Das cinzas às cinzas

Roger Zelazny



O Rádio cuspiu estática. Croyd Crenson esticou o braço, desligou-o e o lançou pelo quarto na direção do cesto de lixo ao lado da penteadeira. Achou que foi um bom presságio ele ter caído dentro.

Então, esticou-se, tirou as cobertas de cima de si e olhou seu corpo pálido e nu. Tudo parecia estar no lugar e normalmente simétrico. Desejou levitar e nada aconteceu, então jogou as pernas para a beirada da cama e se sentou. Passou a mão pelos cabelos, contente por descobrir que tinha cabelos. Acordar sempre era uma aventura.

Tentou ficar invisível, derreter o cesto de lixo com um pensamento ou criar um arco de faíscas com as pontas dos dedos. Nenhuma dessas coisas ocorreu.

Levantou-se e foi ao banheiro. Enquanto bebia copo atrás de copo d’água, examinou-se no espelho. Cabelos e olhos claros dessa vez, feições regulares; na verdade, era bastante bonito. Achou que tinha apenas um pouco mais de um metro e oitenta de altura. Bem musculoso também. Devia haver algo no armário que servisse. Tivera essa altura e constituição antes.

Era um dia cinzento, com trechos de neve de aparência lamacenta forrando a calçada do outro lado da rua. Água gotejava na sarjeta. Croyd parou no caminho para o armário para retirar uma haste de metal pesada de uma caixa sob a escrivaninha. A força ainda persistia, ele refletiu, quando o rolo de metal se juntou ao rádio no cesto de lixo. Ele localizou uma camisa e calças que ficavam bem nele, e um casaco de tweed apenas levemente apertado nos ombros. Voltou sua atenção para a imensa coleção de sapatos e, depois de um tempo, escolheu um par confortável.

Passava um pouco das oito de acordo com seu Rolex e, por ser inverno e ter luz do dia, isso significava manhã. Seu estômago roncou. Horário para café da manhã e orientação. Verificou o esconderijo do dinheiro e tirou duas notas de cem dólares. Está acabando, ele pensou. Tenho que visitar o banco mais tarde. Ou talvez roubar um. As ações também estavam caindo, da última vez. Mais tarde

Ele se equipou com um lenço, um pente, as chaves e um pequeno frasco plástico de pílulas. Não gostava de carregar identificação de qualquer tipo. Não precisava de um sobretudo. Temperaturas extremas raramente o incomodavam.

Trancou a porta atrás de si, transpôs o corredor e desceu as escadas. Virou à esquerda quando chegou à rua, encarando um vento cortante, e começou a descer a Bowery. Deixando uma nota na mão esticada de um curinga alto e cadavérico com um nariz como uma ponta de gelo — que ficou tão parado quanto um totem na porta de uma loja de máscara fechada —, Croyd lhe perguntou que mês era.

— Dezembro — a figura disse sem mover os lábios. — Feliz Natal.

— É — disse Croyd.

Ele tentou mais alguns testes simples quando rumou para a primeira parada, mas não conseguiu quebrar as garrafas de uísque vazias na sarjeta com um pensamento, nem botar fogo em nenhuma das pilhas de lixo. Tentou emitir ultrassons, mas apenas produziu guinchos.

Seguiu até a banca de jornal na Hester Street, onde o pequeno e gordo Jube Benson estava sentado, lendo um de seus jornais. Vestia uma camisa havaiana amarela e laranja embaixo de um casaco de verão azul-claro; tufos de cabelos ruivos saíam sob o chapéu-palheta. A temperatura não parecia incomodá-lo mais do que a Croyd. Ele levantou o rosto escuro, inchado e marcado e mostrou um par de presas curtas e curvas quando Croyd parou diante da banca.

— Jornal? — perguntou.

— Um de cada — disse Croyd —, como de costume.

Os olhos de Jube espremeram-se levemente, enquanto examinava o homem diante dele. Então perguntou:

— Croyd?

Croyd concordou com a cabeça.

— Sou eu mesmo, Morsa. Como estão as coisas?

— Posso reclamar não, camarada. Ficou bonitão dessa vez.

— Ainda estou testando — disse Croyd, juntando uma pilha de jornais.

Jube mostrou mais das presas.

— Qual é o trabalho mais perigoso no Bairro dos Curingas? — ele perguntou.

— Sei não.

— Ir no banco do carona de um caminhão de lixo — disse ele. — Ouviu o que aconteceu com a moça que ganhou o concurso de Miss Bairro dos Curingas?

— O quê?

— Perdeu o título quando souberam que pousaria nua para o Jornal dos Criadores de Galinha.

— Essa foi bizarra, Jube — disse Croyd, lançando um sorriso sarcástico.

— Eu sei. Fomos atingidos por um furacão enquanto você dormia. Sabe o que ele fez?

— O quê?

— Quatro milhões de dólares de melhorias na cidade.

— Está bem, já deu! — disse Croyd. — Quanto te devo?

Jube baixou o jornal, levantou e caminhou como um pato para o lado da banca.

— Nada — disse ele. — Quero falar contigo.

— Tenho que comer, Jube. Quando acordo, preciso de um monte de comida e rápido. Volto mais tarde, tudo bem?

— Tudo bem se eu for contigo?

— Claro. Mas você vai perder negócios.

Jube começou a fechar a banca.

— Tudo bem — disse ele. — São negócios também.

Croyd esperou-o trancar a banca, e caminharam dois quarteirões até o Hairy’s Kitchen.

— Vamos pegar a mesa do fundo — disse Jube.

— Ótimo. Nada de negócios até minha primeira rodada de comida, tudo bem? Não consigo me concentrar com pouco açúcar no sangue, hormônios engraçados e muitas transaminases. Me deixa botar algo pra dentro antes.

— Eu entendo. Coma tranquilo.

Quando o garçom se aproximou, Jube disse que já havia comido e pediu uma xícara de café, na qual nunca tocou. Croyd começou com um pedido duplo de bife com ovos e uma jarra de suco de laranja.

Dez minutos depois, quando as panquecas chegaram, Jube limpou a garganta.

— Agora, sim — disse Croyd. — Está melhor. Então, o que está te perturbando, Jube?

— Difícil começar — respondeu o outro.

— Comece de qualquer lugar. A vida está mais bonita pra mim agora.

— Nem sempre é saudável ter curiosidade com os negócios de outras pessoas daqui…

— Verdade — Croyd concordou.

— Por outro lado, as pessoas adoram fofocar, especular.

Croyd balançou a cabeça e continuou a comer.

— Não é segredo pra ninguém o jeito que você dorme, e isso impede que tenha um emprego normal. Agora, você parece mais um ás do que um curinga, no geral. Digo, normalmente você parece normal, mas tem um talento especial.

— Ainda não entendi qual é desta vez.

— Pois bem. Você se veste bem, paga suas contas, gosta de comer no Aces High e não está usando um Timex. Tem que fazer algo pra ficar de boa… a menos que tenha herdado uma bolada.

Croyd sorriu.

— Tenho medo de olhar o Wall Street Journal — disse ele, tocando a pilha de jornais ao lado. — Posso ter que fazer algo que não faço há algum tempo se me disser o que acho que vai dizer.

— Posso supor, então, que, quando você trabalha, o que faz é, às vezes, meio fora da lei?

Croyd levantou a cabeça e, quando seus olhos se encontraram, Jube encolheu-se. Era a primeira vez que Croyd percebia como o homem estava nervoso. Ele riu.

— Vá pro inferno, Jube — disse ele. — Te conheço há tempo suficiente pra saber que você não é da polícia. Quer que eu faça alguma coisa, não é? Se for pra roubar alguma coisa, sou bom nisso. Aprendi com um especialista. Se estiver sendo chantageado, terei prazer em pegar de volta a prova e fazer a pessoa que está fazendo isso cagar na calça de medo. Se quiser que algo seja removido, destruído, transportado, eu sou o cara. Mas se quiser alguém morto, isso eu não gosto de fazer. Mas posso dar o nome de algumas pessoas que não se importariam.

Jube balançou a cabeça.

— Não quero ninguém morto, Croyd. Mas quero um roubo, sim.

— Antes de entrar em detalhes, melhor eu dizer que meu preço é alto.

Jube mostrou as presas.

— Os… hum… os interesses que represento estão preparados para recompensar seu esforço.

Croyd terminou as panquecas, bebeu café e comeu o bolo dinamarquês enquanto esperava pelos waffles.

— É um corpo, Croyd — disse Jube, finalmente.

— Quê?

— Um cadáver.

— Não tô entendendo.

— Tem um cara que morreu no fim de semana. O corpo foi encontrado numa caçamba de lixo. Sem identidade. É um joão-ninguém. Lá no necrotério.

— Caramba, Jube! Um corpo? Nunca roubei um corpo antes. Pra que serve isso?

Jube deu de ombros.

— Estão dispostos a pagar muito bem por ele… e por quaisquer posses que o cara tiver com ele. É tudo que eles querem dizer.

— Acho que é para os negócios deles que querem. Mas quanto estão falando em pagar?

— Para eles, vale cinquenta paus.

— Cinquenta paus? Por um presunto? — Croyd parou de comer e encarou Jube. — Você só pode estar brincando.

— Não. Posso te dar dez agora e quarenta quando entregar.

— E se eu não conseguir?

— Fica com os dez pela tentativa. Está interessado?

Croyd deu um suspiro fundo e deixou o ar sair lentamente.

— Claro — disse ele em seguida. — Estou interessado. Mas nem sei onde é o necrotério.

— É no gabinete do médico-legista, na 25th com First Avenue.

— Ok. Diga que vou lá e…

Hairy chegou e pousou um prato de salsichas e batatas suíças diante de Croyd. Ele encheu novamente a xícara de café e deixou várias contas e algumas moedas na mesa.

— Seu troco, senhor.

Croyd olhou para o dinheiro.

— Como assim? — disse ele. — Não paguei ainda.

— Você me deu uma nota de cinquenta.

— Não, não dei. Não terminei ainda.

Parecia que Hairy estava sorrindo, sob o fundo da pelagem preta e densa que o cobria inteiramente.

— Não estaria aberto há tanto tempo se ficasse dando dinheiro por aí — ele diz. — Eu sei fazer troco.

Croyd deu de ombros e balançou a cabeça.

— Acho que sim.

Croyd franziu as sobrancelhas quando Hairy saiu, e este balançou a cabeça.

— Jube, eu não paguei pra ele.

— Também não me lembro de ver você pagar. Mas ele disse uma de cinquenta… Difícil esquecer.

— Estranho, também. Porque eu estava pensando em trocar uma de cinquenta aqui quando acabasse.

— Ah? Você lembra quando o pensamento passou por sua cabeça?

— Lembro. Quando ele trouxe os waffles.

— Você teve mesmo uma imagem mental de pegar uma de cinquenta e entregar para ele?

— Sim.

— Interessante.

— Como assim?

— Acho que pode ser seu poder dessa vez… algum tipo de hipnose telepática. Você vai precisar apenas lidar com isso um pouco para pegar o jeito, encontrar os limites.

Croyd concordou com a cabeça, lentamente.

— Só não teste em mim, por favor. Já estou ferrado demais para isso hoje.

— Por quê? Você vai levar algum nesse negócio do cadáver?

— Quanto menos souber, Croyd, melhor. Confie em mim.

— Tudo bem, eu entendo. Na verdade, isso nem importa. Não para o que eles estão pagando — disse ele. — Então, eu aceito o trabalho. Digamos que tudo correu bem e estou com o corpo. O que faço com ele?

Jube puxou uma caneta e um caderninho do bolso interno. Escreveu um pouco, arrancou a folha e passou-a para ele. Então fuçou no bolso lateral, tirou uma chave e colocou-a ao lado do prato de Croyd.

— Esse endereço fica a cinco quadras daqui — disse ele. — Quarto alugado, andar térreo. A chave se encaixa na fechadura. Você leva pra lá, tranca e vem me avisar na banca.

Croyd começou a comer novamente. Depois de um tempo, ele disse:

— Ok.

— Bom.

— Mas eles provavelmente têm mais de um joão-ninguém lá nessa época do ano. Bebuns que morrem congelados… você sabe. Como vou saber qual é o certo?

— Estava chegando aí. O cara é um curinga, correto? Um camarada pequeno. Um metro e meio, talvez. Parece, tipo, um besourão… pernas dobradas como as de um gafanhoto, um exoesqueleto com um pouco de pelo em cima, quatro dedos nas mãos com três juntas cada, olhos na lateral da cabeça, asas atrofiadas nas costas…

— Já imaginei. Parece difícil confundir com o modelo padrão.

— É. Não deve pesar muito também.

Croyd balançou a cabeça. Alguém na frente do restaurante disse “… pterodátilo!”, e Croyd virou a cabeça para ver a forma alada pairar ao lado da janela.

— Aquele garoto de novo — disse Jube.

— É. Adivinha quem ele anda amolando agora?

— Você o conhece?

— Ahã. Ele aparece de vez em quando. Tipo fã dos ases. Pelo menos ele não sabe qual é minha aparência desta vez. Deixa pra lá… Em quanto tempo precisam desse corpo?

— O quanto antes.

— Tem alguma coisa que você queira me dizer sobre a estrutura do necrotério?

Jube concordou devagar com a cabeça.

— Sim. É um prédio de seis andares. Laboratórios e escritórios e tudo o mais, subindo as escadas. Recepção e área de televisão no térreo. Os corpos ficam no porão. As salas de autópsia são embaixo também. Têm 128 compartimentos, com um refrigerador apertado com prateleiras para os corpos infantis. Quando alguém precisa ver um corpo para identificação, colocam num elevador especial que sobe para uma câmera ladeada de vidros numa sala de espera no primeiro andar.

— Então você esteve lá?

— Não, eu li nas memórias do Milton Helpern.

— Você teve o que eu chamaria de educação realmente liberal — disse Croyd. — Eu mesmo deveria ler mais.

— Você pode comprar muitos livros com cinquenta paus.

Croyd sorriu.

— Então, negócio fechado?

— Me deixa pensar um pouco mais… depois do café da manhã… enquanto eu imagino como meu talento funciona. Passo na sua banca quando eu estiver pronto. Quando eu pegaria os dez paus?

— Posso pegar hoje à tarde.

— Tudo bem. Vejo você em uma hora mais ou menos.

Jube balançou a cabeça, levantou o volume imenso, escorregou para fora da cadeira.

— Cuidado com o colesterol — disse ele.

Fendas azuis apareceram na cúpula celeste cinzenta, e os raios de sol abriram caminho até a rua. O som da água gotejante ficou constante naquele momento de algum lugar atrás da banca de jornal. Jube normalmente teria pensado que era um fundo agradável entre os ruídos do tráfego e outros sons da cidade, não fosse pelo pequeno dilema moral ter chegado aos poucos sobre asas de couro e destruído a manhã. Não havia percebido que tomara uma decisão até olhar para cima e ver Croyd olhando para ele, sorrindo.

— Sem problema — disse Croyd. — Vai ser moleza.

Jube suspirou.

— Tem algo que eu precisava te dizer primeiro.

— Problemas?

— Nada que seja diretamente relacionado aos termos do trabalho — Jube explicou. — Mas você pode ter um problema que não sabia que tinha.

— Tipo o quê? — Croyd falou, franzindo a testa.

— Aquele pterodátilo que vimos mais cedo…?

— E?

— O Kid Dinossauro veio até aqui. Eu o encontrei esperando quando voltei. Estava procurando por você.

— Espero que não tenha dito onde me encontrar.

— Não, não disse. Mas você sabe como ele observa de perto os ases e os curingas com grandes poderes…?

— Sim. Por que ele não pode estar entre jogadores de beisebol ou criminosos de guerra?

— Ele viu um cara e queria que você soubesse. Disse que o Devil John Darlingfoot saiu do hospital há um mês e pouco e desapareceu. Mas está de volta agora. O garoto o viu perto do Mosteiro mais cedo. Disse que estava vindo para Midtown.

— Bem, bem. E daí?

— E daí que ele acha que o cara está te procurando. Quer revanche. O garoto acha que ainda está furioso com aquilo que você fez no dia em que vocês dois detonaram o Rockefeller Plaza.

— Então, deixe-o procurando. Não sou mais um cara baixote e corpulento de cabelo escuro. Vou pegar o presunto agora… antes que alguém pague pra ele uma cervejinha.

— Precisa de algum dinheiro?

— Você já me deu.

— Quando?

— Qual sua primeira memória da minha volta até aqui?

— Olhei para cima faz um minuto e vi você parado aí, sorrindo. Você disse que não tinha problema. Disse que era “moleza”.

— Ótimo. Então, está funcionando.

— É melhor você explicar.

— Esse é o momento no qual eu quis que você começasse a lembrar. Eu estava aqui um minuto antes disso, e falei pra você me dar o dinheiro e se esquecer de tudo.

Croyd tirou um envelope de um bolso interno do casaco, abriu e mostrou o dinheiro.

— Meu Deus, Croyd! O que mais você fez durante esse minuto?

— Sua pureza está intacta, se é isso que quer saber.

— Você não me fez nenhuma pergunta… sobre…?

Croyd balançou a cabeça, negando.

— Eu disse que não me importo quem quer o corpo, ou por quê. Realmente não ligo para as preocupações alheias. Já tenho problemas demais.

Jube suspirou.

— Ok. Vai lá, garoto.

Croyd acenou.

— Não se preocupe, Morsa. Considere a missão cumprida.

Croyd caminhou até chegar a um supermercado, entrou e comprou um pequeno pacote de sacos de lixo grandes. Dobrou um e enfiou no bolso interno do casaco. Deixou o resto numa lata de lixo. Então, caminhou até o próximo cruzamento principal e chamou um táxi.

Ensaiou a estratégia enquanto percorria a cidade. Entraria no lugar e usaria seu poder atual para persuadir as recepcionistas de que o estavam esperando, que era um patologista de Bellevue chamado por um amigo da equipe para dar opinião sobre uma peculiaridade forense. Brincou por um instante com os nomes Malone e Welby, decidiu-se por Anderson. Então, faria com que a recepcionista chamasse alguém com autoridade para levá-lo até o porão e encontrar o tal joão-ninguém. Colocaria aquela pessoa sob controle, pegaria o corpo e seus pertences, o transferiria para um saco e sairia, fazendo com que todos pelos quais passasse esquecessem que estivera ali. Com certeza, muito mais simples do que táticas mais árduas que já teve de empregar durante os anos. Sorriu com a simplicidade clássica daquilo: sem violência, sem memória…

Quando chegou ao prédio com placas de alumínio e tijolos esmaltados azuis e brancos, disse ao taxista para seguir e deixá-lo na esquina seguinte. Havia duas viaturas de polícia estacionadas na frente e uma porta destruída jazia diante do local. A presença da polícia no necrotério não parecia suscitar uma ocorrência, mas a porta quebrada aumentou o senso de precaução. Deu ao motorista uma nota de cinquenta e pediu para que esperasse. Passou na frente do local uma vez e olhou para dentro. Diversos policiais estavam visíveis, aparentemente falando com funcionários.

Não parecia o momento ideal para prosseguir com o plano. Por outro lado, não poderia se permitir ir embora sem descobrir o que havia acontecido. Então, virou-se quando chegou à esquina e voltou. Entrou sem hesitar, olhando em volta rapidamente.

Um homem entre os civis que estavam em pé com a polícia virou de repente na sua direção e o encarou. Croyd não gostou nem um pouco daquela encarada. Fez seu estômago revirar e sua mão formigar.

Lançou mão de seu novo poder imediatamente, seguindo direto até o homem, forçando um sorriso enquanto caminhava.

Tudo bem. Você quer falar comigo e fazer exatamente o que eu disser. Acene para mim agora, diga “Oi, Jim!” em voz alta e caminhe até aquele lado comigo.

— Oi, Jim! — o homem disse, movendo-se para juntar-se a Croyd.

Não!, Judas pensou. Rápido demais. Cravou os olhos em mim assim que o percebi… Podemos usar este cara…

— À paisana? — Croyd perguntou a ele.

— Sim — o homem sentiu que queria responder.

— Qual seu nome?

— Matthias.

— O que aconteceu aqui?

— Um corpo foi roubado.

— Qual deles?

— Um joão-ninguém.

— Pode descrevê-lo?

— Parecia um besourão… pernas de gafanhoto…

— Merda — disse Croyd. — E sobre os pertences?

— Não havia nenhum pertence.

Vários dos policiais uniformizados estavam olhando na direção deles. Croyd deu sua próxima ordem mentalmente. Matthias virou-se para os uniformizados.

— Só um momento, rapazes — ele falou. — Negócios.

Droga!, ele pensou. Este aqui será útil. Você não vai conseguir me segurar assim pra sempre, camarada…

— Como aconteceu? — Croyd perguntou.

— Um cara veio aqui faz pouco tempo, desceu, forçou um atendente a mostrar o compartimento para ele, tirou o corpo e saiu com ele.

— Ninguém tentou impedir?

— Claro que sim. Quatro deles estão a caminho do hospital por causa disso. O cara era um ás.

— Quem?

— Aquele que arrebentou o Rockefeller Plaza no outono passado.

— Darlingfoot?

— Sim, esse mesmo. — Não… não me pergunte mais… se estou envolvido, se eu o contratei, se estou encobrindo o cara agora…

— Para que lado ele foi?

— Noroeste.

— A pé?

— Foi o que as testemunhas disseram… grandes saltos, de seis metros. — Assim que você me deixar ir, filha da mãe, vou mandar te apagar.

— Ei, por que você não vira e olha para mim do jeito que fez quando entrei?

Inferno!

— Eu senti que um ás tinha acabado de entrar pela porta.

— Como você sabia?

— Também sou um ás. Esse é meu poder… encontrar outros ases.

— Talento útil pra um policial, eu acho. Bem, ouça com atenção. Você vai esquecer que me encontrou e não vai perceber quando eu sair. Vai andar até aquele bebedouro tomar água, então voltará e se juntará aos seus colegas. Se alguém perguntar com quem estava falando, vai dizer que era seu agente de apostas e esquecerá isso também. Faça isso agora. Esqueça!

Croyd virou-se e se afastou. Judas percebeu que estava com sede.

Lá fora, Croyd chegou ao táxi, entrou, bateu a porta e disse:

— Noroeste.

— Como assim? — o motorista perguntou.

— Vai para a parte alta da cidade e eu digo o que fazer quando chegarmos.

— O senhor é quem manda.

O carro sacudiu-se e começou a andar.

No próximo quilômetro e meio, o motorista virou para oeste, como se procurasse sinais da passagem do outro. Parecia improvável que Devil John estivesse usando o transporte público para carregar um defunto. Por outro lado, era possível que tivesse um cúmplice esperando com um carro. Ainda assim, conhecendo a cara de pau do homem, não parecia tão absurdo para ele estar trotando por aí com o corpo. Sabia que havia pouca coisa a fazer para pará-lo se não quisesse ser impedido. Croyd suspirou enquanto esquadrinhava o caminho à frente. Por que as coisas simples nunca eram fáceis?

Mais tarde, quando estavam próximos de Morningsides Heights, o motorista murmurou:

— … um daqueles malditos curingas!

Croyd seguiu o gesto do homem onde a forma de um pterodátilo ficou à vista por diversos momentos antes de passar por trás de um prédio.

— Siga-o! — Croyd gritou.

— O pássaro de couro?

— Sim!

— Não sei onde ele está agora.

— Encontre-o!

Croyd balançou outra nota para o homem, e os pneus derraparam e uma buzina disparou enquanto o táxi fazia o retorno. O olhar de Croyd varreu o céu, mas Kid ainda estava fora de visão. Ele parou o táxi momentos depois para perguntar a um corredor que passava. O homem tirou um fone de ouvido, ouviu por um momento, então apontou para leste e partiu de novo.

Muitos minutos depois, ele viu a forma angular do pássaro ao norte, movendo-se em círculos largos. Dessa vez, conseguiram acompanhar seu rastro por um momento mais longo e se aproximar.

Quando chegaram perto da área onde o pterodátilo circulava, Croyd pediu para o motorista desacelerar. Ainda não havia nada incomum à vista no solo, mas o caminho do sauro cobria uma área de vários quarteirões. Se estivesse de fato rastreando Devil John, o cara podia estar bem próximo.

— O que estamos procurando? — o motorista perguntou.

— Um homem grande, de barba ruiva e cabelo encaracolado, com duas pernas muito diferentes — Croyd respondeu. — A direita é pesada, peluda e termina num casco. A outra é normal.

— Ouvi falar desse cara. Ele é perigoso…

— É, eu sei.

— O que você está planejando fazer se encontrá-lo?

— Espero ter um diálogo razoável — Croyd comentou.

— Não vou ficar muito perto do seu diálogo. Se o virmos, caio fora.

— Pago bem se esperar.

— Não, obrigado — o motorista disse. — Quando quiser sair, deixo você e corro. É isso.

— Bem… o pterodátilo está indo pro norte. Vamos tentar nos adiantar, e quando conseguirmos você corta pra leste na primeira rua que puder.

O motorista acelerou de novo, rumando para a direita, enquanto Croyd tentava imaginar o centro do círculo de Kid.

— Na próxima rua — disse Croyd, finalmente. — Vira lá e vemos o que vai acontecer.

Viraram devagar e cruzaram o quarteirão inteiro sem Croyd enxergar sua presa ou mesmo avistar seu dedo-duro aéreo novamente. No cruzamento seguinte, contudo, a forma alada passou de novo e, dessa vez, avistou quem estava procurando.

Devil John estava do outro lado da rua, no meio do quarteirão. Carregava nos braços um pacote enrolado numa manta. Seus ombros eram enormes, seus dentes brancos reluziram quando uma mulher com carrinho de compras correu para sair do caminho. Ele estava vestindo uma Levi’s — a perna direita rasgada até a altura da coxa — e uma blusa de moletom rosa que sugeria uma viagem à Disneylândia. Um motorista que passava atingiu a lateral de um carro estacionado quando John deu um passo normal com o pé esquerdo, dobrou a perna direita num ângulo estranho e pulou seis metros adiante até uma área aberta próxima ao meio-fio. Virou-se com um passo normal e pulou novamente, passando um Honda vermelho que se movia devagar e pousando num trecho de grama no canteiro central da rua. Dois cachorros grandes que o seguiam correram para o meio-fio, latindo alto, mas pararam e olharam o tráfego próximo.

— Para! — Croyd falou para o motorista, e abriu a porta, descendo na calçada antes de o veículo parar por completo.

Ele aproximou as mãos da boca e gritou:

— Darlingfoot! Espere!

O homem apenas olhou na sua direção, já dobrando a perna para saltar de novo.

— Sou eu… Croyd Crenson! — berrou. — Quero falar com você!

A figura, parecida com um sátiro, parou meio agachado. A sombra de um pterodátilo passou por eles. Os dois cães continuaram a latir, e um poodle pequenino virou a esquina e correu para juntar-se a eles. A buzina do carro trombeteava para duas pessoas paradas na faixa de pedestres. Devil John virou-se e o encarou. Então, sacudiu a cabeça.

— Você não é Crenson! — gritou.

Croyd avançou a passos largos.

— Tá duvidando? — respondeu, e disparou pela rua e cruzou o canteiro.

Os olhos de Devil John estavam espremidos sob as sobrancelhas desordenadas, enquanto examinava a figura de Croyd avançando. Raspou seu lábio inferior lentamente com os dentes de cima, então balançou a cabeça mais lentamente.

— Nããão — disse ele. — Croyd era mais escuro e muito mais baixo. Não importa, o que você quer de mim, hein?

Croyd deu de ombros.

— Minha aparência muda toda hora — disse ele. — Mas sou o mesmo cara que chutou seu rabo no outono passado.

— Sai fora, camarada — disse ele. — Não tenho tempo para fãs…

Os dois cerraram os dentes quando o carro parou ao lado deles e a buzina disparou. Um homem de terno cinza pôs a cabeça para fora da janela.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou.

Croyd resmungou, deu um passo para a rua e arrancou o para-choque, o qual enfiou no banco traseiro do veículo pela janela que estava fechada até então.

— Inspeção veicular — disse ele. — Você passou. Parabéns.

— Croyd! — Darlingfoot exclamou, quando o carro saiu às pressas. — É você!

Ele jogou o pacote no chão e levantou os punhos.

— Esperei o inverno inteiro por isso…

— Então, espere mais um minuto — disse Croyd. — Tenho que perguntar uma coisa.

— Quê?

— Esse corpo… Por que você o pegou?

O homenzarrão riu.

— Por dinheiro, claro. Que mais?

— Se importa em dizer quanto estão pagando por ele?

— Cinco paus. Por quê?

— Filhos da puta baratos — disse Croyd. — Falaram para que o querem?

— Não e eu não perguntei, porque não me importa. Dinheiro é dinheiro.

— É. — Croyd falou. — Quem são eles?

— Por quê? O que tem a ver com isso?

— Bem, acho que estão te passando pra trás. Acho que vale mais.

— Quanto?

— Quem são eles?

— Uns maçons, eu acho. Quanto vale?

— Maçons? Tipo, apertos de mão secretos e tudo o mais? Pensei que existissem só pra dar aos outros funerais caros. O que iriam querer com um curinga morto?

Darlingfoot balançou a cabeça.

— São uns caras esquisitos — ele respondeu. — Pelo que sei, querem comer o corpo. Agora, o que você estava falando sobre dinheiro?

— Eu acho que consigo mais por ele — disse Croyd. — O que acha se eu der os cinco deles e botar mais um? Te dou seis paus por ele.

— Não sei, Croyd… Não gosto de ferrar as pessoas pra quem trabalho. Vai rolar o boato de que não sou confiável.

— Bem, talvez eu possa chegar em sete…

Os dois viraram de repente para uma série de rosnados e estalos selvagens. Os cães — juntos com mais dois vira-latas — cruzaram a rua durante a conversa e arrastaram o pequeno corpo de inseto para fora da manta. Ele se quebrou em diversas partes, e o dogue alemão segurava grande parte de um braço nos dentes, enquanto recuava, rosnando e se afastando do pastor-alemão. Os outros dois arrancaram uma das pernas de gafanhoto e brigavam por ela. O poodle já estava na metade da rua, uma das mãos de quatro dedos na boca. Croyd percebeu um cheiro horrendo diferente do ar nova-iorquino.

— Merda! — Devil John exclamou, pulando para a frente, o casco estourando um quadrado do pavimento de concreto próximo aos restos mortais. Tentou agarrar o dogue alemão, mas este se virou e correu. O terrier soltou a perna. O vira-lata marrom não. Arrastou a perna, atravessando a rua para a outra direção, carregando o apêndice.

— Vou pegar o braço! Pega a perna! — Devil John gritou, partindo atrás do dogue alemão.

— E a mão? — Croyd berrou, chutando outro cachorro que acabara de chegar no local.

A resposta de Darlingfoot foi previsível, estúpida e representava uma improbabilidade anatômica de ordem superior. Croyd partiu atrás do cachorro marrom.

Quando Croyd se aproximou da esquina onde o tinham visto virar, ouviu uma série de uivos agudos. Chegando à rua lateral, viu o cachorro deitado de bruços, mordendo o pterodátilo, que o prendia na calçada. O membro arrancado jazia ao lado. Croyd avançou até lá.

— Obrigado, Kid. Te devo essa — disse ele; enquanto pegava a perna, hesitou, tirou o lenço, enrolou na mão, agarrou o membro e o segurou contra o vento.

A forma de pterodátilo escorreu, dando lugar à de um garoto nu — talvez com 13 anos de idade — com os olhos brilhantes e cabelos castanhos desgrenhados, uma pequena marca de nascença na testa.

— Peguei pra você, Croyd — ele anunciou. — Mas fede mesmo.

— É, Kid — disse Croyd. — Me desculpe. Agora preciso juntar os outros pedaços.

Ele se virou e apressou-se na direção de onde tinha vindo. Atrás dele, ouviu passos rápidos.

— Para que você quer isso? — o garoto perguntou.

— É uma história chata e complicada, e é melhor você não saber — ele respondeu.

— Ah, para com isso. Pode me falar.

— Não tenho tempo. Estou com pressa.

— Vai lutar com Devil John de novo?

— Não está nos meus planos. Acho que podemos chegar a um acordo sem recorrer à violência.

— Mas, se você lutar, qual é o seu poder desta vez?

Croyd chegou à esquina, cortando pelo canteiro central. Adiante, viu onde outro cachorro fuçava o cadáver. Devil John não estava em lugar algum.

— Inferno! — ele gritou. — Sai fora, xô!

O cachorro nem deu atenção a ele, mas arrancou uma camada de pelos da carapaça quitinosa. Croyd percebeu que do tecido rasgado pingava um líquido transparente. Os restos pareciam úmidos agora, e Croyd percebeu que os fluidos estavam vazando dos orifícios de respiração no tórax.

— Sai fora! — ele repetiu.

O cachorro rosnou para ele. De repente, o rosnado transformou-se num ganido e o rabo do animal sumiu entre as pernas. Um tiranossauro de um metro de altura passou por Croyd saltando, chiando furiosamente. O cão virou-se e fugiu. Um momento depois, Kid estava em pé no lugar dele.

— Ele está indo embora com aquele pedaço — o garoto disse.

Croyd repetiu o comentário de Darlingfoot sobre a mão enquanto deixava a perna sobre o corpo desmembrado. Ele retirou o saco de lixo dobrado do bolso interno do casaco e o sacudiu.

— Se quer ajudar, Kid, segure o saco enquanto jogo nele o que restou.

— Tudo bem. Isso é bem nojento.

— É trabalho sujo — Croyd concordou.

— Então, por que você está fazendo isso?

— É isso que acontece quando viramos adultos, Kid.

— Como assim?

— Você gasta cada vez mais tempo arrumando as coisas após as bagunças.

Um ruído de passadas pesadas e rápidas se aproximou, uma sombra passou por sobre eles, e Devil John estrondou no chão ao lado deles.

— Maldito cachorro, fugiu — ele anunciou. — Conseguiu a perna?

— Consegui — Croyd respondeu. — Já está no saco.

— Boa ideia… um saco plástico. Quem é o garoto pelado?

— Não conhece Kid Dinossauro? — Croyd perguntou. — Pensei que ele conhecesse todo mundo. É o pterodátilo que estava seguindo você.

— Por quê?

— Gosto de estar onde a ação está — Kid respondeu.

— Ei, por que você não está na escola? — Croyd quis saber.

— A escola é uma bosta.

— Peraí. Tive que parar a escola no nono ano e nunca voltei. Sempre me arrependi.

— Por quê? Você está tão bem.

— Há todas aquelas coisas que eu perdi. Não queria ter perdido.

— Tipo o quê?

— Bem… Álgebra. Nunca aprendi álgebra.

— O que tem de bom na álgebra?

— Não sei e nunca vou saber, porque não aprendi. E às vezes olho para as pessoas na rua e digo, “Cara, aposto que elas todas sabem álgebra”, e isso faz eu me sentir por baixo.

— Bem, eu não sei álgebra e isso não me faz sentir nem um pouco por baixo.

— Espere mais pra frente — disse Croyd.

Kid percebeu de repente que Croyd estava olhando para ele de forma estranha.

— Você vai voltar pra escola agora — Croyd falou para ele — e vai estudar pra caramba o resto do dia e fazer a lição de casa à noite, e vai gostar disso.

— Acho que é melhor eu ir voando — Kid disse, e transformou-se num pterodátilo, saltitando diversas vezes até pairar.

— Pegue algumas roupas no caminho! — Croyd gritou atrás dele.

— Que diabos está acontecendo aqui?

Croyd virou-se e deu de cara com um policial uniformizado que acabara de cruzar o canteiro central.

— Vá se foder! — ele resmungou.

O homem começou a desafivelar o cinto.

— Para, para! Cancela — disse Croyd. — Afivele o cinto. Esqueça o que eu disse e vá para outra rua.

Devil John ficou encarando enquanto o homem obedecia.

— Croyd, como você faz essas coisas? — ele perguntou.

— É o meu poder da vez.

— Então, você podia me fazer dar o corpo pra você, não podia?

Croyd pousou o saco de lixo no chão e o amarrou. Quando terminou a amarração, ele concordou com a cabeça.

— Claro. E conseguirei de um jeito ou de outro. Mas não estou a fim de trapacear com um camarada que trabalhou duro hoje. Minha oferta ainda é boa.

— Sete paus?

— Seis.

— Você disse sete.

— Tudo bem, mas agora não está tudo aqui.

— A culpa não é minha. Você me parou.

— Mas você deixou a coisa no chão onde os cachorros conseguiam pegar.

— Tá, mas como eu ia saber… ei, é um boteco ali na esquina.

— É mesmo.

— Se importa de discutir isso almoçando e tomando uma cerveja?

— Agora que você falou, estou com um pouco de fome — disse Croyd.

Sentaram-se à mesa da janela e deixaram o saco de lixo na cadeira vazia. Croyd foi até o banheiro e lavou as mãos diversas vezes, enquanto Devil John comprou duas cervejas. Quando voltou, o outro pediu meia dúzia de sanduíches. Darlingfoot fez o mesmo.

— Para quem você está trabalhando? — perguntou.

— Não sei — Croyd respondeu. — Estou trabalhando para terceiros.

— Complicado. Fico me perguntando para que eles querem essa coisa.

Croyd balançou a cabeça.

— Sei lá. Espero que haja o suficiente dele para a gente receber.

— Esse é um dos motivos pelos quais eu quero negociar. Acho que meus camaradas queriam o presunto num estado melhor. Vão tentar me passar a perna. Melhor um pássaro na mão, sabe? Não confio muito neles. Bando de malucos.

— Falaí, tinha alguma coisa nele?

— Não. Nenhum pertence.

Os sanduíches chegaram e eles começaram a comer. Depois de um tempo, Darlingfoot olhou diversas vezes para o saco de lixo, então comentou:

— Sabe de uma, parece que esta coisa tá maior.

Croyd examinou-a por um momento.

— Está acomodando e mudando — disse ele.

Eles terminaram de comer e pediram mais duas cervejas.

— Não, caramba! Está maior! — Darlingfoot insistiu.

Croyd olhou novamente. Parecia inchar a cada vez que olhava.

— Tem razão — reconheceu. — Devem ser os gases da… hum… decomposição.

Ele esticou um dedo, como se para cutucar, pensou melhor e abaixou a mão.

— Então, o que você me diz? Sete paus?

— Acho que é justo… pelo jeito que está.

— Mas eles sabiam o que estavam pedindo. Você tem que esperar esse tipo de coisa de um presunto.

— Um pouco, concordo. Mas tem que admitir também que balançou o bicho um bocado.

— É verdade, mas um normal poderia ficar melhor. Como eu ia saber que o cara era um caso especial?

— Olhando pra ele. Era pequeno e frágil.

— Parecia bem sólido quando catei. O que você acha de a gente dividir a diferença. Seis e meio?

— Não sei.

Os outros clientes começaram a olhar na direção deles, pois o saco de lixo continuava a inchar. Eles terminaram as cervejas.

— Outra rodada?

— Por que não?

— Garçom.

O garçom deles, que tinha acabado de limpar uma mesa, seguia sem pressa, uma pilha de pratos e talheres nas mãos.

— O que posso fazer… — começou, quando a lâmina de uma faca grande, para fora da pilha de louças, raspou o saco de lixo inflado. — Meu Deus! — ele terminou, enquanto um chiado, acompanhado por um odor que poderia ter sido composto de gases de esgoto e eflúvios de um abatedouro encheu os arredores e se espalhou como o vazamento de uma experiência química de guerra por todo o estabelecimento.

— Me desculpem — o garçom disse, virando as costas e saindo apressado.

Então, momentos depois, houve uma série de engasgos de outros clientes.

— Use seu poder, Croyd! — Devil John sussurrou. — Depressa!

— Não sei se consigo fazer numa sala cheia de…

— Tente!

Croyd concentrou-se nos outros.

Foi um pequeno acidente. Nada importante. Agora, vocês vão esquecer o que houve. Não sentem nenhum cheiro estranho. Voltem para suas refeições e não olhem nesta direção de novo. Não perceberão nada do que fizermos. Não há nada para ver aqui. Nem para cheirar.

Os outros clientes viraram-se, voltaram a comer, conversando.

— Conseguiu — Devil John constatou numa voz estranha.

Croyd olhou para trás e descobriu que o homem estava fechando o nariz com os dedos.

— Você derramou alguma coisa? — Croyd perguntou para ele.

— Não.

— Opa. Ouviu isso?

Darlingfoot inclinou-se e curvou-se para baixo.

— Ai, caramba! — disse ele. — O saco rasgou e ele está escorrendo pelo rasgo que o cara fez. Ei, você pode acabar com meu olfato também?

Croyd fechou os olhos e rangeu os dentes.

— Assim é melhor — ouviu momentos depois, quando Darlingfoot esticou o braço e levantou o saco, que fez um barulho de líquido gorgolejante.

Croyd olhou para o chão e deu de cara com uma poça imensa que lembrava um ensopado derramado. Sentiu um leve enjoo e virou o rosto.

— O que quer fazer agora, Croyd? Deixar a bagunça e levar o resto, ou o quê?

— Acho que sou obrigado a levar tudo que puder.

Devil John levantou uma sobrancelha e sorriu.

— Bem — disse —, fechamos em 6.500 e o ajudo a juntá-lo de um jeito administrável.

— Combinado.

— Então, me cubra se puder para que o povo na cozinha não me veja.

— Vou tentar. O que você vai fazer?

— Confie em mim.

Darlingfoot levantou, passou a parte de cima do saco para Croyd e mancou até a cozinha. Passou muitos minutos lá e, quando voltou, os braços estavam cheios.

Ele destampou um pote de picles grande e o deixou no chão, ao lado da cadeira.

— Agora, se você tombar o saco para que a boca fique bem em cima do jarro — disse ele —, eu levanto o fundo e podemos despejá-lo aí dentro.

Croyd obedeceu, e o pote foi preenchido até acima da metade antes de o gotejar cessar.

— E agora? — ele perguntou, rosqueando a tampa.

Darlingfoot pegou o primeiro de uma pilha de guardanapos que trouxe com ele e abriu um pequeno pacote branco.

— Embalagem pra viagem — disse ele. — Vou só pegar os pedaços sólidos do chão e botar nela.

— E aí?

— Também tenho um belo saco de lixo novinho — explicou, inclinando-se. — Deve caber tudo aqui, sem problema.

— Pode se apressar? — disse Croyd. — Não consigo controlar meu próprio olfato.

— Estou limpando o mais rápido que posso. Pode abrir o pote de novo? Posso jogar o resto dele que está no guardanapo.

Quando os restos derramados foram recolhidos no jarro de picles em nove embalagens para viagem, Darlingfoot abriu o saco de lixo furado pela metade e removeu as placas quitinosas que permaneceram dentro dele. Ele botou o pote na cavidade do tórax e, então, colocou-o inteiro no saco limpo, cobrindo-o com as peças de cartilagem e pequenos pedaços de revestimento. Pôs a cabeça e os membros em cima. Então embalou os pacotes para viagem e enrolou o saco plástico.

Croyd estava em pé nesse momento.

— Desculpe — disse ele. — Já volto.

— Estou indo também. Preciso me lavar um pouco.

Falando por sobre a corrente de água, Devil John de repente observou:

— Agora que tudo está bem encaixado, tenho que te pedir um favor.

— O quê? — Croyd perguntou, ensaboando as mãos novamente.

— Ainda estou com um mau pressentimento sobre os caras que me contrataram, sabe?

Croyd deu de ombros.

— Você não pode servir a dois mestres.

— Por que não?

— Não tô te entendendo.

— Eu estava no meu caminho para entregar quando me alcançou. Supondo que fôssemos até o ponto de encontro – um pequeno parque perto do Mosteiro – e digo pra eles alguma bobagem sobre os cachorros rasgando o corpo e fugindo com a coisa toda. Você os faz acreditarem nisso e, então, esquecerem que você estava junto. Desse jeito, fico fora de perigo.

— Tudo bem, certo — Croyd concordou, jogando água no rosto. — Mas você falou “eles”. Quantas pessoas você espera lá?

— Um ou dois. O cara que me contratou era um tal de Matthias, e havia um homem vermelho com ele. Ele que tentou me fazer ficar interessado pelos maçons até o outro o mandar calar a boca…

— Que engraçado — disse Croyd. — Conheci um Matthias esta manhã. Era um dos policiais. À paisana. E esse cara vermelho? Talvez seja um ás ou um curinga.

— É provável. Mas se tinha qualquer talento especial, não mostrou.

Croyd secou o rosto.

— De repente, fiquei um pouco desconfortável — disse ele. — Veja só, esse policial, o Matthias, é um ás. O nome pode ser apenas uma coincidência, e eu consegui enganá-lo com meu talento, mas não gosto dessa coisa de muitos ases. Poderia encontrar alguém que seja imune àquilo que eu tenho. Esse grupo… Eu não derrotaria um punhado de ases maçons, derrotaria?

— Não sei. O camarada vermelho queria que eu fosse a um tipo de reunião, e eu disse que não me juntaria a eles e que negociaríamos ali mesmo ou esqueceríamos tudo. Então apresentaram meu contratante na hora. Havia algo no jeito que o cara vermelho falava as coisas que me trouxe uma vibração ruim.

Croyd franziu a testa.

— Talvez a gente tenha só que esquecer os caras.

— Eu realmente fecho acordos direitinho para que eles não voltem pra me assombrar — Darlingfoot disse. — Você não podia, tipo, dar uma olhada enquanto falo com ele e então decidir?

— Tudo bem… Eu disse que iria. Você se lembra de alguma outra coisa que foi dita? Sobre maçons, ases, o corpo… qualquer coisa?

— Não… mas o que são feromônios?

— Feromônios? São como hormônios que você cheira. Químicas que são levadas pelo ar e podem influenciar você. Tachyon me falou deles uma vez. Tem esse curinga que eu conheci. Você senta perto demais dele num restaurante e tudo que você come tem gosto de banana. Isso é feromônio, Tachy disse. O que têm eles?

— Não sei. O cara vermelho disse alguma coisa sobre feromônios com relação à mulher dele quando cheguei. Não mais do que isso.

— Nada mais?

— Nada mais.

— Tudo bem. — Croyd fez uma bolinha com o papel toalha e jogou na direção do cesto de lixo. — Vamos lá.

Quando voltaram para a mesa, Croyd contou o dinheiro e passou para o companheiro.

— Está aqui. Não pode dizer que não mereceu.

Croyd olhou os guardanapos espalhados, o chão melado e a umidade do saco vazio.

— O que você acha que devemos fazer com a sujeira?

Darlingfoot deu de ombros.

— Os garçons vão cuidar disso — disse ele. — Estão acostumados. Só não se esqueça de deixar uma boa gorjeta.

Croyd ficou para trás enquanto seguiam na direção do parque. Duas figuras estavam sentadas em um banco no meio dele, e mesmo a distância era visível que o rosto de um dos homens era vermelho e brilhante.

— Bem? — Devil John perguntou.

— Vou fazer uma tentativa — disse Croyd. — Finja que não estamos juntos. Eu continuo andando e você vai lá e conta pra eles a história. Volto num minuto e corto pelo parque. Vou tentar fazer a jogada assim que me aproximar. Mas fique pronto. Se não funcionar desta vez, podemos ter que recorrer a algo mais físico.

— Entendi. Tudo bem.

Croyd desacelerou o passo, e Darlingfoot seguiu adiante, atravessando a rua e entrando num caminho de cascalho que levava ao banco. Croyd foi até a esquina, cruzou-a lentamente e voltou.

Podia ouvir as vozes se elevarem, como se fosse uma discussão, quando chegou mais perto. Ele entrou na trilha e caminhou até o banco, o pacote ao lado.

— … pedaço de merda! — ouviu Matthias dizer.

O homem olhou na sua direção, e Croyd percebeu que ele era o mesmo policial que encontrara mais cedo. Não havia sinal de reconhecimento no rosto do homem, mas Croyd estava certo de que seu talento devia estar dizendo a ele que um ás estava se aproximando. Então…

— Senhores — disse ele, concentrando os pensamentos —, tudo que Devil John Darlingfoot disse aos senhores está correto. O corpo foi destruído por cães. Não há nada para lhes entregar. Vocês terão que dispensá-lo. Esquecerão tudo assim que eu tiver…

Ele viu Darlingfoot virar a cabeça de repente para olhar através do outro. Croyd virou-se e olhou na mesma direção.

Uma oriental, jovem e de aparência simples, se aproximava, mãos nos bolsos do casaco, gola levantada para se proteger do vento. O vento…

O vento mudou, soprando diretamente na direção deles naquele instante.

Algo sobre a mulher…

Croyd continuou a encarar. Como pôde ter pensado que ela era simples? Deve ter sido um efeito da luz. Ela era de tirar o fôlego de tão encantadora. De fato… Queria que ela sorrisse para ele. Queria abraçá-la. Queria correr as mãos sobre ela inteira. Queria acariciar o cabelo, beijá-la, fazer amor com ela. Era a mulher mais linda que já vira até então.

Ele ouviu Devil John sussurrar levemente.

— Você está vendo o que estou vendo?

— Difícil não olhar — ele respondeu.

Ele abriu um sorriso para ela, ela sorriu de volta. Queria agarrá-la. Em vez disso, falou:

— Olá.

— Gostaria de apresentar minha mulher, Kim Toy — ele ouviu o homem vermelho dizer. Kim Toy! Até o nome soava como música…

— Me diz o que você quer e eu consigo pra você — ele ouviu Devil John dizer para ela. — Você é tão especial que dói.

Ela gargalhou.

— Que galanteador — ela declarou. — Não preciso de nada. Não agora. Espere um pouco, talvez eu pense em algo. E você — disse ela ao marido —, conseguiu?

— Não. Foi levado por cachorros — ele respondeu.

Ela inclinou a cabeça, levantando uma sobrancelha.

— Que incrível — disse ela. — E como você sabe disso?

— Esses cavalheiros nos disseram.

— É mesmo? — ela observou. — E é isso? É o que você disse para ele?

Devil John concordou com a cabeça.

— É o que dissemos para ele — disse Croyd. — Mas…

— E a bolsa que você deixou cair quando me viu chegar — disse ela. — O que tem dentro dela? Abra, por favor, e me mostre.

— Claro — disse Croyd.

— O que você quiser — Devil John concordou.

Os dois homens ficaram de joelhos na frente dela e fuçaram desajeitados e sem sucesso por muitos segundos antes de conseguirem começar a desenrolar o saco.

Croyd queria beijar os pés dela enquanto estava na posição certa para fazê-lo, mas ela pediu para ver dentro do pacote e aquilo deveria realmente vir primeiro. Talvez pudesse sentir-se inclinada a recompensá-lo depois disso, e…

Ele abriu o saco e uma nuvem de vapor agitou-se em torno deles. Kim Toy recuou de imediato, engasgando. Quando seu estômago se revirou, Croyd percebeu que a mulher não era mais linda, e não mais desejável que centenas de outras pelas quais passara naquele dia. De soslaio, viu Devil John mudar de posição e começar a se levantar… e, naquele momento, Croyd percebeu a natureza do reposicionamento do camarada.

Quando o cheiro se dissipou, algo da onda inicial de glamour ergueu-se de novo da pessoa dela. Croyd apertou os dentes e baixou a cabeça, próximo à boca do saco de lixo, respirando profundamente.

Sua beleza morreu naquele instante, e ele ampliou seu poder.

Sim, como estava dizendo, o corpo está perdido. Foi destruído por cães. Devil John fez seu melhor por vocês, mas não tem nada para entregar. Agora vamos embora. Vocês vão esquecer que eu estava com ele.

— Vamos embora! — disse ele para Darlingfoot, enquanto se levantava.

Devil John balançou a cabeça.

— Não posso deixar essa mulher, Croyd — ele respondeu. — Ela me pediu para…

Croyd balançou o saco de lixo aberto na frente do rosto dele. Os olhos de Darlingfoot arregalaram-se. Ele engasgou. Balançou a cabeça.

— Vamos embora! — Croyd repetiu, jogando o saco de lixo sobre o ombro e correndo para longe dali.

Com um salto enorme, Devil John aterrissou três metros à frente dele.

— Bizarro, Croyd! Bizarro! — comentou enquanto atravessavam a rua.

— Agora você sabe tudo sobre feromônio — Croyd disse para o outro.

O céu ficou totalmente nublado de novo, e alguns turbilhões de neve passaram por ele. Croyd separou-se de Darlingfoot quando saíram de outro bar e começou a caminhar, descendo e atravessando a cidade. Esquadrinhava as ruas regularmente à procura de um táxi, mas nenhum apareceu. Ele não queria acreditar no fardo de se espremer e se apertar num ônibus ou metrô.

A neve havia aumentado em intensidade durante a caminhada nos quarteirões seguintes, e rajadas de vento lançavam os flocos para cima e os conduzia entre os prédios. Veículos começaram a ligar os faróis, e Croyd percebeu como a visibilidade diminuíra a ponto de não conseguir distinguir um táxi mesmo se um passasse ao seu lado. Praguejando, arrastava-se, examinando os prédios mais próximos em busca de uma lanchonete ou um restaurante onde pudesse beber uma xícara de café e esperar a tempestade passar, ou chamar um táxi. Mas todos pelos quais passou pareciam ser de escritórios.

Minutos depois, os flocos começaram a ficar menores e mais duros. Croyd levantou a mão livre para proteger os olhos. Embora a queda brusca de temperatura não o perturbasse, as pelotas gélidas o incomodavam. Ele se agachou na próxima abertura que viu — a entrada de um beco —, e suspirou e abaixou os ombros quando a força do vento foi interrompida.

Melhor. A neve caía ali de forma mais lenta. Limpou o casaco e os cabelos, bateu os pés. Olhou em volta. Havia um recanto no prédio à esquerda, vários passos para trás, muitos degraus acima do nível da rua. Parecia completamente coberto, seco. Ele seguiu até lá.

Já havia colocado o pé no primeiro degrau quando percebeu que um canto da área que parecia uma caixa diante de uma porta de metal fechada já estava ocupada. Uma mulher pálida, de cabelos desgrenhados e aparência corpulenta sob camadas inimagináveis de roupas, estava sentada entre um par de sacolas de compras, olhando além dele.

— … então, Gladys disse para Marty que ela sabia que ele estava saindo com aquela garçonete do Jensen’s… — a mulher murmurou.

— Desculpe — disse Croyd. — A senhora se importaria de dividir a entrada comigo? A neve está muito forte.

— … eu disse que ela podia ficar grávida amamentando, mas ela riu da minha cara…

Croyd deu de ombros e entrou na alcova, seguindo para o canto oposto.

— Quando ela encontrar outro no caminho, vai ficar realmente perturbada — e a mulher continuou —, especialmente com Marty tendo se mudado para a casa da garçonete…

Croyd lembrou-se do colapso da mãe após a morte do pai, e uma ponta de tristeza nesse caso óbvio de demência senil despertou em seu peito. Mas… ele se perguntou. Seu novo poder, sua capacidade de influenciar os padrões de pensamento alheios, poderia ter algum efeito terapêutico em uma pessoa como essa? Tinha um pouco de tempo para passar ali. Talvez…

— Ouça — disse ele para a mulher, pensando de forma clara e simples, concentrando-se nas imagens. — Você está aqui, agora, no presente. Você está sentada na entrada de uma porta, observando a neve…

— Desgraçado! — a mulher gritou para ele, seu rosto não mais pálido, a mão lançando-se na direção das bolsas. — Cuide da sua vida! Não quero o agora e a neve! Machuca!

Ela abriu a bolsa, e a escuridão dentro desta se expandiu enquanto Croyd assistia… seguindo na direção dele, preenchendo todo o seu campo de visão, levando-o de repente para várias direções, torcendo-o e…

A mulher, agora sozinha na porta, fechou a bolsa, olhou para a neve por um momento e disse:

— … então eu disse para ela: “Os homens não são bons de pagar pensão. Às vezes você precisa botar advogado em cima deles. Aquele moço bacana da Defensoria Pública vai dizer a você o que fazer”. E, então, o Charlie, que estava trabalhando na pizzaria…

A cabeça de Croyd doía e ele não estava acostumado a sentir essa dor. Nunca tinha ressacas, porque metabolizava o álcool com grande rapidez, mas aquela sensação era como ele imaginava uma ressaca.

Então, sentiu as costas, as pernas e o traseiro molhados, além da parte de trás dos braços. Estava estirado em algum lugar frio e úmido. Decidiu abrir os olhos.

O céu estava claro e a tarde caía entre os prédios, com algumas poucas estrelas brilhantes já no céu. Era para estar nevando. Também era tarde. Ele se sentou. O que acontecera nas últimas horas e…

Viu uma caçamba de lixo. Viu um monte de garrafas de uísque e de vinho vazias. Estava num beco, mas…

Não era o mesmo beco. Os prédios eram baixos, não havia caçamba no outro, e não conseguia localizar a porta onde estivera com a velha.

Massageou as têmporas, sentiu o pulsar começando a diminuir. Aquela velha… Que diabos era aquela coisa preta com a qual ela o atingiu quando estava tentando ajudá-la? Ela havia tirado de uma de suas sacolas e…

Sacolas! Ele procurou freneticamente pelo saco de lixo com os restos cuidadosamente separados do diminuto joão-ninguém. Então, viu que ainda o segurava na mão direita, e que havia sido virado de cabeça para baixo e rasgado.

Levantou-se e olhou em volta para o brilho tremeluzente de um poste distante. Viu as embalagens espalhadas ao redor e as contou rapidamente. Nove. Ufa. Todas as nove estavam à vista, e viu então os membros, a cabeça, o tórax — embora o tórax estivesse quebrado em quatro partes e a cabeça parecesse muito mais brilhante do que antes. Por causa da umidade, talvez. O pote! Onde está? O líquido poderia ser muito importante para fosse lá quem quisesse os restos mortais. Se o pote tiver se quebrado…

Ele lançou um grito rápido quando o viu nas sombras, próximo da parede à sua esquerda. A tampa não estava lá, nem cerca de três centímetros de vidro abaixo de onde ela deveria estar. Ele foi até ele e, pelo cheiro, sabia que era a coisa de verdade e não apenas água da chuva.

Juntou as embalagens, que pareciam surpreendentemente secas, e as colocou no peitoril protegido de uma janela de porão fechada. Então, recolheu as peças de quitina em um montinho. Quando recuperou as pernas, observou que ambas estavam quebradas, mas refletiu que poderia ser melhor para embalar. Então, voltou a atenção para o jarro de picles com a parte de cima cortada, e sorriu. Que simples. A resposta estava toda ao seu redor, dada pelos indigentes que frequentavam a área.

Ele juntou uma braçada de garrafas vazias e as carregou para o lado, onde ele as pousou e começou a tirar as rolhas e tampas. Quando terminou, decantou o líquido escuro.

Foram oito garrafas de vários tamanhos, e ele as deixou no peitoril com as embalagens em cima de um pequeno amontoado de exoesqueleto e cartilagens estilhaçados. Parecia que havia cada vez menos do cara toda vez que era desembalado. Talvez tivesse algo a ver com o jeito que estava dividido agora. Talvez precisasse de álgebra para entender.

O som de passos rápidos ia e vinha. Ele se virou, erguendo as mãos para se defender, mas não havia ninguém por perto. Então, ele o enxergou. Um pequeno homem de casaco muitas vezes mais largo que ele parou por um momento no parapeito da janela, onde pegou uma das garrafas maiores e duas das embalagens. Então, saiu correndo de imediato, na direção do fim beco, onde duas outras figuras surradas esperavam.

— Ei! — Croyd gritou. — Pare! — E estendeu seu poder, mas o homem estava fora de alcance.

Tudo o que ouviu foram gargalhadas e um grito de “Hoje vamos festejar, rapazes!”.

Suspirando, Croyd retirou uma grande bola de papel vermelho e verde de Natal da caçamba e voltou à janela para embalar de novo o que sobrara dos restos.

Após ter caminhado vários quarteirões com o pacote brilhante embaixo do braço, passou por um bar que chamava The Dugout e percebeu que estava no Village. Sua testa franziu-se por um momento, mas então viu um táxi e acenou, e o carro encostou. Tudo estava bem. Até a dor de cabeça havia passado.

Jube levantou a cabeça, olhou para Croyd, sorrindo para ele.

— Como… como foi? — perguntou.

— Missão cumprida — Croyd respondeu, passando-lhe a chave.

— Você conseguiu? Rolaram uns rumores sobre Darlingfoot…

— Eu consegui.

— E os pertences.

— Não havia nenhum.

— Está certo disso, camarada?

— Absolutamente. Nada além dele, e ele está na banheira.

— Quê?

— Tudo bem, eu fechei o ralo.

— O que você está dizendo?

— Meu táxi sofreu um acidente no caminho e algumas das garrafas quebraram. Então, cuidado com o vidro quebrado quando você desembalar.

— Garrafas? Vidro quebrado?

— Ele estava, digamos… reduzido. Mas peguei tudo que restou.

— Restou?

— Disponível. Ele, tipo, se despedaçou e derreteu um pouco. Mas salvei a maior parte dele. Ele está enrolado num papel brilhante com uma fita vermelha em volta. Espero que esteja ok.

— Claro… Tudo bem, Croyd. Parece que você deu o seu melhor.

Jube passou para ele um envelope.

— Vou pagar um jantar para você no Aces High — Croyd comentou —, assim que eu tomar um banho e me trocar.

— Agradeço. Mas eu… tenho coisas a fazer.

— Leve um desinfetante se passar no apartamento.

— Tá… Acho que você teve alguns problemas…

— Que nada, foi moleza.

Croyd foi embora, assobiando, com as mãos nos bolsos. Jube olhou para a chave enquanto as horas badalavam num relógio distante.

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