7 Brincando com fogo

Na manhã seguinte, assim que o sol despontou no horizonte, Egwene se apresentou à porta dos aposentos de Rand, acompanhada de uma Elayne que se arrastava. A Filha-herdeira usava um vestido de seda de mangas compridas, azul-claro, cortado à moda tairena e puxado para baixo depois de um breve debate. Um colar de safiras, intensas como o céu da manhã, e um cordão trançado nos cachos louro-avermelhados ressaltavam o azul de seus olhos. Apesar do calor úmido, Egwene usava nos ombros um cachecol liso, vermelho vivo, da largura de um xale. Aviendha emprestara o cachecol e as safiras. Surpreendentemente, a Aiel possuía uma ampla coleção desse tipo de coisas.

Apesar de saber que os guardas Aiel estavam ali, Egwene levou um susto quando eles se levantaram, deslizando, elegantes e com rapidez espantosa. Elayne deixou escapar um pequeno arquejo, mas logo os encarou com o olhar majestoso que sabia fazer tão bem. Parecia não exercer efeito algum sobre aqueles homens de peles curtidas. Os seis eram Shae’en M’taal, Cães de Pedra, e pareciam relaxados para Aiel, o que significava que pareciam olhar para todos os cantos, prontos a se mover em qualquer direção.

Egwene se empertigou, imitando Elayne — desejava poder fazer aquilo tão bem quanto a Filha-herdeira — e anunciou:

— Eu… nós… queremos ver como estão as feridas do Lorde Dragão.

A observação era claramente tola, caso os homens soubessem qualquer coisa sobre Curas, mas era pouco provável. Poucas pessoas sabiam, e os Aiel decerto tinham menos conhecimento do que a maioria. Não tinha intenção de informar o motivo para estarem ali — já bastava que as tomassem por Aes Sedai — mas, quando os Aiel quase saltaram do chão de mármore negro, aquilo de repente pareceu uma boa ideia. Não que os homens estivessem fazendo qualquer movimento para impedir as duas, claro que não. No entanto, eram todos tão altos, de feições tão empedernidas, e levavam as lanças curtas e os arcos de chifre como se usá-los fosse tão natural quanto respirar, até mais fácil. Com aqueles olhos claros a encará-la com tanta atenção, era fácil demais lembrar-se das histórias sobre os Aiel de véus negros, desprovidos de compaixão ou misericórdia, da Guerra dos Aiel e de homens como aqueles, que haviam derrotado até o último exército enviado para combatê-los, que só retornaram ao Deserto depois de lutar contra as nações aliadas por três dias e noites sangrentos, sem parar, diante de Tar Valon. Ela quase abraçou saidar.

Gaul, o líder dos Cães de Pedra, assentiu, olhando para ela e Elayne com certo respeito. Era um belo homem, meio maltratado pelo tempo, um pouco mais velho que Nynaeve, de olhos verdes, claros como pedras polidas, e cílios longos, tão escuros que pareciam delinear os olhos de preto.

— Podem estar incomodando. Ele acordou mal-humorado. — Gaul abriu um sorriso, apenas um lampejo dos dentes brancos, como se compreendesse o mau humor de um ferido. — Já acossou um grupo desses Grão-lordes e empurrou um deles para fora do quarto. Como era mesmo o nome?

— Torean — respondeu outro homem, ainda mais alto.

Carregava de forma quase displicente um arco curvo e curto, com uma flecha encaixada. Os olhos cinza pousaram nas duas mulheres por um instante, depois voltaram a examinar as colunas da antessala.

— Torean — concordou Gaul. — Pensei que o homem fosse deslizar até essas belas estátuas… — Ele apontou a lança para o círculo de Defensores, parados em uma postura rígida. — Mas parou umas três passadas antes. Perdi um bom reposteiro taireno para Mangin, todo de gaviões em fios de ouro. — O homem mais alto abriu um sorriso breve e contido.

Egwene piscou os olhos ao visualizar Rand arremessando um Grão-lorde pelo chão. O amigo nunca fora violento, muito pelo contrário. Será que estava mudado? Ela tinha andado muito ocupada com Joiya e Amico, e ele, muito ocupado com Moiraine, Lan e os Grão-lordes para que os dois se falassem mais do que de passagem, trocassem algumas palavras aqui e ali sobre como o festival do Bel Tine deveria ter sido aquele ano ou como seria o Dia do Sol. Tudo fora tão breve. Será que ele estava mudado?

— Precisamos vê-lo — disse Elayne, com um leve tremor na voz.

Gaul fez uma mesura, tocando o mármore negro com a ponta de uma das lanças.

— É claro, Aes Sedai.

Com certa hesitação, Egwene adentrou os aposentos de Rand. O rosto de Elayne revelava o esforço necessário para dar aqueles poucos passos.

Não restava evidência do horror da noite anterior, exceto pela ausência de espelhos. Quadrados mais claros marcavam os painéis das paredes onde eles antes estavam. Não que o quarto estivesse perto de estar arrumado, havia livros espalhados por todos os lados, em cima de tudo, alguns abertos, como se abandonados bem no meio de uma página, e a cama ainda estava desfeita. As cortinas carmesim estavam abertas em todas as janelas, expondo a vista para o oeste em direção ao rio que era a artéria coronária de Tear, e Callandor cintilava feito cristal polido em um enorme suporte dourado, incrivelmente pomposo. Egwene pensou que aquilo era a coisa mais feia que já vira decorando um ambiente — até notar os lobos de prata atacando um veado dourado na cornija da lareira. Brisas parcas vindas do rio mantinham o quarto surpreendentemente fresco, comparado ao restante da Pedra.

Rand estava sentado, vestido em sua camisa de manga, esparramado em uma poltrona com uma das pernas sobre o apoio para braços e um livro com capa de couro apoiado no joelho. Ao ouvir o som de passos, fechou o livro bruscamente, largou-o junto aos outros no tapete de arabescos e pôs-se de pé, pronto para a luta. A cara feia foi morrendo quando percebeu quem entrava.

Pela primeira vez dentro da Pedra, Egwene procurou mudanças nele e as encontrou. Quantos meses haviam se passado desde que o vira pela última vez? O suficiente para que o rosto endurecesse, para que a ingenuidade que um dia existira desaparecesse. Ele também se movia de maneira diferente, um pouco como Lan, um pouco como os Aiel. Com sua altura, cabelos vermelhos e os olhos ora azuis ora cinza, dependendo da luz, ele parecia muito com um Aiel, o bastante para causar desconforto. Mas será que mudara por dentro?

— Pensei que vocês eram… outra pessoa — murmurou, trocando olhares constrangidos com as moças. Aquele era o Rand que ela conhecia, até no rubor que surgia em seu rosto a cada vez que olhava para ela ou para Elayne, qualquer uma das duas. — Algumas… pessoas querem coisas que não posso dar. Coisas que não vou dar. — A desconfiança cresceu em seu rosto com uma rapidez impressionante, e o tom de sua voz endureceu. — O que é que vocês querem? Foi Moiraine quem as mandou? Vieram me convencer a fazer o que ela quer?

— Não seja ridículo — retrucou Egwene, com rispidez, sem pensar. — Eu não quero que você comece uma guerra!

Elayne acrescentou, em um tom de súplica:

— Nós viemos… ajudar você, se pudermos. — Era uma das razões, a mais fácil de trazer à tona, que tinham decidido no café da manhã.

— Vocês sabem dos planos dela para… — começou ele, de forma rude, depois mudou de assunto de repente. — Me ajudar? Como? É isso o que Moiraine diz.

Egwene cruzou os braços de forma austera, segurando com força o cachecol do mesmo jeito que Nynaeve fazia ao se dirigir ao Conselho da Aldeia quando pretendia, apesar da teimosia de todos, conseguir o que queria… Era tarde demais para recomeçar, restava apenas prosseguir da forma que iniciara.

— Eu lhe disse para não ser bobo, Rand al’Thor. Você pode até ter tairenos se curvando aos seus pés, mas eu me lembro de quando Nynaeve lhe encheu de varadas por ter deixado Mat convencê-lo a roubar uma jarra de conhaque de maçã. — Elayne teve o cuidado de manter a expressão serena. Cuidado até demais. Egwene tinha certeza de que ela queria soltar uma gargalhada.

Rand não percebeu, naturalmente. Os homens nunca percebiam. Ele abriu um sorriso para Egwene, também quase a ponto de gargalhar.

— Tínhamos acabado de fazer treze anos. Ela nos pegou dormindo atrás do estábulo do seu pai, e a dor de cabeça era tanta que nem sentimos as varadas. — Não era nem um pouco como Egwene lembrava. — Não foi como da vez em que você atirou aquela tigela na cabeça dela. Lembra? Ela deu a você uma dose de chá de capim-de-cão porque você estava abatida fazia uma semana, e, assim que provou o chá, você deu com a melhor tigela bem na cabeça dela. Luz, como você guinchou! Quando foi isso? Dois anos atrás teve aquela…

— Não viemos aqui para falar do passado — disse Egwene, remexendo o cachecol com irritação. Era de lã fina, mas bastante quente.

Realmente, ele tinha o hábito de se lembrar das situações mais desastrosas. Rand sorriu, como se soubesse o que ela estava pensando, e prosseguiu, mais bem-humorado:

— Vocês vieram me ajudar, pelo que disseram. Com o quê? Não creio que saibam como fazer um Grão-lorde manter a palavra sem que eu o fique vigiando pelo cangote. Ou será que sabem como impedir os sonhos desagradáveis? Isso sem dúvida ajudaria… — Com os olhos saltando de uma mulher a outra, ele fez mais uma mudança abrupta. — E a Língua Antiga? Aprenderam alguma coisa na Torre Branca? — Sem esperar resposta, começou a revirar os livros espalhados no carpete. Havia mais nas cadeiras, entre as roupas de cama bagunçadas. — Eu tenho um exemplar aqui… em algum lugar… de…

— Rand. — Egwene ergueu a voz. — Rand, eu não sei ler a Língua Antiga. — Ela lançou um olhar a Elayne, advertindo-a para que não revelasse nada sobre aquilo. Elas não haviam ido até lá para traduzir as Profecias do Dragão para ele. As safiras nos cabelos da Filha-herdeira balançaram quando ela assentiu. — Tivemos outras coisas para aprender.

Ele se endireitou e soltou um suspiro.

— Seria esperar demais.

Por um instante, Rand pareceu a ponto de dizer mais alguma coisa, mas encarou as botas. Egwene se perguntou como ele conseguia lidar com toda a arrogância dos Grão-lordes se ela e Elayne o deixavam tão desconcertado.

— Viemos ajudar você com a canalização — disse. — Com o Poder.

O que Moiraine alegava deveria ser verdade, uma mulher não podia ensinar um homem a canalizar mais do que podia ensiná-lo a gestar uma criança. Egwene não tinha tanta certeza. Uma vez sentira algo urdido a saidin. Ou melhor, não sentira, era algo que bloqueava seu próprio fluxo, concreto como uma pedra barrando um fluxo de água. Porém, aprendera coisas tanto fora da Torre quanto dentro. Sem dúvida haveria algo em seus conhecimentos que pudesse ensinar a ele, alguma orientação que pudesse oferecer.

— Se pudermos — acrescentou Elayne.

Um lampejo de desconfiança estampou outra vez o rosto dele. Era enervante como seu humor se alterava tão depressa.

— Eu tenho mais chance de ler a Língua Antiga do que vocês têm de… vocês têm certeza de que isso não é coisa de Moiraine? Foi ela que as mandou aqui? Ela acha que pode me convencer comendo pelas beiradas, é? Alguma trama enredada de Aes Sedai que só vou ser capaz de enxergar quando estiver enfiado até a cabeça? — Ele grunhiu com amargura e puxou um casaco verde-escuro do chão, de trás de uma das cadeiras, enfiando-se depressa sob ele. — Concordei em encontrar alguns outros Grão-lordes hoje de manhã. Se não ficar de olho, eles acabam arrumando meios de evitar fazer o que quero. Mais cedo ou mais tarde, vão aprender. Eu governo Tear, agora. Eu. O Dragão Renascido. Vou ensinar a eles. Queiram me desculpar.

Egwene quis sacudi-lo. Ele governava Tear? Bem, talvez governasse mesmo, se fosse o caso, mas ela se lembrava de um rapaz com um cordeiro aninhado no casaco, orgulhoso feito um galo por ter afugentado o lobo que tentava apanhá-lo. Ele era um pastor, não um rei, e mesmo que estivesse em condições de agir como se fosse superior, não seria bom que o fizesse.

Ela estava a ponto de dizer tudo isso a ele, mas, antes que pudesse, Elayne o fez.

— Ninguém nos mandou. Ninguém. Viemos porque… porque nos preocupamos com você. Talvez não funcione, mas podemos tentar. Se eu… se nós nos importamos a ponto de tentar, você também pode. Será que isso é tão insignificante para você que não pode nos conceder uma hora? Por sua vida?

Ele parou de abotoar o casaco e encarou a Filha-herdeira com tanta atenção que, por um instante, Egwene achou que ele se esquecera de sua presença. Com um arrepio, ele desviou o olhar. Olhando para a conterrânea, remexeu os pés e franziu o cenho em direção à porta.

— Eu vou tentar — murmurou. — Não vai adiantar nada, mas vou tentar… O que querem que eu faça?

Egwene respirou fundo. Não pensava que seria tão fácil convencê-lo, ele sempre agia como um rochedo soterrado em lama quando decidia fincar os pés, o que fazia com bastante frequência.

— Olhe para mim — disse, abraçando saidar. Deixou que o Poder a preenchesse mais completamente do que nunca, aceitando cada gota que pudesse absorver. Era como luz derramada sobre cada partícula do corpo, como se a própria Luz preenchesse cada milímetro. A vida parecia explodir dentro dela como fogos de artifício. Jamais permitira que tanto Poder a enchesse. Ficou chocada ao perceber que não tremia, decerto não seria capaz de suportar aquela brandura tão gloriosa. Queria se deleitar, dançar e cantar, apenas deitar e deixar tudo fluir por dentro dela, por sobre ela. Forçou-se a falar. — O que está vendo? O que está sentindo? Olhe para mim, Rand!

Ele ergueu a cabeça lentamente, ainda franzindo a testa.

— Vejo você. O que é que eu deveria estar vendo? Você está tocando a fonte? Egwene, Moiraine já canalizou perto de mim umas cem vezes, e nunca vi nada. A não ser o que ela fez. Não funciona dessa forma. Até eu sei disso.

— Eu sou mais forte que Moiraine — respondeu a menina, com firmeza. — Ela estaria choramingando no chão, ou desmaiada, se tentasse controlar tanto quanto estou controlando agora. — Era verdade, embora jamais tivesse tentado avaliar a habilidade da Aes Sedai com tanto rigor.

O Poder implorava para ser usado, pulsava dentro dela com mais força que sangue bombeado pelo coração. Com essa quantidade, ela era capaz de fazer coisas que Moiraine jamais poderia imaginar. A ferida na lateral do corpo de Rand, que Moiraine nunca conseguira Curar por completo. Não entendia de Cura — era algo muito mais complexo do que qualquer coisa que já fizera — mas observara Nynaeve Curar e, talvez, com essa gigantesca concentração de Poder fluindo, pudesse ver como Curar aquela ferida. Não fazer, naturalmente, apenas ver.

Com cuidado expandiu os finos fluxos de Ar, Água e Espírito, os Poderes usados na Cura, e sentiu a antiga ferida. Um toque e ela recuou, trêmula, recolhendo a tessitura. Seu estômago se embrulhou, como se ela desejasse regurgitar cada refeição que já comera na vida. Parecia que toda a escuridão do mundo jazia ali, na lateral do corpo de Rand, todo o mal do mundo reunido em uma úlcera pustulenta coberta por um tenro tecido de cicatriz. Uma coisa como essa absorveria os fluxos de Cura feito gotas d’água em areia seca. Como ele aguentava a dor? Por que não estava chorando?

Do primeiro pensamento à ação passou-se apenas um instante. Trêmula, tentando desesperadamente esconder o tremor, ela prosseguiu, sem parar.

— Você é tão forte quanto eu. Sei disso, você tem que ser. Sinta, Rand. O que está sentindo? — Luz, o que é que pode Curar isso? Será que algo pode?

— Não sinto nada — murmurou o jovem, remexendo os pés. — Arrepios na pele. E é compreensível. Não que eu não confie em você, Egwene, mas não consigo ficar tranquilo quando uma mulher está canalizando perto de mim. Me desculpe.

Ela não se deu ao trabalho de explicar a diferença entre canalizar e apenas abraçar a Fonte Verdadeira. Havia tanto que ele não sabia, mesmo comparado ao parco conhecimento dela. Era um homem cego tentando operar um tear apenas pelo toque, sem ideia de como eram as cores, as tramas e até mesmo o próprio tear.

Com esforço, soltou saidar. E foi mesmo preciso esforço. Uma parte dela queria gritar pela perda.

— Não estou tocando a Fonte agora, Rand. — Ela deu um passo à frente e o perscrutou. — Ainda está sentindo arrepios?

— Não. Mas foi só porque você disse. — Ele deu de ombros, de repente. — Está vendo? Comecei a pensar nisso e já estou sentindo de novo.

Egwene sorriu, triunfante. Não precisou olhar para Elayne para confirmar o que já sentia, o que as duas haviam concordado em relação àquele momento.

— Você consegue sentir uma mulher abraçando a Fonte, Rand. Elayne está fazendo isso agora mesmo. — Ele apertou os olhos para a Filha-herdeira. — Não importa o que você vê ou não vê. Você sentiu. Já temos isso. Vamos ver o que mais conseguimos encontrar. Rand, abrace a Fonte. Abrace saidin. — Ela proferiu as palavras com a voz rouca. As duas também haviam concordado com isso, ela e Elayne. Era Rand, não um monstro das histórias, e as duas haviam concordado, mas, ainda assim, pedir a um homem que… O mais espantoso fora ela ter dito as palavras, para começar. — Está vendo alguma coisa? — perguntou a Elayne. — Ou sentindo alguma coisa?

Rand ainda olhava de uma para outra, ruborizado, encarando o chão. Por que estava tão desconcertado? Analisando-o fixamente, a Filha-herdeira balançou a cabeça.

— Até onde sei, ele pode simplesmente estar parado. Tem certeza de que está fazendo alguma coisa?

— Ele pode ser teimoso, mas não é burro. Pelo menos, não na maior parte do tempo.

— Bom, teimoso, burro ou qualquer coisa, eu não estou sentindo nada.

Egwene franziu o cenho para Rand.

— Você disse que faria o que mandássemos, Rand. Está fazendo? Se você sentiu algo, eu também deveria sentir, e eu… — Ela parou, dando um ganido abafado. Algo apertara seu bumbum. Os lábios de Rand se contorceram, claramente lutando contra um sorriso. — Isso — disse, ácida — não foi legal.

Ele tentou manter a expressão inocente, mas o sorriso escapou.

— Você disse que queria sentir alguma coisa, e eu pensei… — O grito súbito fez Egwene dar um salto. Ele agarrou a nádega esquerda e mancou em círculos, cheio de dor. — Sangue e cinzas, Egwene! Não precisava… — Ele baixou a voz até um murmúrio profundo e inaudível, que Egwene ficou satisfeita em não conseguir compreender.

Aproveitou a oportunidade para abanar o cachecol e pegar um pouco de ar, compartilhando um sorrisinho com Elayne. O brilho tênue ao redor da Filha-herdeira foi enfraquecendo. As duas quase soltaram risadinhas enquanto esfregavam o corpo discretamente. Aquilo ia mostrar a ele como se comportar. Estavam em um placar de cem para um, estimou Egwene.

Virando-se de volta para Rand, pôs no rosto a expressão mais austera que tinha.

— Eu teria esperado algo assim vindo de Mat. Pensei que você, pelo menos, tivesse amadurecido. Viemos aqui para ajudá-lo, se pudermos. Tente cooperar. Faça algo com o Poder, algo que não seja infantil. Talvez a gente consiga sentir.

Curvado, ele cravou o olhar nas duas.

— Faça algo — resmungou, imitando-a. — Você não tinha direito de… Eu vou ficar mancando… Vocês querem que eu faça algo?

De repente ela flutuou, e Elayne também. Ambas se encararam, os olhos arregalados, enquanto levitavam a um passo do carpete. Não havia nada a erguê-las, nenhum fluxo que Egwene pudesse ver ou sentir. Nada. Ela apertou os lábios. Rand não tinha o direito de fazer isso. Direito nenhum, e já era hora de aprender. O mesmo tipo de escudo que embarreirou o contato de Joiya com a Fonte também poderia detê-lo. As Aes Sedai o usavam nos raros homens capazes de canalizar que encontravam.

Ela se abriu para saidar — e seu estômago afundou. Saidar estava ali — podia sentir o calor e a luz — mas entre ela e a Fonte Verdadeira havia algo, um nada, uma ausência que a isolava da Fonte como uma muralha de pedra. Ela se sentiu oca por dentro, até que o pânico a tomou por inteiro. Um homem estava canalizando, e ela estava aprisionada. O homem era Rand, claro, mas, bamboleando ali feito um barquinho, indefesa, ela só era capaz de pensar em um homem canalizando e na mácula de saidin. Tentou gritar com ele, mas o que saiu de sua boca foi apenas um grasnido.

— Querem que eu faça algo? — grunhiu Rand. Um par de pequenas mesas flexionaram os pés de um jeito estranho, a madeira rangendo, e começaram a cambalear, como se imitando uma dança, as douraduras se soltando e caindo. — Estão gostando disso? — O fogo se acendeu na lareira, preenchendo-a de um canto a outro, ardendo na pedra vazia de cinzas. — Ou disso? — O veado e os lobos sobre a cornija começaram a derreter e desabaram. Finos fluxos de ouro e prata escorriam da massa dourada, cada vez mais finos e brilhantes, serpenteando, urdindo a si próprios em uma fina folha de tecido metálico. À medida que crescia, o tecido brilhoso flutuava no ar, a extremidade mais distante ainda unida à estatueta, que derretia aos poucos sobre a cornija de pedra. — Faça algo — repetiu Rand. — Faça algo! Vocês têm ideia do que é tocar saidin, possuí-lo? Têm? Eu sinto a loucura me aguardando. Derramando-se sobre mim!

De repente as mesas saltitantes irromperam em chamas, parecendo tochas dançantes. Os livros rodopiaram no ar, as páginas esvoaçando. O colchão da cama estourou, espalhando penas pelo quarto, feito neve. As penas caíram sobre a mesa em chamas e deixaram o quarto com um cheiro pungente de fuligem.

Por um instante, Rand encarou as mesas fulgurantes com um olhar insano. Então, o que quer que estivesse erguendo Egwene e Elayne desapareceu, bem como o escudo. Os calcanhares das moças tocaram o carpete com um baque no mesmo instante em que as chamas se extinguiram, como se sugadas pela madeira que antes consumiam. As labaredas na lareira também se apagaram, e os livros desabaram no chão em um amontoado ainda mais confuso do que antes. O pedaço de tecido dourado e prateado também desabou, os fios de metal derretido já não estavam mais líquidos ou quentes. Apenas três maçarocas muito grandes, duas prateadas e uma dourada, jaziam sobre a cornija, frias e irreconhecíveis.

Egwene caiu por cima de Elayne quando as duas aterrissaram. As Aceitas se apoiaram uma na outra, mas Egwene sentiu a Filha-herdeira fazendo o mesmo que ela: abraçando saidar o mais rápido possível. Em instantes, tinham um escudo pronto para lançar ao redor de Rand, caso ele sequer parecesse canalizar. O jovem, porém, permanecia atônito, encarando as mesas chamuscadas, penas ainda flutuando ao seu redor, salpicando o casaco.

Ele não parecia mais apresentar perigo, mas o quarto sem dúvida estava uma bagunça. Ela urdiu diminutos fluxos de ar para juntar todas as plumas flutuantes, além das que já estavam no carpete. Depois de pensar por um instante, acrescentou as que estavam no casaco de Rand. O restante da bagunça seu amigo poderia mandar a majhere ajeitar, ou ele mesmo resolver.

Rand se encolheu quando as plumas passaram flutuando por ele e se alinharam nos destroços do colchão esfarrapado. De nada adiantou para melhorar o cheiro de plumas e madeira queimadas, mas pelo menos o quarto estava mais organizado, e as janelas abertas com a brisa fraca já ajudavam a reduzir o odor.

— Acho que a majhere não vai querer me dar outro — disse o rapaz, com um riso forçado. — Um colchão por dia é mais do que ela está disposta a… — Ele evitava olhar para qualquer uma das duas. — Me desculpem, eu não pretendia… Às vezes perco o controle. Consigo tocar a fonte, e às vezes o Poder faz coisas que eu não… Me desculpem. Talvez seja melhor vocês irem. Parece que estou repetindo isso demais. — Ele enrubesceu mais uma vez e pigarreou. — Não estou tocando a Fonte, mas talvez seja melhor vocês irem.

— Ainda não terminamos — respondeu Egwene, com delicadeza.

Mais delicadeza do que sentia. Queria estapear as orelhas de Rand. Que ideia, pegá-la daquele jeito, blindá-la… e a Elayne também! Mas ele estava em desvantagem. Em relação a quê, Egwene não sabia, e também não queria descobrir, não ali nem naquele momento. Com tanta gente espantada com o poder das duas — todos diziam que ela e Elayne estariam entre as Aes Sedai mais poderosas em mil anos ou mais, isso se não fossem as mais fortes — Egwene presumira que as duas fossem tão fortes quanto o Dragão. Ou quase isso. Acabara de receber uma demonstração bem rude para acabar com suas esperanças. Talvez Nynaeve chegasse perto, se estivesse com bastante raiva, mas Egwene sabia que ela mesma jamais poderia fazer o que Rand fizera, cindir os fluxos de tantas formas diferentes, operar tantas coisas de uma vez só. Operar dois fluxos de uma vez apresentava mais que o dobro da dificuldade de operar um da mesma magnitude. Com três fluxos, era muito mais que o dobro da dificuldade do que com dois. Rand devia estar operando uns doze. E sequer parecia cansado, ainda que tamanho esforço com o Poder gastasse bastante energia. Egwene tinha a terrível sensação de que ele poderia manejar as duas como se fossem filhotes de gato. Filhotinhos que poderia decidir afogar, caso enlouquecesse.

Mas ela não tentaria, nem podia, simplesmente ir embora. Isso seria o mesmo que desistir, e ela não era assim. Pretendia fazer o que fora fazer — tudo —, e ele não iria expulsá-la sem que ela terminasse. Nem ele nem nada.

Elayne tinha os olhos azuis cheios de determinação, e, no instante em que Egwene fez silêncio, acrescentou, em uma voz muito mais firme:

— E nós não vamos embora até terminarmos. Você disse que tentaria. Você precisa tentar.

— Eu disse mesmo, não foi? — resmungou o rapaz, depois de um tempo. — Vamos pelo menos nos sentar.

Sem olhar as mesas enegrecidas ou a faixa de tecido metálico que jazia disforme no carpete, ele as conduziu, ligeiramente manco, até as cadeiras de espaldar alto perto das janelas. Os três tiveram de afastar alguns livros das almofadas de seda vermelha para se sentarem. A cadeira de Egwene continha o Volume Doze de Os tesouros da Pedra de Tear, um livro empoeirado e encadernado em madeira intitulado Viagens pelo Deserto Aiel e diversas observações sobre seus habitantes selvagens, e um volume grosso de couro esfarrapado cujo título era Transações com o território de Mayene, 500 a 700 da Nova Era. Elayne tinha uma pilha maior para afastar, mas Rand tirou os livros das mãos dela mais do que depressa, juntou aos que estavam em sua cadeira e deixou todos no chão, onde a pilha prontamente desabou. Egwene depositou os dela organizadamente ao lado dos outros.

— O que querem que eu faça agora? — Rand se sentou na ponta da cadeira, as mãos nos joelhos. — Prometo que desta vez não vou fazer nada além do que mandarem.

Egwene mordeu a língua para não retrucar, dizendo que a promessa viera um pouquinho tarde demais. Talvez tivesse feito um pedido um pouco vago, mas não era justificativa. Ainda assim, deveriam lidar com isso em outro momento. Ela percebeu que já pensava nele apenas como Rand outra vez, mas o rapaz tinha uma expressão de quem havia acabado de espirrar lama no melhor vestido dela e agora estava preocupado com a possibilidade de Egwene não acreditar que fora acidente. Ela, porém, não largou saidar. Nem Elayne. Não precisavam bancar as bobas.

— Desta vez — disse — só queremos que fale. Como é que você abraça a Fonte? Conte para a gente. Explique devagar, passo a passo.

— É mais uma luta do que um abraço — murmurou ele, em resposta. — Passo a passo? Bem, primeiro eu imagino uma chama, depois empurro tudo para dentro dela: ódio, medo, nervosismo. Depois de tudo ser consumido, sobra um vazio, um vácuo dentro da minha cabeça. Eu fico no meio dele, mas também viro parte de tudo em que estou me concentrando.

— É familiar — comentou Egwene. — Já ouvi seu pai falar sobre um truque de concentração que usa para vencer as competições de arco e flecha. Algo que ele chama de Chama e Vazio.

Rand assentiu. Parecia triste. Ela achou que o amigo talvez estivesse com saudades de casa e do pai.

— Tam me ensinou primeiro. E Lan usa também, com a espada. Selene, uma mulher que conheci, chama de Unidade. Muita gente parece conhecer esse truque, seja lá o nome que tiver. Mas eu descobri sozinho que, quando estou dentro do Vazio, consigo sentir saidin. Parece uma luz no canto do olho, no meio do nada. Somos só eu e essa luz. As emoções e até os pensamentos ficam todos do lado de fora. Antes eu precisava absorver de pouquinho em pouquinho, mas agora tudo vem de uma vez só. A maior parte, pelo menos. Na maior parte do tempo.

— Vazio — repetiu Elayne, com um arrepio. — Sem emoção. Não parece muito com o que fazemos.

— Parece, sim — insistiu Egwene, com vigor. — Rand, fazemos um pouquinho diferente, só isso. Eu me imagino sendo uma flor, um botão de rosa, imagino isso até me transformar no botão de rosa. De certa forma, é como o seu vazio. As pétalas do botão de rosa se abrem para a luz de saidar, e eu deixo que tudo me preencha, a luz, o calor, a vida, o assombro. Eu me rendo a tudo isso, controlo tudo. Essa foi a parte mais difícil de aprender, na verdade: como dominar saidar me entregando a ela. Mas agora parece tão natural que eu nem sequer penso a respeito. Essa é a chave de tudo, Rand. Tenho certeza. Você precisa aprender a se entregar…

Rand balançava a cabeça vigorosamente.

— Não tem nada a ver com o que eu faço — protestou. — Me deixar preencher? Eu preciso estender a mão e agarrar saidin. Às vezes não encontro nada quando tento, nada para tocar, mas se eu não tentasse poderia ficar o resto da vida ali parado que nada aconteceria. Sim, a coisa me preenche quando eu a agarro, mas me entregar a ela? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Se eu me entregasse, mesmo que por um minuto, saidin me consumiria. É como um rio de metal derretido, um oceano de fogo, é como se toda a luz do sol se concentrasse em um único ponto. Preciso lutar para que ele faça o que eu quero, lutar para não ser devorado. — Rand suspirou. — Entendo o que você diz em relação a se preencher de vida, mesmo com a mácula revirando meu estômago. As cores são mais nítidas, os cheiros, mais puros. De alguma forma, tudo é mais real. Depois que agarro, não quero mais soltar, mesmo que a coisa esteja tentando me engolir. Mas quanto ao resto… Encare os fatos, Egwene. A Torre tem razão em relação a isso. Aceite como verdade, porque é a verdade.

Ela balançou a cabeça.

— Só vou aceitar quando me provarem. — Ela não soou tão certa quanto gostaria, nem tanto quanto estivera. O que ele contou parecia uma espécie de reflexo distorcido do que ela fazia, as semelhanças apenas enfatizavam as diferenças. Ainda assim, havia semelhanças. Ela não desistiria. — Você consegue distinguir os fluxos? Ar, Água, Espírito, Terra, Fogo?

— Às vezes — respondeu ele, cauteloso. — Não sempre. Eu só pego o que preciso para fazer o que quero. Quase sempre tateio até encontrar. É muito estranho. Às vezes preciso fazer algo e faço, mas só depois consigo entender o que foi que fiz, ou como. Na primeira vez, é quase como lembrar uma coisa que eu já tinha esquecido. Mas consigo me lembrar de como fazer o que já fiz. Na maioria das vezes.

— Mas mesmo assim você se lembra de como fazer — insistiu Egwene. — Como foi que botou fogo naquelas mesas?

Queria mesmo era perguntar como ele as fizera dançar — achava que via um jeito, com Ar e Água — mas preferiu começar com algo simples. Acender uma vela e apagá-la eram coisas que até uma noviça sabia fazer.

O rosto de Rand assumiu uma expressão de dor.

— Eu não sei. — Ele soou envergonhado. — Quando quero fogo para acender uma lanterna ou uma lareira, simplesmente faço, mas não sei como. Não preciso pensar para fazer coisas com fogo.

Aquilo era quase de se esperar. Dos Cinco Poderes, Fogo e Terra eram mais fortes nos homens na Era das Lendas, e Ar e Água, nas mulheres. Espírito era dividido igualmente. Egwene, depois que aprendia a fazer algo com Ar ou Água, quase não precisava pensar para usá-los. Mas aquela forma de pensar não ajudava em nada o propósito delas.

Dessa vez, foi Elayne quem pressionou.

— Você sabe como apagou as chamas? Pareceu ter que pensar um pouco antes de elas se apagarem.

— Isso eu lembro, porque acho que nunca tinha feito. Absorvi o calor das mesas e espalhei na pedra da lareira, um lugar que quase não sofreria com esse tanto de calor.

Elayne prendeu a respiração, inconscientemente levando a mão ao braço esquerdo. Egwene estremeceu em solidariedade. Ela se lembrou de quando aquele braço ficou coberto de bolhas, porque a Filha-herdeira fizera o que Rand acabava de descrever, e só com o lampião em seu quarto. Sheriam ameaçara deixar as bolhas cicatrizarem sozinhas. Não fizera isso, mas ameaçara. Era uma das advertências dadas às noviças: jamais atrair calor. Era possível extinguir uma chama usando Ar ou Água, mas usar Fogo para afastar o calor era sinônimo de desastre, independente do tamanho da chama. Não era uma questão de força, pelo que Sheriam dizia: era impossível alguém se livrar do calor absorvido. Nem mesmo a mulher mais forte que a Torre Branca produzira conseguia fazer aquilo. Algumas já haviam se incendiado inteiras dessa forma. Mulheres já haviam irrompido em chamas. Egwene soltou um suspiro áspero.

— Qual é o problema? — perguntou Rand.

— Acho que você acabou de me provar qual é a diferença.

Ela suspirou outra vez.

— Ah. Quer dizer que vocês vão desistir?

— Não! — Egwene tentou suavizar a voz. Não estava irritada com ele. Não exatamente. Não sabia com o que estava irritada. — Talvez minhas professoras tivessem razão, mas tem de haver uma forma. Alguma forma. Só que não consigo pensar em nenhuma.

— Você tentou — disse o rapaz, apenas. — Agradeço por isso. Não é culpa sua que não tenha dado certo.

— Tem que haver algum jeito — resmungou Egwene, e Elayne murmurou:

— Nós vamos descobrir. Sei que vamos.

— É claro que sim — concordou Rand, com animação forçada. — Mas não hoje. — Ele hesitou. — Então imagino que vocês estejam de saída. — Soou meio arrependido, meio satisfeito. — Preciso mesmo falar com os Grão-lordes sobre impostos ainda esta manhã. Eles parecem pensar que podem tomar tanto de um fazendeiro em um ano fraco quanto em um ano bom sem levá-lo à miséria. E suponho que vocês tenham que continuar interrogando aquelas Amigas das Trevas. — Franziu a testa.

Rand não dissera nada, mas Egwene tinha certeza de que o amigo gostaria de mantê-las o mais longe possível da Ajah Negra. Estava um pouco surpresa por ele ainda não ter tentado fazê-las retornar à Torre. Talvez soubesse que ela e Nynaeve lhe diriam poucas e boas se ele tentasse.

— Vamos deixar você prosseguir com seus afazeres — disse, com firmeza — mas não agora. Rand… — Era hora de revelar a segunda razão pela qual estavam lá, mas era ainda mais difícil do que ela imaginara. O amigo ficaria magoado, aqueles olhos tristes e temerosos a convenciam disso. Mas precisava ser feito. Ela ajeitou o cachecol em volta do corpo, o tecido a envolvia dos ombros aos quadris. — Rand, eu não posso me casar com você.

— Eu sei — disse ele.

Egwene piscou. Ele não parecia tão chateado quanto ela imaginara. Disse a si mesma que aquilo era bom.

— Não quero magoar você… De verdade, não quero… Mas não quero me casar com você.

— Eu entendo, Egwene. Sei o que sou. Nenhuma mulher poderia…

— Seu cabeça de lã! — interrompeu ela, de repente. — Não tem nada a ver com você canalizar. Eu não amo você! Pelo menos, não a ponto de querer me casar.

O queixo de Rand caiu.

— Você não… me ama? — Ele soava tão surpreso quando parecia. E magoado.

— Por favor, tente compreender — começou ela, em um tom mais suave. — As pessoas mudam, Rand. Os sentimentos mudam. Quando as pessoas se distanciam fisicamente, às vezes se afastam. Eu amo você como um irmão, talvez até mais do que um irmão, mas não para casar. Consegue compreender?

Ele conseguiu abrir um sorriso pesaroso.

— Eu sou mesmo um idiota. Nunca pensei que você também pudesse mudar. Egwene, eu também não quero me casar com você. Não queria mudar, não tentei mudar, mas aconteceu. Se você soubesse o quanto isso significa para mim. Não ter mais que fingir. Não ter medo de magoar você. Eu nunca quis fazer isso, Egwene. Nunca quis magoar você.

A jovem quase sorriu. Rand estava se fazendo de forte.

— Fico feliz por você estar encarando isso tão bem — disse, em um tom suave. — Eu também não queria magoar você. Agora preciso mesmo ir. — Ela se levantou da cadeira e inclinou-se para dar um beijo na bochecha do amigo. — Você vai encontrar alguém.

— É claro — concordou ele, levantando-se, a mentira clara na voz.

— Vai mesmo.

Ela saiu satisfeita e atravessou a antessala correndo, liberando saidar enquanto tirava o cachecol dos ombros. A coisa era tão quente que mais parecia um pesadelo.

Rand estava no ponto para Elayne resgatá-lo como um cãozinho perdido, se ela o tratasse da forma como as duas haviam combinado. Pensou que Elayne cuidaria bem dele, agora e sempre. Por quanto o “sempre” durasse. Algo precisava ser feito em relação ao controle dele. Estava disposta a admitir que o que aprendera era certo — nenhuma mulher seria capaz de ensiná-lo, eram peixe e pássaro — mas isso não era o mesmo que desistir. Algo precisava ser feito, e teria de haver alguma forma. Aquela terrível ferida e a loucura eram problemas para depois, mas um dia seriam tratados. De algum jeito. Todos diziam que os homens de Dois Rios eram persistentes, mas eles não eram páreo para as mulheres de lá.

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