meu telemóvel e abro o navegador da Internet. Já anteriormente pesquisei pelo Douglas Garrick, e sempre houve artigos sobre o seu cargo de diretor-executivo da Coinstock, mas nunca qualquer foto. Agora, porém, dúzias de ligações enchem o ecrã, e posso carregar em qualquer uma delas para abrir a mesma foto de rosto do Douglas Garrick.

Estudo a foto no ecrã do meu telemóvel. Este homem tem vagas parecenças com aquele que eu conheço, mas não é ele. O homem na fotografia tem, pelo menos, mais uns dez ou doze quilos do que o que eu conheci, e aquele incisivo esquerdo torto também é diferente. E todas as suas feições são ligeiramente distintas – o nariz, os lábios, a ligeira papada. Embora suponha que algumas pessoas pareçam mesmo diferentes nas fotografias do que são na vida real. Talvez esteja muito retocado?

Talvez seja a mesma pessoa. Tem de ser, não tem? Porque, caso contrário, nada disto faz qualquer sentido.

Oh, meu Deus, sinto que estou a enlouquecer.

Talvez esteja realmente a ficar louca. Talvez tenha andado a ter um caso secreto com o Douglas Garrick. Quer dizer, aquele detetive parecia certamente ter muitas provas. E, ao que parece, a Wendy Garrick disse que era verdade.

Mas eu não passei a noite naquele hotel com o Douglas (ou quem quer que fosse o homem que eu conhecia como tal). E posso prová-lo. Porque regressei à cidade depois de deixar a Wendy. E tenho uma testemunha.

Enzo Accardi.

Estava relutante em contactar o Enzo, mas não tenho alternativa. O meu namorado abandonou-me, o que não foi totalmente surpreendente, mas não deixou de ser desolador. Nos últimos quatro anos, tenho sido terrível a aproximar-me das pessoas, por ter tanto medo do que irão pensar de mim quando souberem do meu passado. E com razão. Mal soube do meu registo criminal, o Brock desapareceu. E por isso aqui estou, sem ninguém do meu lado. Ninguém que acredite em mim.

Exceto o Enzo. Ele acreditará em mim.

E, se não acreditar, é assim que saberei que estou realmente em apuros.

Encontro o nome do Enzo nos meus contactos, à minha espera, como sempre. Hesito por uma fração de segundo, depois carrego no seu nome.

O telefone mal começou a chamar quando atende. Quase desato a chorar ante o som da sua voz familiar.

– Millie?

– Enzo – consigo dizer. – Estou em grandes sarilhos.

– Sim. Eu vi as notícias. O teu patrão está morto.

– Então, hã... – tusso para a mão. – Há alguma hipótese de poderes vir cá?

– Dá-me cinco minutos.


60

Quatro minutos depois, estou a abrir a porta ao Enzo.

– Obrigada – digo-lhe, enquanto entra no meu o apartamento. – Não... não sabia a quem mais ligar.

– O Brócolo não está aqui para ajudar? – zomba.

Baixo os olhos.

– Não. Isso acabou.

O seu rosto esmorece.

– Lamento. Sei que gostavas do Brócolo.

Gostava? Tinha-lhe carinho, mas a verdade é que, de cada vez que dizia que me amava, causava-me arrepios. Não é isso que é suposto sentirmos pelo nosso companheiro. O Brock era praticamente perfeito, mas nunca me consegui apaixonar completamente – sempre me pareceu temporário. Estou certa de que fará alguma outra mulher extremamente feliz, mas nunca iria ser eu.

– Estou bem – acabo por dizer. – Tenho problemas maiores neste momento.

O Enzo segue-me para o interior do apartamento e sentamo-nos no meu sofá maltrapilho. Quando morávamos juntos, o nosso sofá era apenas ligeiramente melhor do que este. Mas tive de desistir desse apartamento quando deixou de estar disponível para pagar a sua metade da renda, e não consegui arranjar uma forma de transportar o sofá, por isso deixei-o para trás. Tento não pensar nisso agora, ainda assim. Não faz sentido ficar irritada com o Enzo quando está a tentar ajudar-me.

– A polícia anda a dizer todo o tipo de coisas malucas a meu respeito – conto-lhe. – A Wendy disse-lhes que eu estava a ter um caso com o Douglas. Não faz sentido, mas distorceram todas estas coisas que aconteceram para dar a ideia de que eu ia lá para dormir com ele.

Lentamente, o Enzo assente.

– Eu disse-te que eles eram perigosos.

– Disseste que o Douglas Garrick era perigoso.

– Vai dar ao mesmo.

– Não, não vai – digo. – Na verdade, quando estava a ver as notícias agora mesmo, percebi uma coisa. O homem que me contratou, que se identificava como Douglas Garrick, não é o mesmo homem das notícias. É alguém completamente diferente.

Agora, o Enzo está a olhar para mim como se eu tivesse perdido o juízo.

– Sei que parece loucura – admito. – Oiço as palavras que me saem da boca e... Como disse, sei que é estranho. Mas era um tipo diferente naquele apartamento. Tenho a certeza.

Quanto mais penso no assunto, mais certa me sinto. Mas, se aquele não era o Douglas, então quem era? E onde estava o verdadeiro Douglas enquanto aquele sujeito estava em sua casa?

Quem é o homem que eu assassinei?

– Vou contar-te algo interessante – diz lentamente o Enzo. – Quando me falaste nos Garrick, fui investigá-los. E sabes que mais? Aquele apartamento em Manhattan não está listado como a sua residência principal.

– 0 que?

– Sim, é verdade. Esse apartamento é só um extra. A residência principal é uma casa em Long Island. Bem, dizem que é uma casa. Provavelmente, é mais tipo uma mansão.

Começa a fazer um pouco mais de sentido. Se, na realidade, o verdadeiro Douglas Garrick vivia em Long Island, então seria fácil para duas outras pessoas darem a impressão de que estavam a viver no apartamento de Manhattan. O verdadeiro Douglas Garrick nunca teria de saber.

– Então – digo eu –, acreditas em mim?

O Enzo parece ofendido.

– É claro que acredito em ti!

– Mas há algo que precisas de saber – limpo as mãos suadas às minhas calças de ganga. – Na noite em que o Douglas foi morto, eu vi... Bem, pensei tê-lo visto a tentar estrangular a Wendy. Vi alguém a tentar estrangulá-la no apartamento. E não parava. Por isso, agarrei na arma deles e... dei-lhe um tiro. Para o fazer parar.

Nunca fui muito de chorar, mas sinto as lágrimas aflorar pela segunda vez no dia de hoje. O Enzo estende os braços para mim e eu soluço contra o seu ombro. Abraça-me durante muito tempo, deixando-me chorar tudo. Quando finalmente me afasto, deixo para trás uma mancha húmida na Sua T-shirt.

– Desculpa ter-te estragado a camisola – digo.

Ele sacode a mão.

– É só um pouco de ranho. Nada de especial.

Baixo os olhos.

– Simplesmente não sei o que fazer. A polícia acha que matei o Douglas Garrick. E, embora saiba que não o fiz, alvejei alguém nessa noite. Alguém está morto por minha causa.

– Isso não é certo.

– É claro que é!

– Achas que mataste alguém – salienta. – Mas, depois de o alvejares, vieste para casa. Confirmaste que estava mesmo morto? Sem respiração? Sem pulsação?

– Eu... A Wendy disse que não tinha pulsação.

– E acreditamos na Wendy?

Pestanejo.

– Havia sangue, Enzo.

– Mas seria mesmo sangue? O sangue é fácil de simular.

Franzo o sobrolho, pensando na noite de ontem. Aconteceu tudo tão depressa. A arma disparou, o Douglas caiu, e então todo aquele sangue começou a alastrar sob o seu corpo. Mas não é como se eu o tivesse ido examinar. Não sou paramédica. Depois de o alvejar, tudo o que eu queria era sair dali o mais depressa possível.

Será possível que nada daquilo tenha sido real? E se não foi...

– Ela enganou-me – arquejo. – Enganou-me por completo.

Passei todo esse tempo a sentir pena dela. A tentar protegê-la. E ela, entretanto, dizia a quem quisesse ouvir que eu andava a ter um caso com o marido – foi certamente por isso que a Amber Degraw me sorriu ao referir o Douglas Garrick naquele dia em que me cruzei com ela na rua. Não é de admirar que o porteiro me estivesse sempre a piscar o olho! E ninguém sabia que eu nunca estava sozinha com o Douglas porque ele entrava pelas traseiras, onde não há porteiro nem câmara.

Não, não com o Douglas. Nunca conheci o Douglas Garrick. Não faço ideia quem era aquele outro homem.

– Onde é a casa da Wendy? – pergunto. – Preciso de falar com ela.

– Achas que podes ir lá? – abana a cabeça. – Há um milhão de jornalistas à volta da casa. E, seja como for, ela não falará contigo. Se lá fores, só trará mais problemas.

Sei que tem razão, mas não deixa de ser superfrustrante. Depois do que ela me fez, só quero olhá-la nos olhos e perguntar-lhe porquê. Mas está certo. Nada de bom resultará de lá ir.

– Esse homem que se identificava como Douglas Garrick... – sonda o Enzo, esfregando o queixo. – Fazes alguma ideia de como o podemos encontrar? Pode ser mais fácil chegar a ele do que à Wendy Garrick.

– Não – cerro os punhos de frustração. – Tudo o que sei é que não se chama Douglas Garrick. Não faço ideia quem realmente é.

– Tens uma fotografia dele?

– Não, não tenho.

– Pensa, Millie. Tem de haver alguma coisa. Talvez um pormenor que o distinga?

– Não. É só um branco genérico de meia-idade.

– Tem de haver alguma coisa...

Fecho os olhos, tentando evocar uma imagem do homem que se identificava como Douglas Garrick. Não havia absolutamente nada de distintivo nele, e talvez tenha sido por isso que a Wendy o escolheu. Parece-se o suficiente com o verdadeiro Douglas Garrick.

Mas o Enzo tem razão. Tem de haver alguma coisa...

– Espera – digo eu. – Há mesmo alguma coisa!

O Enzo arqueia as sobrancelhas.

– Sim?

– Vi-o entrar num prédio uma vez – recordo. – Estava com outra mulher. Uma loura. Pensei que fosse alguma mulher com quem andava a ter um caso, e talvez fosse. Mas... era um prédio de apartamentos. Ou ele ou a mulher vivem lá, ou...

– Isso é bom. – O Enzo faz estalar os nós dos dedos. –Iremos lá e encontrá-lo-emos a ele ou à mulher. Então, obteremos a verdade.

Pela primeira vez desde que o detetive Ramirez me interrogou na esquadra, sinto uma centelha de esperança. Talvez haja uma hipótese de sair disto com a minha liberdade intacta.


61

O Enzo ajuda-me a limpar o meu apartamento, visto que parece ter sido atingido por um furacão após as buscas da polícia. Felizmente, são só dois quartos, pelo que, apesar da confusão, não demora assim tanto tempo. Acima de tudo, estou grata pela companhia. Seria tão deprimente limpar tudo isto sozinha.

– Obrigada por fazeres isto – digo-lhe, pelo que parece ser a centésima vez, enquanto guardamos as roupas da minha cómoda que agora parecem estar espalhadas por todo o quarto.

– Não é incómodo algum – responde.

Ao largar uma camisola no cesto da roupa suja, noto que não está tão cheio como parecia ontem. Vasculho as roupas – falta qualquer coisa.

Levaram a roupa que eu trazia ontem à noite.

Roo a unha do polegar, tentando lembrar-me da camisola e das calças de ganga que despi ontem à noite antes de cair na cama. Não tinham sangue – tenho a certeza disso.

Quase a certeza, pelo menos. Mas e se havia pequenas partículas microscópicas que serão descobertas ao testar? Parece possível. Ainda que, a estar certa a teoria do Enzo, nunca tenha havido nenhum sangue enquanto eu estava naquele apartamento. Mas não tenho a certeza absoluta.

O Enzo está ocupado a enfiar roupas numa gaveta. Estou grata por estar aqui, mas parte de mim quer que parta para eu poder entrar em pânico plenamente.

Pigarreio.

– Se tiveres de ir, não faz mal – digo-lhe.

– Não, isto é divertido. – Ergue umas cuecas cor-de-rosa rendadas que estão no chão. – Isto é bonito. São novas?

Aproximo-me e arranco-as das suas mãos. É uma boa distração, ao menos.

– Não me lembro.

– Consigo perceber por que gostava o Brócolo tanto de ti, com cuecas tão bonitas.

Lanço-lhe um olhar.

– Enzo...

– Desculpa. – Vejo-o baixar a cabeça. – Eu só... não o percebo.

Há mais de uma hora que estávamos a limpar sem discutir o Brock. Suponho que não devia ficar surpreendida por o referir.

– O que há para perceber?

– Não parece ser alguém de quem gostarias.

– Sim, bem... – Deixo-me cair na minha cama, com uma camisola amarrotada no colo. – É um bom tipo. Quer dizer, era simpático. Era um advogado de sucesso. Não há nada de que não gostar.

O Enzo acomoda-se ao meu lado na cama.

– Se é um bom tipo, onde está agora?

Não é uma questão injusta, mas não conhece a situação toda.

– Escondi-lhe algumas coisas sobre o meu passado. Ficou magoado. Disse que sentia que não sabia quem eu sou. É compreensível que se sentisse assim.

– Quem tu és não é algo que fizeste em adolescente –os seus olhos negros fitam intensamente os meus. – É óbvio quem tu és. Se não conseguiu perceber isso ao passar tempo contigo, então tem razão. Não merece estar contigo.

Não era como se o Enzo e eu tivéssemos a relação perfeita, mas nunca duvidei que me compreendia. Às vezes, parecia compreender-me melhor do que eu mesma. E eu sabia que, se alguma vez estivesse em apuros, faria tudo para me ajudar.

– Às vezes, penso... – Mordo o lábio inferior. – Que nunca nos ligámos por inteiro. E provavelmente a culpa é minha, por lhe ter escondido coisas. Seja como for, acabou.

– Tens a certeza?

Lembro-me do olhar que o Brock me lançou ao sair daquela sala de interrogatório.

– Sim. Tenho a certeza.

– Então – diz o Enzo –, se eu te beijasse, não me daria um murro no nariz?

– Não, mas talvez eu desse.

Um sorriso torce-lhe os lábios.

– Vou correr o risco.

Inclina-se para me beijar, e eu sinto-me como se tivesse estado à espera disto durante quase dois anos. Compreendo finalmente porque estava hesitante em ir viver com o Brock e contar-lhe os meus segredos. Porque nunca senti isto por ele. Nem perto.

E o Enzo tem razão. Não lhe dou um murro no nariz.


62

Estamos em frente ao prédio de arenito castanho desde as seis da manhã.

Foi difícil arrastar-me para fora da cama tão cedo, sobretudo porque o Enzo e eu fizemos uma noitada juntos, se é que me entendem. E na noite anterior o meu sono não foi propriamente excecional. Mas o Enzo insistiu terminantemente que devíamos estar aqui logo de manhã, para garantir que não nos escapa ninguém a entrar ou a sair.

Estamos, como o Enzo lhe chama, «disfarçados». Quando o disse, imaginei grandes óculos pretos com bigodes falsos, mas na realidade não vai além de um par de bonés de beisebol e óculos de sol. O Enzo usa um boné dos Yankees e deu-me um que diz I love New York. Só que, em vez da palavra love, tem um grande coração vermelho. Pareço uma maldita turista. É humilhante para alguém nascido e criado em Brooklyn.

– Turista é o melhor disfarce – diz-me o Enzo.

Talvez tenha razão, mas odeio-o. Ainda assim, estou disposta a fazer tudo para chegar ao cerne de seja o que for que se está a passar. Antes que acabe de novo na prisão.

Não podemos ficar a manhã toda no mesmo sítio, por isso circulamos, mantendo sempre os olhos fixos na entrada do edifício. Se houver uma entrada das traseiras como na penthouse dos Garrick, estamos lixados. Mas há muitos residentes a entrar e a sair, pelo que tenho esperança de que esta seja a única porta.

Neste momento, são oito da manhã. Há duas horas que

estamos aqui e não houve qualquer sinal do homem mistério – se é que realmente não o assassinei, como o Enzo pensa – ou da mulher loura. Há cerca de dez minutos, o Enzo anunciou que tinha fome, por isso foi ao Dunkirí Donuts do outro lado da rua. Sai com dois copos de café e um saco de papel pardo.

– Agarra – diz-me.

Recebo o café com gratidão.

– O que tens no saco?

– São bagels.

– Ui! – O meu estômago revolve-se ante a ideia de comer seja o que for. Nem sei por que perguntei. – Passo.

– Terás de comer, a certo ponto.

– Não agora. – Espreito pelos meus óculos de sol para o prédio de arenito castanho. – Não até o encontrarmos.

Tenho medo de desviar os olhos do edifício. Posso perdê-los, e então nunca encontrarei o homem mistério. Tenho medo de ser presa hoje e, ainda que o Enzo continue a tentar ajudar-me, não sabe como é esse homem. A única pessoa que o pode encontrar sou eu.

– Então – diz o Enzo. – Ontem à noite... foi bom, certo?

Bebo um longo gole do meu café.

– Não me consigo concentrar em nada neste momento, Enzo.

– Oh! – Olha para o seu próprio recipiente cheio de café. – Sim. Eu sei.

– Mas sim,/w bom.

Um dos cantos dos seus lábios arrebita-se.

– Tive tantas saudades tuas enquanto estive fora, Millie. Lamento tanto por isso. Não me arrependo de ter voltado para Itália pela minha mãe, mas não queria ter de escolher entre as duas pessoas mais importantes da minha vida. Queria que esperasses, mas não te podia pedir isso.

Baixo a cabeça.

– Devia ter esperado.

O Enzo abre a boca para dizer mais alguma coisa, mas, antes que consiga proferir qualquer palavra, eu agarro-lhe no braço.

– É ela! É aquela a mulher!

Através dos seus óculos de sol, o Enzo olha para o outro lado da rua, para a mulher de cabelo louro que vem a sair do prédio de arenito castanho, vestida com uma saia pelo joelho e um blazer.

– Tens a certeza?

– Bastante. – Reconheço-lhe o rosto e a cor do cabelo, apesar de estar arranjado de forma diferente. É possível que não seja ela. Mas não vi mais ninguém que chegasse sequer perto. – E agora?

A mulher ajeita a alça da sua bolsa e atravessa a rua. Preparo-me para começar a segui-la, mas então ela entra no Dunkin’ Donuts de onde o Enzo ainda agora saiu. A julgar pela fila, ficará lá pelo menos dez minutos.

O Enzo faz estalar os nós dos dedos.

– Vou falar com ela.

– Tu? O que lhe vais dizer?

– Pensarei em alguma coisa.

– Achas então que a vais abordar no Dunkirí Donuts e ela vai simplesmente contar-te tudo?

Ele leva uma mão ao peito.

– Sim! Sou muito encantador!

Reviro os olhos.

– Vê só, Millie. – Apertando-me o braço, entrega-me o saco de papel com os bagels. – Vou descobrir tudo.


63

Q Enzo está a demorar uma eternidade no Dunkin’ Donuts. Disse-me para ficar do outro lado da rua, mas, ao fim de dez minutos, começo a ficar nervosa. O que se passa lá dentro?

Oxalá tivesse ido com ele. Não creio que prejudicasse demasiado o seu estilo. Bem, talvez sim. Mas, dado que é a minha vida que está em jogo aqui, gostaria de saber o que se passa.

Finalmente, atravesso a rua para o Dunkin’ Donuts. A montra é de vidro, pelo que é relativamente fácil olhar para o interior. Espreito pelos vidros e inicialmente não os vejo de todo. Mas, então, avisto-os. Mesmo na outra ponta da loja, onde as pessoas recolhem os seus pedidos. Estão os dois a conversar intensamente. Os olhos negros do Enzo parecem inteiramente focados nos dela.

Por um momento, sinto uma pontada de apreensão. Sempre confiei no Enzo, mas há alturas em que não tenho a certeza absoluta de que seja de confiança. Afinal, a razão por que partiu de Itália em primeiro lugar foi por ter espancado um homem quase até à morte. Com muito bons motivos, pelo menos segundo ele, mas mantém-se o facto. E depois partiu de novo para o estrangeiro, alegando que o homem mau que o perseguia tinha sofrido uma morte prematura, mas sem dar quaisquer informações adicionais a esse respeito.

Disse-me que a sua mãe estava doente. Que tivera uma apoplexia. Mas a realidade é que eu só tinha a sua palavra em que me basear. Não era como se alguma vez tivesse visto a sua alegada mãe doente.

E depois, quando regressou aos Estados Unidos, em vez de me ligar como qualquer pessoa normal teria feito, passou três malditos meses a seguir-me, a pretexto de me proteger. Contei-lhe todos os pormenores sobre a família Garrick. É suficientemente sagaz para ter adivinhado que a Wendy me estava a ludibriar, apesar de eu não o ter visto. Por que não disse nada?

E, meu Deus, de que estão a falar lá dentro há tanto tempo?

Agora que estamos mais próximos, noto que a loura tem os olhos inchados, como se tivesse estado a chorar. Mas então sorri a algo que o Enzo lhe diz e o seu rosto anima-se um pouco. Parece bastante inocente, tenho de admitir. É mesmo muito encantador quando quer. Entre o seu sotaque e o aspeto que tem, é muito bom a falar com mulheres.

Após o que me parecem outros dez minutos, o Enzo e a mulher saem do Dunkin’ Donuts.

Ciao, bella! – diz-lhe, com um aceno. O que a faz corar.

Ao ver-me diante da loja, lança-me um olhar desaprovador.

– Disse para ficares do outro lado da rua, não?

Cruzo os braços sobre o peito.

– Demoraste muito tempo lá dentro.

– Sim, e agora sei tudo – diz, inclinando a cabeça. –Queres que te conte?

Encaro os olhos negros do Enzo. Este homem nem sempre faz tudo segundo as regras. Como eu, fez algumas más escolhas, ainda que sempre pelas razões certas. Vi-o arriscar a própria vida para ajudar mulheres em perigo. Se há alguém neste mundo em quem posso confiar, é nele. Nunca devia ter duvidado, nem por um segundo.

– Sim. Conta-me.

O Enzo olha para o fundo da rua, onde a mulher está a descer para uma estação de metro.

– Aquela mulher é a assistente do Douglas Garrick. E é a esposa do homem que procuras.

Fico a olhar para ele.

– A sério? Tens a certeza?

– Saberemos dentro de um segundo. – Tira o telemóvel do bolso, escreve algo no ecrã, percorre-o por um momento e depois passa-me o aparelho. – É ele?

A imagem no ecrã é uma foto de rosto do Linkedin e reconheço imediatamente a figura. É o homem que estava a estrangular a Wendy até à morte ontem à noite. O mesmo a quem dei um tiro no peito.

– É – arquejo.

Leio o nome no perfil do Linkedin: Russell Simonds.

– Até esta manhã, pelo menos... – diz o Enzo, tirando-me o telemóvel das mãos. – Estava vivo.

Está vivo. Não matei ninguém, afinal. O alívio que sinto é algo mitigado por, apesar de não ter matado ninguém, a polícia achar decididamente que o fiz.

– Mas partiu esta manhã em... bem, a mulher diz que numa viagem de negócios. É um homem muito ocupado, disse-me. Sempre a trabalhar até tarde.

Talvez fosse por isso que estavam a discutir naquele dia na rua. Ou talvez por ela suspeitar que andava a ver outra mulher.

A Wendy.

– E agora? – pergunto. – Esperamos que regresse da sua alegada viagem de negócios?

– Não – diz o Enzo. – Agora, procuro saber mais sobre esse tal Russell Simonds.

– Como?

– Conheço um tipo.

Pois claro que sim.


64

Acabamos por voltar para o apartamento do Enzo. Fica a apenas dez quarteirões de onde eu vivo, o que faz sentido, suponho, se andava a assumir o papel de meu guarda-costas secreto. É um apartamento ainda mais pequeno do que o meu, apenas um estúdio com uma divisão que serve de cozinha, quarto e sala de jantar e de estar. Felizmente, tem uma casa de banho separada. Está a mundos de distância da penthouse dos Garrick ou até do espaçoso T2 do Brock.

Ao entrarmos, o Enzo atira as chaves para uma pequena mesa junto à porta e dirige-se à kitchenette, onde abre a água e borrifa o rosto com ela. Pergunto-me se está tão cansado como eu. Sinto uma estranha combinação de cansaço e adrenalina. Não dormi o suficiente ontem à noite, mas a ansiedade de a polícia me poder vir buscar mantém-me o coração constantemente acelerado.

– Senta-te – diz-me. – Queres cerveja?

– Ainda mal são onze da manhã.

– Foi uma manhã longa.

Isso é certo.

Decido recusar a cerveja, ainda assim. Deixo-me cair num sofá que parece ter sido provavelmente recolhido da berma – chega a ser ligeiramente pior do que o meu. A maior parte dos seus móveis tem ar de poder ter sido lixo num passado recente.

– Que trabalho tens agora? – pergunto-lhe. Tinha um emprego decente antes de partir, mas de certeza que não lho guardaram.

– Arranjei emprego numa empresa de paisagismo – responde, encolhendo um ombro. – Não é mau. Paga as contas.

Olho para o seu telemóvel, que pousou numa mesa de café.

– O que vai o teu tipo descobrir?

– Não sei bem. Talvez o registo criminal do Russell. Algo que possamos levar à polícia para que possam procurar as impressões digitais dele no apartamento. De certeza que encontraram impressões desconhecidas na penthouse, por isso ajudaria se pudéssemos identificá-las. Qualquer coisa para tirar a pressão de cima de ti.

– E se não for suficiente?

– De certeza que encontraremos algo.

– E se não encontrarmos?

– Confia em mim – diz o Enzo. – Haverá uma maneira. Não irás para a prisão por algo que não fizeste.

Como que seguindo a deixa, o telemóvel do Enzo começa a tocar. Agarra-o e salta do sofá para ir atender a chamada na kitchenette. Estico a cabeça para ver a sua expressão, que pouco revela. Tal como as suas respostas, que consistem maioritariamente em «ahã» e «está bem». A dada altura, agarra numa caneta e rabisca qualquer coisa num guardanapo.

– Grazie– diz à pessoa do outro lado da linha, pousando depois o telemóvel na bancada da cozinha.

Por um momento, fica simplesmente ali parado, a olhar para o guardanapo.

– Bem? – acabo por perguntar.

– Nada no registo criminal – diz. – Tem a ficha limpa.

Sinto o coração esmorecer.

– Certo...

– Tenho a morada de uma segunda residência – acrescenta. – É num lago duas ou três horas a norte da cidade. Talvez... talvez seja aí que está.

Salto do sofá e agarro na minha bolsa.

– Vamos para lá, então!

– E fazemos o quê?

Dirijo-me à kitchenette. Olho para a morada no guardanapo. Sei vagamente onde fica. O Google Maps levar-me-á lá.

– Arrancar-lhe a verdade.

– Nós sabemos a verdade. – Puxa o guardanapo para fora do meu alcance. – Precisamos é que a polícia saiba.

– O que sugeres, então?

– Não sei bem – responde, esfregando os olhos com a base das mãos. – Não te preocupes. Encontraremos uma resposta. Só preciso de pensar.

Fantástico. E, enquanto pensa, a polícia está ocupada a construir o seu caso contra mim.

– Acho que devíamos ir lá.

– E eu acho que vai piorar as coisas.

Não sei o que pensar, mas estou em pulgas por fazer algo agora mesmo. Porque a polícia não está neste momento sentada numa kitchenette, a remoer as coisas.

Antes que possa tentar persuadir o Enzo, o meu telemóvel toca dentro da minha bolsa. Tiro-o e fico com a respiração presa na garganta ao ver o nome no ecrã.

– É o Brock – digo.


65

Os olhos já negros do Enzo escurecem ainda mais. Não fica lá muito satisfeito por saber que o meu ex-namorado me está a ligar. Mas não é do tipo ciumento e jamais me diria para não atender. E, mesmo que dissesse, eu não lhe daria ouvidos.

– Só um minuto – peço ao Enzo.

Ele assente.

– Faz o que tiveres de fazer.

Sabia que não se importaria. Bem, não parece propriamente encantado. Mas não protesta, ao menos.

– Estou? – digo para o telefone.

– Millie? – A voz do Brock soa distante, como se fôssemos duas pessoas que só se conheceram fugazmente e de passagem. Só nos separámos ontem e já parece estranho que tenhamos namorado em tempos. – Olá...

– Olá – respondo rigidamente.

Não posso imaginar o que quer. Não quer que nos voltemos a juntar, isso é certo. Provavelmente, estará a dar graças aos céus por não termos ido viver juntos. Não tens de que, Brock.

– Olha – diz. – Eu... queria pedir desculpa por te ter abandonado na esquadra ontem.

– Oh?

Oiço-o soltar um suspiro.

– Estava perturbado, mas foi uma incrível falta de profissionalismo da minha parte. O que quer que tenhas feito de errado, pediste-me para estar lá como teu advogado, e devia-te isso.

– Obrigada. Agradeço as tuas desculpas.

– E é por isso que estou a ligar – hesita. – Voltei a falar com o detetive esta manhã, e sinto que te devo avisar de que testaram alguma roupa que levaram do teu cesto da roupa suja.

Agarro o telemóvel com mais força.

– Para sangue?

– Não, para resíduos de pólvora. E deu positivo.

Fico boquiaberta. Parti simplesmente do princípio de que andavam à procura de sangue nas minhas roupas. Nem me passou pela cabeça que fossem procurar algo mais.

– Oh...

– Acho que estavam à espera desses resultados para que o caso fosse conclusivo – diz. – Imagino que estejam agora mesmo a obter um mandado de detenção.

Paraliso, de joelhos a tremer.

– Oh...

– Lamento, Millie. Queria só deixar-te de sobreaviso. Devia-te isso.

– Sim...

– E... – Tosse para o telefone. – Boa sorte, enfim, com

tudo isso.

Viro as costas ao Enzo para que não veja os meus olhos encherem-se de lágrimas.

– Obrigada.

Obrigada por nada. Obrigada por me abandonares quando a minha vida está em ruínas.

O Brock desliga e eu fico com o telemóvel encostado ao ouvido, lutando para não deixar as lágrimas cair. Estou totalmente lixada. A Wendy tramou-me brilhantemente para arcar com as culpas pelo homicídio de um homem que nunca sequer conheci.

– Millie. – A mão grande do Enzo pousa no meu ombro. –O que aconteceu? O que disse?

Limpo os olhos antes de me virar.

– Disse que a polícia encontrou resíduos de pólvora nas roupas que levaram do meu cesto da roupa suja.

O Enzo assente.

– Se se disparar um cartucho vazio, fica-se na mesma com resíduos de pólvora nas roupas.

Enterro o rosto nas mãos.

– O Brock diz que provavelmente obtiveram um mandado para a minha detenção, ou fá-lo-ão em breve. O que vou eu fazer?

– Não vou desistir – diz, agarrando-me pelos ombros. –Entendes? Aconteça o que acontecer, não vou desistir. Vou libertar-te.

Acredito que o diz a sério. Mas não creio que seja capaz de me tirar desta confusão. Se me prenderem, acabou-se. Deixarão de procurar o verdadeiro assassino. Tudo me será imputado, e parecem ter um caso forte. Resíduos de pólvora nas minhas roupas, as minhas impressões digitais na arma do crime, e o porteiro pode testemunhar que eu estava no edifício aproximadamente à hora do homicídio.

Estou tão lixada.

– Quero ir a essa cabana no lago. – Olho para a morada rabiscada no guardanapo. – Quero encontrar esse sacana. Preciso de chegar ao fundo disto.

– Não fará nenhum bem.

– Não quero saber – rosno. – Quero vê-lo. Quero olhá-lo nos olhos e perguntar-lhe por que me fez isto. E, se a Wendy também lá estiver, quero...

O meu olhar encontra o do Enzo. Os seus olhos arregalam-se por um momento, e então corre para a cozinha e agarra no guardanapo com a morada antes que eu o possa alcançar. Amarrota-o na mão e segura-o sob o lava-loiça até a tinta se esvair.

– Não – diz com firmeza. – Não te vou deixar fazer algo estúpido.

– Tarde de mais – respondo. – Já memorizei o endereço.

– Millie! – fala com uma voz incisiva, de olhos arregalados. – Não vás à cabana. Não estás a pensar com clareza neste momento. Não fizeste nada de errado e não irás para a prisão a menos que lhes dês uma razão para te enviarem para lá!

– Estás enganado. – Ergo o queixo. – Vou para a prisão seja como for. Mais vale merecê-lo.

– Millie. – Enzo agarra-me o pulso com a sua grande mão. – Não te vou deixar fazer algo estúpido. Promete-me que não irás àquela cabana.

Olho-o fixamente.

– Promete-me. Não sairás daqui a menos que prometas.

Não me agarra com força suficiente para me magoar, mas com a necessária para eu não poder escapar. Está a esforçar-se tanto por me salvar de mim mesma. É querido. O Brock não se cansava de o dizer, mas o Enzo ama-me verdadeiramente. E acredito que, mesmo que eu seja presa, fará tudo o que puder para me libertar. Fará tudo o que puder para expor a verdade.

– Tudo bem – digo. – Não vou.

– Prometes?

– Prometo.

Solta-me o pulso. Dá um passo atrás, com ar lastimoso.

– E eu prometo que vou resolver isto.

Anuo. Deixei a minha bolsa no seu sofá e estendo agora a mão para a agarrar.

– Mais vale voltar para o meu apartamento e enfrentar a situação.

– Queres que vá contigo?

– Não. – Ponho a bolsa ao ombro. – Não quero que vejas quando me algemarem.

O Enzo estende os braços para mim. Dá-me um último beijo, que sinceramente quase basta para me permitir suportar um par de anos na prisão. Ninguém beija como este homem. O Brock não era certamente capaz de o fazer.

– Prometo – sussurra-me ao ouvido. – Não te deixarei voltar para a prisão.

Afasto-me, a tremer ligeiramente.

– Vou para casa agora.

Aperta-me a mão.

– Vou procurar-te um bom advogado. Arranjarei maneira de o pagar.

O seu pequeno estúdio está cheio de móveis do lixo, e mordo a língua para me impedir de dizer algo sarcástico.

– Vou ter saudades tuas.

– E eu tuas – responde-me.

– E... amo-te.

Não parecia certo quando o dizia ao Brock, mas parece certo agora. Não podia sair daqui sem lho dizer.

– Também te amo, Millie – diz. – Tanto.

Amo-o deveras. Sempre amei. E é por isso que odeio mentir-lhe.

Mas não o posso deixar saber que tenho as chaves do seu carro escondidas na minha bolsa.

Descobri-lo-á em breve.


QUARTA PARTE

66

WENDY

Q Russell e eu estamos a celebrar com uma garrafa de champanhe.

Apesar de ser um pouco arriscado, trouxe-me para a sua cabana no lago para fugir ao enorme número de jornalistas acampados em frente ao apartamento e à casa em Long Island. Tecnicamente, esta cabana pertence à Marybeth e, quando a deixar, voltará a ser dela. Mas não faz mal, pois sou agora mais rica do que nos meus sonhos mais loucos. Sou rica para lá de toda a compreensão humana. Não preciso desta pequena cabana de dois quartos.

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